PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO

Transcrição

PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Faculdade de Ciências Sociais
Bacharelado em Relações Internacionais
André Lucchesi Nogueira de Carvalho Rocha
2010: o canto dos vencidos
São Paulo
2013
André Lucchesi Nogueira de Carvalho Rocha
2010: o canto dos vencidos
Relatório Final de Pesquisa apresentada com o
título original de Occupy All Streets.
Orientadora Profa. Dra. Dulce Maria
Tourinho Baptista.
Agência de fomento: PIBIC-CEPE
São Paulo
2013
AGRADECIMENTOS
À Profa. Dulce Tourinho Baptista, pela
confiança e pelo absoluto respeito à minha
forma de ver o mundo.
Aos meus pais e irmãos por terem me
apoiado neste ano difícil.
Ao Dr. Marcos Michel Wasserstein, por fazer
não só a continuação desta pesquisa, como a
minha própria permanência na PUC-SP,
possível.
Ao Prof. Gregory Nagy, por gentilmente me
ceder uma cópia de seu livro antes da
publicação.
Aos amigos do Greek 219B e do Hé Epistolé
pela ajuda com as dificuldades do dialeto
homérico.
Ao PIBIC-CEPE.
iii
SUMÁRIO
RESUMO
9
INTRODUÇÃO
11
APRESENTAÇÃO
15
I. METAMORFOSE
23
1.1
31
TEMPESTADE E ÍMPETO: rupturas e evasões na subjetividade moderna
1.1.1 Fausto I: uma tragédia de perversão
44
1.1.2 Uma herança shakespeariana: os dramas internos do herói moderno
52
1.1.3 Goethe: o poeta da práxis marxiana
58
1.2 O PALATINADO DE DRÁCON: colônias cristalinas e sujeitos subterrâneos
65
2 CRISE
79
2.1 Escombros
90
2.2 Σήματα
94
2.3 Νόος
101
3 CRÍTICA
123
4. ALGUMAS CONSIDERAÇÔES
137
REFERÊNCIAS
141
v
Odeio o profano; e, o vulgo, o afasto.
- Horácio
Olha de perto os tais Mecenas!
São semifrios, semicrus.
Corre esse, findo o teatro, ao jogo de baralho,
A amores vis, aquele, e a excitações confusas;
Convém, por tal pobre paspalho,
Atormentar as meigas musas?
- Goethe
Todas as artes contribuem para a maior de
todas as artes, a arte de viver.
- Bertold Brecht
Começarei pelas Musas, e por Apolo, e por Zeus:
Que pelas Musas e por Apolo, o flechicerteiro,
Há aedos sobre a terra, e citaredos,
Mas é por Zeus que nela há reis: feliz daquele a quem as Musas
amam: a fala dos lábios doce lhe flui.
Salve, filhas de Zeus, e honrai minha canção:
Que vos lembrarei, ainda, noutra canção também.
- Hino homérico XX
9
RESUMO
7.00.00.00-0 - CIÊNCIAS HUMANAS
7.02.00.00-9 - SOCIOLOGIA
2010: o canto dos vencidos
Dulce Maria Tourinho Baptista - ORIENTADORA
Departamento de Sociologia - Faculdade de Ciências Sociais
[email protected]
André Lucchesi Nogueira de Carvalho Rocha - ORIENTADO
Bacharelado em Relações Internacionais - Faculdade de Ciências Sociais
[email protected]
2010: O CANTO DOS VENCIDOS tem por objeto de estudo os recentes movimentos
de ocupação pacífica do espaço público e se constrói a partir da relação entre os seus
atores, a psicogênese do sujeito moderno e a dinâmica da crise nas teias de biopoder, transultrapassando tais relações e procurando, em seus desdobramentos, interligá-las. Optandose por tomar a crise como produção cultural (como objeto ao qual se pode aplicar a
categoria ‘tempo’), as narrativas artísticas, literárias e visuais, fazem-se presentes como
reflexo mediado do mundo real, dotadas de propriedade epistemológica, e estabelecem o
conjuntivo de um diálogo humanizador entre os conceitos abordados quando possibilitam
uma dianóia histórico-narrativa que privilegia uma leitura menos dura dos atores sociais. A
primeira parte, ensejada por TUDO QUE É SÓLIDO DESMANCHA NO AR, de Marshall
Berman, busca investigar as transformações na conformação psíquica do sujeito Moderno
após a ruptura para com a organicidade da sociedade ocidental tradicional e como, a partir
de tais transformações, originou um mal-estar recompensado pela monetarização do afeto.
Na segunda parte, examina-se como se dá a busca pelo retorno à ordem apolínea a partir de
um processo de revisão crítica desta psicogênese própria e se defende a necessidade da
conscientização e da reconfiguração identitária por meio da proposição de uma nova leitura
da épica homérica, esta baseada na afirmação de Slavoj Žižek de que os atuais movimentos
são “antes sintoma do que doença”. Na terceira e última parte, busca-se dirimir as afirmações
que colocam a sociedade ocidental como vítima de um sistema financeiro bárbaro e
opressor quando se aponta a recuperação inédita do mercado após a crise do crédito de
2008 e a relevância do ideário de consumo moderno e das demandas que dele surgem para a
configuração das políticas sócio-econômicas que levaram à crise.
Palavras-chave: Occupy Wall Street - Modernidade - Arte
11
INTRODUÇÃO
A presente pesquisa teve por objeto de estudo os movimentos de ocupação do
espaço público, em específico o movimento Occupy Wall Street, que, a partir dos moldes da
Primavera Árabe, alastraram-se e ainda se alastram pelo mundo, haja vista os
acontecimentos do mês de Junho passado no Brasil.
As ocupações têm abarcado Ocidente e Oriente, alcançando as mais diversas
sociedades e estando aparentemente além de suas estruturas políticas: regimes distintos
presenciam movimentos semelhantes em seus territórios, fazendo com que as ocupações
superem fronteiras religiosas e culturais, referenciais identitários e fraturas civilizacionais, o
que torna necessária a investigação de um denominador comum implícito no apoio mútuo
existente entre as diversas lideranças.
Salta, assim, aos olhos a problemática do projeto e das promessas da Modernidade, o
que, em termos científicos, traduz-se em tentativa primeiramente débil: a complexidade da
teia de grupos e movimentos traz a necessidade imperiosa de um saber multidisciplinar que a
possa alcançar e as constantes rupturas e reconfigurações dessas relações, em uma dinâmica
que em muito lembra aquela rizomática de Deluze e Guattari, dá corpo à incerteza quando
sublinha como esta Modernidade é continuamente des(re)construída.
Na feitura deste trabalho foi buscada a definição de Modernidade, mas não a que se
opera na transição teórica cartesiana, antes a que se constata na gênese do sujeito hodierno
por excelência, este que se encontra ocupando os espaços públicos. Tal definição foi buscada
em autores contemporâneos às primeiras críticas da Modernidade, submergindo nos signos
e seus devidos significados e significantes, na tentativa de sua compreensão e no seu
permanente devir, haja vista as quebras e ressignificações não dadas ao desprezível.
Neste contexto, a narrativa artística se mostra ferramenta útil na compreensão do
mundo que ora se observa quando dá corpo subjetivo ao continuum de (des)aventuras da
sociedade de então até os dias atuais. Esta perspectiva permite que o olhar lançado sobre o
objeto de estudo proposto, id est, a compreensão dos movimentos de ocupação do espaço
12
público, seja aquela que os toma sob a forma de sintoma e não de doença, de resposta e não
de questão, permitindo que seja escutado o raconto que estes têm a proferir e que se insere
graciosamente na tradição de narrativas crísicas de nossa civilização.
O tema interessou-me durante a minha especialização em análise de mercado
financeiro, em 2011; no entanto, longe de esclarecer o porquê da demanda por um modelo
democrático ocidental no Oriente Médio e por uma nova blindagem do capitalismo nos
Estados Unidos, as análises econômicas me instigaram a me aprofundar no assunto - o que
pretendo com esta Iniciação Científica. Nela, ao contrário da visão que busca entender a
conformação da sociedade ao mercado, estabeleci a demanda desta mesma sociedade e,
mais, da estrutura afetiva do sujeito moderno, como aquela responsável pelo
comportamento do mercado e pelo fazimento das políticas públicas de crédito. Isto trouxe
alguns inconvenientes, pois há aproximadamente dois séculos entre os primeiros
diagnósticos de cisões afetivas na Modernidade e a primeira crise do capital deste século.
Para superar este lapso temporal, usei a Modernidade como contexto e as obras
estudadas por Marshall Berman, em Tudo que é sólido desmancha no ar, como registros das
transformações culturais e sociais do período de modernização, responsáveis pela
exacerbação do mal-estar civilizatório - ao arrancarem o sujeito de sua realidade orgânica na
sociedade tradicional - que se desacomoda em períodos de crise e eclode em movimentos
como o Ocupem.
Apesar de partir de Berman, Fausto foi relido e o recorrer a Dostoievski foi
ampliado: a obra do poeta alemão se destacou por narrar o início da ruptura com os valores
tradicionais e em Dostoievski foi encontrada tanto a sociedade marcada pela relativização,
ou mesmo pela ausência, destes valores, quanto o sujeito que se vê em conflito advindo das
“luzes do progresso”, pois que a Modernidade aliada ao capitalismo presente em Fausto
relegou o sujeito afetivo a um segundo plano.
A crítica da Modernidade encontra, portanto, eco nestas obras que descreem do ser
humano resultante das mudanças sociais de então e que, anônimo, é objeto ao qual se dirige
o mal-estar que impulsiona os movimentos: solitário, egoísta e mercantilizado.
No primeiro capítulo, o objetivo foi demonstrar as consequências para o sujeito do
processo de modernização, que está ligado à construção do capitalismo que se aventou
motivo da crise de 2008. O tema é complexo e gera celeuma, já que a Modernidade é
13
entendida de diferentes formas por um sem número de teóricos. O foco se deu, então, nos
dramas que este processo causou aos seus sujeitos.
No segundo capítulo, foi desenvolvida uma leitura sobre a obra homérica - locada
como paradigma - diversa daquela dos frankfurtianos, onde se mostrou que a
desestabilização dos corpos políticos em momentos em que a representatividade social é
questionada, como se observa atualmente, exige que se tome consciência de si e dos
próprios desejos, ou seja, que se conecte através do nome do pai a uma cadeia significante
para que se entenda a realidade sem que se projete nela um sistema operacional próprio,
permitindo um movimento de discernimento - crise - que viabilize um retorno à ordem,
proposta amiúde feita por Zizek.
No terceiro capítulo, por fim, foi mostrado como os diversos índices econômicos e
financeiros não sustentam as previsões de uma falência do capital, mas antes apontam para a
crise como resultante das demandas sociais que partem do imaginário criado pelos Trinta
Gloriosos e a necessidade de se reconstruir as estruturas que suportam o desejo da sociedade
atual para que se torne possível uma nova forma de consumo (sim), porém sustentável.
14
15
APRESENTAÇÃO
“En tu grandeza, en tu hermosura
huyó lo que era firme, y solamente
lo fugitivo permanece y dura.” 1 e 2
- Francisco Gómez de Quevedo y Santibáñez Villegas
Ensejou-se a presente pesquisa quando da leitura das obras de Touraine Crítica da
modernidade e O retorno do actor em uma circunscrição temporal onde os protestos à forma
d´A Primavera Árabe haviam se espalhado pelo Antigo Continente e para além, na América,
e ecoavam diuturna e diariamente nos mais variados meios midiáticos.
Uma impressão primeira de que elementos da modernidade e sua crise eram
claramente encontrados nos movimentos supracitados conduziu a uma falsídica concepção
de que sua análise mostrar-se-ia assaz descomplicada, impressão esta que não tardou a se
desvanecer dada à constatação do extremamente complexo que o termo “modernidade”
encerra.
O maior aprofundamento na leitura das obras base escolhidas, buscando a
compreensão dos vários diálogos travados pelo autor ao longo do desenvolvimento de sua
questão inicial, qual seja “em que a liberdade, a felicidade pessoal ou a satisfação das
necessidades são racionais?”3 não tardou em revelar o imenso repertório multidisciplinar
necessário a compreender uma modernidade construída daquilo que não permanece: não
sem motivo opta-se pelo excerto de Francisco Quevedo em A Roma, sepultada en sus ruinas4,
expoente do conceptismo barroco espanhol e multíparo responsável por obras teológicas,
filosóficas, ascéticas e literárias. O que faz Touraine ao, questionando sistemas teóricos que
vão de Sócrates a Marcuse, afirmar que a modernidade é marcada pela “perda de todo o
1
QUEVEDO, Francisco de. A Roma, sepultada en sus ruinas. IN: Poesía varia. CROSBY, J.O. (org.).
Madrid: Ediciones Cátedra, 1997.
2
Na tua grandeza, na tua formosura,
Fugiu o que era firme e somente
O fugidio permanece e dura.
(tradução nossa)
3
TOURAINE, Alain. Crítica da modernidade. Petrópolos: Editora Vozes, 1997. p. 9.
4
Francisco de Quevedo, op. cit..
16
sentido”5 senão derruir as linhas determinantes que se construíram entre antagônicas
metanarrativas modernas?
Permanece tão-só, portanto, o transitório apontado por Harvey em Condição pósmoderna6 quando fala da contemporaneidade como este “implacável mundo da ruptura com
todas e quaisquer condições históricas precedentes, como é caracterizada por um
interminável processo de rupturas e fragmentações internas inerentes”7. Fragmentos
resultantes que Touraine toma em mãos para construir uma modernidade que se alinha com
ainda outro conceptista: o advogado e poeta brasileiro Gregório de Matos e Guerra, o
“boca do inferno”, quando escreve
“O todo sem a parte não é todo,
A parte sem o todo não é parte,
Mas se a parte faz o todo, sendo parte,
Não se diga, que é parte, sendo todo”.8
Assim parece, portanto, que o jogo retórico barroco que nega a ideologia teológica9
pretensa à explanação totalizante permanece, ainda, central ao movimento questionador da
modernidade quando aquela já não se presta mais a explicar o real pelos extensos discursos
do iluminismo, do capitalismo, do marxismo, do idealismo: a sociologia clássica, para
Touraine, tornou-se árida - qualidade daquilo que carece de sensibilidade e que se mostra
estéril - e o autor a torna novamente fecunda, à sua visão, quando monta um caleidoscópio
social, aplicando os golpes dos dramas humanos - do desejo de vingança do príncipe Hamlet
às histerias que Freud declara serem resultantes de ser a sociedade aquilo que é - contra tais
corpos monolíticos e encerrados.
Antes ainda de Harvey, Lyotard10 vê o enfraquecimento dos saberes globalizantes e
dos modelos únicos frente à pluralidade dos fragmentos contraditórios sobre um mesmo
5
Alain Touraine, op. cit. p. 173.
HARVEY, David. Condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992.
7
David Harvey, op. cit, p. 22.
8
GUERRA, Gregório de Matos e. Crônica do viver baiano seiscentista: obra poética completa. Rio de
Janeiro: Record, 1999. v. 1, Códige James Amado.
9
A dos antagonismos e oposições, conforme a define Nietzsche. Vide nota 21.
10
LYOTARD, Jean-François. Condição pós-moderna, a. São Paulo: José Olympio, 2002.
6
17
fenômeno, ao que o poema The blind man and the elephant, de Godfrey Saxe, escrito mais de
100 anos antes, serve de perfeita alegoria:
“[...]
So, oft in theologic wars
The disputants, I ween,
Rail on in utter ignorance
Of what each other mean,
And prate about an Elephant
Not one of them has seen!”11 e 12
Dada à enchança encontrada no sociólogo francês, a construção do presente trabalho
foi longa e árdua, uma vez que o caminho mais correto a percorrer pareceu aquele de
considerar que “o certo é que há muitos membros, mas um só corpo”13.
Ainda assim, fazia-se necessário um artifício capaz de ligar a razão à histeria, a
vingança shakespeariana à tecnocultura, uma vez que procurar seguir cada liame dialógico de
Touraine ultrapassaria em muito as possibilidades do processo de pesquisa que, justamente
por ser processo, traz em si limitações circunstanciais que não se pode desprezar.
Em conforme à proposta de pesquisa, duas delimitações se mostraram necessárias: (i)
definir a modernidade e (ii) definir seu sujeito por excelência. Para tal, dois autores foram
fundamentais: Marshall Berman, em Tudo que é sólido desmancha no ar, afasta-se das
metanarrativas modernas arduamente questionadas na segunda metade do século XX de
maneira mais acessível que Touraine, como desembaraça os diferentes conteúdos traduzidos
por “modernidade” em diversas áreas do saber que, mais das vezes, não possuem
delimitações claras. Para além, a exposição de Berman permite manter-se fiel à modernidade
como momento de constante ruptura e reconstrução de significados, de conceitos viscosos
responsáveis pela sempiterna flutuação de valores reguladores socais. Eliminam-se, assim, as
11
GARDNER, Martin Gardner. Famous Poems from Bygone Days. Mineola: Courier Dover Publications,
1995. p. 124.
12
Frequente, em teológicas disputas,
Os que discutem, eu suspeito,
Prosseguem em absoluto dislate
Do que arguem de afeito
E bacharelam sobre um elefante
Que nenhum deles viu direito!
(tradução nossa)
13
1 Coríntios 12:20
18
referências falaciosas, porém consagradas, de Ilustração, Modernidade e Revolução como pares
coligados14.
Contribuição importante ainda é de salientar o reflexo de tais transformações na
literatura, posto que a mencionada instabilidade dos valores supracitados passa a ser o
dilema fundamental dos heróis da literatura moderna, que servem, destarte, de percepção
documentada daqueles que vivenciaram os momentos mais agudos de tais transformações:
Berman aponta, por exemplo, no percurso do Fausto goethiano - da claustrofóbica magia de
seu “quarto gótico” para a expansão de sua “colônia”15 - as comutações de um mundo que
implicarão, posteriormente, nos dramas do homem moderno magistralmente exposto na
polifonia de Dostoievski.
Segundo elemento estrutural foram os operadores de complexidade de Morin16, que
validam o integrar de peças díspares em uma organização que recusa o reducionismo do
método sociológico clássico - fato também apontado por Touraine - que pretende mais à
forma do que à substância. Segundo o pesquisador do Centre National de la Recherche
Scientifique
“O progresso não reside necessariamente na constituição de totalidades cada vez
mais amplas; pode estar, pelo contrário, nas liberdades e nas independências de
pequenas unidades. A riqueza do universo não está em sua totalidade dispersiva,
mas nas pequenas unidades reflexivas desviadas e periféricas que nele se
constituíram.”17
Esta riqueza de que fala Morin ajuda a melhor compreender a dinâmica da atuação
dos movimentos centrados em Occupy Wall Street, que, diversamente da declaração de seu
idealizador, Kalle Lasn, de que “a magia acabou”18 não se mostram pouco perceptíveis, mas
levam a crer que “a capacidade crescente que as coletividades têm de agir sobre si
14
BARNETT, S.J. The enlightenment and religion: the myths of modernity. Manchester: Manchester
University Press, 2003.
15
JAEGER, Michael. Fausts Kolonie: Goethes kritische phänomenologie der moderne. Würzburg:
Verlag Königshausen und Neumann 2004.
16
MORIN, Edgar. Ciência com consciência. São Paulo: Bertand Brasil (Record), 2002.
17
Ibid., p. 262.
18
FERNANDES, Sofia. Criador do Occupy Wall Street diz que a magia acabou. Folha de São Paulo.
Disponível em <http://www1.folha.uol.com.br/mundo/1150343-criador-do-occupy-wall-street- diz-que-amagia-acabou.shtml>. Acessado em 10 Set. 2012.
19
mesmas”19 revolvem insatisfações que não podem se limitar às consequências funestas de
políticas neoliberais20 como se supôs previamente. Seria motivo, aliás, de estranhamento, que
um movimento contemporâneo, representante da natureza crísica desta “Modernidade
líquida”, expusesse tal caráter de solidez.
Apesar das limitações já afirmadas deste trabalho, que talvez provoque mais
perguntas do que ofereça respostas, torna-se claro o imenso da tarefa de se pensar uma
realidade muito mais complexa do que o permitem os modelos consagrados de conceitos
lógicos hierárquicos. Espera-se, no entanto, que ele possa colaborar no esclarecer do tecido
matizado pelos dramas e desejos que aninam estas recentes expressões coletivas de
descontentamento, já que “uma maravilhosa harmonia é criada quando juntamos o
aparentemente desconexo”21.
Uma última palavra talvez seja devida sobre a escolha do título deste trabalho: assim
como Modernidade, as sociedades, em seus percursos, multiplicam e ressignificam
determinados termos que suas definições, dada tal polissemia, passam a representar
verdadeiros desafios. E, como Modernidade, assim ocorreu com Arte.
Da τέχμη grega é que vem a ars latina, negando-se, assim, o lugar-comum da técnica
como sinônimo e resultado do processo de modernização e diametralmente distante da
expressão artística. Walter Benjamin22 tece considerações sobre tais limites ilusórios ao
comentar do surgimento da fotografia, técnica esta que expande as possibilidades produtivas
da plástica, e que, por este exato fato, deveria servir como suporte material da arte. Tem-se
a esta última, portanto, como expoente máximo do progresso técnico humano, uma vez que
este processo precisa objetivar, sob o risco de tornar-se perverso, os sentidos do ser-parasi.
Ao artífice, portanto, denigre-se o ser-se empírico, posto que é seu ser psíquico
aquele que permite a transmissão do saber: o vero propósito científico, pelo menos
19
TOURAINE, Alain. Retorno do actor, O: ensaio sobre sociologia. Lisboa: Instituto Piaget, 1996. p. 47.
Segundo a página principal do movimento (http://occupywallst.org) "Ocupem Wall Street é um movimento
sem liderança de pessoas de muitas cores, gêneros e convicções políticas. A única coisa que todos temos em
comum é que ‘Somos Os 99%’ que nãos mais tolerarão a ganância e a corrupção do 1%". (tradução nossa)
21
Heráclito de Éfeso, alc. “Pai da dialética”.
22
BENJAMIN, Walter. Sociologia (org. Flário R. Kothe). São Paulo: Ática, 1991.
20
20
enquanto ideal perfectum. É necessária, então, que a ideia se encontre com o conhecimento e
que estes se materializem pela técnica; só assim pode-se chegar a executar e a transmitir os
resultados intencionados. Isto é Arte.
A Modernidade utilitária e mecanicista parece ter tirado dos campos de percepção
social que as suas sistematizações e ordenações operaram verdadeira maximização das
possibilidades de produções estética: basta que se lembre do absoluto temporal das décadas
exigidas no feito das obras da Renascença e da instantaneidade da fotografia de Walter
Benjamin, que permite, de imediato, "conhecer o que se esconde nos detalhes, nas
minúcias"23 e, assim, fornece ao spectator atento “uma nova visão de mundo"24.
Se a modernidade, de fato, matou Deus, tornando a verdade inapreensível, a arte é,
por sua vez, ainda que fábula, real. E o real nos atinge a todos.
23
24
Ibid., p. 222.
Proust sobre a fotografia. Apud Antônio Brassaï. Proust e a fotografia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
p. 49.
"Nossas mentes rechaçam a ideia do
nascimento de uma coisa que pode nascer de
uma contrária, por exemplo: a verdade do
erro; a vontade do verdadeiro da vontade do
erro; o ato desinteressado do egoísmo ou a
contemplação pura do sábio, da cobiça. Tal
origem parece impossível: pensar nisso parece
próprio de loucos [...] Este é o preconceito
característico dos metafísicos de todos os
tempos, este gênero de apreciação se
encontra na base de todos os seus
procedimentos lógicos. A partir desta
"crença" esforçam- se em alcançar um 'saber',
criam a coisa que, afinal, será pomposamente
batizada com o nome de 'verdade'." 25
- Friedrich Wilhelm Nietzsche
25
Para além do bem e do mal, primeira parte, §2.
22
23
I. METAMORFOSE
"[...] que todo acontecer no mundo orgânico é um sobrepujar, um tornar-se
senhor, e que, por sua vez, todo sobrepujar e tornar-se senhor é um interpretar de
modo novo, um ajustamento, no qual o sentido e o fim de até agora tem de ser
necessariamente obscurecido ou inteiramente extinto."
- Friedrich Wilhelm Nietzsche26
Ao abordar os movimentos sociais do estádio contemporâneo da Modernidade, o
balhestro que necessariamente surge é aquele da talente de ou (i) adotar-se a supremacia de
uma concepção particular de tal período, ou (ii) associá-la à maneira que os herdeiros do
findo século, pródigo no produzir interpretativo, apercebem-se de suas hodiernas
sociedades.
Os últimos trinta anos viram o prisma da modernidade ser deslocado para aquele das
constantes rupturas e reconexões, em um tecido fluido de valores de eviternos ressignificar.
Da multiplicidade de Os Mil Platôs de Deleuze e Guattari às propostas sistêmicas de Morin,
não pode extrair conteúdo esclarecedor aquele que pretende ao engessamento da por
suposta atualidade das narrativas da modernidade, cujo caráter passadiço já foi
exaustivamente apontado por Loytard27.
O atual momento extrapola já em muito os paradigmas lineares do positivismo
quando as críticas da Era da Sensibilidade de Diderot não mais permitem que se adote o
paradigma da razão como fulcro investigatório da Modernidade e as discussões deslocam-se
dos sistemas lógicos para a definição do que é o próprio objeto de estudo: a Modernidade,
assim, talvez seja mais método do que objeto; uma teoria, um conjunto que sirva de ligação
entre as partes resultantes das tais incontáveis rupturas, da alternância da perspectiva de
valores, da fusão dos múltiplos já apontada por Dostoievski em suas anotações
26
27
Para a genealogia da moral, 2ª. Dissertação, §12 (grifo nosso).
Op. cit.
24
"sei o que é mal, e me arrependo, mas o pratico juntamente com impulsos
grandiosos. É possível que seja assim: duas atuações num único e mesmo tempo;
numa atuação ele é o grande justo [...]. Na outra, ele é criminoso terrível."28
e que não dista das considerações de sobreposição entre o Bem e o Mal, sejam as de
Goethe, em seu Fausto: uma tragédia - segunda parte29, onde o mal perpetrado pelo homem
de bem passa a ser perdoável30
e 31
, sejam nos difíceis textos que compõem a obra de
Nietzsche. Constata-se, portanto, na intelectualidade contra a Modernidade uma
preocupação com o papel subjetivo de seus atores - papel este reduzido nimiamente pela
sociologia clássica -, onde parece pesar a importância de acompanhar seus percursos, posto
que as assertivas da razão como árbitro da conduta humana e responsável pelo seu fracasso
não aparentam evidenciar-se em mais que vagueza.
É o próprio Touraine que vai se aproximar de teóricos como Freud, tão críticos da
desconstrução do sujeito moderno, para fazer derruir o que até o momento se apresentava
tradicionalmente ao pesquisador: as narrativas dialéticas vêm abaixo e A crítica da
modernidade presenteia o leitor com um capítulo conclusivo pesadamente onerado de
perguntas que cabe a cada Stavróguin32 novadio responder.
Ainda que a origem tome corpo em questões que se desvinculam do todo de seu
desenvolvimento33, seu conhecimento é necessário para que acuradamente se resguarde das
tentações mefistofélicas que se apresentam ao erudito em sua tragédia: o aferrolhar-se a
assuntos e fatos já dados pela tradição, natureza esta de tradição que, apesar da
metamorfose da modernidade, suas metanarrativas assumem.
28
Apud MELETÍNSKI, Eleazar Mosséievich. Os arquétipos literários. São Paulo: Ateliê Editorial, 1998.
p. 255.
29
GOETHE, Johann Wolfgang von. Fausto: uma tragédia - segunda parte. São Paulo: Editora 34,
2011.
30
“Que o homem de bem, na aspiração que, obscura o anima,
Da trilha certa se acha sempre a par.”
(Fausto, 329)
31
Goethe defende que é intuitivamente, i.e. não pela Razão, que o homem está sempre num movimento
constante de aproximação do “Bem”, apesar de suas aspirações contrárias a Ele (in seinem dunklen
Drange).
32
Personagem de Os demônios, de Fiodor Dostoievski, que transgrede como forma de afirmar a
liberdade.
33
FOUCAULT, Michel. The Foucalt reader. Paul Rabinow (org.). New York: Pantheon Books, 1984.
25
É Machado de Assis, outro expoente do encarceramento mefistofélico, que, através
da figura de Deus (embate também fulcral na obra de Goethe), rechaça este engessamento
em seu conto A igreja do diabo:
“Tudo o que dizes ou digas está dito e redito pelos moralistas do mundo. É assunto
gasto; e se não tens força, nem originalidade para renovar um assunto gasto,
melhor é que te cales e te retires.”34
Touraine ataca mordazmente a sociologia clássica do século XX e deixa nas mãos de
quem se lança ao pensar a atualidade o intimidador trabalho de, se não surgir com algo novo,
encontrar resposta para ao menos um dos conflitos teóricos que registra aos finais de sua
obra: resultado que seria, incompleto fosse, recompensador.
A possível solução para o risco de tamanho descaminho teórico frente ao
caleidoscópio do conhecimento humano quando as certezas se desfazem vem da obra de
Marshall Berman, que tece, à maneira complexa, id est à maneira daquilo que é construído
em conjunto, uma síntese das contradições de uma atualidade que busca seu próprio
sentido35 e que, para além, traz ao indivíduo que nela se insere a angústia de ter em mãos
uma liberdade travessa de ser direcionada pela consciência de si36 em um conjunto
condicionante cultural que é desencantado: “Gott ist tot!”37
Berman descerra antagonismos e contradições nos discursos dos atores modernos e
propõe não o olhar sociológico estéril, mas o olhar sobre si no conjunto de experiências
que é esta obra fáustica do progresso. Esta aproximação, que fica explícita em Touraine, é
apontada também por Miller38, que engendra sua argumentação na hipótese de que a
sociedade não é um corpus inumano, mas tem natureza intimamente ligada àquela de que se
fazem seus cidadãos. Berman continua:
“[...] irônica a contraditória, polifônica e dialética, essa voz denuncia a vida moderna
em nome dos valores que a própria modernidade criou, na esperança - não raro
34
Apud Marcus Vinicius Mazzari. Goethe e a história do Doutor Fausto: do teatro de marionetes à literatura
universal. IN: Fausto: uma tragédia - primeira parte. São Paulo: Editora 34, 2011. p. 17.
35
Michel Foucault, op. cit.
36
“A natureza agonizada e dividida das pessoas de nossa época”. Dostoiévski apud Meletínsky, op. cit.,
p.241.
37
“Deus está morto!”. NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A Gaia Ciência, §125.
38
MILLER, Martin. Freud and the bolsheviks: psychoanalysis in imperal Russia and the Soviet
Union. New Haven: Yale University Press, 1998.
26
desesperançada - de que as modernidades do amanhã e do dia depois de manhã
possam curar os ferimentos que afligem o homem e a mulher modernos de hoje.”39
Resta saber se ainda subsiste a capacidade - e, principalmente, o desejo40 - de se
retomar o controle sobre as contradições que a realidade se nos impõe, controle que
Berman afirma ter-se perdido. A busca, assim, é aquela de Sísifo: em eterno trabalho
recordatório de que a inteligência e a astúcia não podem, sozinhas, garantir a liberdade idílica
do paraíso perdido; é a busca pelo “ponto mais alto do Paraíso” de Milton, que Adão apenas
alcança ao ser conduzido; e é o sonho da torre mais alta da colônia faustiana. Por pelo
menos três séculos tem-se registrada a existência destas forças antagônicas que impulsionam
o eterno vir-a-ser da Modernidade e, cada vez mais, aponta-se o maior dinamismo no
momentum de “destruição necessária ao progresso” que aquelas produzem quando
combinadas: Harvey e Giddens41 estão mais próximos de Milton e Goethe do que se poderia
imaginar à primeira vista e a inquietude humana de mal saber realizar esta redenção sisífica42
que se buscou no desencantamento não expira sinais de amainar43 ainda que com “a morte
de Deus”. Note-se que esta claustrofobia causada por uma liberdade abafadiça, que
transforma as possibilidades da Modernidade em buque auna ainda os literatos modernos
com o aprisionamento foucaultiano - este criticado também por Touraine, “por guardar seu
desprezo aos que se pretendem livres”44, mas que ele próprio nos faz sentir na sua absoluta
indisposição em considerar o atual estádio do conhecimento humano, enclausurando-nos em
suas críticas - e com o “cárcere de ferro [...] que determina a vida dos indivíduos que
nasceram dentro deste mecanismo [...] com uma força irresistível”45.
Se Touraine explicita o fragmentário, Berman amplia estas possibilidades quando nos
permite “desenvolver uma interação criativa entre elas” 46 e revelar “solidariedades entre
39
BERMAN, Marshall. Tudo que é sólido desmancha no ar: a aventura da modernidade. São
Paulo: Companhia das Letras, 2007. P. 34. (grifo nosso)
40
Aqui se diz daquele do registro psicanalítico, da busca do objeto que remete a algo perdido desde o
início, mas que deixa uma inscrição, o desejo do impossível lógico.
41
GIDDENS, Anthony. Consequências da modernidade, as. São Paulo: UNESP, 1991.
42
A mítica do herói do inferno tem sua essência no retorno, retorno este que redime e marca
fortemente a construção da dimensão temporal na Modernidade. Walter Benjamin explora à exaustão esta
questão ao longo de sua produção. Ver em especial Passagens (Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006).
43
CAMUS, Albert. Mito de Sisífo, o. Lisboa/Porto: Editora Livros do Brasil, 2005.
44
Crítica da modernidade, op. cit.
45
Max Weber apud Marshall Berman, op. cit., p. 39.
46
Ibd., p. 11.
27
Releitura de Charles Grignion de ilustração de Francis Hayman,
1749. Acervo do Christ's College, University of Cambridge.
“‘Sobe, eu te sigo, condutor sincero:
Meus passos guia: humilde aos Céus me curvo.
Seja qual for a punição, of’reco
Meu coração de todo resignado:
Munido de paciência me destino
A conquistar, se obter me é dado tanto,
Por áspero trabalho a paz ditosa.’
E para as visões de Deus subiram ambos.”
Paraíso perdido, canto XI
28
Angelus Novus - Paul Klee, 1920.
Enquanto, em Milton, Adão olha para o Dilúvio que virá, em Paul
Klee ele é levado de volta ao Paraíso: redimido, segue empurrado
pelo vento, deixando para trás as ruínas, mostradas por Miguel,
dos seus erros.
29
grandes artistas e pessoas comuns”47. As experiências da modernidade, assim, devem ser as
experiências próprias dos sujeitos, ilustradas, ouse-se dizer, pelas próprias contradições de
seus pensadores.
No diálogo que se propõe com tal processo, ainda que se tenha por finalidade
libertária o rompimento futuro com este, a magistral cisão interna entre as partes da
tragédia de Goethe serve para que se explore (i) a divisa da Modernidade e as primeiras
ampliações a que seu sujeito experimentou (ii) e as consequentes convulsões advindas da
“cultura do desenvolvimento”, época em que este sujeito vê “apenas fantasmas que rondam
meus olhos e desaparecem assim que os tento agarrar”48.
Gostar-se-ia de notar, no entanto, algo já apontado por Berman e que o atual cenário
de insurgências sociais só faz reforçar: o caráter de apatia quanto à angústia do herói
moderno, e o somos todos, frente aos ideais de criação de valores mais humanos a se verem
perdidos no fútil das polarizações vintecentistas49. Mostra-se, portanto, salutar certa dose de
ceticismo frente às ideologias igualitárias propaladas pelos meios de comunicação quando
tratam dos movimentos que seguem o rastro deixado por Tahir, uma vez que o homem atual
carece de “empatia e fé”50 e 51 para com os seus. Mas, apesar de tal cenário, guarda ainda esta
consciência de si, que a modernidade faz recair sobre os seus sujeitos, a esperança no
resgatar do símbolo historicamente recorrente imortalizado por Dostoievski quando, ainda
em freima, Alyosha, lembrando-se de Zósima, beija a terra e a agarra em mãos52: “est opus
occultum veri sophi aperire terram ut germinet salutem pro populo”53.
47
Ibid.
Rousseu apud. Marshall Berman, op. cit., p. 27.
49
MORIN, Edgar. Para sair do século XX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1986.
50
Marshall Berman, op. cit, p. 39.
51
NOGUEIRA, Paulo. Por que os Estados Unidos fracassaram. Disponível em
< http://www.diariodocentrodomundo.com.br/por-que-os-estados-unidos-fracassaram/>.
Acessado em 27 Dez. 2012.
52
DOSTOIEVSKI, Fiodor. Irmãos Karamazov, os. Prefácio e comentários de Sigmund Freud. Lisboa:
Relógio d’ Água Editores, 2012.
53
"É obra oculta do verdadeiro sábio abrir a terra para que germine o bem do povo", (anom.) Porta
Alchemica (atrib.) Massimiliano Palombara (tradução nossa).
48
30
Brat´ya Karamazovy - Yuriy Moroz, 2009.
"Prosterna-te com amor e beija a terra. Ama incansavelmente, insaciavelmente,
todos e tudo, procura esse êxtase e essa exaltação. Rega a terra de lágrimas de
alegria, ama essas lágrimas."
Irmãos Karamazov, parte II, livro VI, capítulo III. Extratos das conversações e da doutrina
do Stáriet Zósima, seção h.
31
1.1 TEMPESTADE E ÍMPETO: rupturas e evasões na subjetividade moderna
“Os poetas e os romancistas são aliados preciosos, e o seu testemunho merece a
mais alta consideração, porque eles conhecem, entre o céu e a terra, muitas coisas
que a nossa sabedoria escolar nem sequer sonha ainda. São, no conhecimento da
alma, nossos mestres, que somos homens vulgares, pois bebem de fontes que não
se tornaram ainda acessíveis à ciência.”54
- Sigmund Freud
Em Quand même55, Horkheimer e Adorno afirmam que “a resistência da natureza
externa, a que se reduz em última análise a pressão, prolonga-se no interior da sociedade
através de suas classes e atua sobre cada indivíduo [...]”56 e a literatura, como o faz notar
Freud, nasce das relações que seu autor, este indivíduo, estabelece não apenas com o espaço
social, mas, incisivamente, com a dimensão temporal que interfere de maneira direta em sua
estrutura psíquica. Não parece, pois, de todo estanho, enxergar na literatura registros
testemunhais históricos consideravelmente mais orgânicos - e, ainda assim, válidos - do que
aqueles, mencionados já áridos, do positivismo.
O processo de modernização, desencadeado pela ideologia binominal razãofelicidade, traz não só as consequências sociais do progresso, mas a consciência de si57 nos
antagonismos do capital que re(des)continuam e retroalimentam um processo simultâneo e
angustiante de inclusão e exclusão58. Toto coelo dos teóricos que propõem uma cisma radical
entre o orgânico simbiótico do sujeito-sociedade, as produções arromançadas do período
histórico explicitam, de forma quase hostil, o terceiro que emana quando da união do herói
moderno com as questões sociais que o cercam.
54
Delírios e sonhos na "Gradiva" de Jensen (1907 [1906]). IN: Obras completas, v.9. Rio de Janeiro:
Imago, 1997.
55
HORKHEIMER, M.; ADORNO, T. W., Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1997.
56
Grifo nosso.
57
HABERMAS, Jürgen. Discurso filosófico da modernidade, o. Lisboa: Publicações Dom Quixote,
1990.
58
Para mais detalhes sobre estes processos intrínsecos ao capital ver: HOBSBAWN, Eric. Novo
século, o. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
32
Sobre angústia destes deslocamentos espaço-temporais59, e como angústia que é,
poderia tão-somente recair sobre o sujeito, já que é sobre ele que pesa o efêmero do que é
59
Os deslocamentos temporais e espaço-temporais que se dão na Modernidade são recorrentes em qualquer
análise, sob qualquer prisma, que dela se faça. Parece, portanto, pertinente anotar-se o assunto para que não
se incorra na necessidade de repeti-lo desnecessárias vezes.
A dimensão temporal na Modernidade aparece como um paradoxo, uma vez que, nela, o tempo não é, mas
guarda em si a plena potencialidade de ser, ou de gerar todos os pares opostos. Baudelaire é um dos
primeiros que vai abordar plasticamente esta dimensão em suas análises sobre a vida na cidade moderna,
aquela da multidão e do flâneur. Veja-se o soneto A uma passante, em Flores do mal e compare-se à forma
como Piaf retrata a multidão em La foule:
"A rua, em torno, era ensurdecedora vaia.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão vaidosa
Erguendo e balançando a barra alva da saia;
Pernas de estátua, era fidalga, ágil e fina.
Eu bebia, como um basbaque extravagante,
No tempestuoso céu do seu olhar distante,
A doçura que encanta e o prazer que assassina.
Brilho... e a noite depois! - Fugitiva beldade
De um olhar que me fez nascer segunda vez,
Não mais te hei de rever senão na eternidade?
Longe daqui! tarde demais! nunca talvez!
Pois não sabes de mim, não sei que fim levaste,
Tu que eu teria amado, ó tu que o adivinhaste!"
Je revois la ville en fête et en délire
Suffoquant sous le soleil et sous la joie
Et j'entends dans la musique les cris, les rires
Qui éclatent et rebondissent autour de moi
Et perdue parmi ces gens qui me bousculent
Étourdie, désemparée, je reste là
Quand soudain, je me retourne, il se recule,
Et la foule vient me jeter entre ses bras...
Emportés par la foule qui nous traîne
[...]
Entraînée par la foule qui s'élance
Et qui danse
Une folle farandole
Je suis emportée au loin
Et je crispe mes poings, maudissant la foule qui me vole
L'homme qu'elle m'avait donné
Et que je n'ai jamais retrouvé...
Baudelaire é quem serve de inspiração para Walter Benjamin em seu resgate da figura de Cronos para
discorrer sobre melancolia moderna. No entanto, a Modernidade rompe de vez com este tempo saturnino,
que é linear, e traz de volta ao cotidiano a figura de Kairós, o deus do tempo do agora, do tempo propício e
fugaz. Note-se esta passagem de Fausto, 228 - 230:
"Ao que é possível; tão em breve
Não pensa em lhe dar larga, então,
E age até o fim, porque é o que deve."
No original, beim Schofe fassem, literalmente "agarrar o que é possível pelo topete”, alude, indubitavelmente, a
Kairós, sempre representado com a cabeça nua, exceto por um topete.
Assim, também nas outras artes surgem reflexos da transformação social do tempo: narrativas literárias não
lineares, o flashback no cinema e as peças sem fórmula de compasso (algumas, inclusive, sem compasso
algum): John Cage chega ao extremo de expor a nova relação entre tempo e trabalho ao compor peças com
indicações de duração dadas não pelo andamento metronômico, mas pela precisão do relógio, ecoando as
considerações de Benjamin de que a vida do homem moderno é produto de um mecanismo temporal
artificial. Em Um lírico no auge do capitalismo há uma citação de Shelley sobre o tema:
"O inferno é uma cidade muito semelhante a Londres Uma cidade populosa e fumacenta,
Com toda a sorte de pessoas arruinadas,
E pouco ou nenhuma diversão,
Pouca justiça e ainda menos compaixão."
Para mais detalhamento, consultar: Passagens, A modernidade e os modernos e Um lírico no auge do capitalismo,
de Walter Benjamin, e História e narração em Walter Benjamin, de Jeanne Marie Gagnebin de Bons.
33
Kairos - Francesco Salviati, século XVI.
34
Seule dans la foule - Marie Mylle, (?)
“[...]
O grito sobe-me por dentre os risos
Quando a multidão mo arranca dos meus baços
Empurrada pela gente que nos leva, nos arrasta,
Pela multidão que, um do outro, nos afasta,
Eu luto, eu lido, eu me debato.
E o som da voz d´Ele
Nos sons de risos outros se abafa...
Dor, furor e raiva: eu choro.
Avançamos na multidão que nos arrasta
E, p´ra longe, na farândola,
A multidão m´empurra e dança:
As mãos cerradas, a turba amaldiçoada
Que de mim rouba
O homem que m´havia dado
E que nunca mais hei de encontrá-lo!”
La foule - Edith Piaf
35
moderno, Berman60, não sem motivo, aponta que, juntamente com as promessas redentoras,
a Modernidade traz, em si, a ameaça de destruir "tudo o que temos e tudo o que somos".
Horkheimer se destaca ainda mais na agudez de sua observação sobre fato de mesmo teor
quando diz que "o iluminismo [...] perseguiu o objetivo de livrar os homens do medo61 [...]",
mas o que fez, de fato, foi "iluminar o signo do infortúnio triunfal"62, como a abertura de uma
Caixa de Pandora nem tão simbólica quanto a mítica63, pois "iluminado, o homem teve que
decidir sozinho o seu caminho e encheu-se de dúvidas, pois a promessa da modernidade era
explicar o inexplicável - e isso não aconteceu”64.
Parece claro, ainda à luz de Berman, que as transformações sociais ocorridas na
Modernidade não deixaram de fora a arte65: encontraram, ao invés, máxima expressão nestas
60
61
Op. cit.
É interessante notar a transformação, e talvez se deva mesmo usar o termo esvaziamento, desta
dimensão de ausência de medo a que se refere Horkheimer, pela cultura de massa do século XX. A negação
do transcendente não encontra reflexos nas obras modernas, que apenas retratavam a desmistificação do
poder sóbrio e austero do Medievo: o transcendente foi deposto.
Delacroix em seu Faust en Mephistopheles (The Wallace Collection, Londres), retrata Mefistófeles, "o inimigo da
luz", como um bufão, muito similar às representações tradicionais, inclusive nos adereços, do Capitano da
Commedia dell´Arte, consoante ao caráter dado ao personagem em Prólogo no céu:
"Vejo, uma ou outra vez, o Velho com prazer,
Romper com Ele é que seria errôneo.
É, de um grande Senhor, louvável proceder
Mostrar-se tão humano até para com o demônio."
(Fausto, 350)
Este mesmo caráter da personagem reaparece na música: Liszt, que chamou sua Valsa de Méfisto no.1 (S.514)
de "Dança no vilarejo", uma peça programática que ilustra a tentativa de Mefistófeles em fazer Fausto
participar da procissão dançante de um casamento num pequeno povoado ainda preso às tradições medievais.
A atmosfera festiva e chistosa do ritmo sincopado vai ser usada também mais tarde, já no século XX, por
Ravel em Alborada del gracioso, que retrata os passeios de um bufão por uma feira medieval, avisando, com sua
música, que a manhã se aproxima e é hora, portanto, de os amantes voltarem às suas casas. Aqui, as
semelhanças com o papel de Mefistófeles ao unir Fausto e Gretchen passam da simples coincidência.
62
HORKHEIMER, Max. Os pensadores (textos escolhidos). São Paulo: Abril Cultural, 1983.
63
Note-se a ligação entre Pandora, primeira mulher criada por Zeus, Eva, primeira mulher criada por
Deus e as consequências da desobediência nos obras modernas e modernas tardias como Paraíso Perdido, de
Milton, Fausto, de Goethe, e a diversidade da obra de Dostoiveski acerca da relativização dos valores
tradicionais.
64
ARTEAGA, Cristiane Guimarães. O herói da modernidade em Dostoievski e Graciliano
Ramos. s/d. 131 folhas. Tese de Doutorado - Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS.
Depósito: 2011. Arquivo eletrônico. p. 23. (grifo nosso)
65
Exemplos de como estas transformações sociais modificaram a arte não se resumem aos temas que
abordaram a literatura, ou, futuramente, a plástica como forma de protesto; mas, alteraram a própria maneira
do se produzir a arte. Alexander Scriabin, compositor russo que viveu entre o fim do século XIX e o começo
do século XX, ficou famoso pela quantidade de peças absolutamente curtas, muitas com menos de um
minuto de duração, que compôs. Pouco é sabido, no entanto, que seu editor constantemente o pressionava
por novos ciclos de estudos, peças e sonatas, apenas mediante os quais Scriabin era pago e poderia
sobreviver após sua curta e negativa experiência como professor do Conservatório de Moscou.
(continua)
36
Faust en Mephistopheles - Eugène Delacroix, 1827 - 1828. Wallace Collection, Londres.
Suas composições são marcadas pelas tensões internas das dissonâncias enfatizadas por contratempos, dos
tons menores e opressores e do absoluto contraste entre suas partes. Scriabin foi considerado por Tolstói
um dos maiores gênios representantes da realidade russa pré-revolucionária.
37
últimas. Mas é Foucault66 quem colocará a questão crucial: “qual é esta minha atualidade?” e,
se nos atrevemos, ainda, a considerar-nos modernos, o somos em relação a quê?
Compagnon67 reconhece a dificuldade de se apreender aqueles que estudam a
Modernidade e, assim, esta complexidade de uma realidade dificílima de dar-se conta, visão
caleidoscópica, onde a apreensão de um ângulo leva outros, sólidos ou não, a “se
desmancharem no ar”, encontra-se amplamente presente nos dilemas literários, ainda que,
segundo Goethe, seja apreensível exclusivamente àqueles sensíveis aos "gestos, acenos e
leves alusões" que o instante absoluto e fugidio permite registrar na rudeza de palavras.
O progresso intelectual perpetrado pelos primeiros sopros do Renascimento e
posteriormente foleado pelos extremos do Iluminismo deu aos pensadores contemporâneos
dos processos de modernidade tardia condições ímpares de reflexão e registro, posto que o
homem da Razão então atual se pôs a observar os ecos da origem daquela (e não é o que
fazemos ao observar os ecos do Big Bang, inteligíveis hoje apenas?) e, neste sentido,
destacam-se peremptoriamente os escritos de Goethe e de Dostoievski por motivos vários.
Quanto a Fausto, notório é o desconforto que a obra causa ao autor. Em uma carta a
Schiller, que pedia por novos fragmentos do texto, pode-se ler
"do Fausto nada posso comunicar no momento. Não ouso desatar o embrulho que
o mantém preso. Eu não poderia copiar sem desenvolvê-lo e, para isso, não me
sinto com coragem. Se alguma coisa no futuro me levar a isso, então será
certamente o seu interesse"68
fato que não deveria surpreender constatada a inquietação que deve ter envolvido a opera
vita de Goethe: Fausto, que não tem sobrenome, herda de seu pai, um pai anônimo, todo o
conhecimento69 que possui e a transição da claustrofóbica primeira parte à amplitude
grandiosa das últimas cenas da tragédia deixam clara a intenção goethiana de fazer de Fausto
não personagem teatral, mas representante do drama humano moderno. Tal constatação
não tem caráter novadio: veja-se Machado de Assis, no conto já mencionado, quando o seu
66
Op. cit.
COMPAGNON, Antoine. Os cinco paradoxos da modernidade. Belo Horizonte: UFMG, 1999.
68
apud. Marcus Vinicius Mazzari, op. cit, p. 15.
69
O fruto do esclarecimento e que, para Fausto, transforma-se em fardo.
67
38
Mefisto diz a Deus "não venho pelo vosso servo Fausto70, respondeu o Diabo rindo, mas por
todos os Faustos dos séculos e dos séculos".
Que Goethe não possa ser considerado um estudioso da sociedade - e sirva, até
mesmo, à representação um anti-sociólogo71 -, nem por isso suas reflexões são parcas em
analogias e paralelos entre a natureza humana e suas interações culturais e sociais. Tais
meditações nunca chegaram a ser desenvolvidas aos moldes do pensamento sistêmico, mas,
facta concludentia, dele se aproximam quando colocam a sociedade como construída - ou
talvez mesmo postulada - por seus cidadãos, constructo este que pode ser modificado por
alternâncias nas forças próprias que o dão forma.
Goethe, nas mesmas cartas a Schiller, dizia esperar viver para ver os grandes projetos
interventores da modernidade - pontes, canais, urbes -, o que obriga a considerar as
profundas implicações em suas concepções temporais quando o momento que testemunha
(ou deseja testemunhar) é símbolo da eternidade72. Por esta sua ânsia - e ainda por
desesperança realista, já que seu tempo foge -, em seus registros pessoais encontramos a
mesmas pergunta que Touraine nos injunge: a vita contemplativa foi negada, mas o que virá
em seu lugar?
A percepção da possibilidade única de se definir a Modernidade por o que ela deixa
de ser, condição expressa na apresentação da Crítica de Touraine, está presente também,
tácita, na linha 10.176 de Fausto quando este exclama "Moderno e mau! Sadarnapalo!". A
Modernidade nega inclusive a linearidade aristotélica (da qual alguns de nós ainda somos
desatentas vítimas) quando pretende o retorno - e outra vez nos vemos frente à questão
dos deslocamentos da dimensão temporal - à felicidade do Paraíso Perdido, representada
aqui por Sardanapalo: nome grego de Assurbanipal, rei assírio conhecido pela vida de luxo e
extravagância e que seria modelo também para Byron, a quem Goethe chamou de "o maior
70
Compare-se a:
“O ALTÍSSIMO: Do Fausto sabes?
MEFISTÓFELES: O doutor?
O ALTÍSSIMO: Meu servo, sim!”
(Fausto, 299 - 301)
71
MÜLLER, Hans-Peter. The ambivalence of modernity and the Faustean ethos of personality. IN:
Sociological insights of great thinkers: sociology through literature, philosophy, and science.
EDLING, Christofer; RYDGREN, Jens (org). Westport: Greenwood Publishing Group. pp. 169 - 176.
72
Tema que Horkheimer e Adorno retomam em A dialética da modernidade.
39
gênio do século", em sua tragédia Sardanapalus. Tem-se, portanto, a promessa não cumprida
da Modernidade de levar o homem de volta ao seu estádio primevo de felicidade: "com o
suor do seu rosto você comerá o seu pão, até que volte à terra, visto que dela foi tirado"73
e
74
.
Goethe foi capaz de expor de forma quase profética as transformações simbólicas do
Mal que surgiriam do relativismo moral moderno e seu gênio influenciou fortemente o
extremo de que foi palco o século XX. Note-se, por exemplo, os reflexos de Fausto I na
poética de Paul Celan: a angústia gerada pelo aprisionamento na arrogância da Razão
moderna, tema que seria tão caro a Foucault, é materializada no quarto gótico de Fausto,
“antro vil, maldito, abafador covil”75, do qual busca o intelectual fugir pela morte ao beber
veneno76; mas, ao contrário, afunda-se mais no Mal. Em Fuga da Morte, fala Celan sobre o
cotidiano nos campos de concentração da II Guerra, onde se bebe o “leite negro do
amanhecer”77:
“Leite-breu d' aurora, nós o bebemos à tarde,
Nós o bebemos ao meio-dia e de manhã.
Nós o bebemos à noite,
Bebemos e bebemos.
Cavamos uma cova grande nos ares [...]”78
A questão também já apontada de decidir o homem, sozinho, o seu caminho, a
retrata Goethe, ainda, quando traz, à ópera fáustica, a presença de Helena. Helena é a
representação máxima da beleza, da qual também o é Lúcifer79. Nas narrativas judaicas, antes
mesmo da desobediência de Eva, existe o primeiro rebelar-se humano contra Deus e, neste
sentido, rebelar-se é mais grave do que desobedecer: a primeira mulher, criada também do
73
Gênesis 3:19
Não parece ter sido por acaso que Goethe narra, em Fausto I, pela primeira vez talvez, a história de
uma operária: diversa de qualquer outra obra de até então, o trágico patíbulo é destinado à Gretchen, que
nada possui, mas uma roda de fiar. Baseado em sua atividade como jurista, Goethe proseia a realidade
daqueles que foram constrangidos por atos praticados em nome do próprio ideal de liberdade que a
Modernidade, como vulto, os prometeu.
75
Fausto, 3989-399
76
Também o suicídio é tema recorrente na Modernidade.
77
O leite da madrugada é a própria essência do Mal, de Lúcifer, “a estela da alvorada” (‫)שחר בן הילל‬.
78
CELAN, Paul. Fuga da Morte. IN: Cristal. São Paulo: Iluminuras, 2009.
79
“O mais belo”. Ver Ezequiel 28, 11-19. Segundo a doutrina prevalecente no Medievo, os querubins
estavam mais próximos de Deus do que os sefarins, fazendo de Lúcifer o "mais belo dos belos" e "o mais
forte entre os poderosos".
74
40
pó, nega o submeter-se à vontade do homem e, por isso, passa a parir demônios80. Entender
o filho de Fausto e Helena é vislumbrar a própria Modernidade.
Eufórion é a maior crítica goethiana ao homem moderno: com asas nos pés, voa não
por possuir poderes divinos, mas por trazer em si tamanha arrogância que perde amarras
com o real - é a arrogância do sujeito moderno que se pretende à grandiosidade clássica.
Aberta e declaradamente construído sobre a figura de Lord Byron, este “Ícaro germânico”
vai influenciar, posteriormente, a produção de Mein Kampf, como o notam alguns biógrafos
da vida de Hitler. Se tais figuras da literatura se aproximam da loucura cômica, o absurdo
social que as gera e as envolve é real. Mais ainda, Eufórion é o resultado da dismorfia que
sofre o sujeito moderno: quando Helena aparece a Fausto, o faz no espelho mágico, não
pode, assim, representar algo que não fosse sua anima: conclui-se, mais uma vez, por aquela
já alhures mencionada busca do objeto perdido, impossível, mas inscrito no lógico.
Se Goethe levou à literatura o drama da modernidade, Dostoievski consegue captar
magistralmente - assim o dizem Freud e Nietzsche, dois pensadores que Touraine resgata - a
potencialização deste Mal a cada momento (Kairós) do processo (Cronos) histórico da
Modernidade. Estas considerações podem parecer desarticuladas dos movimentos sociais
contemporâneos, porém, fato se confirma de que são estes os processos que marcaram tão
profundamente o século XX como aquela “Era dos Extremos”81.
Dostoievski viveu em diversos Estados europeus que viram suas modernizações
muito antes do que aquela da tardia Rússia e, assim, posicionou-se inegavelmente contra as
novas políticas da cultura capitalista, denunciando o Mal como a força que faria a
Modernidade atingir sua plenitude, mas que seria, ele mesmo, o responsável pela sua
destruição. Em O Idiota o autor retrata uma sociedade de valores corrompidos, desregrados,
voltados ao acúmulo de capital e, consequentemente de poder: uma sociedade perversa82.
Idiota, quase patético, é Míchkin, ingênuo e compassivo, mas detentor de uma percepção
80
Gênesis, 1:27, 2:18 e 2:22; Isaías, 34:14 nas versões Hebraica, Septuaginta e Vulgata.
Obra em que Eric Hobshawn descreve as guerras, revoluções e crises econômicas do século XX,
século que considera uma construção de “catástrofes e incertezas”.
82
Para as relações entre a perversão e a sociedade, ver Alienación en las perversiones (Buenos Aires:
Nueva Visión, 1987), de Masud Khan, onde o autor evidencia as ligações entre a alienação nas estruturas
perversas internas, em Freud, e a alienação nas estruturas perversas externas, em Marx. Afora a recusa à lei,
uma relação perversa deixa o outro em "estado de ausência", sintoma fortemente presente nas descrições de
Dostoievski.
81
41
aguda da natureza humana. Se Platão decide que a este homem arguto e quase santo só resta
a cicuta, Dostoievski chega à conclusão de que o único lugar para um santo, na
Modernidade, é o sanatório.
No entanto, é em Irmãos Karamazov que as consequências da modernidade, ao
menos no que se refere à liberdade de escolha de seus sujeitos, será tratada de forma
conspícua. Ivan Karamazov publica um artigo onde afirma que, destruindo nos homens a fé,
nada mais haverá de amoral, passagem longa que se transformou em uma das mais paráfrases
literárias mais populares: “se Deus não existe, [então] tudo é permitido?”. Em Brat´ya
Karamazovy83, produção televisiva de 2009, Ivan é interrogado, durante uma reunião, pelo
patriarcado local e sua família:
“Advogado de Fiódor P. Karamazov: - Ivan Fiódorovitch, estou perplexo. Tu dizes
que não existe lei da Natureza. Amar o seu semelhante, que isso não existe. Neste
caso, a lei moral é diferente para todos que não acreditam em Deus. Então, nada é
amoral. Qualquer crime seria permitido caso possa ser justificado pela razão.
Dmitri Karamazov: - Desculpe-me, escutei mal. O crime seria permitido e
considerado justificável pela razão? É isso?
Ivan: - Isso mesmo.”
- tema que claramente retoma de Crime e Castigo. Tal percepção das consequências
implicadas no “avanço da humanidade” fez Freud considerar Irmãos Karamazov “a maior obra
da história”, opinião que compartilhava com Nietzsche84.
Que, hodiernamente, culpem-se, de modo neurótico, uns e outros pelas sucessivas
crises que o progresso da técnica trouxe à sociedade atual, pois que seriam estes
representantes daquela sociedade perversa de O Idiota85 e 86, pesa, no entanto, a consciência
de si que a Modernidade traz quando Dostoievski escolhe chamar uma conturbada família esta micro-sociedade - de “Karamazov”: ao juntar “punição” (кара) e “sujar” (мазать) o
autor não esconde seu posicionamento de que é o próprio desequilíbrio dos sujeitos
perversos em suas relações o responsável pelos seus dramas e desgraças.
83
Brat´ya Karamazovy. Yuriy Moroz, Sergei Gorobchenko, Aleksandr Golubev, Pavel Derevyanko,
Dina Korzun. Rússia: Central Partnership, 2009. DVD, 528 minutos. Drama. Legendas em inglês.
84
Vide nota 53.
85
“O inferno são os outros”, diz Sartre na intersubjetividade de Entre quatro paredes.
86
MORIN, Edgard. Cultura de massas no século XX. São Paulo: Forense Universitária, 2005. 2 v.
42
Volta-se, então, à já posta questão: deixariam de servir as críticas existentes no
alegórico como registro histórico de uma época? Dostoievski chama atenção para as
configurações que culminariam nas Revoluções de Fevereiro e de Outubro e no
consequente horror que se seguiu. Há como se negar a profética antropofagia de Ivan
mediante os registros pictóricos da Guerra Civil? E como não ver nestes fatos as
prefigurações dos conflitos do século XX? Dostoievski nega, já e então, o suicídio moderno,
saída de Goethe e fixação de Durkheim, e usa a sua literatura como revolta: ao absurdo
prefere a resposta de Camus. Sua obra, que evolui da ambiguidade para a total polifonia,
adianta-se às visões do profundo do humano em Freud e às reações viscerais do século de
Hobsbawn contra o raso do materialismo positivista. Quem recorre também a Dostoievski
para analisar a Modernidade é Adorno, que, em Notas da literatura87, afirma “[...] enquanto há
nele psicologia, sua natureza é compreensível, ela é essencial, e não é como aquela dos
empíricos que se movem pelo mundo”88.
Se, contudo, há ainda questionamento que reste, lembre-se aqui que Dostoievski
testemunha a perversão não da posição privilegiada de Goethe, mas à maneira amarga de
Celan: é condenado à morte por fuzilamento, atenuada, já frente ao pelotão, pelo exílio e
pelo trabalho forçado na Sibéria. O autor que observa as contradições sociais na
modernização e no surgimento do capitalismo no final do Império russo, que vê e se
indispõe para com o positivismo iluminista e que se revolta frente o “socialismo burguês”
não poderia deixar de constatar, in toto, que a realidade se faz de
“pequenas
unidades
reflexivas”89, de dobras e de sobreposições, ou, como expõe Bakhtin90, que não há uma
ideologia totalizante que possa articular todas e quaisquer partes, mas uma multiplicidade de
ideias que se manifestam sem se sobrepor: Dostoievski não cria indivíduos em suas obras;
cria tipos sociais, modelos psicológicos que se entrecruzam em referências dentro d e sua
87
ADORNO, Theodor W. Notas da literatura. Barcelona: Ediciones Ariel, 1962.
p. 47 (tradução nossa)
89
Edgar Morin, op cit.
90
BAKHTIN, Mikhail. Problemas da Poética de Dostoievski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
88
43
Antropofagia na Fome Povolzhye. Região do Volga, 1921.
"[...] de sorte que, destruindo-se nos homens a fé em sua imortalidade, neles se
exaure de imediato não só o amor como também toda e qualquer força para
que continue a vida no mundo. E mais: então não haverá mais nada amoral, tudo
será permitido, até a antropofagia."
Irmãos Karamazov, parte 1, livro II, capítulo VI. Por que tal homem existe?.
44
própria obra e, assim, dá forma a uma realidade plural e próspera como não o foram capazes
os estudiosos do empírico imediato.
Que seja mantido à vista, portanto, o inegável da dialética existente entre as obras
dos dois autores abordados e os materiais das quais foram feitas, posto que, diversos das
tábulas dos jogos estatísticos, são materiais, ipsum factum, medulares e vivos.
1.1.1 Fausto I: uma tragédia de perversão
“Uma literatura que não respire o ar da sociedade que lhe é contemporânea, que
não ouse comunicar à sociedade os seus próprios sofrimentos e as suas próprias
aspirações, que não seja capaz de perceber a tempo os perigos morais e sociais que
lhe dizem respeito, não merece o nome de literatura: quando muito pode aspirar a
ser cosmética.”
- Alexander Issaiévich Soljenítsin
Berman aponta, no início de suas considerações sobre a figura de Fausto, duas
características que se mostrariam fundamentais às exposições (i) crítica e (ii) alegórica do
progresso como foram feitas por Goethe: a personagem se marca tanto pela natureza
intelectual não conformista, como por uma acentuada incapacidade de manter sob controle,
i.e. uma marcante insuficiência de recalque, seus processos mentais "dinâmicos e
explosivos"91.
Fausto chegou ao limite das possibilidades do seu tempo e apercebe-se de que, ainda
que nada lhe seja estranho, tudo lhe aparta da vida - o orgânico. A tragédia goethiana, neste
aspecto que lhe é particular, faz salientar que o processo de modernização - que Berman
explorará materialmente a partir da construção de São Petersburgo - é o reflexo no real
concreto das mudanças causadas no imaginário pelo humanismo do mundo desencantado. O
autoconhecimento esclarecido ambiciona à extensão própria extra corporis, o que, por fim,
culminará no mundo tecnocrático, de "produção e troca, gerido por grandes
coorporações"92, criado por nada além do que o pensamento de Fausto; e cumpre-se notar
91
92
Berman, op. cit, pp. 50 - 5.
Ibid. p. 52.
45
aqui, posto que o termo é crítico, o uso de pensamento - de fato, do εἶδος - como gênese do
projeto fáustico.
As intenções do herói da modernidade, assim, não poderiam ser mais claras: precisa
este ver, postas no mundo e, precipuamente, pulsantes em si, as forças e potencialidades por
tanto sufocadas pela teocracia do Velho Continente93.
O primeiro momento de Fausto, no entanto, não é o daquele exercer do poder de
sua nova condição de humanamente emancipado, de senhor de suas novas determinações,
mas o daquele de desejá-la experimentar. A ingenuidade de desejo tal fica explícita nas
oposições sistêmicas que Goethe cria entre a ironia e o desprezo do Gênio da terra,
elemento símbolo, por si, da estabilidade e da representação da natureza, a qual gerou o
mundo, a reprovação d´O Altíssimo e a reflexão mefistofélica sobre as ânsias fáusticas.
Compare-se
“FAUSTO
Ah! que delícia irrompe neste olhar,
Por meus sentidos, repentinamente!
Sinto vigor, flamante, singular,
Varrer-me o sangue em êxtases fremente.
Gravou um deus, acaso, esses sinais,
Que em mim abrandam a íntima fervura,
A pobre alma enchem de ventura,
E em ímpetos transcendentais,
Me expõe da natureza a oculta tessitura?
Sou eu um deus? vejo tal luz!94”
(430 - 439)
(E, depois, dirigindo-se ao espírito da terra)
"Fugir-te, eu, flâmeo vulto? Qual!
Sou eu, sou Fausto, o teu igual!"
(499-500)
93
É interessante notar, sobre este ponto, a mudança que se acompanharam também nas leituras da sintomática
das energias componentes da estrutura psíquica humana. As manifestações, antes místicas e indicativas da
santidade, encontram-se hoje inscritas no CID: da histeria dos arroubos extáticos de Santa Teresa à psicose
das conversas de Joana d´Arc com Deus, estes "poderes ocultos", como a eles se refere Marx, despidos de sua
aura de sacralidade e libertados generalizadamente pela súbita deposição da figura da lei, tornaram possíveis
fossem as teorias da alienação de Marx, fossem os estudos de Foucault sobre a loucura, como trouxeram,
também, a necessidade do já mencionado conteúdo normativo moderno.
94
Nesta seção, todos os grifos são nossos, a não ser que indicado em contrário.
46
com
“GÊNIO
Eis-me! Que mísero pavor
Te invade, ó super-homem? que é do apelo oriundo
Do peito audaz que em si gerou um mundo
Zelando-o com amor? que em lances de ventura
Ousou erguer-se à nossa suma altura?"
(489 - 493)
[...]
"És um, com o gênio que em ti sondas;
Mas não comigo!"
(512 - 513)
E, se em suma altura, à maneira d´O próprio Altíssimo, cabe ainda considerar as
linhas 315 - 317:
“O ALTÍSSIMO
Enquanto embaixo ele respira,
Nada te vedo nesse assunto;
Erra o homem enquanto a algo aspira."
Mas quando da pergunta d´Este sobre Fausto, Mefistófeles já alerta sobre o que vai
no ser do humanista: enquanto o coro angélico canta
"Anima os anjos a visão
De inescrutável harmonia!
E de tua obra a imensidão
Pasma, qual no primeiro dia."
(267 - 270)
Mefistófeles responde:
"Já que, Senhor, de novo te aproximas,
Para indagar se estamos bem ou mal,
E habitualmente ouvir-me e ver-me estimas,
Também me vês, agora, entre o pessoal.
Perdão, não sei fazer fraseado estético,
Embora de mim zombe a roda toda aqui;
Far-te-ia rir, decerto, o meu patético,
Se o rir fosse hábito ainda para ti.
De mundos, sóis, não tenho o que dizer,
Só vejo como se atormenta o humano ser.
Da terra é sempre igual o mísero deusito,
Qual no primeiro dia, insípido e esquisito.
Viveria ele algo melhor, se da celeste
Luz não tivesse o raio que lhe deste;
47
Da Razão dá-lhe o nome, e a usa, afinal,
Para ser feroz mais que todo animal."
(271 - 286)
e, logo após,
"Do céu exige o âmbito irrestrito
Como da terra o gozo mais perfeito,
E o que lhe é perto, bem como o infinito,
Não lhe contenta o tumultuoso peito."
(304 - 307)
Goethe deixa transparecer suas frustrações com os esforços intelectuais da
Modernidade, criando um herói desorientado95 e saltadamente contraditório, que sonha,
hereticamente, à libertação em meio à mesma natureza que o criou e que procurará, então,
dominar: "sarar, em teu banho, teu orvalho" (397).
Aqui há que se fazer considerações sobre o epíteto dado a Fausto: Hoslett 96 aponta
que a ideia de super-homem aparece já na mitologia grega e, passando por Milton, Marlowe
e Goethe, ainda está longe de atingir seu desenvolvimento total ainda que nas intervenções
rúpteis de Nietzsche.
Em Assim falou Zaratustra, a indagação goethiana "sou eu um deus?" parece ter
atingido seu maior desenvolvimento até o presente: o homem, assim como a Modernidade,
tem-se mostrado um projeto e o surgimento do super-homem, ou do além-homem, liga-se
intimamente ao desenvolvimento daquela mencionada autoconsciência em um tipo particular
egóico, marcado pelo alargamento intelectual e pela intensidade absoluta no nutrir da
vontade. A divisa de Nietzsche é centrada na assunção de que somente o não-favorável é
capaz de forjar este Homem: o super-homem é aquele que, frente à insegurança e ao perigo,
nunca para; é a própria ideia de progresso em nível individualíssimo, onde fabrica-se, até
mesmo, o afeto. Bielschowsky97 o define como aquele que “adquiriu todo o conhecimento,
que é mais inteligente do que todos os outros, e não se atormenta seja por escrúpulos, seja
95
Tollheit no original: louco, doido, vão.
HOSLETT, Schuyler Dean. The superman in Nietzsche´s Philosophy and in Goethe´s Faust. University of
Wisconsin Press. Disponível em <http://www.jstor.org/stable/30169582>. Acessado em 31 Dez. 2012.
97
Apud Hoslett, op. cit.
96
48
por dúvidas"98, mas que é acerbado pela ausência da verdade, como o fica explícito neste
diálogo entre Margarida99 e Fausto:
“ MARGARIDA
À confissão, à missa, não te vejo.
Não crês em Deus?
FAUSTO
Benzinho meu, que lábios
Podem dizer: "Eu creio em Deus"?
Pergunta-o a sacerdotes, sábios,
E em réplica ouvirá dos seus
Escárnios, só, do indagador.
MARGARIDA
Não crês, então?
FAUSTO
Compreende bem, meu doce coração!
Quem o pode nomear?
Quem professar:
"Eu creio nele"?
Quem conceber
E ousar dizer:
"Não creio nele"?
Ele, de todo o abrangedor,
O universal sustentador,
Não abrange e não sustém ele
A ti, a mim, como a si próprio?
Lá no alto não se arqueia o céu?
Não jaz a terra aqui embaixo, firma?
E em brilho suave não se elevam
Perenes astros para o alto?
Não fita o meu olhar o teu,
E não penetra tudo
Ao coração e ao juízo teu,
E obra invisível, em mistério eterno,
Visivelmente ao lado teu?
Disso enche o coração, até o extremo.
E quando transbordar de um êxtase supremo,
Então nomeia-o como queiras,
Ventura! amor! coração! Deus!
Não tenho nome para tal!
O sentimento é tudo;100
Nome é vapor e som,
Nublado ardor celeste.”
(3425 - 3458)
98
Ibid., p. 297.
Margarida, do original Margaret, dim. Gretchen.
100
O sentimento é Sturm und Drang, “tempestade e Ímpeto”, segundo nota de Mazzari em Fausto, op cit.
99
49
Faust Trying to Seduce Margarete - Eugène Delacroix, 1828.
50
Berman faz notar que esse breve epíteto, super-homem, na obra de Goethe escancara
o mal-colocado da luta do sujeito na modernidade: preocupa-se em tornar-se um superhomem antes mesmo de tornar-se um homem autêntico. Tem-se refletida e materializada,
portanto, toda a angústia provocada pelas rupturas e evasões até aqui tratadas e é o
irromper desta natureza psíquica, deste natural do ser ainda não socialmente realizado,
representado em Fausto pela sua infância, que será explorada à exaustão por Proust e Freud
muito depois:
“FAUSTO
Não penso em alegrias, já to disse.
Entrego-me ao delírio, aos mais cruciante gozo,
Ao fértil dissabor como ao ódio amoroso.
Meu peito, da ânsia do saber curado,
A dor nenhuma fugirá do mundo,
E o que a toda a humanidade é doado,
Quero gozar eu próprio Eu, a fundo,
Com a alma lhe colher o vil e o mais perfeito,
Juntar-lhe a dor e o bem-estar no peito,
E, destarte, ao seu Ser ampliar meu próprio Ser,
E, com ela, afinal, também eu perecer."
(1765 - 1775)
Fausto reafirma, portanto, o que já havia dito em 684 - 685: "o que não se usa, um
fardo é, nada mais, / Pode o momento usar tão só criações suas". O momento, o kairós
moderno, apesar de ser herdeiro do passado, só pode usar aquilo que ele próprio cria: o
conhecimento que, colocado em prática, torna-se útil, torna-se arte. E esta interação entre a
experimentação personalíssima e o desenvolvimento da sociedade moderno-industrial
perpassará toda a obra de Goethe. Vejam-se, ainda, as linhas 712 - 713: "É tempo de provar
que, à altura de imortais, / Em nada o cede do homem o alto brio"101.
O tema é retomado com a tragédia romântica de Fausto I, onde Gretchen representa
a constante ruptura histórica moderna iniciada pelo próprio movimento do progresso.
Adiante-se, destarte, breve e infimamente às conclusões, para assim se fazer notar a
questionabilidade do que alguns teóricos acharam por bem considerar a destruição do ego
na Modernidade. Ao contrário, parece mais evidente que os atuais movimentos de
insurgência, bem como aqueles do século XX que se seguiram ao Macarthismo, à Guerra do
101
"durch Taten", por atos: segundo Mazzari, Goethe afirma, nesta passagem, que a dignidade humana não deve
recuar frente à grandiosidade dos deuses. Note-se a semelhança com a passagem de A Eneida, usada por
Freud na abertura de Interpretação dos Sonhos: “Flectere si nequeo superos, Acheronta Movebo!”.
51
Faust und Marguerite - Ary Scheffer, circa 1831. Musée de
la Vie romantique, Paris.102
FAUSTO: E Gretchen?
MEFISTÓFELES: Irriquieta anda ela,
Não sabe o que quer, deve, e anela.
(2849 - 2851)
102
Note-se o contraste marcado pelo uso da cor e do desenho das vestimentas entre as figuras centrais, nas
quais a luz incide, e aquelas representadas como tradicionalmente medievais, na penumbra do segundo
plano, O casal moderno é iluminado, mas desaprovado pelo olhar da tradição que esmaece. Scheffer retrata
magistralmente a colisão entre estes dois mundos apontada por Goethe e anotada por Berman.
52
Vietnã e a outras configurações de "liberalismo totalitário", confirmam as assertivas de que
são as estruturas alienantes do ciclo de produção e consumo as responsáveis pela
construção de uma coletividade psiquicamente perversa103 - e veja-se o que Fausto causa à
Gretchen, o antropomorfo da tragédia do tradicional que é arrancado de seu meio -, capaz
de por às claras suas insatisfações quando vê seus desejos ameaçados por uma estrutura
sócio-econômica que, justamente pelo narcísico perverso de seu constructo, já apontado por
Marx e sem caráter algum de ineditismo, ergue-se de outros suspeitos - pois que eles
esvaziam a mim - e se traduz em um cenário de bellum omnia contra omnes.
1.1.2 Uma herança shakespeariana: os dramas internos do herói moderno
“Ao começar a biografia de meu herói, Alieksiéi Fiódorovitch, sinto-me um tanto
perplexo. Com efeito, se bem que o chame meu herói, sei que ele não é um grande
homem; prevejo também perguntas deste gênero: ‘em que é notável Alieksiéi
Fiódorovitch, para que tenha sido escolhido como seu herói? Que fez Ele? Quem o
conhece e por quê? Tenho eu, leitor, alguma razão para consagrar meu tempo a
estudar-lhe a vida?”
- Fiódor Mikhailovich Dostoievski
Dostoievski teve seu primeiro contato com a obra de Goethe na adolescência104, 105 e
106
e, conforme carta destinada a seu irmão, Mikhail, Fausto, Gretchen e Mefistófeles
serviram de arquétipos para a criação de várias de suas personagens107. Comentaristas de sua
obra apontam que muitas das preocupações de Goethe também ocupam as páginas dos
romances russos: a tentação, a culpa e a natureza do Mal.
Existe, no entanto, em suas próprias versões de Mefistófeles, uma característica
diversa daquele goethiano e que traz um foco maior ainda para as tensões que se dão no
indivíduo bafejado pelos processos de modernização: a encarnação do Mal em Dostoievski,
103
Como visto em Miller, op. cit, a coletividade não é desprovida de ego.
LANTZ, Kenneth. The Dostoevsky encyclopædia. WESTPORT: Greenwood Press, 2004.
105
CICOVACKI, Pedrag. The role of Goethe´s Faust in Dostoivsky´s opus. IN: Dostoevsky studies, new series,
v. XIV. Worcester: College of the Holy Cross, 2010. Pp. 153-163.
106
Segundo Cicovacki, sua primeira leitura de Fausto, ainda no original em alemão, se deu aos dezessete anos.
107
Kenneth Lantz, op. cit.
104
53
ou do espírito que nega, conforme se auto-define em Goethe, não transparece, a princípio,
como natureza que possa ser evitada, já que “o tentador e o tentado precisam um do outro,
posto que ambos são tragados pela união sacrílega do deleite infernal em suas próprias
perdições”108.
A influência que a obra germânica causou no romancista russo transparece de forma
axiomática em A writer´s diary, em sua camponesa infanticida que se identifica com Gretchen.
Dostoievsky, no entanto, não dá destinos tão claros à suas criações como o fez Goethe, de
forma que Viacheslav Ivanov109, ao discutir as alegorias presente em Os demônios, busca
encontrar traços que liguem Lebiadkina e Helena como o Eterno feminino que se une a
Fausto e Stavrógin, ligação com implicações para a alegoria da Modernidade já expostas
previamente.
A tragédia de Os demônios, no entanto, é mais personalíssima que a de Fausto, posto
que o herói dostoievskiano perde, em absoluto, sua capacidade afetiva, o que leva ao cessar
de qualquer movimento no sentido da redenção que este possa fazer. Fausto é capaz de se
envolver com Gretchen, ainda que posteriormente encha-se de dúvidas por desejá-la e, ao
mesmo tempo, não a querer por perto: a Stavrógin, Dostoievski reserva o suicídio, o fim do
qual Goethe livra Fausto já no início de sua tragédia. É interessante, no entanto, a
comparação entre os ditos das duas personagens: em seu monólogo final, Fausto diz
“Pelo mundo hei tão só corrido;
A todo anelo me apeguei, fremente,
Largava o que era insuficiente,
Deixava ir o que me escapava.
Só desejado e consumado tenho,
E ansiado mais, e assim, com força e empenho
Transposto a vida; antes grande e potente,
[...]”
(11433 - 11439)
e na carta de suicídio do herói de Dostoievsky pode-se ler “em tudo que me foi possível,
minha força eu testei”110. Outro paralelo é ainda possível: Lebiadkins e sua irmã morrem em
incêndio provocado por se oporem ao casamento de Stavrógin e Liza, como Filemon e
108
Ibid., p. 159. (tradução nossa)
IVANOV, Viacheslav. Freedom and the tragic life. New York: Noonday Press: 1957.
110
Kenneth Lantz, op. cit., p. 160. (tradução nossa)
109
54
Baucis morrem no incêndio provocado por se oporem à torre fáustica, a culminação do
projeto colonizador goethiano. É morta à força, portanto, a tradição que se opõe aos novos
valores da Modernidade.
O pessimismo, no entanto, é deveras mais acentuado no russo, que em suas
anotações pessoais nos deixa o seguinte:
“Qual a diferença entre um ser humano e um demônio? O Mefistófeles de Goethe
responde à pergunta de Fausto “pois bem, quem és então?” dizendo “Sou parte da
Energia que sempre o Mal pretende e que o Bem sempre cria”. Ai! Um humano,
falando por si, poderia bem responder o oposto, que ele é parte da energia que
deseja, que anseia, que tem sede eterna pelo bem, mas de quem os resultados das
ações são sempre qualquer coisa, são tudo, menos o bem.”111
Estes compendiados paralelos são necessários para que se entendam tanto as
declarações de Dostoievski sobre a “necessidade de se ler Goethe”, quanto a comparação
que faria entre o autor germânico e Shakespeare quando da criação das personagens que
retratariam a sua própria modernidade112, modernidade do “homem do submundo” que
Berman analisará na terceira parte de seu livro. Se Fausto é o símbolo do esforço moderno
da civilização do Ocidente, a obra de Dostoievski é uma resposta àquele otimismo goethiano
de que do Mal poderia advir algum Bem113. As tensões em Dostoievski são também criadas
pelos paradoxos da condição humana, mas, diferentes das tensões fáusticas, não são aquelas
do indivíduo que se vê arrastado por um processo paradoxal em si, mas do sujeito que se vê
arrancado de seu meio por um processo que põe em questionamento sua própria identidade
humana, bem como seu objetivo em redefini-la.
Já foi anotado que Fausto vê a si em elevada condição, diferente da das massas,
quando se pergunta “sou eu um deus?”. Dostoievski vai partir em busca - e questionar - a
origem dessa identidade iluminista que anima Fausto. Em Os Irmãos Karamazov, a “sede
indecente de vida”114 de Ivan une-se à sua busca pelo senso de justiça - senso que
Dostoievski não vê na ideologia moderna. Está marcada, portanto, a dualidade da natureza
humana emancipada e, aqui, permita-se discordar da interpretação de Berman quanto à linha
111
Ibid., p. 161. (tradução nossa. Citações de Fausto trad. de Jenny Klabin Segall em Fausto: uma tragédia, op. cit)
Pedrag Cicovacki, op. cit.
113
Vide nota 31.
114
Vide Fausto 1765 - 1775, op. cit. à p. 50.
112
55
1112 de Fausto: “Vivem-me duas almas, ah!, no seio”. Para o autor de Tudo que é sólido se
desmancha no ar, Fausto
“sabe que precisa estabelecer uma conexão entre a solidez e o calor da vida entre
pessoas [...] e a revolução cultural que eclodiu. [...] Ele não pode continuar vivendo
como uma mente desencarnada, audaz e brilhante, solta no vácuo; mas, também
115
não pode abdicar da mente e voltar a viver nesse mundo que havia abandonado”
quando se semelha mais razoável acompanhar Dostoievski e ver, ali, a angústia da relação
entre Fausto e Mefistófeles, posto que afetiva é, já que ocorre em seu “seio”, relida na cena
de Ivan com o demônio que o visita no quarto, pois carece recordar que a revolução
cultural, em Fausto, viria a acontecer incontáveis versos depois.
Há, ainda, outras implicações para a filosofia da Modernidade nas obras de
Dostoievski. Hollset116 frisa a influência de Fausto sobre o super-homem nietzscheniano,
chegando a dizer que a ligação entre mestre e discípulo está claramente traçada entre tais; o
super-homem de Sils-Maria, no entanto, encontra-se melhor representado por Stavrógin,
dotado física e mentalmente, destemido e ousado. A crítica de Os demônios, porém, reside
no fato de que este próprio nutrir da vontade, exaltado por Nietzsche, na visão de
Dostoievski é o que levará Stavrógin e os que estão à sua volta à ruína117.
O que há de notável em Dostoievski é a forma como trabalha com a necessidade da
culpa para o surgimento de um senso moral capaz de apreciar a vida, senso moral este que a
alienação - seja a do sujeito, seja a da sociedade moderna - tem feito perder-se
115
Marshall Berman, op.cit., pp. 60-61.
Op. cit.
117
Dada à pública ortodoxia de Dostoievski, Cicovacki (op. cit.) vê, nesta passagem, uma possível alusão à
Lucas 8: 32-37.
“Ora, andava ali pastando no monte uma grande manada de porcos; rogaram-lhe, pois que lhes permitisse entrar
neles, e lho permitiu.E tendo os demônios saído do homem, entraram nos porcos; e a manada precipitou-se pelo
despenhadeiro no lago, e afogou-se.
Quando os pastores viram o que acontecera, fugiram, e foram anunciá-lo na cidade e nos campos.
Saíram, pois, a ver o que tinha acontecido, e foram ter com Jesus, a cujos pés acharam sentado, vestido e em perfeito
juízo, o homem de quem havia saído os demônios; e se atemorizaram.
Os que tinham visto aquilo contaram-lhes como fora curado o endemoninhado.
Então todo o povo da região dos gerasenos rogou-lhe que se retirasse deles; porque estavam possuídos de grande
medo. Pelo que ele entrou no barco, e voltou.”
116
56
paulatinamente. Esta é uma das realizações subjetivas que Norman Leer118 aponta como
responsável pelo caráter de afirmação negativa da modernidade, consideração com a qual
Tourane abre sua Crítica; e Dostoievski vai buscar em Shakespeare, mais especificamente em
Henrique IV, as primeiras manifestações na literatura dos conflitos entre o sujeito e algo que
está além de si, entre a faculdade de pensar e imaginar e a realidade externa. Os três
autores, portanto, retrataram, ao longo de trezentos anos, a evolução da supremacia da
razão sobre o fato e seus escritos refletem a forma aguda com que se aperceberam destas
mudanças.
Contudo, o herói de Dostoievski não vive para “além do bem e do mal”, no sentido
de que não é capaz de harmonizar os opostos: daí o suicídio de Stavrógin - Dostoievski não
vê a mesma chance de redenção através do afeto como a vê Goethe; vê tão somente o
perverso da alienação e o critica duramente. Em uma sociedade onde até mesmo o amor é
fabricado, ele nota seu narcisismo e escreve em seu diário
“Verdadeiramente, continuo a acreditar que atingimos uma época de certa
segregação universal. Todos segregam a si mesmos, mantêm-se indiferentes aos
outros; todos buscam inventar algo que lhes seja próprio, algo novo - de nunca
antes ouvido. Todos põe de lado o que antes costumava ser compartilhado -em
ideias e em sentimentos - e começam com seus próprios pensamentos e sensações.
Todos lutam para recomeçar do zero... Verdade [seja dita], a maioria não começa
nada e nem nunca começará; ainda assim, eles estão destacados; eles permanecem
separados, olhando o vago e ociosamente esperam por algo. Nós todos esperamos
algo. Enquanto isso, em quase nada há concordância moral; tudo tem sido, ou está
119
sendo, rompido.”
Em Henrique IV, Dostoievski percebe um mundo onde ainda era possível agir
conforme determinados papéis sociais, mas no qual os sopros da emancipação começariam a
fazer com que tais papéis fossem questionados; em Os demônios estes questionamentos
deram já lugar a uma realidade caótica. E o início de todo este processo encontra-se
resumido em um único verso de Fausto: “Era, no início, a ação!” (1237). O homem moderno
precisa agir e intervir no mundo, pois que a obra de Deus não está completa e, com
Stavrógin, Dostoievski aponta para uma conclusão bem diferente daquela de Goethe: Fausto,
o representante da humanidade, não é um esforço, mas um enigma; as questões morais de
118
LEER, Norman. Stavrogin and Prince Hal: the hero in two worlds. American Association of Teachers
of Slavic and East European Languages. Disponível em <http://www.jstor.org/stable/3086094>. Acessado em
04/01/2013.
119
Apud. Leer. pp. 105 - 106 (tradução nossa).
57
“Você perdeu a capacidade de distinguir o mal do bem porque deixou de
reconhecer o seu povo.”
Os demônios, parte II, capítulo I. A noite.
58
Bem e Mal adquirem gravidade extrema quando este sujeito se põe a querer iluminar não só
a si, mas a todos. Daí a redenção ser impossível: Dostoievski provavelmente não salvaria
Fausto, como não salvou Ivan. Em outra de suas anotações, escreve que um dia pretendeu
salvar Alyosha Karamazov, mas que a razão por não o ter feito era que, de fato, Alyosha,
aquele que se manteve enraizado à tradição, nunca se perdeu: in verbis, o que diz o autor
russo é que não há retorno possível no caminho Moderno. Resta-nos, portanto, o suicídio
de não resolvê-lo ou a indignação contra nossa própria perversão.
1.1.3 Goethe: o poeta da práxis marxiana
“Vivemos em uma era fáustica, destinada a enfrentar Deus ou o diabo antes que
tudo isso se cumpra, e o inevitável minério da autenticidade é a nossa única chave
para abrir a porta.”
- Norman Mailer
Já se falou, aqui, sobre a falência do mito do Eterno Retorno levada a cabo pela Razão: é
disto, afinal, que trata Sísifo. Dostoievski não se satisfaz com a solução encontrada por
Goethe nas linhas 1936 - 1937 de Fausto - “Quem aspirar, lutando, ao alvo, à redenção
traremos” -, pois que ao criticar a insuficiência de ações muitas vezes descoladas de
princípios emanados da ética, critica exatamente a aspiração, a capacidade de imaginação,
intrínseca à natureza humana, o que força o revisitar da linha 317 da obra de Goethe: “Erra
o homem enquanto a algo aspira”.
Existe, portanto, nos sessenta anos que separam a composição de Urfaust e o término da
segunda parte da tragédia, uma erosão na dinâmica do confronto de valores no poeta,
confronto que Haroldo de Campos nota, em seu Deus e o diabo no Fausto de Goethe120, era
tema central da dialética alemã. Possivelmente seja este hibridismo presente em Goethe que
tenha feito Hegel afirmar ser Fausto a “tragédia filosófica absoluta”. Como em Dostoievski, o
desenvolvimento histórico da figura do herói moderno e de sua angústia está presente, ainda
que mais diluído às vistas do leitor, na figura fáustica: em carta a Eckermann, datada de
janeiro de 1824, Goethe afirma
120
CAMPOS, Haroldo de. Deus e o diabo no Fausto de Goethe. São Paulo: Perspectiva, 2008.
59
“Então meu Mefistófeles entoa uma canção de Shakespeare? E por que não poderia
fazê-lo? Por que eu me deveria dar ao trabalho de encontrar algo próprio, quando
a canção de Shakespeare cabia à maravilha e dizia exatamente aquilo que era
preciso?”121
e mais
“Não pertence tudo o que se fez, desde a Antiguidade até o mundo
contemporâneo, de jure, ao poeta? Por que ele haveria de hesitar em colher flores
onde as encontrasse? Somente se pode produzir algo grande mediante a
apropriação de tesouros alheios. Eu não me apropriei de Jó para Mefistófeles e da
canção de Shakespeare?”122
Entender, assim, a fenomenologia presente em Goethe, é entender a origem do que
viria a ser a “literatura mundial”, conceito que foi utilizado posteriormente por Marx e
Engels no Manifesto do Partido Comunista. Müller123 aponta que em Fausto estão presentes
tanto a epistemologia do natural, que enfatiza a unidade do conhecimento, quanto a
metamorfose do fenômeno, conceito que será aplicado por Touraine nas revisões de seus
próprios marcos teóricos, além dos paralelos existentes entre o homem, a sociedade e a
cultura. Vem à pertença, assim, as colocações de Morin sobre o que considera a mutilação
da sociologia produzida no século XX:
“As teorias sociológicas não conseguem conceber a unidade dos antagonismos,
nem o antagonismo na unidade. [...] Ora, o que falta é um pensamento capaz de
conceber a sociedade não só como unidade/multiplicidade, mas também como
união da unidade e da desunidade. [...] Aliás, a relação indivíduo/sociedade é
sempre dissociada pelo efeito do pensamento disjuntivo que remete o indivíduo à
psicologia.”124
Quanto à refuta da sociedade como corpus inumano feita por Miller e já anotada,
tem-se ainda:
“Nossa sociedade é o produto permanente das interações entre os milhões de
indivíduos que a constituem e não tem nenhuma existência fora dessas interações.
Mas, reemergindo constantemente dessas interações com seus aparelhos e
instituições próprios, ela retroage sobre elas, controla-as, comanda-as e determina
os indivíduos que a determinam. Assim, os indivíduos fazem a sociedade que
faz os indivíduos.”125
121
Apud. Haroldo de Campos, op. cit, p. 75.
Ibid,, p. 76.
123
Op. cit.
124
MORIN, Edgar. Para sair do século XX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 115-117.
125
Ibid., p. 117-118. (grifo do autor)
122
60
Frente a tal ciclo responsivo, a descrença de Touraine em relação às esperanças de
suas primeiras obras ecoa a mesma descrença de Goethe em relação à possibilidade de
mudanças que não venham através da contemplação reflexiva do fenômeno. A proposta de
Fausto é aquela de observar o fenômeno, desprezando-se as teorias absolutas - desprezo
compartilhado por Morin e Touraine - e conceituando o homem ao mesmo tempo em que
conceitua a sociedade. Este agudo senso de historicidade foi o que lhe permitiu, segundo
Bakhtin126, inserir as transformações do sujeito deste ciclo em sua obra: a erosão não é só a
da dialética, mas do próprio homem: “o primeiro [Fausto I], o nosso, foi um gigante127; o
último [Fausto II] figura-se ao espírito da nossa consciência o homúnculo, um produto abusivo
das forças da arte”128. Bakhtin faz, ainda, notar-se a presença de questões que, mesmo após o
fim da sociedade industrial, sociedade que Goethe via nascer, permanecem sem um lugar de
reequilíbrio na atualidade: a des-hierarquização, a ideia generalizada de liberdade, a
interpenetração e a ambiguidade de conceitos e a contradição do mundo fenomênico.
Mostrou-se, já, a característica carnavalesca de Mefistófeles dada à sua proximidade
com a figura do bufo e é a este que é concedida a liberdade de desvelar as mesquinharias
reais: Mefistófeles vai erodindo, verso a verso, os pensamentos de poder do homem
moderno até o momento em que Goethe mostra a materialização deste espírito de negação
que disputa lugar no “seio” de Fausto. É assim que, entre Noite e Cárcere, retrata os
resultados dos atos do Mal como força intrínseca à natureza humana. Eis no que resulta,
para Goehte, aquela mencionada “natureza intelectual não conformista” e a “acentuada
incapacidade de manter sob controle seus processos mentais dinâmicos e explosivos" 129: o
primeiro anúncio é feito por Valentim, irmão de Gretchen, nas linhas 3750 - 3763, pouco
antes de ser morto por Fausto
“Já vejo o tempo, francamente,
Em que todo burguês decente,
Qual de um cadáver roto e infecto,
Fugir-te-á, marafona, do aspecto!
Vai se gelar teu coração,
Quando encontrares seu olhar!
Na igreja não te deixarão
Chegar aos pés do santo altar!
Com colar de ouro e flor na trança,
126
BAKHTHIN, Mikhail. Poética e estilística. Torino: Einaudi, 1968.
Um übermensch.
128
Haroldo de Campos, op. cit., p. 77.
129
P. 44 acima.
127
61
Já não te alegrarás na dança!
Em negros antros e jazigos
Hás de ocultar-te entre os mendigos;
E se o Céu te outorgar mercê,
Maldita sobre a terra sê!”
dançar que é retomado na cena Noite de Valpúrgis, onde Margarida se encontra transfigurada
na figura da feiticeira nua com quem Fausto, orgiasticamente, dança e, segundo Walter
Benjamin130, vê-se a “fisis onerada de pecado”
“MEFISTÓFELES
Sentar-se-á logo em charco lodacento,
Destarte, alívio enfim procura;
Com sanguessugas a chuchar-lhe o assento,
De espíritos e mais do Espírito acha a cura.
Por que é que largas da formosa jovem
Que à dança aliviava o suave canto?
FAUSTO
Ui! Lhe pulou da boca, entanto,
Um rato vermelhinho e vil.”
(4172-4179)
e o motivo fecha-se, então, em Cárcere, com a “Canção do Cárcere”131, onde Gretchen se
recrimina,
“Minha mãe, a perdida,
Que me matou!
Meu pai malandro,
Que me tragou!
Minha irmãzinha pequenininha
A ossada na campina
Guardou, junto à lagoa;
Passarinho fiquei que no ar se empina;
Voa-te embora, voa voa!”
(4412-4420)
ouve os ecos da reprovação do povo
“Por malvadeza roubaram-me o inocente,
E agora dizem que o matei.
Nunca a alegria torna a mim.
Gente má que lá canta! É comigo a canção!”
(4445-4449)
130
Apud Haroldo de Campos, op. cit., p. 105.
Que, mais fielmente, seria traduzida como “A canção da marafona”, ou “A canção da Meretriz”, já que
Margarida se remete, aqui, arrependida, às palavras do irmão.
131
62
Duel between Faust and Valentine - Eugène Delacroix, 1828.
63
e tenta alertar Fausto de sua culpa, caminho que Dostoievski escolhe para gênese da moral e
que Goethe refuta
“Querida mão! - Ah, mas que úmida está!
Enxuga-a! Cismo que há
Sangue nela, Virgem celeste!
Ah! Que fizeste?
Põe a espada de lado;
Eu to rogo, o demando!”
(4511-4516)
Margarida ocupa, aqui, o papel reservado a Ivan Karamazov e aos diálogos internos
de culpa e acusação. Osten132 vê nestas personagens paralelas a consequência do que chama
de “velociférico”: a ruptura e a aceleração temporal provocadas pela Modernidade resultam
em pressões que fomentam a quantidade da experiência, mas não a sua qualidade, levando o
sujeito a um estado de mediocridade.
A resolução deste conflito virá com a segunda parte de Fausto, pesadamente
influenciada pelo socialismo utópico de Saint-Simon e onde seu protagonista percebe que
apenas operando com e através dos poderes destrutivos de Mefistófeles ele seria capaz de
criar algo no mundo à maneira de Deus. Aqui Goethe abre sua obra do restrito subjetivo
para os grandes ambientes históricos e ilustra a “gênese do mundo moderno burguês” 133.
Novamente em carta a Eckermann, escreve:
“A primeira parte é quase inteiramente subjetiva. Tudo adveio daí de um indivíduo
mais perturbado e apaixonado, num estado de semiobscuridade que pode até fazer
bem aos homens. Mas, na segunda parte, quase nada é subjetivo, aqui aparece um
mundo mais elevado, mais largo e luminoso, menos apaixonado, e quem não tenha
se movimentado um pouco por conta própria e vivenciado alguma coisa, não
saberá o que fazer com ela.”134
Para Haroldo de Campos, não se trata de linearidade, mas de dialética histórica, já
que Goethe identifica, quase prevê, a barbárie que se desenvolveria das ideologias
contrastantes da Modernidade e que culminaria no século XX. Diz que “a perspectiva da
humanidade coincide com a da burguesia capitalista” e que “Goethe é capaz de perceber o
132
Apud. Müller, op. cit.
Haroldo de Campos, op, cit., p. 119.
134
Apud. MAZZARI, Marcus Vinicius. A segunda parte de Fausto: “esses gracejos muito sérios” do velho Goethe. IN:
Fausto: uma tragédia, op. cit.
133
64
contraditório da modernidade e de indigitar o fracasso do projeto fáustico final
(transformado num potentado liberal [...] à custa de violência e coerção)”135.
Disto, duas consequências pertencem ao escopo do presente: (i) a da destruição
criativa - “Que cerimônia, ora! E até quando? Pois não estás colonizando?” (Fausto, 1127311274) - discutidas à exaustão por Giddens e presentes nos desdobramentos dos
movimentos Ocupem em diferentes dimensões da vida social e (ii) a das críticas antiburguesas, apontadas por Walter Benjamin, que serviriam de fundamentação para
posicionamentos toto coelo - desde para os Manuscritos econômicos-filosóficos, de Marx136, onde
cita Fausto quando trata da alienação promovida pelo capital
“Se podes pagar seis cavalos,
As suas forças não governas?
Corres por morros, clivos, valos,
Qual possuidor de vinte e quatro pernas.”
(1825-1828)
ao homem superior nazista e os Cantares autoritários/totalitários de Ezra Pound.
Últimas observações devem ser feitas quanto à “dialética histórica” de Goethe: o
impulso de progresso pertence ao gênero humano, à coletividade; no entanto, este gênero é
realizado no sujeito pelo seu esforço em busca da redenção e, por isto, o sujeito permanece
irremediavelmente trágico. E, finalmente, a salvação só chega a Fausto quando este é capaz
de sair de sua perversão e imaginar, ainda que brevemente, uma utopia igualitária.
Lukács nota em Essays on Thomas Mann que seu Fausto, como o de Goethe, antecipase à história e identifica, já em 1943-47, a desesperança de que tratariam Berman e Touraine
somente na década de 1980, pois que constata os ideais modernos corroídos e
fragmentados. Nas discussões sobre onde termina a Modernidade e onde começa a PósModernidade, talvez seja mais precisa a colocação de Haroldo de Campos de guardar dose
de ceticismo e de desesperança e analisar o presente momento como aquele Pós-utópico.
135
136
Haroldo de Campos, op. cit., p. 120.
Apud Marshall Berman, op. cit.
65
1.2 O PALATINADO DE DRÁCON: colônias cristalinas e sujeitos subterrâneos
“Se o desenvolvimento da civilização é tão semelhante ao do indivíduo, e se usa os
mesmos meios, não teríamos o direito de diagnosticar que muitas civilizações, ou
épocas culturais - talvez até a humanidade inteira - se tornaram neuróticas sob a
influência do seu esforço de civilização?”
“Longe de ser o juiz implacável de que falam os moralistas, a nossa consciência é,
pelas suas origens, angústia social e nada mais.”
- Sigmund Freud
As disjunções entre Gemeinschaft e Gesellschaft apontadas por Morin e já citadas,
encontram em Fausto, para Berman
“o retrato mais devastador [...] da crueldade e da brutalidade de tantas formas de
vida que a modernização varreu da face da Terra. Enquanto nos lembrarmos do
destino de Gretchen, seremos imunes ao nostálgico fascínio dos mundos
perdidos”137
alertando-se aqui, portanto, quanto a frustração intrínseca à inevitável desesperança contida
no mito do Eterno Retorno.
Nas duas últimas cenas de Fausto, o herói de Goethe já experienciou tudo o que o
faria “com a alma lhe colher o vil e o mais perfeito, / Juntar-lhe a dor e o bem-estar no peito,
/ E, destarte, ao seu Ser ampliar meu próprio Ser”. Fausto, então, boceja em tédio e, vendo e
encarando o mar, revolta-se contra a natureza
“Vem sorrateira, todo canto invade,
E espalha, estéril, a esterilidade.
Cresce, incha, rola, se desfaz, e alaga
A árida vastidão inútil plaga.
Impera onda após onda, agigantada!
Para traz volta e não realizou nada.
E me aborrece aquilo! É-me um tormento!
O poder do indômito elemento!
Ousou transpor meu gênio a própria esfera;
Lutar quisera aí, vencer quisera!”
(10212 - 10221)
137
Op. cit., p. 76. (grifo nosso)
66
voltando toda a sua força, num esforço típico da Modernidade, como Berman aponta, para
mudar a vida de toda a sociedade - erro este que, lembre-se, é o que há de imperdoável para
Dostoievski e o vero responsável pelo trágico marcante de sua produção.
Há uma referência explícita aqui à construção de São Petersburgo quando chama a
água de “indômito elemento”, aquele mesmo que desejou "sarar, em teu banho, teu
orvalho", já que Goethe, em seu Ensaio de uma teoria meteorológica, de 1825, escrito logo
após a grande inundação do Mar do Norte, vai dizer que
“portanto, os elementos devem ser vistos como adversários colossais, contra os
quais teremos de lutar eternamente e que só poderemos dominar, em casos
isolados [...]. O mais elevado, contudo, que o pensamento pode alcançar nesses
casos é perceber o que a Natureza traz em si mesma como lei e regra para se
impor ao elemento desenfreado e escapo à lei.”
Fato é, no entanto, que a utopia de Goethe e o ímpeto draconiano de Pedro, O
Grande, que “delibera, e depois, quer e executa!”138, transforma-se, no século XX, em
tragédia - ponto que será retomado.
A consciência de Fausto, subitamente, transforma o lugar em puro espaço e, a partir
daí, esboçam-se planos de uma colônia marítima que una a capacidade imaginativa do homem
emancipado com os propósitos da sociedade que cria e o cria: convergem dois movimentos
fundamentais da Modernidade, o ideal Iluminista da cultura e do desenvolvimento de si pela
autoconsciência e a emergência do desenvolvimento de uma realidade social, material e
econômica que os correspondam. Neste ponto, é inevitável o paralelo com as considerações
de Berman sobre os planos de Pedro, O Grande: se Fausto planeja, em espaço vazio, em
tabula rasa, uma grande colônia, a partir de uma “terra isolada e improdutiva”139, onde se
movam números incontáveis de “homens e mercadorias”, Pedro impõe a urbanização dos
pântanos às margens do rio Neva como a construção de uma “janela para a Europa”.
Não só isso, Goethe coloca à disposição de Fausto e Mefistófeles poder grande o
necessário sobre terras e homens - apontando para o político do empreendimento - ao se
aliarem, estes, com um imperador que se via enfraquecido por uma conjuntura multinacional
138
139
Verso de Augusto dos Anjos no soneto A ideia.
Marshall Berman, op. cit., p. 79.
67
reminiscente do feudalismo medieval. São Petersburgo foi o símbolo do desejo do Czar
Pedro I de abandonar o ranço das tradições moscovitas e seguir o exemplo da Europa
Ocidental que se modernizava a velocidade impressionante, lançando mão, para tal, do
poder que o absolutismo do império o garantia sobre uma força de trabalho que, em Tudo
que é sólido desmancha no ar, vem caracterizada como quase infinita: o espaço vazio, a tábula
rasa goethiana, é a “ardósia não inscrita”140 russa.
Berman diz, em sua análise, que a chave do sucesso - que, adverte a nossa
discordância, é aparente - é a organização social do trabalho promovida por Fausto, dando aí
mostras da gênese desta mesma divisão na teoria de Marx. Nas linhas 11152 - 11559, podese ler
“FAUSTO
Com rogo e mando,
Contrata obreiro às centenas,
Promete regalias plenas,
Paga, estimula, vai forçando!
De dia em dia deixa-me informado
De como se prolonga a obra do cavado.
MEFISTOFELES
Trata-se, disso tive a nova,
Não de um cavado, mas de uma cova.”
e compare-se ao que Berman escreve à página 209 de sua obra: “ele forçou esses cativos a
trabalhar sem parar [...] os sacrifícios humanos foram imensos: em três anos, a cidade
devorou um exército de cerca de 150 mil trabalhadores”. Ambos os esforços - da
personagem trágica e do absolutista - representam a realização da cidade que, como aponta
Rousseau, é cidade posto que se forma de cidadãos (i.e., daqueles que usufruem de direitos
civis e políticos) - caso contrário seriam burgos -, um espaço que será vital nas discussões
democráticas de Touraine, pois, se seu sujeito deve ser pensado no conflito, é na igualdade
pressuposta do espaço público que a racionalidade deste sujeito autônomo é capaz de
argumentar, debater e influenciar a política na rede de relações sociais que caracteriza essa
sociedade produzida a partir da historicidade.
140
Expressão utilizada por Berman, op. cit.
68
Algo que se nota - tanto na passagem de Fausto, quanto na histórica da construção de
São Petersburgo - é o rompimento do dualismo dia/noite, que não marca apenas a superação
de barreiras até então naturais, como serve, também, de símbolo máximo do deslocamento
do eixo temporal que ocorre no espaço moderno urbano, espaço quasi místico
baudelairiano por direito e cuja estética marca definitivamente o século XX: os limites
naturais, o Saturno melancólico de Benjamin, são sumariamente deixados para traz.
A exposição de Berman, que permanece ainda pelo brilhante que é, falha, nalgumas
vezes, entretanto, em deixar mais explícitas as referências internas de sua estrutura. Volte-se
às cenas finais de Fausto para se comparar os versos 11541 - 1150
“FAUSTO
Consigo mesmo irmana a terra,
Em rija zona o mar encerra,
Às ondas põe limite e freio.
MEFISTÓFELES
Por nós estás zelando em cheio
Com tuas docas, teus açudes;
Netuno, o demo da água, não iludes,
E já lhe aprontas o festim.
Á ruína estais mesmo fadados; Conosco os elementos conjurados,
E a destruição é sempre o fim”
com O cavaleiro de bronze, de Puchkin, onde ele celebra o “lírico horror”141 de “elementos
[que] não fizeram as pazes com Petersburgo - na verdade, não foram nem dominados
realmente”142.
Se a comparação entre as figuras de Fausto e de Pedro I é possível, Puchkin leva mais
adiante ainda a erosão, já apontada, que toma lugar em Goethe: Fausto chega a se perguntar
“sou eu um Deus?” nos primeiros versos do poema; Puchkin escreve sobre Pedro I em seu
conto: “braço estendido, imóvel em seu cavalo, elava-se, acima do Neva hostil143, o ídolo”144.
A implicação de ídolo é extremamente crítica e talvez passe despercebida para o leitor que
não esteja acostumado à literatura russa; mas, num Estado dominado pela ortodoxia,
141
Ibid.
Apud. Marshall Berman, op. cit., p. 216.
143
Compare-se o indômito do mar e o hostil do rio nas duas obras.
144
Apud. Marshall Berman, op. cit., p. 219.
142
69
rebaixar a sacralidade divina do czar à qualidade de ídolo, imagem que é admirada de forma
equivocada e herética145, implica que este transforma o povo, seu servo tal Fausto é servo
d´O Altíssimo, em homúnculos - aquele homem que não é autêntico -, em “homens do
subterrâneo”, como o pôs Dostoieski, ou em “estátua de desespero”, tal qual Evgeni
prostrado, em cima do cavalo bronzeado, enquanto a fúria do Neva leva tudo que lhe é caro
ao afeto/imaginação.
Se foi a capacidade de imaginar que trouxe o homem à Modernidade, é a sua própria
burocracia, sua necessária normatização, que fará desta capacidade o ser perdida, ou antes,
sufocada, e que enlouquecerá tantos heróis russos, que daí em diante passarão a “arrastar
suas vidas miseráveis, nem homem nem besta, nem isso nem aquilo, um espírito ainda preso
a um corpo já morto”146. Esta tragédia humana, Berman atribui à incapacidade do movimento
de modernização em enfrentar as potencialidades humanas que despertou, posto que a
autonomia confere o direito de desejar; aponta, então, para o pecado do Rei Acab147,
invocado por Mefistófeles nas linhas 11286-11287, como símile em natureza motivacional do
impulso modernizador que, ao tentar eliminar da sociedade a tragédia, implica na tragédia do
esmagamento do seu sujeito que só recentemente é resgatado pela sociologia.
Os reflexos deste processo podem ser encontrados nos primeiros métodos
sociológicos, a exemplo da teoria de Durkheim, para a qual seria impossível a redução da
sociedade aos seus indivíduos: como um paradoxal “constructo independente”, não só esta
145
Deuteronômio 4:15-19 - Não façam imagem alguma na forma de ídolo, semelhança de homem ou mulher.
Isaías 30:22 - E terás por contaminados a prata e o ouro que recobre as imagens de escultura. Lançá-las-ás
fora como coisa imunda.
Isaías 45:20 - Congregai-vos, e vinde; chegai-vos juntos, os que escapastes das nações; nada sabem os que
conduzem em procissão as suas imagens de escultura, feitas de madeira, e rogam a um deus que não pode
salvar.
Isaías 42:8 - Eu sou o Senhor. Este é o meu nome. A minha glória a outrem não a darei, nem a minha honra
às imagens de escultura.
Jonas 2:8 - Os que se apegam aos ídolos vãos afastam de si a sua própria misericórdia.
Romanos 1:23 - Mudaram a glória de Deus incorruptível em semelhança da imagem de homem corruptível,
bem como de aves, quadrúpedes e répteis.
Romanos 1:25 - Mudaram a verdade de Deus em mentira, e honraram e serviram a criatura em lugar do
Criador, que é bendito eternamente.
I João 5:21 - Filhinhos, guardai-vos dos ídolos. Amém.
146
Puchkin apud. Marshall Berman, op. cit., p. 220.
147
I Reis 21:15 - E sucedeu que, ouvindo Jezabel que já fora apedrejado Nabote, e morrera, disse a Acabe:
Levanta-te, e possui a vinha de Nabote, o jizreelita, a qual te recusou dar por dinheiro; porque Nabote não
vive, mas é morto.
70
The Bronze Horseman and St Isaac's Cathedral - fotocromia, circa 1890. Congress Library,
Washington, DC.
“O cazar, vermelho de cólera, pareceu virar silenciosamente a cabeça. Evgeni, em
frenética correria pela praça vazia, ouve atrás de si os estampidos dos cascos do ginete
batendo contra o pavimento. O cavaleiro de bronze vem em seu encalço, braço em riste,
negro sob a luz pálida da Lua.”
- O cavaleiro de bronze.
71
existia fora da consciência individual como a negava para que a sociedade fosse possível. No
caminho da sociologia como ciência, o quase um século que separa Regras do método
sociológico de O Retorno do ator trouxe de volta a figura do sujeito/ator - Touraine cogita
mesmo a possibilidade de chamar sua obra de “O retorno do sujeito” -, questionando o
reducionismo das análises que colocam a produção da sociedade no nível dos mecanismos
de reprodução e que não levam em conta sua compreensão a partir da dinâmica das ações e
relações sociais que a produzem148.
A organização social do trabalho em Fausto, organização que é título da primeira obra
de Durkheim, acaba por mostrar-se, na atualidade, uma “figuração catastrófica” segundo
Michael Jaeger, autor de Fausts Kolonie: Goethers kritische Phänomenologie der Moderne149.
Partindo da afirmação de Goethe de que a segunda parte da sua obra consiste de
“brincadeiras muito sérias”, Jaeger afirma que permanecem, ainda, na sociedade atual, as
condições
do
pacto
fausto-mefistofélico:
a
negação
da
autoanálise
e
do
autodesenvolvimento, estes impedidos por uma consciência que em nada se detém dada a
velocidade do progresso forçada ao seu limite. Ao mesmo tempo em que se rompe com
Saturno, não é permitido a Fausto contentar-se com Kairós:
“E sem dó nem mora!
Se vier um dia em que ao momento
Disser: Oh, para! És tão formoso”
Então algema-me a contento,
Então pereço virtuoso!”
(1698-1702)
E, logo após, afirma que tal disposição do homem moderno atinge seu apogeu na atualidade,
como continuidade dos signos revolucionários políticos e econômicos da Europa do século
XVIII.
Ao caracterizar a Modernidade por momento que concebe a totalidade da existência
como mercadoria, mas uma mercadoria que não pode satisfazer, sob o risco do derruir
econômico - esta é a interdição mefistofélica -, Jaeger coloca a utopia do contentamento,
daquela vida sem tragédias, em uma dimensão que se localiza, irremediavelmente, no futuro.
148
149
Vide nota 126.
JAEGER, Michael. Fausts Kolonie: Goethers kritische Phänomenologie der Moderne. Würzburg:
Königshausen & Neumann, 2004.
72
Ao contrário das leituras perfectibilistas feitas da obra, aqui o sujeito moderno é
lançado na angústia do vir-a-ser que jamais acontece. Cabem as considerações de
Hobsbawn150 sob a maioria absoluta de americanos que morrem na mesma classe social e/ou
condição econômica em que nasceram: negam-se, portanto, as utopias filantrópicas de
Fausto e as promessas de liberdade e mobilidade do capitalismo. Heinz Schlaffer151 vê na
obra de Goethe toda a teorização necessária para a compreensão da economia política
moderna e uma interação simbiótica com O capital, de Marx. O que resta a mostrar-se, ainda
e em uma sociedade fragmentária de dimensões e interesses complexos, é se os movimentos
herdeiros, em sua forma, de Tahir, representam uma refuta a este pacto do nunca parar, um
movimento consciente em direção à reflexão, ou a reação de uma estrutura perversa contra
políticas que se aproximam das autoritárias.
Ocupar lugares simbólicos do espaço urbano, como são os casos de Tahir e Wall
Street, tem implicações densas dentro do marco democrático de Touraine, pois que apontam
menos para um esgotamento de políticas econômicas remanescentes do final do século XX
do que para uma crise do paradoxo até então aceito dos lugares públicos sem vida pública,
i.e. daqueles lugares (que deveriam representar a igualdade autônoma de ser-se
simplesmente humano) não se constituírem em espaços. E a rua, neste contexto, marca-se
como símbolo per se do local de experimentação do real, no espaço e no tempo, do
imaginário íntimo do sujeito. Esta é uma diferença que talvez deva ser apontada entre os
movimentos que repercutiram por período significativo de tempo e suas emulações, como o
Ocupe São Paulo: se no Cairo e em Nova Iorque foram ocupados espaços representativos da
ordem-daquilo-que-é, de forma a romper-se com a organização social vigente, a ocupação
do Vale do Anhangabaú não fez mais que manter a estrutura e a coerência de movimentos
laterais permanecendo em espaços lateralizados da cidade.
Não é custoso, a este ponto, lembrar-se da importância da Nevsky Prospekt para o
realismo russo. Esta avenida de São Petersburgo, que “é muito mais que uma rua ou uma
avenida. Ela é essencialmente uma grande perspectiva. Mais do que pessoas, nela se
150
151
HOBSBAWN, Eric. O novo século. São Paulo: Companhia das Letras, 2009
SCHLAFFER, Heinz. Faust zweiter Teil: die Allegorie des 19. Jahrhunderts. Stuttgart: Metzler, 1998.
73
Nevsky Grand - Gostiniy Dvor, 1910.
74
deslocarão emoções”152, vai ser palco das angústias personalíssimas e das relações
interpessoais de grande parte da literatura russa dos séculos XIX e XX: em Gente pobre, de
Dostoievski, é este espaço que devolve Devushkin à alienação perversa - tanto àquela
perversão de Marx, que mercantiliza o outro, quanto àquela de Freud, onde deseja-se
transgredir os limites impostos por esse papel foucaultiano do outro como forma de
reconhecimento do eu, posto que, se seu olhar narcísico me esvazia, o desejo de igualdade
fomentado pela Modernidade nele se objetiva, outra vez não permitindo a superação
dialética das duas almas que habitam em Fausto: o ser não se integraliza, não se torna um
“homem autêntico”, mas passa por nova ruptura identitária ao reivindicar uma dignidade que
os contrastes do espaço urbano o negam.
A Modernidade criou espaços transparentes ao mesmo tempo em que criou o sujeito
que “trazia o subterrâneo na alma”. A amplitude da colônia fáustica, sempre iluminada,
reduziu o sujeito à angústia de desafiar sua imponência e a autoridade que ela concede a
poucos. Dostoievski lida com estes conteúdos de forma profunda e até mesmo chocante
quando, em Notas do subterrâneo, põe estas palavras na reflexão de seu herói:
“A carta foi redigida de tal modo que, se o oficial tivesse tido a menor
compreensão do sublime e do belo, certamente teria corrido para mim, se
enlaçado em meu pescoço oferecendo-me a sua amizade. E como seria bom!
Viveríamos tão bem como amigos! Ele me defenderia com a imponência de sua
apresentação; eu torná-lo-ia mais nobre com a minha cultura e, afinal, com minhas
ideias, e muita coisa mais poderia acontecer.”153
Numa clara exposição da cisão psicótica que Lacan definiria em seu amódio, o homem
do subterrâneo, que é sumariamente ignorado como “mosca vil”, anseia pelo afeto daquele
que não o reconhece como igual; e anseia de forma tão narcísica que este “se enlaçaria em
seu pescoço”, “o defenderia”, seria humanizado pela sua “cultura” e, então, “mais coisas
poderiam acontecer”: é o narcísico da perversão angustiante levado ao limite do homoerotismo por Dostoievski quando o outro representa, para mim, esta parte de mim que
conheço, mas não acolho, nem integro.
152
SILVIA PINTO, Luiz Fernando da. Fator samurai e a sustentabilidade do processo de gestão. São
Paulo: Editora Senac, 2008. p. 100.
153
Apud. Marshal Berman, p. 261.
75
O herói de Notas, note-se bem, é capaz de perceber o sublime e o belo, de
humanizar com sua cultura: o que o torna “abjeta mosca vil” é a degradação advinda da
ruptura identitária que a estrutura social urbana lhe impõe, resposta cheia de ira que pôde
ser notada também nos protestos que são os objetos de estudo desta pesquisa; o
enfrentamento pelo Homem do subterrâneo, em plena Nevsky, fez com que o lugar se
tornasse espaço e que ele pudesse ver-se novamente como sujeito de sua própria história.
Por tal característica de servir como meio de operação do Eu é que a conformação de
espaços públicos tem tal peso para Touraine.
As relações que daí advém, entre o sujeito/ator e o espaço que o cerca, são
complexas e, mais das vezes, contraditórias (como tudo o que é Moderno, se ainda é
necessário afirmá-lo); porém, diverso da colônia fáustica, aquele palácio de cristal do qual se
pretendeu extirpar a tragédia, ele é o espaço onde o homem de Dostoievski pode
materializar seus dramas, desejos, negações e superações.
Berman aponta para o fato de que tais choques permaneciam, como em São
Petersburgo, na Nova Iorque dos anos 1980, época da publicação de Tudo que é sólido. Isto
não parece, no entanto, suficiente para que se comparem duas realidades tão distantes em
tempo, em espaço e em processo de modernização como a São Petersburgo dos séculos
XVIII e XIX e a Nova Iorque do século XXI. Cabe que se enfatize, portanto, que o marco
teórico de Touraine não analisa sejam formações sociais particulares, sejam sociedades
concretas e específicas. Quando o autor não busca a construção de tipos puros, mas a
interdependência do societal, abre campo para um nível considerável de abstração que,
conforme já apontado, elimina as rejeições da sociologia clássica na compreensão dos seus
objetos de estudo. Acredita-se, desta forma, que os símbolos que representam as
configurações e estruturações do sistema de ação histórico, bem como condensam os
processos de natureza íntima quando esta se apercebe de sua historicidade, continuam
válidos, ainda que guardem, nas especificidades de seus processos, discrepâncias abissais.
Homem, mais vale enfrentar tudo do que
tudo compreender:
A vida é para subir, não para descer.
- Émile Verhaeren
79
2 CRISE
“Every time I sing this song, I hope it’s the last time.”
- Denis O’Hare
Berman afirma que “o dinamismo inato da economia moderna e da cultura que nasce
dessa economia aniquila tudo aquilo que ela cria [...] a fim de criar mais, de continuar
infindavelmente criando o mundo de outra forma”154: é a mesma constatação feita por
Goethe em sua obra magistral, repetida por Schweitzer em 1932, nas comemorações do
centenário da morte do poeta alemão
“E, de modo geral, que outra coisa é isso que está acontecendo nestes tempos
tenebrosos senão uma repetição gigantesca do drama de Fausto sobre o palco do
mundo? Em mil chamas está ardendo a cabana de Filemon e Baucis! Em violências
multiplicadas mil vezes, em milhares de assassínios uma mentalidade desumanizada
põe em prática os seus negócios criminosos! Em mil caretas Mefistofélicas nos
dirige o seu sorriso cínico!”155
e que não dista, forma alguma, dos dramas absolutamente humanos trazidos à tona pelos
ocupantes dos espaços públicos nos últimos aproximados três anos. Que a obra alemã não
atinja mais com tanto ímpeto a academia como em meados do século XX, não deixa, no
entanto, de diagnosticar com atualidade surpreendente os excessos que capital financeiro
que impõem, no início deste século - questões angustiantes para aqueles que se aventuram a
pensá-las.
Sobre a cidade de Nova Iorque, ainda e em específico, afirma Berman que
“Nova York (sic) tem servido de centro para as comunicações internacionais. A
cidade deixou de ser mero teatro, para se transformar a si mesma numa produção,
num espetáculo multimedia cuja audiência é o mundo inteiro. Isso deu uma
ressonância e profundidade especiais à maior parte do que é dito ou realizado aqui
[...] para demonstrar ao mundo todo o que os homens modernos podem realizar e
como a existência moderna pode ser imaginada e vivida. [...] Mas também a tornam
um lugar perigoso, pois seus símbolos e simbolismos estão em infatigável conflito
156
uns com os outros.”
154
Op. cit., p. 337.
Apud Mazzari. IN Fausto, op. cit., p. 28, v. II.
156
Op. cit., p. 337-338.
155
80
81
conflito que se mostra já em carta de Goethe a Humboldt, expressando a agudez de sua
visão ao dizer que
“doutrina desorientadora aliada a ação desorientadora é o que reina no mundo, e
eu não tenho nada de mais imperioso a fazer do que intensificar aquilo que existe e
restou em mim e depurar as minhas particularidades - coisa que o senhor, meu
digno amigo, também vai realizando em sua fortaleza.”157
Para tempos nos quais o sujeito cada vez mais se vê despido de significado e as
propostas se perdem entre a tentativa insípida de humanizar o capitalismo - posto que o que
se humaniza é o ser - e o ideário de uma esquerda já inexistente, que rejeita a experiência da
derrota, é ainda o mesmo Goethe que traz o alerta: “cheios de trates e miuçalhas / Isto é
teu mundo! chama-se a isto um mundo!”.158
Constata-se, acerca dos movimentos contemporâneos, notório óbice de análise que
se configura na falta de uma disputa solidamente argumentada por modelos que os
justifiquem a todos: exemplo recente pode ser encontrado na coluna Cientistas sociais
procuram modelo para onda de protestos no Brasil159, em que a antropóloga urbana Teresa
Caldeira e o sociólogo Sebastian Roché apontam causas discutivelmente díspares - seja como
(i) a mobilidade e a inclusão urbana, ou (ii) o desejo de participação direto nas decisões
públicas -, invocando os protestos na Paris do ano de 2005 ou na presente Turquia, para as
diversas manifestações suposto desencadeadas pelo Movimento Passe Livre.
Tal falta de consenso do meio acadêmico faz restar o fato, portanto e não passível de
contestações, de que o que se observa do Oriente Médio, com a Primavera Árabe, ao
continente americano, espalhando-se nos mais diversos segmentos da sociedade a partir das
reivindicações antiliberais de Wall Street, é o caráter que dista da unicidade, da organização e
da homogeneização ideológica, mas que se sustenta pelo mal-estar e para além do que
157
Apud Mazzari. IN Fausto, op. cit., p. 25, v. II.
Fausto I, op. cit., linhas 408-409.
159
MACHADO, Cassiano Elek; ROCHA, Graciliano. Cientistas sociais procuram modelo para onda de
protestos no Brasil. Folha de São Paulo. Disponível em
<http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2013/06/1299979-cientistas-sociais-procuram-modelo-para-ondade-protestos-no-brasil.shtml>. Acessado em 23 de junho de 2013.
158
82
desencadeia o seu desassossego160. Touraine afirma, às noventa e nova páginas de seu Crítica
da Modernidade161, que “a força libertadora da modernidade enfraquece à medida em que ela
mesmo triunfa”; portanto, é somente refutando uma racionalidade instrumental, que
submete o pensamento a uma ciência higiênica, que se torna capaz o encontrar de uma
pulsão comum que permita unir, em uma única dimensão temporal, levantes espontâneos
que não podem, nem devem, ser vistos como uma revolução internacional, democrática,
progressista e unificada contra um lógica de organização social dicotômica, imersa numa
imobilizadora nostalgia que pretende, ao fragmentar a história em ciclos que se retroafirmam, se não a parar. É inevitável, a esta altura, lembrar-se de Marx: a história não se
repete senão como tragédia, ou como farsa162.
Os possíveis paralelos com outras crises do capital parecem ter, no presente, duas
funções: (i) a de sustentar, vez por todas, a pouca utilidade de tais comparações, já que se
constata que, ao mesmo tempo, a pluralidade das ruas é acompanhada por um retorno à
ordem do sistema financeiro e (ii) a de fazer notar que poucos se aventuram a constatar a
comprovada invulnerabilidade do capital em longo prazo e a sua eficiência em se reinventar e
gerir redes globais de sobrevivência. Destarte, não se sustenta logicamente que possam ser
feitas críticas à crise do sistema, fato dado a sua natureza crísica, quando a perspectiva da
retórica que a ele se opõe deixa, esta também, de fazer sentido.
Os diversos ataques caricatos aos financistas não só de Wall Street, pois que a ordem
mundial se dá, hodierna, entrelaçada é sintomática quando existe um retorno aos discursos
da criação de “estados socialistas”, estes em “situação parcial de isolamento” que, vez mais,
trazem à memória o poeta germânico: em Fausto II, linha 10.849, o Imperador, que pretende
à políticas da Restauração, erra na métrica de um atrofiado, mas vaidoso verso
alexandrino.163
Urge, portanto, que a questão sistêmica - mais acentuadamente ainda porque é o
sistema em si que se coloca em questionamento - seja, ainda que momentaneamente, posta
de lado. Exige o momento um desprezo campesino pelo futuro que não credite à crise um
160
SANTOS, Boaventura de Sousa. Protestos podem voltar mais fortes e incontroláveis. Disponível em
<http://www.dw.de/protestos-podem-voltar-mais-fortes-e-incontroláveis-diz-sociólogo/a-16938502>.
Acessado em 09 de Jul. de 20130.
161
Alain Touraine, op. cit.
162
MARX, Karl. O 18 Brumário de Luís Bonaparte. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011.
163
“Esteja ele onde for! Venceremos a batalha.”
83
caráter de disputa ideológica na arena política: a década passada põe distante a real
possibilidade de um colapso econômico mundial, bem como a presente se coloca fora de
possível comparação com passadas crises sistêmicas do capital. Antes, o que se pode ousar
dizer per se, é que, como o cenário posterior a Waterloo, a natureza das questões que
necessitam ser respondidas são símiles, de maneira alarmante, às que preocuparam
Castlereagh: a ineficiência do conjunto de postulados do projeto iluminista, o fracasso da
emancipação, o engessamento político, o entusiasmo "estúpido" pela tecnologia e uma
absoluta falência de paradigmas.
Note-se: a página oficial do movimento Occupy traz, em um de seus diretórios, as
agendas de mais de mil e quinhentas manifestações164 engendradas por meio da organização,
ou por ela apoiadas, e, dentre as listadas, pode-se encontrar insurgências pela democracia,
caso mais nítido nos movimentos que compõem a Primavera Árabe que, ainda que
anteriores a Wall Street, passaram a ser por ela apoiados, contra as instituições econômicas
do pós Segunda Guerra, responsáveis pela blindagem do capitalismo financeiro, como é o
caso da troika165 nos países em recessão da União Europeia, contra a falência do Estado de
Bem-Estar social, principalmente nos Estados Unidos, e, ainda, aqueles movimentos que
trazem reivindicações que compreendem desde a proteção ambiental até os direitos das
minorias, espalhados por todo o globo.
Zizek alerta que
“Claude Lévi-Strauss escreveu que a proibição do incesto não é uma questão, um
enigma, mas uma resposta a uma pergunta que não conhecemos. Devemos tratar
as reivindicações dos protestos de Wall Street de maneira semelhante: intelectuais
não devem tomá-las inicialmente como reivindicações e questões para as quais
precisam produzir respostas claras e programas sobre o que fazer. Elas são
respostas, e os intelectuais deveriam propor as questões para elas. A situação é
como a da psicanálise, em que o paciente sabe a resposta (seus sintomas), mas não
166
sabe a que ela responde, e o analista deve formular a questão”.
Recorre-se, assim, vez outra a Touraine, para ser constatado um esgotamento não
do sistema, mas do sentido da técnica e da instrumentalização: uma falta de sentido que, se
164
http://directory.occupy.net/
Fundo Monetário Internacional, Comissão Europeia e Banco Central Europeu.
166
HARVEY, David; Slavoj Žižek, Tariq Ali et al. Occupy: movimentos de protesto que tomaram as
ruas. São Paulo: Boitempo Editorial, 2012. pp. 15 - 27. p. 25.
165
84
“É preciso subir às mesas para enxergar melhor e não virá-las.”
Sociedade dos Poetas Mortos - Peter Weir. Walt Disney: Blue-Ray, 1989.
85
por um lado provoca a angústia da não percepção do horizonte, por outro frustra o desejo
pelo lugar pré-moderno que, como coloca Zizek167, está posto fora da percepção cotidiana
ao servir como depósito do refugo contemporâneo. Diz ainda Touraine:
“Nós vivíamos no silêncio, nós vivemos no barulho; nós estávamos isolados, nós
estamos perdidos na multidão; nós recebíamos poucas mensagens, nós somos
bombardeados por elas. A modernidade nos arrancou dos limites estreitos da
cultura local onde vivíamos; ela nos jogou igualmente na liberdade individual como
na sociedade da cultura de massa. Por muito tempo lutamos contra os antigos
regimes [...], mas no século XX lutamos contra os novos regimes, [...] fazem
revoluções contra as revoluções e os regimes que delas nasceram [...]”.168
Tal decomposição do ideário moderno, que atinge seu máximo não na falência do
sistema, mas na falência da própria capacidade do sujeito de nele crer, deve ser
compreendida na experimentação, moral e estética, dos seus efeitos corrosivos por aquilo
que, factual, é sobre o sujeito e que surge, constatada, a partir de meados do século XIX,
nas três críticas da suspeita que ainda dominam parte majoritária das agendas sociológicas:
sob pena de se pôr em risco a dinâmica dos princípios, optar por somente um viés crítico
entre ideologia, moral, ou recalque, leva, mui frequente, ao divórcio ético e à opressão da
ciência, já que são raízes diretas do sujeito moderno que se revolta estes ideários
dezenovecentistas da sociedade nacional e da luta de classes - estes mesmos que se mostram
no desejo aparentemente deslocado dos povos árabes pela adoção de um modelo de Estado
que é criação europeia, assim como na hostilidade contra os financistas de Wall Street. É isto
que fada a quase totalidade das análises que se focam na prevista crise sistêmica a serem
resíduos de uma racionalidade instrumental que busca o mais imediato a ser replicado e que
se configura, assim, em movimento contrário à crítica, posto que reforça ideologias que
planificam a complexidade do sistema-mundo pós bipolaridade e que conferem ao capital
status central na crise moderna quando fazem gravitar, ao seu redor, todos os princípios de
organização sociocultural.
Zizek exorta:
“há uma longa estrada pela frente – não aquelas relativas ao que não queremos,
mas ao que, de fato, queremos. Que organização social pode substituir o
capitalismo atual? Que tipo de novos líderes precisamos? E de que órgãos,
167
168
ZIZEK, Slavoj. Bem vindo ao deserto do real. São Paulo: Boitempo editorial, 2003.
Alain Touraine, op. cit., pp 99-100.
86
incluindo aqueles de controle e repressão? As alternativas do século XX
obviamente não funcionaram”. 169
Se os manifestantes de Zuccotti Park pedem a volta do Glass-Steagall Act, de 1933,
parece estar claro que não existe radicalidade no movimento, como também que as
mobilizações não estão focadas em alternativas ao sistema atual, mas, antes, na volta a uma
ordem biopolítica170 que foi capaz de acomodar o mal-estar da modernidade: mal-estar que
se traduz na angústia que aloca a satisfação no futuro de prazeres projetados, que se
materializa no vazio do cálculo das relações sociais e, ainda, no sentido - agora escasso - que
a velocidade não deixa mais cristalizar: no mal-estar que, enfim, para emprestar de Schiller,
vêm desse desencantamento do mundo.
A atual falta de perspectiva dos próprios movimentos contemporâneos, patente nas
propostas de volta a um passado de aplicação indiscriminada do biopoder, não sugere “nada
que mereça ser considerado político”, como afirma Clark171. Mas, se os paradigmas que
durante os últimos noventa ou cem anos guiaram as batalhas ideológicas no cenário mundial
se espedaçam nos antigos centros do capital, nem por isso está ele impedido de se
reorganizar, nem estamos impedidos de, retrospectivamente, alterar o foco de nossas
análises para que seja conferida alguma nova fluidez a uma política, passim, engessada.
Retomando-se brevemente Clark, o autor propõe que, à maneira de Nietzsche, ou
seja, que à maneira da suspeita, os cientistas contemporâneos afundem no projeto iluminista,
indagando do fracasso histórico, que Touraine esmiúça, quais os recursos capazes de fazer
ressurgir o sujeito moderno de seus atuais escombros: defende, portanto, uma aproximação
não linear da história e pede o sacrifício da estética revolucionária tradicional, já que é inútil
querer enxergar alguma coisa no eterno nevoeiro do amanhã172, crítica há tanto feita por Mia
Couto e agudamente repetida na Oração de Sapiência na abertura do ano lectivo no ISCTEM,
“existem, no entanto, várias formas de pobreza. E há, entre todas, uma que escapa
às estatísticas e aos indicadores: é a penúria da nossa reflexão sobre nós mesmos.
Falo da dificuldade de nós pensarmos como sujeitos históricos, como lugar de
partida e como destino de um sonho”.173
169
HARVEY, David; Slavoj Žižek, Tariq Ali et al, op cit, p. 16.
LAGASNERIE, Geoffroy de. Última lição de Michel Foucault, A. São Paulo: Três Estrelas, 2013.
171
CLARK, T. J. Por uma esquerda sem futuro. São Paulo: Editora 34, 2013.
172
Alusão de Clark ao Cristo parou em Eboli, de Carlo Levi.
173
COUTO, Mia. Oração de Sapiência na abertura do ano lectivo no ISCTEM: os sete sapatos sujos. IN Vertical pp.
781-783, Março/2005.
170
87
88
89
90
2.1 Escombros
“Dais uma peça? é dá-la logo em peças!
Não falhareis numa iguaria dessas;
Tão fácil é inventar quão exibir o engodo.
De que vos serve apresentar um todo?”174
É assim que Goethe desafia a concepção de obras com pretensões orgânicas, ao
mesmo tempo em que compara a arte ao ragout; e, neste engodo do fechado em si, posto
que é globo, como não olhar, com profundo cinismo, para o retilíneo do tempo judaicocristão, também em crise se o mal-estar é um presente fugidio e é, ainda, futuro que não
chega?
Frente a Fausto, que recrudesce no homem a ânsia pelo maior-que-a-vida com
Johann Spiess, em 1587, ou com Thomas Mann, em 1947, ou a Ulisses, que enfrenta
intérminos νόστοι nas mãos de Homero, oito séculos antes de Era Comum, ou nas de Joyce,
em 1922, a circunscrição dos fatos e dados históricos a uma sucessão retilínea, inalterável e
irreversível, e, por isso mesmo, de moto perpetuo, porém finita, não deve restar como única
possibilidade: é aqui onde a dialética mais se mostra própria na análise dos fatos sociais
quando é totalizante, mas não é globalizante, quando é mais consistente nas relações que
estabelece entre o sujeito e o seu meio do que as categorias gerais que pretendem a um
corpo lógico sem contradições, mas que são incapazes de operá-lo ao hierarquizar seus
próprios conceitos, e onde a arte se mostra útil para
a reorganização das ruínas da
modernidade quando reflete o resultado social das atividades correlatas dos diversos
sujeitos.175
Se é correta a assunção de Touraine de que a crise hodierna da Modernidade é o
momentum de um arco que se enverga a partir do Esclarecimento, continua-se, visível, uma
tradição crítica iniciada por Hegel, que via nas construções do iluminismo a elevação da
razão a ídolo. Ao analisar o conceito hegeliano de Modernidade, Habermas afirma que
“a época do iluminismo [...] colocou erradamente o entendimento ou a reflexão no
lugar da razão e elevou assim algo finito a absoluto. O infinito da filosofia da
reflexão é na verdade algo racional que é apenas posto pelo entendimento, que se
esgota na negação do finito: ‘fixando-o (o infinito), o entendimento opõe-se ao
174
175
Goethe, op, cit., linhas 99-102, p. 37, v. I.
VYGOSTKY, Lev. Psicologia da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
91
finito de modo absoluto e a reflexão que se tinha elevado à razão suprimindo o
finito, ao fixar o actuar da razão na oposição, rebaixou-se de novo a entendimento;
além disso, tem agora a pretensão de permanecer racional mesmo neste
declínio’”.176
Mostra-se, assim, que as análises que pretendam à apreensão do discurso, que amiúde
se fragmenta, presente nos movimentos contemporâneos pode, de facto, unir tais fragmentos
reflexivos da realidade observável - como já se apontou com Morin no capítulo anterior
desta pesquisa - mas, não devem, nas alegações de racionalidade científica, prender-se ao
declínio de validar os próprios métodos nos quais se engessam.
A necessidade de se encontrar um modelo universalizante do mal-estar nutre o
positivismo científico que visa a forma ao conteúdo na urgência de respostas à falência
epistemológica que se observa. Se a ciência não é positiva em si, mas tão-só na mesma
medida a que se dá atenção a tal obrigação, é, também, verdade que tal positivismo é
abstração que não supre a crescente urgência da re-humanização do sujeito. Ainda segundo
Habermas,
“Hegel não vê a diferença entre o mongol selvagem, que se encontra submetido a
uma dominação cega, e o filho racional da modernidade, que só obedece ao seu
dever, na diferença entre servidão e liberdade, mas apenas no facto de aquele ter o
amo fora de si e este o amo dentro de si e ser, simultaneamente, o servo de sim
mesmo”.177
A importância resta, portanto e no fato de que a conciliação do ator social
contemporâneo com o seu próprio ser histórico não deve ser feita através do operador da
objetivação, preferível que é se dê a partir da subjetividade, id est, que este positivismo seja
superado a partir de seu próprio princípio, caminho que foi percorrido por Hegel, ao
colocar a sua então contemporaneidade iluminista em correspondência com o panhelenismo, por Touraine, ao buscar a ética dos santos cristãos em Crítica da Modernidade, e
por Berman, que identifica a encarnação da Modernidade centrada num futuro sempre
deslocado já na obra de Goethe.
176
HABERMAS, Jürgen. Discurso filosófico da modernidade, O. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1990,
pp. 33-34.
177
Ibid., p. 37.
92
No prólogo à sua Fenomenologia do Espírito, Hegel escreve
“não é difícil dar-se conta, entre outras coisas, de que vivemos em tempo de
gestação e de transição para uma nova época. O espirito rompeu com o mundo
anterior, com o seu modo de ser e com a sua representação e dispõe-se a lançá-lo
no passado, entregando-se à tarefa da sua própria transformação. O espirito,
certamente, não permanece nunca quieto, senão que se acha sempre em
movimento incessantemente progressivo. Mas, assim como uma criança, depois de
um período de silenciosa nutrição, no primeiro alento rompe bruscamente com a
gradualidade do processo puramente acumulativo num salto qualitativo, e a criança
nasce, assim também o espirito que se forma vai amadurecendo lenta e
silenciosamente até assumir uma nova figura, vai desprendendo-se de uma partícula
atrás da outra da estrutura do mundo anterior e os estremecimentos desse mundo
se anunciam somente por meio de sintomas isolados; a frivolidade e o tédio que se
apoderam do existente e o vago pressentimento do desconhecido são os sinais
premonitórios de que algum outro se avizinha. Tais paulatinos despreendimentos,
que não alteram a fisionomia do todo, se vêem bruscamente interrompidos pela
aurora que de pronto ilumina como um raio a imagem do mundo novo.”178
no entanto, eis o “mundo”, sintomaticamente dividido: se a presente circulação da
informação desestabiliza as estruturas tão tradicionais das sociedades do Oriente Próximo
em uma ânsia por modernização que se mostra de frágil sustentação, como se vê nas
consequências de Tahir, há uma paradoxal nostalgia nem tão sub-reptícia em Wall Street: o
movimento, que pede a volta da Grande Barganha no controle estatal dos investimentos
privados, adota por símbolo a caricatura projetada no futuro (a máscara do personagem de
V de Vingança, romance gráfico de Alan More, escrito entre os anos de 1982 e 1983) de uma
personagem histórica contra-reforma (Guy Fawkes, soldado que tentou assinar o rei James
I), agora anti-herói em luta contra um governo totalitário num hipotético Reino Unido não
mais monárquico: e é assim que um símbolo libertário é usado para exigir a presença
autoritária, mas protetora, do Estado.
Tal são história e arte unidas que, manifestas ambas em Wall Street, não apenas
criticam, mas põem à nu a fragmentação da Modernidade e a possibilidade de estar, no
passado desta mesma arte, “expressão das exigências do espírito”, como a coloca Hegel, a
perspectiva dos erros da modernidade o futuro salutar do seu sujeito.
178
HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do espírito. Disponível em
<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000058.pdf>.
Acessado em 04 de Outubro de 2012.
93
A partir de Nietzsche
179 e 180
, a dissolução da coesão entre razão e consciência
temporal rompe com a necessidade hegeliana da auto-fundamentação da modernidade, o
que torna a crítica ainda mais aguda e permite que, pari passu, recorra-se ao passado para
encontrar a subjetividade do ator social atual em seu próprio ser histórico, dispense-se
qualquer axioma objetivo e se desconecte todas as posições empíricas adotadas até então - e
esta é a finalidade da crítica da razão de Husserl ser posta, aqui, condigna à crítica de
Touraine:
“Em primeiro lugar, menciono a tarefa geral que tenho de resolver para mim
mesmo, se é que pretendo chamar-me filósofo. Refiro-me a uma crítica da razão.
Uma crítica da razão lógica, da razão prática e da razão valorativa em geral. Sem
clarificar, em traços gerais, o sentido, a essência, os métodos, os pontos de vista
capitais de uma ciência da razão; sem dela ter pensado, esboçado, estabelecido e
demonstrado um projeto geral, não posso verdadeiramente e sinceramente viver.
Os tormentos da obscuridade, da dúvida, que vacila de um para o outro lado, já
bastante os provei. Tenho de chegar a uma íntima firmeza. Sei que se trata de algo
grande e imenso; sei que grandes gênios aí fracassaram; e, se quisesse com eles
comparar-me, deveria de antemão desesperar.”181
Quanto à arte, Schiller ainda entende que é ela mesma razão comunicacional a ser
realizada em futuros “Estados estéticos” e mais: que (i) “a própria arte é o medium da
formação do gênero humano em verdadeira liberdade política” e que (ii) “a concorrência do
novo com o velho fornece o ponto de apoio para uma autocertificação crítica da
modernidade”182.
179
NIETZSCHE, Friedrich. Gaia ciência, A. São Paulo: Abril Cultural, 1974.
BACHELAR, Gaston. Nietzsche e o psiquismo ascensional. IN: Ar e os sonhos, O. São Paulo: Martins Fontes,
1990, pp. 127 - 162.
181
HUSSERL, Edmund. Idéia da Fenomenologia, A. Lisboa: Edições 70, 1990, p. 12.
182
Apud Habermas, op. cit., pp. 51-52.
180
94
2.2 Σήματα
“Alguien recorre a los senderos de Ítaca
y no se acuerda de su rey, que fue a Troya
hace ya tantos años;
alguien piensa en las tierras heredadas
y en el arado nuevo y el hijo
y es acaso feliz.
En el confín del orbe yo, Ulises,
descendí a la Casa de Hades
y vi la sombra del tebano Tiresias
que desligó el amor de las serpientes,
y la sombra de Heracles
que mata sombras de leones en la pradera
y asimismo esté en el Olimpo.
Alguien hoy anda por Bolívar e Chile
y puede ser feliz o no serlo.
Quién me diera ser él.”
- Jorge Luis Borges, “El desterrado”
Em onda, unidas, as rótulas se apressam e os pés pressuram: do Oriente Próximo à
América, as imagens, por vezes, não permitem joeirar o povo da horda que arrasa as
muralhas sagradas das Ílions contemporâneas. E se é verdade a assertiva de Marx de que a
história do mundo é aquela mesma da luta de classes, então o que se vê é bastante
arrastado, mui banal e longe de ser espetáculo democrático, visão que a mídia se nos vende.
Antes, traz em si o questionamento não histórico, mas da história: é benjaminiano quando
indaga, de si, quanto lança, também de si, no passado.
Pode-se continuar a afirmar, obviamente, que uma nova visão histórica tomava forma
no espocar do utilitarismo e no surgimento da ciência política, na utopia de Saint-Simon e no
gênio hegeliano183. Pôde-se o afirmar na compreensão do século XX, que fundiu estes
elementos
numa oposição que ora cai: o conjunto de postulados tidos como aqueles
amencipatórios estão ausentes do cenário político que não apenas se encontrava engessado,
mas que agora se mostra incapaz de definir o que será feito da política, quer sob o ponto de
vista do romantismo dos ainda marxistas-leninistas, quer do ponto de vista pragmático dos
membros da Troika.
183
SANDEL, Michael. Justice: What’s the right thing to do?. New York: Farrar, Straus and Giroux, 2010.
95
96
Os estupros públicos na Praça Tahir184, os coquetéis incendiários nos protestos da
Grécia, os carros carbonizados aa Espanha ao Brasil, a truculência do aparato policial em
Wall Street e a faixa de violência que se estende da Turquia ao coração do Leste Europeu 185
não podem evocar senão pensadores que trazem o risco de trucidar quem os toque: Clark186
vê o momento através da tragédia de Bradley, do sacrifício expiatório de Burkert, da
implacabilidade de Wall ou mesmo da história dos vencidos de Benjamin. Todos, no entanto,
fazem-nos encarar a temida experiencia da derrota que, quase prevendo a crise do crédito
de 2008, assombra com a análise dorida da sociedade em L`Insurrection qui vient187 - apenas
que a insurreição anarquista não precisou ser fomentada. O tom é duro, mas tanto a direita
quanto a esquerda promoveram, após a queda da Cortina de Ferro, verdadeira infantilização
do discurso político em benefício de um mercado de massa que não mais estava ligado a
questões ideológicas - não é só o capital um fim em si, como é, também, um ente em si que
não necessariamente continua reflexivo do Estado - e daí o tom de tragédia que se dá à
narrativa política atual: não há mais sequer denúncias a serem feitas.
Esse vazio que arrasta as sociedades atuais não pode ser considerado mera crise
sistêmica, posto que a sombra que projeta é ideológica: ainda que o marxismo do século
XIX tenha encontrado a perfeita expressão descritiva da dominação burguesa, equivocou-se
na evolução de tal ordem como sendo aquela da revolução; os operários sem pátria
emergiram no nacional-socialismo-stalinismo e uma série de governos autoritários
conformam o passado que a política atual tem como gênese.
Insiste-se na afirmação de que a pesquisa histórica é aquela da sombra, insiste-se no
erro que sóe, no cacoete do ἔπος do materialismo histórico que precisa, claras vistas,
“renunciar ao elemento épico da história. Ele arranca, por uma explosão, a época da
‘continuidade histórica’ reificada. Mas ele faz explodir também a homogeneidade dessa
época, impregnando-a com ecrasita, isto é, com o presente.”188 Tal fato, quiçá, deva-se à
falência do Iluminismo em sua própria visão do humano, este demasiado humano que
apresenta-se em continuum incapaz de corresponder às suas premissas. Inexcapável é o
184
HUMAN RIGHTS WATCH. Egypt: epdemic of sexual violence. Disponível em
<http://www.hrg.org/news/2013/07/03/egypt-epidemic-sexual-violence>. Acessado em 03 de Jul. de 2013.
185
Chomsky em entrevista concedida à rádio portuguesa “Voz da Rússia” <portuguese.ruvr.ru/> em 18 de Jun.
de 2013.
186
Op. cit.
187
COMITÉ INVISIBLE. L`Insurrection qui vient. Paris: La Fabrique, 2007.
188
BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte/São Paulo: Editora UFMG/Imprensa Oficial do Estado de
São Paulo: 2006, p. 516.
97
rememorar do vate nietzschiano do socialismo ferro-e-madeira: a crise que, ao tempo que
purifica, também corrompe, semelha instalada: semelha posto que não mais se pode duvidar
de que o sistema é, por si, crísico e sustentável; mas, se é certo que testemunha o presente
Caribde dragando os destroços da Modernidade e, mais imeditado, causando vazio
ideológico, é o mesmo Nietzsche que pergunta
“quais são os que se demonstrarão os mais fortes? Os mais comedidos. Aqueles
que não necessitam de artigos de fé extremados. Aqueles que não somente
admitem, mas amam boa parte de acaso, de insensatez, aqueles que podem pensar
no homem com um significativo comedimento de seu valor, sem com isso
tornarem-se pequenos e fracos [...] seres humanos que estão seguros de sua
potência e que representam, com consciente orgulho, a força alcançada do
homem.”189
Este comedimento, esta moderação tão necessários aos que têm que lidar com a
revolução malograda, traz à mente não apenas o equívoco do sujeito moderno da Aufklärung,
como a urgência da refiguração narrativa no ocaso desta experiência, tentativa que não
deixa, também, de ser benjaminiana, dada a potência iluminatória sobre o presente que
exercem os fragmentos históricos serôdios.
Aspecta sustentável, em tal contexto, a hipótese de Huntington190, portanto, de uma
reconfiguração da ordem pós-falência bipolar na qual o sistema-mundo caminha de entidades
isoladas para a acentuação de fraturas civilizacionais e hibridismo cultural. Essa possibilidade
remete, sombra que é, à falseabilidade da dimensão identitária como constructo de interesses
imperialistas do século XIX. Ainda que de maneira diversa, Whitmarsh191 argumenta que
processo semelhante é documentado no épico homérico que, por turno, sofreu fortes
influências de Gilgamesh.
Quando Adorno e Horkheimer escrevem que “cantar a ira de Aquiles e as aventuras
de Ulisses já é uma estilização nostálgica daquilo que não se deixa mais cantar”192, colocam o
ἔπος perigosamente fora da estrutura social e o mito fica rebato ao desencantamento do
mundo: leitura equivocada quando loca os esforços dos pan-helênicos, id est, da estrutura
189
NIETZSCHE, Friedrich. A vontade da potência. IN Obras Completas. São Paulo: Abril Cultural, 1978, p.
393.
190
HUNTINGTON, Samuel. Choque das civilizações, o. Rio de Janeiro: Ponto de Leitura, 2010.
191
WHITMARSH, Tim. Narrative and identity in the ancient Greek novel: returning romance.
Cambridge: Cambridge University Press, 2011.
192
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do Esclarecimento: fragmentos filosóficos.
Disponível em <http://antivalor.vilabol.com.br>. Acessado em 12 Set. 2012.
98
social que surgia após a decadência micênica e o desfazimento dos laços políticos com Tebas
e Hattusha193 em um reordenamento apolíneo incompatível com a ὕβρις aqueia. A ira Peleide
e o retorno Laércio não somente se cantam, como se revivem, já que é canto e raconto sob
cuidado das Musas.
Tal exposição não é de todo desnecessária, posto que quem canta tal ira, a deusa ou o citaredo sob sua proteção - é dotada da mais completa memória:
|527 μέμνημαι τόδε ἔργον ἐγὼ
πάλαι οὔ τι νέον γε |528 ὡς ἦν: ἐν δ᾽
ὑμῖν ἐρέω πάντεσσι φίλοισι.194
|527 Recordo um velho caso e vou
narrá-lo tal |528 e qual aconteceu,
amigos: certa vez195
|527 Eu me lembro totalmente
[μέμνημαι] de como foi feito aconteceu há muito, não é algo
novo - |528 lembrando(me)
exatamente como foi. Di-lo-ei em
vossa companhia - já que são
todos caros e próximos
[φίλοισι].196
O verbo μέμνημαι, que contém a raíz μέμ-, traduz-se por “ter memórias sobre”
quando a este segue complemento no caso genitivo: assim, pede a semântica que seja
traduzido por “eu (me) lembro”; mas, os τέλεα da μῆνις do aquileu
e do caráter do
laertíade (ανδρα) πολύτροπος - que sejam: a Ilíada e a Odisseia - são, como na
micronarrativa de Fênix, acusativos que indicam a “total rememoração” citareda: “eu (me)
recordo completamente”. Canto, portanto e inclusive, diverso do das sereias, falsas musas 197,
canto-raconto necessariamente direcionado aos φίλοισι, pois que é αἶνος e se aclara na
presença de uma disposição aparentemente ausente na leitura dos frankfurtianos: do ouvinte
de um αἶνος é requerido
1. ser σοφός, hábil em compreender a mensagem moral codificada no medium
poético;
2. ser ἀγαθός, nobre em sua qualificação moral; mas
3. deve ser também φίλος, próximo em escala de afeição a quem raconta o αἶνος,
193
WOODS, Michael. In search of the Trojan War: updated edition. Berkeley: University of California
Press, 1998.
194
Homero. Ilíada. Trad. Haroldo de Campos. São Paulo: Benvirá, 2010.
195
Tradução de Haroldo de Campos.
196
Tradução nossa.
197
As Musas são filhas da Memória e, portanto, oniscientes: são as deusas da absoluta memória expressa pela
forma ativa do verbo μέμ-, μένον. Ilíada, rapsódia II, verso 492.
99
implicando em uma qualificação emocional que permita o revestimento da comunicação por
um senso comunitário, por uma estrutura dos laços deslizantes da fala que unem em vez de
enfatizarem uma individuação egóica do sujeito como os frankfurtianos leem na Odisseia;
qualificados que não o são quando
“Adorno e Horkheimer assumem, então, o próprio lugar soberano da razão
esclarecida que, em seu próprio juízo crítico, atribui a si mesma a tarefa de firmar a
distância entre o mythos e o logos, o mito identificado, em última instância, ao
território do saldo e do irracional em oposição ao logos definido como o discurso
racional verdadeiro. Essa oposição [...] exclui, precisamente, uma outra forma de
linguagem, o discurso narrativo, que opera pela lógica da ambigüidade.”198
Não somos todos, de forma alguma, Odisseu, como não é Odisseu “a forma
prototípica da razão instrumental”199, posto que sua Odisseia volve torno ao νόος: dentro da
macro-narrativa da Modernidade, este micro momento de crise profunda condensa e
aumenta suas fraturas e somos, todos, a audiência para o narrador onisciente - audiência que
atualiza o raconto quando o experimenta, que resgata, ou ao menos norteia para o resgate,
da intersubjetividade de tantos todos-Telêmaco perdidos quando o corpo político se
ausenta. Este corpo, sim, é Odisseu, βασιλεύς itácio, σῶμα social e político afastado durante
a falência da ordem micênica. Sintomático é, ainda, que Telêmaco o vá buscar em Nestor: é
este quem, na rapsódia XXIII da Ilíada, aponta para a ambiguidade-antiguidade do túmulo do
herói lenda, porém recém-morto, que é tumba e símbolo, σῆμα, para os jovens apóbatas
tanto do contemporâneo-passado mítico, quanto da hélade da dominação da natureza:
σῆμα δέ τοι ἐρέω μάλ᾽
ἀριφραδές, οὐδέ σε λήσει. |327
ἕστηκε ξύλον αὖον ὅσον τ᾽ ὄργυι᾽
ὑπὲρ αἴης |328 ἢ δρυὸς ἢ πεύκης: τὸ
μὲν οὐ καταπύθεται ὄμβρῳ, |329
λᾶε δὲ τοῦ ἑκάτερθεν ἐρηρέδαται
δύο λευκὼ |330 ἐν ξυνοχῇσιν ὁδοῦ,
λεῖος δ᾽ ἱππόδρομος ἀμφὶς |331 ἤ
τευ σῆμα βροτοῖο πάλαι
κατατεθνηῶτος, |332 ἢ τό γε νύσσα
τέτυκτο ἐπὶ προτέρων ἀνθρώπων
[...]200
26
198
|326 Eis, fácil de notar, um signo:
não o esqueças. |327 Se ergue um
tronco seco uma braça terra
acima, |328 ou de roble, ou de
pinho; não o apodrece a água |329
de chuva; pedras brancas marcamlhe os dois lados, |330 na volta do
caminho, liso, em torno, o
hipódromo. |331 O signo assinalava
um que morreu há tempos |332
talvez um marco de homens
primevos; [...].201
|326 Eu [Nestor] te [Antíloco] direi
um sinal [σῆμα], um muito claro,
que não será perdido em seu
pensamento. |327 Em pé, lá, há um
tronco morto, um bom tanto
acima do solo. |328 Foi um carvalho
ou um pinho. E não foi apodrecido
pela chuva. |329 Há duas pedras
brancas apoiadas em ambos os
lados. |330 Lá está, em pé no ponto
onde dois caminhos se cruzam, e
tem um caminho liso em torno
para (se) dirigir uma biga. |331 Ou é
a tumba [σῆμα] de algum mortal
que morreu há muito |332 ou era
um ponto de viragem [νύσσα] no
tempo de homens dantes [...]202
ÓLIVEIRA, Luís Inácio. Do canto e do silêncio das sereias. São Paulo: EDUC, 2008, p. 219.
Ibid.
200
Homero. Ilíada. Trad. Haroldo de Campos. São Paulo: Benvirá, 2010. Edição bilíngue. XXIII, 326 - 332.
201
Tradução de Haroldo de Campos.
202
Tradução nossa.
199
100
Se os apóbatas atualizavam a narrativa homérica quando dos encontros pan-helênicos
a fim de redimir a sociedade do miasma mítico de Aquiles, se a dominação e a luta de classes
é fato dado, ainda que não explícito antes de Marx, se a narrativa permite retomar o
πολύτροπος Odisseu - e é este o caráter que define a Odisseia no lugar da errância -, então
a ruína, a história dos vencidos, é também σῆμα, fio que liga o κλέος da Ilíada ao κλέος da
Odisseia por meio da figura de Nestor e que se atualiza nas narrativas seja do Panathenaia,
seja da leitura Frankfurtiana - ou, ainda, em suas refutações.
Σῆμα, que no verso 331 referido é a tumba de um herói já mítico na
contemporaneidade da Guerra de Troia, é, também, o sinal do culto ao herói no σῆμα do
verso 326 - portanto, σῆμα é, também e neste caso, νόησις203.
Na narrativa de Nestor, o símbolo é ambíguo: ou túmulo de um herói do passado ou
um ponto de viragem em corridas de bigas ocorridas. Transportada, no entanto, para a
macro-narrativa que é o ἔπος homérico, a audiência é levado a uma fusão interpretativa: o
túmulo do herói e o ponto de viragem são um, posto que o túmulo do herói é o de
Pátroclo, herói morto no imediato presente da Ilíada, mas no passado heroico da audiência é desta forma que a narrativa torna possível que os sujeitos de um passado distante sejam os
mesmos do imediato presente. Tal se dá, também, pelas qualificações de Antíloco frente ao
αἶνος racontado por seu pai, Nestor, o mais próximo em sua escala de afeição: quando este
diz de um sinal que “não será perdido em seu pensamento”, a expressão οὐδέ σε λήσει deixa
clara, pela raiz λήσ-, a disposição mental daquele que se depara com narrativas “maiores-doque-a-vida”. Afirma-se, assim, que ideia provocada na audiência é imediatamente aquela de
não estar “mentalmente desconectado”, λήσ-, do significado do símbolo-sinal: σῆμα é uma
predisposição mental que a Ilíada esclarece quando Antíloco não vira sua biga na marca
apontada por Nestor, mas na passagem estreita de onde avista a marca.
Sendo um raconto inserido nas tradições orais, fato que incapacitava a audiência de
reler o que acabava de ser dito, a épica homérica parece repetir, propositalmente, a mesma
ideia em vários estratos: no mais alto grau da escala de afeição, Antíloco está moralmente
qualificado para apreender o significado da micro-narrativa paterna quando refreia seu
203
SVENBRO, Jesper. Phrasikleia: an anthropology of reading in Ancient Greece. Ithaca: Cornell
University Press, 1993.
101
impulso após a corrida e o ponto de viragem apontado pelo pai é também lição para
momentos de crise que exijam perfeito equilíbrio entre impulso e controle.
A qualificação emocional de Antíloco, no entanto, vem de Arctinus de Mileto, por
meio do Ciclo Épico de Proclo204: o túmulo do herói de um passado já longínquo pode ser
identificado como o de Pátroclo, uma vez que o herói já se perde nas brumas geracionais
daqueles que escutam o raconto, mas o mesmo túmulo pode ainda ser visto como o do
próprio Antíloco quando Nestor não o chama de filho, mas de φίλος, fazendo com que sua
narrativa ecoe bem para lá da Ilíada. A rapsódia IV, versos de 186 a188, da Odisseia,
confirma o resumo que sobreviveu no Ciclo quando menciona a morte de Antíloco ao salvar
Nestor, dando a ligação do σῆμα, a ligação semântica, entre o túmulo-sinal-raconto de
Antíloco e de Pátroclo - aquele que tem a glória, kleos, dos ancestrais, pateres - na Ilíada, e a
recepção de Telêmaco por Nestor quando aquele busca Odisseu, o corpo político de qual
toda sociedade em crise se vê privada e instada a buscar, quase sempre, nas sombras que o
seu presente projeta sobre o passado e dele indaga.
2.3 Νόος
Todas as coisas já foram ditas; mas, como ninguém escuta, é preciso sempre
recomeçar.
- André Gide
Woods205 reúne indícios arqueológicos, hititas e egípcios, de uma crise política
mediterrânea contemporânea à guerra narrada por Homero em Ilíada, enquanto Nagy206
estuda detalhadamente as micro-narrativas inserida no ἔπος homérico, sob forma de
lamentos, que tratam da desestabilização que a narrativa da morte do herói, este corpo
político, invoca não só como sofrimento naqueles em sua escala próxima de afeição - sua
204
PROKLOS. Summary of The Aithiopis, attributed to Arctinus of Miletus. IN Epic cycle.
Disponível em <http://www.stoa.org/hopper/text.jsp?doc=Stoa:text:2003.01.0004:account=2>. Acessado em
24 Out. 2012.
205
Op. cit.
206
NAGY, Gregory. The ancient Greek hero in 24 hours. Cambridge: Harvard University Press/Belknap
Press, 2013..
102
própria pátria -, mas como remete à argumentação de Vetter207 sobre a metáfora do
trabalho tecelão: e importa a tecelagem quando o lamento é, semelhante, quase que
exclusivamente feminino. Tecer, como figura de análise política, une os sujeitos narrativos
em uma esfera comunal e Vetter afirma, diretamente, que as muitas vezes complexas obras,
como a mortalha laércia de Penélope, são relevantes às questões da atual democracia: a
investigação filosófica é a trama que une os fios da política atual, inserindo os lamentos no
ἔπος como a principal atividade pátria e estadista, bem como o maior exercício de cidadania
possível. Sua conclusão é a de que a política global urge ser examinada atentamente em suas
zonas periféricas, espaços vazios e antagonismos culturais que não eliminem o que é,
aparentemente, oposto.
É com base nesta assertiva de que as obras clássicas têm implicações dialéticas e
democráticas, que permanecem úteis ao reposicionamento do inadequado na política atual, e
ainda com base na afirmativa de Nagy de que Ulisses representa não o proto-sujeito208 do
Esclarecimento, mas o próprio corpo político helênico, que se propõe, aqui, que o cantar na
Odisseia não são as errâncias de herói. Se o que caracteriza a Ilíada é o caráter monolítico
do Peleide - sua μήνις -, a Odisseia canta o κλέος de Odisseu também por seu caráter: ele
não “é fraco e sabe que o é”, como afirma Olgária Matos209, posto que retesa o arco e
elimina os pretendentes de Penélope. Não representa, tampouco, como “a ciência do claro e
do distinto (se) depara com o confuso para combatê-lo”210, pois que só fica confuso, só o
abandona a μήτις, e não por muito, quando retorna do reino dos mortos, onde indaga do
adivinho Tirésias.
A Odisseia é o canto do homem πολύτροπος, é o νόστος não só de Ulisses, mas o
νόστος de todos os νόστοι: é a assertiva final do tema da reconstrução do corpo político
após a crise e, no processo de raconto, cantam-se as "façanhas" necessárias à preservação
do organismo social.
O canto das sereias, tão enfatizado no (re)canto frankfurtiano, carregado de
erotismo melífluo no original grego, é tão só, e portanto, a ameaça de melancolia, prazer
207
VETTER, Lisa Pace. Women's Work as Political Art: Weaving and Dialectical Politics in Homer,
Aristophanes, and Plato. Lanham: Lexington Books, 2005.
208
Termo usado por Luís Inácio Oliveira, op. cit.
209
MATOS, Olgária. A melancolia de Ulisses: a dialética do iluminismo e o canto das sereias. IN CARDOSO, Sergio
(et al.). Sentidos da paixão, os. São Paulo: Editora Schwarcz, 1987, p. 143.
210
Ibid.
103
104
falso, pois que elas conhecem, οἶδα, mas não recordam: morrer de nostalgia - ἄλγεα, dores,
pelo νόστος, retorno, ainda não concluído - faria de todo o ἔπος homéico algo ludibriador.
Importa reafirmar que o νότος de Odisseu é definido não nas suas errâncias, mas na busca
do filho Telêmaco pela identidade do pai, fato-tradução da busca de sua própria identidade: a
sociedade contemporânea-de-então busca modelo identitário não no desencatamento do
mundo de Odisseu, posto que o raconto do pai-narrador ainda não ocorreu, mas na sombra
que a presença-ausência de um corpo político projeta sobre o passado apolínio.
Odisseu não é (como não o poderia ser herói que é) reduzido à razão instrumental:
o epíteto a ele conferido por Homero - verso 311 da rapsódia I da Ilíada, bem como no
verso 173 da rapsódia II da Odisseia211 -, é o de πολύμητις, aquele que é inteligente de
muitas formas; mas, não só: existe uma conexão mental da sociedade do presente-de-então,
transfigurada em Telêmaco, com a sombra que é a crise de seu corpo político projeta sobre
passado mítico:
320 ὄρνις δ᾽ ὣς ἀνόπαια διέπτατο:
τῷ δ᾽ ἐνὶ θυμῷ |321 θῆκε μένος καὶ
θάρσος, ὑπέμνησέν τέ ἑ πατρὸς |322
μᾶλλον ἔτ᾽ ἢ τὸ πάροιθεν. ὁ δὲ
212
φρεσὶν ᾗσι νοήσας
Atena ganha a altura de uma
ave, não |321 sem antes incutir
coragem em seu peito |322 e
reavivar-lhe a imagem de Odisseu,
mais nítida [...]213
320
[…] Em seu coração [θυμῷ]214
|321 ela [= Atena] colocou poder
[μένος] e ousadia, e ela (o)
conectou mentalmente
[ὑπέμνησέν] com seu pai |322 mais
ainda do que antes.215
320
O resultado dessa conexão direta o põe Homero antes, como muitas vezes, no verso
94 da rapsódia I: no original, o νόστος de Odisseu é objeto direto do verbo πυνθάνομαι e,
assim, Telêmaco não aprenderá sobre o retorno do corpo político, venha a ter notícias
paternas, antes aprenderá o próprio retorno do corpo político em si.
Existe ainda uma outra implicação em encarar a obra homérica como uma única
macro-narrativa: Aquiles, caráter monolítico, foi confrontado com a escolha entre o νόστος
e o κλέος, mas Odisseu deve retornar, porque seu νόστος é seu κλέος - não existe
confronto entre a μήτις e o passado mítico quando a preservação do herói significa a
211
E as duas obras têm relação simbiótica posto que uma começa e a outra termina a relação entre
Agamêmnon e Aquiles.
212
HOMERO. Odisseia. Tradução de Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2011. I, 320 - 322.
213
Tradução de Trajano Vieira.
214
Θυμός, muitas vezes também traduzido como alma, não tem correspondente exato em português, mas
cumpre notar que denota uma confluência ou conjunção de pensamento e emoção.
215
Tradução nossa.
105
106
107
própria sobrevivencia da narrtiva, como o nota Oliveira.216
Há, na rapsódia I da Odisseia, o νόστος cantado por Fêmio, momento no qual
Telêmaco nota a glória ainda futura do raconto que é νεωτάτη, o mais novo: νέος, nesta
passagem, refere-se à adequação do ἔπος para o aqui e agora, já que Odisseu ainda não é
herói de νόστος e a narrativa ainda está em progresso, id est, ainda que a audiência não tenha
ouvido sobre o νόστος de Odisseu, o narrador principal em breve o fará ocupar papel
central, posto que o νόστος se constrói em perspectiva no raconto quando a audiência não
ouviu, mas antecipa e conhece seu fim: isto faz com que a sequência seja já realidade e há
mais para o caráter de Odisseu, conforme pode se inferir da rapsódia VIII, versos 557 a 586.
|577
εἰπὲ δ᾽ ὅ τι κλαίεις καὶ ὀδύρεαι
ἔνδοθι θυμῷ | 578 Ἀργείων Δαναῶν
ἠδ᾽ Ἰλίου οἶτον ἀκούων. |579 τὸν δὲ
θεοὶ μὲν τεῦξαν, ἐπεκλώσαντο δ᾽
ὄλεθρον |580 ἀνθρώποις, ἵνα ᾖσι καὶ
ἐσσομένοισιν ἀοιδή. |581 ἦ τίς τοι
καὶ πηὸς ἀπέφθιτο Ἰλιόθι πρὸ |582
ἐσθλὸς ἐών, γαμβρὸς ἢ πενθερός,
οἵ τε μάλιστα |583 κήδιστοι
τελέθουσι μεθ᾽ αἷμά τε καὶ γένος
αὐτῶν; |584 ἦ τίς που καὶ ἑταῖρος
ἀνὴρ κεχαρισμένα εἰδώς, |585
ἐσθλός; ἐπεὶ οὐ μέν τι κασιγνήτοιο
χερείων |586 γίγνεται, ὅς κεν
ἑταῖρος ἐὼν πεπνυμένα εἰδῇ.
|577
|577 Choras por quê? Por que teu
ânimo padece |578 à citação da
sina dos argivos, de Ílion? |579 Os
deuses decidiram; fiaram a
catástrofe |580 de homens para a
poesia existir um dia. | 581
Perdeste algum parente de valor
na entrada | 582 de Troia, um
genro, um sogro, os entes mais
amados |583 depois de nossos
consanguíneos? Ou um sócio |584
cuja amizade demonstrou por ti,
um nobre? |585 Pois não coloco
abaixo dos familiares |586 o amigo
cuja ânima sopre a sapicência.
Diga-nos porque está chorando
e lamentando em seu coração
[θυμῷ] |578 quando ouve o fado dos
Dânaos Argivos, ou o fado de
Troia. |579 Os deuses tudo
arranjaram e eles movem (o
destino de) a ruína |580 dos mortais
para que as futuras geraçãos
tenham o que cantar. |581 Perdeu
algum parente de sua mulher
quando estava em Troia? |582 Tão
nobre pessoa? Um genro ou um
sogro? Tais pessoas são,
certamente, |583 as mais próximas
(relações) que um homem tem
fora da sua família consanguínea |584
Ou talvez foi um companheiro-dearmas [ἑταῖρος] que tão bem
conhecia o que lhe apraz? |585 Tão
nobre pessoa? Pois não menos
quisto do que (seu) o próprio
irmão |586 é um companehiro que
sabe (bem) as coisas sobre as quais
pensa.
Observa-se, portanto, que o herói não sofre exatamente por perdas que atinjam a
sua individual-subjetividade, mas toma parte no sofrimento universalizante da guerra como
figurativa da falência do corpo sócio-político de uma época. Nagy217 traça um extenso
216
Op. cit., p. 219.
108
217
Op. cit.
109
paralelo com a Eneida, de Virgílio, verso 1.462: sunt lacrimae rerum et mentem mortalia
tangunt218.
Para além de tais implicações, Homero inicia o canto da Odisseia referindo-se à Troia
como pólis sacra219 , implicando diretamente no νόος de Odisseu: não só a cidade de Troia é
destruída, como sua cidadela, onde se encontra o tempo de Atena, aquele do νόος e a
mesma que fará com que o jovem Telêmaco parta em busca do modelo político que lhe falta
na figura pai/herói. Assim, a ligação mental entre a crise e o corpo político não se destina
apenas a alguns: a presença de Atena glauca como archote de agudez mental perpassa o todo
da obra homérica e indica a necessidade de interconexão de todos os elementos da
sociedade e de suas heranças políticas, intelectuais e morais; seja, talvez, por isso que
Telêmaco se apresenta primeirarente, no raconto, como νήπιος, desconectado.
Existem, ainda, outros indicadores no original que apontam para esta leitura:
Demódoco, na rapsódia VIII, verso 499, inicia seu canto com ὁρμηθείς, forma extremamente
acurada de se referir ao início de um raconto e que tanto explicita uma conexão mental com
a história, como demonstra a certeza de que existe um objetivo-chegada para a narrativa.
Este "estado conectado" de Demódoco é o que permite que o aedo torne visível, φαίνειν, as
interconexões entre a antiga ordem, o antigo corpo político, e a atual crise que sua falta
produz.
Da mesma forma, esta narrativa de Demódoco, encravada dentro da narrativa maior,
traz Odisseu não como o futuro aedo homérico, mas como audiência e, por isso mesmo,
neste momento a narrativa é interrompida: não se sabe qual teria sido o próximo feito do
herói em Troia, mas se sabe que ele, agora, chora e, mais ainda, é comparado a uma mulher
cativa que se lamenta após a ruína da estrutura da própria sociedade a que pertence.
Ainda com o respaldo de Nagy, a narrativa homérica pode ser vista como um
elemento metonímico que toca, também, a sociedade atual e que serve não para que se
pense a individualização egóica do sujeito, mas a dimensão de intersujetividade e seus
elementos responsáveis por manter o corpo político unido. Para Nagy, as personagens do
218
219
Há lágrimas nas coisas e sofrimentos que tocam a mente. - tradução nossa.
Rapsódia I, verso 2.
110
111
ἔπος nos apontam o fato de pertencermos todos a um grupo e de ser o passado e o seu
νόστος parte imprescindível da experiência coletiva.
Nos versos 3 e 4 da rapsódia I, Odisseu é cantado como aquele que "muitas urbes
[que] mirou e mentes de homens [que] escrutinou”, e, por isso, é aquele que conhece o
pensamento, o νόος, humano. O texto grego, no entanto, tem dupla implicação: Odisseu é
também aquele que passa a conhecer melhor o seu próprio processo do pensar. O retorno
a Ítaca é um retorno à consciência após a errância e o fim do ἔπος torna clara a ausência de
qualquer rota de fuga do universo mítico: por instrução de Tirésias, Odisseu parte
novamente, mas não sem antes ganhar a consciência do retorno necessário à Ítaca, à
sociedade que, durante a crise, fica sem νόος.
Deste conceito, é emblemática a passagem dos que tornam pela terra dos lotófagos:
os companheiros de Odisseu que comem da flor, perdem a consciência do νόστος. O verbo
λήθ-, tendo νόστος como seu objeto, carrega a ideia de que, perdida a consciência do corpo
político, que é a pólis itácia, é impossível que para lá se volte, pois não se sabe mais o que é
"lá". Homero retoma essa ideia no nome de dois personagens da Odisseia: Antínoos, aquele
que é oposto ao νόος, e Alkinoos, aquele que tem o poder de promover o νόος - e, de fato,
o promove transportando Odisseu da Feácia à Ítaca.
Odisseu retorna ao seu lugar: durante os vinte anos deccoridos desde sua partida
para Troia, o seu lugar social é reduzido à insignificância, id est, a ordem política de Ítaca
sofre um momento crítico quando o rei que a representa está ausente e isto encontra
paralelos nas diversas crises de representatividade que têm tomado por palco a sociedade
atual. O fato de Atena disfarçar o herói como mendigo é indicador da necessidade de
reconstrução da ordem: de “ninguém” reconstruir o corpo político de uma sociedade até
que “ninguém” se torne novamente σῶμα.
E se usa ninguém aqui conscientemente: este retorno é paralelo ao retorno de
Odisseu da terra dos cíclopes e, ainda, do reino de Hades, posto que lá também o basileu já
tem sua identidade desconstruída: a desconstrução física operada por Atena é precedida, ou
ensaiada, pela desconstrução psíquica da identidade que o herói impõe sobre si quando diz a
Polifemo “meu nome é ninguém" - e essa desconstrução identitária traz consigo perigo ao
νόος que se manifesta no jogo de palavras que se opera na troca engenhosa de pronomes
por Homero. Odisseu diz se chamar οὔτις para enganar o cíclope, mas, quando os outros
112
113
perguntam a Polifemo quem o fere, a síntaxe exige a forma modal μήτις, que quase se
confunde com a μῆτις, a astúcia, de Odisseu. Assim, sua identidade (e ela representa o
corpo político de uma sociedade) sofreu uma redução, ou uma desconstrução, e precisa ser
reencontrada e reconstruída, feito que é operado por Telêmaco ao sair em busca do nome
do pai.
Conclui-se, assim, que o trabalho de Odisseu, por fim, não é aquele de antecipar o
trabalho da bússola, como afirmam os frankfurtianos, mas o de vir a termos com uma crise e
dela ressurgir: após a sua viagem ao Hades, narrada na rapsódia XI, Odisseu retorna à ilha de
Circe, mas esta não se localiza mais a Oeste, posto que o herói completou a rota circular da
corrente do Oceano (XII, 1-2). A ilha de Circe estando no extremo Leste, onde Hélio nasce
(XII, 4) e onde Éos tem seu palácio (XII 3-4) faz do nome de Circe relevante: antes de
encarar seu caráter apenas como o de tentação promíscua, falso posto que é imortal e,
portanto, não padece de ὑβρίς, Κίρκη é cognato de κίρκος e variante de κρίκος, um círculo.
Circe, portanto, é a experiência mental, o νόος, de um ciclo que, neste caso, é o refazimento
sócio-identitário.
A razão instrumental, aquela responsável pelo estratagema do cavalo de Tróia, não é
mais suficiente, e por isso a μῆτις foi erodida na caverna ciclópica: Odisseu precisa
reencontrar seu νόος e, antes de se adiantar ao trabalho da bússola, perde a sua orientação,
não sabe mais onde está seu Oriente, seu Leste:
|190 ὦ φίλοι, οὐ γὰρ ἴδμεν ὅπῃ
ζόφος οὐδ' ὅπῃ ἠώς, |191 οὐδ' ὅπῃ
ἠέλιος φαεσίμβροτος εἶσ' ὑπὸ
γαῖαν |192 οὐδ' ὅπῃ ἀννεῖται· ἀλλὰ
φραζώμεθα θᾶσσον, |193 εἴ τις ἔτ'
ἔσται μῆτις· ἐγὼ δ' οὐκ οἴομαι
220
εἶναι.
220
onde anoitece, onde auroresce,
não sabemos, |191 onde Hélio-Sol,
luzeiro-humano, subesconde-se |192
onde resnasce. Incrédulo de que
haja saída |193 pensemos se nos
resta ainda um artifício.221
|190
|190 Amigos, assim falo porque não
sei que lugar é Oeste e que lugar é
|191 - qual o lugar onde o Sol,
trazendo luz aos mortais, vai terra
abaixo |192 e qual o lugar onde
nasce. No entanto, passemos a
pensar (como resolver), rápido
como pudermos, |193 se ainda há
alguma habilidade [μῆτις] que
reste. Devo dizer(vos), no
entanto, penso haver nenhuma.222
HOMERO. Odisseia. Tradução de Trajano Vieira. São Paulo: Editora 34, 2011. X, 190 - 193.
Tradução de Trajano Vieira.
222
Tradução nossa.
221
114
115
É só quando na ilha dos feácios que a identidade de Odisseu começa a ser
reconstruída. Portanto, não quando ele rompe com seu passado, mas, o que parece deveras
importante, quando o raconta: só então, após se conectar com esta sombra, é ele capaz de
retornar a Ítaca - o futuro de Odisseu não é possível sem seu passado.
A Modernidade, no entanto, tende a ver Odisseu em Ítaca como realidade oposta ao
mito de Odisseu errante. Tal visão é dicotomia não mais que falsa: a realidade de Odisseu é
o mito de Odisseu, uma vez que o mito deriva da narrativa como medium, e a realidade do
mito é a realidade do medium, que carrega a narrativa política de Homero através do tempo.
Reduzir Odisseu ao embusteiro que busca somente salvar (somente) a própria vida é
ignorar o fato de que ele é representação do corpo político de uma sociedade e que luta
para preservar sua ψυχή através de uma jornada do νόος: na luta para manter a consciência,
νόος, ele é capaz de salvar a sua ψυχή, sua expressão/conformação identitária, que não é
outra senão a identidade social itácia.
Uma última observação pertinente se refere ao túmulo de Odisseu, o que implica em
uma série de desdobramentos que se projetam no pós-narrativa da Odisseia. Há, na fala de
Tirésias, a exata expressão que Nestor dirige a Antíloco: “eu [Tirésias] te direi [Odisseu] um
sinal [σῆμα], um muito claro, que não se perderá em sua mente”223.
A ψυχή de Tirésias ordena a Odisseu que este parta para longe do mar - de onde virá
sua morte, ἐξ ἁλός - até que encontre um viandante que não conheça o talasso e confunda
remo do herói com uma pá de joeirar. Finque-o, então, no solo e ofereça hecatombes: só
se pode saber que se trata do túmulo de Odisseu por ser a exata imagem do túmulo de
Elpenor, conforme instruções de sua própria ψυχή na rapsódia XII, versos 14 e 15.
Imagens narrtivas importantes para a apreensão do diagnóstico político em Homero são:
1. essa nova viagem só deve ser engendrada após o reecontro de Odisseu e Penélope,
posto que ambos promovem virtude, ἀρετή, recíproca: é só porque Penélope se
esforça para manter a identidade da sociedade itácia que Odisseu, o corpo político,
pode alcançar seu νόστος;
223
Homero, op. cit, XI, 126, tradução nossa.
116
2. Tirésias, ou antes, sua ψυχή, porta um cetro, símbolo de φρένες, das faculdades
mentais, das percepções e dos pensamentos que permitem que se atinja a
consciência, o νόος, e que são caracterizadas como ἔμπεδος, estáveis, inerciais,
adjetivo que também está ligado ao movimento da biga ao redor do σῆμα;
3. a Odisseia trata sobre as relações de intersubjetividade que possibilitam que uma
sociedade supere os seus momentos de crise, representados pela descida de
Odisseu, o corpo político, ao ῎Αϊδες, um reino que não é escatológico, mas
transicional.
Existe, claramente, a narrativa sobre um corpo político desestabilizado em busca de
instruções na consciência estável e esta consciência aponta para o momento onde o remo se
confunde com uma pá: Nagy224 lembra que os achados arqueolóicos mostram dois
instrumentos idênticos; mas, na colheita, o que se faz é jogar, com o auxílo da pá, o trigo ao
alto, para que o vento sopre a palha ao longe e reste somente o grão. É um trabalho árduo e
que demanda tempo, mas o que sobra, ao final, é o produto do discernimento: separou-se o
genuíno do falso através do processo de discriminação do νόος, processo que se denomina
κρίσις: crise é discernir.
A Odisseia é um "manual homérico” para períodos de crise e aponta para o peso das
escolhas e para a necessidade de critério, de julgamento crítico da realidade aparente: há um
universo metafórico herdado do passado grego, que ainda é utilizado no vocabulário atual, e
que pode ser aplicado ao processo de se joeirar o trigo: restar com os grãos, e não com a
palha, é questão de sobrevivência civilizacional e não de razão instrumental frankfurtiana. A
Odisseia se estende até o presente porque a consciência do fluxo politrópico é no que
reside a questão identitária desde sempre moderna (ou, quiçá, não, pois, como afirma
Latour, nunca fomos modernos).
4. Há um filme de Kurosawa, Yume225, no qual um viajante de sonhos chega a um
bosque verdenjante logo após transitar por sonho outro no qual se depara com uma
sociedade destruída pelo abuso da tecnologia. Há um rio neste bosque e, nele, uma
ilha. Nesta ilhota, ele, que viaja como Odisseu, depara-se com crianças que ofertam
224
Op. cit.
YUME. Direção: Akira Kurosawa. Distribuição Warner. Japonês. Leg. Cor. DVD 119 minutos. Título em
português: Sonhos.
225
117
118
flores sobre um túmulo: ocorre que esse túmulo é o seu próprio, que morreu no sonho
anterior dos efeitos da radioatividade; ele oferece flores sobre seu próprio σῆμα, uma
oferenda à própria atemporalidade da narrativa, e desaparece no canto superior da tela.
Assim que desaparece, no entanto, uma borboleta cruza a paisagem aos olhos do
espectador: ψυχή, a palavra que em grego nomeia tanto a alma enquanto suporte da
identidade, como as borboletas.
Como nota Haroldo Bloom226, o Odisseu homérico está longe de ser o Odisseu de
Joyce, o “amistoso” Poldy; não é o homem moderno que não se precisa temer pois que já
aceita o que o sistema se o impõe: é tarefa de Odisseu viver no mundo pós-guerra, na
sociedade que vê suas teias de biopoder instáveis em uma realidade extremamente mais
complexa que a da bipolar Ilíada (ou do cenário-mundo pós 1989). Heubeck aponta, ainda,
para a atualidade da problematicidade, do valor limitado e relativo das normas, do próprio
questionamento do que é o ideal de mundo frente a uma realidade social em crise
extenuante: “o mundo mítico de sonho [...] torna-se contemporaneamente a imagem
espetacular do mundo real em que vivemos, no qual dominam a necessidade e a angústia,
terror e dor, e no qual o homem está imerso sem salvação”227 e é Steiner que, por fim,
diagnostica em Odisseu a marca de uma transição para uma vida mental “mais desconfiada da
convicção” 228, mais distante dos valores, de certa forma pueris, de Aquiles que, este sim, não
se questiona.
226
Apud Trajano Vieira, op. cit., p. 795.
Ibid., p. 798.
228
Ibid., p. 800.
227
119
120
Espero sinceramente que venha a ser tudo o
que nossa era não quer. Não omiti nenhuma
das ideias que me ocorreram para obstruir o
avanço do mundo, fiz tudo o que pude para
retardar o progresso. Quando ponho mãos à
obra, olho invariavelmente para trás.
- Edward Burne-Jones
123
3 CRÍTICA
Os contos de fadas não afirmam que os dragões existem. Isto todos já sabem. Eles
demonstram que os dragões podem ser mortos.
- Gilbert Keith Chesterton
Sófocles escreveu em Édipo Rei que aqueles que rapidamente tomam decisões, nem
sempre o fazem seguramente229: quando da constante observação dos diversos índices
econômicos e financeiros ligados à crise do crédito de 2008 e seus desdobramentos,
inclusive e principalmente os movimentos Ocupem, o mesmo pode ser dito do presente
trabalho, que, honestidade à prova, mais pilha sobre o genérico ensaístico do que sobre a
busca de reflexão quanto às possíveis soluções para uma sociedade que se encontra,
politicamente, em andrajos.
Foi Zizek quem perguntou, em Wall Street, frente ao inusitado da história (que
sempre o é), o que os manifestantes pretendiam com e após o movimento, sugerindo a
reflexão e, neste rastro, hoje parece precipitada e, quiçá, inocente, a leitura de uma
oligarquia financeira bestifera acachapando o “sonho americano”, como cristãos na arena
romana fossem, sem ter sido considerada a função do desejo desta mesma sociedade nas
políticas econômicas que são um continuum desde, pelo menos, a década de 1970: o fato que
se (im)põe, por fim e a cabo, é o de que o argumento de uma sociedade vitimada por
interesses escusos é non sequitur.
Como disse Zizek:
nesta etapa, devemos resistir precisamente a uma tradução assim apressada da
energia das manifestações para um conjunto de demandas pragmáticas “concretas”.
Sim, os protestos realmente criaram um vazio – um vazio no campo da ideologia
hegemônica -, e será necessário algum tempo para preenchê-lo de maneira
229
SÓFOCLES. OedipusTyrannus. Disponível em
<http://data.perseus.org/texts/urn:cts:greekLit:tlg0011.tlg004.perseus-grc1>. Acessado em 21 Junho de 2013.
φρονεῖνγὰροἱταχεῖςοὐκἀσφαλεῖς, 617, tradução nossa.
124
apropriada posto que se trata de um vazio que carrega consigo o embrião , uma
abertura para o verdadeiro Novo.230
Por meio do software MetaStockXenith, destinado ao acompanhamento e à análise em
tempo real de notícias, informações e índices do mercado econômico e financeiro, que foi
alimentado pelo banco de dados e pelo feed da agência Thomsom Reuters, observou-se os
seguintes fatos bastantes relevantes:
1. O crescimento econômico no biênio pré-crise, com uma estabilização dos noventa
maiores PIBs mundiais, foi atípico, só se comparando ao período de estabilização de
1905. A crise, assim, pode ser considerada como uma correção no comportamento
do mercado que não foge, pretexto algum, dos suportes e resistências definidos pelas
diversas ferramentas de previsão, como as proporções fibonacci, e.g.;
2. O mercado financeiro apresentou o mesmo padrão de queda de todas as crises
ocorridas desde a década de 1970, fazendo das comparações com a Grande Depressão
não mais que uma exageração e, cumpre-se notar, apresenta uma recuperação, até
então, inédita;
3. O comprometimento de 71% dos noventa maiores PIBs, mesma taxa da crise de
1914 e muito próxima da crise dos tigres asiáticos, já mostra aproximados 24% de
recuperação, também em correspondência ao padrão das crises dos últimos quarenta
anos;
4. O índice Dow Jones não só se recuperou como ultrapassou seus níveis pré-crise:
marcava 14,164.53 pontos em 2006, alcançou os 6,547.05 em 2008 e apresenta o
índice mais alto da história enquanto este trabalho é finalizado, marcando 15,543.74
pontos;
5. O índice de volatilidade VIX, indicador de aversão do mercado da bolsa de Chicago,
apresenta queda estável desde Setembro de 2011 e, atualmente, apresenta os
mesmos níveis de 2005 a 2007 nos 12.54 pontos;
6. As simulações de análise gráfica projetadas no passado, feitas por meio do já
mencionado software, mostram que 1 dólar americano aplicado na bolsa de Nova
Iorque em 1810, tendo como base de operações simuladas o índice S&P 500, mesmo
230
HARVEY, David; Slavoj Žižek, Tariq Ali et al. Occupy: movimentos de protesto que tomaram as
ruas. São Paulo: Boitempo Editorial, 2012, op. cit., p. 18.
125
com as diversas crises desde então e já considerada a perda inflacionária,
corresponderia hoje a 10.183 dólares americanos;
7. O índice Bovespa, apesar da queda acumulada de 21% em 2013, não considera a
valorização de 131% nas ações de smallcaps, que têm seus preços mais atrelados ao
mercado de consumo e menos ao mercado financeiro como ocorre com as blue
chips;
8. A constante valorização do dólar têm exigido leilões do Banco Central do Brasil para
o controle da variação cambial;
9. Os preços dos imóveis em Nova Iorque voltam a disparar e se tornam, novamente,
mercado de investimento internacional, com o metro quadrado avaliado em 32 mil
dólares americanos;
10. Desconsiderados os índices de subemprego, que são difíceis de ser calculados
acuradamente, após menos de cinco anos de crise os postos regulares de trabalho
nos Estados Unidos da América foram recuperados em aproximados 60%, a mesma
taxa de recuperação que levou dez anos na Espanha após a crise de 1977, seis anos
na Noruega após a crise de 1987, oito anos na Finlândia e dez anos na Suécia após a
crise de 1991;
11. A crise de 2008 corresponde a um dos três ciclos de queda no mercado de Wall
Street previstos pelas análises gráficas de tetos e suportes, estando dentro dos
dezesseis ciclos menores que compõem o longo ciclo que vai de 1949 a 2012 e
correspondendo ao terceiro período daqueles críticos que vão de 1949 a 1953, de
1978 a 1984 e de 2008 a 2012;
12. Por fim, neste longo ciclo, as taxas de retorno são positivas com uma média anual de
rendimento real de 7.48%.
Este encadeamento de índices permite colocar o sujeito moderno muito mais como
aquele do mal-estar fáustico-mefistofélico, ou como os desregrados pretendentes de
Penélope, que conformam um Estado crísico, do que como aquele conformado por uma
máquina opressiva que se o impõe: a crise de 2008 é antes política e subjacente à dinâmica
desequilibrada e instável inerente ao capitalismo - que se convencionou chamar de
democrático e que não é caracterizado pelos Trinta Gloriosos, que configuram exceção -e que
126
exprime sua condição normal no conflito inevitável entre mercado e política após a
anormalidade das décadas de 1950 a 1970.
O pressuposto do Estado de Bem-Estar é aquele de o capitalismo ser submetido a
amplo controle político para que a democracia seja, assim, protegida das leis do livre
mercado, o que leva a uma moralização da economia - id est, a supremacia dos direitos
sociais sobre as leis de mercado - desejável não fosse a conformação cindida do sujeito
moderno como esmiuçada no capítulo I: sobre a supremacia dos direitos sociais é colocada
ainda a supremacia do desejo individual. Tem-se, assim, o arranjo social e os interesses
individuais e plurais como fatores operantes exógenos às teorias econômicas e, muitas vezes,
contrários a elas, haja vista a alegação de que a econômica não submetia ao controle político
põe em risco a ordem social. Argumenta-se aqui, no entanto, que a crise é causada por
resposta políticas às demandas dos supostos direitos sociais, já que é esta política que
pretende manter o mercado em conformidade com os desejos que compõe a pluralidade
social.
Os Trinta Gloriosos foram os responsáveis pela consolidação de um imaginário onde o
progresso contínuo e ilimitado é possível e, mais, tal progresso constitui-se neste imaginário
em direito social, fato que compele aos criadores de políticas governamentais ao
contrabalancear de uma desaceleração impossível de ser evitada: ao final dos anos de 1960, a
expansão dos direitos dos trabalhadores às negociações coletivas e o comprometimento dos
Estados de capitalismo avançado com o pleno emprego deu gênese a um senso de padrão de
vida ascendente quase sinônimo de direito individual; este viria a ser o motor da primeira
crise, já que obrigava os governos a uma política de acomodação monetária baseada em um
índice de inflação que só se faria aumentar.
Goldthorpe231 aponta que este arranjo é expressão de uma sociedade anômala,
incapaz de definir os seus critérios de justiça social, posto que é arranjo necessário para que
o Estado continue a permitir que seus cidadãos corrijam os efeitos da desaceleração
inevitável do crescimento, uma vez que toda função produtiva tem seu limite dado. Afirmase, portanto, que a crise inflacionária daí decorrente foi a política imperativa para que se
231
GOLDTHORPE, John. The currentinflation: towards a sociologicalaccount. IN The politicaleconomy.
Massachusetts: Cambridge University Press, 1978.
127
evitasse o mal-estar social que adviria de uma taxa de crescimento de soma zero e que
frustraria o ideário de crescimento como direito civil.
A política que favorece a inflação, no entanto, é inviável em longo prazo, causando (i)
distorções nas curvas dos preços relativos e (ii) na relação entre as rendas fixas e variáveis e
os incentivos econômicos, o que obriga, por fim, ao desmantelamento dos arranjos salariais
coletivos e à instituição de uma política monetária austera -ações icônicas as de Reagan e de
Thatcher que, se solveram a disparada inflacionária, foi por meio da elevadíssima taxa de
juros e da eliminação de postos de trabalho para o descontentamento das sociedades que
encabeçavam.
Os custos políticos de tais decisões, no então, são profundos e colocam em risco não
só o governo, como o próprio sistema político, exigindo, assim, equivalente ao paliativo
inflacionário que reacomode o mal-estar social e tal alternativa satisfatória ao ideário de
progresso da Modernidade afluiu à política de dívidas públicas, introduzindo novos recursos
econômicos baseados em previsões futuras de acréscimo orçamentário, mas deslocando os
choques sindicais para as casas legislativas.
Este é, por direito, o fato gerador do neoliberalismo que culminou na crise de 2008:
é apenas através da desregulamentação do mercado financeiro que se pode contrabalancear
o esvaziamento do investimento privado que o aumento da dívida pública causa, dado que a
outra solução possível - uma nova elevação da taxa de juros - traria novo mal-estar social.
Com a crescente dívida pública, foi, também, crescente a desregulamentação do mercado,
contrabalanceada, desta vez, pela oportunidade de endividamento privado, política
econômica que substituiu as políticas sociais cada vez mais insustentáveis (insustentáveis
porque o bem-estar foi confundido com satisfação de pulsões, faça-se notar).
A sociedade americana não pareceu perceber, no entanto, que o mercado do crédito
era tão-somente substituição de políticas e fez das hipotecas de alto risco fonte para
consumo pessoal, além de utilizar os novos meios de crédito para lucrar com o aumento dos
bens imobiliários: a solução encontrada para que as políticas de habitação própria
continuassem a existir foi transformada em oportunidade de poder de compra instantâneo
hedonista. Com o aquecimento do mercado de crédito, o Federal Reserve System se viu
obrigado a uma redução da taxa de juros, enquanto Washington se comprometia com a
mantença de uma elevada taxa de emprego, com vistas a evitar uma recessão.
128
A insustentabilidade de tais ações se mostrou, finalmente, com a quebra de tantas
políticas “tapa buraco” em 2008; mas, o fato a ser considerado é o de que estas políticas
foram uma resposta ao desejo de consumo ilimitado como sinônimo de satisfação do desejo
e, novamente, ao assumir grande parte das dívidas do setor privado, os Estados
reestabelecem rapidamente os salários da sociedade - como os dados da Thomsom
Reuterssão capazes de demonstrar.
Existe, portanto, uma sequência lógica e de resultados previsíveis: (i) as demandas
dos sindicatos pelo pleno emprego e pelos reajustes salariais acima da desvalorização
monetária (ii) provocou uma inflação insustentável, (iii) combatida com o aumento da dívida
pública, esta obrigando a (iv) uma desregulamentação financeira, a fim de continuar a garantir
a suposta justiça econômica (v) por meio da cessão de crédito pessoal, que foi utilizado não
para usufruir dos direitos econômicos, culturais e sociais, mas de forma hedonista.
A questão que fica é até quando os Estados poderão garantir os desejos que seus
cidadãos encaram como direitos democráticos, em uma Modernidade cada vez mais em
frangalhos, ao mesmo tempo em que resguardam, de fato, a legitimidade democrática. O
cenário é de incerteza e, mesmo com os modelos econômicos mais avançados, a previsão
acurada de onde a próxima bolha se forma é improvável: é a voracidade irresponsável do
consumo que coloca a democracia em suspenso em países que se veem forçados à
austeridade para que as suas instituições sejam preservadas.
Tal afirmação pode soar absurda; mas, crê-se, lança luz sobre o sujeito histórico que
a conforma: não conceber o entrelaçamento da política e da economia como uma
comunidade de indivíduos é considerar aquilo que não é histórico e humano quando a
construção do ator social moderno é autor referente. Mais uma vez recorrendo à Marx232,
não é apenas o indivíduo que resulta das relações sociais, mas a sociedade é resultante dos
seus subsistemas econômico-sociais; assim, condicionar a reprodução social ao seu sistema
econômico é supor a centralidade do sistema materialista, modelo de análise que precisa ser
deslocado quando se pretende o retorno do ator.
Há, portanto, um colapso de sentido das ideologias do pós II Guerra, já que a cólera
pública não pode mais ser reduzida à injustiça social quando, patente, tem-se notado esforço
232
MARX, Karl. Teses sobre Feuerbach. Disponível em
<http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/cv000032.pdf>. Acessado em 05 Out. 2012.
129
político no sentido de satisfazer o desejo velocífero da sociedade contemporânea, sendo a
crise de seus sistemas não ponto fixo fora da produção da política, mas conformação das
contradições fundamentais inerentes ao ator moderno: o encanto da vitimização precisa ser
perdido, pois não é tão-somente o mercado financeiro que precisa se obrigar a agir
responsavelmente no ambiente social - e nem é o Estado que precisa impor, para a
insatisfação geral, uma ordem que seja vetor exógeno.
Se as instituições precisam permanecer abertas às demandas sociais, então se impera
que as demandas sociais partam do real sustentável e que criem direitos que possam ser
socializados dentro da capaz-produtividade da função de mercado atual e, aqui, vez mais, a
arte parece importante, posto que permite ao sujeito, mesmo em sua autonomia, pôr-se no
outro, separado e, também, separar-se233, saindo deste estado que, como o afirma
Krugman234, “satisfaz-se em infligir mais aflição ao aflito”235.
Que as manifestações sejam importantes para o refazimento das formulações
políticas, necessitam, para isso, agendas que ultrapassem a insatisfação frente ao fato de o
Estado não poder manter uma Modernidade que é, por si e por isso, esgotável. Muito se fala
da crise de representatividade política, mas pouco se questiona sobre quais interesses se
desejam representados: ocorre, fundamentalmente, que os governos se encontram presas de
um ideário irrealizável, de confusão ideológica e de percepções deturpadas sobre o que é
direito social e política econômica.
A situação é bastante complexa e expressa contradições na formação social que se
acumulam ao longo dos últimos dois séculos e que só recrudesce frente às propostas
eleitorais não factíveis que (co)respondem, ainda, ao imaginário dos Trinta Gloriosos.
Sobra muito pouco, destarte, da ética do homem tomista-aristotélico, do marxismoleninismo utópico e higiênico, da ecologia da Eco 92 ou do Rio +20: em seu lugar aparece,
desnudo pela suspeita, subversão da ordem que questiona o pensamento moderno das
instituições científicas estabelecidas, um sujeito que precifica o ego e veste seu desejo de
tecidos pesados - brilhantes, sim, mas que o densificam -, comprados com a prostituição de
233
ADORNO, Theodore W. Filosofia da nova música. São Paulo: Perspectiva, 2011.
KRUGMAN, Paul. Hunger games, USA. Disponível em
<http://www.nytimes.com/2013/07/15/opinion/krugman-hunger-games-usa.html?_r=0>. Acessado em 16 de
Julho de 2013.
235
Tradução nossa.
234
130
131
suas pulsões. E este sujeito moderno precisa ser criticado, precisa ou qualquer crítica ao
sistema estará sempre uma guerra atrasada - é o desejo contaminado de ὕβρις que confere
supremacia à régia ciência na construção e na validação do conhecimento que o justifica. Eis
o porquê do homem contemporâneo, malgrado seu impressionante acúmulo de dados,
parecer ser um alarve quando comparado a qualquer outro.
A visão do humano contemporâneo é, por força, necessariamente pessimista (ainda
que lhe seja precluso ser derrotista): há uma quase impossibilidade violenta de conciliar seus
desejos com políticas sociais prometidas e Bradley diz, ao comentar a tragédia
shakespeariana que
“o homem pode ser mal-aventurado e pode ser detestável, mas não é pequeno.
Pode ter um destino atroz e misterioso, mas não é desprezível. É necessário haver
nele uma grandeza extraordinária, a fim de que, em seu erro e em sua queda,
vejamos, com especial clareza, as possibilidades da natureza humana” 236
e o que se vê não é apenas a falência do projeto de Modernidade, ou a falta de substância
para a sua viabilidade, mas é, ainda, o resultado absolutamente diverso daquele pretendido:
uma nova ordem foi criada, mas não aquela que foi intencionada, fato que Clark aponta ao
afirmar que
“a perspectiva trágica nos ajuda. Ela nos autoriza a não enxergar uma forma ou
lógica - um desenvolvimento do passado para o futuro - nos últimos 100 anos. Ela
nos permite, creio que com razão, ver esse período como uma catástrofe no
sentido estrito da palavra”237
o que mais uma vez leva o foco à afirmação nietzschiana de que não somos material para
uma sociedade, pois que já somos uma sociedade do que não é mais que velho238: qual a
saída política, pois, para a posição do sujeito moderno a não ser manter a expectativa
perpétua, incontornável a não ser pelo aumento, em nível imprevisível, do mal-estar
civilizatório?
Talvez o “fator desesperança” seja o exato norteador de uma política que desista da
materialização de um τέλος da Modernidade que nem sequer chegou a ser, de uma política
que desmonte esta contemporânea que, vertiginosamente, ao colocar justiça e igualdade
236
A. C. Bradley. Shakespeariantragedy. Nova Iorque: Fawcett Publishers, 1968, pp. 28-29. Apud Clarck, op.
cit.
237
Clark, op. cit, p. 38.
238
A Gaia ciência, op. cit.
132
social conformadas à promessa do avanço, gera seus opostos. Se não existem propostas de
reformas ao capitalismo, mas há um excedente de resgate de suas instituições, é porque esta
é a exteriorização das pulsões do sujeito moderno e disso Clark conclui que
“não haverá um futuro sem guerras, pobreza, pânico malthusiano, tiranias,
crueldade, classes, horas improdutivas e todos os males que constituem a natural
herança da carne, pois não haverá futuro nenhum; só um presente em que [...] se
esforça para “reunir o material para uma sociedade” que Nietzsche pensava ter
desaparecido da terra”239.
As discussões de uma academia sempre centrada no conflito entre os direitos de
primeira geração e os direitos sociais soam a uma discussão há muito passada, que busca
conquistar terras incógnitas que nem sequer continuam a existir e, neste cenário onde “não
há futuro”, a ausência de certezas científicas é o que possibilita a emancipação frente às
ideologias de uma bipolaridade de direitos quase que naturalizada nas análises das diversas
crises: a crítica da crítica deve ser operada já que este é o seu papel, aquele de afirmar que
não há premissa segura em lugar algum.
Os movimentos ainda levantam poeira e, antes que alguma estabilidade, mesmo em
suas próprias manifestações, seja alcançada, não se pode fazer mais senão adicionar ruína à
ruína - ou calar. A urgência das leituras imediatas, das interpretações, dos modelos recai
sempre no capital, no sistema, na sociedade e nas relações de poder como se um “espectro
de agentes escusos rondasse o mundo”. Não se trata, no entanto, de defender o sistema,
mas de reestruturar as amarras entre o observável atual e o aparato crítico-acadêmico
destinado - necessário - à sua análise através de uma atitude obstinadamente realista e que
faça mais do que uma descrição iluminista do seu ὄντος:uma que também contribua para a
sua real-atualidade.
Os periódicos científicos relembram a todos, a cada dia, o alerta de Latour de que
“nunca fomos modernos”, posto que nos encontramos às voltas - ainda! - com novas
implicações dos cálculos de Galileu ou com inconsistências entre descobertas nos
aceleradores de partículas e a mecânica newtoniana. A complexidade das informações e sua
falta de locusno corpo atual de saber desfaz os limites traçados entre o pré-moderno e o
moderno o que faz com que no mesmo momento em que se tenta rever a teoria, no exato
239
Op. cit. P. 74.
133
tempo em que se tenta adicionar à ela substância real, o saber parece enfraquecer em uma
ironia condizente com o próprio projeto da Modernidade.
Mas a crítica que segue nos rastros marxistas-leninistas se mostra insatisfatória em
termos práticos quando se dirige ao capitalismo, ὄντος que se mostra amiúde forte demais
para ser encarado como fetiche e que esfacela se tratado como resultado de convergências
causais; tal dificuldade de análise pode ser aventada a uma construção histórica que remete à
pilha de desejos em mui antecedentes ao capital, fazendo com que cada crítica adicionada
pareça, de fato, uma perda lógica quando a própria ciência foi fetichizada.
Quiçá a crise atual e seus movimentos não sejam realidade observável, mas meio pelo
qual a observação de uma nova atitude realista se faça possível, já que, até o momento, as
teorias clássicas se provam de poucas posses quando a pergunta não é mais o porquê de não
ser o capital desejável, mas o de como o sabemos não desejável: é um filtro insatisfatório
para a política contemporânea que não responde, nem apresenta alternativa, à conjuntura
que se observa. Há que se compreender como os desejos dos atores se reúnem para
mostrar uma insatisfação não contra a ordem do capital, mas contra a sua sempre
profetizada - e nunca concretizada - falência: muito se fala de como o sistema oprime para
garantir a sua sobrevivência, mas pouco ou nada se aventa sobre como esta sociedade
suposto oprimida se organiza para que seja dada forma àquele mesmo sistema - e o
resultado disto é que, ao fim, a teoria não se mostra capaz de dominar o que ela própria
criou, reduzida a um discurso não mais que iconoclasta.
Se eu decidir ser um idiota, serei um idiota
com acorde próprio.
- Johann Sebastian Bach
137
4. ALGUMAS CONSIDERAÇÔES
Uma das dificuldades enfrentadas na elaboração do presente trabalho, mesmo e
principalmente no que concerne ao aparente avanço democrático almejado pelos
movimentos de ocupação pacífica do espaço público, são as recorrentes leituras permeadas
por uma crença essencialmente progressista, como se testemunhássemos um momento
regenerador do equilíbrio na dinâmica das forças produtivas.
No entanto, a viabilização de uma reforma pragmática que dê novo lugar ao malestar, posto que este não é de todo eliminável, só pode ocorrer quando do desmonte dos
projetos políticos que negam a dimensão subjetiva da conformação social - tão próprios das
políticas utópicas, do reformismo socialista ou do atavismo do século XX -, que vêm
perdendo força e se mostrando impossíveis de ser revividos de uma forma que nos permita
afastar o ciclo de horrores e fracassos das reivindicações sociais.
Quando se pretende ao estudo das ocupações pacíficas, que, de fato, têm
continuidade identificável desde o início do desmonte da URSS
240
, há que se considerar que
o avanço das desigualdades sociais e econômicas após os Trinta Gloriosos fez com que a
maioria das sociedades que hoje se encontram em meio a movimentos tais se voltasse para
as políticas de governo de direita, o que faz com que a forma atual do igualitarismo seja
aquela da política do ressentimento; aumenta, ainda, o mal-estar (já causado pelo
questionamento) o identificável de que essas desigualdades são fenômenos de um estado de
luta permanente que afasta qualquer esperança de paz: é a assunção desta admissão que
pode fazer com que políticas de contenção dos efeitos indesejáveis da busca infindável -e
fadada ao fracasso - pela plena satisfação das pulsões subjetivas seja núcleo político, uma vez
que tal movimento se conforma na instituição do Estado nacional. Se há que se concentrar
no problema da pobreza - e é claro que o ideário de consumo agrava este problema -, há,
também, que se manter no horizonte o capital como conformação do desejo-satisfação
moderno.
240
THE REVOLUTION BUSINESS. Journeyman Pictures, 2011, 28 minutos, cor. Arquivo eletrônico.
138
Como ficou claro ao longo deste trabalho, a ideia de buscar na literatura - e,
consequentemente, na arte - o tratamento do sujeito presente nos movimentos Ocupe veio
da leitura de Tudo que é sólido desmancha no ar, de Marshall Berman. Berman demonstra a
atualidade da literatura do século XIX no diagnóstico das cisões que conformam o sujeito da
sociedade tal qual a conhecemos; mas, não foram poucas as dificuldades em lidar com o
complexo da Modernidade. A pluralidade de significados e definições que o termo comporta
levou à opção por considerar a Modernidade como um momento de violência contra o
orgânico que era o ser: antes de ser uma ruptura que diga respeito somente aos valores que
regulavam a sociedade, é uma ruptura que se dá internamente, cindindo o sujeito, que fica
dividido entre as dimensões pública e privada que, violentamente, se afastam.
Que o capitalismo tenha transformado em mercadoria o humano, transformando as
suas relações intersubjetivas e relativizando a moral, nem por isso os afetos foram também
transformados em suas demandas - talvez em suas expressões -, levando a um embate entre
estas duas dimensões cada vez mais carregado de contradições. A escolha dos escritores
analisados - Goethe, Dostoievski e Homero - se deu por serem relatos de sociedades
doentes, doentes como a atual e da qual acredito serem os movimentos apenas um sintoma:
a desumanização da sociedade em Goethe, os problemas sociais de uma industrialização
atrasada em Dostoievski, mas que tinha por modelo os avanços do Ocidente, fato que
desalojava o mal-estar de sua comodidade, como visto em Notas do Subterrâneo, e a crise
instalada quando os arranjos de poder se desfazem como na realidade homérica.
Acredito, portanto, que as oposições extremas que se pode notar em tais
movimentos tenham sido trazidas à luz, assim como a natureza de tabula rasa dos protestos
que servem para que aqueles que deles participam projetem, ou deem corpo público, aos
seus conflitos subjetivos em um movimento de busca do reestabelecimento da ordem.
Tudo isto é consequência de um mundo que, como já apontado, está em permanente
estado de transformação, por paradoxal que soe. As sociedades de Goethe, de Dostoievski
e de Homero já não existem como tal, mas os valores que os primeiros descrevem e a
dinâmica da crise presente na obra do último continuam, se não as mesmas, mui pouco
alteradas: ainda somos sujeitos que desejam e, satisfeito o desejo, outro aparece em seu
lugar. A vitória de um projeto é gêmea da derrota de um novo desejo e, nesta dinâmica, é
quase impossível diferenciar a história dos vencedores daquela dos vencidos.
139
Se escolher um caminho para locar os manifestantes dentro do processo da
Modernidade foi difícil, torna-se impossível mensurar as consequências de tal mal-estar para
os indivíduos: só se pode fazer notar que, a cada tentativa de mudança, o problema se
mostra mais complexo. Espero que, apesar de todas as suas limitações, este trabalho possa
ensejar novas ideias na forma de encarar o lugar social do outro em sua subjetividade.
141
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