edição - Cândido - Estado do Paraná

Transcrição

edição - Cândido - Estado do Paraná
candido
N.º 5
dezembro
2011
Ilustração: Pedro Franz
jornal da biblioteca pública do paraná
O riso do
absurdo
Com humor e
experimentação
linguística, Manoel
Carlos Karam
construiu uma
obra transgressora
e singular
• Princesa | Livia Garcia-Roza • Dois Poemas | Josely Vianna Baptista • Digital Reverb Delay | Marcio Renato dos Santos
2 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná
editorial
A
experimentação linguística sem­­
pre foi um traço marcante da li­
teratura paranaense, em espe­
cial a feita em Curitiba. Assim
como Wilson Bueno e Jamil Snege,
Manoel Carlos Karam pautou sua
obra pela busca de uma linguagem
que fugisse dos padrões estéticos mais
convencionais da literatura brasileira.
O gosto por uma narrativa
anarquicamente calculada e o uso da
anáfora como recurso linguístico re­
corrente fizeram de Karam um dos
autores mais singulares da nossa lite­
ratura nos últimos 20 anos. Esses ele­
mentos da narrativa única de Karam
estão presentes nos dois contos inédi­
tos que o Cândido publica nesta edi­
ção em homenagem ao autor, morto
em dezembro de 2007. “Schoenberg,
Berg e Webern” e “Ilha de Nossa Sen­
hora Fulana de Tal e outros nomes”
fazem parte de Um milhão de velas
apagadas, livro ainda inédito do autor.
“Karam sempre insistiu no en­
redo labiríntico, nos protagonistas es­
piralados, na topografia onírica. Para
ele, a literatura era farra e fanfarra, era
a desforra do instinto contra a razão
burocrática”, escreve Nelson de Oli­
veira, em texto sobre a obra do autor
de Cebola. Já o escritor Luiz Andrioli,
que trabalhou com Karam no jorna­
lismo curitibano, relembra episódios
de sua convivência com o autor.
Na seção de inéditos, além dos
contos de Karam, a edição traz po­
emas de Josely Vianna Baptista, que
em janeiro lança, pela Cosac Naify,
seu livro Roça barroca, com traduções
para a língua portuguesa dos cantos
mitológicos dos Mbyá-Guarani do
Guairá. Contos do curitibano Mar­
cio Renato dos Santos e da carioca
Livia Garcia-Roza, além de crôni­
ca de José Roberto Torero sobre o
mundo onírico das bibliotecas, com­
pletam a edição.
Boa leitura a todos.
tiras
expediente
fabiano vianna
Governador do Estado do Paraná: Beto Richa
Secretário de Estado da Cultura: Paulino Viapiana
Diretor da Biblioteca Pública do Paraná: Rogério Pereira
Presidente da Associação dos Amigos da BPP: Gerson Gross
Coordenação Editorial: Rogério Pereira e Luiz Rebinski
Junior. Redação: Fernanda Rodrigues, Felipe Kryminice e
Guilherme Sobota Fotografia: Kraw Penas. Projeto gráfico
e diagramação: Versão Design. Colaboradores desta
edição: Fabiano Vianna, Francisco Gusso, Guilherme Caldas,
José Roberto Torero, Livia Garcia-Roza, Luiz Andrioli, Marcio
Norberto, Marcio Renato dos Santos, Marcelo Cipis, Nelson de
Oliveira, Osvalter Urbinati, Pedro Franz e Rafael Antón.
Redação: [email protected] - (41) 3221-4974
Biblioteca Pública do Paraná
Rua Cândido Lopes, 133. CEP: 80020-901 – Curitiba - PR.
Horário de funcionamento: segunda a sexta: 8h30 às 20h.
Sábado: 8h30 às 13h
cartas
Critérios para publicação de originais
Foi com alegria e grata surpresa que tomei contato com o Cândido.
Desde a escolha do nome até a linha gráfico-editorial, só percebo
acertos. Parece-me que o jornal supre, ao menos em parte, a
lacuna deixada pelo histórico Nicolau. Parabéns.
• Contribuição relevante ao jornal;
• Adequação às propostas do Cândido, que privilegia obras
inéditas que tenham relevância para a cultura.
Amarildo Anzolin — via e-mail.
Acabo de receber e ler os números dois e três do Cândido. O depoimento do Antônio Torres
está muito bom, também estão ótimos os textos de Joca Reiners Terron e José Castello
sobre Wilson Bueno. Um grande abraço e obrigado.
Carlos Herculano Lopes — Belo Horizonte/MG.
A edição do Cândido de novembro está maravilhosa. Parabéns!
Lidia Piski — Curitiba/PR.
Todos os originais enviados ao Cândido, serão analisados pelo
seu Conselho Editorial, que avalia a partir dos seguintes critérios:
Para obter a aprovação para publicação, as obras devem
preencher os seguintes requisitos:
• De estilo: correção, clareza, coerência, rigor, coesão
e propriedade.
• De conteúdo: nível apropriado de aprofundamento dos temas,
evidência de pesquisa e reflexão, consistência de argumentação
e elaboração; originalidade da abordagem.
O Conselho Editorial não analisa:
• Originais incompletos, em progresso ou ainda sujeitos
à correção do autor.
As obras devem estar corretamente padronizadas e revisadas,
de modo a permitir a leitura crítica e a análise final da obra.
Por sorte, ou talvez um presente do destino, em minhas mãos veio parar a edição de número
três do Cândido, jornal da Biblioteca Pública do Paraná. Diferentemente do que ocorre aqui
na cidade de São Carlos (SP), cujo governo municipal nada realiza em prol da literatura, o
governo do Paraná e esta Biblioteca estão de parabéns por tão magnifico trabalho cultural.
Além do Cândido, tenho recebido o jornal Rascunho, também editado neste Estado, periódico
dedicado à literatura. Acredito que este jornal, mais o Rascunho são os mais importantes
jornais dedicados ao mundo literário, sem parentesco com outro qualquer. Parabéns.
Serão imediatamente desconsiderados os originais que atentem
contra as declarações de direitos humanos e congêneres, as leis
e os dispositivos morais e éticos, nomeadamente os casos de:
• Violação dos direitos políticos, sociais, econômicos, culturais
e ambientais;
• Que fomentem ou mostrem simpatia pela violência e
desrespeito a crianças, idosos, bem como os preconceitos
de raça, religião, gênero etc.
Isaac Soares de Souza — São Carlos/SP.
Todos os textos são de responsabilidade exclusiva
do autor e não expressam a opinião do jornal.
jornal da biblioteca pública do paraná |
biblioteca afetiva
curtas da bpp
Samuel Leon
Uma descoberta que me fascinou tremendamente, a ponto de
buscar tudo o que havia sido publicado desta autora, foi Cristina
Campo, uma poeta italiana cujo verdadeiro nome era Vittoria
Guerrini, que, por se dizer portadora de Cristo nos campos do
III Reich, assumiu na literatura este outro nome. Cristina Campo
tem apenas um livro de poesia, chamado O passo do adeus, e
dois outros livros de ensaio, todos editados em Portugal. O que
me deslumbrou nessa escritora foi o seu fervoroso amor à beleza,
justamente numa época que repudiou o belo, inclusive dentro da poesia.
Há uma frase dela que marca minha vida: “a natureza não é senão metáfora
do sobrenatural”.
Mariana Ianelli nasceu em 1979 na cidade de São Paulo. Poeta, mestre em
Literatura e Crítica Literária, é autora dos livros Trajetória de antes (1999), Almádena
(2007) e Treva Alvorada (2010), entre outros, todos pela editora Iluminuras. Em 2011
obteve menção honrosa da Casa das Américas (Cuba) pelo livro Treva Alvorada.
Vive em São Paulo (SP).
Div
ulgação
Não me lembro quando li, mas com certeza era ainda adolescente.
Foi Rayuela (que é o famoso Jogo da amarelinha, do Julio Cortázar,
mas digo em espanhol porque foi nessa língua que li) e me marcou
de diversas maneiras. Primeiro por ser o primeiro livro de um
autor argentino e me apresentar o boom literário latino-americano.
Depois, porque o livro transgredia tantas “normas” que eu achava
que existiam na literatura que meu pensamento durante todo o
livro foi: “e um escritor pode fazer isso?” Reli na outra ordem proposta pelo autor
e fiquei ainda mais maravilhado. É um livro central na minha vida.
Marcelo Barbão é escritor e tradutor. Publicou Acaricia meu sonho (2007) e A mulher
sem palavras (2010). Vive, como não podia deixar de ser, em Buenos Aires (AR).
O arco-íris da gravidade, de Thomas Pynchon, me abriu muitas
portas e janelas quando li o romance pela primeira vez, aos
dezoito anos. É um livro de excessos: personagens demais,
palavras demais, páginas demais. Em resumo: um desvario
multifacetado, que mescla diversas linguagens, que é erudito ao
mesmo tempo em que está mergulhado na cultura de massa.
Sendo assim, retrata, como poucos outros livros, o que é viver nos
dias de hoje. Foi através de Pynchon que descobri o poder
da literatura contemporânea.
André Hilgert
Sizuko Takemiya é bibliotecária e chefe da Divisão
de Obras Gerais da Biblioteca Pública do Paraná.
Vive em Curitiba (PR).
Um Escritor na Biblioteca
O amazonense Milton Hatoum
é o décimo convidado do projeto “Um
Escritor na Biblioteca” de 2011. O en­
contro acontece no dia 6 de dezem­
bro, terça-feira, às 19h. Esta é a última
edição do projeto neste ano, que con­
tou com a participação de vários es­
critores do primeiro escalão da litera­
tura nacional, como Cristovão Tezza,
Elvira Vigna, Luiz Ruffato, Antô­
nio Torres, Marçal Aquino, Reinaldo
Moraes, Sérgio Sant’Anna e Luiz Al­
fredo Garcia-Roza. O projeto é uma
releitura de uma iniciativa homônima
realizada pela BPP nos anos 1980,
que promoveu conversas com auto­
res como Fernando Sabino e Antô­
nio Callado. O encontro deste mês
tem a mediação de Flávio Stein. En­
trada franca.
Adriana Vichi
Exposição Mães pela Igualdade
Em dezembro a Biblioteca Pública do Paraná dá início à exposição Mães pela Igualdade,
mostra fotográfica que reúne retratos e relatos de mães e filhos do grupo LGBT (Lésbicas, Gays,
Bissexuais, Transexuais e Travestis). Grande parte das obras expostas na BPP é fruto de um tra­
balho especialmente desenvolvido por artistas regionais, entre eles Rodrigo Wypych, Alexandra
Martins, Élvio Luiz dos Santos, Poliane Gomes e Alícia Peres. A inspiração para a mostra vem
do Projeto “Inside Out”, do fotógrafo francês JR, vencedor do prêmio TED de Direitos Huma­
nos 2011, que conta com peças de street art espalhadas em todo o mundo. O objetivo da mostra
é promover nova visão sobre os conceitos familiares vigentes na sociedade. A exposição acontece
entre os dias 6 de dezembro e 5 de janeiro, no segundo andar da BPP. Entrada franca.
Concurso de Redação Infantil
Antônio Xerxenesky é autor dos livros Areia nos dentes
(2010) e A página assombrada por fantasmas (2011). Vive em Porto Alegre (RS).
Em O nome da rosa, de Umberto Eco, revivi as lembranças do
tempo acadêmico. Época em que tive o primeiro contato com
a história das bibliotecas medievais. Nessa trama, o leitor se
depara com uma biblioteca ideologicamente característica
da época, quando a informação era extremamente restrita e
representava a dominação e o poder da igreja, além de um
misto de paixão, punição, crime e intriga.
Cândido 3
Kraw Penas
Em novembro, a seção Infantil da BPP promoveu o XVII Concurso Infantil de Reda­
ção. Setenta crianças de até 12 anos mandaram textos sobre “Ler é viajar o mundo todo sem
pagar passagem”. Dividido em três categorias (7/8, 9/10 e 11/12 anos), o concurso estimula a
leitura e o contato com os livros. Todos os participantes receberam um certificado de partici­
pação e um livro. Os três primeiros colocados em cada categoria também levaram para casa
um troféu. São eles: 7/8: Haila Angela Mendes, Vitor Stolf Packer e Winicius Rafael Mendes;
9/10: Silas Melo dos Santos, Leticia Maria Tchmola Alves e Weslwy Riska de França; Menção
honrosa: Aline Aparecida Firmino da Silva e Bianca Kimberly Proença; 11/12: Natália Soligo
Pizetta, Gabrieli do Amaral Oroski e Hamad Raslan; Menção honrosa: Isabelle Pereira Couto.
As redações estão disponíveis para consulta na seção Infantil, andar térreo da BPP.
4 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná
Fotos: Kraw Penas
Reinaldo
Moraes
Sétimo convidado do projeto
“Um Escritor na Biblioteca”,
o autor do clássico Tanto faz
fala sobre o hiato de duas
décadas longe da literatura
e de como concebeu
Pornopopéia, romance de
2009 que já foi alçado
à condição de clássico
contemporâneo
jornal da biblioteca pública do paraná |
R
einaldo Moraes nasceu em São Paulo, em 1950. É
escritor, roteirista e tradutor. Estreou na literatura
em 1981 com o romance Tanto faz, livro que
se tornaria cultuado por diversas gerações de
leitores. Em 1985 lançou Abacaxi, continuação
de seu livro de estreia. Ambos os romances foram
reeditados recentemente em um único volume pelo selo
Má Companhia, da Companhia das Letras. Depois dos
primeiros romances, o autor fez uma pausa na literatura,
ficando duas décadas sem publicar ficção. Voltou às
prateleiras com a narrativa infantojuvenil A órbita dos caracóis
(2003), seguido pelo volume de contos Umidade (2005).
Em 2009 Moraes lançou Pornopopéia, considerado pela
crítica seu melhor livro. O romance de quase quinhentas
páginas é uma viagem alucinada pelo underground
paulistano, protagonizado por um cineasta fracassado que faz
vídeos institucionais para sobreviver e que, segundo Moraes,
é “um personagem sem superego”. “Queria escrever sobre
um cara que fizesse o que passasse pela cabeça, tivesse uma
existência puramente instintual, totalmente dessublimado,
um cara que vai cumprindo uns papéis sociais, mas de uma
forma totalmente delinquente, totalmente anárquica, que vai
derretendo todos os vínculos com a sociedade, com a mulher,
com os amigos, com a família, com o filho”, diz o escritor,
que conversou com a jornalista Mariana Sanchez na sétima
edição do projeto “Um Escritor na Biblioteca”.
Durante o bate-papo, Moraes ainda contou histórias
irresistíveis, como seu encontro com Julio Cortázar em Paris,
falou sobre suas influências literárias, sobre os primeiros
escritores que leu e de sua rotina de trabalho. “Passei muito
tempo em que, quando tinha uma ideia, saía correndo para
os bares comemorar. Hoje, quando tenho uma ideia, corro
para o computador e escrevo.” Confira os melhores trechos
do papo com o escritor.
Primeira vez na Biblioteca
Eu lembro bem porque, no primá­
rio, estudava numa escola pública em São
Paulo que ficava na Praça da República.
O prédio existe até hoje e, dois quartei­
rões para cima, pela Avenida São Luiz,
fica a Biblioteca Municipal de São Paulo,
que foi recentemente restaurada. Chama­
-se Biblioteca Mário de Andrade, porque
foi ele quem a fundou, quando trabalhava
num órgão que viria a ser a Secretaria da
Cultura de São Paulo. Era uma bibliote­
ca bem bacana, bem gerida, depois passou
muitos anos em uma decadência tremen­
da, praticamente fechada, e recentemente,
há uns dois anos, foi reaberta, toda refor­
mada. Lembro que todos os semestres os
professores levavam aquela molecadinha
de sete, oito, nove anos, de uniforminho
azul, em fila indiana, à biblioteca. Quem
ainda não tinha ficha, fazia.
Descobrindo o conhecimento
Adorava a ideia de ser admitido
em um lugar onde, segundo a professo­
ra, estava todo o conhecimento humano.
Quer dizer, era como se você entrasse na
caverna do Ali Babá, onde todas as rique­
zas se encontravam, onde todas as coisas
que realmente importavam, coisas da cul­
tura, residiam. Também tinha o grande
prazer de você se sentir parte de um órgão
importante, como uma biblioteca muni­
cipal. Eu tinha carteirinha, devolvia os li­
vros religiosamente na data, nunca atra­
sava. Aí, entrei no ginásio, fui estudar em
outro lugar, mas sempre voltava àquela bi­
blioteca. Podia ficar zanzando pelas revis­
tas, podia pegar qualquer livro. Isso foi até
meus 19 anos, quando li pela primeira vez
Oswald de Andrade e Mário de Andrade.
Em 1967, quando tinha 17 anos, o Teatro
Oficina encenou O rei da vela, do Oswald.
Aí, os jornais começaram a dar muita ma­
téria sobre ele, e foi aí que passei a saber
quem ele era, o que era o Modernismo
brasileiro. Mas não havia livros, os livros
começaram a ser reeditados em 1969,
1970, em edições, acho eu, da [editora]
Cândido 5
Civilização Brasileira em parceria com o
Ministério da Cultura. Mas em 1967 eu
tava louco para ler Oswald de Andrade e
não tinha nada dele para vender na livra­
ria. Na biblioteca, o livro não poderia ser
emprestado, ficava confinado no depar­
tamento de obras raras. A mulher trazia
o livro e ficava te olhando. Eu li Serafim
Ponte Grande e Memórias sentimentais de
João Miramar ali, com uma pessoa me ob­
servando. Então, biblioteca foi uma coisa
que me acompanhou.
Estímulo para ler
Quem primeiro me incentivou
foram os professores mesmo. Na minha
casa, minha mãe lia alguma coisa, mais
revistas como Cláudia, Seleções, etc. En­
tão eu não tinha grande estímulo para ler
em casa. Mas a gente sempre tem, em al­
guma fase da vida, uma espécie de guia
literário — em muitas fases, aliás. Eu ti­
nha uma tia, irmã da minha mãe, que era
professora, ela adorava ler os brasileiros.
Lia todo Machado de Assis, todo José de
Alencar, Joaquim Manuel de Macedo, os
poetas românticos, etc. Essa tia tinha
uma biblioteca em casa. Era uma coisa
que eu achava de um supremo chique,
supremo privilégio. Era simplesmente
uma estante grande, com uma porta de
vidro de correr, com livros de coleções
diversas que ela e o meu tio compravam
dos vendedores ambulantes da cidade.
Aí fui crescendo e ficando cada vez mais
tarado por livro, ia fuçando essas coisas
mais bacanas, mais difíceis. Eu passava
férias lá e me esbaldava.
Diversão e transformação
As duas coisas sempre vêm juntas.
Lembro quando li Grande sertão: veredas,
com 18 anos, quando já era um leitor —
com essa idade, já tinha lido muito mais
do que a média dos garotos da época. Ti­
nha lido Padre Vieira, Machado, García
Márquez. Mas aí me meti a ler o tão fa­
lado e reverenciado Grande sertão: veredas,
que é um livro difícil de ler. Eu já tinha
6 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná
um ânimo de enfrentar as dificuldades
do livro e ver onde ia dar. Grande sertão
te ensina a lê-lo, você só tem que ter pa­
ciência, perceber como se arma a sintaxe
daquele cara. O Riobaldo fala um tipo de
português que ninguém fala em São Pau­
lo. Algumas coisas da fala dele parecem
com a fala dos caipiras que conheci no in­
terior, mas aí você lê o Camões e vê que
aquilo é parecido com Camões, aí percebe
que o cara está fazendo uma fusão de um
português quinhentista, camoniano, com
aquele português sertanejo — e contando
uma história que é uma aventura fantásti­
ca. Aquilo ali exige esforço. Mas acho que
quem gosta de ler, vai querer decifrar es­
critores que tenham uma prosa um pouco
mais intrincada, menos óbvia do que a li­
teratura de entretenimento.
Não tem jeito, as ideias
“
vão atrás de você. Às vezes
Literatura nas escolas
Já vi muita gente questionando a
forma como a literatura é introduzida nas
escolas. É um jeito meio forçado, porque
aquilo faz parte da história oficial da lite­
ratura. Você tem que ler o Machado [de
Assis], que é maravilhoso. Mas, de re­
pente, não está a fim de, com 14 anos, ler
Dom Casmurro, mas pode estar a fim de
ler outro livro. Mais engraçado, mais pro­
vocativo, mais irreverente. E isso a esco­
la não oferece. Se você não tiver um pai,
uma mãe, um círculo de amigos bibliófi­
los, tarados por literatura, não vai ter con­
tato com coisas que poderia ler e gostar. A
coisa tem que te interessar de algum jeito.
Leituras hoje
Na juventude, caía de boca na obra
dos autores. Bukowski, quando conheci, li
tudo. Até traduzi um livro [Mulheres, re­
editado pela L&PM em 2011]. Hoje em
dia, estou um leitor preguiçoso, mais frag­
mentado. Fico tentando ler Em busca do
tempo perdido. Como aprendi um fran­
cês razoável, pois morei na França, leio
em francês. Aliás, o Mario Sérgio Con­
ti está fazendo uma tradução que, pare­
ce, vai ter um português mais palatável.
Apesar de o Proust ter sido traduzido por
grandes caras, como Mario Quintana,
Carlos Drummond de Andrade e Lúcia
Miguel Pereira, nunca consegui passar
do primeiro livro, No caminho de Swann.
Agora reli o primeiro e comecei o segun­
do. Quer dizer, estou com 61 anos, faz
40 anos que quero ler Proust. Enfim, fi­
quei dispersivo. Boa parte da culpa pode
ser atribuído a um processo discreto de
esclerose progressiva, assim como à in­
ternet, essa grande fábrica de mentes es­
tilhaçadas, que reduziu a atenção das pes­
soas em cerca de 89,3%. Antigamente, as
pessoas tinham saco de pegar um livro
e passar duas horas lendo. Hoje em dia,
procuramos o mouse do livro.
Disciplina de leitor
Já fui mais disciplinado. Antiga­
mente fazia uma coisa que eu achava le­
gal: ler o livro de um cara, achar bacana
e sair lendo tudo que encontrava desse
autor. Começou assim com Machado de
Assis. Fazia amizades com caras que gos­
tavam de Machado. É como fazer ami­
zade por causa do Corinthians, do fute­
bol. Era tipo um clube. Então, trocávamos
cartas em estilo machadiano. Aí, lia tudo:
crônicas, romances, contos. Descobri
você vai fazer cocô, vem a
ideia e senta ali do seu lado.
Você está dormindo, olha para
o lado, a ideia está lá. Às
vezes você está transando,
vem a ideia, você broxa. Você
fica meio escravo.”
Guimarães Rosa e caí de boca naquilo. Aí,
descobri Cortázar, primeiro grande escri­
tor estrangeiro, li tudo dele.
jornal da biblioteca pública do paraná |
Busca pela liberdade
Escrevi Tanto faz entre 1979 e 1980,
o livro saiu em 1981, ainda dentro do perí­
odo ditatorial. Mas a verdade é que depois
de 1979, começou haver liberdade de im­
prensa, acabou a censura muito estrita aos
produtos de cultura de modo geral. Era um
momento em que a cultura brasileira ainda
era hegemonicamente de esquerda. Então,
todo mundo que estava escrevendo, fazen­
do filme, etc., 99,9% dessas pessoas eram,
de alguma forma, de esquerda. Então,
quando comecei a escrever, existiam dois
superegos: o superego ditatorial, que tam­
bém no meu caso combinava com a minha
casa, pai e mãe que adoraram os militares
no poder; e o superego da esquerda. Eu
era um tipo muito encontradiço na época,
aquele hippie marxista, calça boca de sino,
fitinha na cabeça, barba do Che Guevara,
lia um Marx ali e fazia umas maluquices
aqui. Então, também tinha esse superego
do comunismo pétreo, radical, ideológico e
cagador de regra. E, por outro lado, a coisa
da direita, da censura, da repressão. Saí en­
tão para uma terceira via, criando esse per­
sonagem picaresco [Ricardo, protagonista
de Tanto faz], que dá uma banana para a
direita e cospe o chicle na cara da esquerda.
Mistura rock com samba e bossa nova. Não
era uma coisa que inventei, era uma coisa
que se via, a moçada ali num choque, numa
pororoca ideológica.
Sucesso de Tanto faz e Pornopopéia
Foi um sucesso totalmente ines­
perado. Eu não esperava nem que fosse
editado, quanto mais publicado por uma
grande editora [Brasiliense]. De repen­
te abri a Veja e vi o cara falando de mim.
Trinta anos depois, isso aconteceu com
Pornopopéia, que escrevi achando que nin­
guém ia ler. Inclusive era uma coisa pela
qual eu me desculpabilizava, porque pen­
sava assim: “estou botando tanta maluqui­
ce nesse livro, que ninguém vai editar”. O
livro não parava de crescer, chegou a ter
mil páginas. Então, fiquei pensando: “um
livro desse tamanho, com o cara fazendo
Cândido 7
A jornalista Mariana Sanchez conversa com Reinaldo Moraes no auditório Paul Garfunkel.
“
Escrevo muito de manhã.
De manhã, reescrevo muito, na
verdade. À tarde, cochilo e leio.
Às vezes mais cochilo do que
leio. E à noite escrevo, depois de
uma cervejinha, um vinhozinho,
é gostoso para ter ideias.”
esse tanto de maluquice, com uma lingua­
gem totalmente desabrida, com palavrão
misturado com linguagem culta, persona­
gem totalmente amoral, irreverente e cí­
nico, ninguém vai ler”. Isso me deu uma
grande liberdade, como se tivesse escre­
vendo em finlandês. Porque ninguém vai
ler um livro no Brasil escrito em finlandês.
Alienação de Tanto faz
Eu achava essa abordagem um
erro. Porque o livro era político. Era um
livro que debatia essa questão, porque
botava a consciência do personagem no
meio da rua. No Tanto faz, o personagem
narrador fica debochando da esquerda, da
esquerda normativa, ideológica, dizen­
do “pô, esses caras querem controlar mi­
nha libido, eles que vão às favas, já che­
ga os milicos tentando controlar minha
vida por 20 anos, agora que estou aden­
trando a vida adulta não quero ninguém
me controlando”. Isso não era uma ide­
ologia minha, eu não era aquele carnei­
ro, aquela ovelha negra. Era um monte de
gente que estava entrando na soleira da
vida adulta, num mundo totalmente pop,
com o rock explodindo, como opção musi­
cal e também comportamental, tinha um
monte de coisa para ler, literatura ame­
ricana, por exemplo, que nunca foi mui­
to marxista, estava muito perto da vida,
Bukowski, John Fante, Henry Miller. São
caras que estão falando do corpo, do de­
sejo. Coisas da vida que não estavam ne­
cessariamente ligadas à luta de classes. O
foco não era esse. As pessoas estavam ten­
do outras experiências, com drogas, com
formas diferentes de relacionamento. En­
tão, era uma moçada com um programa
de vida que não cabia mais naquele molde
da esquerda clássica, em que “tomar cons­
ciência significa se engajar num processo
de superação histórica da burguesia”, etc.
Esse personagem de Tanto faz questiona­
va e era questionado dentro do livro. Para
mim, era um livro muito político, mas não
exatamente do jeito que a esquerda espe­
rava. O livrou tirou três edições: uma de­
las vendeu em semanas, porque saiu na
Veja, foi um auê.
8 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná
Encontro com Cortázar
Nos anos 1970, fiquei amigo do
Davi Arrigucci Jr., professor de literatu­
ra da USP, grande ensaísta, que sabe tudo
de Cortázar. Em 1979 ganhei uma bol­
sa para estudar em Paris. Então o Davi
falou: “já que você gosta tanto do Cor­
tázar, leva esse disco para ele”. Era um vi­
nil de O bicho, do Caetano Veloso. Porque
o Cortázar tinha vindo para o Brasil em
1972 e visto um show da Bethânia e do
Caetano — inclusive ele achou que a Be­
thânia era o Caetano na versão feminina,
estilo Shiva e Parvati, o deus feminino e
masculino dos hindus. Davi fez uma de­
dicatória e disse para eu levar para o Cor­
tázar em Paris, deu o endereço e tal. Pen­
sei: “porra, maravilha”. Cheguei lá, nem
tomei banho, peguei o telefone e liguei.
Ninguém atendeu. Tinha um amigo lá, o
Giba Vasconcellos, que me acalmou e tal,
falou que ele poderia não estar na cidade.
Eu ligava quase todo dia. Chegou o outo­
no e nada. Aí o Giba falou: “vamos lá na
casa dele”. Pegamos o endereço e fomos.
Ele morava numa rua no centro, num
bairro que tem um comércio muito chi­
que, mas na época tinha uns prédios resi­
denciais bem de classe média. O endereço
era assim: “Rua tal, número 68”. Chega­
mos lá e vimos as caixas de correio, típicas
dos prédios de Paris. Em nenhuma delas
estava escrito “Cortázar”. Aí, ficamos ali
pensando, decidindo entre ir embora ou
não, quando demos dois passos para fora,
vimos que existia o número 68 bis. Ten­
tamos naquele, e numa das caixas de cor­
reio estava escrito monsieur Cortázar. Mas
aí não sabíamos o número do apartamen­
to, porque só tinha o nome. Enquanto a
gente estava nessa discussão, ouvimos um
barulho nas escadas, por onde descia uma
equipe de TV, com todos os equipamen­
tos, todos loirinhos, e atrás deles o Cor­
tázar. Ele olhou para a gente. Eu e meu
amigo éramos duas figuras estranhas,
barbudões, cabeludões. Cortázar deve ter
pensado: “tô encrencado”. Olhei para ele,
não sabia falar quase nada em francês ain­
caras da TV esperando. Até que o Cor­
tázar disse: “tenho que ir com eles agora,
mas liga pra mim, meu telefone mudou,
vou viajar, mas daqui um mês você pode
ligar”. Fiquei um ano tentando ligar, mas
nunca mais o vi. Esse foi o dia em que co­
nheci Cortázar.
Eu não esperava nem que
“
fosse editado, quanto mais
publicado por uma grande
editora [Brasiliense]. De repente
abri a Veja e vi o cara falando
de mim. Trinta anos depois, isso
aconteceu com Pornopopéia,
que escrevi achando que
ninguém ia ler.”
da — só saía um bon jour, mas não sabia
exatamente em que hora falar isso —, en­
tão misturei um francês com português,
coisa horrível. E ele respondeu: “ah, o dis­
co do Caetano Veloso, que bom, você é
amigo do Davi, então?” Mandou um por­
tuguês ali, bicho, tranquilo, quase melhor
que o meu. E aí ficamos conversando, ele
um sujeito simpático, um pouco mais alto
do que eu, tinha uns 75 anos, mas sem um
fio de cabelo branco, uns olhos azuis, um
cara bonito para chuchu. Ficamos baten­
do um papinho, por uns 20 minutos, e os
Rotina de escrita
Escrevo em qualquer lugar. Na
verdade, não tenho disciplina. O único
hábito que tenho é ler jornal. Toda ma­
nhã leio a Folha de S. Paulo, o jornal físico
mesmo. Com uma caneca de café e pão
com manteiga do lado. Mas eu deveria
ter mais disciplina. O único jeito de en­
carar uma leitura mais complexa, como
Em busca do tempo perdido, seria ter um
horário destinado a isso. Mas eu vou len­
do por compulsão, quando tenho tempo,
vou e leio. Com a escrita é a mesma coi­
sa. Escrever não é uma coisa em que se
sai do zero. Sempre há uma ideia antes.
Agora, estou na metade de um roman­
ce. Então, estou já empurrando aquele
bonde todo, cheio de personagens e tal.
O barato é escrever todo dia, não deixar
de escrever nenhum dia, nem que você
mude apenas um verbo. Eu faço isso às
vezes até como um ritual, da mais baixa
superstição. Mesmo que eu esteja bêba­
do, de saco cheio, deprimido, sem tem­
po, cansado, com sarna, dor de dente, não
importa, tenho que ligar o computador,
nem que seja para alterar uma vírgula.
Isso religa. Religa o cérebro.
Horários
Escrevo muito de manhã. De ma­
nhã, reescrevo muito, na verdade. À tar­
de, cochilo e leio. Às vezes mais cochilo
do que leio. E à noite escrevo, depois de
uma cervejinha, um vinhozinho, é gostoso
para ter ideias. Escrevo sem muito com­
promisso, se não ficar bom, dane-se. Aí,
de manhã seleciono, edito, etc. Não tem
mistério, o dia tem vinte e quatro horas só,
não tem como inventar muito. Você tam­
bém tem que comer, dormir, namorar, etc.
A origem de Pornopopéia
Era um conto que eu já tinha escri­
to há um tempo e que entraria no Umidade, que lancei em 2005. O editor Luiz
Schwarz, da Companhia das Letras, às
vezes edita, ele mesmo, os seus autores.
Como foi ele quem editou o Tanto faz,
pela Brasiliense, quando fui fazer esse li­
vro de contos, ele pegou os textos e edi­
tou. Imagina, o cara deve ser ocupadíssi­
mo, para mim foi uma grande honra ter o
dono da editora fazendo a edição do meu
livro, lendo os contos, comentando. Esse
conto era um deles, era sobre uma gran­
de suruba, uma orgia que se passa num
centro de estudos neo-brâmanes, que o
cara chama de surubrâmane. Um conto
em que um cara chega para assistir a um
recital de cítara de um amigo e, quando
ele percebe, está pelado e todo mundo tre­
pando. O recital de cítara vai dar nisso. Aí,
o Luiz Schwartz perguntou: “quem é esse
cara, ele é só amigo do tocador de cítara?
Isso aí não vai funcionar como conto, não
tem começo e não tem fim”. Concordei
e o conto não entrou no Umidade. Mas
aí fiquei com aquilo na cabeça, então es­
crevi o começo e o fim. Fui trabalhando
para trás e para frente, controlando isso e
inventando, então, quem era aquele cara.
Personagem sem superego
Enquanto fiquei cogitando essa
questão da trama, de dar uma lógica, uma
substância para o personagem, fazer o cara
ficar mais de carne e osso, pensei em um
projeto que já vinha fermentando em mi­
nha cabeça há um tempo: fazer um per­
sonagem sem superego. Um cara que fi­
zesse o que passasse pela cabeça, tivesse
uma existência puramente instintual, to­
talmente dessublimado, um cara que vai
cumprindo uns papéis sociais, mas de uma
forma totalmente delinquente, totalmen­
te anárquica, que vai derretendo todos os
vínculos com a sociedade, com a mulher,
com os amigos, com a família, com o filho.
Quer dizer, um personagem que reivindi­
ca uma liberdade para além de qualquer
jornal da biblioteca pública do paraná |
Cândido 9
Antigamente, as pessoas
“
tinham saco de pegar um livro
e passar duas horas lendo.
Hoje em dia, procuramos o
mouse do livro.”
código moral, ético, mas que estivesse in­
serido em um contexto realista. Que não
fosse um monstro. Não era esse tipo de
ausência de superego que me interessa­
va, era um cara que poderia ser qualquer
um de nós, que está no trabalho, nas ruas,
nos bares, um cara comum. Aí eu pensei:
“puta, o cara que eu estou querendo fazer
é esse fulano que está nessa surubrâmane”.
Mirisola
Um dos caras mais interessantes
que li nos últimos anos é o Marcelo Miri­
sola. Ele escreveu Notas da Arrebentação, O
herói devolvido, Fátima fez os pés para dançar na chopperia, entre outros. Foi o primei­
ro autor no Brasil, depois do Guimarães
Rosa, que criou uma língua para escrever.
Ele não escreve na minha língua, nem na
sua. Ele tem uma sintaxe própria, reorga­
nizou o léxico para dar outros sentidos a
adjetivos e palavras. E tem uma visão total­
mente anárquica e suicidária, impossível de
se domesticar. Meio difícil de ler também.
Ele foi aplainando essa sintaxe, bota aforis­
mos, cusparadas, tem umas abjeções sexu­
ais, o avô que transa com o neto, pedófilos,
mas aquilo também vai sendo diluído por
uma levada quase filosófica na prosa dele.
Autores contemporâneos
Tenho muitos amigos escritores.
Gosto muito do Antonio Prata, cronista
maravilhoso, que conheço desde quan­
do ele tinha três anos, filho do Mário
Prata. É um Rubem Braga repaginado,
modernizado. Como ficcionista, tem o
Milton Hatoum. Conheci o Milton em
1979, quando eu estava escrevendo o
Tanto faz e ele esquematizando o Retrato de um certo oriente, primeiro livro
dele, que é fantástico. Mas não tão fan­
tástico quanto seu segundo romance,
Dois irmãos, que está no nível de Ma­
chado de Assis, maravilhoso, uma pro­
sa mais tradicional, mais discursiva, que
não traz muita atenção para sua fatura,
sua linguagem. É a estratégia contrária,
fazer uma prosa que flua porque o inte­
resse está em outro lugar. Ao contrário
do Mirisola.
Processo criativo
Nunca fico escrevendo qualquer
coisa para ver onde vai dar. Quero contar
uma história, sempre tenho um núcleo.
Aquilo pode virar qualquer coisa, pode vi­
rar um início de romance abortado, que
depois vai virar um conto, ou o contrário.
Mas sempre parto de alguma coisa que já
está feita. Quer dizer, eu fiz alguma coi­
sa antes, e depois utilizo. Gosto muito de
mexer, fuçar. Você fica trabalhando todo
dia numa coisa, as ideias vêm. Não tem
jeito, as ideias vão atrás de você. Às ve­
zes você vai fazer cocô, vem a ideia e senta
ali do seu lado. Você está dormindo, olha
para o lado, a ideia está lá. Às vezes você
está transando, vem a ideia, você broxa.
Você fica meio escravo.
Hiato na literatura
Eu não escrevia literatura porque
não parava de escrever. Não escrevia li­
teratura porque estava escrevendo nove­
la, roteiro institucional, traduções, sem­
pre com a bunda diante do computador,
escrevendo para viver. Aí, virou o ganha­
-pão em várias modalidades. Virei aque­
le escritor de hobby. Passei muito tem­
po em que, quando tinha uma ideia saia
correndo para os bares comemorar que
tinha tido a ideia. Hoje, quando tenho
uma ideia, corro para o computador e es­
crevo. Acho que é uma questão hormo­
nal, têm menos hormônios me incomo­
dando, me chamando para o crime. É só
isso, na verdade. Escrever é uma coisa
muito física, muito ligada à vida concre­
ta. Você precisa de coisas mínimas: soli­
dão, silêncio. Você não pode ter o cora­
ção aos pulos porque os credores estão
dando picaretadas nas paredes ou por­
que sua mulher está dando para o vi­
zinho. A realidade não pode estar que­
rendo morder sua canela o tempo todo.
Você tem que botá-la ali num cantinho.
Tem que ter uma torre de marfim. Es­
critores descobrem a torre de marfim em
vários lugares. Cervantes, por exemplo,
na prisão de Madri, que não devia ser
exatamente o Hilton Bangkok, Balzac
vivia perseguido pelos credores, sempre
se escondendo em Paris. Baudelaire vivia
perseguido por si mesmo, pela sua lou­
cura total, ou por uma mulher que queria
esfaqueá-lo. Escrever é naquela hora em
que não tem uma mulher enfiando a faca
em você. Você precisa ter esse momento.
Precisa ter tempo, dinheiro. Tem que tra­
balhar, precisa ter um break. Outra coisa
que é bom para escrever é estar vivo, tem
que contar com isso. A hora que não ti­
ver mais fica difícil, quer dizer, depende
de uma psicógrafa. g
Próximo convidado do projeto
“Um Escritor na Biblioteca”:
• milton hatoum
6/12
Às 19 horas. Entrada franca.
10 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná
crônica
Modesto informe
sobre as bibliotecas
do oriente e d’além
(Documento encontrado na
bi­­­blio­­­­teca de Tinos, supostamen­­­te
escrito por Maffeo Polo)
Trazi­­­­do à luz por José Roberto Torero
P
elos vinte e quatro anos que viajei
com meu sobrinho Marco Polo,
vi coisas que meus olhos mal pu­
deram acreditar, ouvi histórias
que minhas orelhas quase não creram e
senti cheiros que meu nariz por pouco
não conseguiu suportar.
Mas, de tudo o que vi, ouvi e res­
pirei, o que mais me impressionou foram
as bibliotecas. Talvez por gostar delas as­
sim como outros homens amam bode­
gas, bancos e bordéis, foram as bibliote­
cas que mais me chamaram a atenção.
Eu, que pensava que elas eram
sempre iguais, um lugar cheio de livros
para serem consultados, encontrei no
oriente bibliotecas de tantos modos e for­
mas que só o descrevê-las já encheria uma
outra biblioteca. Por isso, serei modesto e
apenas direi como eram algumas delas.
Em Khubeis, além do deserto de
Lut, há uma curiosa biblioteca forma­
da apenas com livros em branco, pois
o povo da cidade não sabe ler. Porém,
como a gente de Khubeis ouviu dizer
que folhear livros é algo que traz res­
peito e nobreza, a cidade construiu uma
biblioteca, que está sempre lotada por
seus vaidosos analfabetos.
Em Arzinga, perto do Monte
Ararat, há uma biblioteca que possui pe­
sados livros sobre matemática, grandes
arrazoados teológicos e longos discursos
de reis, ou seja, leituras que dão muito
tédio. Por isso a biblioteca, muito sensa­
tamente, em vez de cadeiras, usa redes,
de forma que os leitores podem ceder ao
inevitável sono e dormir à vontade.
A biblioteca de Balkh fica numa
grande e estreita torre, que tem em seu
interior uma escada em espiral. Seus li­
vros ficam numa longa prateleira que
segue a escada do começo ao fim, com
exatamente um livro por degrau. O
curioso é que a regra da biblioteca diz
que os leitores têm que ler primeiro o
primeiro livro, depois o segundo, só en­
tão o terceiro e assim por diante. Até
hoje ninguém chegou ao topo da tor­
re, onde está o livro derradeiro, o da sa­
bedoria suprema. Uns dizem que é um
pergaminho escrito por deuses. Outros,
que é um livro de piadas.
Qazan é a capital da Tartária,
país dominado há muito tempo pelo rei
mongol Kublai Khan, neto do poderoso
Gengis Khan. Kublai não aprecia mui­
to as pessoas que têm ideias diferentes
das dele, e tanto é assim que, na enor­
me biblioteca de Qazan, todos os seus
exemplares são de apenas um livro: As
memórias e as ideias de Kublai Khan,
soberano das terras e almas da Tartária.
A Biblioteca de Qazan está sempre va­
zia, sendo frequentada apenas de quan­
do em quando por funcionários públi­
cos que querem subir de posto.
Em Kan-Cheu há uma curiosa
biblioteca feita para guerreiros que per­
deram os braços. Os livros são colocados
abertos sobre suportes, de forma que os
leitores podem virar as páginas apenas
com a língua. Para estimular a leitura, os
livros de Kan-Cheu são impressos em
papéis de variados sabores, desde a for­
te carne de bode até o delicado pêssego.
Assim, muitas vezes os leitores acabam
escolhendo livros não por seu gosto lite­
rário, mas pelo gastronômico.
No deserto de Taklamakan há
uma carroça puxada por dois camelos que,
na verdade, é uma biblioteca. Seu único
funcionário passa o tempo atravessando o
deserto de um lado para o outro, empres­
tando e recolhendo livros. A carroça só
possui obras sobre viagens, mas nenhum
deles é sobre o deserto de Taklamakan, de
modo que os leitores que pegam os livros
desta biblioteca ambulante sempre fazem
duas viagens ao mesmo tempo, uma com
os pés e outra com a cabeça.
Triste fim teve a biblioteca de
Kashgar, que só possuía livros de histó­
rias de dragões. Para causar ainda mais
medo aos leitores, a biblioteca de Kash­
gar só funcionava à noite, sendo ilumi­
nada por velas. Porém, um dia, um leitor
mais impressionável assustou-se de tal
maneira que derrubou sua chama numa
das cortinas, incendiando a biblioteca,
que naquela noite cuspiu fogo de suas
janelas como se tivesse se transformado
num de seus personagens.
Outra famosa biblioteca que fe­
chou suas portas foi a de Si-ning, pelo
motivo de ser perfeita demais. Ela con­
tinha tão somente livros eróticos, mui­
jornal da biblioteca pública do paraná |
José Roberto Torero
Ilustração: Guilherme Caldas
Cândido 11
tos trazidos da Índia, com ilustrações
fantásticas, de rara beleza e raríssimo
realismo. A biblioteca era decorada com
tapetes em vez de cadeiras, de modo
que os amantes podiam ler deitados um
ao lado do outro. Com isso, em poucos
anos cresceu tanto a população de Si­
-ning que as autoridades tomaram por
bem acabar com a biblioteca.
Em Trebizonda, a cidade das
amazonas, os livros não são escritos
em papéis, mas tatuados no corpo de
belos homens, que vivem na biblio­
teca esperando para serem lidos pe­
las guerreiras. Elas tocam-lhes os cor­
pos de todos os jeitos, apalpando uma
parte, esgarçando outra, levantando
aqueloutra, como se virassem páginas.
O triste é que, quando os homens en­
velhecem e suas peles ficam murchas,
embaralhando as letras, são eles quei­
mados, assim como se faz com alguns
livros roídos pelas traças.
Atravessando o rio Tigre chega­
-se à cidade de Bandahar, onde há uma
singular biblioteca em que os livros são
escritos pelos usuários. Ou seja, cada
vez que alguém lê um livro, acrescenta­
-lhe uma frase, um parágrafo ou mes­
mo uma página, de modo que, assim
como a história do mundo, as histórias
dos livros jamais têm um fim e são es­
critas por todos.
E em Tinos achei a curiosa biblio­
teca das mentiras, que não aceita para suas
prateleiras nenhum escrito que tenha um
pingo de verdade, só aceitando livros, car­
tas e folhas com coisas inventadas, por­
que dizem os bibliotecários de Tinos que
as verdades mudam com o tempo, mas as
mentiras são sempre mentiras, sendo por
isto muito mais honestas e confiáveis.
Maffeo Polo, 12 de dezembro de 1296. g
José Roberto Torero é paulista, autor do bestseller O Chalaça (prêmio Jabuti em 1995) e de
Xadrez, truco e outra guerras, entre outros. Seu
mais recente livro é O Evangelho de Barrabás,
escrito com Marcus Aurelius Pimenta.
Vive em São Paulo (SP).
12 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná
entrevista | michel laub
“Não há como melhorar a
escrita sem ser um bom leitor”
Renato Parada
jornal da biblioteca pública do paraná |
Um dos autores mais
talentosos de sua geração,
Michel Laub também tem
se destacado comandando
disputadas oficinas de
criação literária
felipe kryminice
D
esde 1808, ano que marca o nas­
cimento da imprensa brasileira,
nossa literatura tem mantido uma
relação epidérmica com o jornalis­
mo. Um produtivo diálogo entre a vida
nas redações de jornais e a atividade so­
litária da literatura legou às letras brasi­
leiras o surgimento de nomes como Ma­
chado de Assis, Lima Barreto, Nelson
Rodrigues e Caio Fernando Abreu.
Embora afirme que “o jornalis­
mo é o contrário da literatura no méto­
do, nos meios e nos objetivos”, o escritor
Michel Laub trilhou um longo e impor­
tante caminho no jornalismo até chegar
ao primeiro time da literatura nacional.
Editor da revista Bravo! por oito
anos, Laub é formado em Direito, profis­
são que chegou a exercer por poucos me­
ses em Porto Alegre. Também não con­
cluiu a faculdade de jornalismo, profissão
em que se consolidou no meio cultural.
“Em toda trajetória profissional há um
misto de vocação e sorte (ou azar)”, diz
o autor sobre o início de sua carreira no
jornalismo.
Laub estreou na ficção em 1998,
com o livro de contos Não depois do que
aconteceu. Mas foram romances como
Longe da água (2004), O segundo tempo (2006) e O gato diz adeus (2009)
que lhe garantiram lugar de destaque
no cenário literário brasileiro. Diário
da queda (2011), seu mais recente li­
vro, foi vendido para o cinema e terá
edições na Espanha e na Alemanha.
Na entrevista a seguir, Laub fala sobre
como o jornalismo pode ajudar um es­
critor a tirar “as impurezas não propo­
sitais” do texto literário e sobre os prin­
cipais desafios de um escritor iniciante.
É possível notar na sua obra uma característica marcante de estilo: a frase longa, sintaticamente trabalhada, que adia por alguns momentos o
clímax do enunciado. Essa é uma característica que foge do texto jornalístico convencional, marcado pela
pretensa objetividade e pelas frases
curtas. É possível afirmar que sua
profissão tem pouca — ou nenhuma
— relação com a sua literatura?
O jornalismo é o contrário da literatu­
ra no método, nos meios, nos objetivos.
Agora, algo da experiência de editar um
texto eu acabo usando na hora de escrever,
ou ao menos num segundo momento da
escrita, digamos — quando eu pego um
rascunho e dou ordem a ele, tiro as impu­
rezas não propositais e tal. Também algo
da experiência de ser jornalista, que obri­
ga você a treinar seu senso de observa­
ção e ficar mais cético em relação às coi­
sas, o que pode ser bom para a literatura.
Seus livros, em sua maioria, são marcados por narrativas não lineares. Quais
foram as leituras que moldaram essa
preferência?
Não sei se as leituras moldaram isso. E
nem se são narrativas não lineares. Só se
for no sentido tradicional de início, meio
e fim, em ordem cronológica, o que, de
fato, os meus livros não têm. Mas as his­
tórias que eles contam, que se juntam em
fragmentos e recursos do gênero, até que
são bem tradicionais.
Diário da queda se passa em Porto Alegre e lida com temas do judaísmo. O
livro saiu no ano da morte de Moacyr
Scliar, escritor gaúcho e judeu. Qual
era a sua relação com a obra dele?
Em termos de influência, nenhuma. Mas
eu gostava muito de algumas coisas que
ele escreveu, em especial os contos que
tratam de crianças perversas e de A majestade do Xingu, para mim o melhor ro­
mance dele (embora não o mais típico).
Pessoalmente, o Scliar foi um cara muito
querido por todos e sempre que pôde me
ajudou (a mim e a muitos outros autores
que estavam começando).
Em Diário da queda você faz diversas
referências ao livro É isto um homem?,
de Primo Levi. Utilizar a literatura
como temática pode se tornar algo recorrente demais para o escritor, a ponto
de se tornar um lugar-comum?
Como tudo em literatura, depende da
forma como se usa. No caso citado, o livro
tem uma função muito específica dentro
da história que me propus a contar, e seria
impossível contá-la sem citá-lo.
O jornalista Paulo Werneck, numa resenha de Diário da queda na Folha de S.
Paulo, disse que “a literatura gaúcha,
neste início de século, já sem tintas regionalistas, se firma como principal celeiro de escritores brasileiros”. Qual é a
sua impressão sobre a literatura gaúcha
contemporânea? É possível identificar
uma “marca” da literatura gaúcha, paranaense ou paulista?
Hoje em dia é muito complicado falar
em afinidades estéticas regionais. As pes­
soas da mesma idade têm acesso a infor­
mação do mundo todo via internet, este­
jam elas morando em Porto Alegre, em
Curitiba ou em Manaus. Então não há
por que eu ter mais afinidade com meu
vizinho de quem não sei o nome do que
com alguém que mora em outro Esta­
do, mas conversa comigo via redes sociais
todos os dias. O que há em Porto Ale­
gre são as oficinas literárias, um circui­
to regular de feiras do livro, índices bons
de leitura entre a população, esse tipo de
coisa, então é claro que há mais estímulo
para que surjam escritores lá do que em
Cândido 13
locais onde não há nada disso.
Você foi editor-chefe da revista Bravo!.
Como essa experiência de editar uma
revista de cultura, que fala sobre diversas manifestações artísticas, te influenciou como escritor? Ou isso não foi
importante para o seu trabalho como
ficcionista?
O trabalho de editor, como falei, me in­
fluenciou na hora de ajeitar um texto,
ver o que funciona ou não nele em ter­
mos de ritmo, vocabulário, ideias. Isso
pode ser muito útil na literatura, mas
pode atrapalhar também, tirar dela cer­
ta espontaneidade.
Você é formado em Direito, mas sempre trabalhou com jornalismo. Como
você foi parar nas redações? Você também foi editor da Bravo! bastante jovem, como isso aconteceu?
Por uma série de circunstâncias. Um aci­
dente grave de carro me fez decidir tran­
car a faculdade de Direito e passar um
tempo viajando. Escrevi um diário du­
rante essa viagem. Um jornalista ami­
go da família leu esse diário e me cha­
mou para fazer matérias na revista onde
ele trabalhava (a Carta Capital). Um co­
lega dele leu essas matérias e mais tarde
me chamou para fazer parte da equipe da
revista que iria fundar (a Bravo!), e por
aí vai. Em toda trajetória profissional há
um misto de vocação e sorte (ou azar).
Numa entrevista recente, você disse o seguinte: “O importante mesmo
são as ideias. O estilo vai se adequar a
isso, de uma forma ou de outra, quase
como se fosse um mero instrumento.
É um exagero, claro, mas tem um fundo de verdade, que sinto cada vez mais
no que escrevo: a irrelevância, por vezes, de ficar ajeitando muito, fazendo
muito rococó”. Em outras palavras, o
que interessa mesmo é saber contar
uma boa história?
Não. Tudo interessa: ideias, linguagem,
14 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná
entrevista | michel laub
ritmo narrativo, história (ou falta de his­
tória). Cada escritor opera de um jei­
to. Tenho a sensação de que meu últi­
mo livro, Diário da queda, vale mais pelas
ideias e a história do que pela linguagem
em si. Mas ele não deixa de ter um tra­
balho até que bastante elaborado de lin­
guagem (custou meses e meses de cha­
teação, posso garantir). Como disse na
entrevista, claro que a frase é um exagero.
Sem linguagem, seja ela opaca ou trans­
parente, sofisticada ou simples, não se vai
a lugar nenhum.
Você participou da oficina de criação
literária do Assis Brasil e hoje ministra suas próprias oficinas. Desde que
surgiram, as oficinas de criação literária despertaram debates acalorados
sobre sua eficiência. Como são suas
oficinas e qual o beneficio que elas
trazem a quem quer iniciar uma carreira literária?
São oficinas relativamente curtas, que
trabalham com o gênero conto e a par­
tir de exemplos concretos, de textos pro­
duzidos pelos alunos. Procuro fazer com
que o cara saia lendo melhor do que lia
quando entrou. Já é um passo importan­
te, maior do que muita gente pensa. Não
há como melhorar a escrita sem ser um
bom leitor — dos textos alheios e dos
seus próprios.
William Faulkner dizia que a literatura é baseada num tripé: observação, experiência e imaginação. Para você, qual
dessas qualidades um escritor deve cultivar com mais afinco?
Imaginação não dá para cultivar. Ou se
tem, ou não se tem. Os outros itens tam­
bém dependem pouco de vontade: ex­
periência você pode buscar ter, mas só o
tempo traz algo significativo nessa área.
Até porque isso pode significar passar os
anos viajando, vivendo perigosamente,
bebendo, trabalhando num escritório ou
dormindo no seu quarto — um escritor
de talento vai transformar qualquer des­
Renato Parada
sas situações em boa literatura, e um
sem talento, não. Quanto à capacida­
de de observação, há alguma margem
para melhora aqui e ali, mas pouca
— no fundo, você nasce com isso ou
não. Em literatura, a única coisa que
dá para “cultivar com afinco”, no sen­
tido de treiná-la e desenvolvê-la, é
a técnica. Por meio dela até dá para
driblar a falta de um dos itens do tal
tripé. Mas driblar dois ou os três ao
mesmo tempo fica difícil.
Depois que começou a publicar e
se tornou um escritor reconhecido no cenário nacional, o que mudou em sua rotina de leitura? Lê
menos ou mais? Como diz Raduan Nassar, consegue afiar a lâmina
com as leituras?
É a mesma coisa. Se algo mudou
nesse tempo, foi a internet, que me
faz ler menos livros longos e mais
textos curtos e bobagens variadas.
Mas são fases. Agora, por exemplo,
ando sem paciência para ficar tantas
horas na frente do computador e vol­
tei a ler bastante ficção, o que andei
uma época sem fazer.
Em uma entrevista você dizia que,
quando começou a escrever, tentava imitar os contos do Rubem Fonseca e que isso fazia mal ao que escrevia. De que maneira o escritor
deve filtrar sua influência? Como
faz para que os autores que aprecia
não contaminem sua literatura?
No início é inevitável que você imi­
te algum outro autor, voluntária ou
involuntariamente. Com a técnica e
os anos, seu repertório aumenta e se
torna mais fácil evitar isso. Não só
porque você passa a ter mais a di­
zer, mas porque a experiência ensina
a perceber, quase instintivamente,
quando algo que você está fazendo é
de segunda mão, não tem uma ver­
dade sua ali. g
jornal da biblioteca pública do paraná |
Cândido 15
cândido, 133
Memória
coletiva
Com um acervo de mais
100 mil itens, a Divisão de
Documentação Paranaense da
Biblioteca Pública do Paraná
preserva a memória do Estado
Felipe Kryminice
C
om um dos acervos mais completos
do Paraná, a Divisão de Documen­
tação Paranaense da Biblioteca Pú­
blica do Paraná se tornou, ao longo
das décadas, uma espécie de farol a quem
quer conhecer mais sobre a rica história
do Estado. Materiais com informações
sobre fatos políticos — como a Guerra
do Contestado — e culturais — como o
surgimento da revista Joaquim — atraem,
diariamente, centenas de leitores.
A Paranaense, como a Divisão
é conhecida pelos usuários, tem uma co­
leção diversificada, composta por vários
tipos de suportes de informação, como
livros, periódicos, obras raras, mapas, fo­
tografias, cartões postais, partituras musi­
cais e microfilmes. “O setor é responsável
por resgatar, selecionar, guardar, preser­
var e disponibilizar à comunidade docu­
mentos e informações históricas e cultu­
rais do Paraná.”, explica Josefina Palazzo
Ayres, chefe da Divisão.
O acervo de mais de três mil peri­
ódicos — entre jornais e revistas — está
entre os mais procurados. A Divisão guar­
da preciosidades como a primeira edição
do Dezenove de Dezembro, o primeiro jor­
nal paranaense, fundado em 1854, mesmo
ano da emancipação política do Estado,
por Cândido Lopes, que hoje dá nome à
rua em que a BPP está sediada.
A diversidade do acervo atrai um
grande número de usuários, constituí­
do em sua maioria por estudantes e pes­
quisadores em busca de informações para
trabalhos acadêmicos. Alunos do ensino
fundamental e profissionais da imprensa
tam­­­­bém costumam pesquisar o acervo.
“Aqui na Divisão há um grande e
intenso fluxo de estudantes que estão re­
alizando pesquisas para trabalhos acadê­
micos. Mas também há pessoas que vêm
por pura curiosidade, que pedem para ver
o jornal do dia em que nasceram ou de al­
guma outra data especial e marcante. De
um modo geral, há grande interesse por
parte dos usuários em materiais e docu­
mentos antigos. O que, para nós, só au­
menta a importância do trabalho de pre­
servação da memória de nosso Estado”,
diz Josefina. Segundo ela, a Divisão tam­
bém é depositária da memória biográfi­
ca paranaense, conforme decreto estadual
do ano de 1964, que regulamenta o envio
à Biblioteca Pública de obras originárias
do Poder Executivo do Estado do Paraná.
Os itens excedentes do acervo da
Divisão são distribuídos nas demais se­
ções da BPP, para que o usuário possa ter
acesso ao material. Já os materiais não in­
corporados ao acervo, são encaminhados
para bibliotecas públicas municipais, por
meio da Divisão de Extensão.
Paralelamente ao trabalho de pre­
servação e conservação do acervo local, no
contato e convívio com o usuário, procu­
Kraw Penas
Acervo da Divisão de Documentação Paranaense.
ra-se conscientizar o pesquisador, mos­
trando a importância e o significado do
trabalho de preservação do patrimônio
intelectual do Estado do Paraná.
Direitos
autorais
Microfilme
Com a intenção de preservar a qua­
lidade dos periódicos originais, e diminuir
o volume dos arquivos, parte do acervo é
disponibilizada por meio de um processo
denominado microfilmagem, que consis­
te em um sistema de captação das imagens de
documentos por processo fotográfico. No to­
tal, são mais de cinco mil e quinhentos ro­
los de microfilmes disponíveis. “A fim de
evitar o desgaste natural dos originais, os
periódicos retrospectivos (referentes a jor­
nais que já não circulam mais) e correntes
(ainda em atividade) são encadernados e
microfilmados”, diz a chefe da Paranaense.
A ação de microfilmagem teve iní­
cio nos anos 1980, por meio de um con­
vênio com a Fundação Biblioteca Nacio­
nal, que realiza esse trabalho em âmbito
nacional. Na BPP, essa atividade é desen­
volvida com o apoio da Divisão de Pre­
servação. Os primeiros trabalhos de mi­
crofilmagem foram os de revistas e jornais
retrospectivos paranaenses. Depois, se es­
tendeu aos demais periódicos. g
A Divisão de Docu­
mentação Paranaense também
é responsável pelo Escritório
de Direitos Autorais — Re­
presentação Regional do Pa­
raná. O escritório é resultado
de uma parceria técnica entre
a Fundação Biblioteca Nacio­
nal, no Rio de Janeiro, e a Se­
cretaria de Estado da Cultura
do Paraná e tem a finalidade de
conscientizar os autores para­
naenses da importância do re­
gistro de suas obras, buscando
uma valorização artística e in­
telectual, protegendo, assim, a
produção cultural do Estado e
proporcionando condições de
divulgação.
A Seção de Depósito Le­
gal e Direitos Autorais, oferece a
oportunidade do registro de Di­
reitos Autorais sobre os mais di­
versos tipos de documentos.
16 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná
conto
jornal da biblioteca pública do paraná |
princesa
P
ode se chegar, gente boa, relax, não
é assalto, é ensinamento dos brother.
Vem, vem se chegando. E aí, meu
chapa, se liga em cuspe a distância?
Não é assim que fala, meu irmão? Vai pa­
gar nada. Nossa parte é essa. Tamo aqui na
diversão. Pelo jeito tu também. Pra andar
com esse passo mole, tu não é daqui, cer­
to? Atenção, malandro, que tu dança. Tá
falando fofo assim porque tomou umas,
né? Se aproxima, princesa, vem arejar sua
formosura. Tava faltando dama no peda­
ço, né, pessoal? Mas e aí, galera? Mando
uma placa mortal, tão sabendo? Aditiva­
da. Seguinte, meu irmão: atenção que não
vou explicar duas vez, isso tem que ser pe­
gado no jato. Na areação. De primeiro o
cara tem que desligar, de repente a cara
dele para, os olhos também dão aquela
freada, tão acompanhando, pessoal? Aí,
nessa hora, o peito estufa, ele funga, cava
lá no fundo da boca oval, e daí ele mira
e lança com força e o cuspe sai tinindo
em linha reta. Míssil da paz, mano, vin­
do do interior mais subalterno do indiví­
duo. Voo bonito pra caralho, e o cara sen­
te aquela satisfação; e se a carga encontrou
o anonimato, sem problema, ele mandou
bem. Valeu. Rindo, princesa?... Se amar­
rou no voo do caralho, né? Tô sabendo...
Mas agora eu requero a vossa atenção, aí,
gente boa, só macho domina essa moda­
lidade de esporte!, desde a remoção da in­
fância. A mulherada tá fora dessa jogada,
me perdoe as dama, mas pontaria é fun­
damental, e é do que elas carece. É arre­
messo complicado porque num tem esco­
la. Já escutei que até agora não cuspi porra
nenhuma, guenta aí, ô meu... tá com pres­
sa, mané? Vê se se liga que aqui num tem
nego correndo, num é assalto, já dei ex­
Cândido 17
Livia Garcia-Roza
Ilustração: Francisco Gusso
plicação. Cusparada é coisa de macho, o
sujeito tá sempre mandando o que che­
ga pelas borda do corpo até sair por al­
gum dos orifício. Sempre assim, in puto
e fora do puto. Tão entendendo a evolu­
ção? Acompanhando a ejaculação? Nin­
guém aqui é precisado de aula. É ques­
tão de pontaria, já disse. A primeira vez
mandei legal, puta tiro, tão escutando?
Virei macho com agá. E de lá pra cara é
enxurrada à toda hora. Tão a fim da exi­
bição? E o dinheiro, tá na mão? Então
dão um tempo no lance, que vou dar um
recado ali naquela formosura. Preparando
a artilharia pessoal!
Vamos lá, princesa, o ambiente
aqui num tá prepúcio pra senhorita, que
logo se vê que é dama de altas mansão
e fidalguia distinta. Posso seguir-vos al­
guns passos? Não sei se atinaste que o es­
petáculo era tão somenos pra chamar a
atenção de vossa persona. Grata, sei que
estás, vê-se o polimento do berço esplên­
dido. Peço perdão pelas palavras de calão
baixo, porque só assim captam o profe­
rido. Quando no outro sim divisei vossa
visão, meus olhos faiscaram obnubilado, e
assim estão até o momento desse passeio
pela orla marítima e terrestre, e quem
sabe — quem de nós saberão? — exor­
bital. Pensemo positivo que alcançare­
mo estrela, qualquer Ursa tá valendo, cer­
to? Atenção, princesa, pedregulho à vista;
não tropeçais, pelo amor deste servo en­
cantado com vossa formosura totalitária.
Não são todas que desfilam com garbo e
cortesia, repareis?
Tarde amena e gentil, né? Talvez...
Vejo um cúmulo à vista fina. Gostarias
de uma estancadinha a fim de saborear
um suco refrigerado? Concordais então?
Quantos anos têm a jovem? 22? Mas este
é um sábado lotérico! Façamo então um
pouso instantâneo. Qual é mesmo sua gra­
ça? Lenora? Leonora? Oh, claro, Heitora!
Filha legitimada de Heitor, ora ora... Pre­
fere ser chamada de Ôra, oh, claro, Ôra,
com mucho gusto. E o suco, minha flor,
também tá a su gusto? Quanto esplendor
oferece essa orla coalhada de despelada
que mal chega a seu calcanhar, não é mes­
mo, gente esbelta?... E se não for inconve­
niência intrépida, gostaria que a princesa,
com sua altíssima presença, conhecesse os
meus aposento. E já que tropecei no as­
sunto, quantos metro a princesa disporá?
Um e oitenta... Mas é uma manekan! São
só poucos concretos à frente, alteza, não se
distraia no calçamento pra cabrito, sem­
pre traiçoeiro com a fineza dos sapatos das
dama, de todas as maneira, aqui estou pra
amparar queda súbitas, saca?
Caminhemos pois, princesa mi­
nha, com todos os passo que enlevam
aos meu domínio, e ao abraço que certa­
mente posso me permitir, correto? Que
delícia o por arejamento da sua pele em
contato com a epiderme do meu tórax...
Posso, por ventura, enlaçar vossa cintu­
ra, minha dama da orla, e de outras afins,
que de momento escapam num sem fim
de pensamento de través. Pronto, ei-nus!
Não repare na modéstia, princesa. Tudo
aqui tá arrodeado de objeto de difícil
captura. Estás um pouco cansada de­
veras? Podereis repousar no pufe ou no
sofá. Ou quem sabe no leito. Gostarias
deste último reconduto? Antes precisas
ir à latrina? Peço então que se dispa de
tudo, dos preconceito e das intimidade, e
seja feita a vossa vontade e a minha, que
sempre bradei ao céus! E ele disse: Vai
que é tua!, Amadeu... Até agora não me
apresentei: Amadeu Serafim, às suas or­
dens, princesa Ôra, Ôra, Ôra...
Mas tu é uma fragrante delícia,
uma musse, manja? Conheces essa igua­
ria da nossa famosa baixada fluminense?
Que som perfurador foi este? Ah, o celu­
lar. Como não, a senhora sua mãe, a dis­
tinta pré-genitora. Os seios protuberantes
possuem algum ingrediente, minha flor?
Ah, são natureba... Não, não se aborre­
ça, mãe são muita transtornação... Relax,
princesinha. Elas existem em bando. Não
sei se tiveste visto as mãe da praça de tou­
ro. Um porrilhão, não leva a mal a devida
expressão. Temo mais mãe que filho em
tudo que é parte da atmosfera terrestre,
certo? A galera num guenta o repuxo do
cuidado. Mas é tanta curva no aldelgaça­
do do teu corpo que me brotou uma leve
tonteireza. Um repente, por sinal. Por que
gritaste? Ah, com a tua mãe. Deixa os ar­
rulho pra lá, princesa... Ai... ai... que pe­
netração! Num chora, caralho... Perdão,
minha princesinha... Mas que orifícius,
preciosa! Tava morto de fome... Num gri­
ta, coração, calma com a mamãe, vai, re­
melexa, assim, estás puta, claro, então dês
uma reboladinha, vai, entrementes acelero
pra atingir o climatério desse mundaréu,
vai, vai... Vamo que vamo, né, realeza?...
Hein? Ela quer falar comigo? Agora?
Mamãe!! Uiiffff... Quanto prazer!! A se­
nhora nem imagiiina... g
Livia Garcia-Roza nasceu no Rio de Janeiro e é
psicanalista. Estreou na literatura de ficção em 1995,
com o romance Quarto de menina. Depois vieram
Meus queridos estranhos, Cartão-postal, Cine
Odeon, Solo feminino, A palavra que veio do Sul,
Faces, entre outros. É organizadora da antologia de
contos Ficções fraternas (2003).
Vive no Rio de Janeiro (RJ).
18 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná
capa | manoel carlos karam
Fotos: Glória Flügel
Nas máscaras
do descarado
as mil caras do
mascarado
Nelson de Oliveira
escreve sobre a obra
literária de Manoel
Carlos Karam
jornal da biblioteca pública do paraná |
Nelson de Oliveira
M
anoel Carlos Karam? Conheci
o bucaneiro com olhos de pan­
da em 1999, em Sampa, no lan­
çamento de seu quarto livro, Comendo bolacha maria no dia de são nunca.
Tenho certeza da data porque guardei o
convite dentro do livro (sim, meus jovens,
no século passado os convites eram im­
pressos). O lançamento aconteceu na ex­
tinta livraria Futuro Infinito, no dia 30 de
setembro de 1999. Mal terminei de escre­
ver a oração anterior e já senti um arrepio.
Brrr. Paro de escrever. Sensação ruim. Um
estremecimento provocado pela proximi­
dade entre duas palavras: extinção e futuro.
Não gosto de ver o tempo devoran­
do seus melhores filhos. Isso tem aconte­
cido muito na literatura brasileira. Ficcio­
nistas competentíssimos, como Maura
Lopes Cançado, Uilcon Pereira e Holde­
mar Menezes, faz anos que desaparece­
ram das livrarias. Seus livros não conse­
guiram chegar ao século XXI. Fascinantes
livros. Eu convivia com eles na juventu­
de. Muito me ensinaram sobre o delírio e
a loucura. De repente, desapareceram do
grande circuito das letras. Viraram rarida­
de, coisa de colecionador. Hoje estão res­
tritos a pequenos guetos: sebos, bibliote­
cas, coleções particulares. Amanhã, quem
sabe: apenas poeira? Com a obra de Ka­
ram tenho medo que aconteça o mesmo.
Que o futuro signifique a extinção.
Sorte nossa que leitores-escrito­
res-editores como Joca Reiners Terron
e Paulo Sandrini, apaixonados pela obra
de Karam e de outros transgressores,
gostem de remar contra a maré, contra
a indolência do mercado editorial. Na
virada do século a intrépida Ciência do
Acidente, do Joca, publicou Comendo bolacha maria no dia de São Nunca e Pescoço
ladeado por parafusos (2001). Mais recen­
temente, a não menos destemida Kafka
Edições, do Paulo, publicou Jornal da
guerra contra os taedos (2008) e relançou
os três primeiros títulos do autor: Fontes
murmurantes (publicado originalmente
em 1985), O impostor no baile de máscaras (1992) e Cebola (1997), que formam
a Trilogia de Alhures do Sul.
No universo dos livros, o combus­
tível da extinção é sempre a inércia. Os
livros do Karam continuam aí, saudáveis,
ainda disponíveis nas livrarias, porque
dois leitores-escritores-editores malucos
— heróis da resistência — decidiram ser
parte da solução, não do problema. Ka­
ram vive! Oxalá Jamil Snege e Valên­
cio Xavier, atualmente na UTI, tenham
a mesma sorte. Maura, Uilcon e Holde­
mar não tiveram.
Comendo bolacha maria é uma co­
leção excêntrica de aforismos, anedotas,
jogos verbais, petiscos e safadezas. Pra­
ticamente todos os gêneros de prosa, do
microconto ao monólogo teatral, dão as
caras nesse divertido livrinho. Os perso­
nagens estão em perpétua perplexidade.
A maioria não tem nome nem qualquer
característica fundamental, nada que dife­
rencie um do outro. São figuras sem iden­
tidade própria, sem gênero ou idade bem
definidos, que tagarelam sobre banalida­
des e epifanias. São acima de tudo figu­
ras muito engraçadas: tipos paranoicos,
esquizofrênicos, obsessivos, zombeteiros.
Nessa multidão anônima, uns pou­
cos protagonistas ganham rosto e certos
atributos socioculturais: há, por exemplo,
o sequestrado e os sequestradores, o do­
ente dos nervos, o burro diletante, o de­
legado e o detetive particular, o taxista e o
colecionador de nuvens.
Manoel Carlos Karam? Um dos
nomes mais admiráveis da geração 80 de
ficcionistas brasileiros. Aí está um sujei­
to perspicaz e bem-humorado. Essa foi
a primeira impressão que eu tive ao co­
nhecer o autor, na finita Futuro Infinito.
Mais tarde, durante a leitura de Comendo bolacha maria, veio a segunda impres­
são: aí está um ficcionista competente.
Tempos depois, Karam me enviou pelo
correio seus primeiros títulos, que hoje
formam a Trilogia de Alhures do Sul.
Com eles, veio a terceira impressão: aí
está um sujeito atencioso, gentil. Já a
quarta e mais forte impressão veio com
o tempo: aí está um homem generoso.
Karam sempre foi um ótimo interlocu­
tor, principalmente quando em contato
com os escritores mais jovens.
De todos os livros que publicou,
o meu predileto é Encrenca (2002). Este
romance é sobre moedas e acasos, sobre
cidades chamadas Relva, Branco e Bai­
res, sobre ruas chamadas Nova Heureca e
Dezembro, sobre bares chamados About
e Bispo Kg, sobre uma praça chamada
Ontem, um café chamado Café Café e
uma lanchonete chamada XY&Z. Sobre
automóveis — ah, a cidade em alta ve­
locidade! — do tipo Clap, do tipo Stella
e do tipo Mail, sobre aspirinas da mar­
ca Shift, sobre bebidas chamadas Bambu
e Gerard, sobre músicas chamadas “La
cumparsita” e “Guarda-chuva”.
Encrenca? Essa história é sobre la­
drões de diálogos, sobre transmissores de
pranto, sobre Belbeltrana, moça muito in­
teressante, seu gato Fitg e sua tartaruga
Ftig. Essa história é sobre Invetral 2.500,
medicamento capaz de alterar as proprie­
dades do tempo e da memória. Ficção
científica? Não: delírio em gotas, feito o
colírio alucinógeno do Macaco Simão.
O fato indiscutível é que, não im­
porta o livro, os personagens de Karam —
os com cara e os sem cara bem definidas
— são todos muito parecidos. Na verda­
de, são idênticos. A mesma voz, a mesma
verve, a mesma visão amarga de mundo.
Valêncio Xavier acertou na mosca quan­
do avisou que Karam estava escrevendo
o mesmo livro indefinidamente. Não só
todos os personagens formam uma enti­
dade única, uma superconsciência, como
o mesmo jogo-brincadeira (expressão de
Valêncio) vai sendo disputado livro após
livro, com pequenos intervalos de uma
encadernação para outra.
Esse sistema narrativo por si só já
foge do convencional, porém o jogo con­
tinua também no palco. Antes de se tor­
Cândido 19
Comendo bolacha maria
“
é uma coleção excêntrica de
aforismos, anedotas, jogos
verbais, petiscos e safadezas.
Karam sempre insistiu
“
no enredo labiríntico, nos
protagonistas espiralados,
na topografia onírica
20 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná
capa | manoel carlos karam
nar ficcionista, Karam foi um dramaturgo
prolífero, que escreveu e dirigiu vinte pe­
ças de teatro na década de 1970. Basta dar
uma espiada em peças como Bicho-de-sete-cabeças (1975) e Doce primavera (1976)
para perceber que ele escrevia para o pal­
co da mesma maneira que escrevia para o
papel impresso e encadernado.
Muitos de seus personagens literá­
rios, aliás, têm um forte vínculo com o te­
atro. Por exemplo, os amigos Benjamim,
Hopalongue, Maria, Marta Júnior, Oli­
veira, Serafim e Silvestre, de O impostor no
baile de máscaras. Eles protagonizam capí­
tulos-esquetes e se expressam por monó­
logos ou por longos diálogos, prato cheio
para qualquer adaptação para o palco.
Benjamim é apaixonado por músi­
ca (“Chega um ponto em que você ouve
música mesmo quando não há música to­
cando”). Hopalongue gosta de cavalos,
mas não tem nenhum em casa (“Quem
gosta de elefantes também não”). Maria
gosta de ir à estação assistir à chegada dos
trens (“A paixão exige paciência”). Marta
Júnior é a atriz de cenas sublimes (na pri­
meira página de seu diário-coletivo ela es­
creveu: “Nós somos os caçadores da figuri­
nha difícil”). Oliveira gosta de se disfarçar,
nas histórias que ele mesmo conta (será ele
o impostor no” baile de máscaras?). Sera­
fim acha muito complicado viver em fi­
nais de século (“Polaca não é nome nem
apelido, polaca é marca de fantasia”). Sil­
vestre costuma andar por aí falando sozi­
nho (“Vou acender o cigarro de todos os
habitantes da cidade”). São sete anti-he­
róis que vivem situações verdadeiramente
falsas, falsamente verdadeiras. Sete contra­
ventores que, só de farra, gostam de fechar
ruas e avenidas com tabuletas em que se
lê: “Trânsito impedido”. Juntos, são um bi­
cho-de-sete-cabeças-borbulhantes.
Nunca conversei sobre isso com
o bucaneiro mais célebre de Alhures do
Sul, porém, considerando as cores absur­
das desse Impostor e de seus outros livros,
acredito que Ionesco e Beckett, meus pre­
diletos no teatro, também deviam ser au­
tores caros a Karam. Os três têm em co­
mum o humor demoníaco que demole as
instituições e a estupidez reinante.
A boa notícia é que uma par­
te importante do teatro de Karam será
em breve reunida em livro pela arroja­
da Kafka Edições. Além de uma alen­
tada iconografia, a antologia trará dois
resgates (as peças citadas acima), duas
adaptações da obra literária (Encrenca,
de 2007, e Picando uma cebola em chamas,
de 2008) feitas por leitores-atores-dra­
maturgos malucos — heróis da resistên­
cia: Nadja Naira, Luiz Felipe Leprevost
e Michelle Pucci —, e três peças inédi­
tas, entre elas Ovos não têm janela (adoro
esse título). De quebra, a editora lançará
também um volume inédito de ficções:
Um milhão de velas apagadas.
Karam sempre insistiu no enre­
do labiríntico, nos protagonistas espi­
ralados, na topografia onírica. Para ele,
a literatura era farra e fanfarra, era a
desforra do instinto contra a razão bu­
rocrática. Enquanto os heróis da resis­
tência continuarem cavando trinchei­
ras e erguendo barricadas, seus livros
não desaparecerão. g
Nelson de Oliveira nasceu em Guaíra (SP), em
1966. É romancista, contista, cronista, ensaísta
e organizador de antologias. Em 2011, ganhou o
prêmio Casa de las Américas, pelo livro Poeira:
demônios e maldições. Organizou diversas
antologias, como Geração 90: manuscritos de
computador ((2001) e Geração Zero Zero (2011).
jornal da biblioteca pública do paraná |
Cândido 21
conto
Ilha de Nossa Senhora
Fulana de Tal e outros nomes
Manoel Carlos Karam
A
Ilha António chamava-se assim
em homenagem ao seu desco­
bridor, mas mudou para Ilha da
Sereia porque uma lenda ganhou
mais força que o descobridor.
O nome seguinte foi Ilha dos Pa­
pagaios Vadios, dado por um governador
que, segundo os cronistas, gostava de gra­
cejos, pois a ilha não tinha papagaios.
A Ilha dos Papagaios Vadios vi­
rou Ilha das Bateiras (na voz do povo,
Ilha das Bateras), homenagem às em­
barcações dos pescadores que viviam
nos rios de pouca água e não se sabe
se de muito ou pouco peixe, mas pes­
cadores que provavelmente tinham as
simpatias do governador da época — a
história de que um dos pescadores de
bateira chegou a governador é chama­
da de lenda pela maioria dos cronistas.
O nome passou, por influência
religiosa, para Ilha de Nossa Senho­
ra das Fontes Murmurantes ou Ilha de
Nossa Senhora dos Ventos Uivantes —
os cronistas divergiam, dois deles che­
garam a se bater em duelo, que termi­
nou empatado, dois mortos.
Outro empate quando os defen­
sores do nome Ilha de Nossa Senhora
das Fontes Murmurantes e Ilha de Nos­
sa Senhora dos Ventos Uivantes chega­
ram a um acordo, e o novo nome foi Ilha
de Nossa Senhora Fulana de Tal.
Durante a Grande Estiagem,
também chamada de Big Estio, al­
gumas vezes grafada como Big Stio,
chamou-se Ilha dos Guarda-Chuvas
Fechados, mas não em todos os docu­
mentos, numa parte deles continuou
Ilha de Nossa Senhora Fulana de Tal
por intransigência religiosa.
Alguém teve o cuidado de elimi­
nar as referências ao nome Ilha do De
Vez Em Quando, mas não conseguiu
apagar todas, algumas escaparam, como
aconteceu com os registros da Funerá­
ria Sempre, documentos disputadíssi­
mos em leilões.
A guerra civil foi pródiga em mu­
danças de nome. Quando os do Norte
estavam ganhando, mudou para Ilha do
Norte Glorioso. Quando os do Sul esta­
vam à frente, Ilha do Sul Vitorioso. Quan­
do terminou a guerra civil, ela recebeu o
nome Ilha da Grande Merda, mas nem
todos os historiadores confirmam, alguns
usam o nome sem a palavra Grande.
Quando os dez mandamentos
viraram lei civil, com punições milita­
res, a Ilha do Olho Que Tudo Vê teve
grandes progressos econômicos, mas os
pecadores ficaram de fora.
Ilha dos Furacões Bonzinhos não
foi um nome muito correto, por isto tro­
cado rapidamente para Ilha dos Furacões
de Verdade, que também não agradou e
acabou em Ilha da História Mal Contada.
Uma das fases religiosas resultou
na Ilha do Convento das Emmas Des­
calças, tendo sido para isto construído
um convento. Desde o início, a intenção
era de um nome que não durasse muito,
suposição a partir da escolha do local do
convento, bem no caminho dos furacões.
Ilha das Metáforas foi o nome
que menos tempo vigorou. Não durou
uma semana. Piada de mau gosto, dis­
seram uns. Piada infame, disseram ou­
tros. Nem como piada, disseram ainda
outros. Mas não foi isto que liquidou o
nome em tão pouco tempo. Houve uma
emergência que obrigou a escolher um
nome estratégico.
Na tentativa de invasão da ilha
pelos taedos, foi chamada de Ilha dos
Jacarés. Dizia-se que os taedos tinham
medo de jacarés. Como se sabe, não ti­
nham, e a tentativa de invasão passou
para a fase seguinte.
A reconstrução da ilha, após o de­
sinteresse e a retirada dos taedos, durou
quatro anos. Nos dois primeiros, conti­
nuou sendo Ilha dos Jacarés. Mudou para
Ilha do Baile de Máscaras, nome que per­
maneceu até faltar um mês para terminar
a reconstrução. Foi aí que ela passou a se
chamar Ilha X, como é citada pelo mági­
co na sequência da chuva no filme Slo­
throp, de Percival Bartlebooth.
Quando a ilha deixou de ser en­
contrada pelos navegadores, chamava-se
Ilha X. Permaneceu assim nos mapas até
que deixou de ser encontrada também
pelos geógrafos. O buraco no meio do
oceano, visto até hoje no mapa exposto
no Museu de Todas as Ilhas, em Alhu­
res do Sul, está realmente no ponto exato
onde a Ilha X existiu para alguns mapas.
Mas a possibilidade do buraco ter sido
feito por traças é muito grande.
Outras informações:
Moradores da ilha reclamavam da
troca frequente de nome. Diziam que pre­
judicaria a população assim que a ilha ti­
vesse um serviço de correios. A história
memorizou apenas os muitos nomes da
ilha, nenhum nome de governador da ilha.
Os arqueólogos não encontraram
qualquer indício de que a definição de
ilha (uma porção de terra cercada de água
por todos os lados) fosse conhecida.
Um cronista da época sugeriu que
em vez de nome a ilha tivesse números.
Em algarismos romanos. Daí alguma con­
fusão histórica com o último nome da ilha.
A frequente troca de nome cau­
sava atritos. Em qualquer encontro de
meia dúzia de pessoas havia divergên­
cia sobre qual era o nome atual da ilha.
A guerra civil começou numa reunião
familiar para comemorar um batizado.
Nunca houve repetição de nome.
Pelo menos ninguém reparou.
O título deste relato optou por um
dos nomes da ilha. Poderia ter sido ou­
tro. É que alguns ficavam muito longos,
outros muito curtos. Este ficou de bom
tamanho. g
Manoel Carlos Karam nasceu em Rio do Sul
(SC), em 1947. Viveu em Curitiba de 1966 até
2007, ano de sua morte. “Ilha de Nossa Senhora
Fulana de Tal e outros nomes” faz parte do livro
inédito de contos Um milhão de velas apagadas.
22 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná
capa | manoel carlos karam
Jornal da guerra
contra a gente mesmo
Luiz Andrioli
T
e conheci pela fresta da porta. Foi
no meio da fuzarca de uma produ­
tora de vídeo que fazia a campa­
nha política de um candidato. Es­
távamos na Curitiba da década de 1990.
Eu devia pegar uma fita em uma das
ilhas de edição. Meu cicerone, depois de
me apresentar algumas figuras do local,
apontou de longe: e ali está o Karam.
Um porto no meio da histeria com o
objetivo de fazer o próximo prefeito da
capital ecológica. Soube então que era
você quem escrevia o plano de governo.
Aquilo ficou me incomodando por um
bom tempo. Eu, ainda um estudante de
jornalismo, via na literatura um escape,
uma fonte de digressão, rebeldia e tudo
mais que não poderia caber nas pesqui­
sas que definem uma vitória política.
O que fazia um escritor do seu
estilo no meio de tantos interesses?
Junto com a pergunta, fiquei com
a imagem daquele jeitão taciturno por
trás da barba branca entre os gritos dos
marqueteiros do comitê. Existia, sem dú­
vida, um jeito Karam inabalável dentro
daquilo tudo que ainda não me descia.
Sim. “Ainda não me descia”. Já te
falo por quê.
Meio que sem querer, virei repór­
ter de TV uns anos depois. E totalmen­
te de paraquedas caí em uma redação
chefiada por você. Daria para preencher
algumas páginas com passagens cheias
daquele seu humor fino que deixava a
gente em suspenso uns dois ou três se­
gundos. Todas as seguranças dos manu­
ais de redação (que ensinam a escrever
por vias previsíveis) poderiam ser sole­
nemente ignoradas em nosso jornal. O
laboratório estava formado. Uma turma
ainda aprendendo a empunhar microfo­
nes e outra já tendo rodado os quilôme­
tros das redações tradicionais e cansada
de fazer o que sempre foi feito. Tínha­
mos tudo para realizar um bom traba­
lho, brincar, inovar, propor um jeitão de
abordar a notícia fora do esperado.
E fizemos um bom trabalho. Só
que ninguém percebeu. Estávamos em
jornal da biblioteca pública do paraná |
uma emissora pública de pouca audiên­
cia. Traço, pra falar a verdade, na maio­
ria das vezes.
Ei, Karam, lembrei das verdi­
nhas! Sim, as Heineken’s... Lembra da­
quele calendário que a gente mantinha
na redação com a foto de um garrafão
de água cheio de cerveja? Que sobrie­
dade pretendíamos imprimir para o
ambiente de trabalho, não? Aliás, acho
que te levei a sério no começo. Durou
mais ou menos uns dez minutos esta
sensação. Gente de barba branca sem­
pre me fez pensar em sobriedade.
Escrevia minhas matérias naque­
la época, quando era seu repórter, com
a sensação de que você me espiava por
trás do ombro. Aliás, tive a mesma im­
pressão agora, já quase finalizando este
texto... Queria (e quero!) uma aprova­
ção. Na minha época de reportagem,
sabia da inglória tarefa de comparar a
escrita para a TV com o que você fa­
zia nos livros. Eram outros critérios os
seus de escritor, é claro. Mas a sua li­
berdade nas páginas me indicou outros
tantos caminhos, seja nas histórias ima­
ginadas, presenciadas e criadas — cada
qual contaminando as outras em medi­
das não quantificáveis.
Ok. Admito que dei minhas espia­
das na tela do seu computador também.
Há algum tempo sentei naquela
mesma cadeira em que você escrevia os
sonhos de uma nova cidade. Nessa coi­
sa de caminhar pelas trilhas de quem a
gente segue, fui escrever o plano de go­
verno de um candidato com a mesma
turma que já estava se acostumando a
não te ter por perto. Em alguns meses,
pensei projetos de educação, saúde, se­
gurança pública e outros temas que po­
deriam deixar o mundo de um jeitão
melhor. Tentei chegar como um técni­
co, reunindo informações, fontes, pro­
curando mazelas levantadas em alguns
anos de reportagem. Em pouco tempo,
no meio de toda aquela histeria da qual
você se preservava tão bem, entendi
qual era o seu papel. Lembrei de Pablo
Neruda, que também transitou na po­
lítica levando consigo a pena do escri­
tor. “Muitas vezes os governantes têm
comunicações públicas com seus povos.
A poesia tem uma comunicação secreta
com os sofrimentos do homem. Há que
ouvir os poetas”, dizia o chileno. Quan­
do o laptop do jornalista abriu espaço
para alguns devaneios do escritor, a pos­
tura serena do Karam frente aos inte­
resses de um comitê eleitoral fez senti­
do na minha cabeça.
Sonhei sonhos possíveis, imagi­
nados, criados, calculados, negociados,
alimentados, pesquisados... Não por
acaso, nos intervalos daquele trabalho,
nos meses em que fiquei confinado no
comitê, ainda sobrou fôlego para dar
um trato final em um livro de contos
e revisar outro de poemas. A energia
que movia as tarefas era a mesma: a
de quem cria tendo como fonte justa­
mente o ambiente, as histerias e his­
tórias cruzadas; cacos de dramas pe­
gos pela rabeira, com toda a fartura de
passionalidades.
Você, de certa forma, criava seu
porto seguro nas redações em que traba­
lhava, mas tinha ouvidos afinados à comu­
nicação secreta com os dramas da alma.
Cheguei a fazer uma reportagem
falando sobre a inauguração da Casa
da Leitura Manoel Carlos Karam, que
guarda o acervo que foi seu. Fica aqui
pertinho do meu apartamento, aque­
le cujas prestações paguei com a ajuda
dos bicos que você me arrumou em uma
produtora de vídeo. Sabe que eu passo
lá para pegar livros que às vezes nem
leio? É tipo uma lembrança que levo
pra casa e devolvo no prazo. Parece que
estou emprestando da sua estante, como
poderia estar fazendo hoje, se você não
tivesse esta mania chatinha de deixar a
gente tão cedo. g
Luiz Andrioli é escritor e jornalista.
Autor de O circo e a cidade. Mantém o site
www.luizandrioli.com
depoimentos
A literatura do Karam me seduziu desde sua
“
primeira obra, Fontes murmurantes, pelo seu grau
de radicalidade, sua inteligência sofisticada e seu
humor absolutamente livre. Tive o privilégio de têlo como amigo e de escrever mais de uma vez
sobre seus livros.” Marçal Aquino, jornalista e escritor.
só me tornei próximo dele
“poucosInfelizmente
meses antes de sua partida. O tempo que
privei de sua companhia foi de alegria intensa.
O livro do Karam que mais gosto é o Encrenca.
Mas em cada linha de todas as suas obras nos
deparamos com uma inquietante inventividade,
vivenciamos o espanto. Seu humor filosófico
nos retorce o cérebro. A veia poética é certeira
e luminosa. Manoel Carlos Karam é um desses
gênios que fez o impossível com a linguagem.
E foi um homem generoso, abriu casa e
coração para os escritores mais jovens. Espero
que um dia minha barba fique branca e vasta
como a dele.” Luiz Felipe Leprevost, escritor.
Sinto falta do Karam. Ele já não me
“
escreve nem me telefona. Lanço um livro e ele
não aparece. Vou a uma livraria e não o vejo
bisbilhotando as prateleiras. Faz tempo que não
me indica nenhum livro. Não consigo saber o que
anda escrevendo. Gostaria de ouvir a última ironia
do Karam. A última ironia. Sinto falta do Karam.”
Roberto Gomes, escritor.
Cândido 23
24 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná
capa | manoel carlos karam
As marcas
de Karam
Dono de uma prosa
experimental, marcada
pelo humor e situações
absurdas, Manoel Carlos
Karam também deixou
marcas no teatro e na
imprensa paranaense
Guilherme Sobota
U
m dos traços marcantes da obra de
Manoel Carlos Karam é o humor.
Conforme escreve Marçal Aquino
na orelha de um dos livros do au­
tor, “um humor original, diferente, desses
que a gente ri e logo depois para, pensa
direito e fica preocupado”. E foi com esse
humor pitoresco que Karam, uma figura
fácil da dramaturgia curitibana, se des­
pede dos palcos para entrar na literatura,
no meio dos anos 1980, com a edição de
Fontes murmurantes. “Manoel Carlos Ka­
ram nasceu (1947) em Rio do Sul, Vale
do Itajaí (uma enchente por ano), San­
ta Catarina, mas hoje é curitibano (uma
neve de vez em quando). Jornalista (um
salário por mês). Escreveu e dirigiu duas
dezenas de peças de teatro (com títulos
do tipo O avião parte às 5, Doce primavera,
Urubu, Esquina do 7 de Setembro com 31 de
Março), mas cortou o palco para ter tem­
po de pensar num cavalo sentado, na flor
de samambaia”, escreve na primeira edi­
ção de seu romance de estreia.
Em entrevista à Gazeta do Povo, em
outubro de 2004, o autor explicava a veia
humorística de sua obra. “O humor faz
parte da minha fala, do idioma que escre­
vo e me escreve. Um personagem não tem
necessariamente humor. A língua usada
para falar dele, sim — essa pode estar car­
regada dessa qualidade.”
Depois da militância no teatro e
as “duas dezenas de peças”, o autor deci­
diu se dedicar a outras paixões: o jornalis­
mo e a literatura. Karam trabalhou muitos
anos como jornalista, especialmente em
TV. Em uma entrevista à Folha de Londrina, em agosto de 1985, o escritor explicava
a mudança do teatro para a literatura. “Foi
então que, depois de 12 anos resolvi parar
com o teatro e me propus a escrever sério.
No início foi difícil, porque, devido ao meu
trabalho, sobrava pouco tempo, não dava
para manter nem uma certa disciplina que
eu acho muito necessária.”
Fontes murmurantes é o primei­
ro ato de um projeto literário que Karam
anunciava desde o início da sua carreira
como escritor: traçar painéis, divididos
em quatro partes: o primeiro de um país,
o segundo de uma cidade, o terceiro de
uma casa e o quarto de uma pessoa. Dito
e feito. Em 2001, com a publicação de
Pescoço ladeado por parafusos, que saiu pela
Ciência do Acidente, editora do escritor
Joca Reiners Terron, a quem Karam se
referia como seu “anjo da guarda em São
Paulo”, o autor concluiu sua proposta ini­
cial. Os outros dois livros que compõem
o projeto são, respectivamente, O impostor no baile de máscaras (1992) e Cebola
(1997). Este último foi vencedor do cul­
tuado prêmio Cruz e Sousa de Literatura,
em 1995, cedido pelo governo do Estado
de Santa Catarina.
Karam também publicou a cole­
tânea de contos Comendo bolacha Maria no dia de São Nunca (1999), os ro­
mances Encrenca (2002) e Sujeito oculto
(2004). Ainda voltou ao texto teatral
pouco antes de morrer, com Duas criaturas gritando no palco (2003). Dono de
uma prosa experimental, Karam culti­
vou admiradores entre os jovens escri­
tores da literatura brasileira contempo­
rânea, entre eles o próprio Joca Terron,
Marçal Aquino e Nelson de Oliveira,
autores que assinam textos nas recentes
edições dos livros de Karam, publicadas
em 2010 pela Kafka Edições.
Manoel Carlos Karam faleceu no
dia 1º de dezembro de 2007, aos 60 anos,
em decorrência de um câncer de pulmão,
na cidade em que escolheu viver e de onde
tirou a matéria-prima fundamental de sua
literatura. g
jornal da biblioteca pública do paraná |
Cândido 25
conto
Schoenberg,
Berg e Webern
Manoel Carlos Karam
N
ós nos mudamos para Alhures
do Sul no verão de 77, vivemos
lá até o outono de 83. Foi de­
pois de Relva e antes de Tartii­
ba. Meu pai, minha mãe, minhas duas
irmãs. Meu pai trabalhava numa em­
presa instalando filiais. Filial instalada,
mudança de cidade. Alhures do Sul de­
pois de Relva e antes de Tartiiba. Não
tenho recordações de Relva e Tartiiba.
Tenho de Alhures do Sul. Com tantas
mudanças, nós costumávamos desco­
brir que uma ou outra questão, quando
contada, estava trocada de cidade. Por
isso não tenho completa certeza da fal­
ta de recordações de Relva e Tartiiba.
Mas não tenho dúvida sobre a música
do piano em Alhures do Sul. Ouvíamos
a música do piano do vizinho, demora­
mos até perceber o que estava aconte­
cendo. O piano do vizinho tocava mui­
tas horas por dia, foi o que pensamos.
Erramos, o piano tocava ininterrupta­
mente. Fizemos um revezamento para
conferir, o piano do vizinho tocava vin­
te e quatro horas todos os dias. Uns dois
ou três segundos de silêncio entre uma
peça e outra. Sabíamos que era pia­
no e não disco porque eu e minhas ir­
mãs espiamos pela janela do vizinho. A
cerca que separava os quintais era bai­
xa. A janela da casa dele tinha cortina,
mas sempre ficava uma fresta. Ele toca­
va sentado de costas para a janela, podí­
amos espiar o pianista. Era como se ele
estivesse num palco, a cortina da boca
do palco com uma pequena abertura. O
pianista dando as costas ao público, não
por desaforo, mas pelo hábito de quem
já foi maestro, explicou a minha mãe.
Ela explicou quando viu por uma fres­
ta da cortina do quarto da nossa casa eu
e as minhas irmãs pulando a cerca de
volta após um concerto na casa do vizi­
nho. Ela por primeiro brigou conosco,
por segundo perguntou o que nós vimos
e por terceiro explicou do maestro que
fica de costas para a platéia. Por último
a minha irmã mais nova disse que que­
ria ser pianista. Ela sempre dizia que ia
crescer e ser da padaria. Acho que foi
ainda antes de Relva quando ela disse
ser da padaria. Meu pai achou engra­
çado quando a minha irmã disse ser da
padaria. Minha irmã mais nova cho­
rou. Ninguém riu quando ela disse que
queria ser pianista porque o meu pai, o
que mais ria lá em casa, estava no tra­
balho, instalando a filial de Alhures do
Sul. Minha mãe ouvia o piano o dia in­
teiro, eu e minhas irmãs só de tarde, tí­
nhamos escola de manhã, meu pai na
hora do almoço e de noite, e nós todos
a madrugada inteira. Às vezes eu me vi­
rava na cama, ouvia um pedacinho de
música e dormia novamente. Espiamos
uma vez pela janela de madrugada, meu
pai autorizou, queríamos saber se o vi­
zinho tocava piano dia e noite sem pa­
rar como parecia, mas impossível que
fosse assim. Queríamos saber como
era. Foi de madrugada que descobri­
mos a mulher tocando piano. Perce­
bemos nas visitas seguintes que o casal
se revezava para manter o piano inin­
terruptamente em concerto, como dis­
se um dia o filho do contador. Meu pai
disse que o filho do contador da filial
estudava música, tocava piano e, mes­
mo muito jovem, já tinha dado concer­
to. Ele era dois anos mais velho que eu,
mas naquele momento não me passou
pela cabeça que meu pai estivesse suge­
rindo que eu deveria fazer alguma coi­
sa que ele pudesse contar, como o con­
tador da filial contava. Convidamos o
filho do contador para ouvir o piano
do vizinho. Um conhecedor de músi­
ca esclareceria o que estava acontecen­
do. Schoenberg, Berg e Webern. Foi o
que ele disse que estava acontecendo. O
piano do vizinho repetia peças, expli­
cou. A Suíte de Schoenberg (opus 25)
ele tocou três vezes. O músico retornou
nos dias seguintes, o piano do vizinho
continuava tocando Schoenberg, Berg e
Webern. De manhã, de tarde, de noi­
te, a Sonata de Berg (opus 1). O filho
do contador dormiu lá em casa algumas
noites. Acordava de madrugada para
ouvir o piano, muito repetidas também
as Variações de Webern (opus 27). Foi
em Alhures do Sul, depois de Relva e
antes de Tartiiba. Perdemos a conta do
piano do vizinho, daqueles muitos dias
de música sem parar. Um piano era algo
tão distante de nós que tivemos medo
dele. Eu via no rosto do meu pai e da
minha mãe que havia alguma forma de
susto, um receio que talvez tenha sido
a causa de nunca fazer amizade com os
vizinhos. O que vinha a calhar, sempre
preferimos não nos envolver com a vizi­
nhança porque logo estaríamos de mu­
dança. Quando viajamos para Tartii­
ba, no dia em que desocupamos a casa,
o piano continuava tocando. A minha
irmã mais nova aprendeu com o filho
do contador a identificar a música. Na­
quele nosso último momento em Alhu­
res do Sul, o piano na casa vizinha, nas
mãos do vizinho ou da vizinha, não sa­
bíamos, o piano fechava o concerto para
nós com Schoenberg, seis pequenas pe­
ças para piano (opus 19). O nosso últi­
mo dia nos fez recordar o primeiro do
vizinho. Nós nos lembrávamos clara­
mente de quando chegou a mudança do
vizinho. Ninguém deixa de olhar para a
mudança que tem um piano. Mas só o
piano estava na nossa lembrança. Não
tinha jeito de recordar como era a cara
do vizinho e da vizinha, muito menos se
havia alguma criança. g
Manoel Carlos Karam nasceu em Rio do Sul
(SC), em 1947. Viveu em Curitiba de 1966 até
2007, ano de sua morte. “Schoenberg, Berg e
Webern” faz parte do livro inédito de contos
Um milhão de velas apagadas.
26 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná
Perfil do Leitor | fernando severo
Café, pão e poesia
Influenciado pelas leituras
da mãe, o cineasta
paranaense Fernando Severo
ainda conserva um hábito
dos tempos de infância:
misturar café e poesia
Micheline Garcia
Márcio Norberto
C
rescer em uma pequena cidade
do interior tem lá suas vantagens.
Longe da correria dos grandes
centros, o tempo parece passar
mais devagar. Foi em um ambiente as­
sim, propício à leitura, que o cineasta
Fernando Severo cresceu.
Do interior de Santa Catarina
(Caçador, de onde saiu com dois anos),
para o interior do Paraná (Clevelân­
dia, onde ficou até os 11 anos, voltando
a Caçador), o cenário pacato pouco foi
alterado, o que deu a Severo as condi­
ções ideais para se tornar um leitor in­
veterado. A rotina calma da infância só
ganhava novas cores com as fantásticas
histórias que dona Diva, matriarca dos
Severo, lia para o filho todos os dias. Se­
vero lembra que só ia pra cama cedo ou
tomava remédio se a mãe cumprisse o
ritual. Era um toma lá dá cá.
Dona Diva, hoje com 87 anos, foi
a primeira grande influência na sua vida
de leitor. “Minha mãe sempre gostou de
biografias, romances históricos, escrito­
res russos e literatura policial, gosto li­
terário que herdei”, explica. As primei­
ras leituras eram bem ecléticas, iam das
fábulas de La Fontaine aos contos dos
Irmãos Grimm e de Hans Christian
Andersen. Severo também foi coopta­
do pelo universo irresistível de Montei­
ro Lobato, cujo Reinações de Narizinho
tinha lugar de destaque na prateleira.
Durante a infância, os livros fo­
ram os melhores companheiros do pe­
queno Fernando, sempre ao alcance das
mãos. No café da manhã, entre um pão­
zinho francês com manteiga e um ca­
fezinho, havia a companhia de um li­
vro. Hábito que o cineasta ainda cultiva,
hoje quase sempre na companhia de um
livro de poesia.
Os poetas simbolistas são os pre­
feridos de Severo, especialmente o fran­
cês Baudelaire. “Hoje em dia, a poesia
está mais presente na minha vida do que
a ficção. Estou lendo a obra de T. S. Eliot,
poeta que nasceu nos Estados Unidos,
mas que escolheu ser cidadão inglês.
Também entre os meus favoritos estão o
argentino Jorge Luis Borges e os brasi­
leiros Mário Faustino e Roberto Piva.”
Já no caminho para a adolescência,
aos 11 anos, Severo se deparou com um
livro que marcaria profundamente sua re­
lação com a literatura. “Na casa de uma
tia, por acaso, me deparei com uma edição
de Cemitério de elefantes, do Dalton Tre­
visan. Li e fiquei fascinado. Causou-me
certa perturbação. Fiquei intrigado. O li­
vro me trouxe uma visão mais complexa
jornal da biblioteca pública do paraná |
Cândido 27
Tiomkim
Na casa de uma tia, por
“
acaso, me deparei com o livro
Cemitério de Elefantes, do
Dalton Trevisan, li e
fiquei fascinado”.
e sombria do mundo”, conta o cineasta,
que considera o segundo livro de Trevi­
san uma de suas leituras mais marcantes.
Aos 15 anos, na escola, descobriu
os romancistas americanos nas aulas de
inglês da professora Alba Dourado, de
quem lembra com muita saudade. “Pos­
so dizer que a Alba foi outra influência
fundamental na minha formação como
leitor. Ela me levou a autores como He­
mingway e Faulkner”, diz o cineasta.
“Lembro-me também de ler A montanha
mágica, do Thomas Mann. Além des­
ses autores, a Alba despertou ainda meu
gosto pela literatura latino-americana,
que vivia um boom na época.”
Literatura e cinema
Desde sempre o cinema se bene­
ficiou da frutífera relação que manteve
com a literatura — e Severo também.
Como não poderia deixar de ser, o ci­
neasta levou para o set sua experiência
como leitor e suas preferências literá­
rias, que influenciaram suas escolhas ao
longo da carreira. Em 2008, o cineas­
ta filmou O hóspede secreto, curta-metra­
gem adaptado do conto homônimo de
Miguel Sanches Neto.
Segundo Severo, o flerte com
o cinema começou pela via da leitura.
Ainda em Clevelândia, o cineasta co­
meçou a frequentar as matinês de do­
mingo. O compromisso era sempre pre­
cedido de um ritual: Severo e outras
crianças tinham o hábito de trocar gi­
bis antes da sessão. A paixão pelas his­
tórias em quadrinhos o levaria não só
aos clássicos da literatura, mas também
à sua futura profissão.
Já na faculdade, em 1979, Seve­
ro participou de um concurso de poesia
organizado pela Universidade Federal
do Paraná e saiu vencedor, deixando em
segundo lugar a curitibana Josely Vian­
na Baptista, que anos depois se tornaria
“uma grande poeta brasileira”, confor­
me diz o cineasta. No mesmo ano, Se­
vero filma seus primeiros curtas expe­
rimentais, todos em formato Super 8:
HU, Aluminosa espera do apocalipse e Escura maravilha.
Depois das primeiras experiên­
cias, Severo não parou mais de produzir,
tornando-se um dos grandes realiza­
dores de cinema do Paraná. Entre seus
principais filmes, destacam-se O mundo
perdido de Kozák (1988), que recebeu o
Kikito de melhor roteiro e outros de­
zesseis prêmios nacionais, e Paisagem
de meninos (2003), que também recebeu
os Kikitos de melhor média-metragem,
melhor roteiro, melhor ator e Prêmio
Especial do Júri (direção de arte).
Outra experiência importante
para o cineasta foi a convivência com o
escritor Valêncio Xavier, autor do clás­
sico O mez da Grippe (1981) e fundador
da Cinemateca de Curitiba. “O Valên­
cio era uma figura fascinante, que tinha
uma cabeça multicultural, era um cara
que transitava com desenvoltura do po­
pular ao erudito. Foi uma grande refe­
rência para mim.”
Hoje, além dos projetos cine­
matográficos, Severo comanda o Museu
da Imagem e do Som (MIS) do Para­
ná, instituição onde iniciou a carreira no
começo dos anos 1980. “No MIS, fazia
registro de peças teatrais, balés, shows e
manifestações culturais, tudo era feito
em Super 8. Realizei essa atividade até
o Museu ser praticamente extinto, em
1981. Meu retorno completa um ciclo
de vida e acontece num momento-cha­
ve, onde existe vontade política de atri­
buir ao Museu um merecido papel de
protagonista em nossa cena cultural.” g
28 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná
conto
Digital
reverb delay
E
u não deveria ter permanecido em
silêncio. Fui quase um mudo, ape­
sar de a vida não ter me negado a
capacidade de ouvir e de reprodu­
zir sons. Sou, aparentemente, um sujei­
to normal. Cumprimento conhecidos e
até desconhecidos com oi, alô, olá, bom
dia, como vai? Mas nunca fui muito de
falar e acredito que foi esse hábito, qua­
se um voto de silêncio, que acabou por
escrever o meu destino.
As pessoas costumam pedir pra
eu falar mais alto, com mais volume. Não
sei ao certo, mas talvez esse jeito seja uma
estratégia. Pra eu não ser ouvido. Pra eu
passar quase sem ser notado. E pra evi­
tar confronto. Acabei envolvido em pro­
blemas por aceitar palavras e muito mais
sem questionamento. Sim. Recebo e
cumpro ordens. Deve ser uma progra­
mação mental ou herança cármica. Mas
não sou vítima, nada disso. Como já falei,
pode ser, no fundo, uma estratégia. Afi­
nal, já recebi crédito pelo que não mere­
cia e também não reclamei.
Mas, fazendo as contas, devo di­
zer, sem que isso soe como queixa, que
fui acusado de ações transgressoras que
não fiz. E, penso agora, se eu tivesse ten­
tado me defender, talvez tivesse evitado
algumas situações que aconteceram em
minha trajetória. Passei sete anos den­
tro de uma prisão. O motivo? Não vem
ao caso, mas foi por um crime que não
cometi. Confessei o que não havia feito
e, a partir da confissão, segui para o con­
finamento. Apanhei pouco, só no início.
E, se dependesse de mim, até hoje esta­
ria lá. Mas fui expulso. Cumpri a pena e
esqueci que estava livre. Confesso, mas
que isso não se torne público, que pe­
guei gosto. Sim. Passei a ter tempo li­
vre. E muita oportunidade pra perma­
necer quieto. Também adquiri hábitos,
que outros poderiam chamar de vícios.
Passei a fumar, o que pode vir a ser um
problema a médio e longo prazo. Mas
perdi peso e, mais importante, comecei
a aprender a controlar a respiração.
XX
Um dia, recebi dinheiros ines­
perados e assim surgiu uma tempora­
da de descanso, dez dias, dez noites, e
pela primeira vez na vida fiquei de fren­
te para o mar, instalado em um aparta­
mento de cobertura. Comia quando ti­
nha fome, bebia quase o tempo todo e
olhava o mar. Sol e brisa. E, pelo que
lembro, não falei com ninguém durante
aquele intervalo. Só balbuciava algo ao
pedir um prato em um restaurante ou
um drinque na beira do mar. Fora isso,
apenas silêncio. E, sem exagero, analiso
que aquele talvez tenha sido um dos pe­
ríodos mais felizes que conheci.
XXX
Estão gritando em algum aparta­
mento próximo daqui, de onde escrevo
este texto. Pode ser uma festa. Os gri­
tos continuam, não escuto com clare­
za, a janela está fechada, não vou abrir.
É noite de jogo de futebol? Os gritos
seguem. Seriam jovens a compartilhar
novidades? Ou adolescentes tentando
aproximação? Talvez, meninos e meni­
nas a brincar de algum jogo ou apenas a
correr no pátio do prédio onde vivo faz
tanto tempo que nem lembro quanto, e
me dou conta de que estou me esque­
cendo de quase tudo.
Marcio Renato dos Santos
Ilustração: Marcelo Cipes
XXXX
Tenho uma inflamação na gar­
ganta que dói em noites como esta, de
chuva e temperatura de menos de dez
graus. Durante uma das primeiras cri­
ses, fui até uma farmácia e sem consul­
tar médico comprei analgésico e outro
remédio recomendado por uma bal­
conista. A dor passou após os primei­
ros comprimidos. A inflamação dimi­
nuiu na manhã seguinte. Mas nunca
me curei completamente e basta chover
e a temperatura exigir casacos durante
o dia e cobertores durante a noite para
que o problema retorne. Já me disse­
ram que não é nada, apenas algo somá­
tico. Quem fala isso diz que a garganta
é o canal por onde se faz o som da fala
humana e, como sou quase não falante,
essa inflamação seria uma maneira que
eu teria inventado para evitar que o meu
som se materializasse.
Falar, como já disse, eu nunca
quis muito. Mas pensei em ser cantor, e
cantar eu jamais consegui. Nem fechado
dentro do banheiro. Nem em uma praia
deserta. Nem nos sonhos. Talvez, anali­
jornal da biblioteca pública do paraná |
Cândido 29
30 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná
conto
so somente agora, pelo mesmo motivo
que tenha me impedido de querer falar.
Medo? Vergonha? Timidez? No fundo,
um pouco de medo, de vergonha e de
timidez. Mas, tenho de admitir, o que
sempre me deixou calado foi a sensação
de que eu nunca tive nem tenho nada a
dizer, nem como dizer e, por isso, não
precisava e não devo falar. Afinal, a gen­
te abre a boca pra dizer as coisas, não
é isso? Como nunca tive nada a dizer,
minha opção sempre foi pelo silêncio.
Mas como explicar que desde pequeno
eu poderia pensar nesse assunto, nesses
detalhes? Não sei, estou confuso, con­
fesso e apesar da confusão me dou con­
ta de que ao escutar os outros eu des­
confiava que todos tinham o direito de
falar e eu deveria apenas ouvir. E assim
a minha vida foi acontecendo, ouvindo,
escutando, calando.
XXXXX
Lembro de ter ido a muitas fes­
tas sem receber convite, e achava gra­
ça. Mais do que rir, fazia questão de ser
visto, odiado até pelos donos das casas.
Mas também fui convidado a outras
tantas. E em ambas as situações pouco
falava. Permanecia com a boca ocupada,
com bebida ou comida. Eu não teria o
que dizer, e ainda tinha vergonha de es­
tar onde estava, mas desejava frequentar
os eventos.
XXXXXX
O tempo passou, nem percebi e
então eu precisava de um emprego, qual­
quer um. Procurei. Bati em uma, duas,
três, quatro, cinco, seis, sete portas e nada.
Um dia fui nomeado para uma função e
aceitei, sem dizer sim, apenas com um
sorriso, que foi bem recebido e interpre­
tado como aceito, sim, muito obrigado.
Passei a permanecer por pelo
menos dez horas todo dia dentro de um
barracão. Lá, tinha de controlar o que
entrava e o que saía. Eu era o inspetor.
E por mais de dois anos exerci a fun­
ção com alguma margem de acerto. Até
que um dia, uma manhã, fui chamado
até a sala do chefe e recebi a notícia de
que havia desfalque no estoque. Eu ti­
nha duas alternativas. Primeiro, contar
quem era o responsável pelo esquema. A
segunda opção seria confessar o crime.
Como permaneci calado, surpreso com
a acusação, e não reagi, o chefe enten­
deu que eu era responsável ou cúmplice
e, devido a essa conclusão, fui mandado
embora, sem direito a nenhum dinheiro
e ainda com a condenação de trabalhar
em um outro barracão por mais alguns
meses, e sem receber salário.
XXXXXXX
Dias, meses, anos, décadas de­
pois do incidente do barracão, muito se
passou, mas não vou contar nada, ape­
nas que adquiri, ou melhor, construí um
discurso. Finalmente eu tinha o que di­
zer. Também sabia como dizer. Mas,
então, chegava, sem que eu me desse
conta, a lei do silêncio. Após tanto tem­
po lamentando não ter o que nem como
dizer, quando conquistei a possibilidade
de me expressar, não era mais permitido
dizer nada. Tentei me comunicar, mas
percebi rapidamente que não seria con­
fortável, pra mim, nem pra ninguém,
abrir a boca. E por isso continuei em si­
lêncio. Permaneci por dias, meses, anos
e décadas calando. Ou dizendo apenas
oi, olá, como vai?, tudo bem? Eu sorria
de boca fechada.
XXXXXXXX
Há pouco eu reclamava de uns
gritos e dizia que poderiam ser adoles­
centes brincando ou envolvidos em ri­
tuais de aproximação, mas como tive de
ir até o banheiro, na volta olhei pela ja­
nela da sala, que estava com a lâmpada
apagada, e vi a briga. Dois grupos rivais,
duas torcidas de times de futebol adver­
sários, trocavam socos, alguns batiam
e outros apanhavam. Todos gritavam.
Olhei e não fiz nada, permaneci cala­
do, como daquela vez em que pela mes­
ma janela presenciei um assalto e segui
mudo ao invés de gritar.
Já faz tempo, tentei torcer por um
time de futebol e comecei a frequentar
estádios todos os domingos. Conheci
algumas pessoas que também frequen­
tavam as arquibancadas, não eram ami­
gos, mas gente com quem eu conversa­
va. Eles torciam, gritavam, xingavam, e
eu queria fazer o mesmo. Mas nem com
esforço, nem tentando imitar consegui
repetir aquele comportamento. Queria
gritar, mas não saía som da minha gar­
ganta. Queria gesticular, mas nenhum
gesto se esboçava a partir de meus bra­
ços. Eu continuava imóvel e em silên­
cio, como costuma ser o meu estar no
mundo desde que me lembro das coisas.
XXXXXXXXX
Os anos passaram e, confesso, te­
nho saudade dos dias ruins, das noites
de insônia, dos conflitos que me tiravam
o sossego. A lei do silêncio acabou, mas
agora nem sei se sinto vontade de dizer
algo. Hoje sou um velho, nem sei quan­
to tempo me resta e parece que tudo vai
acabar daqui a pouco.
XXXXXXXXXX
Se caminho pela rua principal é
por não ter opção. Quero passear, mas
cada passo me custa e nem tenho cer­
teza de que estou vendo o que está ao
meu redor. Essa cidade, aqui mesmo,
onde nasci e sempre morei, mais pare­
ce um país para o qual me foi negado
o passaporte. Já não conheço ninguém.
Como pode? O comerciante de roupas,
a dona da loja de perfumes, o chefe da
polícia, a mulher mais linda da cidade.
Eu sabia quem eram, onde moravam e o
que faziam nos dias de folga. Esse som,
está ouvindo?, esse som, acho que é de
oboé, escutou?
Parece a trilha sonora do meu fim.
XXXXXXXXXXX
Onde vocês foram? Por que não
me escutam? Vocês. Todos. Sim. Cadê
todo mundo? Oi. Tudo bom? O quê?
Não me conhece? Como não? E você?
Ah, também não. Sim, posso dar li­
cença. Você, ei, menino, não tem nada
na minha carteira. Pode levar. E você,
garota. Calma, calma. Tudo bem, des­
culpe. Eu me confundi. Me desculpe.
Sim, isso não vai acontecer novamen­
te. Mas, o que aconteceu? Onde esta­
rão todos? Agora eu tenho o que dizer.
Sei como contar.
Tem alguém aí?
XXXXXXXXXXXX
Tenho gravado a minha voz. Sim,
em casa, aqui, no quarto que dá vista pra
rua, eu fecho as cortinas e a porta, ligo
o aparelho de som. Começo e falo por
horas, às vezes adormeço de tanto fa­
lar. Depois ligo a gravação pra escutar a
minha voz. Conto pra mim coisas que
não posso deixar de lembrar, soar, voar,
por exemplo, como cheguei onde estou,
qual foi a sorte de não ter despenca­
do no precipício. Ninguém vai escutar,
saber, crer, mas preciso contar, e tenho
quase certeza de que só existi, existo
porque falo, digo e escrevo este texto. g
Marcio Renato dos Santos escreve ficção
há 20 anos. Estreou na literatura com o livro de
contos Minda-Au (2010). Mestre em Estudos
Literários pela Universidade Federal do Paraná
(UFPR), Marcio é jornalista e atua na Assessoria
de Comunicação do Museu Oscar Niemeyer
(MON). Vive em Curitiba (PR).
jornal da biblioteca pública do paraná |
retrato de um artista
Lima barreto
Por Osvalter Urbinati
Afonso Henriques de Lima Barreto
nasceu no Rio de Janeiro, no dia
13 de maio de 1881, mesmo dia
em que, sete anos depois, em
1888, foi assinada a Lei Áurea.
Porém, os resultados sociais da
escravidão foram amplamente
abordados em sua obra. Entre
seus principais livros, destacam-se
Recordações do escrivão Isaías
Caminha (1909), Triste fim de
Policarpo Quaresma (1911) e Vida
e morte de M. J. Gonzaga de Sá
(1919). Lima Barreto trabalhou
em diversas redações, sendo
considerado um dos inauguradores
do jornalismo literário no país.
Teve sérios problemas com
o alcoolismo, que o levou ao
sanatório por mais de um período.
Morreu no dia primeiro de
novembro de 1922, aos 41 anos.
Osvalter Urbinati é
designer gráfico por
formação e ilustrador por
insistência. Formou-se pela
UTFPR, em 2006, e desde
então ilustra, diagrama e
projeta jornais de Curitiba.
Também trabalha como
freelancer para as revistas
Mundo Estranho e Alfa.
Cândido 31
32 Cândido | jornal da biblioteca pública do paraná
poesia
Josely Vianna Baptista
Ilustração: Rafael Antón
Cortejo noturno
trouxe na lua crescente
uma canastra de peixes
(as guelras membranas baças
de romãs despedaçadas)
nos lampejos da minguante
um puçá de caranguejos:
tanino do mangue-bravo
fez o azul das carapaças
das fasquias de taquara
fisgou argolas de palha;
as plumas de maguari
transbordando das cabaças
no cesto da lua nova
frutos roxos de figueira,
gavelas, paveias, feixes
para o leito sobre a areia
Josely Vianna Baptista nasceu em
Curitiba (PR), em 1957. É poeta, tradutora
e escritora. Entre seus livros, estão Ar (1991),
Corpografia (1992) e A concha das mil
coisas maravilhosas do velho caramujo
(2001). Em 1996, criou a coleção Cadernos
da Ameríndia, dedicada a temas do repertório
cultural e textual de etnias indígenas sulamericanas. Os dois poemas publicados aqui
fazem parte do livro inédito Roça barroca, que
a editora Cosac Naify lança em janeiro.
29 dias
restos de flores de goivo,
gomos e lábios vermelhos
– o lento engenho do jogo
no começo dos afagos
(sobre o leito frondoso
o alvorecer poento
encontre os noivos reclusos
dentro do próprio desejo)
dedos trêmulos e beijos
sobre seus cabelos negros
– lampejo sombrio do gozo
no fôlego dos abraços
(junto aos latejos do fogo
o poente poeirento
encontre os noivos desnudos
no assombro do silêncio)
restos de flores de goivo
sobre seus cabelos negros

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