mediapolis #1 - TriploV Blog

Transcrição

mediapolis #1 - TriploV Blog
revista de comunicação,
jornalismo e espaço público
1
mediapolis
Periodicidade
Semestral
tema
os media e a construção
de personagens
Imprensa da Universidade de Coimbra
© Lugares da Personagem, António Barros, 2014-2015, #1 - Madrid_Teatro Beatriz
Coimbra University Press
1
revista de comunicação,
jornalismo e espaço público
1
Periodicidade
Semestral
Imprensa da Universidade de Coimbra
Coimbra University Press
Ficha técnica
Direção
Conselho Científico e Consultivo
Carlos Camponez
Edição
Imprensa da Universidade de Coimbra
Administração
Centro de Estudos Interdisciplinares do Século
XX da Universidade de Coimbra – CEIS20,
Rua Filipe Simões, nº 33,
3000-186, Coimbra, Portugal,
Email: [email protected],
Telf.: +351 239 708 870
Fax: +351 239 708 871.
Direção de Imagem
António Barros
Design
Carlos Costa
Impressão
Adriano Duarte Rodrigues
Direção executiva
da presente edição
Universidade Nova de Lisboa
Ana Teresa Peixinho
Carlos Camponez
João Miranda
Rita Basílio de Simões
Sílvio Santos.
Universidade Nova de Lisboa
Alberto Arons de Carvalho
Carmen Echazarreta
Universidade de Girona (Espanha)
Felisbela Lopes
Universidade do Minho
Gilles Gauthier
Redação
Universidade de Laval (Canadá)
Ana Teresa Peixinho
Carlos Camponez
Clara de Almeida Santos
Francisco Pinheiro
Inês Godinho
Isabel Nobre Vargues
João Figueira
Luís Augusto Costa Dias
Rita Basílio de Simões
Rosa Sobreira
Sílvio Santos
Helena Sousa
Depósito Legal
Universidade do Minho
Hugo Aznar
Universidade Cardenal Herrera (Espanha)
Isabel Ferin
Universidade de Coimbra
João Canavilhas
Universidade da Beira Interior
João de Almeida Santos
Universidade Lusófona
João Pissarra Esteves
Universidade Nova de Lisboa
Uma Galeria de Imagem
Joaquim Fidalgo
António Barros
Universidade do Minho
ISSN
2183-5918
Manuel Pinto
Universidade do Minho
João Carlos Correia
ISSN Digital
0000-0000
Universidade da Beira Interior
Marc Lits
Universidade Católica de Louvain-la-Neuve (Bélgica)
DOI
http://dx.doi.org/10.14195/0000-0000
Normas da revista e princípios éticos:
http://www.
Marcos Dantas
Universidade Federal do Rio de Janeiro (Brasil)
Maria João Silveirinha
Universidade de Coimbra
Mário Mesquita
Escola Superior de Comunicação Social de Lisboa
Muniz Sodré
Universidade Federal do Rio de Janeiro (Brasil)
Simon Cottle
Universidade de Cardiff (Reino Unido)
Teresa Ruão
Mediapolis – Revista de Comunicação,
Universidade do Minho
Jornalismo e Espaço Público
N.º 1 – 1.º SEMESTRE DE 2015
Tito Cardoso e Cunha
Universidade da Beira Interior.
Sumário
Apresentação
Carlos Camponez |
5
Os Media e a Construção
de Personagens
Vária
Camus, o Africano
Estatutos | 7
As investigações sobre a narrativa
Cristina Robalo Cordeiro | 119
mediática e o futuro da imprensa
Albert Camus ou a experiência
INTRODUÇÃO
Marc Lits | 15
do jornalismo crítico
Carlos Camponez e
The Special One. Fenomenologia
Ana Teresa Peixinho | 9
do Heróis Desportivo
mediapolis 1
Mário Mesquita | 127
Carlos Reis | 31
Recensões
Ascensão e Queda
GOMES, Pedro Marques (2014).
das Celebridades Desportivas
Saneamentos Políticos no Diário
Rui Machado Gomes | 55
e Notícias: Verão Quente de 75
João Miranda | 135
Reflexões Sobre Comunicação
LITS, Marc (2008).
e Desporto: Sobre Jornalismo
Du Récit au Récit Médiatique
e Cultura Digital
Ana Teresa Peixinho | 139
Raymond Boyle | 65
SMALL, Helen.
The Value of the Humanities
A Agenda Setting dos
António Sousa Ribeiro | 143
Media Sociais no Desporto
Uma Galeria de imagem
Thomas Horky e Barbara Stelzner | 79
Lugares da Personagem
A Cidade e as suas Personagens
António Barros | 146
em Fim de Século: Quadro
Créditos | 148
de emergência de uma cultura
urbana de massas em Portugal
Ana Teresa Peixinho e Luís Costa Dias | 101
3
Carlos Camponez
Diretor da mediapolis, professor da Faculdade de
Letras da Universidade de Coimbra e Coordenador do
Grupo de Investigação em Comunicação, Jornalismo
e Espaço Público do CEIS20 ([email protected])
Apresentação
A Mediapolis – Revista de Comunica­
cenciatura, mestrado e doutoramento,
assumem o projeto como uma atitude
ção, Jornalismo e Espaço Público é
bem como na perspetiva humanista
irreverente face ao contexto circun-
uma revista do Grupo de Investigação
que desde o início os caracterizaram.
dante e fazem-no como um desafio
de Comunicação, Jornalismo e Es-
Este processo culminou com a criação,
que resulta da interpretação acerca
paço Público (GICJEP), do Centro
há cerca de dois anos, do GICJEP,
das suas responsabilidades sociais,
de Estudos Interdisciplinares do Sé-
e o estabelecimento de projetos de
do seu interesse pela cultura, pelo
culo XX (CEIS20), da Universidade
investigação transversais quer entre
saber, pelo jornalismo e pela cida-
de Coimbra. Com a presente edição,
investigadores da Faculdade de Letras
dania, muito para além das lógicas
pretendemos dar relevo público a um
quer do CEIS20.
sistémicas que, cada vez mais, pare-
projeto de investigação que reúne um
cem dominar estas áreas de estudos,
grupo de investigadores de várias
Assumimos o risco da ambição em
quer pela Administração da Ciência
áreas disciplinares, mas que encon-
tempos difíceis, como são estes que
quer, por vezes, pelos próprios in-
tram nas Ciências da Comunicação o
nos caracterizam. Tempos de crise
vestigadores.
seu pólo comum de estudo e pesquisa.
— no sentido etimológico de separar,
escolher, julgar e decidir — com
Na consciência de que a irreverência
O projeto assume como principal preo-
duros desafios para a investigação
não é compatível com a sobranceria,
cupação a investigação da comunica-
em Portugal; mas também tempos de
a Mediapolis é um projeto aberto a
ção, do jornalismo e do espaço público,
crise no panorama geral dos estudos
todos os espíritos que nutrem um in-
não como áreas disciplinares e de saber
da Comunicação, do Jornalismo e do
teresse pelas temáticas abordadas e
estanques, mas como problemáticas
Espaço Público, marcados por uma
que pretendam dar expressão a esse
socialmente relevantes e relacionadas,
forte incerteza, inerente às mudan-
interesse de uma forma crítica, recor-
numa perspetiva científica e crítica.
ças sociais, socioprofissionais e tec-
rendo aos instrumentos metodológicos,
nológicas, com consequências no que
científicos e conceptuais considerados
A Mediapolis é, neste contexto, o co-
se refere ao pensamento social e da
capazes de contribuir para o avanço
rolário lógico do desenvolvimento e
comunicação, exigindo uma atenção
das Ciências da Comunicação.
da consolidação dos estudos na área
e argúcia redobradas de quem tem a
da comunicação e do jornalismo da
responsabilidade social de perceber,
Cremos, por isso, que a realização
Faculdade de Letras da Universida-
conceptualizar e prever estes fenó-
plena dos objetivos da Mediapolis
de de Coimbra, iniciados há cerca de
menos do ponto de vista científico.
passa por uma participação alargada
20 anos, que tiveram a sua expressão
Neste contexto, o grupo de investiga-
de colaboradores, sem outras fron-
inicial nos projetos formativos de li-
dores que deram origem à Mediapolis
teiras que não resultem da própria
5
especificidade editorial da revista.
Por isso, gostaríamos que este primeiro número fosse também um convite à participação de todos, pela sua
leitura, crítica, divulgação e partilha
das suas investigações e do seu saber.
Agradecemos de forma particular a
todos aqueles que aceitaram o nosso
repto para participarem nesta primeira
edição e nos órgãos que dão corpo à
revista, com a promessa de não querermos gorar as expectativas, que são de
todos nós, e na certeza de buscarmos
© Lugares da Personagem, António Barros, 2014-2015, #2 - Coimbra_Mondego
sempre melhorar.
Estatutos
mediapolis – Revista de Comunica­
sível a um público aberto e interes-
e a internacionalização de investiga-
ção, Jornalismo e Espaço Público é a
sado pelas questões da comunicação
dores e da investigação realizada em
publicação científica do Grupo de In-
e pela promoção da cultura científica
língua portuguesa; a divulgação de
vestigação em Comunicação, Jornalis-
na área das Ciências da Comunicação,
investigações e textos científicos de
mo e Espaço Público, do Centro de Es-
do jornalismo e dos media.
referência internacional no espaço
tudos Interdisciplinares do Século XX,
lusófono.
e pretende ocupar um espaço de re-
A Revista privilegiará o suporte digi-
ferência no espaço lusófono e latino‑
tal e afirmar-se-á no espaço internaci-
Para além da direção, a mediapolis
-americano, na publicação de artigos
onal através da publicação de números
é composta pelos seguintes órgãos
e investigações, na área dos media e
especiais em língua inglesa, com os
internos:
do jornalismo, dando particular ênfase
melhores artigos publicados e projetos
aos aspetos relacionados com as suas
realizados.
Direção executiva, com a responsa-
incidências no espaço público, nos
sistemas políticos e na democracia.
bilidade de coordenar todo o trabalho
O projeto editorial assume o caráter
editorial da Revista, tendo em conta
interdisciplinar do próprio centro de
os contributos dos conselhos consul-
mediapolis – Revista de Comunica­
investigação em que se integra, pro-
tivo e científico. A direção executiva
ção, Jornalismo e Espaço Público é um
curando analisar o campo dos media
será definida em função do tema e
dos pólos privilegiados de divulgação
e do jornalismo, a partir de várias
da equipa coordenadora da Revista.
e internacionalização do trabalho da
ferramentas teóricas e metodológicas
investigação do Grupo de Investigação
das Ciências Sociais e Humanas e de
Redação, constituída pelos investiga-
em Comunicação, Jornalismo e Es-
outras áreas científicas, que possam
dores responsáveis pela organização e
paço Público (GICJEP), devendo dar
contribuir para abertura de novas
publicação da Revista, de preferência,
particular atenção ao desenvolvimento
perspetivas e para o aprofundar do
abarcando todos os investigadores do
de novas linhas de investigação e à
saber no domínio das Ciências da
grupo, tendo como funções:
promoção do trabalho de novos in-
Comunicação.
vestigadores.
- Assegurar a adequação da linha
É um dos objetivos da mediapolis o
editorial e política da publicação.
Não cedendo nas questões científicas
estabelecimento de parcerias e a cria-
- Participar na definição e delimita-
essenciais, a mediapolis – Revista
ção de projetos com outras publicações
ção da temática de cada número
de Comunicação, Jornalismo e Espaço
e centros de investigação congéneres,
da Revista, acompanhamento da
Público pretende ser um projeto aces-
visando, simultaneamente: a promoção
edição e dos call for papers.
7
- Fazer a gestão das propostas dos
– Sugerir temáticas de tratamento
artigos enviados para a publica-
tendo em conta as novas linhas
ção e nomeação dos revisores para
de desenvolvimento de estudos nas
elaboração de parecer.
áreas de investigação do Grupo de
a)
Comunicação, Jornalismo e Espa-
b)Varia;
ço Público.
c)
Conselho Científico, constituído
pelos membros doutorados do Grupo
– Sugerir investigadores que possam
de Comunicação, Jornalismo e Espa-
colaborar ou integrar a Revista
ço Público, bem como por investiga-
científica.
dores exteriores, reconhecidos nas
diferentes áreas de especialização.
Periodicidade: A mediapolis tem
O Conselho Científico terá por funções:
uma periodicidade semestral, de acordo com o seguinte modelo:
– Garantir a qualidade, rigor e serie­
dade da Revista em termos científicos.
1. Uma edição monotemática dedicada ao tema do congresso anual
– Avaliar as propostas e os artigos
do GICJEP, realizada a partir das
que chegam à Revista, enviados
comunicações dos conferencistas
pela Redação.
e de um processo de refree sobre
as comunicações apresentadas no
Conselho Consultivo, constituído
âmbito das respostas ao call for
pelos membros doutorados do Grupo
papers.
de Comunicação, Jornalismo e Espaço
Público, bem como por investigadores
2. Uma edição pluritemática pro-
exteriores, que se destaquem pelos
posta pelo órgãos científicos da
contributos no seu campo de estudo.
revista, dando expressão quer a
O Conselho Consultivo terá por funções:
linhas de investigações em curso
no GICJEP quer à atualidade dos
– Avaliar anualmente a Revista e
debates científicos sobre a Comu-
sugerir linhas estratégicas de de-
nicação, o Jornalismo e o Espaço
senvolvimento futuro.
Público.
Esta edição organizar-se-á da seguinte
forma:
Tema Principal;
Recensões críticas.
INTRODUÇÃO
mediapolis 1
A escolha do tema deste primeiro nú-
dade, através das histórias escritas e
a notícia, nem acusá-la de ser fictícia.
mero da mediapolis releva fundamen-
construídas pelos media.
Melhor, alerta-nos para o facto de a notí-
talmente de uma opção estratégica que
cia, como todos os documentos públicos,
se prende com o desenvolvimento de
Na verdade, estes são hoje uma das
ser uma realidade construída possuidora
uma linha de investigação, no interior
grandes fábricas de mitos contempo-
da sua própria validade interna.
do Grupo Jornalismo, Comunicação e
râneos, como bem assinalou Roland
Espaço Público, dedicada aos Estudos
Barthes em alguns dos seus artigos
Contudo, com o evoluir dos tempos
Narrativos Mediáticos.
de Mitologias. Mesmo a narrativa de
e o domínio das novas tecnologias,
No posfácio a Mitologias, Roland Bar-
imprensa, responsável por mediar a
nomeadamente a web e a sua dinâmi-
thes sublinha que o mito é uma fala, no
realidade de uma maneira objetivada,
ca hipertextual, assiste-se ao apareci-
sentido saussureano do termo: o mito é
não é um lugar de pura e simples resti-
mento de novos produtos mediáticos,
um sistema de significação secundário
tuição de factos. Não são recentes já as
resultante da contaminação de supor-
que se alimenta da linguagem, dela se
teorias da comunicação que explicitam
tes e da miscigenação de linguagens.
apropriando para criar novos sentidos.
a construção a que o discurso mediá-
Por isso, como é circunstanciadamente
Se, na Antiguidade clássica, os mitos
tico submete o material em bruto da
desenvolvido no artigo de Marc Lits
eram as grandes histórias, capazes de
realidade, procedendo a uma semanti-
— As investigações sobre a narrativa
responder às principais interrogações,
zação do mundo que necessariamente
mediática e o futuro da imprensa —,
dúvidas e perplexidades das socieda-
decorre de um processo de seleção,
a narratologia clássica revela-se insu-
des de então, hoje, como na década
fundado em critérios profissionais, e
ficiente como instrumento analítico da
em que o semiólogo francês publicou
executado por meio de ferramentas
nova narratividade mediática. Assim,
as suas petites mythologies no jornal
discursivas próprias (Bignell, 2003:
defende o autor belga, é urgente fun-
Les Lettres Nouvelles, os mitos foram
79-104). As narrativas jornalísticas são
dar as bases de uma “hipernarrato-
substituídos por notícias, reportagens,
sobretudo construções e representações
logia” que permita entender melhor
documentários, filmes, séries e, mais
da realidade que relevam de escolhas
o funcionamento dos novos produtos
recentemente, por videojogos, post fa­
ideacionais e interpessoais, como bem
mediáticos, essencialmente impuros,
cebookianos, tweets. Em comum, todos
assinalou há quase duas décadas a
contaminados e multimédia.
estes formatos e géneros têm o pendor
americana Gaye Tuchman, no célebre
narrativo: é ele que permite construir
artigo “Contando estórias”:
O poder narrativo da textualidade me-
uma legibilidade sociopolítica do
diática tem como expoente máximo a
mundo, dando forma e organizando
Dizer-se que uma notícia é uma “estó-
construção de personagens. Como aler-
os quadros de pensamento da reali-
ria” não é de modo nenhum rebaixar
ta Marc Lits, em livro recenseado neste
9
número, a atividade de construir per-
media. Um dos principais problemas
não têm obrigatoriamente de se fixar
sonagens pelos media é de uma enor-
suscitados pela reflexão sobre o fun-
a essa imagem do mundo extratextual,
me responsabilidade, pois, na maioria
cionamento da personagem jornalísti-
neste caso específico do jornalismo é
dos casos, são eles as únicas fontes
ca diz respeito à sinuosa relação que a
obrigatória essa colagem. Como nos diz
de conhecimento que o público tem ao
narrativa jornalística estabelece com
Ricoeur, a ficção suspende a referen-
seu dispor. Um dos autores portugue-
o mundo que representa, aparentando
cialidade imediata porque é ela pró-
ses que, de modo mais sistematizado,
ser uma narrativa factual mas recor-
pria uma estrutura de comunicação: a
problematiza o contributo dos Estudos
rendo a instrumentos e procedimentos
realidade é organizada pela ficção. Por
Narrativos para a perceção e compreen-
retóricos e narrativos tipicamente li-
isso, não podemos postular em termos
são do funcionamento da personagem
gados à narrativa ficcional.
ontológicos um confronto entre ficção e
jornalística é Mário Mesquita que, no
Se a narrativa jornalística é uma cons-
realidade porque esta é modelada por
seu artigo “Personagem Jornalística:
trução textual, discursiva e social, a
aquela. Ora, na narrativa jornalística,
da Narratologia à Deontologia”, cruza
questão transversal a toda a proble-
o real é referência incontornável, da
conceitos e abordagens da narratolo-
mática de figuração da personagem
qual o jornalista parte para selecionar
gia com exemplos e testemunhos dos
mediática diz respeito à fronteira entre
e fazer a triagem das potencialidades
media, defendendo que o estudo da
o factual e o ficcional. Se a relação
diegéticas dos factos, transformando-os
construção da personagem jornalística
entre persona e personagem é um dos
em acontecimentos. Assim, ele não é
se deve intercetar com os princípios da
paradoxos que a teoria da narrativa
um mero espectador passivo, pois é res-
deontologia profissional. Esta parece-
tem interpelado e desenvolvido, no
ponsável pela produção de um discurso
‑nos ser uma questão crucial, para se
caso particular da personagem em
referencial que entra no processo de
perceber o impacto que os media têm
contexto de narrativa jornalística, ela
construção da realidade.
nos modos como mitificam pessoas,
assume uma dimensão muito relevante.
Neste sentido, a personagem é também
projetando-as no espaço público.
Os atores sociais que povoam as
afetada, no interior da narrativa jorna-
O mesmo é dizer que, quando falamos
notícias e as reportagens – géneros
lística, pelo conjunto de escolhas a que
em pessoa / ator social e personagem
narrativos por excelência do discurso
os seus autores têm de proceder quan-
jornalística estamos, na verdade, a
mediático de informação – decorrem
do a constroem e que se fundamen-
falar de duas realidades distintas,
de construções que mimetizam pes-
tam sempre num conjunto complexo
pese embora a obrigatoriedade de
soas reais, com existência ontológica.
e dialogante de códigos que presidem
referencialidade à qual o jornalista
Enquanto nos mundos possíveis da
à elaboração da grande narrativa de
se submete, pois que o leitor apenas
narrativa literária, as personagens,
imprensa: códigos deontológicos, pois
acede a essa figura construída pelos
mesmo quando inspiradas em pessoas,
que o discurso emana de uma formação
discursiva de matriz profissional; códi-
posições intersubjetivas, dialógicas e
que produz e sustenta tal relação”, pro-
gos narrativos que vão ao encontro da
altamente profissionalizadas, em que a
curando uma compreensão das amplas
dimensão comunicacional dos textos;
intervenção do jornalista é, em muitos
ligações entre cultura, media, economia
e códigos retórico-estilísticos também
casos, mínima. O texto de Carlos Reis
e política. Para Boyle, a cultura do des-
eles submetidos aos valores da objetivi-
aqui publicado — The Special One.
porto cruza-se com a lei, a economia,
dade e da honestidade. Além do mais,
Fenomenologia do herói desportivo
a política, as relações internacionais,
existindo o pacto comunicacional, que
— explora precisamente este aspeto,
questões de governança, de direitos e
se instaura como um protocolo de lei-
tomando como paradigma a figuração
de cidadania, constituindo-se numa
tura, o leitor lê estas narrativas e suas
narrativa do herói desportivo no qua-
agenda de comunicação e desporto am-
personagens como índices de real.
dro operativo das grandes narrativas
pliada, nem sempre refletida ou abor-
Quando as diversas figuras que po-
mediáticas, sejam elas videojogos ou
dada dentro do jornalismo desportivo
voam o nosso universo social deslizam
relatos radiofónicos, manchetes de
dominante. Este poder que o desporto
para as narrativas mediáticas, adqui-
jornais ou documentários.
tem de incorporar no seu seio múltiplas
rindo o estatuto de personagens, per-
Ao centrarmos esta discussão em torno
dimensões da vida, muito para além do
dem a dimensão humana e complexa
da figura do desportista, e não da figura
relato da competição desportiva, tor-
que ontologicamente possuem, para se
do político, por exemplo, trazemos à
nam-no num facto narrativo total, (por
verem reduzidas a uma soma de traços
discussão uma dimensão da narrativa
referência ao de fenómeno social total,
identificadores, que compõem os seus
que transcende o domínio estritamente
definido por Georges Gurvitch), que ul-
perfis esquemáticos e incompletos, a
mediático, sem no entanto deixar de
trapassa as fronteiras do desporto e das
partir dos quais os leitores formarão
falar dele, denunciando-o. Enquanto
indústrias do entretenimento, onde a
a sua opinião. E essa construção é,
discurso, o desporto – a mais séria ba-
sociedade contemporânea se pode dar
muitas vezes, sobretudo quando se
gatela do mundo, como referia Christian
a ver, tanto naquilo que mostra como
trata de homens da política, do des-
Bromberger acerca do futebol – reflete
naquilo que oculta.
porto ou de grandes instituições como
as próprias formas de construção do
Esta linha de reflexão pode ser encon-
Hollywood, elaborada numa teia dis-
discurso social, tendo em conta a sua
trada, por exemplo, na análise que nos
cursiva em que se mescla a influência
profunda ligação com a natureza, a cria-
é trazida por Rui Gomes quando defen-
dos sofisticados assessores de imagem
tividade, a racionalidade e emotividade
de que a “desportivização do mundo”
da comunicação política e a capacida-
humanas. Por isso, diz-nos Raymond
se transformou na metáfora contempo-
de de triagem e de crítica do próprio
Boyle, estar interessado “na relação
rânea da globalização, naquilo que ela
jornalista. O produto final, que chega
entre comunicação e desporto é estar
tem de homogeneização, de codificação,
ao público, é já o resultado de com-
fascinado e intrigado com a sociedade
de racionalização do corpo e dos su11
jeitos. Expressão disso mesmo será a
Este quadro coloca a narrativa jornalís-
nais, no mundo desportivo da Grã-Bre-
preponderância da própria figura da
tica num patamar complexo de análise
tanha, por exemplo, superam o número
celebridade, que vem destituir o herói,
em que os media são simultaneamente
de jornalistas de desporto – proliferam
“memória-monumento” só acessível a
produto e produtores de narrativas
no discurso jornalístico, em clara per-
uns quantos. Nesta linha de argu-
várias, em resultado da sua autonomia
da de autonomia e de preponderância,
mentação, o surgimento da figura da
profissional – certamente – mas também
sempre que se fazem ouvir as vozes da
celebridade corresponde a uma nova
do contexto das indústrias culturais
reestruturação económica nos media.
narrativa, acerca da democratização
em que se inserem. Com efeito, como
Porém, está ainda por vir o momento
do sucesso, da meritocracia, do valor
nos chamou a atenção noutro lugar
em que a diminuição do número de
mensurável dos sujeitos, mas ao mesmo
Michael Shudson, no seu estudo sobre
jornalistas nas redações será aclamada
tempo uma figura efémera e descartá-
o tratamento jornalístico às mensagens
como um atentado à liberdade de im-
vel, com o tempo de vida limitado à
presidenciais sobre o estado da nação,
prensa, no sentido mais lato do termo.
sua utilidade para a indústria mediá-
nos Estados Unidos, “não há apenas
Integrados no quadro das indústrias
tica. Se nos recordarmos do que Mário
uma narrativa da política nas notícias;
culturais, pressionados pelas exi-
Mesquita nos diz acerca da tendência
as notícias são parte da política da forma
gências específicas das empresas de
do jornalismo em retratar personagens
narrativa”.
media, cada vez mais concorrentes
“planas”, sem relevo nem espessura,
O texto de Boyle retoma este processo
com os profissionais da comunicação
talvez possamos perceber melhor uma
simbiótico, neste caso perspetivado na
organizacional e do marketing, os jor-
das razões pelas quais a celebridade,
relação existente entre media e celebri-
nalistas disputam agora o seu estatuto
que tem o seu habitat natural nos me­
dade e que marca também a construção
de mediadores das mensagens públi-
dia, apenas pontualmente aspire al-
da figura do desportista contemporâneo.
cas com os próprios cidadãos que é
cançar valores transcendentais. Como
À medida que o desporto foi adquirindo
suposto servirem. O principal desafio
salien­ta Rui Gomes, a celebridade é um
importância para os media, também as
da proposta de criação de uma hiper-
dos mais importantes mecanismos de
celebridades e os seus valores-notícia,
narratologia, a que fizemos anterior-
mobilização do desejo e seu potencial
“enquanto produtos mediáticos apetecí-
mente referência, talvez resida nesse
narrativo reside no seu alcance mer-
veis”, começaram a adquirir um papel
aspeto crucial: o de conseguir captar
cadológico, em que a ética do trabalho
central na indústria do desporto. Hoje,
a complexidade narratológica dos me­
e da produção dá lugar a uma estética
as práticas de Hollywood estão cada vez
dia contemporâneos, cada vez mais
efémera do consumo, mais consentânea
mais presentes nos media. Do mesmo
sujeitos à hibridação com o discurso
com o que Appadurai denomina por
modo, as técnicas e as narrativas das
produzido nas redes sociais. Quer
disciplina social da imaginação.
Relações Públicas – cujos profissio-
Boyle quer Thomas Horky e Barbara
Steizner mostram muito bem como
cacional dos media, à (pretensa) au-
assinalada no pós-Guerra por Camus,
as redes sociais puseram em causa a
tonomia do jornalismo face aos outros
no primeiro editorial no jornal Combat:
estrutura tradicional dos códigos de
campos sociais, à natureza económica
trabalho estabelecidos, tendo por base
da produção de conteúdos jornalísticos
“O nosso desejo, tanto mais pro­
a autoridade mediadora do jornalista
no quadro das empresas capitalistas.
fundo quanto era mudo, consistia
perante a opinião pública e o seu esta-
Todavia, esta discussão está parti-
em libertar os jornais do dinheiro e
tuto privilegiado no acesso ao palco dos
cularmente patente no espaço que
de lhes dar um tom e uma verdade
acontecimentos. E se é certo, como nos
dedicámos aqui à evocação dessa
que coloquem o público à altura
diz Marc Lits, que a narrativa, no relato
memória-monumento que foi Albert
daquilo que nele há de melhor”.
dos acontecimentos nas redes sociais,
Camus. Falamos agora de dois textos
continua a ter por referência o discurso
que resultaram das conferências de
A este propósito talvez devêssemos
dos media, Horky e Steizner demons-
Mário Mesquita e Cristina Robalo
recordar o lamento dos adeptos esco-
tram, no entanto, que já não estamos
Cordeiro, aquando da comemoração
ceses, proferido quando dos momentos
a falar apenas do mesmo por outros
dos 100 anos do nascimento de Al-
de derrota da sua seleção nacional
meios: as redes sociais elegem novos
bert Camus, realizada a 7 de novem-
de futebol: “É a esperança que nos
heróis desportivos, suscitam novos va-
bro de 2013, na Faculdade de Letras
mata”. Na verdade, o mesmo será dizer
lores-notícia, dão uma carga emocional
da Universidade de Coimbra. Ambos
que “é a esperança que nos mantém
suplementar à discussão pública e de-
nos falam de liberdade: em primeiro
vivos” e nos faz levantar, quando ela
sencadeiam novos fatores de exposição
lugar, numa liberdade dos sujeitos,
encerra um projeto em que acredita-
e mediatização de atletas, criando uma
como pré-condição a qualquer projeto
mos e ao qual sentimos que vale a
alternativa à agenda mediática a que os
de emancipação social; em segundo,
pena dedicar o nosso tempo: um dia,
próprios media não são alheios.
sobre a liberdade no jornalismo.
uma vida… é assim para as questões
A discussão que emerge destas cons-
Mais de século e meio depois de Émile
da comunicação e do espaço público
tatações empurra-nos inevitavelmen-
de Girardin ter implantado o modelo
contemporâneo; é assim, acreditamos,
te para um discurso ético-normativo
de negócio que colocou o Jornalismo
para o projeto científico e editorial a
acerca do jornalismo contemporâneo,
a par da Industrialização e da cultura
que agora damos início.
como não poderia nem nunca poderá
de massas emergente no século
deixar de ser. Essa dimensão atravessa
Boyle parece questionar-se se o modelo
Carlos Camponez
de forma subliminar os temas até aqui
de negócio então criado ainda serve
Ana Teresa Peixinho
focados, desde a natureza da própria
o jornalismo. Esta difícil convivência
narrativa implícita no pacto comuni-
entre capitalismo e jornalismo era já
XIX ,
13
Marc Lits
Professor da Université Catholique de Louvain e
membro do Observatoire de Recherche sur les Médias
et le Journalisme ([email protected]).
As investigações sobre a narrativa
mediática e o futuro da imprensa
© Lugares da Personagem, António Barros, 2014-2015, #3 - Coimbra_Mondego
Research about media narratives and the future of the press
Resumo
Abstract
Résumé
Há vinte anos, o Observatoire de Re­
Twenty years ago, the Observatoire du
Il y a vingt ans, l’Observatoire du Récit
cherche sur les Médias et le Journalisme
Récit sur les Médias et le Journalisme
sur les Médias et le Journalisme forgeait
(ORM) criou a noção de narrativa me-
forged the concept of media narrative,
la notion de récit médiatique, en utilisant
diática, usando o modelo construído por
using the model developed by Paul Ri-
le modèle construit par Paul Ricœur dans
Paul Ricoeur em Temps et Récit para o
coeur in Temps et récit, in order to apply
Temps et Récit, pour l’appliquer à la mise
aplicar à narrativização das informações
it to the set of information narrative in
en récit des informations dans les médias
nos media contemporâneos. Atualmente
contemporary media. Nowadays, when
contemporains. Aujourd’hui, à l’heure où
e numa altura em que as novas tecnolo-
new technologies have changed the me-
les nouvelles technologies ont modifié les
gias modificaram os modos de construção
thods of producing the narrative and the
modes de fabrication du récit et les prati-
da narrativa e as práticas das redações,
practices in the newsroom, when users are
ques des rédactions, où les usagers sont
em que os utilizadores são também co-
also co-producers of the information that
aussi les co-constructeurs de l’information
‑construtores da informação que leem e
they read and criticize, we must re-discuss
qu’ils lisent et critiquent, il faut rediscuter
criticam, torna-se necessário rediscutir a
the very concept of narrative. This one
de la pertinence de la notion même du
pertinência da própria noção de narrativa.
became more fragmented, open to rein-
récit. Celui-ci est plus éclaté, ouvert à des
Esta surge mais fragmentada, aberta a
terpretations and to forms of polyphony,
réécritures, à des formes de polyphonie,
reescritas, a formas polifónicas que care-
which call to found a hypernarratology.
qui demandent de fonder une hypernarra-
cem da criação de uma hipernarratologia.
This is urgent, in order to not succumb
tologie. C’est urgent, pour ne pas succom-
É urgente esta criação, a fim de não ceder
to the dominant model of storytelling, in
ber au modèle dominant du storytelling,
ao modelo dominante do storytelling, para
which a narratological criticism should be
dont une critique narratologique doit être
o qual ainda deve ser desenvolvida uma
developed, and to understand the return
développée, et pour comprendre le retour
crítica narratológica, e para compreender
of a narrative journalism in the United
d’un journalisme narratif, aux États-Unis
o regresso de um jornalismo narrativo,
States and Europe, both in print and new
et en Europe, tant en presse écrite que
nos Estados Unidos e na Europa, tanto na
formats, such as the magazine XXI or the
dans les nouveaux formats comme la revue
imprensa escrita como em novos formatos,
web documentaries.
XXI ou les webdocumentaires.
Palavras-chave: Narrativa, media,
Keywords: Narrative, media,
Mots-clés: Récit, médias,
hipernarratologia.
hipernarratology
hipernarratologie.
tais como a revista XXI ou os webdocumentários.
Tradução de Maria Elsa Aires ([email protected])
15
Desde a sua criação, há pouco mais
socioeconómicos, como no caso do
difundida para um público de leitores/
de vinte anos, o Observatoire de Recher­
fait-divers, do fotojornalismo ou, hoje
ouvintes, simples recetáculos passivos
che sur les Médias et le Journalisme
em dia, do web documentário (Lits,
de sequências informativas sobre as
(ORM) pretendeu teorizar a noção de
2008). Mas a narrativa constrói-se
quais não tinham qualquer controlo
narrativa mediática. Nessa altura, a no-
também na sua reapropriação e vá-
(exceto reagindo por intermédio do
ção de narrativa, muito presente nas
rios estudos sobre os usos sociais dos
“correio dos leitores” enviado pelos
teorias estruturais de análise textual,
media foram desenvolvidos, a partir
correios).
era praticamente inexistente no campo
de abordagens etnológicas de públicos
A emergência de novos modos de
da análise dos media e dos estudos
específicos. Estes contributos permi-
produção e de difusão da informação
sobre a informação e a comunicação.
tem-nos tratar, doravante, com uma
teria, segundo se diz com frequência,
Tomando por inspiração, entre outros,
série de conhecimentos estabelecidos,
modificado radicalmente as condições
os trabalhos de Paul Ricoeur e os seus
realidades informacionais tão instá-
de produção da profissão, as intera-
três volumes de Temps et Récit, o ORM
veis quanto incertas. E este trabalho
ções entre os emissores de notícias e
construiu esta noção de narrativa me-
é hoje partilhado por numerosas equi-
os próprios recetores inscritos na rede
diática e desenvolveu a narratologia
pas, sendo disso testemunho alguns
de transmissão dessas informações.
mediática.
números de revistas inteiramente
E, muito logicamente, os modos de
Na linha da perspetiva de Paul Ri-
consagrados a esta temática da aná-
escrita também teriam sido transfor-
coeur, a narrativa mediática era então
lise narratológica da informação, nas
mados, devido à publicação em su-
encarada como um vetor de constitui-
revistas Réseaux (2005) ou Quaderni
portes requerendo outros formatos, à
ção de identidade coletiva. Os primei-
(2010-2011), por exemplo.
aceleração das condições de produção,
ros trabalhos procuraram identificar
Quando esta noção de narrativa
à existência de novos públicos, for-
os movimentos da tripla mimésis,
mediática começou a desenvolver-se,
matados pela utilização da web e das
presentes na produção, na receção
os jornais diários de informação e
redes sociais.
e na apropriação das narrativas de
o telejornal eram ainda os suportes
Não nos debruçaremos, aqui, so-
informação. Duas décadas de inves-
privilegiados de difusão da informa-
bre as transformações verificadas na
tigação permitiram revelar processos
ção. Esta era redigida, a montante,
gestão da produção de informação por
do domínio da construção da perso-
por jornalistas profissionais, únicos
estas novas tecnologias, de que há
nagem, das virtualidades narrativas
detentores de informações recolhidas
muito se pressentia que iriam desen-
dos suportes mediáticos ou ainda das
nos locais do acontecimento, ou atra-
cadear grandes alterações na profis-
interações entre diegeses específicas
vés de conferências de imprensa ou
são (Grevisse e Lits, 2007), no preciso
e géneros jornalísticos ou contextos
ainda graças às agências noticiosas e
momento em que o modelo económico
da imprensa se encontra numa cri-
das práticas jornalísticas, com a emer-
fornece resultados que contradizem
se profunda (redução do número de
gência de um jornalismo participativo
um pouco esta hipótese de trabalho.
leitores, diminuição das receitas da
ligado ao desenvolvimento da web 2.0,
Mais de 10 000 000 palavras foram
publicidade, passagem dos suportes
e as suas implicações sobre lógicas de
analisadas de forma automatizada, a
em papel para os interfaces da web).
desprofissionalização que destabili-
fim de detetar os marcadores de sub-
Foram então realizados vários estu-
zam toda a profissão.
jetividade presentes nestes diferentes
dos sobre a forma como as redações
Se o impacto das novas tecnologias
se adaptaram à gestão da informação
sobre a organização das redações e
em linha, seguindo lógicas integra-
as transformações profissionais que
O que sobressai de uma análise
das ou ainda desenvolvendo equipas
originaram é inegável, é também
tão importante é que as hipóteses de
de redação complementares. Uma
necessário medir a influência des-
partida, assentes numa diferenciação
importante investigação belga sobre
tes novos desenvolvimentos sobre a
dos tipos de escrita, tanto em função
“a transformação da relação com a
escrita jornalística. Esta evolução
dos suportes escolhidos (papel versus
informação na comunicação multi-
poderia parecer evidente, no sentido
web) como dos objetivos redacionais
média”, coordenada por Benoît Gré-
em que os próprios especialistas da
(um quality paper, um pure player de
visse e reunindo investigadores das
narratologia mediática acordaram
informação e investigação, pelo menos
áreas da informação e comunicação,
que era necessário começar a falar
na sua fase inicial, um site de infor-
do direito e da linguística deu origem
de hipernarratologia, de forma a poder
mação cidadã e militante) são afinal
a vários estudos sobre esses aspetos.
ter em conta os efeitos da emergência
infirmadas. Concluída a análise, ve-
O colóquio internacional Towards a
de novos suportes sobre os modos e
rifica-se que as semelhanças vencem
neo-journalism, organizado em Bruxe-
formas de escrever. Contudo, a tese de-
as diferenças relevantes e não é pos-
las em outubro de 2012, deu origem a
fendida por Anne Küppers, em 2013,
sível, portanto, apenas a partir des-
inúmeras apresentações de trabalhos
pede que se relativize a importância
tes critérios linguísticos, opor consis-
neste âmbito . O livro coordenado por
destas evoluções narrativas. A análise
tentemente os três media escolhidos,
Amandine Degand e Benoît Grevisse
informatizada de um corpus importan-
pese embora se posicionem em lógicas
(2012) analisa estes diferentes desa-
te, remetendo para os anos 2005-2009
económicas, sociais e editoriais mui-
fios. Todas estas investigações per-
e constituído por um diário nacional
to diferentes. O resultado mais mar-
mitiram analisar as reconfigurações
de referência nas suas versões em pa-
cante desta investigação, para quem
pel e eletrónica (Le Soir), um medium
analisa a escrita da imprensa, reside
unicamente em linha (Rue 89) e um
na constatação de que os novos me­
media cidadão em linha (AgoraVox)
dia eletrónicos de tipo participativo
1
1 No endereço www.neo-journalism.org estão
disponíveis alguns resumos das comunicações.
suportes e identificar eventuais diferenças de escrita entre eles.
17
retomam afinal, inconscientemente ou
estudo. Primeiro elemento perturba-
em tensão, na análise de narrativas
não, os padrões da escrita jornalística
dor: os textos de imprensa circulam,
mediáticas particulares, a sua pro-
clássica. Ou porque alguns dos jorna-
doravante, de forma maciça através
dução e a sua receção. Esta intui-
listas em linha provêm da imprensa
da web e das redes sociais (que não
ção antecipava a incursão maciça do
tradicional; ou porque os jornalistas
existiam quando o conceito foi criado).
público na produção de informação,
“cidadãos” reproduzem, talvez sem o
Esta realidade provocou uma transfor-
num contexto de novas tecnologias e
desejar, os processos da escrita tra-
mação das práticas profissionais dos
de novos usos da informação. A parte
dicional, de forma a inscreverem-se
jornalistas, inclusive na sua forma de
criativa do leitor, a coestruturação da
e serem reconhecidos no campo jor-
redigir; e, quanto ao público, veio mo-
narrativa, adquire, no contexto atual,
nalístico. Estes resultados interpelam
dificar as formas de ler um artigo, ou
um novo sentido. A narrativa, já aberta
os investigadores em informação e co-
mesmo de o coescrever. Os próprios
ao contributo do público pela ativi-
municação que, por vezes, avançam
modelos de narrativização (mise en
dade de leitura pessoal, completa-se,
hipóteses pouco validadas por inqué-
récit) ficam, assim, perturbados tan-
hoje em dia, com uma interação desde
ritos no terreno ou análises exaustivas
to ao nível da produção como da sua
a criação da narrativa de informação
de corpus. Afinal, será necessário, na
receção. Em segundo lugar, é necessá-
(público e redes sociais como fontes
situação atual, definir os contornos de
rio ter em conta também que a forma
de informação, reações imediatas
uma escrita hipertextual, uma vez que
narrativa foi formalizada e fortemente
do público sob diversas formas…).
os novos media procuram legitimar-se
instrumentalizada pela comunicação
A narrativa mediática surge também
retomando as especificidades da escri-
política, e ainda pela comunicação
como alternativa à forma objetivante
ta jornalística mais clássica? Talvez
de organização, como testemunha de
da escrita jornalística tradicional, ba-
seja devido ao facto de ainda nos en-
forma sintomática o ensaio de Chris-
seada em parte numa comunicação em
contrarmos num período de mutação,
tian Salmon (2007). A mecânica do
sentido único e na conceção de um
em que os modelos antigos continuam
storytelling, longe do modelo otimista
público passivo. O surgimento de for-
dominantes, em que as novas escritas
de Ricoeur, tornou-se um instrumento
mas mediáticas híbridas (reportagens
estão em vias de invenção. Ou ainda
de persuasão, indiferente aos desafios
em banda desenhada, reportagens
porque não colocamos as questões
éticos dos seus objetivos, inclusive em
escritas em formatos extensos inspi-
pertinentes em relação ao que merece
certas formas de jornalismo narrativo
rados na estrutura romanesca, web-
ser observado.
ou de escrita narrativa com finalidade
reportagens, web-documentários…)
sensacionalista.
é acompanhado de uma discussão
Todavia, é necessário admitir
que, atualmente, novos elementos têm
Um dos aspetos significativos dos
pública sobre os cânones objetivistas
modificado radicalmente o campo de
trabalhos da ORM é de ter colocado
do jornalismo: reivindicação de uma
Um dos aspetos
significativos dos
trabalhos da ORM
é de ter colocado em
tensão, na análise
de narrativas
mediáticas
particulares,
a sua produção
e a sua receção
escrita do “eu”, afirmação da dúvida,
2. Os usos da narrativa mediática
uso assumido do processo narrativo,
através das novas tecnologias, tan-
utilização dos espaços de incertezas e
to em termos de consumo como de
de interpretações do recetor…
coprodução da narrativa.
Estas interrogações narrativas têm
3. A emergência do modelo de story­
obviamente ressonâncias socioeconó-
telling, com todas as suas ambi-
micas que não podem ser ignoradas,
guidades, mas que modifica o
dado que a análise narratológica só
contexto teórico e prático.
pode ser concebida no quadro de um
4. O sucesso de novas expressões e
conhecimento aprofundado das con-
de novos suportes do jornalismo
dições de produção (identificação dos
narrativo.
proprietários do título, modos de or-
5.A necessidade de revisitar os
ganização das redações, condições de
modelos teóricos da narratologia
trabalho dos jornalistas, ligações com
e da semiologia sob a influência
régies publicitárias, importância das
dos novos modos de produção e de
difusões e das audiências).
receção das narrativas mediáticas,
Se adotarmos uma atitude prospe-
a fim de contribuir para a evolução
tiva para definir o modo como a noção
das teorias narratológicas e para
de narrativa mediática pode hoje con-
a emergência de uma hipernarra-
tinuar a alimentar de forma fecunda
tologia.
a análise dos media, verificamos que
cinco elementos devem ser apreendidos
A desagregação do esquema
em interação e submetidos à análise:
narrativo
1. A desagregação do esquema narrativo clássico sob pressão da
Um primeiro aspeto da construção
utilização jornalística das novas
narrativa que fica radicalmente trans-
tecnologias e da escrita na web (e
formado é o da sua temporalidade.
a necessidade que daí decorre de
As evoluções tecnológicas obrigam a
pensar em conjunto a estrutura nar-
revisitar a utilização do tempo nos me­
rativa e o suporte que a veicula).
dia audiovisuais e nas suas declinações
19
multimédia. Ao ponto de convidar a
para uma reconstrução identitária.
O exemplo mais ilustrativo foi o do
uma redefinição das bases clássicas da
A urgência substitui a análise e impede
tsunami de dezembro de 2004, quan-
narratologia e a um reexame das rela-
qualquer forma de reorganização das
do a construção narrativa do aconte-
ções entre tempo e narração tal como
narrativas e dos seus múltiplos jogos
cimento escapou em parte às agên-
descritas por Paul Ricoeur no entrela-
de temporalidade.
cias noticiosas e às redações que se
çar das três mimésis. A compressão do
Trata-se, por conseguinte, de me-
limitaram a retransmitir as imagens
tempo altera, doravante, a nossa relação
dir as consequências destas transfor-
captadas por videoamadores, de modo
com o mundo, visto que o medium tele-
mações na gestão de um tempo nar-
a encadearem as sequências de ação,
visivo, desde a primeira guerra do Gol-
rativo cada vez mais imediato. Só se
sem coerência causal ou temporal,
fo, joga em quase simultaneidade com
pode fazer um trabalho de construção
numa estética de fragmento generali-
os acontecimentos mostrados, como já
da intriga (mise en intrigue) com um
zada. Em vez de narrativização, foram
tinham evidenciado Jean Baudrillard
mínimo de distanciamento, dado que,
estas “micro-narrações” sucessivas
(1991) e Paul Virilio (1991). A partir
normalmente, a narrativa surge depois
que foram apresentadas, até mesmo
dessa altura, o objetivo dos media, que
do acontecimento. Ora, atualmente,
“cenas narrativas” baseadas em al-
consistia em informar o mais depressa
o ideal jornalístico consiste em co-
gumas situações dramáticas estere-
possível o público depois de um aconte-
brir o acontecimento enquanto está a
otipadas: a onda devastadora, a mãe
cimento ter ocorrido, foi substituído por
ocorrer, por vezes mesmo antes que
desesperada, o salvador generoso, o
esta exigência inimaginável até então:
ocorra. Se considerarmos a segunda
doador bondoso… Desde então, po-
o acontecimento deve, se possível, ser
guerra do Iraque, constatamos que
demos continuar a falar de narração
mediatizado enquanto está a ocorrer.
o mais importante para os canais de
mediática ou teremos de abandonar
Sendo assim, se o tempo da transmissão
televisão não era explicar-nos o que
uma noção que já não corresponde à
se torna concomitante ao acontecimen-
estava a acontecer no local, mas sim-
realidade das práticas jornalísticas?
to, em que medida permite ainda uma
plesmente afirmar a presença do seu
verdadeira apropriação, uma reconfigu-
enviado especial no terreno, uma vez
ração no sentido entendido por Ricoeur
que não tinham acesso às fontes nem
na sua terceira mimésis? Eis uma das
tempo necessário para a reconstrução.
consequências diretas da transforma-
A prioridade é dada à enunciação, à
Muito claramente, esta desagre-
ção radical da temporalidade mediática
relação, mais do que à construção da
gação tornou-se cada vez mais impor-
sobre o modelo que nos serve de base
informação. A possibilidade de uma
tante nos relatos mediáticos atuais,
de análise. A captação em bruto dos
correta articulação da segunda mimé­
construídos segundo lógicas deses-
testemunhos não deixa muito tempo
sis deve, doravante, ser rediscutida.
truturadas (ou estruturadas de outra
Os novos usos da narração
forma, mais propriamente) ao nível da
Poderíamos, portanto, admitir,
narrativa passa de um lugar (topológico
produção como também da sua rece-
como novo postulado, que a narrati-
e narrativo) para outro, deixa de haver
ção. Sem falar dos chats, fóruns e blogs
va não desaparece, mas que se cons-
unidade temática e narrativa fechada.
em que a narração está provavelmente
trói, doravante, com outras formas,
O utilizador encontra-se perante uma
menos presente, ou dos comentários
pelo menos no sistema mediático e
narrativa infinita, sem princípio nem
com menos de 140 carateres retrans-
na cultura de massas. A narrativa
fim, na qual circula sem hierarquização
mitidos via redes sociais como Twitter.
co-constrói-se por acumulação de
nem progressão construída. Porém, tal-
Se a lógica do enquadramento se deixa
fragmentos narrativos que se agre-
vez seja preciso abandonar o singular,
ultrapassar por um consumo em rede,
gam pouco a pouco. A identidade
dado que já não há narrativa única, mas
por uma acumulação de fragmentos,
narrativa partilha-se, sempre flutu-
mais uma circulação concomitante de
haverá ainda reconfiguração possível?
ante, não fechada, sempre síncrona.
narrativas múltiplas, produzidas por
As narrativas são doravante consu-
O modelo do broadband sucedeu ao
enunciadores diferentes que se vão
midas de forma cada vez mais desa-
do broadcast nos media audiovisuais
trocando e se interpenetram. À desa-
gregada, o que obriga a reconsiderar
contemporâneos. Já não é o emissor
gregação da configuração corresponde
a noção de fragmento, que se afigura
que é determinante, é a importância
simultaneamente uma deflagração da
antinómica relativamente à noção de
da banda que vai passando, do fluxo,
refiguração. Existe, em simultâneo,
narrativa. Será que podemos, hoje em
que permite a interatividade, inclusive
reiteração (a mesma informação sur-
dia, pensar a noção de narrativa como
para as estruturas narrativas.
ge em vários canais), heterogeneidade
uma acumulação de fragmentos, sem
Se estas condições estão geralmen-
(fragmentos de informação diversos
cairmos num paradoxo insuperável?
te reunidas quando a narrativa está
não coordenados), ruturas (passagem
É concebível se aceitarmos que o uso
redigida e é narrada por uma mesma
de um tema para outro), telescopagem
da narrativa, hoje, já não está ligado a
pessoa (a sequência montada no jornal
(agrupamento, porque são consumidos
uma lógica de armazenamento (o leitor
televisivo), o que acontece quando o
sucessivamente, de acontecimentos sem
consulta as narrativas pré-existentes
utilizador passa de um canal para outro
ligação entre eles).
à sua leitura, extraindo de um repo-
ou vai buscar a sua informação, em
A análise dos usos da internet
sitório de narrativas de tipos diferen-
simultâneo, em sites web? É necessário,
coloca claramente a questão da de-
tes colocadas à sua disposição), mas
com efeito, ter em conta o facto de que
sagregação enunciativa que se instala.
está inscrito num fluxo permanente,
a narrativa se encontra não somente
É na construção e na identificação das
o que nos reenvia para a questão da
fragmentada como se desenrola pas-
posições enunciativas que se decide,
temporalidade, dos limites, do enqua-
sando de um suporte para outro, em
provavelmente, um novo dispositivo de
dramento.
migrações permanentes. Visto que a
comunicação. A enunciação torna-se
21
partilhada, diluindo-se simultanea-
que nos obriga também a repensar a
mente no seio de trocas multipolares.
própria noção de polifonia. Vemo-nos,
O emissor da narrativa mediática já
daqui em diante, confrontados com
não é único, mas constrói-se na rela-
polifonias enunciativas simultâneas
ção com os seus recetores; os lugares
e partilhadas, sem fim.
de emissões desmultiplicam-se de tal
A análise dos
usos da internet
coloca claramente
a questão da
forma que perdem a sua identidade
própria e identificável. Este facto po-
A emergência do modelo
deria prenunciar uma recomposição
do storytelling
desagregação
sentido em que estes protocolos de
Estas transformações dos obje-
enunciativa
troca significariam definitivamente o
tos analisados devem ser avaliadas
fim do esquema clássico emissor/re-
considerando as modificações simul-
cetor em prol de uma discursividade
tâneas do contexto de referência dos
circular, verdadeiramente polifónica
modelos de pensamento dominantes
e de uma recursividade permanen-
e das formas de produção mediática.
te das transmissões de informação.
A transformação mais significativa do
Haveria, portanto, a esperança de se
enquadramento deve-se à emergência
assistir ao surgimento de novas formas
de ferramentas, baseadas em discur-
de narratividade, numa polifonia co-
sos teóricos e agrupadas no modelo
‑construída, ou pelo menos através do
do storytelling. Em 2007, a obra de
entrecruzamento de narrativas parti-
Christian Salmon teve o mérito de
lhadas, mas com o risco da diluição
atrair a atenção de um largo público,
das identidades enunciativas. O risco
muito para além dos investigadores em
da internet não é talvez a morte do
ciências humanas e sociais, sobre o
sujeito, mas a sua dissolução em dema-
sucesso em crescimento (em domínios
siados sujeitos, sem reconhecimento
tão diversificados como a publicidade
possível. Será que pode ainda haver
comercial, os jogos de vídeo destina-
narrativa num quadro de coenunciação
dos à formação de militares antes da
não deliberadamente partilhado? Todo
sua partida para terrenos de opera-
o enquadramento é posto em causa, o
ção ou a comunicação política) do uso
positiva das trocas discursivas, no
que se instala
de uma forma de narratologia práti-
explicado de que forma é que os ho-
A sua decodificação do jovem negro
ca declinada com fins persuasivos.
mens políticos deviam ser construídos
saudando a bandeira francesa, na re-
A narrativa, ou pelo menos alguns dos
mediaticamente como personagens de
vista Paris Match, pode já entender-se
seus usos gerenciais, teria portanto
ficções televisivas para poderem pas-
como uma denúncia do que ainda não
regressado ao primeiro plano, em me-
sar a sua mensagem.
era apelidado de storytelling. O mito,
ados dos anos 90, para desencadear
Contudo, o interesse manifestado
enquanto “sistema semiológico segun-
um “narrativist turn”, à imagem do
por Christian Salmon em relação às
do” tem “uma dupla função : designa
que foi o “linguistic turn” dos anos 60.
manifestações peculiares do storyte­
e notifica, faz compreender e impõe”,
É desde já necessário assinalar
lling no marketing e na comunicação
dizia ele então (Barthes, [1957 : 202]
que, apesar de Christian Salmon
política (enquanto que negligencia
1984: 188). O que Barthes desvenda
evocar sucintamente as obras de
totalmente a sua importância no res-
através da imagem do Padre Pierre
Paul Ricoeur ou o número fundador
surgimento, em simultâneo, de um
apresenta grandes similitudes com o
da revista Communication que inau-
new journalism muito marcado pelo
que Christian Salmon nos propõe na
gura a análise estrutural das narra-
narrativo nos Estados Unidos) é inte-
sua decodificação da máquina Kate
tivas (1966), ele não inscreve a sua
ressante na medida em que ele mos-
Moss (2012).
análise do storytelling numa história
tra claramente como, numa sociedade
Há, contudo, um implícito per-
da narratologia, seja ela aristotélica,
pós-moderna que já não encontra os
manente nos mecanismos revelados
estruturalista ou pós-estruturalista.
seus pontos de referência nas gran-
e denunciados por Christian Salmon,
Isto parece-nos, todavia, essencial
des narrativas de legitimação, como
na medida em que ele se refere a uma
para analisar validamente este “re-
já o havia demonstrado Jean-François
racionalidade que poderia construir-se
gresso da narrativa”, se é que esta
Lyotard (1989), outras narrativas vão
sem o recurso a narrativas fundadoras,
tenha alguma vez desaparecido. É
preencher o espaço deixado livre,
as quais seriam por essência alienan-
necessário inscrever esta história da
instrumentalizando a função narra-
tes, e duplamente alienantes. Por um
narrativização do mundo na linha das
tiva, desacoplando-a do seu papel de
lado, porque a narrativa seria sempre
investigações de Michel de Certeau
construtor de sentido para a tornar
um instrumento de manipulação das
(1980) ou de Gianni Vattimo (1990),
num instrumento de alienação. Mas
massas, uma armadilha, diria Louis
ou das análises de Louis Quéré (1982)
podemos interrogar-nos sobre a no-
Marin (1978); por outro, porque o
sobre a informação pós-moderna cons-
vidade desta análise, na medida em
nosso autor ainda se inscreve numa
truída narrativamente, até mesmo das
que é afinal bastante semelhante à
forma de sociologia dos efeitos em
observações de um publicitário como
que era proposta no fim das Mito­
que a injeção de uma mensagem com
Jacques Pilhan que tinha, desde 1995,
logias de Roland Barthes em 1957.
recurso a uma seringa hipodérmica
23
é suficiente para que esta seja aceite
à miséria se todos as promessas de-
discursos políticos ou publicitários,
por um utilizador incapaz de a receber
mocratas fossem postas em prática.
não é sinal de doença degenerativa.
com um distanciamento crítico. Para
Finalmente, a perceção do papel
Ele reafirma que a narrativa reduz a
Christian Salmon, os tipos de supor-
da narrativa mediática por Christian
complexidade do mundo e permite,
tes, as capacidades de resistência
Salmon inscreve-se de forma bastante
mais do que nunca, formas de rea-
dos utilizadores não são parâmetros
direta na filiação das teorias da Escola
propriação. As mediaculturas (Maigret
tidos em conta, o que se manifesta,
de Frankfurt sobre a alienação das
e Macé, 2005), as mediascapes (Appa-
entre outros, na retoma das teorias
massas pelo consumo de produções
durai, 1996) oferecem-nos narrativas
da propaganda. A importância onto-
culturais populares concebidas para
libertadoras, no seu próprio texto ou
lógica da narrativa e o seu impacto
fabricar um conformismo ao serviço da
através das reinterpretações e dos ar-
psíquico carecem provavelmente de
ideologia dominante (Migozzi, 2010).
ranjos que os utilizadores delas podem
análises mais afinadas. É o que faz,
Inscreve-se num discurso de denúncia
retirar através de leituras subverso-
por exemplo, Ivanne Rialland (2009),
que existe desde o tempo em que se
ras. O debate entre Adorno e Certeau
quando denuncia a amálgama que Ch-
desenvolveu o folhetim romanesco, na
regressa, desta forma, ao centro dos
ristian Salmon faz entre duas funções
primeira metade do século XIX. A crí-
novos avatares da narrativa.
da narrativa: ela narra, o que pode
tica feita por Christian Salmon acerca
ser contemplado pela narratologia,
do papel desempenhado por uma série
ao mesmo tempo que persuade, o
televisiva como o 24Horas na aceita-
O regresso do jornalismo
que deve apreender uma abordagem
ção de um endurecimento das formas
narrativo
retórica. A publicidade, hoje em dia,
de luta contra o terrorismo, após os
claramente integrou estas duas fun-
acontecimentos do 11 de setembro de
Revistas como XXI, 6 mois, Feuil-
ções, quando nos propõe modelos a
2001, é reveladora desta conceção ali-
‑leton, provam que a França, alguns
serem seguidos, exempla destinados
enante da narrativa mediática.
anos após os Estados Unidos, se atira
a suscitar a adesão afetiva do espe-
Contudo, concomitantemente,
à aventura dos mooks (amálgama con-
tador. Os políticos fazem o mesmo
outras vozes mostram que a narrati-
traindo as palavras magazine e book),
quando, por exemplo, na campanha
va, ainda hoje, pode ter uma função
para afirmar uma dupla pertença ao
eleitoral norte-americana de 2008, os
emancipadora, através de guiões, de
universo da imprensa periódica e da
republicanos construíram, a partir do
argumentos que conferem sentido ao
literatura (ou pelos menos do setor
nada, o modelo de “Joe the plummer”,
viver em conjunto. Para Yves Citton
do livro). Patrick de Saint-Exupéry,
supostamente representando o cidadão
(2010), a generalização das narrativas,
numa entrevista concedida ao diá-
americano médio que ficaria reduzido
inclusive na sua recuperação pelos
rio belga Le Soir, a 28 de outubro de
A redefinição
da profissão de
Jornalista passa
pelo reinvestimento
no modelo
narrativo
2011, confirma esta dupla ancoragem:
e à redução de artigos tão rapidamente
“Cremos na necessidade do jornalis-
escritos como lidos, mas também como
mo, na necessidade da narração que
uma verdadeira forma de sobrevivên-
permite inscrevermo-nos na realidade
cia, através de uma reinvenção dos
do mundo. Por entre o dilúvio diário
fundamentos de um ofício jornalístico
de informações, o nosso trabalho con-
em profunda crise, face à emergên-
siste em mergulhar de novo no real”.
cia dos novos media e às ilusões do
Se a imprensa se inscreve no seio da
jornalismo cidadão. Mais uma vez,
cultura mediática e se aceitarmos que
formas textuais, desafios económicos
esta cultura mediática, assim como a
e identitários, concorrências intra e
literatura popular (com todas as nuan­
intermediáticas, regras éticas e de-
ces que se devem introduzir no uso
ontológicas, tensões entre suportes e
destes termos e no seu paralelismo),
conteúdos colidem entre si para chegar
se caracterizam, entre outros, por um
a uma redefinição da profissão que
recurso intenso à narratividade (Lits,
passa por um reinvestimento no mode-
2005; Couégnas, 1992), percebemos
lo narrativo. Este new new journalism
todo o interesse em reproduzir o itine-
vai assentar sobre a imersão longa e
rário do jornalismo narrativo, desde os
a observação, o comprometimento
artigos fundadores de Tom Wolfe e o
com categorias sociais muitas vezes
“romance verdadeiro” de Truman Ca-
negligenciadas ou esquecidas, a em-
pote, In Cold Blood (1966), passando
patia com os sujeitos encontrados, por
pelo colombiano Gabriel Garcia Már-
uma redescoberta das human interest
quez, o polaco Ryszard Kapuscinski
stories, que haviam já sido teorizadas
ou o francês Jonathan Littell.
pelos investigadores norte-americanos
Desde o início deste novo século,
há mais de setenta anos.
investigadores norte-americanos como
Não se trata, aqui, de efetuar o
Robert Boyton (2005) ou Mark Kramer
levantamento de todos os traços tipi-
(2007) vão sintetizar as características
camente narrativos, que caracterizam
deste regresso ao narrativo na escrita
o processo de recolha da informação e
jornalística, que surge como uma al-
de narrativização das histórias assim
ternativa à aceleração da informação
reunidas em torno do tema tratado
25
(Grevisse, 2008 e Lallemand, 2011),
Hibridização das formas
mas antes de sublinhar o quanto o
narrativas
regresso à ribalta dos nonfiction wri­
ters é significativo, não de um novo
Mas se o narrativo está de regresso
avatar da forma narrativa, mas sim
com força, é no entanto usado de forma
da sua permanência ao longo das
diferente do new journalism ou da lite-
várias épocas, dos modos de expres-
ratura, não só porque reinventa a cons-
são, das formas e dos suportes que
trução da intriga, mas também por-
as veiculam. Não se trata tão-pouco
que o narrativo “escrito” vai coexistir
de defender um “ tudo é narrativa”
com sequências, integrando a banda
que seria o resultado de uma dupla
desenhada, a imagem, jogos gráficos
tentação: ver narrativa onde apenas
diversos. Obviamente que a revista
existe a acumulação de anedotas, de
XXI deve o seu sucesso às longas
microestruturas descritivas cobertas
narrativas jornalísticas que propõe,
de um verniz etnológico; integrar
mas também à opção de apresentar
numa superestrutura narrativa tex-
reportagens gráficas, tendo percebido
tos que misturam vários tipos argu-
que novas formas como a reportagem
mentativos, dialogais, explicativos.
em BD permitiriam ainda reinventar
Toda a reportagem baseada numa
a escrita jornalística. Na senda de um
observação de terreno, que devolve
Joe Sacco, nos Estados Unidos, apre-
a vivência de atores apanhados na
sentado explicitamente no artigo que
sua vida quotidiana, a fim de extrair
lhe é consagrado como “cartoonist and
uma visão mais global que ultrapassa
journalist” ou da narrativa fundado-
o simples relato, não é todavia uma
ra, em França, de Emmanuel Guibert
narrativa. Mas é inegável que, ao
(Le Photographe, 2003, realizado com
lado de uma informação breve com
Frédéric Lemercier e Didier Lefèvre),
um fluxo apertado, outros formatos,
a revista pensa os seus artigos numa
outras temporalidades, outras escritas
lógica tripla: narrativas escritas, nar-
suscitam o interesse dos leitores e dos
rativas em banda desenhada ou em
utilizadores da web, e que estas têm
fotografia, narrativas pensadas de
a ver com o tipo narrativo.
A narrativa
mediática
contemporânea
impõe uma
redefinição da
narrativa actual,
com recurso a
uma narratologia
refundada, a uma
hipernarratologia
antemão para articularem o texto e
é particularmente eficaz nas formas
A impureza dos objetos e dos seus usos
a imagem.
híbridas da BD reportagem, dos ro-
leva-nos a repensar o enquadramento
mances gráficos, e até mesmo do
de uma sócio-semiótica já denominada
Os trabalhos dedicados à noveliza-
webdocumentário. E não é por acaso
por Teun Van Dijk ou Mauro Wolf.
ção (Baetens e Lits, 2004 ; Baetens,
se, após o sucesso de XXI, a mesma
Se quisermos compreender melhor os
2008) mostraram como este objeto
equipa vai lançar a revista 6 mois, que
novos media no seu “papel específico
era emblemático da cultura mediáti-
surge acertadamente com o subtítulo
de intermediários simbólicos coleti-
ca, porque é híbrido e proteiforme.
de “o século XXI em imagens”.
vos”, apreendendo a sua “linguagem
O sucesso das novelizações ilustra
Sendo assim, se a narrativa ainda
não somente em termos de estruturas
de forma excelente o visual turn da
pode ser uma categoria que permite
formais, mas também como um dado
nossa cultura contemporânea, onde a
apreender em conjunto estas novas ex-
social” (Wolf, 1993: 213), é urgente
imagem, o visual se tornaram no pivô
pressões jornalísticas, só poderá, no
criar as bases de uma hipernarrato-
central, em que a escrita passou a ser
entanto, ser analisada com o recurso
logia mediática.
uma declinação, conservando-se vai-
a novas ferramentas narratológicas.
O que a narrativa mediática con-
véns entre escrita e imagem. Todos os
temporânea impõe é uma redefinição
produtos da cultura mediática – e os
das próprias condições de existência
mooks inscrevem-se plenamente neste
Reinventar a narratologia
da narrativa atual, com recurso a uma
movimento – são concebidos dentro
narratologia refundada, a uma hiper-
de lógicas de complementaridade,
Estes desenvolvimentos recentes
narratologia. É esta abordagem, consi-
de contaminação entre suportes que
exigem que se ultrapasse a narratolo-
derando simultaneamente os avanços
declinam de formas diferentes ofer-
gia clássica, dado o estatuto especial
tecnológicos, os novos suportes, as
tas semióticas diversas, geradoras
do objeto analisado, simultaneamente
evoluções dos usos e dos públicos, que
de novas mediagenias que conjugam
discutível e híbrido. Discutível no seu
permitirá apreender o homem sociali-
“o potencial expressivo e comunica-
estatuto de legitimidade cultural e na
zado enquanto animal narrativizado,
cional desenvolvido pelo medium”, o
sua essência narrativa. Híbrido por ser
atravessado por narrativas construídas
que Philippe Marion (1997) chama
composto por texto (pertencendo a gé-
de acordo com formas radicalmente
a sua mediatividade, e a narratolo-
neros diversos), imagens e mensagens
novas e abertas. A narrativa pode,
gia que ele põe a funcionar. A me­
mistas apresentados em suportes di-
doravante, seguir todos os caminhos,
diagenia, esta forma expressiva que
ferentes, com periodicidade variadas,
voltar para trás, enveredar por vias
resulta da fusão mais ou menos conse-
respondendo a tantos horizontes de
simultaneamente contraditórias, des-
guida entre narração e mediatização,
expectativas quantos media existem.
truir etapas, variar entre utilizadores.
27
Para que a investigação hiper-
Bibliografia
narratológica possa progredir, trata-
COUEGNAS, D. (1992). Introduction à la
paralittérature. Paris: Éd. du Seuil.
se de compreender que a dimensão
APPADURAI, A. (1996/2001), Après le
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narrativa está cada vez menos do
colonialisme. Les conséquences cul­
Journalisme en ligne. Pratiques et
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turelles de la globalisation, trad. de
recherches. Bruxelles : De Boeck,
ças aos elementos de circularidade e
l’anglais. Paris : Payot.
coll. “Info&Com”.
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(Dessingué, 2006), cada vez mais na
au livre. From film to novel. Leuven:
bula.org, atelier de théorie littéraire:
instância de receção que constrói, ela,
Leuven University Press.
http://www.fabula.org/atelier.php?-
a sua própria narrativa numa polifonia
BAETENS, J. (2008). La novellisation.
enunciativa. O ponto de equilíbrio da
Du film au roman. Bruxelles : Les
construção da intriga, que ainda se
Impressions nouvelles.
encontrava bem instalado no seio da
segunda mimésis em Ricoeur, caiu
doravante para o lado da terceira mi­
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Paris : Éd. du Seuil.
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Polyphonisme%2C _de_ Bakhtine_%26agrave%3B_Ricoeur
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mésis. Falta, então, ver como, sendo a
Golfe n’a pas eu lieu. Paris : Galilée.
narrativa única para cada um na sua
BOYNTON, R. (2005). The New New
estrutura de receção, pode ainda ser
Journalism. New York: Vintage
journalistiques. Stratégies rédaction­
partilhada e reintroduzida no círculo
Books.
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mimético. Trata-se de um dos desafios
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tion télévisée”, n° 74.
Hermès, n° 11-12, p. 213-226.
29
Carlos Reis
Professor da Faculdade de Letras da Universidade de
Coimbra ([email protected])
The Special One.
Fenomenologia do Herói Desportivo
The Special One. Phenomenology of the sports hero
Resumo
Abstract
A partir da caracterização do herói como
Drawing from the characterization of the
categoria literária, procede-se a uma re-
hero as a literary category, this study deve-
flexão acerca do herói desportivo, com
lops a reflection on the sports hero, using
recurso a instrumentos de análise facul-
the literary tools of narratology as a basis
tados pelos estudos narrativos. O herói
for this analysis. The sports hero is valued
desportivo é uma entidade valorizada
by public projection in media discourse in
pela projeção pública das narrativas
the context of mass communication; in this
mediáticas em contexto de comunicação
medium, certain narrative genres (such as
de massas; nesse âmbito, certos géneros
the biography) configure the hero shaped
narrativos (como a biografia) procedem
through images, especially on television.
à configuração de um herói conformado
Furthermore, often the sports hero beco-
pela proliferação de imagens, sobretudo
mes endowed with collective desires and
de TV. Para além disso, frequentemente
values of the community he or she repre-
o herói desportivo concentra si os valores
sents; when the hero is defeated, it is also
e os desejos do coletivo que representa;
a defeat for this community.
quando o herói é vencido, a sua queda
arrasta a desse coletivo.
Keywords: Hero, sports hero, football,
futebol, narrativa mediática.
media narrative.
© http://gaucha.clicrbs.com.br
Palavras-chave: Herói, herói desportivo,
31
1. O herói da minha adolescência
grande parte aqui se trata) que dele
2. Trato aqui do herói desportivo,
não foi um guerreiro, um astronauta,
ficaram para sempre: o equipamento
tal como o encontramos sobretudo na
um político ou um cientista. O herói
negro, as luvas também negras, as
modalidade de alcance planetário que
da minha adolescência não era por-
joelheiras (às vezes uma só, na perna
é o futebol. Não que ele seja, como é
tuguês e nunca o vi em carne e osso;
direita), o voo que a fotografia sus-
óbvio, a única modalidade que gera,
foi um cidadão da União Soviética,
pendia, a calma de um olhar que in-
difunde, dá a consumir e às vezes aju-
nascido em Moscovo em 1929 e ali
timidava os adversários. Foi tudo isso
da a corromper heróis; outras o fazem,
falecido, com pouco mais de sessen-
que fez de Yashin um herói daqueles
com as suas lógicas próprias. Todavia,
ta anos de idade. Chamava-se Lev
que jamais dececionam.
é aquela dimensão planetária que o
Ivanovich Yashin, media quase um
Nunca assisti a um jogo do Ara-
futebol ganhou, graças a procedimen-
metro e noventa e dele diz-se que foi
nha Negra, ao vivo, no calor do está-
tos de figuração e de mediatização em
o melhor guarda-redes que o futebol
dio. Arrisco até dizer o seguinte: se
contexto de comunicação social, que
já viu, tendo ficado mundialmente
o tivesse visto, talvez o não achasse,
eleva os protagonistas da modalidade
conhecido pelo cognome de Ara­
por fim, tão alto, tão ágil e tão do-
à dimensão de heróis, também eles
nha Negra. Digo cognome e não
minador. Se para mim ele foi tudo
planetários e dotados de atributos ou-
alcunha, porque é pelo cognome que
isso — como quem diz: um fenómeno
trora exclusivos das representações
celebramos aqueles cujos feitos são
—, foi porque outros, à sua maneira
da literatura, das artes plásticas, das
dignos de memória (voltarei a isto).
fazedores de heróis, assim o descre-
lendas e dos mitos inacessíveis ao
Os feitos deste herói foram os que
veram e relataram. Chamavam-se
comum dos mortais. Os heróis de que
muitos quiseram imitar: dominar a
Artur Agostinho, Amadeu José de
aqui me ocupo são figuras tão massifi-
grande área, comandar a defesa, des-
Freitas e Nuno Brás, eram relatores
cadas como os veículos e os discursos
fazer cruzamentos, voar para deter
de futebol e, num mundo ainda sem
mediáticos que fazem do futebol uma
um remate traiçoeiro, defender um
televisão, as suas vozes enchiam
presença quase obsessiva no nosso
penalty.
umas ondas médias em que se dizia
quotidiano, assim projetando sobre
Não recordarei aqui os títulos, os
a insustentável leveza de um ser cog-
ele aquelas propriedades e atributos.
troféus e as distinções, algumas de
nominado Aranha Negra. Desse e de
Nem de propósito: em 2013, um
feição política, que o herói Aranha
outros heróis, admirados todos graças
jovem fotógrafo português, Daniel
Negra conquistou e recebeu em vida,
à mediação do jornalismo desportivo,
Rodrigues, ganhou um prémio de foto-
enquanto foi guardião do Dínamo de
nos dias da rádio que Woody Al-
jornalismo do World Press Photo (cate-
Moscovo e da seleção soviética. Bas-
len evocou, num filme justamente
goria “Daily Life”), por uma fotografia
tam-me as imagens (é disso que em
famoso.
que tudo diz acerca da disseminação
do futebol no quotidiano de qualquer
Ulisses pagou cara a ardilosa e heroi-
de superar a morte e ganhou, por um
lugar do mundo, mesmo no mais re-
ca vitória sobre os troianos, penando
breve tempo, a celebridade que aos
côndito e miserável1. As crianças da
dez anos até chegar ao refúgio do lar
heróis está reservada. Hoje não sabe-
Guiné-Bissau que, naquela fotografia,
perdido. Não dez anos, mas 19 longos
mos o que é feito do jovem Martunis,
jogam um futebol de pé descalço em
dias (porque a condição humana hoje
agora quase adulto; mas naqueles dias
campo improvisado são muito pobres
é menos paciente do que na Antigui-
de 2005 ele foi um dos heróis a que
e vivem o sonho de um dia serem um
dade) foram aqueles que uma criança
temos direito e que modernamente só
Messi, um Cristiano Ronaldo ou um
indonésia passou, na sequência do
o desporto nos concede.
Didier Drogba. E talvez já o sejam
tsunami que, em dezembro de 2004,
imaginariamente, naqueles minutos
engoliu terras e gentes na remota
3. Sem almejar a densa concep-
de evasão e de fantasia. É um pouco
Indonésia. Entretanto, a camisola da
tualização que aqui se não justifica,
disso que a fotografia do jornalista
seleção portuguesa de futebol que a
cabe perguntar: de que falamos, quan-
nos transmite: o poder mimético e o
dita criança vestia naquele transe fez
do dizemos de alguém que é um herói?
potencial de emulação que os heróis
nascer um herói: “o pequeno herói”,
E também: que sentido faz (e porquê)
desportivos levam até àqueles que o
dizia o Jornal de Notícias a 17 de ja-
transferir uma indagação acerca do
deus-desporto promete libertar da
neiro de 2005, “envergava a camisola
herói para o campo do fenómeno des-
miséria. Os pouquíssimos que o con-
da seleção portuguesa de futebol”.
portivo e dos discursos que o narram?
seguem, não raro por entre redes de
A resistência do jovem Martunis
Alinharei alguns tópicos de refle-
tráfico de adolescentes e ganâncias
e “o milagre (…) ocorrido em Banda
xão que tentarei disseminar no que
de empresários inescrupulosos, che-
Aceh” (dizia o Diário de Notícias no
se seguirá. Primeiro: o herói é um
gam a passar por provações que só
mesmo dia) foram habilmente asso-
componente estruturante de algumas
os predestinados vencem.
ciados ao poder redentor do futebol,
narrativas, cuja enunciação se proces-
Assim tem sido, desde os grandes
porque este fez chegar até ao outro
sa em função dessa figura em quem
mitos da Antiguidade: para alcançar o
lado do mundo uma das suas imagens
se centram os conflitos e sobre quem
estatuto de herói, Hércules teve de su-
de marca. Aquilo que foi insinuado pe-
pendem ameaças que só ele vence.
perar os doze trabalhos que lhe foram
los relatos mediáticos e pelas imagens
Acentuo esta dimensão narrativa do
impostos como redenção da culpa; e
que o acompanharam veio à superfí-
herói, nestes termos: sem narrativa
cie do nosso imaginário: por força de
não há herói. Aquilo que o legitima é
uma espécie de metonímia oculta, a
um trajeto de sobre-humana vitalida-
criança de 7 anos recebeu do talismã
de, contra obstáculos e contra forças
que cobria o seu corpo frágil o poder
hostis; desenrola-se esse trajeto num
1 Ver em http://p3.publico.pt/cultura/exposicoes/6690/portugues-que-venceu-o-worldpress-photo-nao-tem-maquina; acesso a
12.7.2014.
33
tempo potencialmente narrativizado
d’Os Lusíadas: “O padre Baco ali
sociedades ocidentais, a partir do
que o herói atravessa, em movimento
não consentia/No que Júpiter disse,
século XVIII. Exemplo expressivo:
de busca e de afirmação do seu estatu-
conhecendo/Que esquecerão seus fei-
Leopold Bloom é um anti-herói ba-
to, com maior intensidade e dramatis-
tos no Oriente/Se lá passar a Lusitana
nalizado pelo quotidiano burguês de
mo quando esse estatuto se coloca sob
gente.” (Camões, 1972: 8). Fernando
Dublin, tal como o genial romance
o signo da transgressão de normas, de
Pessoa, já noutro tempo, expressou a
de Joyce o representou; do Ulisses
limites ou de estatutos sociais. Num
incómoda vizinhança dos deuses com
homérico resta a memória desgastada
ensaio célebre, agora com quase um
os heróis terrenos, com estas palavras
de um heroísmo mítico, outrora roçan-
século de vida, György Lukács falou
meio enigmáticas: “Como porém o ho-
do o poder sobrenatural dos deuses,
em herói problemático, a propósito do
mem não pode ser igual dos Deuses,
poder que reconhecemos inviável e
protagonista de Le Rouge et le Noir de
pois o Destino os separou, não corre
anacrónico, naquele cenário urbano.
Stendhal, e notou que naquele roman-
homem nem se alteia deus pelo amor
Anacrónico, mas não perdido para
ce é contada a “história dessa alma
divino; estagna só deus fingido, doente
sempre, quanto mais não seja como
que vai pelo mundo para aprender a
da sua ficção.” .
motivo de ironia nostálgica ou de re-
2
conhecer-se, procura aventuras para
Terceiro: o herói não é uma per-
nelas se testar e, por essa prova, atinge
sonagem qualquer. Na palavra que o
Quarto: certos tempos históricos
a sua medida e descobre a sua própria
designa, ressoa, de forma bem audível,
são especialmente propícios à he-
essência” (Lukács, 1970: 85).
“uma tonalidade própria que resulta
roização das personagens narrati-
Segundo: o herói não é atemporal
do facto de o lexema herói provir do
vas, por razões que têm que ver com
nem a-histórico, pelo que não se mani-
vocabulário religioso, cultural, antro-
as cosmovisões que as enquadram.
festa do mesmo modo em todas as épo-
pológico, anterior à sua inclusão no
O renascimento foi um desses tempos,
cas. O herói da Antiguidade Clássica
da crítica literária” (Queffélec, 1991:
potenciado por filosofias de vida, por
povoada por mitos ou aqueloutro herói
242), bem como à sua utilização no
ideais de beleza e por princípios de
modelado por ela no século XVI confi-
campo da análise das narrativas me-
emancipação e de plenitude huma-
nam ambos com a condição divina e
diáticas; o que é facto, porém, é que
na que levaram à redescoberta do
chegam a ofender os deuses, quando
aquela tonalidade própria não se perde
homem como herói do seu tempo,
quase os igualam: por isso, Baco ata-
por completo, mesmo quando se dá
viajante por espaços inexplorados e
ca os novos heróis que, em navegação
a secularização do herói nas narra-
renovador do conhecimento de si e
ousada, tendem a obscurecer o prestí-
tivas subsequentes à laicização das
do mundo. Por sua vez, o romantismo
gio dos deuses (penso, evidentemente,
do que se encontra no canto I, 30,
visão modernista.
associou o porte heroico à reivindica2 http://arquivopessoa.net/textos/2968
ção do individualismo como atitude
A fenomenologia
do herói decorre
da tensa interação
de certas atitudes
recetivas com
os dispositivos
retóricos,
em particular
narrativos, que
procedem à
figuração do herói
existencial, ato de rebeldia contra a
mais também do que aquilo que o
“normalidade” burguesa ou busca de
seu autor quis representar.
um absoluto que o comum dos mortais
4. Não me referi, na minha breve
não entendia.
caracterização do herói, a uma sua
Quinto: o herói enquanto fulcro
propriedade que parece adquirida nas
da narrativa interpela e desafia o lei-
narrativas literárias da modernidade
tor. “O herói provoca a compaixão, a
(quero dizer: do século XVIII em dian-
simpatia, a alegria e a dor do leitor”,
te), ou seja, a sua condição de enti-
disse um dos formalistas russos, Bo-
dade ficcional. Direi apenas que essa
ris Tomachevski, em 1925; e a isto
condição ficcional, podendo achar-se
acrescentou: “A relação emocional
vinculada a um tempo e a uma mode-
decorre da construção estética da
lação estética específicos (é o caso da
obra e só nas formas primitivas essa
novelística romântica), não é evidente
relação coincide obrigatoriamente
em todas as épocas nem em todos os
com o código tradicional da moral
relatos. Na Antiguidade Clássica ou
e da vida social” (apud Todorov,
no Renascimento, a feição do herói
1965: 295). A partir daqui, posso
impõe aos homens comuns o respei-
concluir, por agora: a fenomenologia
to reverencial que é devido a figuras
do herói decorre da tensa interação
dotadas de exemplaridade religiosa,
de certas atitudes recetivas (emoções,
mitológica ou histórica, prévia a um
preconceitos, imagens adquiridas,
seu eventual estatuto de personagens
molduras comportamentais) com os
literárias. Noutros termos: as narra-
dispositivos retóricos, em particular
tivas épicas ou as canções de gesta,
narrativos, que procedem à figura-
que exaltavam heróis no universo da
ção do herói. Em última instância,
guerra ou do proselitismo religioso,
a concretização do herói, no sentido
não eram forçosamente entendidas
fenomenológico da expressão, depen-
como literatura, à luz dos princípios
de de atos cognitivos que investem na
estéticos e dos protocolos institucio-
leitura do relato (do relato desportivo,
nais vigentes no nosso tempo.
quando é o caso) muito mais do que
Isto quer dizer que a problemática
aquilo que a letra do texto revela e
do herói não é estritamente literária.
35
Ela abre-se a reflexões de índole
Heroes, Hero-worship and the Heroic
Não me alongo sobre esta que, de
filosófica, ético-moral, política ou
in History. Dizia Carlyle: “Tal como
certa forma, é uma “matéria perigosa”
doutrinária que se não restringem
a entendo, a História Universal, a
(diria Camões). Sabemos bem o que,
às práticas literárias e aos mundos
história daquilo que o homem realizou
política e historicamente, veio depois
imaginários em que transitam os he-
neste mundo, é afinal a História dos
de Carlyle e de Nietzsche; e descon-
róis ficcionais; isso não impede que
Grandes Homens que aqui laboraram”
fiamos até que dos seus conceitos de
nestes, ou seja, nos heróis ficcionais
(Carlyle, 1840). Foram esses Gran-
herói alguma coisa terá sido herdada,
e literários, se projete uma axiologia
des Homens providenciais – Maomé
pela via de interpretações deformadas,
do heroísmo provinda daquelas refle-
e Shakespeare, Lutero e Rousseau,
por ditadores, por defensores da su-
xões. Em 1637, o teólogo jesuíta Bal-
Cromwell e Napoleão, outros ainda,
perioridade de uns sobre outros, por
tasar Gracián publicou El Héroe, um
nos domínios da religião, das letras
agentes da intolerância ideológica e
conjunto de diretrizes que deveriam
ou da política – que se transforma-
da violência política. Regresso, por
reger a vida e as decisões dos gover-
ram em modelos, no mundo em que
isso, a coisas elementares, mas tra-
nantes, como referência moral dos
viveu “the general mass of men”.
go comigo alguns dados adquiridos,
homens que eles governam; e abria
E pouco depois, entre 1883 e 1885, o
que são os atributos com que se for-
com um conselho bem significativo:
Zaratustra nietzschiano enunciou os
ja o herói: os sentidos do modelo, da
o herói deverá cultivar o engenho de
princípios constitutivos e as máximas
superação individual e da calculada
“ostentar-se ao conhecimento, mas
que moldavam o comportamento de
gestão da superioridade, bem como a
não à compreensão; alimentar a ex-
um herói-super-homem ameaçado pela
posição de evidência do herói perante
pectativa, mas nunca saciá-la de todo”
“gente miúda”:
o coletivo, a composição de uma sua
(Gracián, 2001: 17). Diríamos hoje,
imagem de mistério e de distância em
como se falássemos de um herói des-
“Superai-me, ó homens superiores,
relação a esse coletivo. Tudo isso e
portivo (já lá chegarei): o herói deve
as pequenas virtudes, as mesqui­
também, como comecei por afirmar, a
saber gerir a sua imagem (para isso
nhas prudências, os escrúpulos
pertinência e a vocação da narrativa
servem os assessores que integram a
ínfimos como grãos de areia, a
como construtora de heróis. Na His-
sua entourage).
agitação própria de formigas, o
tória, na ficção literária, na lenda e
Muito tempo depois de Gracián,
contentamento deplorável, a ‘ fe­
na mitologia. E também no desporto,
em 1841, Thomas Carlyle publicou
licidade da maioria’!” (Nietzsche,
acrescento agora.
um conhecido ensaio de forte reper-
1996: 336).
cussão política, não isento de ambi-
5. Volto, então, ao mundo do des-
guidades ideológicas, com o título On
porto para dizer o seguinte: temos os
heróis desportivos que temos porque
estereotipada rigidez das suas imagens
sem heróis, porque sem eles não há
lemos, ouvimos e vemos relatos me-
estáticas; ainda assim, quantas joga-
espectáculo e nem negócio, é claro.
diáticos construídos em função de um
das, quantas fintas, quantas defesas
“Si no hay dinero, no hay portero”, de-
leque considerável de possibilidades,
não fizeram, no imaginário infantil,
clarou há muitos anos Carlos Gomes,
dependendo de propriedades e de
os heróis dos cromos da bola.
um mítico guarda-redes do Sporting,
combinações definidas em campos
A par destes, fomos conhecendo,
quando estava para ser transferido
de caracterização próprios. É este
ao longo do século XX, outros relatos
para Espanha. Na idade do digital e da
um enquadramento operatório que,
mediáticos mais elaborados, no jornal
informação em rede, com a celeridade
estando implícito em muito do que
desportivo, na rádio, escassamente
e com a leveza, com a exatidão, com
aqui digo, deixo com os especialis-
no cinema, mais tarde na televisão,
a visibilidade e com a multiplicidade
tas, em particular com aqueles que
esta última agora ajudada (não raro
que são suas propriedades estruturan-
se ocupam dos media orientados para
com um barroquismo dispersivo da
tes (Calvino dixit), nessa idade nova
grandes massas de recetores.
atenção do espectador) por incontáveis
mas já nossa que é o século XXI,
Dentre esses especialistas, cito
câmaras, por gruas diligentes, por
o espaço do jogo excedeu os limites
Marie-Laure Ryan que, numa análise
incessantes repetições, por ângulos
físicos do campo de futebol, do court
tão sucinta como esclarecedora, di-
inversos, por grandes planos, por
de ténis ou da piscina olímpica. Indo
ferenciou as narrativas mediáticas de
imagens congeladas ou em slow mo­
além da televisão de alcance plane-
acordo com o seu alcance espácio-tem-
tion, por estatísticas precisas, por di-
tário, a cena de afirmação dos heróis
poral, com as suas propriedades ci-
agramas minuciosos, por velocidades
do desporto, hoje em dia, é sobretudo
néticas, com a diversidade de códigos
da bola, por distâncias percorridas,
o ciberespaço, ou seja, o “espaço de
implicados (p. ex., os media chamados
por linhas imaginárias que humilham
comunicação aberto pela interconexão
multicanais), com a prioridade ou hi-
os árbitros. Por tudo isto e também
dos computadores e das memórias dos
erarquia dos canais sensoriais, com
por comentadores que nada calam,
computadores” (Lévy, 2007: 92).
a materialidade dos signos e suportes
desde o feitio da chuteira até à média
Nesse novo cenário, os jogos são
tecnológicos e com a função cultural
de golos por campeonato, nos últimos
cada vez mais videogames e talvez
e métodos de produção e distribuição
vinte ou até trinta anos, quase sempre
até passe por aí o futuro da narra-
(Ryan, in Herman et alii, 2005: 290-
com desprezo pelo gozo e pelo sossego
tiva. Desenvolve-se nos videogames,
291). De acordo com estas distinções,
de quem vê.
segundo os especialistas na matéria,
até os modestos cromos da bola são
Seja como for, mesmo neste mundo
uma narratividade reelaborada pelas
narrativas mediáticas em potência, li-
em que as narrativas mediáticas são
potencialidades do digital e da inte-
mitadas por força do seu alcance e da
exibição de si mesmas, não passamos
ratividade; trata-se agora de um jogo
37
radicalmente virtual que podemos jo-
à Terra. Aquele deus “tornado outra
gar em qualquer lugar e em qualquer
vez menino” (Pessoa, 1994: 52), di-
momento, com a suave ilusão de ser-
ria Alberto Caeiro, é agora um ser
mos também os seus agentes e os seus
humano, tal como as crianças que,
protagonistas: nos videogames esco-
cansadas de brincar, “limpavam o
lhemos os jogadores, determinamos
suor da testa quente/com a manga do
as dimensões do campo, decidimos as
bibe riscado” (Pessoa, 1994: 43). Ou
condições atmosféricas. É nessa di-
seja: desligada a PlayStation, o herói
mensão do digital que se refiguram
virtual refez-se pessoa normal, jovem
novos heróis; e não foi por acaso, que,
discreto sem brincos, tatuagens ou gel
na noite de 5 de abril de 2010, depois
no cabelo. Uma espécie de anti-herói
de uma derrota pesada, perante um
fora do campo, não tanto, ainda assim,
Barcelona intratável e guiado por um
como um seu companheiro de equipa,
herói do futebol, marcador de quatro
negação pura e confirmação a contra­
golos, o treinador do Arsenal, Arsène
rio dos rituais do herói moderno; falo
Wenger, declarou: Messi “é um joga-
do extraordinário Andres Iniesta que,
dor de PlayStation”.
na sua aparência modesta de honrado
Foi bem assim. E todavia, quem se
operário já com um princípio de calví-
lembra desse jogo e de tudo o que dele
cie à vista, serpenteia por entre adver-
fez um espetáculo memorável (espe-
sários com a despojada simplicidade
táculo de televisão, bem entendido),
com que o dito Alberto Caeiro faz os
recorda-se das suas últimas imagens,
seus versos: para Iniesta, tal como na
vistas por quem estava em casa mas
poesia de Caeiro, o mistério do futebol
não certamente pela esmagadora
é ele não ter mistério nenhum. Sem
maioria dos que foram ao estádio: as
esse mistério e também com o rosto in-
imagens são as de Messi saindo do
fantil de Messi depois das jogadas de
relvado, levando a bola debaixo do
PlaySation, renasce alguma coisa de
braço, com a alegria de uma criança
uma pureza original que a tecnologia
que, depois de uma tarde de futebol
geradora do herói moderno rasurou
de rua com amigos, regressa a casa,
do nosso horizonte.
suado e feliz, como um deus descido
Falo do
extraordinário
Andres Iniesta
que serpenteia por
entre adversários
com a despojada
simplicidade
com que o dito
Alberto Caeiro faz
os seus versos
Dotado de conformação bem sin-
mediática. Antes disso, está uma pro-
que institucionaliza a sua imagem de
gular é aquele outro herói em quem
clamada e assumida metodologia do
heróis modernos. Sem esse enqua-
dialeticamente estava já a pensar,
treino com requintes científicos, tudo
dramento narrativo de que a figura
quando descrevi a singeleza infantil
desembocando numa imagem cuja
tida por excecional carece, não se-
de Lionel Messi. Trata-se do “irmão
dimensão humana é quase residual.
ria adequadamente realçada aquela
desavindo” Cristiano Ronaldo; e di-
Com o apoio de gráficos, de estatísti-
semântica da ação (ação desportiva,
go-o nestes termos por saber que o
cas e de iconografia computorizada,
neste caso) de que falou um grande
motivo do irmão desavindo (Frenzel,
o herói está feito um robot, com de-
filósofo da linguagem, Paul Ricoeur;
1980: 146-153), como o motivo do ri-
signação a condizer: CR7. Trata-se
foi em função dela que Ricoeur aludiu
val inconciliável, são ambos tão anti-
agora de uma espécie de organismo
a uma “fenomenologia do sofrer-agir”
gos como os relatos fundacionais da ci-
cibernético, cuja sofisticada agressi-
(Ricoeur, 1984: 90) deduzida dos
vilização judaico-cristã e as narrativas
vidade se traduz em imagens verbais
trajetos humanos e da sua inscrição
identitárias da Antiguidade Clássica,
que os narradores do relato mediático
na temporalidade que leva da vida à
matrizes de um imaginário de que
já estereotiparam: Cristiano Ronaldo
morte.
se alimentam também as narrativas
não marca livres; CR7 dispara mísseis
mediáticas do fenómeno desportivo.
tomahawk.
A biografia é um género em que
consabidamente se combinam duas
Caim e Abel, Esaú e Jacob, Rómulo
propriedades que muito importam à
e Remo, num outro plano que é o da
6. Continuo interessado no herói
heroização do atleta. Primeiro: a bi-
rivalidade dos heróis, David e Golias,
desportivo, na sua figuração narrati-
ografia exalta uma personalidade que
Aquiles e Heitor, Artur e Lancelote
va e nas suas cumplicidades com o
merece ser destacada do fluxo da His-
não seriam heróis sem a conflitualida-
universo dos relatos literários. E falo
tória, assim ganhando uma proeminên-
de às vezes fratricida que expressa a
de outras narrativas, cuja matriz pa-
cia homologada pelo facto de ser essa
diferença e acentua a energia vital que
raliterária é agora mais clara: reporto-
personalidade a grande figura (o grande
caracteriza o comportamento heroico.
me à biografia como género narrativo
herói) da narrativa. Segundo: a biogra-
Em tudo distinto de Messi, o herói
e, a seu modo, também mediático.
fia recorre a elementos paraficcionais,
Cristiano Ronaldo é filho da mesma
Uma evidência relativamente trivial:
ou seja, a componentes da “história”
mãe mediática, mas é moldado por
nos nossos dias, tal como acontece
contada que, não sendo verificáveis em-
uma figuração paraficcional própria.
com os grandes estadistas, com os
piricamente, às vezes ocultam zonas
Expressa-se essa figuração na exube-
grandes artistas ou com os grandes
menos nobres da vida passada. Com
rante musculação e na gestualidade de
escritores, alguns desportistas ga-
a conivência, até com a exigência dos
guerreiro Matrix que se exibe na arena
nham direito à narrativa biográfica
interessados, as chamadas biografias
39
Figura 1:
Aquela imagem é também a fotografia do
autorizadas são exímias em cultivar
pés não o tem necessariamente com
Ronaldo, transforma-se em heroína,
esses estratagemas de camuflagem.
a pena.
quando dela se publica uma biografia
Curiosamente (e sintomaticamen-
Trata-se, em geral, de obras de
generosamente ilustrada e com título
te), as biografias de homens e de mu-
extensão relativamente reduzida (a
brechtiano: Mãe Coragem. O subtítulo
lheres do desporto são quase sempre
vida que para ali importa é tão curta
A mulher a quem o sofrimento nunca
da autoria de jornalistas ou, no míni-
como breve é a atividade do desportis-
apagou a esperança prenuncia o tom
mo, escritas em regime jornalístico.
ta), em estilo simples, direto e pouco
geral da narrativa, engendrada por
Não tendo lido, de fio a pavio, os tí-
dado a flores de retórica (a não ser a
Paulo Sousa Costa, a figura de quem
tulos que se seguem, pude perceber,
hipérbole, é claro), relatando origens
menos se falou na ampla divulgação
pelo que deles vi, como são construí-
humildes, a que se seguiu a árdua
mediática a que o livro teve direito.
dos: Cristiano Ronaldo: A Verdadei­
superação de obstáculos de toda a
Insisto aqui num aspeto relevante
ra História do Melhor Futebolista do
ordem, com o justo prémio de taças,
desta explanação, ou seja, o império
Planeta (2008), por Tom Oldfield;
campeonatos, medalhas e recordes,
das imagens enquanto instância de
Rosa Mota: Memória de uma Carrei­
por entre viagens incessantes, duros
figuração do herói desportivo. E lem-
ra (1999), por Leonor Pinhão; Carlos
treinos e algumas lesões; um trajeto de
bro imagens talvez já esquecidas, que
Lopes (1992), por Carlos Pinhão, que
vitórias, em suma, aqui e ali alternan-
deram a volta ao nosso pequeno mundo
foi um dos grandes jornalistas d’A
do com uma ou outra chorada derrota.
português; foram elas recolhidas no
Bola de outrora. Para além destes e
Não faltam na biografia testemunhos
dia em que um herói foi derrotado
de outros mais, lembro um caso assaz
do visado e prolixos depoimentos de
e com ele uma nação. Refiro-me às
bizarro de disfuncionalidade discur-
familiares, amigos, treinadores e com-
fotografias de Eusébio debulhado
siva, ainda no campo da narrativa
panheiros de profissão. Tudo isso e
em lágrimas, num certo dia 26 de
da vida: uma autobiografia escrita
imagens, muitas imagens, sobretudo
julho de 1966, logo depois da derrota
não pelo próprio, como mandam as
de proezas, às vezes também de fra-
por 2 a 1 com a Inglaterra (uma das
regras do género, mas por um escri-
cassos, porque são estes que, por fim,
derrotas que, naquele tempo, eram
ba de serviço: Meu nome é Eusébio:
humanizam o herói.
transformadas em vitórias morais).
autobiografia do maior futebolista do
Como se isso não bastasse, em cer-
Pois bem: o que impressiona não é
mundo (1966), prefácio e narrativa
tos casos (que são talvez extremos), a
apenas a desolação de um moço sim-
recolhida por Fernando F. Garcia. Re-
biografia do herói completa-se com
ples de 24 anos, consolado em gesto
colhida e certamente reescrita, digo
a daqueles que o geraram. Por um
paternal pelo selecionador Manuel da
eu sem maldade, porque a derrogação
efeito metonímico de impulso retroa-
Luz Afonso. A desolação fala por si e
é perdoável: quem tem talento com os
tivo, Dolores Aveiro, mãe de Cristiano
não carece de mais comentários. Mas
© TALKING SPORT/Photoshot/Fotobanco
fotógrafo que apoia Eusébio
41
Figura 2 e 3:
Os heróis, quando derrotados pagam o preço
© Esq. PA/Fotobanco | Dir. ZumaPress/Fotobanco
da solidão que o poder das imagens acentua
43
aquela imagem é também fotografia do
solidário abdicou. Por isso, quando
de novos e mais excitantes capítulos.
fotógrafo, não do que a captou, é claro,
terminou a final (essa final que tragi-
Mourinho, de resto, logo em 2003
mas da segunda figura que apoia Eu-
camente sempre perdemos), Cristiano
tivera direito a uma biografia, da
sébio, o inesquecível Formidável, uma
Ronaldo ergueu os olhos ao céu dis-
autoria de Luís Lourenço, biografia
presença que ali significa o seguinte:
tante e mudo; depois chorou sozinho,
que hoje sabemos provisória, porque
o fotógrafo estava lá, porque tinha que
perdido no relvado onde foi herói por
faltava (e falta) muito para a história
estar, mas por momentos fez parte do
cumprir e vítima inconsolável, crian-
acabar.
drama como ser humano, não como su-
ça abandonada à crueza de imagens
Quem era José Mourinho e por
porte e operador da máquina (figura 1).
excessivas e quase indecorosas. Nes-
que razão este herói então em projeto
Com a câmara fotográfica momenta-
se dia, o fotógrafo estava onde devia,
indignou alguns, chocou outros e se-
neamente esquecida, o fotógrafo diz-
atrás da câmara (figura 2 e 3); com
duziu não poucos? Era alguém que, ali
nos, sem o dizer: houve um tempo em
ele estavam os agentes das imagens
no coração da “pátria do futebol” (me-
que o espectáculo desportivo e o seu
que (passe a redundância) fazem íco-
táfora cara a utentes do lugar-comum),
herói, começando já a ser imagem,
nes e configuram heróis. Heróis que,
sabia que estava a falar para o mundo
consentiam a trégua de um gesto de
quando derrotados, pagam o preço de
(as televisões filmaram e as imagens
carinho. E assim, o fotógrafo não fo-
uma solidão que o poder das imagens
permanecem no ciberespaço); alguém
tografou porque preferiu confortar o
cruelmente acentua.
que afirmava um poder que nada auto-
herói, porventura inocente dessa sua
condição.
rizava, a não ser a crença nas virtudes
7. Foi de peito aberto que, num
de um heroísmo por provar. E assim,
Quer isto dizer que os atletas já
dia de junho desse mesmo ano de
um treinador jovem, chegado de um
não choram? De modo algum. Quase
2004, em Londres, um treinador
pequeno país do sul, historicamente
quatro décadas depois, no derradeiro
português, José Mourinho, contrata-
colónia económica da Grã-Bretanha,
jogo do Euro 2004, um herói por-
do por um milionário russo proferiu
aliado poderoso e imperialista, afron-
tuguês ainda em crescimento (quero
uma declaração que o acompanha-
tava o John Bull robusto e prosaico
dizer: antes de ser o robot que dispara
rá pelo resto da vida: “I am the
de quem, como muitos outros, falou
mísseis e antes de ter a mãe famosa
European champion. I think I am a
Ramalho Ortigão. E fazia-o na própria
de hoje) não conteve o pranto. Mas
special one.” Assim mesmo, sem ro-
casa de quem o acolhia, como que
nesse dia, o jovem quase adolescente
deios nem modéstias, ficava enuncia-
compensando, quase quarenta anos
não foi acalentado por nenhum For-
do o que parecia ser o princípio de
depois, a derrota no Mundial de 66. As
midável; todo ele era imagem, uma
uma narrativa, mas que, afinal, era
lágrimas de Eusébio estavam vinga-
imagem de que nenhum fotógrafo
já a sua continuação e a promessa
das; e mais vingadas ficaram quando
o jovem treinador mostrou que era herói por palavras e por atos. Por tudo
isso, pela imagem que soube cultivar
e pelo cognome “the special one” que
o próprio Mourinho escolheu, como
se desse modo se definisse a marca
de água que o distingue como herói
desportivo.
Falo, então, do cognome como procedimento de figuração que destaca
o herói desportivo dos demais praticantes, até daqueles que comungam
do mesmo nome próprio. Mas antes,
continuando com o “special one” e
para bem justificar a justeza do epíteto, insisto na imagem desse que hoje é
um herói fora das quatro linhas (outra
imagem estafada), ali à beira do terreno de jogo, como líder das tropas
que afrontam o inimigo (figura 4).
A expressão parece excessiva e antidesportiva, mas a realidade mostra
o contrário, quando sabemos que os
famosos mind games do “special one”
atraem sobre o treinador uma agressividade que dessa maneira é desviada
dos guerreiros, libertando-os para a
tarefa que lhes cabe: jogar futebol.
Explico-me: José Mourinho é herói e
Se o Aranha Negra
balas, sabendo que o sacrifício é necessário. A História mostra-o bem e a
lembra os membros
iconografia confirma-o; vejamos como.
No dia 3 de maio de 1808, na ma-
longos que
drilena Moncloa, centenas de rebeldes
espanhóis, resistindo à invasão fran-
protegem a baliza
cesa que punha em causa a independência de Espanha, foram fuzilados,
e, juntamente com
num sangrento episódio de execução
em massa que o genial Goya imorta-
eles, a cor que os
lizou numa tela famosa, “Los fusilamientos del tres de mayo” (figura 5).
reveste, o Pantera
De tal modo que um grande poeta português foi sensível ao episódio e fez
Negra evoca a
dele motivo para um extenso poema:
“Estes fuzilamentos, este heroísmo,
africanidade de
este horror,/foi uma coisa, entre mil,
acontecida em Espanha/há mais de
Eusébio e das
um século e por violenta e injusta/
ofendeu o coração de um pintor cha-
suas origens,
mado Goya,/que tinha um coração
muito grande, cheio de fúria/e de
mais o estilo
amor” (Sena, 1988: 123-124), assim
escreveu Jorge de Sena em “Carta a
felino da corrida,
meus filhos sobre os Fuzilamentos de
Goya”.
da impulsão e
José Mourinho certamente nunca leu o poema de Sena e talvez não
do remate
conheça a tela de Goya. Mas o seu
mártir porque, com desassombro e
desassombro provocador leva-o, como
com desprendimento, dá o corpo às
a Hidra de Lerna, monstro mitológico
45
Figura 4:
Mourinho dá corpo a outros projéteis:
máquinas fotográficas e câmaras de televisão
© Foto de Pierre-Philippe Marcou
Figura 5:
Los fusilamentos del tres
de mayo, de Goya
47
que reganhava forças sempre que era
futebol. O cognome impõe, então, uma
transferida para Johan Cruijff, dito o
atacada, a colocar-se no lugar dos fu-
imagem que vem a ser ela mesma e o
Pelé Branco, um dos jogadores mais
zilados, quando chega a hora do mar-
mais que lhe está associado.
elegantes e inteligentes que já pisaram
tírio que faz heróis. O episódio acon-
Se o Aranha Negra lembra os
relvados.
teceu mesmo e a pouca distância da
membros longos que protegem a baliza
Por entre todos eles escapa-se, com
Moncloa, onde tombaram os patriotas
e, juntamente com eles, a cor (que é,
fintas e com simulações nunca vistas,
espanhóis; foi no dia 1 de dezembro de
de facto, uma não-cor) que os reveste,
um nome de pássaro, Garrincha. Mas
2012, quando o Real Madrid recebeu
o Pantera Negra evoca a africanidade
Garrincha foi outra coisa, foi um herói
no Santiago Bernabéu o rival Atlético
de Eusébio e das suas origens, mais o
quase impossível, plebeu de pernas
de Madrid e Mourinho, vinte minutos
estilo felino da corrida, da impulsão e
tortas saído do nada e tornado alegria
antes de começar o jogo, subiu ao
do remate. Nos anos 50 e até meados
do povo. Disse-o Nelson Rodrigues,
relvado disposto a chamar sobre si a
dos 60, o Real Madrid de Puskas e
que bem entendeu que Mané Garrin-
atenção dos adeptos indispostos com
Gento era comandado por um avança-
cha, Manuel Francisco dos Santos de
a carreira do Real; o treinador-herói
do extraordinariamente veloz, para os
nome próprio, devolveu a um povo hu-
não foi executado, mas, em imitação
padrões da época: Alfredo Di Stéfano,
milde e anónimo um poder de que ele
diferida do quadro de Goya, deu o
chamado “la Saeta Rubia”, para que
estava despojado, mas que a magia do
corpo aos projéteis. Outros projéteis,
justiça fosse feita à velocidade de um
jogador resgatou, em particular quan-
claro, disparados estes por outras ar-
jogador de cabelos claros, coisa talvez
do foi herói de duas Copas.
mas, que a seu modo ferem e de ou-
pouco usual num argentino. Outras
tra forma também matam: máquinas
alcunhas, sendo menos “nobres”, as-
“Em 58, ou 62,” escreveu Nelson
fotográficas e câmaras de televisão.
sinalam outras diferenças. Diz-se de
Rodrigues, “ o mais indigente
Talvez por isso e com escasso exagero
Edson Arantes do Nascimento que fi-
dos brasileiros pôde tecer a sua
falamos às vezes em imagens assassi-
cou Pelé por corruptela do nome Bilé
fantasia de onipotência. // E, por
nas. Mourinho sabe-o bem, mas não
– que era o de um guarda-redes por
tudo isso, as multidões, sem que
se intimida.
ele admirado. Pouco importa. Muitos
ninguém pedisse, e sem que nin­
pensam que Pelé quer dizer “o Rei”
guém lembrasse, as massas der­
8. A expressão “the special one”
e está bem assim, porque não houve
rubaram os portões. E ofereceram
traz consigo o timbre do lugar onde foi
outro como ele; por ser o rei que é,
a Mané Garrincha uma festa de
inventada e também a marca linguís-
Pelé ficou, até hoje, um herói nacional
amor, como não houve igual, nun­
tica de uma internacionalidade que
e o génio futebolístico por antonomá-
ca, assim na terra como no céu”
hoje é própria dos heróis errantes do
sia, de tal modo que a designação foi
(Rodrigues, 1994: 138).
Não raro o herói
desportivo é ele
mesmo e mais o
coletivo sugerido
pelo cognome,
com as suas
virtudes, com os
seus defeitos e com
os seus valores
mágoa de quantos pensavam que DaDas multidões rendidas ao herói
vid derrubaria Golias; não foi assim e
-plebeu falaram também dois poetas
foi também evidente que ali estiveram
brasileiros: Drummond de Andrade
em causa representações e atitudes de
que, no dia seguinte à morte de Gar-
identificação bem mais densas do que
rincha, escreveu: o “agente divino”
um mero jogo de futebol.
foi “um pobre e pequeno mortal que
Foi algo mais do que o futebol que,
ajudou um país inteiro a sublimar suas
com propósito nacionalista, se quis
tristezas” (Andrade, 1983); e Vinicius
inculcar, quando a seleção portuguesa
de Moraes, no soneto “O anjo das per-
de 1966 levou para Inglaterra o epíteto
nas tortas”, lembrando o mágico poder
coletivo de Magriços; e não por esta-
mobilizador do rei do drible: “Num só
rem os jogadores desnutridos, como
transporte a multidão contrita/Em ato
então alguns pensaram, mas porque se
de morte se levanta e grita/Seu uníssono
queria recuperar o episódio fantasioso
canto de esperança” (Moraes, 1962).
dos Doze de Inglaterra e do seu líder
Não raro o herói desportivo é ele
Álvaro Gonçalves Coutinho, o Magri-
mesmo e mais o coletivo sugerido pelo
ço. O dito episódio está n’Os Lusíadas
cognome, com as suas virtudes, com
e tal bastou para que os poderes de
os seus defeitos e com os seus valores.
então pensassem que isso era motivo
Na seleção alemã campeã do mundo
suficiente para que se galvanizasse
de 1974, destacavam-se dois jogado-
(termo bem futebolístico) um povo. Só
res, o ponta de lança Gerd Müller e
que os Magriços originais eram uma
o médio Franz Beckenbauer, capitão
lenda literária, não uma imagem nítida
da equipa. O primeiro era o Panzer,
e visível; sem ela, nada feito.
o segundo era o Kaiser. Não é preciso dizer mais, para reconhecer os
9. Deixo de lado os cognomes e
sentidos de militarismo, de disciplina,
fixo-me, então, nas imagens que, numa
de poder e de imperialismo que estes
cultura mediática que vive delas, va-
sobrenomes conotam. No jogo final
lem por muitos manifestos políticos e
desse mundial, a Alemanha derrotou
por não poucas proclamações ideoló-
a Holanda de Cruijff e Neeskens, para
gicas. E fazem heróis coletivos.
49
Quando não ganha quem se espera,
ao ouvido, por entre as aclamações
69 minutos de jogo, o italiano Marco
quando a finta é desfeita e a defesa fica
da multidão, palavras de prudente
Tardelli marcou o segundo golo à Ale-
incompleta, o herói é vencido e com ele
lembrança de uma condição humana
manha e correu para a glória, porque
as ilusões que lhe havíamos confiado.
que nenhum herói deve esquecer. Os
o jogo estava praticamente ganho. Cor-
Dentro e fora do campo, fisicamente
deuses podiam ficar invejosos do ex-
rijo: aquilo que nos contam as imagens
ou moralmente. Como que atingido
cesso da glória. Outros excessos, por
de euforia que deram a volta ao mundo
por uma maldição aziaga, Fernando
causa da fama atingida ou a atingir,
não é tanto o golo de Tardelli3 , é a
Pascoal das Neves, de alcunha Pavão,
derrubam moralmente heróis despor-
vitória de uma certa latinidade con-
tombou morto no Estádio das Antas
tivos do nosso tempo, desavisados dos
tra os povos do Norte. Os italianos
ao minuto 13, num jogo da jornada
riscos da ambição: os casos de Lance
vinham de um Estado unificado por
13, num dia chuvoso de dezembro de
Armstrong e de Oscar Pistorius (este
Garibaldi, mas também pelo despor-
1973, a três dias de cumprir 26 anos,
com a alcunha, já de si inquietante,
to-rei; para além disso, eram boni-
ou seja, duas vezes 13. Antes e depois
de Blade Runner) falam por si e dis-
tos, elegantes, ágeis e tinham nomes
dele outros heróis ficaram por cumprir,
pensam comentários, a não ser dizer
musicais – Graziani, Gentile, Conti,
porque caíram em plena competição.
que a derrota moral parece ainda mais
Oriali, Altobelli. Do outro lado esta-
O primeiro de todos, na nossa memó-
penosa do que a derrota desportiva.
vam os germânicos, louros e hirsutos,
ria coletiva, foi talvez o maratonista
Esta, para todos os efeitos, faz parte
com nomes que aos ouvidos do sul
Francisco Lázaro, evocado como per-
da lógica do jogo.
soavam quase como bárbaros, Horst
sonagem de um romance de José Luís
É precisamente da queda do he-
Hrubesch, Karl-Heinz Rumenigge,
Peixoto, Cemitério de Pianos (2006).
rói enquanto atleta cumpridor das leis
Paul Breitner, Harald Schumacher.
De todos podemos afirmar como Fer-
do jogo que quero ainda falar. Para o
Venceram os latinos e por uma vez
nando Pessoa, na morte de Mário de
fazer como comecei, trago de novo à
não valeu aquela máxima mais tar-
Sá-Carneiro: “Morre jovem o que os
reflexão a personagem que se destaca
de inventada por um jogador inglês,
Deuses amam”. Como quem diz: há
na grande narrativa que é o jogo de
Gary Lineker: “O futebol é um jogo
heróis desportivos que se vão, talvez
futebol: o guarda-redes. Tal como o
simples: são onze contra onze e no
porque eram grandes de mais para
herói romântico, ele está solitário en-
fim ganham os alemães.” Nem sempre,
a sua precária condição de mortais.
tre os postes e é diferente dos demais:
como se viu.
3 Veja-se em https://www.youtube.com/
watch?v=7XOL8o-3TZ8.
Conta-se que, na Roma antiga,
equipa-se de modo distintivo e segue
durante o desfile da vitória, o ge-
regras próprias que às vezes transgri-
neral vencedor era acompanhado
de, por exemplo, quando, em desespe-
por um escravo que lhe murmurava
ro de causa, vem à área adversária ou
© http://gaucha.clicrbs.com.br
Na final do Mundial de 1982, aos
Figura 6:
Mundial de 1950: a onze minutos do fim,
nascia no Maracanã, sob o olhar de 200 mil
pessoas, o anti-herói.
51
quando ousadamente finta o avançado
nos ombros, em segundos decisivos,
um anti-herói, o guarda-redes, na-
que o ameaça. O colombiano Higuita
sem apelo nem retorno.
turalmente. Por causa dele e só por
saía a jogar com os pés e às vezes da-
Não foi preciso um penalty para
causa dele, desatava-se o pranto num
va-se mal; e o brasileiro Rogério Ceni
que, numa tarde de 1950, um guarda
país inteiro, que se tinha por vencedor
deixou a baliza para marcar, de livre
-redes passasse de herói a anti-herói
antecipado. A culpa, carregada até ao
e de penalty, mais de cem golos pela
em frações de segundo. Há poucas
fim da vida por aquele atleta negro
sua equipa, o São Paulo. Guarda-redes
imagens da tragédia (digo tragédia,
nascido em Campinas, era irremissí-
contra guarda-redes: não há fratricídio
sem exagero), porque nesse tempo a
vel. Não foi o defesa que falhou o de-
mais dramático.
televisão não entrara ainda nos está-
sarme, não foi o médio que desajudou
Na marcação do penalty é a solidão
dios de futebol, o cinema tinha as suas
o defesa. Quem perdeu e para sempre
total do condenado à execução. Nes-
limitações e as fotografias eram pou-
foi o guarda-redes, arrastando no seu
se momento em que o tempo parece
cas e às vezes de qualidade precária.
fracasso todo um povo, mais as suas
deter-se, trava-se um duelo que de
Falo da final do Mundial de 1950, num
ilusões desfeitas e as suas alegrias
um dos lados tem sempre o mesmo
dia 16 de julho em que um pequeno
frustradas 4 .
protagonista, herói celebrado quando
país venceu a grande nação que fazia
Que o guarda-redes erra muitas
defende, anti-herói humilhado quando
do futebol uma causa coletiva e um
vezes, é sabido. Afinal de contas e
é batido. Foi um pouco disso que Pe-
emblema de afirmação identitária.
para todos os efeitos, se ele é o pri-
ter Handke transpôs metaforicamente
O Uruguai-David bateu o Brasil-Go-
meiro que ataca é também ele o último
para uma novela intitulada A Angús­
lias, com um golo do avançado Alcides
que defende. Seja como for, naquela
tia do Guarda-Redes antes do Penal­
Ghiggia marcado ao guarda-redes Bar-
história que já muitas vezes se contou
ty (1970), depois passada ao cinema
bosa; em três instantâneos estão fixa-
ao longo de 90 minutos e que se chama
por Wim Wenders; e foi certamente
dos os tempos do desastre: a bola que
jogo de futebol, lá está ele sempre. Di-
a pensar no título de Handke que
voa, o guarda-redes que parece olhá-la,
ferente dos outros, elegante, carismá-
o antigo jogador argentino Jorge Val-
já certo da derrota, por fim o retrato
tico e distante. O herói guarda-redes.
dano escreveu sobre “O penalty sem
do irrecuperável desalento, quando o
O autêntico “special one”.
angústias”, dizendo dele: é “um golo
derrotado tarda em reerguer-se, sob o
por acabar (e que pode acabar mal)”
peso imenso do erro já irremediável.
(Valdano, 1983: D5). Para o guarda
Faltando dez minutos para as cinco
-redes, antes de mais, para a equipa
da tarde e apenas onze para o jogo
juntamente com ele e para tudo o mais
terminar, nascia, no Maracanã e sob o
que aquele singular jogador carrega
olhar aterrorizado de 200 mil pessoas,
4 Ver http://gaucha.clicrbs.com.br/rs/noticia-aberta/ghiggia-conta-como-calou-o-maracana-na-copa-do-mundo-de-1950-54120.
html.
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53
Rui Machado Gomes
Professor da Faculdade de Ciências do Desporto e de
Educação Física da Universidade de Coimbra: [email protected]
© Lugares da Personagem, António Barros, 2014-2015, #4 - Cerveira_Vulto Limite
Ascensão e Queda das
Celebridades Desportivas
Resumo:
Abstract:
A análise crítica da construção das cele-
The critical analysis of the construction of
bridades desportivas contemporâneas pelos
the contemporary sports celebrity by the
meios de comunicação proporciona o en-
media provides the framework necessary
quadramento necessário à conceptualização
for conceptualizing the way people use
do modo como os sujeitos usam os recursos
media resources for their creativity and for
mediáticos para a sua criatividade e para
production of identity. It is considered that
os processos de produção de identidade
the nature of the sports celebrity suffered
defendida pelo autor. Considera-se que a
strong mutations since the ‘ 60, that the
natureza da celebridade desportiva sofreu
creation and maintenance of the celebrity
fortes mutações desde os anos 60, que a
is in itself an industry made possible by
criação e manutenção da celebridade é em si
the media and that this process is driven
mesma uma indústria tornada possível pelos
from one-dimensional visions. The media
meios de comunicação e que este processo
creates narratives that often oppose the
é conduzido a partir de visões unidimensio-
sporting heroes and villains. This narra-
nais e maniqueístas. Os media criam com
tive structure is part of a more general
frequência narrativas que opõem os heróis e
process of globalization of the society of
os vilões desportivos. Esta estrutura narra-
the spectacle. Providing a temporary tar-
tiva integra-se num processo mais geral da
get for the collective consciousness, the
mundialização da sociedade do espectáculo.
sporting performances and the iconomania
Proporcionando um alvo temporário para a
guarantee the illusion of immediacy and,
consciência colectiva, os espectáculos des-
simultaneously, of self-referentiality. It is
portivos e a iconomania que os acompanha
concluded that the universalization of the
garantem a ilusão de instantaneidade e,
modes of life guaranteed by sport gaze
simultaneamente, de autoreferencialidade.
accompanies the maximum of individua-
Conclui-se que a universalização dos mo-
lization of each in your private space.
dos de vida garantidos pela desportivisão
acompanha o máximo de singularização de
cada um no seu espaço privado.
Palavras-chave: Celebridade; sociedade
Keywords: Celebrity; society of spectacle;
do espectáculo; iconomania; desportivisão
iconomania; sport gaze.
55
A sociedade do espectáculo:
desportivisão acompanha o máximo
do homem memorável
de singularização de cada um no seu
ao homem calculável
espaço privado. Este não é um fenómeno recente, mas o desenvolvimento
Os pós-modernistas dizem que
sem precedentes da homogeneização
vivemos numa sociedade do espe-
e codificação das regras desportivas
táculo. O lazer e a cultura popular
em todo o planeta, bem como o con-
estão verdadeiramente fascinados
trolo acrescido do fenómeno desportivo
pelos espetáculos de massas como
por fortes interesses financeiros, tem
os grandes concertos ou os grandes
acentuado, nas duas últimas décadas,
eventos desportivos. A multiplicação
o seu correlato: a desportivização do
sem fim das competições desportivas
mundo como metáfora por excelência
internacionais domina a perceção que
da globalização. Sob o regime da difu-
hoje temos do fenómeno desportivo e,
são televisiva em direto, que permite a
num certo sentido, do próprio mundo.
transmissão electrónica quase instan-
Os Jogos Olímpicos, os Campeonatos
tânea dos acontecimentos desportivos,
do Mundo das mais diversas modali-
assiste-se a uma nova espacialização
dades, os torneios de ténis e de golfe
planetária dominada por um tempo
e a miríade de acontecimentos des-
unificado. Ao ritmo das competições
portivos que todos os dias invadem as
e dos calendários desportivos surgem
nossas casas constituem um dos mais
novas ofertas nos mass media que não
poderosos veículos de fascinação das
se limitam a transmitir acontecimentos
multidões. Pelo seu modo de difusão,
ou a influenciar, mas são elas próprias
o desporto tornou-se num dos princi-
criadoras de realidade.
pais motores da mundialização. Pro-
A iconomania (Anders, 2001)
porcionando um alvo temporário para
transformou os campeões e os despor-
a consciência coletiva, os espetáculos
tistas de alto nível em modelos publi-
desportivos garantem a ilusão de ins-
citários e em formas de identificação
tantaneidade e, simultaneamente, de
juvenil; os estilos de vida, a imagem
autorreferencialidade. A universaliza-
e o corpo dos novos ícones passaram
ção dos modos de vida garantidos pela
a ser modelos desejáveis de sucesso
Pelo seu modo de
difusão, o desporto
tornou-se num dos
principais motores
da mundialização
social. No início deste novo século o
desporto-espectáculo e desenvolver
A medida da performance desportiva
desporto transformou-se na indústria
o culto individual do corpo. Cada
manifesta um novo poder da raciona-
de entretenimento mais conhecida e
um aceita para si a busca de uma
lização corporal. Em primeiro lugar,
mais vista em todo o globo.
harmonia natural com o seu corpo,
porque converte o desportista num
No entanto, a este movimento
ao passo que colectivamente, e isso
campo racional, medível, calculável
ascendente do desporto visto não
acontece cada vez mais através de
e programável; em segundo lugar,
tem correspondido um movimento
intermediários interpostos, cada
porque torna possível a constitui-
homólogo de atividade física e
um se submete à ideologia com-
ção de um arquivo escrito sobre a
desportiva feita. Trata-se de um as-
bativa de corpos artificialmente
performance individual do despor-
peto particular do gap mais geral entre
profissionalizados” (Andrieu,
tista e a sua posição relativa numa
espetacularização da sociedade e re-
2004: 55).
determinada população; em terceiro
dução da experiência corporal que tem
lugar, porque estabelece a norma e
também como consequência o forte
É neste paradoxo que reside o
respectivos desvios. A consolidação
impacto das grandes vedetas despor-
poder mercantil das celebridades
desta tecnologia permitiu que a ati-
tivas no imaginário e nos desejos da
desportivas. A compreensão deste
vidade desportiva, de competição, de
cultura popular.
paradoxo remonta à própria génese
lazer ou de saúde se desenvolva hoje
Embora a performance desportiva
da desportivização da sociedade.
sob um regime de registo, prova e
de alto nível pertença a uma lógica
A racionalização, a quantificação e
graduação e a sociedade se organize
diferente da lógica de manutenção do
a busca constante do record são três
segundo normas de produtividade.
corpo, a desportivização da socieda-
caraterísticas que fazem do despor-
Deste modo, a cultura visual ins-
de promovida pelo olhar desportivo,
to um fenómeno social homólogo dos
crita na atividade desportiva inclui
ordena os comportamentos de lazer e
fundamentos da sociedade capitalista
um regime ético para as atividades
de consumo de acordo com rituais de
e da modernização. A prova despor­
de lazer. Na verdade, aquilo que é
autodisciplina, racionalização e regu-
tiva e a medida da performance que
hoje considerado uma forma “suave”
laridade. O cronómetro do desportista
a acompanha constituem as tecno-
de ouvir e seguir o próprio corpo (o
profissional deu lugar a um cronómetro
logias que, no contexto desportivo,
jogging, por exemplo) é acompanhado
incorporado em cada um.
fundamentam a arte de racionalizar o
frequentemente de sofrimentos, dietas
gesto desportivo e, simultaneamente,
alimentares, observação de interditos
“O paradoxo da nossa sociedade
estabelecem as estruturas cognitivas
e estilos de vida típicos que conduzem
está em, simultaneamente, pôr em
que tornam aceitável e necessário
o praticante ao ascetismo, vivido em-
cena a competição desigual do
pessoas calculáveis (Hacking, 1986).
bora como hedonismo.
57
E esse é bem o paradoxo da so-
eventual e sempre transitória. O ho-
O desporto é uma construção so-
ciedade da desportivisão. Um novo
mem memorável deu lugar ao homem
cial que, enquanto tal, representa as
complexo de saberpoder constituiu-
calculável, sujeito à racionalidade e à
ideias e valores dominantes. O despor-
se com a possibilidade de estabelecer
mobilidade meritocrática. A celebrida-
to de alta competição tem sido utili-
medidas objectivas do valor humano.
de desportiva é, por conseguinte, um
zado pelos Estados para promoverem
A marca do desportista funciona, si-
fenómeno típico da época do homem
as interpretações que procuram de-
multaneamente, como um registo de
comum. Do homem comum que pode
monstrar como deve funcionar a vida
uma performance pretérita e como
ascender à notoriedade através da de-
social (Coakley, 1998). Por outro lado,
uma expressão quantificada do valor
monstração dos seus feitos. Graças ao
o record revela as provas desportivas
humano. Depois de agregadas, as
aparelho estatístico que acompanha as
como uma das metáforas dominantes
marcas tornam-se numa medida da
técnicas de notação, registo e arqui-
da conceção democrática e meritocrá-
competência subjacente do sujeito,
vo das marcas desportivas é possível
tica da sociedade (Bromberger, 1995).
constituindo um novo modo de pro-
estimar o valor de cada indivíduo e,
Valores como o trabalho, espírito de
blematização de si face aos outros.
simultaneamente, apreciar e caracteri-
equipa, ambição, união, esforço, mo-
Esta é a base racional da criação das
zar os grupos. Por um lado, nasce uma
déstia, respeito e disciplina, entre
celebridades desportivas, embora
nova modalidade de poder, em que
outros, tornam proeminente a crença
depois sejam sujeitas a um efeito de
cada um recebe como estatuto aquilo
na eficácia da superação de si.
ampliação extraordinário pelos meios
que parece ser o seu valor intrínseco;
No entanto, a natureza da cele-
de comunicação.
por outro lado, instituise a repartição
bridade desportiva atual é bastante
Durante muito tempo os comporta-
das diferenças individuais no conjunto
diferente da dos anos 60. Enquan-
mentos individuais estiveram ao abrigo
da população. Num único lance, o des-
to as celebridades desportivas de
da descrição pública. Conhecer o valor
porto competição inicia a construção
há 50 anos eram conhecidas pelos
de cada um, por intermédio da sua
de uma estrutura de oportunidades
seus feitos desportivos, a celebrida-
história de vida, estava reservado a
aparentemente universal, formas de
de contemporânea é apenas parcial-
um restrito grupo social que tratava de
mérito padronizadas e estratégias de
mente construída por intermédio do
narrar os seus feitos. Em todo o caso,
obtenção de estatuto e mobilidade so-
seu sucesso. Com efeito, a criação e
as narrativas de vida visavam consti-
cial. A democratização da reputação
manutenção da celebridade é em si
tuir uma memóriamonumento. Com a
dissolve o estatuto do antigo herói
mesma uma indústria tornada possível
performance desportiva não se trata
numa estrutura de oportunidades em
pelos meios de comunicação. A cons-
de constituir uma memória futura, mas
que, supostamente, todos podem ter
trução de celebridades desportivas
um feito para uma utilização imediata,
acesso ao estatuto de celebridade.
pela comunicação de massas é feita
a partir de visões unidimensionais e
mesmo como estrelas convidadas em
Nos anos mais recentes, alguma
maniqueístas. Os media criam com
soap operas. A sua importância me-
literatura dos estudos de comunicação
frequência narrativas que opõem os
diática deixou de estar restringida às
e jornalismo passou a interessar-se
heróis e vilões desportivos. A boa con-
carreiras desportivas. As suas vidas
mais pela pesquisa do modo como
duta de Lineker é comparada com a
pessoais, transformadas em narrati-
os sujeitos usam os recursos mediá-
vilania de Vinnie Jones; a brutalidade
vas melodramáticas, são transportadas
ticos para a sua criatividade e para
de Dennis Rodman é oposta à rectidão
para as revistas cor-de-rosa, para os
os processos de produção de identi-
de Jordan. No entanto, assim como os
tablóides ou para os videojogos. A im-
dade. Este novo interesse, de que o
media os podem erguer aos píncaros
portância mediática não se restringe
modelo de Abercombrie e Longhurst
também os podem atirar abaixo do pe-
às suas carreiras desportivas, passan-
(1998) do espétaculo/performance é
destal como os casos de Armstrong e
do a sua vida pessoal a ser alvo de
o exemplo mais evidente, afasta-se
Pistorius recentemente demonstram,
programas televisivos e de primeiras
da consideração das audiências e
ou os casos de Maradona e Gascoigne
páginas dos jornais, como o demons-
dos consumidores como o ponto final
demonstraram no passado.
tram bem os casos de Paul Gascoigne
e culminante do processo de comuni-
Grande parte da linguagem usada
durante o Mundial de 90, ou de David
cação, considerando, em alternativa,
para descrever as estrelas desporti-
Beckam há mais de uma década e mais
os actos de produção das audiências
vas vai buscar ao melodrama a sua
recentemente de Cristiano Ronaldo.
e a totalidade do ciclo de produção e
estrutura narrativa. Os heróis sobem
Os estudos sobre os media têm
e caem, os vilões são derrotados e as
uma longa tradição assente numa
Os efeitos económicos e de reco-
mulheres cumprem os seus papéis
visão passiva das audiências, enten-
nhecimento das marcas provocado
de suporte aos papéis dramáticos
didas como recetáculos desta sedução
pelo envolvimento das celebridades
dos homens. Neste sentido, os media
produzida pelos mass media. Embora
desportivas tem sido medido com
cumprem um papel de educação das
Adorno tivesse razão quando chamava
precisão. Sabe-se que os efeitos são
audiências, fazendo-as aceitar o des-
a atenção para o facto de a indústria
tremendos e se medem por transac-
porto como uma espécie de melodra-
cultural se basear num sistema de do-
ções de milhões de dólares. O que
ma. Rowe (1995) sugere que muitas
minação, essa tradição dos estudos
é menos claro são os motivos psico-
celebridades desportivas ultrapassam
críticos, centrada no efeito provocado
lógicos, emocionais e culturais que
as fronteiras entre o desporto e outras
pelos emissores, esquece o modo como
fazem os consumidores seguir o aval
indústrias de entretenimento. As ce-
os padrões mais globais de interacção
que as celebridades dão às marcas. As
lebridades desportivas aparecem em
formam e são formados pelas redes de
pessoas compram ténis ou champôs
shows televisivos, em videojogos e
relações sociais.
devido às proezas físicas dos atletas?
de consumo das notícias.
59
Ou porque têm confiança no seu per-
respeito e exercem uma influência
sagrado e das igrejas, os pressupostos
curso de atletas que se fizeram a si
preventiva na gestão das emoções
religiosos da via da salvação viram
próprios? Invejam e admiram o seu
na vida quotidiana;
as suas referências muito limitadas.
sucesso material ou os consumidores
4) As celebridades são símbolos de
Celebridade e espetáculo preencheram
são atraídos pelos seus estilos de vida
sucesso material que deste modo
o vácuo provocado pela erosão das re-
construídos em torno de actividades
atraem sentimentos de desejo, in-
ligiões, contribuindo para o culto da
tidas por não laborais? E poderíamos
veja ou desaprovação.
distração que valoriza o superficial
juntar muitos outros motivos.
e o domínio da cultura de consumo.
As perguntas ilustram bem a com-
A passagem de uma sociedade
plexidade das relações entre os dese-
Dos valores de uso aos
baseada na ética do trabalho para
jos dos consumidores e fãs e o estatuto
valores de troca
uma sociedade de consumo provocou
das celebridades. E isso só pode ser
um conjunto de mudanças profun-
bem diagnosticado através da inves-
Uma das caraterísticas da socieda-
das. Em primeiro lugar, alterou-se
tigação empírica junto dos receptores
de capitalista é a transição dos valores
o modo como se preparam e educam
das mensagens dos meios e das marcas
de uso para os valores de troca como
os sujeitos para satisfazer as condi-
que veiculam as celebridades despor-
modo dominante das interacções so-
ções impostas pela sua identidade
tivas. O que os estudos empíricos têm
ciais. Em sociedades dominadas pelo
social. As instituições clássicas de
revelado confirma algumas hipóteses
valor de troca, o idioma da apresen-
tipo disciplinar caíram em desuso.
teóricas que Rojek (2001) sintetiza:
tação corporal aumenta em importân-
O tipo de treino proporcionado pelas
cia social e económica. Ser atrativo e
instituições panópticas – o emprego
1) As celebridades desportivas trans-
capaz de produzir desejo tornaram-se
na fábrica ou no escritório para toda
mitem-nos modelos de individua-
atributos procurados no mercado. O
a vida, o serviço militar obrigatório, a
lização (que alguns designam por
corpo deixa de ser um mero local de
escola, etc – já não serve à formação
heroísmo) numa época de estan-
desejos e torna-se na superfície em
dos novos consumidores. Enquanto a
dardização e previsibilidade;
que a distinção e a atracção são re-
sociedade das disciplinas formatava
2) As celebridades desportivas são re-
gistados. O corpo torna-se por conse-
as pessoas para comportamentos ro-
guinte numa mercadoria.
tineiros e monótonos, eliminando ou
cecionadas como objetos sexuais
que atraem os consumidores;
A celebridade desportiva é parte
limitando as possibilidades de escolha
3) As celebridades expressam as vul-
deste processo através da sua parti-
individual; os requisitos necessários
nerabilidade humanas que, deste
cipação na cultura de distracção e
a um bom consumidor exigem agora
modo, mobilizam a simpatia e o
entretenimento. Com o declínio do
uma subjetividade assente num estado
A cultura de
celebridade
não consegue
produzir valores
transcendentais.
Qualquer gesto
que vise a
transcendência
é, no limite,
cooptado pela
mercadorização.
permanente de escolha, avesso a qual-
sociedade é uma comunidade de car-
quer rotina.
tões de crédito e não de cupões de
Em segundo lugar, o modo de
aforro. A ética protestante do trabalho,
ação da produção e do consumo têm
tem no uso autodisciplinado do tempo,
naturezas muito diversas. Enquanto a
no trabalho duro e na satisfação re-
produção é uma ação coletiva que su-
tardada os princípios fundamentais da
põe a divisão de tarefas, a cooperação
automodelação dos sujeitos. O traba-
entre os agentes e a coordenação das
lho é um dever que está acompanhado
suas atividades, com os consumido-
por uma atitude rígida relativamente
res passa-se justamente o contrário.
ao prazer e aos divertimentos. Pelo
O consumo coletivo não existe: trata-se
contrário, a estética do consumo tem
de uma atividade individual, solitária,
na possibilidade de fazer coincidir o
que se cumpre no livre jogo individual
momento da escolha com o momento
das sensações e desejos. Como afirma
da vivência gratificante a sua principal
Bauman (2003), se a comunidade de
caraterística. Por isso, as normas regu-
produtores era essencialmente plató-
ladoras do consumo são improcedentes
nica, centrada que estava nas regras
perante uma lógica generalizada de
e na estrutura final das ações, a socie-
sedução que pressagia novas emoções.
dade de consumidores é basicamente
Acumular primeiro para adquirir de-
aristotélica, orientada que está por
pois deixou de fazer sentido em face
comportamentos pragmáticos e uma
da estética do consumo que premeia
matriz cognitiva flexível. A liberdade
as experiências intensas. O único cri-
de escolha é a medida que estabelece
tério válido é consumir primeiro para
a estratificação na sociedade de con-
pagar depois, já que a noção de tem-
sumo. Quanto maior é a liberdade de
porário, transitório e efémero marca
escolha sem restrições mais elevada é
todo o objecto e toda a experiência
a posição na hierarquia social.
de consumo. A mercantilização do
Uma terceira característica que
futuro que carateriza as dívidas do
marca a transição da produção para
consumidor passa a estar intimamente
o consumo diz respeito à ética. Na feliz
associada a um trabalho de domínio
síntese de Bauman (2003), a nossa
de si, já que o consumo não se limita
61
a uma perspectiva hedonista de just
O desejo passa a organizar-se em
A cultura da celebridade é par-
fun, constituindo uma forma básica de
torno da estética do efémero. Neste
cialmente a expressão de uma cultura
autoprodução da identidade.
regime de consumo é no olhar e no
organizada em torno deste desejo abs-
Appadurai (2004: 95-119) de-
próprio corpo que se inscrevem as
trato. Trata-se de um instrumento de
senvolveu o pressuposto do consumo
principais técnicas de autodisciplina
mercadorização da sociedade visto que
enquanto vivência estética. Conside-
e automodelação.
o desejo é incorporado, fornecendo aos
rando que a competência para cada
consumidores padrões de emulação
um se orientar pelos fluxos temporais
obrigatórios. A cultura de celebridade
abertos do crédito e da compra implica
Coda: a cultura
é um dos mais importantes mecanis-
uma nova forma de trabalho, conclui
de consumo
mos de mobilização do desejo. Des-
que este trabalho não visa sobretudo
de logo porque materializa o desejo
a produção de mercadorias, mas antes
Mas o que carateriza esta cultu-
num objecto animado que permite
a criação de condições de consciên-
ra de consumo? Em primeiro lugar é
níveis mais profundos de ligação e
cia em que pode ocorrer a compra. O
incapaz de produzir uma cultura in-
identificação. A celebridade pode ser
núcleo deste trabalho é aquilo a que
tegrada visto que apresenta cada pro-
reinventada para renovar o desejo e o
Appadurai chama a disciplina social
duto como uma distinção momentânea
envelhecimento dos ícones desportivos
da imaginação. Esta disciplina está
e, portanto, efémera. Deste modo, a
pode mesmo funcionar como um ponto
ancorada na incorporação do prazer
cultura da celebridade não consegue
a favor do seu valor de mercado desde
do efémero, ilustrada pela
produzir valores transcendentais visto
que reciclado como objeto de nostal-
que qualquer gesto que vise a trans-
gia. Os exemplos de Boby Charlton,
curta vida de prateleira dos pro­
cendência é, no limite, cooptado pela
McEnroe e outros demonstram que o
dutos e dos estilos de vida; a ve­
mercadorização. O capitalismo requer
envelhecimento e mesmo a morte não
locidade com que muda a moda;
que os consumidores desenvolvam um
são um impedimento ao processo de
a velocidade dos gastos; os polir­
desejo abstrato por objetos de con-
mercadorização.
ritmos do crédito, da aquisição e
sumo. Esta qualidade abstrata torna
O mundo das celebridades é um
da oferta; a transitoriedade das
o desejo dos consumidores alienado
mundo que repousa na opinião. A re-
imagens dos produtos na televisão;
na medida em que estes são conduzi-
núncia ao segredo é o preço a pagar
a aura de periodização que paira
dos a substituir permanentemente a
para aceder ao estatuto de celebri-
sobre os produtos e os estilos de
procura de certos objetos por outros
dade neste mundo da notoriedade.
vida na iconografia dos meios de
novos, num autêntico fetichismo da
Para ser conhecido é preciso aceitar
comunicação de massas.
mercadoria.
revelar tudo sem nada esconder ao seu
público. Existe uma verdadeira aler-
das celebridades desportivas é hoje
Hacking, I. (1986). Making up people. In T.
gia ao segredo por parte dos públicos.
tão sujeito a processos de erosão, es-
C. Heller, M. Sosna e D. E. Wellberg
Daí que as celebridades desportivas
quecimento e queda abrupta. Os cinco
(eds.). Reconstructing Individualism.
estejam permanentemente confronta-
minutos de fama de Wharol continuam
Stanford: Stanford University Press,
das com os exercícios confessionais,
a ser a alegoria do valor efémero de
pp. 222-236.
habitualmente realizados através dos
toda a celebridade.
Rojek, C. (2001). Celebrity. London: Reak-
media. As vedetas aceitam assim re-
tion Books.
nunciar à sua vida privada.
No mundo baseado na opinião a
Rowe, D. (1995). Popular Cultures: Rock
Bibliografia
Music, Sport and the Politics of
relação de grandeza é uma relação de
Pleasure. London: Sage.
identificação. O sujeito célebre produz
Abercombrie, N., Longhurst, B. (1998).
o público e constitui-o enquanto tal,
Audiences: A Sociological Theory
do mesmo modo que é feito por ele.
of Performance and Imagination.
Estabelece-se assim uma relação de
London: Sage.
adesão entre o público e a celebri-
Anders, G. (2001). L’Obsolescence de
dade que se expressa em termos de
L´Homme. Paris: L’Encyclopédie
influência. As marcas permitem cristalizar numa imagem este movimento de opinião. A instrumentação dos
des Nuisances.
Andrieu, B. (2004). A Nova Filosofia do
Corpo. Lisboa: Instituto Piaget.
media assegura a objetivação através
Appadurai, A. (2004). Dimensões culturais
dos rumores, dos ruídos e do julga-
da globalização. Lisboa: Teorema.
mento de opinião. Ser grande neste
Bauman, Z. (2003). Trabajo, consumismo
mundo significa ter uma certa quota
y nuevos pobres. Barcelona: Gedisa
de presença nos meios de comunica-
Editorial.
ção, um certo número de seguidores
Bromberger, C., Hayot, A., Mariottini, J.-
nas redes sociais, um certo volume de
M. (1995). Le Match de Football:
reações positivas da opinião pública.
Ethnologie d’une passion partisane
Ser pequeno é cair na banalidade ou
à Marseille, Naples et Turin. Paris:
ter uma imagem fluida ou indiferente.
Maison des Sciences de l’Homme.
Desaparecer dos media significa ser
Coakley, J.J. (1998). Sport in Society (6ª
esquecido. E é por isso que o mundo
ed.). Boston: McGraw –Hill.
63
Raymond Boyle
é membro do Center for Cultural Policy Research
da University of Gasgow (Escócia)
Reflexões Sobre
Comunicação e Desporto:
Sobre Jornalismo e Cultura Digital
([email protected])
Reflections on Communication and Sport:
On Journalism and Digital Culture
Resumo
investigações futuras necessárias para
and the entertainment industries. The fo-
Raymond Boyle reflete sobre a evolução ao
auxiliar a compreensão dos impactos cul-
cus section further considers the real and
longo dos últimos 20 anos no Reino Unido
turais das mudanças tecnológicas sobre o
projected effects of digital journalism and
da pesquisa em desporto, no quadro dos
papel do jornalismo desportivo.
the potential of citizen journalists to trans-
© Lugares da Personagem, António Barros, 2014-2015, #5 - Sevilha_Metropol Parasol - J. Mayer H.
estudos dos média e da comunicação. Na
form sport journalism. The essay closes
primeira parte do artigo, a importância
Palavras-Chave: Jornalismo desportivo,
with consideration of future research that
cultural da comunicação e do desporto
televisão, desporto, digital, jornais
will be needed to help us understand the
é sublinhada. Na segunda, são passadas
cultural impacts of technological change
em revista as influências na agenda de
on the role of sport journalism.
pesquisa do autor, em especial na área
Abstract
do jornalismo desportivo, e as mudanças
In this essay, Raymond Boyle reflects on
Keywords: Sports journalism; television;
estruturais arrastadas pelos média digi-
how the study of sport within media and
sports; digital; newspapers
tais. Nesta secção, Boyle evoca os inves-
communication studies has evolved in the
tigadores e os trabalhos mais influentes
United Kingdom over the last 20 years.
na área da comunicação e desporto. A
The first part of essay comments on the
terceira parte, dedicada ao jornalismo
cultural importance of communication and
e à cultura digital, contém uma análise
sport. The second section traces the in-
da evolução do jornalismo desportivo e
fluences on the author’s research agenda,
das mudanças ocorridas no papel dos
particularly in the area of sportjournalism
jornalistas desportivos. O autor analisa
and the structural changes brought toitby
concretamente a mercantilização, a co-
digital media. Here, Boyle comments on
mercialização e a internacionalização do
the most influential scholars and works
jornalismo desportivo, bem como os efeitos
on communication and sport. The focus
da emergência das relações públicas e da
section of the essay considers the evolution
sinergia entre a indústria do desporto e
of sport journalism and the changing role
as indústrias de entretenimento em geral.
of sports journalists. In this section, the
Nesta secção, o autor considera ainda os
author considers the nexus of marketiza-
efeitos reais e previstos do jornalismo di-
tion, commercialization, and the interna-
gital e o potencial dos jornalistas-cidadãos
tionalization of sport journalism and com-
para transformar o jornalismo desportivo.
ments on the riseof public relations and
O artigo termina com a consideração de
the synergies between the sports industry
Tradução de Rita Basílio de Simões, FLUC ([email protected])
*
Artigo originalmente publicado na revista Sage
Communication & Sport, 2013 (1/2):88-89.
65
Qual a importância
ser uma forma cultural incerta para se
evolução, as suas implicações e o seu
do desporto
expressar abertamente qualquer senso
impacto sobre nós diz-nos muito sobre
e da comunicação?
de identidade nacional, uma vez que
a nossa sociedade, as suas priorida-
a natureza competitiva dos desportos
des, desejos e aspirações. A media­
O desporto é importante mais em
de equipa de elite significa que o fra-
ção do desporto e os discursos que o
razão do que nos diz sobre a socie-
casso é muitas vezes mais propenso a
conectam com os domínios da política,
dade do que especificamente sobre a
aparecer no caminho de sucesso. Na
da economia e da cultura de modo mais
natureza da competição desportiva.
Escócia, por exemplo, o desejo pelo
geral oferecem ricos e esclarecedores
No seu nível mais básico, o desporto
sucesso do futebol a nível internaci-
caminhos de compreensão da relação
oferece uma visão sobre o caráter, a
onal, apesar do desporto estar a ser
entre os media e a sociedade e as es-
natureza humana (o melhor e o pior
tecido na trama da vida cultural do
truturas de poder que moldam e in-
de) e a criatividade humana. Reve-
país, diz-se: “É a esperança que nos
fluenciam a nossa existência diária.
la aspetos da identidade individual
mata”. Cada novo torneio de futebol
Estar interessado, então, na relação
e coletiva e a sua rica diversidade
oferece a possibilidade tentadora de
entre comunicação e desporto é estar
de formas (quando é que um jogo se
redenção e sucesso para a Escócia,
fascinado e intrigado com a socieda-
torna um desporto?) permite-nos pro-
já que cada evento ou torneio garan-
de que produz e sustenta tal relação.
jetar os nossos próprios sentimentos
te que breves momentos de sucesso
Compreender qualquer sociedade
e emoções através de uma atividade
e, no sentido inverso, de persistente
parece-me um importante ponto de
cultural, quer no evento “ao vivo” quer
ausência dele estejam cada vez mais
partida para qualquer estudioso da
por meio do discurso mediatizado. É a
incorporados na psique nacional.
comunicação.
capacidade do desporto para se conec-
Claro que o desporto importa, por-
tar, com frequência, com o emocional
que, no século XXI, oferece uma infi-
e não com o elemento de racionalidade
nidade de conteúdos mediáticos que
A minha própria jornada
dentro de nós que o torna tão atraente.
podem orientar modelos de negócios
pela comunicação
O desporto pode desempenhar a tarefa
e atrair patrocinadores, anunciantes e
e o desporto
de pegar no mundano e de elevá-lo
assinantes para uma variedade de pla-
a algo mais do que a soma das suas
taformas digitais. O desporto de elite e
Há mais de 20 anos que estudo
partes. A capacidade de comunicar
profissional tornou-se também profun-
e ensino a relação entre o desporto e
isso individualmente e coletivamente
damente entrelaçado com os contornos
os meios de comunicação. Com uma
é uma parte essencial do apelo dura-
do capital nacional e transnacional.
formação de base em Media e Histó-
douro desta forma cultural. Continua a
Entender este processo complexo em
ria e um mestrado em Comunicação,
comecei a desenvolver cursos universi-
mais ampla entre cultura, economia
Power and Culture: A Social and His­
tários em Media e Desporto no final da
e política. Eles dão sentido ao meu
torical Analysis of Popular Sports in
década de 1980 e início da década de
próprio desenvolvimento como inves-
Britain, de John Hargreaves (1986),
1990. Naquela época, a luta travada
tigador e oferecem, além disso, uma
estes trabalhos começaram a fornecer
era para que o desporto fosse levado
imagem de como o campo da pesquisa
um contexto importante no qual a rela-
a sério dentro dos estudos dos media
em comunicação e desporto começou
ção entre media e desporto poderia ser
e da comunicação, campo que estava
a evoluir nos anos de 1980 e 1990, no
analisada e investigada. Devido ao seu
ele próprio ainda a tentar alcançar
Reino Unido. Garry Whannel’s (1983)
foco histórico, o trabalho de Hargrea-
credibilidade dentro da academia,
Blowing the Whistle: The Politics of
ves lembra-nos de como a trajetória
no Reino Unido. Em resultado, havia
Sport (atualizado e reeditado em 2008)
da cultura desportiva sempre esteve
significativamente menos material de
foi um dos primeiros livros a colocar
ligada à política e à cultura do seu
pesquisa do que hoje. Um nome domi-
o desporto numa posição cultural e
tempo. Ao vincular o poder político
nava a breve lista de leituras do meu
política mais ampla de forma acessível
com a cultura popular e ao olhar para
primeiro curso em Media Desportivos
e emocionante. Em particular, pela
o desporto como uma área contestada
e era o de Garry Whannel. No Rei-
forma de escrever que, sem deixar
de luta ideológica, estes três livros
no Unido, Garry era o fundador da
de ser academicamente informada,
ofereceram um amplo quadro de refe-
investigação contemporânea em me­
se destinava a um público mais ge-
rência do qual derivou a maior parte
dia desportivos, área a que deu foco
ral. Whannel também foi importante
do trabalho académico desenvolvido
e credibilidade. O autor ofereceu a
pela abordagem política da posição
ao longo da década seguinte.
uma nova geração de investigadores
do desporto dentro das estruturas
Dois outros textos-chave captura-
uma área de estudo legítima, embora,
de poder da sociedade, por meio da
ram a necessidade de abordar a econo-
muitas vezes, ainda carente de expli-
articulação do conceito de hegemo-
mia política do desporto e dos media,
cações sobre os motivos pelos quais
nia. Esta abordagem gramsciana ao
ao mesmo tempo que eram sensíveis
importava. Nesta seção, quero desta-
desporto e aos media também ficou
ao papel dos meios de comunicação na
car apenas alguns dos livros que me
evidente na obra de John Clarke e
criação de determinadas representa-
inspiraram a levar a sério o estudo
Chas Critcher (1985) The Devil Makes
ções ideológicas em torno do desporto.
dos media e desporto e confirmar a
Work: Leisure in Capitalist Britain,
Coordenada por Geoffrey Lawrence e
minha convicção de que, através dessa
que mapeou com brilhante clareza a
David Rowe (1986), Power Play: The
análise, a cultura dos media despor-
razão de as questões de lazer serem
Commercialisation of Australian Sport
tivos pode oferecer contributos reais
tão importantes nas políticas públicas
foi uma coletânea de artigos que des-
para a compreensão da uma relação
e na política. Juntamente com Sport,
tacou a importância de compreender
67
a economia política do desporto e a
escritores e jornalistas desportivos
natureza da maneira como o desporto
eram muitas vezes importantes para
interage com os meios de comunicação
dar acesso a um ambiente profissio-
e as indústrias promocionais. O traba-
nal pouco discutido ou analisado na
lho ilustrava o crescente interesse da
academia e até mesmo no tradicional
academia australiana pelo desporto e
jornalismo desportivo do Reino Unido.
pelo seu impacto cultural mais amplo
Usado então com este fim, Pocket Mo­
que, nesse sentido, se revelava à frente
ney: Bad-Boys, Business-Heads, and
do Reino Unido no que diz respeito ao
Boom-Time Snooker, de Gordon Burn
desenvolvimento de um corpo crítico
(1986), continua a ser um dos meus li-
de trabalho nesta área. A partir dele
vros favoritos sobre o desporto. Escrito
tomei contacto com a obra de David
pelo jornalista e romancista Gordon
Rowe (Hutchins & Rowe, 2012), que
Burn demonstra o que pode fazer-se
continua a influenciar-me até hoje.
quando se tem acesso ao santuário
Fields in Vision: Television, Sport
interior do desporto e se é corajoso e
and Cultural Transformation, de Gar-
talentoso o suficiente para ser capaz
ry Whannel (1992), seria o livro que
de dar sentido a esse mundo ao leitor.
testemunharia a abordagem séria, por
Neste caso, o assunto era o mundo
parte da academia do Reino Unido,
emergente do snooker na televisão. O
ao estudo da comunicação desportiva
livro dedica-se a um desporto que,
mediática. O trabalho combinou uma
transformado pela televisão, se torna
abordagem económico-política com
internacional, enquanto os jogadores
uma preocupação com as questões
lutam para alcançar equilíbrio entre
da representação cultural e definiria
a fama e a fortuna que a exposição à
o ponto de referência para o que o
televisão traz. Levou-me a escrever a
estudo dos media e da comunicação
minha tese de licenciatura precisa-
orientado para a televisão e o desporto
mente sobre snooker e televisão e, ao
poderia alcançar.
longo do caminho, a entrevistar alguns
Dada a escassez de livros académi-
dos atores principais que moldaram a
cos sobre media e desporto na década
modalidade, incluindo o produtor de
de 1980 e início de 1990, livros de
televisão da BBC Nick Hunter (que foi
Os jornalistas
sempre foram
intermediários
culturais
importantes
entre desporto
e sociedade.
pioneiro na transmissão em direto de
questões levantadas sobre desporto,
Olímpicos de Inverno. Além do robus-
competições de snooker) e o gestor e
media e identidade nacional e sobre
to corpo de trabalho académico que
promotor Barry Hearn. Este continua
a crescente centralidade do desporto
nas últimas décadas floresceu em tor-
a ser um dos livros de desporto a que
como uma forma de conteúdo me-
no da comunicação e do desporto, esta
regresso em busca da sua clareza, sa-
diático num ambiente em acelerada
eclética seleção permite destacar –
gacidade e brilhantes considerações.
transformação, com a introdução dos
espero – como aspetos do cruzamento
Por várias razões, um complemento
sistemas de satélite e de cabo, na dé-
da prática jornalística com a cultura
deste trabalho é o livro de McCarra e
cada de 1980, por meio da Internet,
desportiva moldaram o meu próprio
Woods (1988) One Afternoon in Lis­
na década de 1990, e com o ambiente
pensamento no campo e alimentaram
bon, que também ilustra a importância
digital, nos anos 2000. Sob a atenção
de forma crescente o meu fascínio com
de reunir evidências empíricas tendo
de grande parte deste trabalho estive-
a compreensão do específico desafio
por base eventos desportivos particu-
ram várias formas de jornalismo e o
que é atribuir sentido ao jornalismo
lares e de definir o desporto no seu
jornalismo desportivo foi adquirindo
desportivo.
contexto cultural mais amplo. Baseado
um espaço crescentemente nuclear
em entrevistas com os jogadores de
na minha pesquisa. O estranhamen-
futebol do Celtic, que faziam parte
te chamado Laptop Dancing and the
Foco: Sobre Jornalismo
da primeira equipa britânica a vencer
Nanny Goat Mambo: A Sportswriter’s
e cultura digital
a Taça dos Campeões Europeus, em
Year (2003), do jornalista desportivo
1967, esta obra é um bom exemplo
Tom Humphries, do brilhante Irish
Os jornalistas sempre foram inter-
de como situar o desporto dentro do
Times, continua a ser para mim um
mediários culturais importantes entre
seu contexto de classe mais amplo. O
dos livros mais perspicazes, honestos
desporto e sociedade. Quando os pri-
estudo demonstra as vantagens meto-
e engraçados sobre jornalismo des-
meiros promotores do boxe do século
dológicas da utilização de entrevistas
portivo, a sua prática, as pressões e
XX organizaram eventos, os jorna-
como parte do processo de pesquisa
a relação entre a mudança dos media
listas eram uma parte fundamental
e destaca a centralidade da narrativa
impressos e a emergente nova geração
na promoção e venda desses eventos
na formação do discurso desportivo.
de estrelas do desporto da televisão.
numa era pré-televisão. Os jornalistas
No início da década de 1990, o
Qualquer estudante que pretenda ser
desportivos foram também os fabri-
meu próprio trabalho, desenvolvido
um jornalista desportivo fará bem em
cantes do mito do desporto à medida
com colegas tais como Neil Blain e
ler o seu relato sobre a cobertura de
que embelezavam as qualidades em
Hugh O’Donnell e, mais tarde, Ri-
eventos desportivos internacionais, in-
campo das estrelas desportivas e igno-
chard Haynes, desdobrava-se em
cluindo sobre a cobertura dos Jogos
ravam as atividades fora de campo que
69
pudessem manchar a sua perceção,
reformulados e transformados (Boyle
dor. Na era das notícias 24 sobre 24
pelo público em geral, como ícones
& Haynes, 2009; Jones & Salter, 2011;
horas, sete dias por semana, em que
desportivos, cuidadosamente construí-
Miller, 2011). A cultura digital faci-
a cobertura jornalística decorre em
da (Boyle, 2006).
litou a reformulação da relação entre
contínuo, o jornalista tem também
Avançando rapidamente para o
jornalistas e públicos e também abriu
de ser um blogueiro, um tweeter e
final do século XX, encontramos
um fluxo em tempo real transnacional
ainda de ser capaz de apresentar (ou
uma relação bem estabelecida entre
de informação que era inimaginável
atualizar) notícias numa variedade
o desporto e os media. Esta relação
na era analógica do jornalismo. Como
de plataformas (impressa, online,
variou ligeiramente de país para país e
Nick Couldry (2012: 2) argumenta:
móvel). Ao regressar a Sports Jour­
nalism (2006) fiquei impressionado
consoante os mercados mediáticos, no
entanto o desporto de elite foi de for-
“Os media digitais correspondem
com o modo como a cultura digital
ma crescente sendo subscrito do pon-
meramente à última fase do con­
está a mudar a prática organizacional
to de vista financeiro pela televisão,
tributo dos media para a moderni­
dos jornalistas desportivos. O editor
incluindo em matéria de direitos de
dade, mas a mais complexa de to­
desportivo do jornal londrino Times
transmissão. Enquanto durante gran-
das. Uma complexidade ilustrada
recorda o tempo em que um jornalista
de parte do século XX os jornalistas
pela influência da internet como
enviado de Londres para o Norte de
dos media impressos dominaram, em
uma rede de redes…. Os media
Inglaterra para cobrir uma partida de
muitos aspetos, o setor do desporto
tornaram-se suficientemente flexí­
futebol entre o Newcastle United e o
mediático, à medida que a indústria
veis e interconectados para fazer
Arsenal estaria sempre desconectado
se foi transformando e reestruturando,
do “ambiente mediático” o nosso
da redação até que o ouvissem dentro
com a chegada da tecnologia digital,
único ponto de partida, deixando
do estádio, pouco antes do jogo. Agora,
estes profissionais foram forçados a
de considerar-se de forma isolada
salientou o jornalista, os repórteres
lutar entre si num meio onde a ideia
cada medium.”
estão em contacto permanente com a
da exclusividade foi usurpada pela das
redação via telefone móvel ou e-mail.
notícias 24 sobre 24 horas, sete dias
A tecnologia também tende a ser
Espera-se que façam atualizações das
por semana (Meikle & Young, 2011).
disruptiva relativamente aos padrões
matérias para o site enquanto viajam
À medida que a mercantilização, a
e práticas existentes entre os traba-
para o jogo de comboio e também
comercialização e a internacionalização
lhadores e profissionais dos media
que estejam online, interagindo com
do nexo media-desporto avançou em
(Deuze, 2010). Para os jornalistas,
os leitores. Tudo isso antes de chega-
ritmo acelerado, desporto e jornalis-
a transição do analógico para o di-
rem a Newcastle para cobrir o jogo,
mo foram sendo, nesses processos,
gital trouxe tanto de prazer como de
de onde irão apresentar depois da
Uma das
características do
jornalismo digital
corresponde à
dissolução da
tradicional divisão
entre as categorias
notícia e desporto
partida as notícias e as entrevistas.
os jornais lutam para encontrar um
Para a maioria dos jornalistas des-
modelo de negócio viável numa época
portivos com quem falei, a tecnologia
de conteúdos online de acesso livre
digital foi libertadora (acabaram-se as
(Davies, 2008; Hobsbawn, 2010).
correrias frenéticas nas viagens fora,
A mudança de poder para as estrelas
tentando encontrar um telefone que
e atletas (com os seus agentes, pa-
funcione para que se possa enviar para
trocinadores e assessores de media)
as redações as matérias produzidas!).
é sinónimo de problemas de acesso,
Contudo, o impacto mais amplo da di-
de aprovação e cópia de imagens, fa-
gitalização, quando combinada com
zendo aumentar os desafios para os
outros fatores, acima mencionados,
jornalistas em busca de informações
que reformularam a cultura popular
dentro do mundo do desporto (Evans,
na última parte do século XX, também
2012). Claro, muitos desses desafios
significou, para muitos jornalistas, um
não são novos. De facto, a questão
momento de pausa na reflexão.
da confiança (ou da falta dela) entre
A emergência das relações públi-
estrelas do desporto e jornalistas tem
cas (RP) e a sinergia entre a indústria
uma longa e infame história.
do desporto e a indústria de entre-
Tim Adam observa, na sua brilhan-
tenimento em geral têm sido instru-
te análise do tenista John McEnroe,
mentais para que práticas bem es-
cujas relações com jornalistas des-
tabelecidas em, digamos, Hollywood
portivos foram sempre geladas, que,
se tornarem cada vez mais a regra
mesmo no início da década de 1980,
na cultura desportiva dentro e fora
ele dispensou pouco tempo aos jorna-
do Reino Unido (Boyle, 2006, 2012).
listas que produziam notícias para a
De facto, há agora mais pessoal das
imprensa tabloide britânica:
relações públicas do que jornalistas
no Reino Unido (muitos RP são ex-
Quando o jovem Alastair Cam-
jornalistas) e a indústria do jorna-
pbell do Mirror (último arquiteto da
lismo – especificamente o setor da
máquina de relações públicas do New
imprensa – tem sido reestruturada
Labour e spin doctor do primeiro-mi-
através da sua redução, à medida que
nistro) foi confrontado com a questão
71
de saber se aceitava que milhões de
e internacional convincente torna-o
hierarquia jornalística (estando os de
jovens o copiassem, McEnroe suposta-
numa forma cultural potente. É tam-
política e os correspondentes estran-
mente “rosnou” e disse incisivamente:’
bém uma forma cultural que tem de
geiros perto do topo) estaria cada vez
se adaptar e lidar com o impacto que
mais ultrapassado. Pareceu-me que os
“ deve dar uma olhadela no Mir­
o dinheiro da televisão gera nas suas
processos que foram transformando o
ror e ver quem está a estragar as
estruturas de concorrência e gover-
desporto e as organizações dos media
crianças”, antes de acrescentar,
nança. Este processo tem levado a uma
(entre eles, a digitalização) fizeram com
um pouco prescientemente, “O po­
crescente perceção do papel desem-
que muitas das práticas e experiências
der que você tem é triste”. Quando
penhado pelas RP no binómio despor-
dos jornalistas desportivos fossem cada
Campbell perguntou se ele tinha
to-comunicação (Hopwood, Kitchin &
vez mais genéricas para o jornalismo e
algum arrependimento em relação
Skinner, 2010). Enquanto escrevo, o
para os jornalistas em geral. Claro, as
ao seu comportamento, McEnroe
Channel 4 (um canal minoritário do
diferenças permanecem, com muitos
respondeu (profeticamente, para
Serviço Público de Televisão do Rei-
jornalistas desportivos a despenderem
uma geração de correspondentes
no Unido) publicou o seu maior share
mais tempo na estrada e fora das re-
parlamentares): “O meu único ar­
de sempre de fim-de-semana graças
dações do que os seus colegas, mas à
rependimento é ter tido de lidar
às audiências da cobertura dos Jo-
medida que aumenta o ritmo do fluxo
com pessoas como você” (Adams,
gos Paraolímpicos de Londres 2012
de informações, a ascensão dos RP, a
2004, pp 36-37)
(tradicionalmente, visto não como um
natureza “sempre ligada” dos media so-
evento desportivo de topo da televisão).
ciais e digitais, bem como a reestrutu-
Uma das características do jor-
À medida que a cultura desportiva se
ração organizacional das indústrias dos
nalismo digital corresponde à disso-
foi tornando cada vez mais central para
media foram tendo impacto em diferen-
lução da tradicional divisão entre as
as indústrias de entretenimento, que
tes esferas do jornalismo, erradicando
categorias notícia e desporto. O uso
moldam e orientam grande parte da
algumas das práticas jornalísticas mais
dos media sociais e a proteção online
cultura popular, também as celebrida-
arreigadas (Jones & Salter, 2011). Por
da reputação das marcas são agora
des e os seus valores-notícia, enquanto
exemplo, um impacto dos meios digitais
amplamente reconhecidas pela indús-
conteúdos mediáticos apetecíveis, se
a pedido no Reino Unido consistiu num
tria das RP como dois dos principais
tornaram centrais ao desporto.
aumento da quantidade da cobertura
problemas com os quais se confron-
Um argumento nuclear de Sports
dos media e do espaço dedicado a con-
ta. Numa era de audiências digitais
Journalism (2006) foi o de que a opi-
fragmentadas, a capacidade de o
nião vigente de que os jornalistas des-
O desporto é agora também sobre
desporto oferecer conteúdo nacional
portivos ocupariam a parte inferior da
política, negócios e governança e não
teúdos relacionados com desporto.
apenas esforço desportivo e competição.
a forma como os media sociais e
tem, em muitos aspetos, sido uma das
Enquanto alguns eventos desportivos
digitais continuam a mudar o
áreas do jornalismo mais profunda-
sempre foram megaeventos mediáticos,
modo como o jornalismo é prati­
mente afetadas por esta mudança.
a cobertura desportiva na era digital
cado: o crescimento e o sucesso dos
A investigação de Hutchins e Rowe
tem expandido ainda mais este proces-
blogs ao vivo, a adoção do micro-
(2012) sobre desporto na rede ecoa
so. A cobertura dos Jogos Olímpicos de
blogging, a redução do ciclo de
(2012) o antigo argumento de Coul-
Londres de 2012 foi impulsionada pelo
notícias e o crescimento das con­
dry sobre a crescente importância de
centro de media do evento (LOCOG),
versas em tempo real entre as elites
compreender tanto o ambiente, como
a funcionar 24 sobre 24 horas (80.000
políticas e os media. Um número
qualquer instituição mediática singu-
metros quadrados), que auxiliou o tra-
crescente de jornalistas reconhece
lar ou plataforma.
balho de mais de 20.000 jornalistas,
que os media sociais não são ape­
O discurso do desporto é, com
radialistas e fotógrafos. Ao mesmo tem-
nas algo que respeita à equipa da
frequência, sobre emoções e opiniões
po, o Centro de Media de Londres, no
web, mas são relevantes para todos
profundamente arreigadas e pronta-
centro da cidade, servia mais 10.000
os membros da redação.”
mente expressas por atletas e fãs. Re-
jornalistas não credenciados, que tam-
fletindo sobre a sua experiência como
bém cobriram os Jogos Olímpicos de
Embora estas observações se re-
Correspondente Chefe de Futebol do
2012 (Wicks, 2012). Através da sua
portem aos jornalistas políticos, são
jornal The Guardian, aquando da co-
presença online, a BBC cobriu todos
igualmente aplicáveis para aqueles
bertura do sexto Campeonato Mundial
os eventos e o advento dos primeiros
que trabalham no setor do desporto.
da FIFA, em 2010, na África do Sul,
Jogos Olímpicos verdadeiramente digi-
À lista de conversas em tempo real
Kevin McCarra defendeu:
tais fez com que uma plataforma como
referidas acima, pode acrescentar-
o Twitter tenha sido vista como parte
se que os fãs se envolvem cada vez
“Acredito que é no futebol que a
do ambiente jornalístico e não como um
mais diretamente com os principais
relação entre escritor e leitor mais
apêndice opcional. Numa análise, rela-
jornalistas desportivos que twittam
tem mudado, especialmente porque
tiva ao jornalismo político, do uso dos
(Boyle, 2012).
esses papéis já não são fixos. O
media sociais na cobertura das eleições
Assim, a tecnologia digital tem
acesso à internet, estou contente de
gerais de 2010 no Reino, Nic Newman
perturbado a tradicional relação
o dizer, afastou totalmente a tola
(2010) argumenta que:
entre o jornalista, os media e o pú-
suposição de que os jornalistas têm
blico. Também a partir dela o fluxo
acesso a um conhecimento supe­
“Mesmo os jornalistas [de política]
de informação se tornou imediato e
rior. Inúmeros sites cobrem todos os
veteranos ficam surpreendidos com
transnacional. O jornalismo desportivo
aspetos do futebol em praticamente
73
todas as nações. Se algum jogador
rádio, depois a televisão e, por fim,
tweets de figuras-chave do desporto,
num Campeonato do Mundo é uma
a Internet, mudou a relação entre o
o jornalista desportivo tem de ofere-
incógnita, será puramente porque
desporto e aqueles encarregados de
cer algo mais do que o suposto lugar
as pesquisas não foram realizadas
o relatar profissionalmente, atribuin-
de camarote. Assim, por exemplo,
com suficiente profundidade. (...)
do-lhe sentidos, para um público. A
Charlie Lambert (2012) defende que
Websites, quer sejam estatísticos,
partir de uma visão lata da cultura da
os jornalistas desportivos precisam de
solenes, esotéricos ou cómicos dis­
comunicação, os media sociais podem
“elevar o seu jogo” se quiserem manter
seminam quantidades limitadas
ser vistos como parte de uma tradição
a credibilidade jornalística, crucial
de informação sobre mesmo os
evoluindo dentro do jornalismo des-
para o sucesso da marca impressa e
mais obscuros futebolistas e agen­
portivo, que oferece aspetos de mu-
online do seu jornal. Como os fãs têm
tes. A imprensa engana-se se supõe
dança, mas também de continuidade.
cada vez mais acesso a sites genéricos
por um instante que pode cons­
Para esse fim, as redes de media
agregadores de notícias de desporto, o
tituir-se como um sacerdócio que
sociais, tais como o Facebook e o Twit-
jornalista necessita de adicionar visão
possui um conhecimento sagrado
ter, oferecem simplesmente os mais
e valor real de modo que o seu twitter
(McCarra, 2010).
recentes desafios e oportunidades
revele a importância de ser seguido.
para o jornalismo desportivo como
Numa discussão recente, Richard Wil-
Os jornalistas desportivos sempre
uma profissão. Existem lutas pela
son, o premiado jornalista desportivo
negociaram o mito do acesso à história
continuidade no jornalismo despor-
do jornal nacional escocês The Herald
a partir do centro da cultura desporti-
tivo pela sobrevivência de convenções
identificou dois fatores fundamentais
va e a sua capacidade de a trazer para
e códigos de trabalho estabelecidos,
relativos ao modo como os media so-
o seu público. Os repórter desporti-
pela autoridade e exclusividade, assim
ciais têm alterado e melhorado o seu
vo dos Estados Unidos da América
como pontos de partida inovadores à
trabalho como jornalista:
Leonard Koppett (2003) documentou
medida que os jornalistas desportivos
soberbamente este processo num livro
dominam as novas tecnologias e inte-
“Duas razões pelas quais eu real­
de memórias concluído pouco antes
gram novas formas de comunicação
mente uso os media sociais. Quan­
da sua morte, livro em que também
na produção de conteúdo de notícias
do eu era freelancer, usei o Twitter
analisou a cultura em mudança dos
de desporto.
para projetar o meu perfil e mos­
media e a forma como molda o jor-
Tendo a audiência acesso cres-
trar o meu trabalho. Ainda o faço,
nalista desportivo moderno. Nesse
cente a conferências de imprensa na
mas também o uso agora para in­
trabalho observou como cada nova
televisão e a sites oficiais, poden-
teragir com os leitores. Tem que
tecnologia mediática, inicialmente a
do também acompanhar os últimos
se peneirar às vezes as respostas,
A confiança numa
fonte que ofereça
visão, perceção e
análise verdadeiras
são características
que permanecem
importantes,
mesmo quando
se trata de
simplesmente
relatar eventos
mas obtém-se uma perspetiva di­
Olimpíadas de Verão, Patrick Collins,
ferente e um feedback interessante.
o chefe desportivo veterano do jornal
Eu diria os leitores, assim como a
Mail on Sunday, no Reino Unido ob-
interação, pois funciona nos dois
servou:
sentidos. Além disso, muitas vezes
é uma boa fonte de notícias, infor­
“Como jogo dos media funciona.
mações e análises (Entrevista com
Acho que chegou a um ponto onde
o autor, 13 de dezembro, 2011).”
a notícia é tão rápida que, para
chegar lá primeiro, a competição
Como defendem Hudson e Temple
é, em certo sentido, sem sentido.
(2010), também acredito, no entanto,
O elemento de velocidade é per­
que é demasiado simplista argumen-
dido quando tudo é tão rápido.
tar que, agora, somos todos jornalistas.
Destes Jogos Olímpicos saíram his­
A confiança numa fonte que ofereça
tórias de bastidores; parecia que
visão, perceção e análise verdadeiras
sobre cada medalhista havia um
são características que permanecem
conto fascinante para contar. Foi
importantes, mesmo quando se trata de
estranhamente comovente. Havia
simplesmente relatar eventos. Dito isto,
um monte de pessoas interessantes
o diálogo entre jogadores, fãs e meios de
(Wilson, 2012)”.
comunicação está a mudar e a tornar-se
mais complexo e assim que o génio dos
Esta citação reflete uma série de
media sociais “saltar fora da garrafa”,
temas que continuarão a influenciar
será para sempre (Boyle, 2012).
a relação entre comunicação, deporto e jornalismo. A tecnologia e a sua
capacidade de melhorar e perturbar
Olhando para o Futuro
a prática jornalística continuará a
da Investigação em
evoluir com ritmo. Na era digital, do
Comunicação e Desporto
suporte e do conteúdo (Boyle, 2010),
as noções tradicionais do jornalista
Enquanto refletia sobre a experiên-
desportivo de imprensa continuarão a
cia de cobrir a sua décima edição das
mudar. Uma pesquisa recente (Enders
75
Analysis, 2012) indica que 125 mi-
ocupando os conteúdos desportivos,
dizer-nos as verdades sobre os valores
lhões de novos telemóveis inteligentes
e na Europa o futebol em especial,
que temos como sociedade. Este é o
foram vendidos nos primeiros 3 meses
um lugar nuclear. Isto permite real-
lugar de onde venho e o que faz do es-
de 2012, um crescimento de 30% ao
çar que o desporto é demasiado im-
tudo dos media e desporto tão continua
ano (2012) O relatório do Consumer-
portante para ser deixado no domínio
e surpreendentemente enriquecedor
Lab das tendências internacionais de
exclusivo dos jornalistas desportivos.
para qualquer investigador na área da
televisão indica que 67% dos telespec-
Como a cultura do desporto se cruza
comunicação, mesmo depois de todos
tadores estão a utilizar smartphones,
com a lei, a economia, a política, as
estes anos.
tablets e laptops para ver televisão,
relações internacionais, questões de
enquanto 62% estão a usar os media
governança, de direitos e de cida-
sociais enquanto veem televisão. Quais
dania, todos formarão parte do que
são as implicações económicas deste
pode ser visto como uma agenda de
processo para o jornalismo profissional
comunicação e desporto ampliada.
impresso e financiado e para o jornalis-
Esta agenda não tem sido sempre re-
mo online? Novos modelos de negócios
fletida ou abordada dentro do jorna-
BOYLE, R. (2010). “Sport and the media
são necessários. Contudo, o conteúdo
lismo desportivo dominante. A era da
in the UK: The long revolution?”.
desportivo permanece um dos aspetos
comunicação de muitos-para-muitos
In: Sport in Society, 13, 1300–1313.
mais interessantes do jornalismo, em
vai mudar este este estado de coi-
BOYLE, R. (2012). “Social media
parte devido às narrativas humanas
sas, mas o paradoxo é que isso exige
sport? Journalism, public rela-
do desporto que os media impressos
um jornalismo profissional, rigoro-
tions and sport”. In: Krovel, R.
e online tanto fazem para melhorar e
so, descomprometido, devidamente
& Roksvold, T. (Eds.) We love to
sustentar através do fornecimento de
financiado num momento em que a
hate each other: Mediated football
histórias de bastidores, como Collins
turbulência económica caracteriza
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77
Thomas Horky
Professor de Jornalismo Desportivo na Macromedia
University of Applied Sciences for Media and Communication ([email protected] )
O agenda setting dos
media sociais no desporto
Barbara Stelzner
Professora de Jornalismo Desportivo na Macromedia
University of Applied Sciences for Media and Communication ([email protected] )
A tematização dos heróis desportivos alemães durante os Jogos Olímpicos de 2012
© Lugares da Personagem, António Barros, 2014-2015, #6 - Coimbra_agenda setting
Social Media Agenda Setting in Sport
The thematisation of German sporting heroes during the Olympic Games 2012
Resumo
Abstract
Os media desempenham um papel impor-
Media play an important role in promoting
tante na promoção dos heróis do desporto.
sporting heroes. Social media offerings by
As ofertas dos media sociais através de
the likes of Facebook and Twitter trans-
likes do Facebook e do Twitter transfor-
form the well-known process of agenda
mam o conhecido processo de agenda se­
setting and mediatisation into a process
tting e mediatização num processo que
we call “social media agenda setting”.
designamos “agenda setting dos media
This contribution starts with a brief over-
sociais”.
view of social media offerings during the
Esta contribuição inicia-se com uma breve
London Olympic Games 2012. This is
panorâmica das manifestações dos me­
followed by a closer look at a theoretical
dia sociais durante os Jogos Olímpicos de
model and an evaluation of the potential
2012. Ao que se seguirá um olhar mais
impact and consequences of this process.
próximo ao modelo teórico e uma avalia-
The analysis of different forms of themati-
ção do impacto e consequências potenciais
sation and mediatisation of sporting heroes
deste processo. A análise de diferentes
will be shown with the help of case studies
formas de tematização e de mediatização
of German athletes during the Olympic
de heróis desportivos será demonstrada
Games in London 2012. Measured by the
com recurso a estudos de caso de atletas
influencing factors of “social media agen-
alemães durante os Jogos Olímpicos de
da setting”, Marcel Nguyen and Christoph
Londres de 2012. Tendo como referência
Fildebrandt can be characterized as the
os fatores de influência do agenda setting
most popular German athletes during the
dos media sociais, Marcel Nguyen e Chris-
Olympic Games.
toph Fildebrandt podem ser caracterizados
como os atletas mais populares durante
os Jogos Olímpicos.
Palavras-Chave: Media sociais, Jogos
Key-words: Social media, Olympic
Olímpicos, agenda-setting, tematização,
Games, agenda setting, thematisation,
Alemanha, heróis.
Germany, heroes.
Tradução de Inês Fernandes Godinho, CEIS20 - UC ([email protected])
e de Rita Basílio de Simões, FLUC ([email protected]).
79
Introdução
conhecidas por causa da cobertura nos
o fenómeno relativamente recente de
jornais ou na TV. Um herói de futebol
“agenda setting dos media sociais”.
O desporto é um dos tópicos mais
moderno como o Cristiano Ronaldo é
importantes tratados pelos media tra-
frequentemente visto na TV, mas, além
dicionais em todo o mundo: a cobertu-
disso, tem mais de 75 milhões de fãs
Media e Desporto:
ra jornalística do futebol ou de outros
no Facebook e de 25 milhões de se-
Perspetivas
desportos mediáticos obtém elevados
guidores no Twitter. O mesmo impacto
e Diferenciação
índices de audiência e grandes tira-
destas novas formas de media sociais
gens em quase todos os países euro-
é visto em relação a quase todas as es-
O desporto e os media são dois
peus. Os media tradicionais tendem
trelas do futebol. Na Alemanha, Franz
sistemas sociais com papéis e níveis
a focalizar heróis de desportos “ami-
Beckenbauer e Uwe Seeler eram acima
de diferenciação distintos. Para com-
gos” dos media, tais como o futebol, a
de tudo conhecidos através dos media
preender a dinâmica deste processo,
fórmula 1 e o ténis (Whannel, 2002;
tradicionais. As novas estrelas alemãs,
iremos enunciar as principais carac-
Bette, 2007). Todavia, a situação tem
como Mario Götze (FC Bayern Muni-
terísticas de forma sumária.
vindo a alterar-se significativamente
ch), com quase 4,5 milhões de likes
O sistema do desporto é dominado
desde o nascimento dos media so-
no Facebook, ou o jogador do Arsenal
por uma clara estrutura hierárquica
ciais. A promoção e o marketing de
Mezut Özil, com mais de 450,000 likes
com aspetos financeiros, políticos e
heróis do desporto foram fortemente
no Facebook, são muito populares nos
organizacionais (competição, orienta-
influenciados pela interação entre os
media sociais. O que acresce à sua
ção para o desempenho, promoção).
media tradicionais e os media sociais
visibilidade em plataformas tradicio-
A comunicação é um dos processos
e também trouxeram consigo a me-
nais dos media.
mais importantes no desporto. Pode
diatização de desportos e de atletas
Esta nova espécie de consciência
compreender-se cada ação desportiva
menos populares. Os media sociais ti-
das estrelas desportivas nos media
como uma forma de uma comunica-
veram um enorme impacto no desporto
sociais leva a novas formas de te-
ção de desempenho desportivo frente
e no jornalismo desportivo. Isto levou
matização dos heróis do desporto na
a um público. Esta comunicação tem
a diferentes tipos de reportagem e,
nossa sociedade. Este trabalho visa
de ser vista de diferentes perspetivas:
consequentemente, a diferentes formas
ilustrar isso mesmo. Dará um olhar
atletas (desportistas como indivíduos e
de cobrir o desporto e as suas estrelas.
mais atento à tematização dos heróis
como jogadores); organizações (clubes
Para dar um exemplo: as antigas es-
do desporto alemães durante os Jo-
e associações como o enquadramento
trelas de futebol portuguesas Eusébio
gos Olímpicos de Londres de 2012,
de organizações e comunicação); me­
e Luís Figo eram provavelmente mais
usando estudos de caso para explicar
dia (o desporto como um importante
Quadro 1:
Processo e desenho da definição de agenda
(gráfico próprio, baseado em Bonfadelli,
2004, p: 239)
tópico de comunicação, assim como o
de feedback e pela oportunidade de
tem um impacto progressivo no proces-
financiamento do sistema desportivo).
participação do utilizador. Contras-
so comunicacional através dos media
Prosseguindo a partir daqui, cada uma
tando com o conteúdo dos media tra-
tradicionais. Para compreender estas
destas perspetivas tem de ser vista em
dicionais produzidos por jornalistas,
mudanças, será útil olhar mais de perto
dois níveis diferentes:
agora obtemos conteúdo gerado pelo
para a teoria do agenda setting, que
Desempenho/Consciência, que é
utilizador, tendo de constatar a mu-
explica o processo temporal da tema-
bastante diferente consoante estamos
dança nas formas de comunicação de
tização dos media (McCombs, 2004;
a falar de desporto mediático ou de
“um-para-muitos” para “muitos-para-
para o desporto veja-se Fortunato,
desporto minoritário, de desporto in-
muitos”. Para sintetizar as principais
2008). Os mass media não influenciam
dividual ou de desporto de equipa – e
mudanças: existiu uma democratiza-
verdadeiramente o que pensamos, mas
Relevância, com a sua diferenciação
ção dos recursos de produção (apare-
determinam aquilo sobre que vamos
na importância nacional ou interna-
lhos móveis, câmaras digitais, blogs,
refletir. Os mass media definem os as-
cional da ação desportiva.
etc.) e uma democratização dos recur-
suntos na nossa agenda: a tematização
O sistema dos media é, acima de
sos de publicação (não é necessário
e a ordem dos tópicos.
tudo, definido pela seleção, avaliação
um meio de suporte). Os principais
O conhecido processo de agenda setting é
e publicação de assuntos pelo jornalis-
canais de media sociais são o Face-
progressivamente transformado por novos
mo desportivo, de acordo com aspetos
book, o serviço de micro blogging de
canais de comunicação, como os media
financeiros, políticos e organizacio-
140 caracteres Twitter, o Google +,
sociais. O impacto das notícias online,
nais. Existem perspetivas bastante
o Youtube, Blogs com possibilidades
das redes sociais e dos comentários pú-
diferentes quando se pensa nos Ca­
para comentário, algumas formas
blicos leva a um processo designado de
nais de Media tradicionais (impressos,
de Web-TV (Live-Streaming/Social
intermedia agenda setting. Os primeiros
TV, rádio, online), as diferentes áreas
Screening) e o número crescente de
estudos de caso mostram a maior parte do
de Público (opinião pública, interesse
ofertas de partilha de fotos e vídeo
impacto de novas categorias como a au-
nos tópicos) e o Valor das Notícias
(Instagram, Pinterest).
tenticidade, a frequência de comunicação
(relevância).
e a interação com os utilizadores (Sayre
Há alguns anos, assistimos a uma
et al., 2010; Groshek & Groshek, 2013;
transformação dramática do público
A Teoria do
Grzywińska & Borden, 2012). Em relação
através de novos canais de distribui-
Agenda Setting
à comunicação desportiva na Alemanha,
ção de informação designados media
o processo de intermedia agenda setting
sociais. As redes sociais e os media-
O processo dinâmico de comunica-
-web.2.0 são definidos por um canal
ção pelos media sociais está a crescer e
foi ilustrado em relação ao Mundial de
Futebol de 2010 (Horky, 2013).
81
1
Figuras 1, 2 e 3:
Exemplos de comunicação de atletas em
media sociais – página de Facebook de
Cristiano Ronaldo e Moritz Fürste – página
Tumblr de Mo Farah
2
3
Perspetiva 1: Atletas
nos Media Sociais
Quase todas as estrelas do desporto modernas criaram um canal de
comunicação em plataformas de me­
dia sociais. O objetivo destes canais e
formas de comunicação diverge. Vão
desde mega estrelas como o Cristiano Ronaldo – o herói desportivo mais
popular no mundo dos media sociais
– a atletas olímpicos com muito sucesso, como o praticante de hóquei
em campo alemão, vencedor de duas
medalhas de ouro, Moritz Fürste, que
é muito ativo, mas não tem muitos fãs
(até 4.000 likes no Facebook). Alguns
Assistimos a uma
Atletas alemães nos Jogos
Olímpicos de Londres
transformação
Como caso de estudo, reanalisá-
dramática do
mos os dados de todas as contas de
atletas alemães no Facebook durante
público através
os Jogos Olímpicos de Londres de
2012, que foram inicialmente apre-
de novos canais
sentados em posts de blog por Knüwer
(2012a; 2012b). O período de análise
de distribuição
foi entre 23 de julho e 14 de agosto
de 2012 e os dados foram recolhidos
de informação
e apresentados por AllFacebookStats.
Com uma análise de conteúdo quanti-
designados
tativa, foi medido cada like, partilha
e post ou atualização das contas de
media sociais
todos os atletas alemães nos Jogos
atletas de desportos olímpicos popu-
Olímpicos.
lares tentam comunicar de um modo
Os resultados são bastante sur-
especial, por forma a aumentar a sua
preendentes: a equipa olímpica alemã
própria visibilidade pública. Um exem-
foi muito preguiçosa na sua utilização
plo é o atleta inglês Mo Farah, com
dos media sociais. Apenas 42% dos
uma página Tumblr extraordinária.
atletas oferecem uma página pessoal
A diferenciação é sobretudo basea-
e apenas 30.2% têm uma página de
da em categorias como a consciência
Facebook oficial (não contando com
do desporto (desporto mediático vs.
as páginas de Facebook privadas).
desporto amador), a autenticidade da
O Twitter parece desempenhar um pa-
comunicação (agência profissional vs.
pel menor. Apenas 18.2% dos atletas
comunicação pelo próprio atleta) e a
utilizam contas no serviço de micro
frequência da comunicação (número
blogging como ferramenta de comu-
de posts e respostas).
nicação ou de marketing. Existem
83
4
Figuras 4 e 5:
Página do Facebook de Marcel Nguyen
e atualização de Marcel Nguyen de 2 de
Agosto de 2012 (Fonte: Knüwer, 2012b)
5
Quadro 2:
Aumento dos likes do Facebook (em %)
dos atletas alemães nos Jogos Olímpicos
de Londres – Top 10
variações entre os diferentes tipos de
desporto. Alguns atletas de desportos minoritários na Alemanha, como
o hóquei de campo ou o Taekwondo,
são ativos nos media sociais, outros,
como a equipa de tiro com arco, não
têm nenhuma conta no Facebook ou
no Twitter (Knüwer, 2012a).
Tendo presente esta pequena
base, o ginasta Marcel Nguyen foi
o “vencedor dos media sociais” dos
Jogos Olímpicos de 2012. Nguyen,
que ganhou uma medalha de prata,
obteve o maior aumento de likes na
sua página de Facebook. A utilização aumentou mais de 250,000 % (!)
durante o período em análise. Depois
de ganhar a medalha de prata a 1
37,973 % de likes a mais; na terceira
Ainda mais surpreendente é a ca-
de Agosto, cada atualização ou post
posição ficou a atleta de pista (salto
tegoria da frequência de comunicação
por Nguyen foi partilhada por milha-
em vara) Silke Spiegelburg (com mais
nos media sociais que é relacionada
res de fãs. Além disso, ele obteve o
37,186 % de likes).
com a autenticidade dos posts. Em ge-
maior número de comentários e likes
ral, o nadador Christoph Fildebrandt
de qualquer atualização durante os
A atualização mais partilhada no
teve a mais alta “taxa de comentários”
Jogos. Esta atualização foi uma foto-
Facebook durante os Jogos Olímpicos
de todos os atletas alemães. Aumentou
grafia da sua medalha de prata, dis-
foi uma fotografia da medalha de ouro
em quase cerca de 80 %. Fildebrandt
ponibilizada a 2 de Agosto, a qual
do atleta de equitação (CCE) Michael
tinha apenas 488 likes no Facebook,
obteve 66,680 likes e 1,806 comen-
Jung, que foi partilhada 675 vezes.
mas os seus poucos fãs comentaram
tários. Na segunda posição ficou a
Marcel Nguyen ficou com o segundo
muito sobre os posts autênticos, exci-
equipa de vólei de praia, vencedora
lugar, com uma fotografia dele próprio
tantes e interessantes, com informação
de uma medalha de ouro, de Julius
a competir no ringue. Foi partilhada
de bastidores intrigante na sua página
Brink e Jonas Reckermann, com
610 vezes.
de Facebook. Como muitos dos atletas
85
Figura 6:
Página do Facebook de Christoph
Fildebrandt (Fonte: Knüwer, 2012b)
Quadro 3:
Crescimento da “taxa de comentários”
(em %) no Facebook dos atletas alemães
nos Jogos Olímpicos – Top 10
no Top 10 da “taxa de comentários”, o
O mesmo balanço de poucos fãs
de atletas de desportos menos popu-
nadador Christoph Fildebrandt não é
com uma elevada taxa de interação
lares, que comunicam por si próprios.
um atleta alemão muito popular. Um
pode ser encontrado nas posições se-
Como exemplo, a página de fãs oficial
facto muito interessante: nenhum dos
guintes: a mergulhadora Katja Die-
do jogador de ténis de mesa Dimitrij
atletas populares ficou nas posições
ckow e o atleta de canoagem Ronald
Ovtcharov encontra-se apenas em
cimeiras. Um facto deveras interessan-
Rauhe não tinham muitos fãs, mas eles
quinto (uma média de crescimento de
te: as posições 5 e 10 foram ocupadas
foram em média muito ativos com as
30%) em termos de interação, todas
por duas equipas de vólei de praia
atualizações nas respetivas páginas.
as posições cimeiras são ocupadas por
– mas não pela equipa que ganhou a
medalha de ouro…
atletas menos populares de desportos
Os dados apresentados mostram
minoritários. O ginasta Fabian Ham-
algumas grandes diferenças na fre-
büchen, um dos atletas olímpicos mais
A segunda categoria relacionada
quência de comunicação nos media
populares na Alemanha, é somente
com a frequência de comunicação nos
sociais, acima de tudo relacionadas
classificado no décimo lugar quando
media sociais é designada a “taxa de
com a consciência do desporto. As po-
se trata do crescimento dos likes no
interação”. Os dados mostram o nú-
sições mais altas foram conseguidas
Facebook (um aumento de 144%).
mero médio de posts e de respostas
por heróis desportivos de desportos
Há que reconhecer que os atletas
pelos fãs a uma determinada atuali-
menores ou minoritários na Alema-
populares têm um maior número de
zação na página de Facebook do atleta
nha: hóquei de campo, ginástica e
fãs, mas perdem em percentagem nas
(não uma atualização da página!). Esta
um nadador desconhecido. Os atle-
importantes categorias de frequência,
taxa ilustra o aumento da interação
tas populares a competir em despor-
autenticidade e, com isso, consciência.
com atualizações. O maior aumento
tos mediáticos, como atletas de pista,
Este processo, que promove os
em percentagem foi obtido pelo des-
estrelas de natação ou a equipa de
novos heróis desportivos dos media
conhecido jogador de hóquei de campo
vólei de praia, que ganhou a medalha
sociais, pode ser perigoso: abrir a co-
alemão Maximilian Müller. A sua taxa
de ouro, foram vencidos pelos novos
municação de alguém ao público pode
de interação cresceu em média cerca
heróis desportivos dos media sociais.
ter um impacto na opinião pública, e
de 50 % durante os Jogos. Com ape-
Ao que acresce existir uma diferença
pode ser influenciado por fenómenos
nas 16 likes no Facebook, o jogador,
significativa na autenticidade da co-
tais como perseguição e comentários
que ganhou a medalha de ouro com a
municação em páginas de Facebook de
negativos. Um exemplo é a popu-
equipa alemã, não tinha muitos fãs,
atletas populares organizadas maiori-
lar atleta de salto em altura alemã
mas os seus fãs falaram muito sobre
tariamente por agências profissionais,
Ariane Friedrich. No início de 2012,
cada atualização no seu Facebook.
em oposição às páginas de Facebook
Friedrich tornou pública a sua luta
87
Figura 7:
Página de Maximilian Müller (Fonte:
Knüwer, 2012b)
Quadro 4:
Aumento da interação (em %) no Facebook
dos atletas alemães nos Jogos Olímpicos de
Londres – Top 10
contra um perseguidor do Facebook,
que publicou muitos comentários negativos na sua página de Facebook.
Os media alemães foram inundados
com discussões sobre a segurança e
os comentários jocosos nos media sociais e Friedrich anulou a sua página
de Facebook, que remete agora para
a Wikipedia.
Na Alemanha,
existem muitas páginas de internet
de federações de desportos menos
quase todas
populares, como o rugby ou o ténis
de mesa, que tentam criar algumas
as federações
ofertas, mas não têm dinheiro suficiente. Como consequência, a pági-
tentam controlar
na de internet oficial da Federação
de Rugby alemã, representando um
o impacto dos
desporto olímpico no Rio de Janeiro em 2016, foi encerrada devido a
media sociais
Perspetiva 2: Organizações
e Federações nos Media
Sociais
Para compreender a relevância e
o impacto dos media sociais, temos
de lançar um olhar, ainda que de
relance, às organizações e federações desportivas. Tudo depende da
posição financeira da organização e,
consequentemente, da consciência do
seu desporto. Na Alemanha, podem
problemas financeiros.
Quase todas as federações ten-
através da emissão
tam controlar o impacto dos media
sociais através da emissão de dire-
de diretrizes e
trizes e regulamentos sobre como lidar com o Twitter e com o Facebook.
regulamentos
A Federação Internacional de Futebol
(FIFA) publicou as suas diretrizes
sobre como lidar
para o Twitter pouco tempo antes
do Mundial de Futebol de 2010 na
com o Twitter e
África do Sul. O Comité Internacional Olímpico (IOC) colocou as suas
com o Facebook.
diretrizes para blogging antes dos
observar-se grandes diferenças entre
Jogos Olímpicos de Londres de 2012.
páginas de internet de grandes clubes
Nos Estados Unidos, podem encon-
de futebol e de clubes de desportos
trar-se inúmeros regulamentos de or-
minoritários. O FC Bayern Munich
ganizações relativos à influência dos
tem uma página multimédia com
media sociais. Um exemplo bem co-
cobertura TV e rádio, ofertas para
nhecido é a Liga Nacional de Futebol
os fãs e uma integração de contas
(NFL), que permite posts unicamente
Facebook e Twitter. Por outro lado,
até 90 minutos antes de um jogo e
89
8
Figuras 8 e 9:
Exemplos da integração de media sociais
e de jornalismo de dados (data-driven
journalism) do New York Times e do
Guardian durante o Campeonato do Mundo
de Futebol de 2010
9
O processo de
escândalo nos
media é bem
conhecido, mas,
nos media sociais,
a dinâmica e a
velocidade deste
processo está a
crescer muito
rapidamente
proíbe o uso de telefones móveis ou
de). Este stream de media social cha-
outros aparelhos de comunicação até
ma-se “Wir für Deutschland” 1 (“Nós
ao final da conferência de imprensa.
pela Alemanha”).
A Liga Nacional de Hóquei (NHL)
De forma igualmente breve, que-
publicou um designado “período de
remos salientar que alguns atletas e
blackout” em dias de jogo.
federações usam as ofertas dos media
Mas muitas federações que não
sociais acima de tudo como ferramenta
se preocupam em regulamentar so-
de marketing: em 2010, o antigo fute-
bre media sociais previnem-se com
bolista brasileiro Ronaldo publicou no
as suas próprias campanhas de re-
Twitter em nome de uma companhia de
lações públicas: consequentemente,
telefones, na conta @ClaroRonaldo, com
as grandes federações desportivas de
mais de 240,000 seguidores, aquando
desportos mediáticos (i.e. IOC, DOSB,
do Campeonato do Mundo. Imediata-
FIFA, DFB) divulgam as suas próprias
mente antes da cerimónia de abertura
ofertas de vídeo ou de media sociais.
dos Jogos Olímpicos de Londres de
Isto foi visto pela primeira vez no Cam-
2012, um parceiro da DOSB criou um
peonato do Mundo de Futebol de 2010
canal especial via media social no Fa-
com extensas ofertas da FIFA e da
cebook e no Youtube para promover os
seleção de futebol alemã. Nos Jogos
seus produtos e a filosofia da empresa.
Olímpicos de 2012, a IOC apresentou
uma abordagem especial integrada às
contas de Twitter dos atletas com o
Perspetiva 3: Media –
Olympic Athletes Hub, que constituía
Novas Formas de Jornalismo
uma amálgama dos feeds de todos os
nos Media Sociais
atletas acreditados em Londres 2012.
Na Alemanha, a Federação dos Des-
A terceira perspetiva, relativa ao
portos Olímpicos alemã (DOSB) faz
impacto dos media sociais no processo
a mesma coisa com uma integração
de mediatização é o efeito nos media
dos feeds do Twitter, do Facebook e de
em si mesmos. A integração de media
ofertas RSS no German Olympic Hub
(www.deutsche-olympiamannschaft.
1 Em alemão no original. N do T.
91
Figura 10:
Tweet e página de Facebook contra Katrin
Müller-Hohenstein e tweet da emissora
alemã ZDF pedindo desculpas pelas
declarações, todas de 13 de junho de 2010
sociais dentro da cobertura e reporta-
Escândalos
No decurso da noite, a ZDF qua-
gem de media tradicionais e online foi
lificou a declaração, seguindo-se
vista pela primeira vez no Campeonato
O processo de escândalo nos me­
um pedido de desculpa pelo editor
do Mundo de Futebol de 2010: os jor-
dia é bem conhecido, mas, nos media
de desporto e pelo editor chefe da
nais online integravam feeds através do
sociais, a dinâmica e a velocidade
emissora.
Twitter, permitiam aos fãs comentar e
deste processo está a crescer muito
Como reação a esta tempestade
deixavam os seus jornalistas criarem
rapidamente. Um primeiro caso de
de insultos embaraçosa, muitas pá-
blogs com links interessantes, entre ou-
estudo relaciona-se com o Campeo-
ginas de internet de media tradicio-
tras coisas. Especialmente as páginas do
nato Mundial de Futebol de 2010
nais, como o maior canal online de
Guardian em Inglaterra e do New York
na África do Sul: começou em 13
notícias da Alemanha, Spiegel On­
Times nos Estados Unidos obtiveram
de junho de 2010 com a discussão
line, escreveram sobre a declaração
muita consciência da sua integração nos
ao intervalo entre a apresentadora
e os efeitos nos media sociais. Estes
media sociais e no jornalismo de dados.
Katrin Müller-Hohenstein e o perito
canais tornaram os acontecimentos
(antigo guarda-redes alemão) Oliver
em notícias tradicionais e, assim,
Kahn durante uma transmissão em
envolveram os protestos numa his-
O Processo de Agenda
direto na televisão alemã (ZDF) do
tória jornalística digna de ser notí-
Setting dos Media Sociais
jogo Alemanha-Austrália. Após o golo
cia. Incluíram algumas citações de
no Desporto
marcado pelo jogador alemão nascido
pessoas proeminentes, por exemplo,
na Polónia Miroslav Klose, a apresen-
de representantes de organizações de
Tendo como pano de fundo as três
tadora citou uma frase nazi infame
judeus na Alemanha.
perspetivas acima referidas do im-
e falou da “innerer Reichsparteitag”
Mais tarde, os media de referên-
pacto dos media sociais no desporto
de Klose (aludindo às convenções do
cia alemães tentaram desdramatizar
a partir dos atletas, das organizações
partido durante o Terceiro Reich).
o debate sobre a declaração nazi.
e dos próprios media, podemos ob-
Em minutos, os espectadores in-
Estes jornais cobriram o caso, a
servar a existência de processos di-
dignados publicaram as suas reações
tempestade dinâmica de insultos e
nâmicos desta influência crescente.
no Twitter utilizando hashtags como
a reação da emissora e discutiram
Iremos mostrar três destes proces-
“#fail ou #Reichsparteitag”. Pouco
o tópico de forma bastante calma.
sos dinâmicos (escândalos, rumores,
depois, foram colocadas páginas di-
Também forneceram alguma infor-
notícias) com a sua relevância para
ferentes, e por vezes muito polémicas,
mação sobre a influência dos media
o processo geral de agenda setting
de ódio no Facebook com comentários
sociais nos processos de comunica-
dos media.
contra Katrin Müller-Hohenstein.
ção públicos.
93
Figura 11:
Tweet do utilizador @breitnigge (4 de February
de 2013) e a cobertura de acompanhamento do
BILD (7 de fevereiro de 2013)
Todavia, tal não terminou o debate sobre os media sociais. Três pági-
tentativa dos media de referência de
pode ser encontrado com frequência
reagir calmamente.
no desporto. Outro exemplo famoso
nas de Facebook e dois utilizadores
foi um alegado comentário da por-
do Twitter (um com o pseudónimo
tadora de bandeira alemã Natascha
@reichsparteitag) controlaram o de-
Rumores
Keller, durante os Jogos Olímpicos
senvolvimento do assunto durante
de Londres de 2012: os jornalistas
muito tempo. O último tweet relacio-
O segundo exemplo de um proces-
gregos maldisseram a jogadora de
nado com a frase nazi foi encontrado
so dinâmico de agenda setting pelos
hóquei de campo e antiga medalha-
dois anos mais tarde, no Verão de
media sociais refere-se aos rumores.
da de ouro pouco antes da cerimó-
2012, a propósito do papel de Katrin
O rumor mais discutido do último ano
nia de abertura com alguns tweets
Müller-Hohenstein como apresenta-
foram as declarações sobre uma possí-
falsos, sugerindo que ela teria feito
dora durante o Campeonato Europeu
vel transferência do jogador de futebol
comentários racistas. Os rumores nos
de Futebol de 2012 na Suíça e na
alemão Robert Lewandowski (Borussia
media sociais (especialmente no Twi-
Áustria.
Dortmund) para o rival FC Bayern Mu-
tter) foram seguidos da cobertura em
Irrompeu um escândalo similar
nich. O rumor começou com um tweet
canais de media tradicionais e online
durante os Jogos Olímpicos de Londres
por um fã de futebol alemão (utilizador
na Alemanha e na Grécia. Em conse-
de 2012. A 31 de julho, o repórter ale-
@breitnigge) a 4 de fevereiro de 2013.
quência, Natascha Keller foi forçada
mão da ARD Carsten Sostmeier reagiu
Lewandowski é um dos jogadores mais
a encerrar a sua página do Facebook
à medalha de ouro da Alemanha em
populares na Alemanha, mas o seu
e a sua conta do Twitter.
CCE como se segue: “…desde 2008
tweet foi partilhado apenas duas vezes.
cavalga-se para trás…” (uma referên-
Contudo, deu início a alguma cobertura
cia à invasão alemã da Polónia, sobre a
nos media online e, subsequentemente,
qual Adolf Hitler comentou “Desde as
também nos media tradicionais. Uma
5.45 da manhã que estamos a ripostar
pista: a discussão nos media sociais
Tomando tudo isto em conside-
fogo e a partir de agora as bombas
sobre a transferência durou mais de
ração, o impacto dos media sociais
encontrar-se-ão com bombas”. Como a
um ano até que Robert Lewandowski
nos media desportivos tradicionais
Katrin Müller-Hohenstein, antes dele,
anunciou oficialmente a sua mudança
poderá ser descrito como um certo
a página de Facebook de Sostmeier
para o Bayern de Munique.
tipo de notícias dos media sociais:
Notícias de Media Sociais
os canais de media tradicionais uti-
foi inundada com comentários jocosos
e de assédio. Ao que se seguiu um
Este processo de rumores inicia-
lizam conteúdo dos media sociais,
pedido de desculpa de Sostmeier e a
do e difundido pelos media sociais
como fotografias, citações ou tweets
95
especiais, para acrescentar relevância, autenticidade e proximidade à
sua própria cobertura. Com isso, os
media sociais tornam-se num importante canal de distribuição e de
expansão de notícias através de links
para histórias, links para diferentes
fontes e via a agregação da informação. Os media sociais geram informação nova (fotografias, citações, visões
especiais) que, de outro modo, não
estariam disponíveis a jornalistas
desportivos operando sob os estritos
regulamentos das federações desportivas acima descritos.
Além dos exemplos dados, relativos a jornais tradicionais, existe
O processo de
agenda setting
dos media sociais
no jornalismo
deportivo leva a
novas formas de
personalização
que criam novos
heróis desportivos
Sumário, Avaliação
e Discussão
O papel e o crescente impacto dos
media sociais na mediatização do
desporto são óbvios. Neste trabalho
descrevemos, a partir de diferentes
perspetivas, um processo circular
e dinâmico de influência mútua
dos media tradicionais e sociais no
desporto. A maior parte das vezes,
este processo tem início com eventos cobertos pelos media tradicionais.
A isto seguem-se muitos tipos diferentes de reação nos media sociais
(como posts de Facebook ou de Twitter)
que empolam a história, a maioria dos
um impacto crescente do conteú-
quais atribuindo comentários e emo-
do dos media sociais na cobertura
ções ao evento ou dramatizando a sua
televisiva. Isto levou ao “tweet da
cobertura. No que toca a esta reação,
noite” por membros do público do
os media tradicionais transformam a
popular programa desportivo ale-
cobertura em notícias (tradicionais) e
mão Aktuelles Sportstudio, trans-
usam-na para verificar e autenticar a
mitido aos Sábados. Qualquer pes-
história. Além disso, existem frequen-
soa pode colocar ao convidado uma
temente comentários subsequentes
pergunta via Twitter e estes tweets
nos media sociais relacionados com
são mostrados durante a emissão.
as notícias nos media tradicionais. A
Muitos destes exemplos apareceram
democratização das ferramentas de
também nas tabelas dos media so-
produção e de publicação nos media
ciais na Alemanha, em 2013 (http://
sociais como o Facebook, o Twitter,
www.10000flies.de/).
etc., desencadeou novos fatores na
elevação e mediatização dos atletas e
media tradicionais desempenham
fatores frequência da comunicação, a
levou ao processo que designamos por
um papel diferente. O (novo) público
autenticidade, os ratings de comuni-
“agenda setting dos media sociais”.
dos media sociais cria uma bolsa de
cação, as possibilidades de multimé-
A natureza circular ou espiral
tópicos para os media tradicionais, o
dia e os links. Deve notar-se que a
deste tipo de comunicação sobre
novo papel dos media leva à autenti-
participação altamente emocional dos
desporto e os seus protagonistas é
cação das notícias dos media sociais
destinatários gera oportunidades, mas
mensurável. As novas variáveis são
pelas subsequentes histórias e inves-
também riscos. Isto leva a uma tenta-
a frequência, a autenticidade e a
tigação. Com estes novos processos
tiva dos organizadores e das associa-
consciência das comunicações. A
e novas formas de publicidade pelos
ções desportivas de regular a função
comunicação tem início nos media
media sociais, as histórias focalizam
democrática do público no desporto
tradicionais, leva a uma interação ex-
frequentemente escândalos, rumores e
através de diretivas e de medidas de
traordinariamente dinâmica entre as
novos tipos de notícias, que chamamos
controlo.
ofertas dos media tradicionais e dos
de notícias dos media sociais. Estas
media sociais e, na volta, determina
notícias apresentam informação como
como os media tradicionais continua-
fotografias, citações ou perspetivas pu-
Conclusão: Novo Balanço
rão a relatar a história, muitas vezes
blicadas pelos atletas, organizações
através dos Media Sociais
com mais ênfase do que antes. Este
ou federações, que são normalmente
processo circular pode ser encontrado
restringidas por rigorosos regulamen-
O processo de agenda setting dos
acima de tudo em grandes eventos
tos e que os media tradicionais não
media sociais no jornalismo desporti-
desportivos como Jogos Olímpicos ou
podem investigar. Relacionado com os
vo transforma a estrutura hierárquica
Campeonatos de Futebol.
Jogos Olímpicos de Londres de 2012,
dos media e do sistema desportivo e
As consequências do processo aci-
alguns exemplos, como ângulos de câ-
leva a novas formas de personaliza-
ma descrito são claras: em comparação
mara especiais ou tópicos tweetados
ção que criam novos heróis despor-
com as histórias dos media tradicio-
pelos atletas, podem ser encontrados
tivos. Esta transformação a todos os
nais e do seu respetivo desenvolvi-
no blog do Twitter, em https://2012.
níveis leva a uma democratização da
mento (envolvimento dos tópicos nos
twitter.com/.
comunicação com novas estruturas,
media noticiosos), durante o “agen­
Este processo de agenda setting
um novo balanço de poderes e uma
da setting dos media sociais” pode
dos media sociais manifesta-se em di-
forte dinamização da comunicação,
verificar-se um aumento da emoção
ferentes níveis estruturais e através de
relacionada, acima de tudo, com o
e da velocidade de cobertura. Neste
várias características: influenciando
elevado envolvimento afetivo no des-
processo de crescimento rápido, os
a sua forma de tematização estão os
porto. Como consequência, podemos
97
observar uma mediatização a todos os
GRZYWI Ń SKA, I., & BORDEN, J.
In: http://www.indiskretionehrensa-
níveis (atletas, federações, media, pú-
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blico), novas estruturas de organização
on traditional media agenda se-
pia/
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99
Ana Teresa Peixinho
Professora da Faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra ([email protected])
A cidade e as suas
personagens em fim de século:
Luís Augusto Costa Dias
Investigador do CEIS20 ([email protected])
quadro de emergência de uma cultura urbana de massas em Portugal
The city and its characters in the end of the 19th century:
Framing the emergence of the urban mass culture in Portugal
Resumo:
Abstract:
Este artigo corresponde a uma etapa de um
This article represents a step in a broader
projeto de investigação mais amplo que pre-
research project that aims to study the emer-
tende estudar a emergência da cultura de
gence of the Portuguese mass culture in the
massas em Portugal no contexto da moder-
context of modernity. We intend to describe
nidade. Descreve-se, de um ponto de vista
the context of the “printed civilization” from
da história cultural, o contexto da civilização
a standpoint of cultural history. This period,
do impresso, que quadra entre o quartel
that court between the final quarter of the
final do séc.
e o do princípio do séc.
nineteenth century and the early twentieth
que foi o cenário típico da emergência
century, was the typical scenario of the
de uma cultura de massas de matriz urbana
emergence of a mass culture of urban matrix
envolvendo toda uma transformação social.
that involved an entire social transformation.
A modernidade construiu, desde os seus
Modernity, since its foundation, built this
fundamentos, este espetáculo feito de novos
spectacle made of new social professionals,
tipos sociais e profissionais, novos lugares
new urban places of leisure and fun, new
urbanos de ócio e diversão, novas relações
social and discursive relations and types.
sociais e discursivas. Se, até ao dealbar da
If, during the industrial era and until the
globalização, Portugal prolongou uma rea-
dawn of globalization, Portugal extended an
lidade estrutural essencialmente agrária a
essentially agrarian structural reality that
que corresponderam representações persis-
corresponded persistently to rural represen-
tentemente rurais, constituindo fatores de
tations (constituting factors of resistance to
resistência à modernidade que marcaram
modernity that marked much of our twentieth
grande parte do nosso séc.
a verdade
century), the truth is that in the transition of
é que, na transição para o século seguinte,
the nineteenth century to the next, we can
podemos identificar um quadro cultural e
identify in the Portuguese society a cultural
* Abordagem experimental no âmbito de um
social de efeitos multiplicadores de desen-
and social framework of multiplier effects
projeto de investigação sobre “Modernidade
volvimento que teve os centros urbanos como
of development that had urban centers as a
e cultura de massas em Portugal (séculos XIX
polo de importantes transformações.
hub of important changes.
e XX)”, numa parceria do Centro de Estudos
© ALugares da Personagem, António Barros, 2014-2015, #7 - Guimarães_Coisas Reais - CAAA
XX ,
XIX
XX ,
Interdisciplinares do Século XX - Ceis20, da
Palavras-chave: Cidade, cultura de
Keywords: City, mass culture, urban
Univ. de Coimbra, com o Instituto de História
massas, personagens urbanas, imprensa.
characters, press.
Contemporânea da Univ. Nova de Lisboa.
101
1. Um novo espaço
aproximar o centro das margens ur-
Passeio Público, em frente de duas
público urbano
banas: elétricos para Cais do Sodré e
chávenas de café” procurara, através
Algés em 1889, para o Campo Grande
das letras, “acordar tudo aquilo a ber-
De regresso a Lisboa, aí por volta
em 1906; comboios para Belém ainda
ros” (Queirós, 2009: 159), compreen-
de 1887, numa encruzilhada de tempo
em 1889. Eram também, em grande
dendo afinal que, ao abrir o último
retida pelo autor de Os Maias, “de-
parte, outros os ocupantes da cidade,
quartel do século, o espaço público
pois dum exílio de quase dez anos” na
“toda uma geração nova” de gente que
começara a mudar com o despertar
cosmopolita cidade de Paris para se
contribuía para desfigurar a “cidade
de novas camadas urbanas, essas que,
refazer da sua anterior tragédia amoro-
velha” e, numa conversão geral, “ar-
num brevíssimo lapso revolucionário,
sa, Carlos Eduardo em vão procurava
ranjar-se à moderna” (Queirós, 1970:
o nosso escritor acreditou poderem
reconhecer velhos lugares, na compa-
690-703).
sustentar uma Comuna em Lisboa:
nhia de João da Ega, sobretudo a mais
Ora, para o que à história cultural
operários, pequenos comerciantes,
simbólica das referências da capital.
interessa, a cidade e as personagens,
trabalhadores de serviços (Queirós,
Onde outrora se estendera o Passeio
no cenário da fantasmagoria baude-
1983: 61). Um espaço público novo
Público da Baixa, murado de grades
lairiana em fim de século que Walter
que Eça tão bem soube captar no fi-
e solene no remanso de personagens
Benjamin tão bem assinalou (Benja-
nal romanesco magistral de O Crime
lentas, rasgava-se agora um grande e
min, 2011: 31 e ss.), são as ruas e
do Padre Amaro, em que o Cónego
movimentado boulevard:
os seus transeuntes − les rues e les
Dias, o Conde de Ribamar e Amaro
flâneurs. Da dinâmica entre ambos,
descem indolentes o Chiado, por onde
− Ora aí tens tu essa Avenida!
sob um cenário de espetáculo de
ecoavam gritos dos ardinas, trazendo
Hem?... Já não é mau!
que o meio urbano se tornava espaço
as novas da Comuna de Paris. Este ce-
apelativo, resultaram diversificados
nário urbano, tumultuoso, construído
Não se tratava apenas, porém, da
esquemas de circulação e formas so-
de tipos novos e com uma dinâmica
Avenida da Liberdade, que perdera o
ciais de apropriação da cultura, em tal
diferente, nunca passara desperce-
anterior “catitismo domingueiro” do
momento sob o impulso e em torno dos
bido ao escritor. Uns anos antes, em
velho parque gradeado; aliás, já as
objetos impressos, também estes sob
1867, instalado na capital alentejana
Avenidas Novas se projetavam então
uma nova dinâmica, por vezes mesmo
(não obstante um centro interior e de
para o Campo Grande, quando a peri-
com novos objetos.
lento crescimento), o então jovem es-
feria da cidade tinha sido alargada no
Mais de uma década antes, já Eça
critor olhava a cidade à distância e,
sentido de Belém e dos Olivais. Aliás,
de Queirós, na companhia de Rama-
vestindo com talento e mestria a pele
em breve, os transportes urbanos iriam
lho Ortigão, “numa noite de verão, no
de jornalista, comentava na coluna de
uma “Correspondência do Reino” pela
um quadro cultural e social de efeitos
entre o último quartel de Oitocentos
pena de um correspondente fingido:
multiplicadores de desenvolvimento
e primeiro quartel de Novecentos.
que teve os centros urbanos como
Se muito destes fenómenos está ain-
Agora vou por essas ruas, api­
polo de importantes transformações.
da por conhecer em profundidade
nhadas de gente, indolentemen­
No sentido em que, para a nova his-
na sua dimensão económico-social,
te, estudando os tipos como um
tória cultural, a população representa
a expressão ainda menos abordada,
verdadeiro ocioso, rindo-me dos
o corpo social sem o qual a cultura
porém significativa, como procura-
penteados femininos, vendo os li­
não pode integralmente ser pensada,
remos mostrar aqui nos seus traços
vros novos, ouvindo as dissertações
é necessário partir de mobilidades
fundamentais, consistiu na emergência
políticas, a graça dolorosa e insí­
sociais mais gerais − nomeadamen-
de uma cultura urbana de massas que,
pida dos nossos folhetinistas, mas
te a deslocação migratória a partir
aliás, acompanhou sensivelmente a si-
olhando sobretudo para o sol, [...]
dos meios rurais (para além de uma
tuação europeia da época (Dias, 2008;
como um verdadeiro meridional
emigração expressiva, interessa aqui
Kalifa, 2001). Trazendo uma vez mais
(Queirós, 1981: 540).
uma não menos importante desloca-
o testemunho queirosiano, cuja obra,
ção interna para os principais centros
sobretudo a dos textos de imprensa,
Ora, que dimensão e que relevân-
urbanos). E, no seguimento de pro-
reflete e acompanha as grandes trans-
cia tinha então essa população urba-
gressos materiais ao cabo do período
formações societais do tempo, chame-
na de final de século, com crescente
“fontista”, nomeadamente a interliga-
se à colação uma crónica enviada para
acesso à cultura? Qual a dinâmica do
ção nacional ou, melhor, interurbana,
a Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro,
seu despertar?
pelas vias de comunicação telegráfica
porém escrita na capital francesa onde
Se, ao longo da era industrial e até
e ferroviária, encurtando o tempo e
exercia funções diplomáticas: trata-se
ao dealbar da globalização, Portugal
o espaço – avaliar que o nosso país
de um interessante texto de Ecos de
prolongou uma realidade estrutural
assistiu no último quartel do sécu-
Paris, datado de 1 de julho de 1894,
essencialmente agrária a que corres-
lo XIX, mais propriamente nas três
intitulado “O Salon”, que tem como
ponderam representações persistente-
últimas décadas, à primeira grande
mote um evento anual de grande pro-
mente rurais, constituindo fatores de
expansão dos meios urbanos da época
jeção cultural – o salão de belas artes
resistência à modernidade que mar-
contemporânea.
parisiense. No entanto, a argúcia e
caram grande parte do nosso século
No interior do tecido urbano, ou-
humor queirosianos conduzem mais
XX, a verdade é que, na transição do
tras mobilidades sociais participa-
longe que a referência a uma mera
século XIX para o seguinte, podemos
ram no arranque dos processos de
exposição, detendo-se o texto na ver-
identificar na sociedade portuguesa
industrialização e terciarização, já
dadeira “peregrinação instrutiva” de
103
que socialmente (leia-se pejorativa-
quais deviam parar, e fazer “ah!”
valorização da rua e da sua frequenta-
mente) se revestia o evento, sobretudo
e sentir uma emoção, e depor um
ção quotidiana, de que o Naturalismo
porque permitiu ao cronista matéria de
louvor (Queirós, 2002: 477).
fez razoável inquérito literário à ga-
reflexão sobre questão mais funda que
leria de tipos e de ambientes sociais,
o aspeto artístico propriamente dito.
A partir daqui, o autor alargou-
desde Eça de Queirós a Abel Botelho,
Neste cenário, Eça apercebia-se da in-
se em considerações, muitas delas
sem esquecer as crónicas citadinas
capacidade inata do homem social na
ainda de grande atualidade, sobre o
que deram lastro à abordagem de cos-
sua época – leia-se num final de século
fracasso dos ideais revolucionários e
tumes em que Fialho de Almeida se
em ebulição − de pensar com a sua
da Democracia, pois que já no final do
celebrizou, nem o magistral poema de
própria cabeça, de ajuizar livremente,
século
o público (leia-se aqui o
Cesário “O Sentimento de Um Ociden-
independentemente dos ditames profe-
público urbano burguês) se comporta
tal.” Daí, a cidade tornou-se no centro
ridos pelos líderes de opinião ou pelos
como o habitante de Damasco ou de
de gravidade de novas e complexas
jornais (aliás, também Stendhal, em
Bagdad que não prescindia do seu
práticas culturais e representações
textos publicados nas revistas ingle-
“cádi” ou do seu “ulemá” para poder
sociais variadas, segundo vivências
sas, refletiu esta preocupação, pers-
ter uma opinião que seguir; com uma
que o novo espaço urbano então abriu,
petivando o jornal como um ecrã que
diferença, imposta pelos tempos mo-
sob o signo de um conceito de cultura
opacificava a realidade, impedindo o
dernos: neste fim de século, nenhum
mais alargado.
contacto direto do cidadão com a arte
homem civilizado que se queira res-
O espaço público, para tomar de
e a literatura e conduzindo-o ao reduto
peitado pode prescindir da Arte ou
empréstimo à Sociologia um conceito
das ideias feitas):
da Literatura, pois elas representam a
muito generalizado que serve bem a
“sobrecasaca da inteligência”, rápida
nossa perspetiva, era então um espa-
Como uma fila submissa de bons
e fugazmente consumidas nos jornais,
ço culto de natureza essencialmente
carneiros, todos estes milhares de
afinal os grandes (de)formadores da
urbana, compreendendo os indivíduos
seres pensantes, e únicos donos
opinião pública.
que, de alguma forma, participavam
XIX ,
do seu pensamento, marchavam
A cidade – de que Paris era, à épo-
na vida pública e a determinavam
arrebanhadamente para aquelas
ca, o modelo − foi, no contexto geral
numa esfera de interferência social e
obras que, na véspera, o Estudo
da sociedade portuguesa da época a
cultural mais alargada, isto é, para lá
Crítico, ou antes o Guia Crítico
que nos reportamos, a grande “novi-
dos estreitos limites de uma burguesia
do “Salão”, publicado pelo jornal,
dade” (Silva, 1996: 696) . Com mais
culta e proprietária, típica do quadro
lhes indicava, ou melhor lhes im­
precisão, do ponto de vista da história
romântico-liberal, mas integrando
pusera, como as únicas diante das
cultural, a cidade tornou-se cenário de
lentamente novos setores emergentes.
A cidade
tornou-se no centro
de gravidade de
novas e complexas
práticas culturais
e representações
sociais variadas,
segundo vivências
que o novo espaço
urbano então abriu
Ora, a burguesia, em decisiva ascen-
iniciou o seu processo de autonomi-
são desde o século XVI , começara por
zação nesse século das Luzes. Não se
modificar profundamente a esfera pú-
tratava ainda de uma esfera distinta-
blica europeia desde meados do sé-
mente burguesa, pois que abrangia a
culo XVIII . Público e privado passam
aristocracia urbana, frequentadora e
a constituir-se como dois domínios
dinamizadora dos salões e dos teatros.
distintos, embora mantendo relações
Na senda de Habermas, o termo pú­
e articulações, uma vez que o público
blico, na França do século
só existe a partir de indivíduos que se
aplicado aos destinatários e consu-
assumam como tal na privacidade.
1
midores de arte e literatura, tanto na
A valorização da intimidade e o surgi-
corte, quanto nos salões aristocráticos
mento de um novo conceito de família,
e nos teatros. Filipe Carreira da Silva,
domínios separados da vida profissio-
numa leitura crítica da obra do filósofo
nal, marcaram influências profundas
contemporâneo, encontra uma síntese
ao nível dos processos de reprodução
muito precisa para esta ideia quando
cultural. Antes, porém, do nascimen-
afirma que “a esfera pública burguesa
to de uma esfera pública política,
surgiu do encontro entre os herdeiros
ela existiu no seio de um campo – o
da sociedade aristocrática e humanis-
cultural, sobretudo o literário – que,
ta, em que se baseava a esfera pública
embora ainda de forma incipiente,
literária, e a camada intelectual da
XVII ,
era
burguesia, então em ascensão.” (Silva,
2002: 17-18)
1 Como explica João Pissarra Esteves: “Temos, assim, o público da modernidade projetado numa dupla relação com o privado: em
contraposição e em estreita articulação. É
esta ambivalência que estabelece o primeiro
nível de mediação simbólica concretizada
pelo público: a reunião das pessoas num
público, o seu encontro num espaço comum
[…] de discussão e de ação, começa por ser
uma oportunidade de afirmação individual
de cada um dos participantes, um espaço
de desenvolvimento da interioridade e de
afirmação subjetiva de cada um dos membros
do público” (Esteves, 2003: 191).
Se olharmos para uma das instituições que mais contribui para a formação e consolidação desta esfera pública – o salão – facilmente percebemos
esta ideia. Os salões assumiram-se,
desde cedo, como um espaço sociodiscursivo de nivelamento ou encontro
de classes sociais distintas, em que
a burguesia se infiltrava e convivia
105
com a aristocracia. Os critérios de dis-
artísticas 3. Em Portugal, foi reconhe-
para a publicitação de ideias e para
tinção social existentes fora do salão
cido o salão da Marquesa de Alorna
a circulação de produtos e de críti-
esbatiam-se através da conversação,
foco de ebulição cultural, onde se
cas culturais: cafés, ruelles, teatros.
modelo comunicativo igualitário, para
debatiam as novas ideias políticas e
Entre outros, em que poderíamos
James Melton, (2001). Segundo este
também as novas correntes estéticas
acrescentar o aburguesamento das
estudioso, o salão tem algumas carac-
e literárias, frequentado por nomes
filarmónicas musicais que retiraram
terísticas essenciais da esfera pública
como os de Bocage e Alexandre Her-
o monopólio dos salões cortesãos nos
do Iluminismo, nomeadamente o facto
culano 4; em breve, na primeira meta-
meados do Portugal de Oitocentos, são
de a sua origem se prender com uma
de do século
português, o salão
todos espaços urbanos, já que a cidade
crescente autonomia relativamente ao
ganhou crescente preponderância
se configura como o polo aglutinador
mundo da corte, ser um espaço em
burguesa, de que pode, entre outros,
destes novos agrupamentos sociais,
que, apesar da preponderância da
dar-se o exemplo do salão de Maria
em que se começou a estabelecer “a
comunicação oral, a palavra escrita
Krus, animado por Almeida Garrett e
paridade entre as pessoas cultivadas
circulava e, finalmente, ser um espaço
onde participavam literatos e homens
procedentes da sociedade aristocráti-
de nivelamento social em que se esba-
de negócios, políticos e funcionários;
ca e as da intelectualidade burguesa”
tia a rigidez e a formalidade da corte.
2
o próprio Grémio Literário, fundado
(Habermas, 2002: 70).
XIX
Quer isto dizer, portanto, que o
no conturbado ano de 1846, pode ver-
Estamos, portanto, perante o nas-
conceito de público moderno come-
se como formalização pública dessa
cimento de um novo tipo de organiza-
ça por ganhar contornos definidos
tendência. Naturalmente que, como
ção das elites cultas, em que “a di-
no âmbito das artes e da literatura,
explica Habermas, a par dos salões,
visão simbólica, fundada em motivos
publicitadas e discutidas nos salões,
existiram um conjunto de instituições
e convicções, […] se sobrepõe […]
tribunas de legitimação das criações
variadas que em muito contribuíram
às tradicionais divisões religiosas,
étnicas, económicas, etc.” (Esteves,
2 “Eminence in the salon also undermined
traditional conceptions of nobility based on
birth by encouraging a more elastic behavioral definition. Eminence in the salon depended not on blood-lines but on the refinement
and esprit one exhibited in conversation with
others. Politeness and cultivation became
qualities to which noble and bourgeois could
aspire” (Melton, 2001: 195-225).
3 “El salón mantenía, por así decirlo, el
monopolio de la primera publicación: um
nuevo opus, incluído el musical, tenía que
comenzar legitimándose ante esa tribuna.”
(Habermas, 2002: 72)
4 “Empossada no título e nos bens do Marquesado de Alorna, fez do seu salão um foco
das novas ideias estéticas; a influência que
exerceu, como “Staël portuguesa”, ressalta
do testemunho agradecido de Herculano”
(Coelho, 1994).
2003: 194). Na esfera pública burguesa, numa perspetiva habermasiana que, como já se disse, não reúne
consensos, a força da argumentação e
os valores simbólicos sobrepunham-se
a outros recursos de tipo material ou
social; para além do mais, dinamiza
discussões críticas, com base racional,
sobre temas e assuntos até ao momen-
última análise, deram lugar ao espaço
Foi neste espaço privatizado que foi
to monopolizados pelo Estado e pela
público político. Assim, o ideal ilu-
possível experienciar uma nova forma
Igreja; um terceiro aspeto inerente a
minista de um espaço público esteve
de individualidade e de subjetividade
esta esfera pública burguesa, não obs-
ligado a um conjunto de fenómenos
e foi nessa experiência que, simulta-
tante os estreitos limites de um modelo
culturais no século
ampliados
neamente, o conceito de público pas-
censitário em que, entrado o século
na centúria seguinte: desde o desen-
sou a fazer sentido: o espaço público
XIX , a burguesia assentou o seu poder
volvimento de novos espaços públicos,
mantém-se público no sentido de que
político (Habermas, 1997: 127), diz
como o parque, o museu e o café mas
ele existe pela publicidade, o modo
respeito ao carácter democrático da
também à rápida expansão da indús-
pelo qual as opiniões podem evoluir
participação: ao menos em abstrato
tria da imprensa, bem como à filosofia
pela crítica e pelo debate para uma
– e a configuração mais abstrata foi
política liberal que moldou as grandes
opinião pública, mesmo quando, para
a construção oitocentista da ideia de
revoluções do século. O espaço públi-
lá da literacia, o espaço público veio
cidadão 5 −, todos podiam participar,
co existiu na Europa das Luzes como
a alargar-se, já na segunda metade
criticar, julgar bens acessíveis a todos.
uma rede discursiva, através da qual
do século
O desenvolvimento de uma “re-
os indivíduos, abstraídos dos interes-
de massas nos meios urbanos.
pública das letras” iluminista foi,
ses privados, chegavam a consensos
para Habermas, o fundamento sobre
sobre questões públicas, através das
o qual se estabeleceu uma exigência
discussões, das cartas, de livros ou de
da república política. Desde cedo,
ensaios. Por isso, para Habermas, a
portanto, na construção deste espaço
sociedade civil, que cresceu em tor-
Por agora, esse espaço público é
público emergente, o impresso teve
no da cultura dos cafés e dos salões,
ainda essencialmente o espaço do pu-
um papel angular, patente no valor
resultou numa esfera pública literária
blicado; a cultura, antes da afirmação
das redes epistolares fulcrais nesta
que, em última análise, influenciou a
de uma civilização da imagem e do
república das letras e que marcam
esfera pública política.
som na passagem para o século
muito bem a transformação de uma
XVIII ,
ante a concentração
2. O espaço do publicado
À medida que, desde finais do
XX ,
era então predominantemente impres-
esfera pública literária em uma esfera
século
se formou uma escrita
sa, circulava e informava na forma de
pública política, através da reunião
especializada e aumentou o número de
objetos impressos: do jornal e do livro
de pessoas privadas. Desta reunião
pessoas alfabetizadas, desenvolveu-se
estendeu-se ao folheto e ao cartaz pu-
nasceram públicos de debate que, em
o gosto pelo espaço privado da vida
blicitário, sem esquecer que estamos
doméstica, cada vez mais confinada à
perante uma dinâmica de apropriações
habitação da família nuclear restrita.
sociais da cultura (e da informação
5 No caso português, ver Dias (1990).
XVIII ,
XIX ,
107
em geral) por via simultânea do ler,
cidades que, literacia à parte, possuía
masculino residentes nos limites da
do ver e do ouvir (Dias, 2011). Esta
aptidões de leitura extensíveis a uma
cidade. Mas Lisboa não era um caso
civilização do impresso que finalmente
“massa semiletrada” de que a elite
excecional, não obstante a capital
nos ocupa, a partir da 2ª metade do
culta em vão pretendeu demarcar-se.
ser a cidade megalómana que mais
século XIX − com a invenção das co-
Reconhecia-se, aliás, como fez Fialho
cresceu durante todo este período: a
leções literárias, nomeadamente em
de Almeida nas suas crónicas urbanas,
população com apetências de leitura
livros de bolso, a imediata e rápida
a pressão daquilo a que chamou “cul-
na Coimbra escolar (com 56%) e no
afirmação da imprensa industrial,
tura industrial” de objetos impressos
Porto culto de fim-de-século (com
os jornais diários a baixo preço e de
generalizados e que Eça tão bem ca-
55%) era mesmo superior à dos lis-
grande tiragem, dentre uma parafer-
ricaturou na célebre carta-prefácio a
boetas (que rondavam os 54%). E esta
nália de folhetos, magazines e boletins
Azulejos do Conde de Arnoso.
era a situação nas principais cida-
6
de lazer cuja venda proliferava tanto
des portuguesas de um eixo litoral
em estabelecimentos livreiros e afins
Em breve panorama, indicadores
que começava em Viana do Castelo
como em pontos comerciais fora do
mais precisos obrigam a mudar o ân-
e terminava em Lisboa, desfasado do
circuito habitual dos impressos −, sur-
gulo de visão sobre o atraso cultural
interior e sul do país, aí escassamente
giu concomitante com uma elevação
português. Por volta de 1880, antes
alfabetizado mesmo entre os citadi-
paulatina dos níveis culturais da po-
mesmo do Maia e do Ega reconhe-
nos (por exemplo, Castelo Branco com
pulação urbana que contraria, afinal,
cerem uma Lisboa transfigurada e a
28%, Beja com 30% e Faro com 25%
a perspetiva de um atraso cultural por-
descentrar-se do fórum regenerador
dos seus habitantes de alguma forma
tuguês até há bem pouco dominante
(figura 1), até então circunscrito pelas
instruídos)7.
entre a nossa historiografia.
elites ao Rossio e Chiado, a percen-
Tais indicadores permitem, então,
Pois, no último quartel do século
tagem da sua população urbana com
explicar de forma decisiva a curva as-
XIX e numa tendência que se estendeu
acesso à cultura − isto é, todos os
cendente nas extraordinárias tiragens
até ao primeiro quartel do século XX, o
que, de alguma forma, sabiam ler e
das publicações periódicas, sobretudo
analfabetismo endógeno e persistente,
escrever (incluindo aqueles que as es-
dos títulos diários, sabendo que os jor-
sim, numa escala nacional (com índi-
tatísticas, embora escassas, remetem
nais finisseculares concorriam entre si
ces próximos dos 80% dos indivíduos
para uma coluna intermédia dos que
nos grandes centros urbanos. Antes de
sem instrução, perto da percentagem
sabem ler, sem escrever) − ultrapas-
Carlos da Maia regressar da Europa
da população rural) não se compagi-
sava os 50% dos indivíduos do sexo
na com o crescimento da população
residente no interior das principais
6 Ver Queirós, 2009: 187 e SS.
7 Dados referentes ao início do último quartel
do século XIX in Anuário Estatístico (1884).
Figura 1
Uma Lisboa transfigurada e a descentrar-se
do fórum regenerador, até então circunscrito
A. desc. (planta parcial). Museu da Cidade, Reservas, MC.GRA.992
pelas elites ao Rossio e Chiado.
109
(acreditando ele que, essa, sim, era cul-
centro urbano, pelo menos com 1/4 dos
ombro e farda de serviço 10, lendo um
ta, numa apreciação vista do alto das
exemplares destinados a pequenas e
jornal numa esquina da cidade. E à
elites), a população residente em Lis-
próximas cidades e vilas; no caso de
leitura popular, identificando novas
boa, com cerca de 300 mil habitantes,
O Século e do Diário de Notícias, deve
franjas de um espaço público social-
tinha disponíveis tiragens diárias de
contar-se com uma circulação para ou-
mente alargado, devemos ainda acres-
50 mil exemplares de jornais (Cunha,
tras cidades do país − a verdade, não
centar a leitura feminina, cujos ganhos
1941: 10 n.), 17 mil dos quais por
obstante, é que o índice de consumo di-
através da instrução atravessaram o
conta do pioneiro Diário de Notícias
reto de impressos nos grandes núcleos
último quarto de século de Oitocen-
(Miranda, 2002: 128) − isto é, cerca
urbanos foi nessa época considerável.
tos (Gomes, 1996: 33 e seg.), dando
de um exemplar para 6 habitantes da
Por esta altura, quando vamos já
finalmente lugar à primeira e notável
capital. Até final do século XIX, quando
conhecendo os níveis dos lazeres po-
geração de “feministas” dos princípios
o Diário de Notícias tirava cerca de
pulares através de atividades de cul-
de Novecentos (Lousada, 2012).
30 mil exemplares diários, já um novo
tura e recreio a que só era possível
Ora, a imprensa de larga difusão
vespertino lisboeta ultrapassava tais
aceder com um mínimo de instrução
construiu estratégias e criou dispo-
tiragens (Salgado, 1894: 60). Trata-se
(Figueiredo, 2011), também os perió-
sitivos de afirmação, fidelização e
de O Século que, em breve, veio a cons-
dicos dos meios laborais conheciam
ampliação de públicos que tiraram
truir um verdadeiro (e o primeiro) im­
ampla circulação, como foi o exemplo
partido de uma encenação do espaço
pério mediático em Portugal e, antes
do semanário Voz do Operário, edita-
urbano, reforçando a sua presença
de 1910, atingia a tiragem média de
do pela coletividade homónima, que
nesse cenário de espetáculo. Antes de
85 mil exemplares diários − quase o
tirava 50 mil exemplares por número
todos, o Diário de Notícias fez crescer
dobro em dias de acontecimentos rele-
em 1908 . Nas dinâmicas culturais da
as suas tiragens com a introdução
vantes, segundo memória de Brandão
transição de século, a leitura popular,
de quiosques de rua espalhados pelo
(1998: 142). Nessa altura, os lisboetas
como prática de rua, foi, aliás, belis-
espaço urbano, mas também com o
pouco mais eram que 400 mil residen-
simamente iconizada pelo fotógrafo
recurso aos ardinas que apregoavam
tes urbanos, havendo uma proporção
Joshua Benoliel, na capa da Ilustração
as notícias a céu aberto e cujo nú-
de um jornal para 4 habitantes da ca-
Portuguesa de 13 de junho de 1908:
mero não parou de aumentar até ao
pital. Naturalmente, as tiragens eram
com o título sugestivo “À esquina”, a
também expedidas para fora do grande
“chapa” do nosso fotógrafo surpreen-
8
9
dia um moço de fretes, de gancho ao
8 Segundo uma publicação do “império” de
O Século, a Ilustração Portuguesa (1908,
jul. 13).
9 Exemplo dado pela Ilustração Portuguesa. (id.).
10 O uso de farda pelos “moços de fretes”
(figura 2) fora determinado numa então recente postura municipal, demonstrativa da
integração das personagens numa paisagem
urbana que se pretendia moderna.
J. Benoliel (foto), “À esquina”. Ilust. Portuguesa (1908).
Figura 2
Lendo um jornal numa esquina da cidade.
111
em 1891, esta-
eram publicadas “primeiro num pla­
vam registados no Governo Civil de
card que fizemos afixar nos lugares
Lisboa quase 10 mil ardinas(Cunha,
do costume”12 .
final do século
XIX :
1941: 36-40). Já por essa altura,
Não se trata, porém, de um pro-
O Século expandia-se com ramifica-
cesso isolado da dinâmica urbana em
ções pelos principais bairros da ca-
geral: esse espaço mediatizado cor-
pital, através da criação de sucursais
respondia, integrando-se nele, a um
em lojas que chegaram a ser 17 na
cenário de espetáculo nas principais
cidade de Lisboa em 1911, altura em
cidades que começava nas fachadas
que recorreu igualmente aos quios-
dos prédios, por vezes com térreas
ques para se localizar em praças e
arcadas de passagem, e terminava
jardins; na mesma época, estendia
nos quiosques de café ao ar livre, em
essas sucursais a vilas próximas em
percursos que os transeuntes faziam
crescimento, por exemplo em Alma-
sob o colorido e as formas dos toldos,
da e na Amadora (nesta, situada no
dos avançados metálicos, das placas
“centro comercial” junto à sede dos
publicitários, dos cartazes comerciais
“Recreios”). A completar esse espa­
ou de espetáculos; mas também ao
ço mediatizado, os jornais possuíam
ritmo dos novos aparelhos de repro-
em geral, espalhados pela cidade,
dução sonora, vulgares no princípio
pontos de afixação das notícias que
de novecentos entre comerciantes de
eram lugares de difusão privilegia-
porta aberta que chamavam a atenção
dos, segundo um jornalista lisboeta:
do público com essa música de rés-do-
“Por toda a parte, onde os jornais
chão 13. A cidade multiplicava então,
têm “placards”, o povo estaciona, em
aliás, uma diversidade de aconteci-
massa, comentando os acontecimen-
mentos artísticos, alguns de ama-
tos” ; aliás, conforme afirmava um
dores em plena rua, a céu aberto…
jornal portuense, antes de chegarem
mesmo os mais inusitados e capazes
11
aos pontos de venda, ainda antes de
apregoadas pelas ruas, as notícias
12 O Comércio do Porto (1908, out. 5).
11 O País (1908, ag. 21).
13 Informação (e expressão sublinhada) que
devemos e agradeçemos ao meu colega Manoel Denis Silva (IHC/UNL).
A imprensa de
larga difusão
construiu
estratégias e
criou dispositivos
de afirmação,
fidelização e
ampliação de
públicos que
tiraram partido de
uma encenação
do espaço urbano
de encher, em poucas horas, um largo,
de “interview” (então, assim mesmo,
Com a exceção de Cesário Verde e da
uma praça com milhares de espec-
ainda sem tradução, os grandes gé-
sua poesia de ambiente urbano e, tam-
tadores.
neros do moderno jornalismo nascen-
bém por isso, percursor de uma moder-
A civilização do impresso, que
te), com uma vivacidade acrescentada
nidade estética, foi necessário esperar
quadra entre o quartel final do sécu-
ao facto, um poder de sugestão e de
pela vanguarda modernista para assis-
lo XIX e o do princípio do século XX ,
emoção com que os novos “reporters”
tir a um assomo citadino que teve em
foi, pois, o cenário típico da emer-
enfatizavam o caso. Afinal de contas,
António Ferro, o jornalista capaz de
gência de uma cultura de massas de
afirmava um jornalista da época, tal
experienciar a cidade, os seus ritmos,
matriz urbana que envolveu toda uma
imprensa guiava-se “pela necessidade
as suas emoções, as suas personagens.
transformação social: a modernidade
incessantemente renascida de procu-
Nessa altura, porém, o processo de
construiu, desde os seus fundamentos,
rar a variedade, de achar novidades”
crescimento de uma cultura de mas-
este espetáculo. A imprensa, cujo am-
conforme “o paladar do leitor […] que
sas de matriz urbana, fruto de uma
biente apenas aflorámos, foi disso um
absorve especialmente toda a curiosi-
ampliação do espaço público por via
exemplo, mesmo na sua narratividade,
dade moderna” .
de importantes transformações no cor-
14
nos instrumentos de escrita (motivos,
Porém, o “paladar” das elites cul-
po social no último quartel do século
técnicas, recursos) que o jornalismo
tas, nesse tempo que era já de crise do
XIX
moderno autonomizou sob a égide
Naturalismo, acentuava uma tendência
sofreu um abrandamento considerável
do momento, do acontecimento. Para
do imaginário para o ruralismo, o bu-
durante o regime Republicano e um
efeitos políticos ou quaisquer outros
colismo, a tradição, a ancestralidade
retrocesso decisivo durante o regime
efeitos mais comezinhos na dinâmica
na literatura, como na pintura, na fo-
do Estado Novo que suspenderam, já
desse cenário urbano, a espetaculari-
tografia, nas artes em geral. Aliás, a
para lá de meados desse último século,
zação da notícia esteve presente nes-
elite culta na transição de século trou-
nova e decisiva explosão da cultura
sa matriz de massas: a “invenção” do
xe, com conceitos e práticas, a ideia
de massas.
acontecimento, incluído o sentido em
de fruição do campo na cidade, com a
que toda a literatura é invenção, não
criação e ampliação de parques e, no
descurou o efeito metafórico, a ampli-
limite, com esse ritual tornado simbó-
ficação, o exagero, o insólito; mesmo
lico da plantação da árvore com data
no mais fugaz, efémero, quotidiano
marcada no calendário (republicano).
acontecimento, a intriga, o crime, o
facto escabroso ou simplesmente inusitado dão matéria de “reportage” ou
14 Trecho de uma crónica na Ilustração Por­
tuguesa (13 jul. 1908).
113
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neo. Vol. 1, Lisboa: Public. Alfa,
pp. 689-696.
115
Vária
Os textos que se seguem resultam das conferências
proferidas na Faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra (FLUC), a 7 de novembro de 2013, por
Cristina Robalo Cordeiro, vice-reitora da Universidade de
Coimbra e atual diretora do Bureau Maghreb de l'Agence
Universitaire de la Francophonie, e por Mário Mesquita,
© Lugares da Personagem, António Barros, 2014-2015, #8 - Coimbra_Retrato de Albert Camus
da Escola Superior de Comunicação Social, de Lisboa.
A iniciativa, realizada no quadro do programa das
Conferências da Imprensa, visou assinalar o centenário
do nascimento de Albert Camus e do vigésimo aniversário
da fundação da Licenciatura em Jornalismo da FLUC.
Para além da Licenciatura de Jornalismo, estiveram na
organização científica os Estudos Franceses da FLUC
e o Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX.
117
Cristina Robalo Cordeiro
Diretora do Bureau Maghreb de l'Agence Universitaire
de la Francophonie; foi vice-reitora da Universidade
de Coimbra ([email protected])
Camus, o Africano
Camus, the African
Resumo
Abstract
Antes de abordar diretamente a questão
Before considering directly the question
da africanidade de Albert Camus, preciso
of the “African-ness” of Albert Camus, I
de descrever o caminho que me levou até
must briefly describe the way which led
aí. Depois de ter ‘ensinado’ a obra e falado
my thoughts to it. Having, years along,
sobre o homem durante muito tempo nas
taught the work and evoked the man in
minhas aulas de literatura, descobri em
my lessons of literature, I lately realized,
mim, através do contacto prolongado com
in a prolonged contact with North-Africa
o norte de África e da prática da escrita
and in my own fictional writing, how deep
ficcional, a força e a fecundidade da sua
and fertile his influence has been on my
influência. Essa influência é, sem dúvida,
own personality. This influence comes, no
a da terra africana, do seu clima brutal,
doubt, from the African soil itself, from
da violência das suas paisagens, de onde
its harsh climate and violent landscapes.
o escritor fez surgir o lirismo das suas
But such a physical fascination, so vividly
mais belas páginas. Mas será este fascí-
represented in his work, is not the only
nio físico, tão vividamente representado
origin of his feeling of African belonging.
na obra, a única fonte do sentimento de
There is here an enigma to be accounted
pertença à África? Há um enigma que
for, a taboo to be dispelled. My opinion is
devemos tentar resolver, um tabu que
that the “African-ness” upheld by Camus
tem de ser quebrado. Na minha opinião,
– this sensation of freedom, this moral
a africanidade reivindicada por Camus -
lawlessness – does not derive only from his
essa sensação de liberdade, essa ausência
youth as a “pied-noir”, but above all from
de lei moral - não advém apenas da sua
the books he read, from J.J. Rousseau and
juventude de pied-noir, mas acima de tudo
Arthur Rimbaud in particular.
das suas leituras, especialmente da leitura
de Rousseau e de Arthur Rimbaud.
Palavras-Chave: Africanidade,
Keywords: African-ness,
Testemunho ,Tabu, Enigma, Lei Moral
Testimony, Taboo, Enigma, Moral Law
119
É-me impossível começar a minha
E também não porque o tema que
título para a minha causerie Camus,
comunicação sobre Camus sem
vou tratar seja relativo à carreira jor-
o Africano deixo-me guiar por uma
felicitar o departamento de Jornalismo
nalística de Albert Camus (o professor
intuição mais do que por um saber e
e Comunicação pelo seu aniversário
Mário Mesquita esgotará o assunto),
tenho absoluta consciência do risco
e agradecer do fundo do coração ter
ainda que esta seja uma faceta não
que corro.
pensado em me convidar a tomar parte
circunstancial ou adventícia – mas
A questão é, com efeito, particu-
nesta bela (e oportuna) iniciativa.
antes substancial e constitutiva – da
larmente delicada e exigiria precau-
sua obra e do seu destino.
ções oratórias – que não tenho tempo
Impossível não só no que toca à boa
educação mas também por uma razão
Se falei de uma razão de ordem
de tomar – ou considerações prévias
de ordem digamos mais causal do que
causal ou lógica que me obriga a
sobre a geografia e a história, o passa-
lógica. Se se trata de uma jornada de
começar a minha breve conferência
do e o presente, que não tenho compe-
reflexão sobre o jornalismo, a vocação
dirigindo uma saudação muito caloro-
tência para articular. Reconheço, no
e a missão do/da jornalista que explica
sa aos meus colegas do departamento
entanto, que me é mais fácil avançar
que me disponha – vinda de propósito
de Jornalismo e aos meus colegas de
neste terreno difícil perante vós, aqui
de Rabat – a evocar durante alguns
mesa, é porque a amizade que ma-
em Coimbra do que em Orão ou em
instantes a figura de Albert Camus,
nifestam para comigo é com efeito a
qualquer outra parte de África do Nor-
neste dia 4 de novembro de 2013, sob
verdadeira premissa do meu propósito.
te, tendo como destinatários colegas
os auspícios do vosso departamento,
Camus colocava a confiança, a sim-
aos ouvidos de quem a palavra África
é mais sobre uma certa conceção da
patia, a sinceridade na base de toda
não significa nada ou, pelo contrário,
comunicação entre as consciências que
a comunicação. E, pela minha parte,
significa demais.
quero construir a minha intervenção.
não vejo (já não vejo) outro ponto de
Perguntei há dias a um amigo mar-
Não que possua a mínima auto-
partida para qualquer tomada pública
roquino, reitor de uma universidade,
ridade na vossa especialidade (pois
de palavra senão esta vontade de par-
se se sentia “africano”. Nenhuma
não basta ter publicado artigos num
tilha e esta esperança de comunhão.
hesitação na resposta: Não, de forma
jornal para se ser jornalista) – mesmo
A (minha) recusa do inteletualismo
nenhuma! Repeti a experiência com
se recordo com gosto ter, no final do
discursivo conduz-me assim ao limiar
diversos interlocutores do Magrebe e
século passado, lecionado neste de-
do problema que quero agora abor-
a maioria reagiu de forma idêntica.
partamento o seminário de Mestrado
dar. Apenas abordar, pois que a sua
Deixo-vos o cuidado de interpretar
de “narratologia mediática”, o que me
complexidade me leva a pensar que
uma tal denegação, evidentemente
permitiu muito beneficiar do contacto
não serei sequer capaz de convenien-
sobredeterminada. É verdade que mui-
com profissionais já experientes.
temente o enunciar. Ao propor como
tos portugueses, há 40 anos, teriam
Não estava Camus,
face à insuportável
arrogância dos
intelectuais
parisienses (...)
disposto já a
aparentar-se a
todos os “negros”,
todas as cores
confundidas,
do planeta?
manifestado a mesma veemência em
que circunstâncias, é apenas porque
se verem identificados como Europeus,
delas me vem a sugestão da minha
mesmo independentemente do debate
intervenção desta tarde.
sobre a integração na CEE…
No âmbito de um júri de doutora-
Que quis então Camus dizer ale-
mento, fui levada a ler uma dissertação
gando a sua africanidade numa car-
de literatura comparada, acompanha-
ta, datada de janeiro de 1949, a Jean
da de uma vasta bibliografia passiva,
Grenier, seu antigo professor de facul-
sobre a imagem do Árabe nos textos
dade em Argel (Grenier, 1981: 152)?
de Paul Bowles e de Albert Camus.
Indicarei mais à frente o contexto que
Visivelmente influenciado pela doxa
esclarece esta afirmação.
pós-colonial, o autor do trabalho fa-
Mas antes tenho que precisar o
zia de Camus um racista sem o saber,
lugar de onde eu própria falo quando
absolutamente indiferente à cultura
falo de Camus, o que me permitirá
autóctone e virando as costas ao Islão,
justificar a abordagem que faço hoje
em suma, um petit blanc, generoso por
da sua obra e que difere daquela que
certo mas obnubilado pela ideologia
precedeu as minhas atuais viagens
pied-noir. Inútil dizer-vos que uma tal
através do Magrebe e a frequentação
apresentação começou por me escan-
assídua dos magrebinos.
dalizar, mesmo se em geral sempre
Este lugar de onde vos vou falar
olhei com benevolência as teses que
de Camus não é já o da professora
procuram contestar as ideias feitas.
de literatura. Não só já não ensino,
O candidato foi aliás admitido, tendo
como deixei de me manter informada
a minha oposição servido apenas para
sobre o trabalho crítico que continua
animar o debate. Voltarei ao nó da
a fazer-se em torno dos seus textos e
discussão e à minha própria evolução
sem dúvida a renovar a sua compreen-
nesta matéria.
são. Não espereis pois da minha parte
Permiti, para já, que precise a
uma visão do “estado da arte” sobre
natureza e sobretudo a amplitude do
a investigação camusiana. O meu úl-
meu atual afastamento dos estudos li-
timo esforço nesse sentido data já de
terários, pois que Camus não é estra-
há 5 ou 6 anos e, se vou precisar em
nho a esta mudança que se operou na
121
minha vida profissional tanto quanto
Tipaza, a (belíssima) localidade cele-
compreendeis a minha incapacidade
no meu pensamento. Para começar,
brada em Noces, foi-me mostrada por
em falar de Camus sob um modo que
se aproveitei a primeira ocasião que
um colega argelino que, conhecendo o
não seja íntimo. As poucas horas livres
a mim se ofereceu para ir viver no
meu culto de Camus, teve a gentileza
a que a minha atividade me autoriza,
Norte de África – e não em qualquer
de me guiar por esses lugares tornados
consagro-as ou a uma deambulação
outro lugar do mundo! – é, tenho hoje
míticos.
pelas ruas da Medina e do souk de Ra-
disso plena consciência, ao efeito de
Talvez vos espante que tenha uti-
bat ou à escrita. Deixei então, nestes
inutrição exercido por certas páginas
lizado a expressão “afastamento dos
últimos meses, que uma espécie de
líricas de Noces, de L’Eté ou de L’En­
estudos literários” quando, ao invés,
narrativa se fizesse em mim, sem plano
vers et L’Endroit que o devo: estes
tenho o sentimento de regressar às fon-
preconcebido, sem busca de efeitos,
textos magníficos de um Camus solar
tes da literatura deixando-me penetrar
em suma, como sob hipnose. Agora
haviam estruturado a minha perce-
pelas minhas impressões de viagem na
que releio esse texto, com o “olhar ini-
ção do Magrebe antes mesmo de ter
Argélia. Mas há dois usos distintos,
migo” que Mallarmé preconizava, não
desembarcado pela primeira vez em
e talvez incompatíveis, da literatura
posso deixar de nele encontrar o rasto
Tânger, há já cerca de 30 anos. Pa-
e da arte em geral. Há a literatura
de antigas leituras que continuam a
rodiando a linguagem de Kant, posso
vivida, seja ela por nós escrita ou
obcecar-me, e mais precisamente a
considerar que as imagens de Camus
lida, e a literatura analisada de que
novela que abre a coletânea L’Exil et
constituíram as “formas a priori” da
fazemos, enquanto críticos e profes-
le Royaume, último livro publicado
minha sensibilidade norte-africana…
sores, o argumento de um discurso.
por Camus. Uma questão em particu-
Num plano mais prático, não irei
É verdade que neste preciso momen-
lar colocada nesta narrativa, escrita
ao ponto de dizer que foi o espírito de
to, gostaria de apenas vos comunicar,
em estilo indireto livre, parece as-
Camus que me conduziu a trabalhar na
sob um modo “histérico” (direi antes
sombrar as minhas próprias páginas:
Agência Universitária da Francofonia.
“afetivo” para vos tranquilizar) a mi-
Janine, la femme adultère, ao chegar
É no entanto como diretora do Bureau
nha experiência pessoal dos livros de
ao limiar do deserto, interroga-se da
Maghreb da AUF que me desloco mui-
Camus mas, devendo conformar-me
seguinte forma: “Qu’y avait-il donc à
to regularmente, uma vez por mês, à
mais ou menos ao código semiótico de
voir ici? Elle ne pouvait détacher ses
Argélia, e que me é dado visitar Orão,
uma conferencista, sinto-me obrigada a
regards de l’horizon. Là-bas, plus au
a cidade de La Peste, Constantina, lu-
racionalizar um pouco o modesto teste-
sud encore, à cet endroit où le ciel et
gar onde nasceu, Argel, claro, a cidade
munho subjetivo que vos quero deixar…
la terre se rejoignaient dans une ligne
de L’Étranger, Tipaza e tantos luga-
Far-vos-ei, no entanto, ainda
pure, là-bas, lui semblait-il soudain,
res onde a sua memória não morreu.
uma última confidência para que
quelque chose l’attendait qu’elle avait
ignoré jusqu’à ce jour et qui pourtant
como o teatro, Caligula, Le Malenten­
de lucidez não consegue vencer, evi-
n’avait cessé de lui manquer” (Camus,
du, l’Etat de Siège e Les Justes apre-
dentemente ligado ao sentimento de
1992 : 27). Acontece que as minhas
sentavam, no plano pedagógico, um
uma falta menos moral do que onto-
personagens (marroquinas e portugue-
diferente grau de interesse, embora
lógica, e cito:
sas) são elas também mulheres empur-
figurassem sempre, a par das suas nar-
radas pelo desejo de uma completude
rativas, como leituras complementares
“L’angoisse en Afrique quand le
que a vida lhes recusara até então.
a que vivamente encorajava os meus
soir rapide descend sur la mer
Não irei mais longe no segredo da
alunos (falo de uma época antedilu-
ou sur les hauts plateaux ou sur
minha tentativa de criação, segredo
viana !), persuadida de que Camus não
les montagnes tourmentées. C’est
que vos confesso mais a título de caso
se explica senão por Camus.
l’angoisse du sacré, l’effroi devant
telepático ou de exemplo individual
Em 1994, teve lugar um acon-
l’éternité. La même qui, à Delphes,
daquilo que Jauss teorizou sob o nome
tecimento que me obrigou, e muitos
où le soir, produisant le même ef­
pomposo de “estética da receção”.
outros comigo, a matizar a imagem do
fet, a fait surgir des temples. Mais
E o nome de Jauss permite-me regres-
escritor. O aparecimento de Le Pre­
sur la terre d’Afrique les temples
sar a um registo mais universitário.
mier Homme. Sabeis sem dúvida que
sont détruits, et il ne reste que
Catherine Camus hesitou longamente
ce poids immense sur le cœur”
(Camus, 1994 : 318).
Não apenas Camus foi, desde a
antes de se resolver a publicar o ma-
minha adolescência, uma espécie
nuscrito descoberto no automóvel em
de maître à sentir – e sem dúvida
que o seu pai encontrou a morte a 4
também maître à penser (sinto-me
de janeiro de 1960.
Ao compor Le Premier Homme, Camus quis escrever novas Confessions,
muito menos próxima de André Mal-
Mais do que qualquer outra, esta
não as de um pagão convertido mas
raux e de Jules Supervielle a quem
obra inacabada, este romance auto-
as de um apostato (como o Renegado
consagrei as minhas duas teses de
biográfico, que muito se assemelha a
de L’Exil et du Royaume). Faço aqui
doutoramento), como também a ele
uma auto-análise, vem pôr a nu as
alusão ao livro de Santo Agostinho,
dediquei muitas das minhas aulas.
raízes do mal, não direi do comple-
bispo berbere de Hippone, hoje An-
Títulos como L’Etranger, La Peste,
xo, camusiano. Ora esse mal não é
naba, cidade situada em território
L’Exil et le Royaume preencheram os
senão a relação ambígua, filial mas
argelino, a alguns quilómetros da
meus sumários e, ano após ano, com
sem dúvida incestuosa, em todo o
Tunísia e a quem Camus, estudan-
a ajuda dos meus estudantes, aprendi
caso apaixonada com África. É num
te de filosofia, havia dedicado a sua
a lê-los melhor. Os tratados Le Mythe
outro sentido da expressão, o mal du
dissertação de mestrado. Em todo o
de Sisyphe ou L’Homme Révolté, assim
pays, uma melancolia que a vontade
caso, quis “ raconter l’histoire d’un
123
monstre ” (Camus, 1994: 300), mons-
nossos compatriotas regressados de
francês. Por isso, a prudência incita-
tro no sentido de criatura dupla ou
Angola, da Guiné, de Moçambique :
nos a desconfiar das pseudo-analogias
compósita, que não encontra (o seu)
“africanistas”, não que sejam especia-
e a praticar em história um nomina-
lugar no meio dos homens.
listas de línguas e culturas africanas
lismo rigoroso. Há tantos pós-colonia-
Acabo de evocar Santo Agostinho.
mas porque tiveram e têm ainda “in-
lismos quantas as antigas colónias.
Poderia, na outra extremidade ociden-
teresses” em África, interesses que
E sem dúvida em termos puramente
tal do pequeno Magrebe (o grande
se tornaram apenas afetivos, depois
psicológicos, tantas colónias quantas
inclui a Líbia e a Mauritânia), fazer
de terem sido materiais até à perda
cabeças de colonos, tal como para Mia
uma aproximação, em nada fantasis-
destes territórios. Mas quantos destes
Couto “todo o homem é uma raça”.
ta, com o Humphrey Bogart do filme
“africanistas” se diriam “africanos”?
Le Premier Homme é uma reflexão,
Casablanca, que, na sua indiferença
Acontece-me, de tempos a tempos,
em forma romanceada, sobre o conflito
primeira, não deixa de se asseme-
ouvir o programa Começar de novo,
interior de um pied noir tanto quanto
lhar psicologicamente ao Meursault
editado pela Antena 1, onde “refugia-
sobre a guerra da Argélia para a qual
de L’Etranger e, naturalmente, num
do” rememoram a sua juventude em
o General de Gaulle procura encontrar
plano absolutamente físico, ao próprio
África e o drama do regresso à me-
uma solução política no momento em
escritor…
trópole. Para eles, África permanece
que Camus redigia o seu texto. Não é
um tema doloroso. Não creio que uma
pois surpreendente que encontremos
Mas é tempo de formular, já quase
tal emissão fosse possível em França,
neste livro e sobretudo no seu prefá-
só em jeito de conclusão, o problema
pelo menos no que toca à comunidade
cio ecos da obra jornalística reunidos
da africanidade de Albert Camus.
pied-noir. É ainda um tema quase tabu
em Actuelles. Não estamos já a lidar
Nós portugueses estamos em me-
cuja complexidade nos faz medir a
com o Camus humanista coroado pelo
lhor situação para entender o proble-
diferença entre as nossas perceções,
Prémio Nobel, mas sim com um homem
ma do que muitos outros ocidentais,
do lado francês e do lado português,
dilacerado em busca da sua humani-
mas talvez também em melhor posição
de uma problemática em aparência
dade. Daí decorre que a questão da
para nos enganarmos. Tivemos, como
idêntica.
identidade africana domine sem nunca
os franceses, os nossos retornados, e
Que avaliação teria Camus feito ao
contudo ser diretamente enunciada.
hoje ainda, depois de quase quatro
celebrar este aniversário? Afirmar-se-ia
Cabe-nos a nós torná-la explícita, e
décadas, é fácil adivinhar, nem sei
“africano” como o fez em janeiro de
há apenas três ordens – ou níveis – de
por que sinais, quem de entre nós é
1949? Teria, em 1962, optado pela
razões a distinguir. Contentar-me-ei,
originário das nossas antigas colónias.
nacionalidade argelina? Um Mia Cou-
pois que devo concluir, em apontá-las
Existe mesmo uma palavra para os
to é quase inconcebível no contexto
sem as desenvolver.
Primeiro nível: bastará ter nascido
Argelinos de gema têm dificuldade em
ce ciel gorgé de chaleur. Ce n’est pas
em África e nela ter passado a sua
se designar como africanos (e talvez
si facile de devenir ce qu’on est, de
juventude para nos podermos dizer
que o preconceito racial não seja es-
retrouver sa mesure profonde. Mais à
“africanos” como fazia Camus? Jac-
tranho a este sentimento).
regarder l’échine du Chenoua [mas-
ques Cormery, o herói de Le Premier
Num segundo nível de sentido, Ca-
sif surplombant Tipasa], mon cœur
Homme, nasceu numa noite de outo-
mus seria africano como esses pintores
se calmait d’une étrange certitude.
no de 1913, em Mondovi, distrito de
que, na esteira de Delacroix, dese-
J’apprenais à respirer, je m’intégrais
Bône, é francês pelo pai originário
nharam paisagens e populações da
et je m’accomplissais”.
da Bretanha e de ascendência ibérica
África do Norte. Quem terá dúvidas
Esta relação erótica (que já o tí-
pela mãe. Mas se cada um de nós é
de que Camus não seja inseparável
tulo Noces sugere) com o meio, e lar-
antes de mais filho da sua infância,
da terra que lhe inspirou os acentos
gamente antecipada por André Gide
Cormery-Camus é argelino por todas
mais líricos da literatura francesa do
(também ele fascinado pela Argélia na
as suas impressões de juventude.
seu tempo? Mas, na sua paixão pela
sua busca desesperada e frenética do
Argelino de Argel mais do que da
felicidade, não será Camus mais me-
deserto), nada tem de especificamente
Argélia, pois que nenhum pied-noir
diterrânico do que africano? Se tivesse
africano.
ou “Francês da Argélia” teria ima-
passado a sua juventude nas costas
ginado, mesmo enraizado desde há
do Algarve (como Manuel Teixeira
três gerações, dizer-se Africano,
Gomes), as condições de formação
Mas, ao dar este último passo,
exceto Camus cuja narrativa retraça
da sua sensibilidade estética teriam
entramos no domínio de todas as
as memórias de um pequeno colono
provavelmente sido as mesmas (com
“amálgamas” e de todas as confu-
proletário do bairro Belcourt de Argel.
a diferença de alguns graus de tem-
sões. Quantos avatares, com efeito,
Nem pela língua, nem pela religião,
peratura de água…) e teria também
não conheceu a noção de africanida-
nem pela etnia (digamos a “raça”), o
podido escrever linhas como estas
de desde a publicação (em 1933) de
jovem Camus se aparenta aos rapazes
extraídas de Noces: “Que d’heures
l’Histoire de la Civilisation Africaine
argelinos com os quais, aliás, quase
passées à écraser les absinthes, à
de Léo Frobenius ! E o conceito de
não tem relações. Como em L’Etranger
caresser les ruines, à tenter d’accorder
negritude veio agravar definitivamen-
e La Peste, os autóctones são mais fi-
ma respiration aux soupirs tumultueux
te o equívoco, pois que o poeta da
gurantes do que atores. Esta distância
du monde ! Enfoncé parmi les odeurs
Martinica Aimé Césaire, amigo de
perante eles dá razão, em certa medi-
sauvages et les concerts d’insectes
Senghor e nascido como Camus em
da, ao doutorando a que há pouco me
somnolents, j’ouvre les yeux et mon
1913 (mas, contrariamente a Camus,
referia. Mas, como já disse, mesmo os
cœur à la grandeur insoutenable de
falecido quase centenário) recusava-se
E forçoso é que avance para um
terceiro nível.
125
a reduzi-lo à cor da pele. Não estava
perigoso, incorreto antropologicamen-
Camus, face à insuportável arrogância
te tanto quanto politicamente.
dos intelectuais parisienses (de Sartre
e de Francis Jeanson em particular),
Perdoar-me-eis que não pronun-
disposto já a aparentar-se a todos os
cie mais nenhuma palavra, senão para
“negros”, todas as cores confundidas,
agradecer a vossa amável atenção.
do planeta? Mas na época em que se
declarava africano, Camus não tinha
ainda razão para se queixar dos in-
Bibliografia
sultos dos seus antigos camarades de
“Combat”…
GRENIER, J. (1981). Correspondance
Albert Camus. Paris: Gallimard.
Tendo esgotado o meu tempo de
palavra, não posso senão levantar ligeiramente o véu sobre a explicação
dada pelo próprio Camus na carta a
Jean Grenier. Explicação que exigiria infinitos comentários. Eis a passagem: “J’ai essayé (et j’y ai eu bien
du mérite, étant africain) d’ être un
homme de morale. Il le fallait sans
doute. Mais finalement, cela détruit
beaucoup de choses, en soi et autour
de soi (Camus, 1981: 152)”.
É assim ao “negro” de Arthur
Rimbaud e, mais atrás ainda, ao mito
do bom selvagem de Jean-Jacques, que
seria necessário regressar para dar
conta da africanidade de Albert Camus. Voltar a uma natureza livre, não
submetida ainda à lei moral. Regresso
CAMUS, A. (1992). L’Exil et le Royaume.
Folio : Gallimard.
CAMUS, A. (1994). Le Premier Homme
Paris : France Loisir.
Mário Mesquita
Professor da Escola Superior de Comunicação Social,
de Lisboa ([email protected]).
Albert Camus ou a experiência
do jornalismo crítico
Resumo
Abstract
Mário Mesquita fala-nos neste texto de
Mário Mesquita speaks of a utopian jour-
um jornalismo utópico: um jornalismo
nalism: a critical journalism, free of the
crítico, liberto dos interesses da política
interests of politics and money, inserted
e do dinheiro, inserido no campo da cul-
in the field of culture, able to undermine
tura, capaz de se pôr em causa e profun-
itself and deeply committed to democracy.
damente empenhado com a democracia.
A Journalism that Albert Camus took with
Um jornalismo que Albert Camus assumiu
no illusions, but turned out to consider
sem ilusões, mas que acabou por consi-
one of the most beautiful professions in
derar uma das mais belas profissões do
the world. Writer, even before journalist,
mundo. Escritor, antes mesmo de ser o
who did not reject to start the basic tasks
jornalista que não enjeitou iniciar-se pelas
of an intern in the newsroom of the Com-
tarefas básicas de estagiário na redação
bat, and intellectual: Camus was never a
do Combat, e inteletual: Camus nunca
man of conformism in literature, neither
foi um homem de conformismos nem na
in thought nor in journalism, fact that
literatura, nem no pensamento, nem no jor-
explains its isolation in the French intel-
nalismo, facto que lhe valeu o isolamento
lectuality. Well beyond the opinion maker
na intelectualidade francesa. Muito para
of our days, he was the intellectual with
além do opinionmaker dos nossos dias,
the moral courage of free and different
ele foi o intelectual com a coragem moral
opinion. Mario Mesquita’s words concer-
da opinião diferente e livre. Palavras de
ning the centenary of the birth of Albert
Mário Mesquita a propósito do centenário
Camus in the 20 years of the Degree in
do nascimento de Albert Camus e dos 20
Journalism in the University of Coimbra.
anos da Licenciatura em Jornalismo da
Universidade de Coimbra.
Palavras-Chave: Camus, jornalismo
Keywords: Camus, critical journalism,
crítico, Combat, intelectual.
Combat, intelectual.
127
Albert Camus não escolheu o jor-
estilo de escrita (literária e jornalís-
povo com três séculos de atraso, no
nalismo por vocação. À semelhança de
tica)” (Lahire, 2006: 275), sobretudo
seu próprio dizer – ficaram célebres
tantos outros, foram as necessidades
quando está em causa a linguagem
e integram hoje as obras completas
de subsistência a determinar que,
da informação condicionada, desde o
da Pléiade. Não foi apenas colunista
além de escritor, pensador e drama-
telégrafo ao digital, pelas tecnologias
ou colaborador da imprensa, como
turgo, fosse também jornalista. Por
que a moldam e pelos diversos públi-
tantos outros escritores célebres do
motivos relacionados com mercados
cos que visa atingir.
seu tempo, de Sartre a Mauriac. Tri-
de leitura, que variam de país para
Aos 25 anos, Albert Camus aceitou
lhou o percurso habitual de qualquer
país, os escritores acumulam, por via
o convite do seu amigo Pascal Pia para
aprendiz da profissão pelo caminho do
de regra, pelo menos durante algum
redator do Alger Républicain, jornal de
fait divers que substitui nas grandes
tempo, duas ou mais profissões.
esquerda, próximo da Frente Popular.
cidades o rumor das aldeias.
Não está em causa apenas a ques-
Não nutria ilusões sobre a profissão,
Durante alguns anos da sua vida,
tão do “segundo ofício”, conforme ex-
que considerava um “ofício dececio-
em Argel (1937- 40) e em Paris (1944-
plica o sociólogo Bernard Lahire, mas
nante”, embora capaz de proporcionar
47), retirou da imprensa o seu prin-
o problema “mais complexo” da “dupla
“uma sensação de liberdade” (Todd,
cipal meio de subsistência. Não usou
vida” dos escritores (Lahire, 2006:
1996: 243). Mas quem o convidou para
apenas os jornais como um lugar de
19), na medida em que essa outra ati-
o diário entendia que Camus possuía
expressão de intelectual público, em-
vidade profissional lhes condiciona o
a capacidade, o estilo e o “sentido de
penhado nas grandes causas públi-
quotidiano e lhe proporciona novas
encenação do bom repórter”.
cas do seu tempo, desde a questão
experiências e constrangimentos.
Desta forma, Camus começou a
argelina, à crítica dos diversos tota-
Entre os segundos ofícios mais fre-
sua aprendizagem – já com dois livros
litarismos. Aderiu por inteiro a essa
quentes encontram-se funções como
publicados – pelas tarefas básicas do
profissão que, de início, não o atraía.
as ligadas ao ensino, ao jornalismo ou
estagiário: os crimes, os acidentes, os
Porque vivemos num tempo em que o
à edição, mas, por exemplo, no nosso
necrológios e os processos judiciais,
jornalismo nas suas diferentes formas,
país – onde escasseiam as condições
todo esse mundo de ocorrências trans-
parece afastar-se cada vez mais do
de subsistência material – escritores,
formadas em notícias que, sendo con-
modelo exigente proposto e praticado
médicos, advogados ou publicitários,
sideradas tarefas menos nobres, ligam
por Camus, faz todo o sentido evocar
também se dedicaram à criação literá-
o jornal ao quotidiano das cidades
a sua intervenção jornalística.
ria. No caso do jornalismo colocam-se,
(Robert Park, Michael Schudson). As
O seu excecional biógrafo Olivier
por vezes, as questões relacionadas
suas reportagens sobre a pobreza e o
Todd conta que, no imediato pós-
com a gestão de possíveis “conflitos de
sofrimento da população árabe – um
Guerra, já consagrado como escritor
Propor o
“jornalismo
crítico” de Albert
Camus como
modelo para
os nossos dias
é seguramente
utópico
– com a publicação de O Estrangeiro
O jornal perdeu o brilho e a inspiração
– Camus entra, de novo a convite de
iniciais, mas com novas direções e
Pascal Pia, na redação de Combat,
menor sucesso Combat permaneceu
diário fundado por um grupo da re-
na paisagem jornalística francesa até
sistência à ocupação alemã, ainda na
1974. Bem tinha avisado Pascal Pia,
clandestinidade. Aceita o novo desafio
logo no início da experiência: “Va-
– nas palavras de Todd – “não só para
mos tentar fazer um jornal razoável,
desenvolver ideias, mas também por-
mas, como o mundo é absurdo, ele
que gosta desse meio” onde reencontra
vai falhar”.
“o trabalho de equipa e o jornalismo,
Apesar disso, o jornal foi, nos pri-
droga doce e dura” (Todd, 1996: 494).
meiros três anos, um êxito, com uma
O romancista cultiva as relações, não
tiragem média diária de 122 mil exem-
só com os colegas redactores e repór-
plares em 1947, quando o “popular”
teres, mas também com os revisores
France-Soir atingia 578 mil exempla-
e os tipógrafos, ainda ao tempo da
res e o Le Monde 174 mil (Bellanger
composição a chumbo, “espécie de
et al. 1958, 357). Todd lembra que
aristocracia operária, corporativista,
Camus já “era conhecido como es-
consciente das suas qualidades e dos
critor”, mas “com os seus artigos do
seus privilégios” (Todd, 1996: 495).
Combat transforma-se num jornalista
Era um jornal pluralista, difícil de
célebre. Enquanto romancista atingia
caracterizar pela diversidade dos seus
alguns milhares de leitores. Como edi-
colaboradores, na sua maior parte de
torialista influencia várias centenas
esquerda não-comunista, mas que se
de milhares de franceses”.
iriam dividir, antes do final dos anos
Entre 1944 e 1947, Camus acu-
40, com alguns deles, entre os quais
mula três profissões: escritor, jorna-
o diretor, Pascal Pia, a aproximarem-
lista e membro do comité de leitura
se do General De Gaulle e outros, à
da Gallimard. O interesse do seu re-
semelhança de Camus, à procura do
gresso às redações não resulta apenas
oximoro do socialismo em liberdade.
dessa notoriedade suplementar, que
Por diferentes motivos, Albert Camus
bem poderia ter dispensado, mas do
e Pascal Pia afastaram-se do projeto.
projeto de criar um novo jornalismo
129
saído do “espírito da Resistência”, em
que o público quer”. Mas para o autor
porque o democrata define-se, entre
nítida rotura com a imprensa da IIIª
de L’Étranger não era isso o que o
outros predicados, por admitir “que
República que considerava enfeudada
público queria, mas sim aquilo que lhe
um adversário pode ter razão” e, por-
aos interesses da política e do dinhei-
ensinavam a querer. E argumentava:
tanto, o “deixa exprimir-se e aceita
ro. No primeiro editorial do Combat,
“se vinte jornais, todos os dias do ano,
refletir acerca dos seus argumentos”.
enquanto órgão legal, escreve: “O
criam à sua volta o mesmo ambiente
Essa modéstia praticava-se dentro do
nosso desejo, tanto mais profundo
de mediocridade e de artifício, ele
próprio jornal, através da diversida-
quanto por vezes era mudo, consistia
(público) respirará nesse ambiente
de dos colaboradores, mas até nos
em libertar os jornais do dinheiro e de
e terá dificuldade em dispensá-lo”
textos do próprio Camus que enun-
lhes dar um tom e uma verdade que
(Lévi-Valensi (org.), 2002: 165).
ciava na primeira pessoa do plural
coloquem o público à altura daquilo
Dirigido por Pascal Pia e Albert
as atitudes comuns a toda a equipa
que nele há de melhor” (Lévi-Valensi
Camus, o diário Combat deixará uma
do jornal e na primeira pessoa do
(org.), 2002: 160).
marca forte na história da imprensa
singular os artigos que refletiam a
O mesmo Camus que, nos anos
francesa que se deve à prática daquilo
sua própria visão.
30, menosprezava o jornalismo, vai
a que Camus chamava o “jornalismo
Vários dos seus editoriais de
designá-lo, passada mais de uma
crítico”. Tal prática distinguia-se do
Combat ficaram célebres, desde o
década, como “uma das mais belas
jornalismo partidário ou comercial.
seu editorial angustiado aquando
profissões que conhece”1. Porquê?
A esse tipo de jornalismo exigia-se
da bomba atómica de Hiroshima, as
O melhor é reter a opinião do próprio
uma relação ao leitor. Explica Camus:
discordâncias sobre os muito incertos
escritor: “o jornalismo exige que os
“Em face das forças desordenadas da
rumos da depuração política france-
jornalistas se ponham em questão a
história, que têm nas informações o
sa, a oposição à tolerância das demo-
si próprios” (Malye, 2013 : 70). Mas,
seu eco, pode ser positivo anotar, dia
cracias vencedoras da Guerra com a
à luz desta exigência, a forma como
a dia, a reflexão de um espírito ou
ditadura de Espanha franquista, em
a imprensa se reconfigurava após a
as observações comuns a diversos
nome da realpolitik da Guerra Fria, o
libertação de Paris constituía para
espíritos. Mas isso não pode ser feito
silêncio de certos intelectuais perante
Camus uma desilusão. A cedência
sem escrúpulos, sem distância e sem
as atrocidades da URSS, justificado
às exigências comerciais era sempre
uma certa ideia do relativo (…)” (Lévi­
em nome das injustiças do capitalismo
justificada da mesma forma: “É isto o
‑Valensi (org.), 2002: 181).
ou a análise da vida de Roosevelt na
1 Em entrevista à revista Caliban, em 1951
(apud Malye, 2013 : 70).
Esta ideia está intimamente li-
perspetiva da luta contra a doença,
gada à relação que Camus estabe-
experiência similar à do próprio Ca-
lece entre “Democracia e Modéstia”
mus (com a tuberculose).
Em 1947, quando abandona a re-
seu meio, nem possuía um ambiente
exerce às cegas, nas ruas de Argel
dação de Combat, Albert Camus já
jornalístico semelhante ao de Combat.
por exemplo, e que um dia pode atin-
deixou demarcado o território que
A crença numa possível conciliação
gir a minha mãe ou a minha família.
conduziria, aquando da publicação
entre franceses e árabes da Argélia
Acredito na justiça, mas defenderei a
do ensaio L´Homme Revolté, à rotura
parecia tardia e utópica. No final dos
minha mãe antes da justiça”. Isolada
com Sartre e o grupo da revista Les
anos 50, acabaria por lhe concitar, em
do contexto, a última frase permitiu
Temps Modernes. Reformista, demo-
simultâneo, o ódio dos colonialistas da
toda a espécie de especulações filo-
crata da esquerda moderada, desi-
Organisation Armée Secrète 3 (OAS) e
sóficas ou pseudo-filosóficas (Froloff,
ludido com os socialistas da SFIO ,
da esquerda radical apoiante da FNL
2009: 613).
enredados nas malhas do colonialismo
e dos métodos de terrorismo a que o
Propor o “jornalismo crítico” de
argelino, Camus ficaria, ao longo da
movimento nacionalista recorreu. Os
Albert Camus como modelo para os
década de 50, mais e mais isolado na
louros do Prémio Nobel que lhe foi
nossos dias é seguramente utópico.
intelectualidade francesa. Ostracizado
outorgado em 1957, longe de contri-
Basta olhar à volta da nossa paisagem
pelas tendências marxistas, enquanto,
buírem para a sua tranquilidade em
mediática – e não só a portuguesa…
à direita, Raymond Aron e outros o
França ou na Argélia, vieram inten-
– para se verificar que será muito di-
tratavam com quase humilhante con-
sificar as polémicas à sua volta. Os
fícil que nele desempenhe papel de
descendência.
mecanismos da “espiral do silêncio”
relevo um intelectual que preza um
criaram um certo vazio à volta.
certo relativismo, acredita nas virtu-
2
Volta à imprensa, nas páginas do
4
magazine L’Express (1955-56), para
Numa conferência de imprensa
des da dúvida, defende a autonomia
defender, ao lado de François Mau-
em Estocolmo, Camus dirá: “Sempre
dos jornalistas e outros atores do de-
riac, uma solução moderada, quiçá
condenei o terror. Tenho de conde-
bate público (Guerin, 2009; 420). Ao
utópica, para a Argélia, que poderia
nar igualmente um terrorismo que se
tempo de Camus, como escreve Milan
ter sido executada pela figura excecional de Pierre Mendès-France. Mas a
revista de Servan-Schreiber e Françoise Giroud, moldada pelo modelo
norte-americano da Time, não era o
2 Section Française de l’Internationale Ouvrière, liderada por Guy Mollet. Transformou-se, na década de 70, no atual Partido
Socialista.
Kundera, “o jornalismo não era ain-
3 A Organisation Armée Secrète, também
conhecida pela sigla OAS, foi criada em
Madrid em 11 de fevereiro de 1961 e defendia a manutenção da presença francesa
na Argélia, a todo o custo e recorrendo a
todos os meios necessários, inclusivamente
o terrorismo.
da classificado, fora da cultura, nessa categoria a que se chama hoje ‘os
media’” (Kundera, 2003: 104-105).
A intervenção pública de Albert
Camus situava-se nos antípodas do ul-
4 Do livro de Noel-Neumann, La Espiral del
Silencio. Veja-se, em especial o capítulo
“Vanguardistas, hereges y disconformes: los
desafiantes de la opinión pública” (NoelleNeumann, 1995: 183-187).
trapassado conceito de opinionmaker
ou dos conselheiros e especialistas integrados em think tanks, ao serviço
131
de governos, partidos ou grupos de
FROLOFF, N. (2009). “Nobel, Prix”. In:
pressão. Para terminar esta palestra
Guérin, J. (org.), Dictionnaire Albert
em homenagem a um escritor e jorna-
Camus. Paris: Robert Lafont.
lista franco-argelino, afiguram-se ade-
GUÉRIN, J. (2009). “Intellectuel”. In:
quadas estas palavras de Tony Judt:
Guérin, J. (org.), Dictionnaire
“a coragem moral necessária para ter
Albert Camus. Paris: Robert Lafont,
uma opinião diferente e impô-la a lei-
p. 420
tores irritados ou ouvintes insensíveis
KUNDERA, M. (2003). “Le greffier de
continua em todo o lado a ser pouca”
l’ephémère”. In: Daniel, J., Obser­
(Judt, 2010: 155).
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Comunicación.
Recensões
133
João Miranda
Investigador do CEIS20. (joaosantosmiranda@gmail.
com)
Recensão Crítica
GOMES, Pedro Marques (2014). Saneamentos Políticos no Diário de Notícias: Verão Quente de 75. Lisboa: Alêtheia
Editores, Coleção Media e Jornalismo. (322 pp.)
O fim da censura prévia e o intenso
Rui Cádima (2001), numa perspetiva
Saramago no curso de acontecimen-
confronto político-partidário decor-
mais ampla do decurso, e, num âm-
tos e a ascendência do caso na vida
rentes do movimento político e mili-
bito mais focalizado, nos estudos de
política do país.
tar de 25 de abril e do subsequente
Pereira Caldas (1999), sobre a Rádio
Nesta análise, o autor recorre a
processo revolucionário influenciaram
Renascença; Mário Mesquita (1994),
três fontes primárias essenciais: ar-
determinantemente uma completa e
acerca do ‘Caso República’; João Fi-
tigos e recortes de imprensa, docu-
progressiva restruturação do panora-
gueira (2007), no papel do ‘Diário de
mentos de arquivo e publicações ofi-
ma mediático português (Mesquita,
Notícias’, ‘Expresso’ e ‘Jornal Novo’;
ciais, e um conjunto de 22 entrevistas.
1994). A par de um movimento de
e Helena Lima (2012), na sua análi-
Esta intersecção de fontes verifica-se
ocupação do controlo da imprensa
se à imprensa portuense – todos eles
essencial, no sentido em que os de-
pelos jornalistas e outros trabalha-
referenciados pelo autor (pp. 24-25).
poimentos recolhidos – obviamente
dores, enquanto instrumento de lutas
É neste sentido que aponta o presen-
centralizados nas figuras dos jorna-
de classes (Hallini e Mancini, 2010),
te estudo de Pedro Marques Gomes,
listas (do grupo de entrevistados, 20
este decurso é pautado pela importa-
o de traçar um retrato focalizado do
são jornalistas intervenientes no caso
ção das tensões políticas vividas nos
processo de saneamento de 22 jorna-
e seis pertencem ao grupo de subscri-
vários espectros da vida social do país
listas do ‘Diário de Notícias’ em agosto
tores do “Documento dos 30”) – ma-
para dentro das redações e estrutu-
de 1975, mas, mais do que isto, des-
nifestam a caraterística interessante
ras empresariais dos media (Cádima,
crever o percurso do jornal durante o
de, volvidos 40 anos, reproduzirem
2001), uma metamorfose da natureza
período que liga o dia 25 de abril ao
as tensões e conflitos intrínsecos à
narrativa da imprensa, no sentido de
momento exatamente posterior ao 25
época. De resto, como refere Pedro
um conteúdo marcadamente ideoló-
de novembro.
Marques Gomes, “há, todavia, muitas
gico e uma predominância do cará-
Resultado da sua dissertação de
incógnitas por esclarecer quanto às
ter dramatizado do discurso (Sousa,
mestrado, em ‘Saneamentos Políticos
acusações e críticas lançadas pelos
2003), e a proliferação de processos
no Diário de Notícias’, Pedro Mar-
diversos trabalhadores, em grande
de saneamento da mais diversa ordem
ques Gomes procura ainda encontrar
medida devido aos testemunhos con-
(Pinto, 2006).
respostas para as diferentes teses e
traditórios sobre muitos dos episódios
então vividos” (p. 84).
Na verdade, este processo – não
indagações contraditórias sobre os
obstante uma certa carência biblio-
motivos que originam os saneamen-
Estruturados num modelo explicita-
gráfica sobre a temática – é profun-
tos, a influência do PCP em todo o
mente diacrónico, os três capítulos fun-
damente retratado nas análises de
encadeamento e na linha editorial do
damentais a que o autor dedica a sua
Mário Mesquita (1994) e Francisco
‘Diário de Notícias’, o papel de José
análise central percorrem a cronologia
135
dos factos do processo através de nu-
problemáticas próprias da investiga-
por parte da direção (p. 90). A figura
merosos subcapítulos, que discernem
ção da narrativa e conteúdo noticioso.
central das crítica assume-se José
o tempo, as personagens e o espaço da
O cerne da obra, a análise do au-
Saramago, o qual é apontado pelos
ação. Conquanto o tronco central da
tor, encontra-se divido em três momen-
diferentes intervenientes como o ver-
narrativa se estabeleça nos aconteci-
tos chave: todo o trajeto relacionado
dadeiro diretor do jornal. Este docu-
mentos diretamente conectados com os
com a preparação e dinamização do
mento encontrará eco no Sindicato dos
processos de saneamento e as rotinas
“Documento dos 30”; o contexto do sa-
Jornalistas, cuja recém-eleita direção
do ‘Diário de Notícias’, denota-se uma
neamento dos 22 jornalistas, natureza
era preenchida por elementos do PS
preocupação relevante de pautar amiu-
do inquérito, respetivas consequências
e MRPP, e servirá de mote para um
dadamente a descrição, com elementos
e influência do caso no panorama po-
prolongado conflito entre comunistas,
mais gerais sobre o contexto mediático
lítico português; e o corolário do 25
e socialistas e sociais-democratas, na
do “Verão Quente”, onde se destaca a
de novembro, nova direção do ‘Diário
Assembleia Constituinte.
atenção conferida aos projetos falhados
de Notícias’, inversão dos papéis no
Nos plenários de redação e de
da “Comissão Ad-Hoc”, “Projeto Jesuí-
processo de saneamento e fundação
trabalhadores, pormenorizadamente
no” e “Lei da Censura Militar” e aos
do diário ‘Dia’.
retratados na obra, o clima de agi-
diferentes processos intrínsecos à or-
Resultado de um decurso intenso
tação é agudizado pela dinamização
ganização, discussão e dinamização da
de confrontos políticos, tensões cres-
da carta, constando a principal acu-
atividade do Sindicato dos Jornalistas.
centes e cisões no plano civil e militar,
sação aos contestatários no facto de
Assim, Pedro Marques Gomes co-
intensificados pelo desfecho do 11 de
esta ter sido tornado pública antes de
meça por estabelecer uma contextua-
março de 1975, Pedro Marques Go-
ser discutida internamente, violando
lização do panorama da comunicação
mes encontra no ‘Diário de Notícias’,
assim o estatuto editorial. Na verdade
social no pós-25 de abril, que, mais do
então já sob a direção Luís de Barros/
será este um dos motivos, a que se
que nos fornecer uma simples intro-
José Saramago, uma redação marca-
somarão pressões e falta de consen-
dução à obra, se reverte num profícuo
damente afeta ao PCP – assim como a
so, que conduzirá à desvinculação de
e aprofundado Estado da Arte, que
restante estrutura empresarial –, onde
alguns jornalistas inicialmente afetos
compreende diferentes vetores dos es-
as tensões aumentam gradualmente. É
ao documento.
tudos mediáticos – como as questões
neste contexto, que trinta jornalistas
Ainda que o autor dedique uma
socioeconómicas, expressões do direi-
redigem e apresentam um documento,
especial atenção a todo o inquérito
to e âmbito político, aspetos inerentes
onde contestam a orientação do jor-
que conduzirá ao saneamento dos 22
à ética e deontologia ou, até mesmo,
nal, evidenciando situações de “sec-
jornalistas (a que se juntarão outros
tarismo”, “descrédito” e “desprezo”
dois), verifica-se, nesta passagem, uma
indispensável abertura da análise a
serão elementos centrais na fundação
Passadas quatro décadas sobre o
um campo mais geral do âmbito social
de um novo diário, o ‘Dia’, sobre o qual
acontecimento, o contexto mediático
dos acontecimentos, onde inscrevem
a obra confere alguns elementos inte-
português conhece uma realidade
as manifestações civis de repúdio à di-
ressantes, como o estatuto editorial e a
completamente díspar da que nos é
reção do jornal, processos de conflito
composição de colaboradores. Parale-
apresentada em ‘Saneamentos Políticos
em outros meios de comunicação e as
lamente, o autor desvenda a posição do
no Diário de Notícias’. A estruturação
diferentes posições assumidas pelos
PCP sobre todo o processo, eliminando
da narrativa, a profusão dos depoi-
partidos políticos, condição essenci-
assim a possibilidade de confirmar a
mentos apresentados e a reprodução
al para a compreensão das disputas
tese da influência do partido na de-
de comunicados, recortes de imprensa
internas do ‘Diário de Notícias’ como
cisão de saneamento dos jornalistas.
e boletins oferecem uma notável leitura
elemento de um âmbito mais vasto do
Conquanto se verifique a impos-
complementar do contexto mediático
confronto político-partidário.
sibilidade de encontrar conclusões
do período revolucionário. Ao mesmo
Comparativamente mais sumaria-
assertivas para muitas das contradi-
tempo, apresenta-se como uma análise
do, o último capítulo da análise, pela
ções e questões de partida – como a
indispensável para a compreensão da
profusão de factos e cursos, seria me-
influência direta do PCP na linha edito-
história da comunicação social portu-
recedor de um maior aprofundamento.
rial do jornal ou o motivo que, de facto,
guesa e para a perceção da conjuntura
Não obstante, encontram-se inclusos
conduz ao saneamento –, os múltiplos
atual do media.
todos os elementos necessários para o
documentos e depoimentos recolhidos
entendimento da conjuntura mediática
permitem asseverar um grupo de conclu-
advinda do 25 de novembro e para
sões importantes para uma compreen-
a compreensão do desfecho do caso.
são desenvolvida do processo: a origem
Referências Bibliográficas:
Após um curto período de cessação
dos saneamentos reside oficialmente no
CÁDIMA, F. R. (2001), “Os Media na
de publicação, em dezembro de 75
facto de não terem submetido previa-
Revolução (1974-1976)”. In: BRI-
o ‘Diário de Notícias’ conhece uma
mente o documento à discussão interna;
TO, J.M. Brandão (2001), O País
nova direção, encabeçada por Vic-
a desarticulação e desacordo entre os
em Revolução. Lisboa: Editorial
tor Cunha Rego e Mário Mesquita,
subscritores do documento; o papel cen-
Notícias, pp. 321-358.
a que se acresce a suspensão de 14
tral de Saramago em todo o processo,
HALLIN, D. C., e MANCINI, P.(2010).
trabalhadores, entre os quais Luís de
a tentativa de controlo, mais ou menos
Sistemas de Media: Estudo Com­
Barros e José Saramago. Ao mesmo
direto, do jornal pelas diferentes forças
parativo. Três modelos de comu­
tempo, os jornalistas envolvidos no
políticas; e as repercussões que o caso
nicação e política. Lisboa: Livros
processo de saneamentos de agosto
assumiu no confronto político nacional.
Horizonte.
137
MESQUITA, M. (1994), “Os Meios de
Comunicação Social”. In: REIS,
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Democracia. Lisboa: Círculo dos
Leitores, pp. 507-544.
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SOUSA, P. D. (2003). A Dramatização
na Imprensa do PREC. Coimbra:
MinervaCoimbra.
Ana Teresa Peixinho
Professora da Faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra e membro do Centro de Estudos
Interdisciplinares do Século XX.
([email protected])
Recensão Crítica
LITS, M. (2008). Du Récit au Récit Médiatique. Bruxelles: DeBoeck. (235 pp.)
A narrativa é o modo discursivo
diferenciados: das reportagens tele-
e utilizadores. Dividida em cinco ca-
privilegiado de construção do mundo
visivas às notícias de imprensa; dos
pítulos, Du Récit au Récit Médiati­
e da experiência, sendo incontestá-
filmes às séries; da publicidade à
que começa por desenhar um quadro
vel a sua importância na edificação
crónica de rádio.
histórico do relevo ocupado pela nar-
das sociedades, na estruturação do
Estranhamente, os estudos narrati-
rativa na construção das sociedades
pensamento e na definição das iden-
vos parecem ser, sem dúvida, uma das
e do imaginário humanos: do mito à
tidades do mundo atual. Deste modo
áreas mais carenciadas em Portugal ao
lenda, do conto ao fait-divers, Marc
a define Paul Ricoeur, quando afirma
nível dos estudos sobre media e jorna-
Lits revisita um conjunto de géneros
que “existe entre a atividade de contar
lismo, embora sejam indiscutivelmente
narrativos para demonstrar como,
uma história e o caráter temporal da
uma das áreas mais relevantes, sem
mesmo em pleno século
experiência humana uma correlação
a qual não se conseguem perceber os
formas narrativas mais sofisticadas,
que não é puramente acidental, mas
fenómenos de produção e de receção
o mito, enquanto alicerce da nossa
apresenta uma forma de necessidade
dos produtos mediáticos. Na linha de
cosmovisão, se encontra reinventa-
transcultural.” (Ricoeur, 1987: 85).
Barthes, para quem o estudo da nar-
do. Ora, se na Antiguidade eram os
O estudo da narrativa mediática,
rativa deveria constituir um dos mais
mitos as grandes narrativas estrutu-
como tipo narrativo dominante, é uma
importantes inquéritos às sociedades
rantes da civilização, atualmente os
tarefa complexa que exige a mobiliza-
humanas (Barthes, 1968), entende-se
grandes produtores de narrativas são
ção de um conjunto variado de ferra-
que a compreensão do modo como as
os media. Responsáveis pelo modo
mentas e a articulação de múltiplas
narrativas foram evoluindo e se adap-
como organizamos o mundo, como
áreas do saber, quer porque a narrati-
taram aos formatos da sociedade de
geramos imagens do real, como articu-
va seja um fenómeno transversal, quer
massas é essencial para o estudo das
lamos e lemos a sua complexidade, as
porque os objetos mediáticos sejam
relações entre sociedade e indivíduo.
narrativas mediáticas – ficcionais ou
A obra que agora se apresenta, da-
factuais – produzem crenças sociais,
Na verdade, trata-se de uma área
tada já de 2008 e infelizmente ainda
ditam normas de conduta, disseminam
que, por um lado, incorpora contri-
não traduzida para português, conse-
estereótipos e fornecem-nos imagens
butos que vão desde a linguística aos
gue de um modo muito claro propor
dos outros. Podemos mesmo afirmar,
estudos de discurso, da sociologia às
uma reflexão alicerçada nessas três
em consonância com alguns autores,
ciências cognitivas ou aos estudos li-
vertentes: a da variedade dos objetos
que o mundo a que temos acesso se
terários, e, por outro, tem como objeto
em análise, a da necessária interdis-
constrói necessariamente de acordo
uma grande variedade de géneros ma-
ciplinaridade das abordagens e a das
com certos princípios narrativos, pois
terializados em materiais e suportes
complexas relações entre mensagens
que o nosso pensamento, as nossas
muito heterogéneos.
139
XXI ,
sob
estruturas mentais e o nosso conhe-
análise e compreensão devem assentar
de arte proporcionam a cada releitu-
cimento se processam por meio da
nas condições de produção e receção.
ra uma fruição estética crescente e
narrativa. Desde os folhetins televisi-
Ora, é precisamente essa análise que
sempre renovada. Daí a ênfase acen-
vos, aos reality-shows, passando pelas
se desenvolve nos terceiro e quarto
tuada sobre o papel desempenhado
rubricas desportivas da imprensa ou
capítulos da obra, dedicados, respe-
pelo recetor – leitor, espectador ou
pelos videojogos, aquilo que os media
tivamente, à análise da receção nar-
ouvinte - na experiência estética: “um
hoje nos oferecem é um conjunto de
rativa e à compreensão das principais
texto postula o próprio destinatário
narrativas, em que a ficção e a fac-
categorias que a constroem.
como condição indispensável não só
tualidade se hibridizam, matizando
Revisitando as principais teorias
da própria capacidade comunicativa
perigosamente as suas fronteiras.
de abordagem à narratividade, o autor
concreta, mas também da própria
Conclui o autor que o conhecimento
assume o distanciamento crítico em
potencialidade significativa”, afirma
do funcionamento destas narrativas é
relação às correntes estruturalistas,
o semiólogo italiano, reconhecendo
crucial para a desejável atitude crítica
para as quais o texto narrativo era um
a importância da leitura como fator
do recetor face às produções narrati-
objeto fechado, composto por funções
determinante da existência do texto.
vas mediáticas que consome.
que dependiam exclusivamente de si
Estava trilhado o caminho para a va-
próprias, para seguir a via da herme-
lorização da receção na compreensão
nêutica ricoeuriana.
dos objetos comunicativos. Sabe-se
Feito este enquadramento, nos
capítulos seguintes, o professor belga propõe-se estudar as narrativas
A pós-modernidade trouxe consi-
hoje o quanto os Estudos Narrativos,
mediáticas nas suas três dimensões
go, de facto, um conjunto de corren-
sobretudo nos últimos anos, têm in-
comunicativas: enquanto resultado
tes de pensamento que investiram na
sistido nas abordagens cognitivistas:
de modos de produção específicos;
relativização de todos os conceitos.
autores de referência como Jens Edder
enquanto objeto apropriado por ato-
Recorde-se que, no início da déca-
ou Fotis Jannidis têm dedicado parte
res sociais concretos em específicos
da de 60, Umberto Eco dá à estampa
das suas investigações precisamente
contextos de receção; e como produto
a sua afamada Obra Aberta, um dos
à valorização da vertente recetiva na
de um conjunto de procedimentos de
seus livros mais disruptivos, dedicado
compreensão do funcionamento de
que o conceito de narratividade nos
à teoria estética contemporânea em
algumas categorias narrativas. Já no
dá conta. Na senda de abordagens
que se concede um lugar de destaque
final da década de 80, Gerald Prince
mais recentes e refutando os limites
a produtos da cultura de massas, como
apresenta uma abordagem ao conceito
da teoria estruturalista, Marc Lits
a televisão, os cartoons e o cinema.
de narratividade que se compagina
perspetiva a narrativa mediática como
Eco propõe o conceito de abertura
precisamente com a valorização da
objeto sociodiscursivo mediador cuja
textual, no sentido em que as obras
instância de receção: “a narratividade
A compreensão
do modo como
se estruturam
e funcionam
as narrativas
dominantes da
contemporaneidade
é absolutamente
central, para
que se percebam
as relações
entre produtores
e recetores de
narrativas
de um texto depende da medida em
de que a abertura excessiva da receção
que o texto concretiza a expectativa
carece: a retórica e a estilística, quer
do recetor, representando totalidades
num texto literário, quer em narrativas
orientadas temporalmente (...) signifi-
informativas dos media, determinam
cativas em termos de um projeto hu-
a perceção do leitor. Parece-nos im-
mano e de um universo humanizado.”
portante que o autor tenha concedi-
(Prince, 1987: 160).
do especial relevância à personagem
Marc Lits, embora não refira a
num trabalho dedicado às narrativas
corrente cognitivista, que conheceu
mediáticas, uma vez que entendemos
desenvolvimentos sobretudos em anos
dever ser esta objeto central de re-
mais recentes, opta por uma análise
flexão, nomeadamente em termos das
complexa do trabalho do leitor e do
suas potencialidades transliterárias e
seu efeito no texto, a partir de várias
transmediáticas.
perspetivas: semiótica, sociológica e
Deste modo, a compreensão do
estética. Contudo, não deixa de nos
modo como se estruturam e funcio-
alertar para os riscos de um excessivo
nam as narrativas dominantes da
enfoque no potencial interpretativo da
contemporaneidade é absolutamen-
leitura, que pode conduzir a derivas
te central, para que se percebam as
populistas ou a ilusões emancipató-
relações entre produtores e recetores
rias. Assim, o capítulo seguinte da
de narrativas. No último capítulo da
obra é precisamente dedicado à cons-
obra, ao apresentar uma visão geral do
trução da narrativa e às suas cate-
debate sobre a relação entre os media
gorias essenciais, nomeadamente o
e os seus públicos, o autor assume
tempo e a personagem, nas quais o
uma posição matizada, consideran-
autor se concentra de modo mais cir-
do que, no período pós-moderno, a
cunstanciado. As opções do narrador,
influência dos media na sociedade é
em termos de perspetiva, de gestão
inegável: eles constroem as nossas
temporal e de figuração de persona-
identidades individuais e coletivas e
gens, são absolutamente decisivas,
estabelecem debates públicos, con-
segundo Lits, para a orientação ideo-
dição sine qua non do funcionamento
lógica do leitor, conferindo os limites
da democracia. O domínio absoluto da
141
Referências Bibliográficas:
narrativa hipertextual, essencialmente
media, abrindo inúmeras pistas para
construída numa lógica intertextual e
posteriores investigações. Cada capí-
multimedial, veio, na última década,
tulo termina com uma síntese e com
BARTHES, R. (1966). “Introduction à
transformar a nossa relação com a
um conjunto de sugestões bibliográficas
l’Analyse Structurale des Récits”.
realidade. Recorrendo aos prenún-
sobre cada subtema abordado. Tem a
In: Communications, N.º8, pp. 1-27.
cios de Guy Debord, sobre a civiliza-
grande vantagem de apresentar inúme-
PRINCE, G. (1987). Narratology. The Form
ção do espetáculo, Lits reflete sobre
ros exemplos concretos, inspirados nos
and Functioning of Narrative. Berlin
a transformação radical dos suportes
produtos mediáticos atuais, a partir dos
/ New York: Mouton Publishers.
tecnológicos e dos nossos quadros de
quais o autor ilustra as reflexões teó-
referência que arrastam necessaria-
ricas, suportadas num vasto conjunto
mente uma recomposição dos modos
de leituras assinaladas na bibliografia
de organização narrativa e dos papéis
final.
dos agentes no sistema mediático.
Esta obra parece-nos, assim, es-
Consciente do papel disruptivo dos
pecialmente importante para estudan-
novos media – sobretudo a WEB –
tes de Comunicação, embora também
Marc Lits sublinha a urgente alteração
tenha todas as qualidades científicas
dos modelos de análise, propondo a
para reunir o interesse de investigado-
criação de uma “hipernarratologia
res de ciências sociais e humanas que
mediática” que permita analisar tais
necessitem de entender o funcionamen-
objetos complexos, como as histórias
to das narrativas mediáticas no nos-
dos media de hoje, problematizando o
so quotidiano. Finalmente, julgamos
sensacionalismo e o enfraquecimento
que seria importante a sua tradução
de fronteiras entre o real e o virtual.
para língua portuguesa, dada a quase
Escrito numa linguagem muito cla-
inexistência de estudos do género no
ra e estruturado de um modo legível,
este livro tem sobretudo uma importante componente didática: organizado,
como vimos, em cinco capítulos, oferece ao leitor um estado da arte muito
completo sobre a aplicação dos estudos
narrativos ao campo de estudos dos
panorama editorial nacional.
RICOEUR, P. (1987). Temps et Récit.
Paris: Seuil.
António Sousa Ribeiro
Professor da Faculdade de Letras da Universidade
de Coimbra/CES ([email protected])
Recensão Crítica
Helen Small, The Value of the Humanities, Oxford, Oxford University Press, 2013, 204 p.
“Mas que privilégio”, tive que ou-
pressionadas por lógicas mercanti-
à mesma irrelevância que lhes é as-
vir uma vez da boca de um colega da
listas e sujeitas a critérios de ava-
sacada pelas lógicas mercantilistas.
área da Engenharia, “que privilégio
liação utilitaristas do ponto de vista
Se é verdade, assim, como já tenho
ser pago para ler romances!”. Tratan-
dos quais o que é específico do saber
escrito, que o futuro das Humanida-
do-se de uma frase vinda de alguém
humanístico tende a ser visto como um
des não pode estar simplesmente no
com uma posição de destaque no meio
luxo inútil ou um desperdício a evitar.
seu passado, livros como o de Helen
universitário e, tenho que admitir,
Quase vinte anos depois da publica-
Small, professora de Estudos Ingleses
com um nível de inteligência acima
ção d’A Universidade em Ruínas, de
da Universidade de Oxford, represen-
da média, ela é bem representativa das
Bill Readings, o diagnóstico sombrio
tam contributos importantes para a
representações erradas que continuam
traçado nesta obra de referência não
reconceptualização necessária a um
a ser muito correntes mesmo nesse
tem cessado de confirmar-se.
reposicionamento produtivo das Hu-
meio relativamente à relevância das
No espaço dessas ruínas, a reflexão
manidades no diálogo dos saberes
Humanidades. Na verdade, a discus-
sobre o futuro das Humanidades tem
contemporâneos. É uma obra escrita
são sobre o valor das Humanidades
de começar pela questão elementar
a partir de um contexto específico, o
não é de hoje, nem mesmo de ontem,
de saber se as humanidades têm um
britânico, cujos problemas e desafios
mas tem de ser equacionada nos nos-
futuro. É forçoso reconhecer que, no
não são necessariamente idênticos
sos dias em condições que talvez não
quadro presente, muito do que tem
aos de outros contextos, desde logo o
tenham nunca sido tão desfavoráveis.
sido o discurso tradicional das Hu-
português. No entanto, não só esses
Não se trata, em primeira linha, da
manidades se encontra inteiramente
outros contextos estão crescentemente
tão decantada “crise” – na verdade,
desarmado para responder a essa
sujeitos a um forte mimetismo relati-
a condição da crise é, pode dizer-se,
questão. O apego a uma noção enfá-
vamente ao universo anglo-saxónico,
consubstancial a toda a história das
tica de cultura na linha das “ciências
desde logo no tocante a feiticismos
disciplinas humanísticas e, na medi-
do espírito” novecentistas ou a defe-
bibliométricos como padrão de ava-
da em que aponta para a capacidade
sa correlativa de uma legitimidade e
liação, como as questões abordadas
auto-reflexiva dessas disciplinas, ela
função “naturais” das humanidades
são de inteira relevância, já que en-
constitui mesmo um factor de evidente
não podem senão conduzir a estéreis
troncam em profundidade, a partir
relevância para a capacidade de pro-
posições defensivas, a uma estraté-
de uma perspetiva amplamente in-
dução de contemporaneidade por parte
gia de hibernação, bem presente em
formada, na discussão atual sobre o
das Humanidades. Trata-se, sim, mui-
contributos relevantes como o de Ge-
valor das Humanidades, entendido
to mais, da transformação estrutural
orge Steiner, que condena, em última
explicitamente como um bem público.
das universidades, crescentemente
análise, o espaço das Humanidades
Os cinco capítulos que (para além
143
de uma introdução e uma conclusão)
ao longo dos vários capítulos, que, a
constituem a obra estão estruturados
propósito do equacionamento do lugar
na forma de um balanço crítico dessa
distintivo das Humanidades, começam
discussão, através de um percurso por
por uma revisitação da controvérsia,
alguns dos paradigmas argumentati-
sucessivamente reeditada, das “duas
vos correntes em defesa das Humani-
culturas”, prosseguindo depois com
dades. Os títulos são representativos:
uma reflexão sobre “inutilidade” das
“1. Distinction from Other Discipli-
Humanidades e a forma como as pres-
nes”; 2. Use and Usefulness; 3. Socra-
sões utilitaristas se abatem em parti-
tes Dissatisfied: The Argument for a
cular sobre o ensino e a investigação
Contribution to Happiness: 4. ‘Demo-
nesse âmbito – uma reflexão que, com
cracy Needs Us’: The Gadfly Argument
referência particular à influência de
for the Humanities; 5. For Its Own
Matthew Arnold no contexto britânico,
Sake”. A substancial bibliografia e o
não deixa ser particularmente crítica
índice remissivo final dão testemunho
da cegueira de algumas posições an-
da amplitude das referências, mesmo
ti-intrumentalistas. Capítulos subse-
que limitadas ao universo de língua
quentes abordam a contribuição das
inglesa.
Humanidades para a felicidade dos
Talvez o maior mérito desta obra
indivíduos e das comunidades – sendo
seja o de recusar liminarmente a es-
que essa contribuição, como sublinha
terilidade da posição defensiva a que
a autora, consiste primacialmente na
me referi no início, ao mesmo tempo
reflexão crítica sobre “em que é que
que lança um olhar matizado sobre
consiste a felicidade, como podemos
qualquer tipo de pretensões de cen-
esperar atingi-la da melhor maneira,
tralidade hegemónica. Evidentemente
qual pode ser a relação entre a feli-
que aquela recusa não exclui aquilo
cidade psicológica individual e o bem
a que a autora chama um “gesto pro-
-estar da sociedade, e de que forma a
tetor” (p. 29) relativamente à especi-
educação pode alterar tanto a quali-
ficidade dos modos de construção do
dade como o espectro de prazeres dis-
conhecimento no âmbito das Humani-
poníveis para o indivíduo” (p. 175). A
dades. Esse gesto está bem presente
obra centra-se depois no debate sobre
Talvez o maior
mérito desta obra
seja o de recusar
liminarmente a
esterilidade da
posição defensiva
ao mesmo tempo
que lança um
olhar matizado
sobre qualquer
tipo de pretensões
de centralidade
hegemónica
a relação entre as Humanidades e a
relativamente aos vários aspetos que
dimensão que não só não me parece
democracia, no âmbito do qual assume
aborda contribuem para fazer desta
suficientemente sublinhada como é
especial relevo uma abordagem crítica
obra uma referência importante.
mesmo objeto de algum ceticismo.
do contributo de Martha Nussbaum; e,
Qualquer discussão produtiva
Mas isso não obsta a que The Value
finalmente, procede a uma ponderação
sobre a questão das Humanidades e,
of the Humanities fique doravante a
da medida em que poderá defender-se
concomitantemente, sobre o valor das
constituir uma referência importante
que as Humanidades e a investigação
Humanidades, tem que começar por
num campo em que a discussão, seja
no âmbito das Humanidades têm um
reconhecer que não é possível abordar
em forma de livro, seja no espaço das
valor em si, isto é, se autojustificam
a questão a partir de perspetivas sim-
revistas, prossegue com assinalável
pelo modo como “alguns objetos e
plesmente disciplinares. Não se trata
vitalidade.
atividades podem ter valor como um
de definir “áreas de especialidade”,
fim em si próprios” (p. 176) – uma
mas sim de ter consciência do modo
ponderação claramente na linha da
específico de produção de conheci-
formulação kantiana da autonomia da
mento próprio das Humanidades, um
esfera estética.
modelo que, por definição não pode ser
Em torno das questões que suma-
substituído por outra forma de abor-
riamente inventariei, os diferentes
dagem ou ser subsumido nela. Um dos
capítulos organizam-se como revisão
elementos mais definidores do espaço
crítica de posições centrais represen-
das Humanidades é, sem dúvida, o seu
tadas por alguns dos autores e das
desiderato essencial de antropologiza-
autoras de referência para a discussão
ção do saber ou, dito de outro modo,
mais recente. A obra de Small, e não
a sua resistência à separação sujeito/
é este o menor dos seus méritos, vale,
objeto característica da evolução da
assim, como balanço crítico e como
ciência moderna. Ao centrar-se em
perspectivação geral do estado atual
objetos como a linguagem, a cultura,
dessa discussão. A forma ponderada
a memória, as identidades, as Huma-
e equilibrada como, sem prejuízo da
nidades percorrem transversalmente
firmeza da opinião crítica, vão sendo
todas as esferas da experiência social
debatidos os diferentes contributos
e, enquanto tal, estabelecem-se como
relevantes e o modo como Small vai
um saber por definição fronteiriço. Na
privilegiando o modo interrogativo
abordagem de Helen Small, esta é uma
145
Uma galeria de imagem
Lugares da Personagem
Por António Barros. Autor convidado
A coleção presente desenhada com oito peças inéditas, parte integrante desta Galeria [Lugares da Personagem,
Fotografia, 2014-2015: #1 - Madrid_Teatro Beatriz; #2 - Coimbra_Mondego; #3 - Coimbra_Mondego; #4 - Cerveira_Vulto
Limite; #5 - Sevilha_Metropol Parasol - J. Mayer H.; #6 - Coimbra_agenda setting; #7 - Guimarães_Coisas Reais - CAAA;
#8 - Coimbra_Retrato de Albert Camus] surge nesta publicação formulando visitações diversas dirigidas a diferentes
artigos editados na constelação da revista Mediapolis.
Sem pretenderem resultar ilustrativas, as imagens - essas dos lugares cénicos a habitar, vagas até ao devir da
personagem residente - desafiam o leitor a uma contemplação não resignada, mas uma outra: a que convoque, nesta
convulsiva interação, novas razões semânticas.
A construção plástica e textual do trabalho de António Barros conjuga - numa mesma condição de coisas reais_pessoas reais -, uma
cumplicidade constante entre a Imagem e a Palavra.
Obra de grande compromisso Gráfico, trabalha desde os anos 70 uma identidade FLUXUS (gerada a partir de George Maciunas,
autor propulsor de uma consciência fundadora da condição de Obra Gráfica, identitária, afirmada num desígnio conjugado com as
múltiplas Artes e seus enunciadores - Joseph Beuys; Wolf Vostell).
António Barros trabalhou com Vostell na Alemanha, e em 1988 vem a inscrever o simpósio Design Gráfico 88, com Abraham Moles.
Obras premiadas, como as peças “Escravos”, “Ex_Patriar”, e 1.º Prémio do Concurso Nacional Cartaz para a Bienal Internacional
de Arte Cerveira.
Inscreve a sua escrita - numa conjugação literária e plástica parte integrante do Visualismo -, a POEX - Poesia Experimental Portuguesa.
No domínio do Design de Comunicação estudou no IADE - Creative University, Lisboa, e na Facultat de Belles Arts, Universitat
de Barcelona - Curso Master en Diseño y Producción Gráfica dirigido por Eric Tormo i Ballester, pós-graduação em Direito de Autor
e Direitos Conexos e Curso de Direito de Imagem, direção de Jorge Calado, Fundação das Descobertas - Centro Cultural de Belém Ministério da Cultura, Lisboa, e foi professor convidado da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Curso de Pós-graduação
em Museologia. Teve atividade docente no Instituto Técnico, Artístico e Profissional de Coimbra e na Universidade de Coimbra,
também no Design de Comunicação.
É consultor do Arquivo Digital da Literatura Experimental Portuguesa, Universidade Fernando Pessoa. Direção de Arte e Imagem
em diversos programas na Universidade de Coimbra.
É autor da Identidade Visual de múltiplas estruturas como: Imprensa da Universidade de Coimbra; Teatro Académico de Gil Vicente;
Centro de Dramaturgia Contemporânea; RUC_Rádio Universidade de Coimbra; UCV_Televisão WEB da UC; UC_Digitalis.
Direção Artística de Rua Larga, Revista da Reitoria da Universidade de Coimbra.
A sua Obra inscreve os arquivos internacionais : Walden Zero - Transdisciplinary Art and Education Project, Locarno, Suiça; Archivio
Guglielmo Achille Cavellini, Brescia, Itália, e as coleções da Fundação de Serralves - Museu de Arte Contemporânea, Porto; Museo
Vostell Malpartida, Espanha; Fundação Bienal Cerveira e, entre outras, a Universidade do México.
http://barrosantonio.wordpress.com/ http://po-ex.net/
147
Créditos
Apoios
P. 41
Figura 1: Eusébio.
TALKING SPORT/Photoshot/Fotobanco
P. 42
Figura 2: Cristiano Ronaldo.
PA/Fotobanco
P. 43
Figura 3: Cristiano Ronaldo.
ZumaPress/Fotobanco
P. 46
Figura 4: José Mourinho.
Getty Images/AFP:157272995 FBL-ESP-LIGAREALMADRID-ATLETICO.
Foto de Pierre-Philippe Marcou
P. 51
Figura 6: Final do Mundial de Futebol
(1950), entre Brasil e Uruguai:
http://gaucha.clicrbs.com.br/rs/noticia-aberta/ghiggia%AD-conta-como-calou-o-maracana-na-copa-domundo-de-1950-54120.html
P. 109
Figura 1: Planta da parte da cidade
baixa: Museu da Cidade (de Lisboa)
Museu da Cidade, Reservas, MC.GRA.992
P. 111
Figura 2: Benoliel (“A Esquina”):
Ilustração Portuguesa (1908).
UID/HIS/00460/2013

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