mediapolis #1 - TriploV Blog
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mediapolis #1 - TriploV Blog
revista de comunicação, jornalismo e espaço público 1 mediapolis Periodicidade Semestral tema os media e a construção de personagens Imprensa da Universidade de Coimbra © Lugares da Personagem, António Barros, 2014-2015, #1 - Madrid_Teatro Beatriz Coimbra University Press 1 revista de comunicação, jornalismo e espaço público 1 Periodicidade Semestral Imprensa da Universidade de Coimbra Coimbra University Press Ficha técnica Direção Conselho Científico e Consultivo Carlos Camponez Edição Imprensa da Universidade de Coimbra Administração Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX da Universidade de Coimbra – CEIS20, Rua Filipe Simões, nº 33, 3000-186, Coimbra, Portugal, Email: [email protected], Telf.: +351 239 708 870 Fax: +351 239 708 871. Direção de Imagem António Barros Design Carlos Costa Impressão Adriano Duarte Rodrigues Direção executiva da presente edição Universidade Nova de Lisboa Ana Teresa Peixinho Carlos Camponez João Miranda Rita Basílio de Simões Sílvio Santos. Universidade Nova de Lisboa Alberto Arons de Carvalho Carmen Echazarreta Universidade de Girona (Espanha) Felisbela Lopes Universidade do Minho Gilles Gauthier Redação Universidade de Laval (Canadá) Ana Teresa Peixinho Carlos Camponez Clara de Almeida Santos Francisco Pinheiro Inês Godinho Isabel Nobre Vargues João Figueira Luís Augusto Costa Dias Rita Basílio de Simões Rosa Sobreira Sílvio Santos Helena Sousa Depósito Legal Universidade do Minho Hugo Aznar Universidade Cardenal Herrera (Espanha) Isabel Ferin Universidade de Coimbra João Canavilhas Universidade da Beira Interior João de Almeida Santos Universidade Lusófona João Pissarra Esteves Universidade Nova de Lisboa Uma Galeria de Imagem Joaquim Fidalgo António Barros Universidade do Minho ISSN 2183-5918 Manuel Pinto Universidade do Minho João Carlos Correia ISSN Digital 0000-0000 Universidade da Beira Interior Marc Lits Universidade Católica de Louvain-la-Neuve (Bélgica) DOI http://dx.doi.org/10.14195/0000-0000 Normas da revista e princípios éticos: http://www. Marcos Dantas Universidade Federal do Rio de Janeiro (Brasil) Maria João Silveirinha Universidade de Coimbra Mário Mesquita Escola Superior de Comunicação Social de Lisboa Muniz Sodré Universidade Federal do Rio de Janeiro (Brasil) Simon Cottle Universidade de Cardiff (Reino Unido) Teresa Ruão Mediapolis – Revista de Comunicação, Universidade do Minho Jornalismo e Espaço Público N.º 1 – 1.º SEMESTRE DE 2015 Tito Cardoso e Cunha Universidade da Beira Interior. Sumário Apresentação Carlos Camponez | 5 Os Media e a Construção de Personagens Vária Camus, o Africano Estatutos | 7 As investigações sobre a narrativa Cristina Robalo Cordeiro | 119 mediática e o futuro da imprensa Albert Camus ou a experiência INTRODUÇÃO Marc Lits | 15 do jornalismo crítico Carlos Camponez e The Special One. Fenomenologia Ana Teresa Peixinho | 9 do Heróis Desportivo mediapolis 1 Mário Mesquita | 127 Carlos Reis | 31 Recensões Ascensão e Queda GOMES, Pedro Marques (2014). das Celebridades Desportivas Saneamentos Políticos no Diário Rui Machado Gomes | 55 e Notícias: Verão Quente de 75 João Miranda | 135 Reflexões Sobre Comunicação LITS, Marc (2008). e Desporto: Sobre Jornalismo Du Récit au Récit Médiatique e Cultura Digital Ana Teresa Peixinho | 139 Raymond Boyle | 65 SMALL, Helen. The Value of the Humanities A Agenda Setting dos António Sousa Ribeiro | 143 Media Sociais no Desporto Uma Galeria de imagem Thomas Horky e Barbara Stelzner | 79 Lugares da Personagem A Cidade e as suas Personagens António Barros | 146 em Fim de Século: Quadro Créditos | 148 de emergência de uma cultura urbana de massas em Portugal Ana Teresa Peixinho e Luís Costa Dias | 101 3 Carlos Camponez Diretor da mediapolis, professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e Coordenador do Grupo de Investigação em Comunicação, Jornalismo e Espaço Público do CEIS20 ([email protected]) Apresentação A Mediapolis – Revista de Comunica cenciatura, mestrado e doutoramento, assumem o projeto como uma atitude ção, Jornalismo e Espaço Público é bem como na perspetiva humanista irreverente face ao contexto circun- uma revista do Grupo de Investigação que desde o início os caracterizaram. dante e fazem-no como um desafio de Comunicação, Jornalismo e Es- Este processo culminou com a criação, que resulta da interpretação acerca paço Público (GICJEP), do Centro há cerca de dois anos, do GICJEP, das suas responsabilidades sociais, de Estudos Interdisciplinares do Sé- e o estabelecimento de projetos de do seu interesse pela cultura, pelo culo XX (CEIS20), da Universidade investigação transversais quer entre saber, pelo jornalismo e pela cida- de Coimbra. Com a presente edição, investigadores da Faculdade de Letras dania, muito para além das lógicas pretendemos dar relevo público a um quer do CEIS20. sistémicas que, cada vez mais, pare- projeto de investigação que reúne um cem dominar estas áreas de estudos, grupo de investigadores de várias Assumimos o risco da ambição em quer pela Administração da Ciência áreas disciplinares, mas que encon- tempos difíceis, como são estes que quer, por vezes, pelos próprios in- tram nas Ciências da Comunicação o nos caracterizam. Tempos de crise vestigadores. seu pólo comum de estudo e pesquisa. — no sentido etimológico de separar, escolher, julgar e decidir — com Na consciência de que a irreverência O projeto assume como principal preo- duros desafios para a investigação não é compatível com a sobranceria, cupação a investigação da comunica- em Portugal; mas também tempos de a Mediapolis é um projeto aberto a ção, do jornalismo e do espaço público, crise no panorama geral dos estudos todos os espíritos que nutrem um in- não como áreas disciplinares e de saber da Comunicação, do Jornalismo e do teresse pelas temáticas abordadas e estanques, mas como problemáticas Espaço Público, marcados por uma que pretendam dar expressão a esse socialmente relevantes e relacionadas, forte incerteza, inerente às mudan- interesse de uma forma crítica, recor- numa perspetiva científica e crítica. ças sociais, socioprofissionais e tec- rendo aos instrumentos metodológicos, nológicas, com consequências no que científicos e conceptuais considerados A Mediapolis é, neste contexto, o co- se refere ao pensamento social e da capazes de contribuir para o avanço rolário lógico do desenvolvimento e comunicação, exigindo uma atenção das Ciências da Comunicação. da consolidação dos estudos na área e argúcia redobradas de quem tem a da comunicação e do jornalismo da responsabilidade social de perceber, Cremos, por isso, que a realização Faculdade de Letras da Universida- conceptualizar e prever estes fenó- plena dos objetivos da Mediapolis de de Coimbra, iniciados há cerca de menos do ponto de vista científico. passa por uma participação alargada 20 anos, que tiveram a sua expressão Neste contexto, o grupo de investiga- de colaboradores, sem outras fron- inicial nos projetos formativos de li- dores que deram origem à Mediapolis teiras que não resultem da própria 5 especificidade editorial da revista. Por isso, gostaríamos que este primeiro número fosse também um convite à participação de todos, pela sua leitura, crítica, divulgação e partilha das suas investigações e do seu saber. Agradecemos de forma particular a todos aqueles que aceitaram o nosso repto para participarem nesta primeira edição e nos órgãos que dão corpo à revista, com a promessa de não querermos gorar as expectativas, que são de todos nós, e na certeza de buscarmos © Lugares da Personagem, António Barros, 2014-2015, #2 - Coimbra_Mondego sempre melhorar. Estatutos mediapolis – Revista de Comunica sível a um público aberto e interes- e a internacionalização de investiga- ção, Jornalismo e Espaço Público é a sado pelas questões da comunicação dores e da investigação realizada em publicação científica do Grupo de In- e pela promoção da cultura científica língua portuguesa; a divulgação de vestigação em Comunicação, Jornalis- na área das Ciências da Comunicação, investigações e textos científicos de mo e Espaço Público, do Centro de Es- do jornalismo e dos media. referência internacional no espaço tudos Interdisciplinares do Século XX, lusófono. e pretende ocupar um espaço de re- A Revista privilegiará o suporte digi- ferência no espaço lusófono e latino‑ tal e afirmar-se-á no espaço internaci- Para além da direção, a mediapolis -americano, na publicação de artigos onal através da publicação de números é composta pelos seguintes órgãos e investigações, na área dos media e especiais em língua inglesa, com os internos: do jornalismo, dando particular ênfase melhores artigos publicados e projetos aos aspetos relacionados com as suas realizados. Direção executiva, com a responsa- incidências no espaço público, nos sistemas políticos e na democracia. bilidade de coordenar todo o trabalho O projeto editorial assume o caráter editorial da Revista, tendo em conta interdisciplinar do próprio centro de os contributos dos conselhos consul- mediapolis – Revista de Comunica investigação em que se integra, pro- tivo e científico. A direção executiva ção, Jornalismo e Espaço Público é um curando analisar o campo dos media será definida em função do tema e dos pólos privilegiados de divulgação e do jornalismo, a partir de várias da equipa coordenadora da Revista. e internacionalização do trabalho da ferramentas teóricas e metodológicas investigação do Grupo de Investigação das Ciências Sociais e Humanas e de Redação, constituída pelos investiga- em Comunicação, Jornalismo e Es- outras áreas científicas, que possam dores responsáveis pela organização e paço Público (GICJEP), devendo dar contribuir para abertura de novas publicação da Revista, de preferência, particular atenção ao desenvolvimento perspetivas e para o aprofundar do abarcando todos os investigadores do de novas linhas de investigação e à saber no domínio das Ciências da grupo, tendo como funções: promoção do trabalho de novos in- Comunicação. vestigadores. - Assegurar a adequação da linha É um dos objetivos da mediapolis o editorial e política da publicação. Não cedendo nas questões científicas estabelecimento de parcerias e a cria- - Participar na definição e delimita- essenciais, a mediapolis – Revista ção de projetos com outras publicações ção da temática de cada número de Comunicação, Jornalismo e Espaço e centros de investigação congéneres, da Revista, acompanhamento da Público pretende ser um projeto aces- visando, simultaneamente: a promoção edição e dos call for papers. 7 - Fazer a gestão das propostas dos – Sugerir temáticas de tratamento artigos enviados para a publica- tendo em conta as novas linhas ção e nomeação dos revisores para de desenvolvimento de estudos nas elaboração de parecer. áreas de investigação do Grupo de a) Comunicação, Jornalismo e Espa- b)Varia; ço Público. c) Conselho Científico, constituído pelos membros doutorados do Grupo – Sugerir investigadores que possam de Comunicação, Jornalismo e Espa- colaborar ou integrar a Revista ço Público, bem como por investiga- científica. dores exteriores, reconhecidos nas diferentes áreas de especialização. Periodicidade: A mediapolis tem O Conselho Científico terá por funções: uma periodicidade semestral, de acordo com o seguinte modelo: – Garantir a qualidade, rigor e serie dade da Revista em termos científicos. 1. Uma edição monotemática dedicada ao tema do congresso anual – Avaliar as propostas e os artigos do GICJEP, realizada a partir das que chegam à Revista, enviados comunicações dos conferencistas pela Redação. e de um processo de refree sobre as comunicações apresentadas no Conselho Consultivo, constituído âmbito das respostas ao call for pelos membros doutorados do Grupo papers. de Comunicação, Jornalismo e Espaço Público, bem como por investigadores 2. Uma edição pluritemática pro- exteriores, que se destaquem pelos posta pelo órgãos científicos da contributos no seu campo de estudo. revista, dando expressão quer a O Conselho Consultivo terá por funções: linhas de investigações em curso no GICJEP quer à atualidade dos – Avaliar anualmente a Revista e debates científicos sobre a Comu- sugerir linhas estratégicas de de- nicação, o Jornalismo e o Espaço senvolvimento futuro. Público. Esta edição organizar-se-á da seguinte forma: Tema Principal; Recensões críticas. INTRODUÇÃO mediapolis 1 A escolha do tema deste primeiro nú- dade, através das histórias escritas e a notícia, nem acusá-la de ser fictícia. mero da mediapolis releva fundamen- construídas pelos media. Melhor, alerta-nos para o facto de a notí- talmente de uma opção estratégica que cia, como todos os documentos públicos, se prende com o desenvolvimento de Na verdade, estes são hoje uma das ser uma realidade construída possuidora uma linha de investigação, no interior grandes fábricas de mitos contempo- da sua própria validade interna. do Grupo Jornalismo, Comunicação e râneos, como bem assinalou Roland Espaço Público, dedicada aos Estudos Barthes em alguns dos seus artigos Contudo, com o evoluir dos tempos Narrativos Mediáticos. de Mitologias. Mesmo a narrativa de e o domínio das novas tecnologias, No posfácio a Mitologias, Roland Bar- imprensa, responsável por mediar a nomeadamente a web e a sua dinâmi- thes sublinha que o mito é uma fala, no realidade de uma maneira objetivada, ca hipertextual, assiste-se ao apareci- sentido saussureano do termo: o mito é não é um lugar de pura e simples resti- mento de novos produtos mediáticos, um sistema de significação secundário tuição de factos. Não são recentes já as resultante da contaminação de supor- que se alimenta da linguagem, dela se teorias da comunicação que explicitam tes e da miscigenação de linguagens. apropriando para criar novos sentidos. a construção a que o discurso mediá- Por isso, como é circunstanciadamente Se, na Antiguidade clássica, os mitos tico submete o material em bruto da desenvolvido no artigo de Marc Lits eram as grandes histórias, capazes de realidade, procedendo a uma semanti- — As investigações sobre a narrativa responder às principais interrogações, zação do mundo que necessariamente mediática e o futuro da imprensa —, dúvidas e perplexidades das socieda- decorre de um processo de seleção, a narratologia clássica revela-se insu- des de então, hoje, como na década fundado em critérios profissionais, e ficiente como instrumento analítico da em que o semiólogo francês publicou executado por meio de ferramentas nova narratividade mediática. Assim, as suas petites mythologies no jornal discursivas próprias (Bignell, 2003: defende o autor belga, é urgente fun- Les Lettres Nouvelles, os mitos foram 79-104). As narrativas jornalísticas são dar as bases de uma “hipernarrato- substituídos por notícias, reportagens, sobretudo construções e representações logia” que permita entender melhor documentários, filmes, séries e, mais da realidade que relevam de escolhas o funcionamento dos novos produtos recentemente, por videojogos, post fa ideacionais e interpessoais, como bem mediáticos, essencialmente impuros, cebookianos, tweets. Em comum, todos assinalou há quase duas décadas a contaminados e multimédia. estes formatos e géneros têm o pendor americana Gaye Tuchman, no célebre narrativo: é ele que permite construir artigo “Contando estórias”: O poder narrativo da textualidade me- uma legibilidade sociopolítica do diática tem como expoente máximo a mundo, dando forma e organizando Dizer-se que uma notícia é uma “estó- construção de personagens. Como aler- os quadros de pensamento da reali- ria” não é de modo nenhum rebaixar ta Marc Lits, em livro recenseado neste 9 número, a atividade de construir per- media. Um dos principais problemas não têm obrigatoriamente de se fixar sonagens pelos media é de uma enor- suscitados pela reflexão sobre o fun- a essa imagem do mundo extratextual, me responsabilidade, pois, na maioria cionamento da personagem jornalísti- neste caso específico do jornalismo é dos casos, são eles as únicas fontes ca diz respeito à sinuosa relação que a obrigatória essa colagem. Como nos diz de conhecimento que o público tem ao narrativa jornalística estabelece com Ricoeur, a ficção suspende a referen- seu dispor. Um dos autores portugue- o mundo que representa, aparentando cialidade imediata porque é ela pró- ses que, de modo mais sistematizado, ser uma narrativa factual mas recor- pria uma estrutura de comunicação: a problematiza o contributo dos Estudos rendo a instrumentos e procedimentos realidade é organizada pela ficção. Por Narrativos para a perceção e compreen- retóricos e narrativos tipicamente li- isso, não podemos postular em termos são do funcionamento da personagem gados à narrativa ficcional. ontológicos um confronto entre ficção e jornalística é Mário Mesquita que, no Se a narrativa jornalística é uma cons- realidade porque esta é modelada por seu artigo “Personagem Jornalística: trução textual, discursiva e social, a aquela. Ora, na narrativa jornalística, da Narratologia à Deontologia”, cruza questão transversal a toda a proble- o real é referência incontornável, da conceitos e abordagens da narratolo- mática de figuração da personagem qual o jornalista parte para selecionar gia com exemplos e testemunhos dos mediática diz respeito à fronteira entre e fazer a triagem das potencialidades media, defendendo que o estudo da o factual e o ficcional. Se a relação diegéticas dos factos, transformando-os construção da personagem jornalística entre persona e personagem é um dos em acontecimentos. Assim, ele não é se deve intercetar com os princípios da paradoxos que a teoria da narrativa um mero espectador passivo, pois é res- deontologia profissional. Esta parece- tem interpelado e desenvolvido, no ponsável pela produção de um discurso ‑nos ser uma questão crucial, para se caso particular da personagem em referencial que entra no processo de perceber o impacto que os media têm contexto de narrativa jornalística, ela construção da realidade. nos modos como mitificam pessoas, assume uma dimensão muito relevante. Neste sentido, a personagem é também projetando-as no espaço público. Os atores sociais que povoam as afetada, no interior da narrativa jorna- O mesmo é dizer que, quando falamos notícias e as reportagens – géneros lística, pelo conjunto de escolhas a que em pessoa / ator social e personagem narrativos por excelência do discurso os seus autores têm de proceder quan- jornalística estamos, na verdade, a mediático de informação – decorrem do a constroem e que se fundamen- falar de duas realidades distintas, de construções que mimetizam pes- tam sempre num conjunto complexo pese embora a obrigatoriedade de soas reais, com existência ontológica. e dialogante de códigos que presidem referencialidade à qual o jornalista Enquanto nos mundos possíveis da à elaboração da grande narrativa de se submete, pois que o leitor apenas narrativa literária, as personagens, imprensa: códigos deontológicos, pois acede a essa figura construída pelos mesmo quando inspiradas em pessoas, que o discurso emana de uma formação discursiva de matriz profissional; códi- posições intersubjetivas, dialógicas e que produz e sustenta tal relação”, pro- gos narrativos que vão ao encontro da altamente profissionalizadas, em que a curando uma compreensão das amplas dimensão comunicacional dos textos; intervenção do jornalista é, em muitos ligações entre cultura, media, economia e códigos retórico-estilísticos também casos, mínima. O texto de Carlos Reis e política. Para Boyle, a cultura do des- eles submetidos aos valores da objetivi- aqui publicado — The Special One. porto cruza-se com a lei, a economia, dade e da honestidade. Além do mais, Fenomenologia do herói desportivo a política, as relações internacionais, existindo o pacto comunicacional, que — explora precisamente este aspeto, questões de governança, de direitos e se instaura como um protocolo de lei- tomando como paradigma a figuração de cidadania, constituindo-se numa tura, o leitor lê estas narrativas e suas narrativa do herói desportivo no qua- agenda de comunicação e desporto am- personagens como índices de real. dro operativo das grandes narrativas pliada, nem sempre refletida ou abor- Quando as diversas figuras que po- mediáticas, sejam elas videojogos ou dada dentro do jornalismo desportivo voam o nosso universo social deslizam relatos radiofónicos, manchetes de dominante. Este poder que o desporto para as narrativas mediáticas, adqui- jornais ou documentários. tem de incorporar no seu seio múltiplas rindo o estatuto de personagens, per- Ao centrarmos esta discussão em torno dimensões da vida, muito para além do dem a dimensão humana e complexa da figura do desportista, e não da figura relato da competição desportiva, tor- que ontologicamente possuem, para se do político, por exemplo, trazemos à nam-no num facto narrativo total, (por verem reduzidas a uma soma de traços discussão uma dimensão da narrativa referência ao de fenómeno social total, identificadores, que compõem os seus que transcende o domínio estritamente definido por Georges Gurvitch), que ul- perfis esquemáticos e incompletos, a mediático, sem no entanto deixar de trapassa as fronteiras do desporto e das partir dos quais os leitores formarão falar dele, denunciando-o. Enquanto indústrias do entretenimento, onde a a sua opinião. E essa construção é, discurso, o desporto – a mais séria ba- sociedade contemporânea se pode dar muitas vezes, sobretudo quando se gatela do mundo, como referia Christian a ver, tanto naquilo que mostra como trata de homens da política, do des- Bromberger acerca do futebol – reflete naquilo que oculta. porto ou de grandes instituições como as próprias formas de construção do Esta linha de reflexão pode ser encon- Hollywood, elaborada numa teia dis- discurso social, tendo em conta a sua trada, por exemplo, na análise que nos cursiva em que se mescla a influência profunda ligação com a natureza, a cria- é trazida por Rui Gomes quando defen- dos sofisticados assessores de imagem tividade, a racionalidade e emotividade de que a “desportivização do mundo” da comunicação política e a capacida- humanas. Por isso, diz-nos Raymond se transformou na metáfora contempo- de de triagem e de crítica do próprio Boyle, estar interessado “na relação rânea da globalização, naquilo que ela jornalista. O produto final, que chega entre comunicação e desporto é estar tem de homogeneização, de codificação, ao público, é já o resultado de com- fascinado e intrigado com a sociedade de racionalização do corpo e dos su11 jeitos. Expressão disso mesmo será a Este quadro coloca a narrativa jornalís- nais, no mundo desportivo da Grã-Bre- preponderância da própria figura da tica num patamar complexo de análise tanha, por exemplo, superam o número celebridade, que vem destituir o herói, em que os media são simultaneamente de jornalistas de desporto – proliferam “memória-monumento” só acessível a produto e produtores de narrativas no discurso jornalístico, em clara per- uns quantos. Nesta linha de argu- várias, em resultado da sua autonomia da de autonomia e de preponderância, mentação, o surgimento da figura da profissional – certamente – mas também sempre que se fazem ouvir as vozes da celebridade corresponde a uma nova do contexto das indústrias culturais reestruturação económica nos media. narrativa, acerca da democratização em que se inserem. Com efeito, como Porém, está ainda por vir o momento do sucesso, da meritocracia, do valor nos chamou a atenção noutro lugar em que a diminuição do número de mensurável dos sujeitos, mas ao mesmo Michael Shudson, no seu estudo sobre jornalistas nas redações será aclamada tempo uma figura efémera e descartá- o tratamento jornalístico às mensagens como um atentado à liberdade de im- vel, com o tempo de vida limitado à presidenciais sobre o estado da nação, prensa, no sentido mais lato do termo. sua utilidade para a indústria mediá- nos Estados Unidos, “não há apenas Integrados no quadro das indústrias tica. Se nos recordarmos do que Mário uma narrativa da política nas notícias; culturais, pressionados pelas exi- Mesquita nos diz acerca da tendência as notícias são parte da política da forma gências específicas das empresas de do jornalismo em retratar personagens narrativa”. media, cada vez mais concorrentes “planas”, sem relevo nem espessura, O texto de Boyle retoma este processo com os profissionais da comunicação talvez possamos perceber melhor uma simbiótico, neste caso perspetivado na organizacional e do marketing, os jor- das razões pelas quais a celebridade, relação existente entre media e celebri- nalistas disputam agora o seu estatuto que tem o seu habitat natural nos me dade e que marca também a construção de mediadores das mensagens públi- dia, apenas pontualmente aspire al- da figura do desportista contemporâneo. cas com os próprios cidadãos que é cançar valores transcendentais. Como À medida que o desporto foi adquirindo suposto servirem. O principal desafio salienta Rui Gomes, a celebridade é um importância para os media, também as da proposta de criação de uma hiper- dos mais importantes mecanismos de celebridades e os seus valores-notícia, narratologia, a que fizemos anterior- mobilização do desejo e seu potencial “enquanto produtos mediáticos apetecí- mente referência, talvez resida nesse narrativo reside no seu alcance mer- veis”, começaram a adquirir um papel aspeto crucial: o de conseguir captar cadológico, em que a ética do trabalho central na indústria do desporto. Hoje, a complexidade narratológica dos me e da produção dá lugar a uma estética as práticas de Hollywood estão cada vez dia contemporâneos, cada vez mais efémera do consumo, mais consentânea mais presentes nos media. Do mesmo sujeitos à hibridação com o discurso com o que Appadurai denomina por modo, as técnicas e as narrativas das produzido nas redes sociais. Quer disciplina social da imaginação. Relações Públicas – cujos profissio- Boyle quer Thomas Horky e Barbara Steizner mostram muito bem como cacional dos media, à (pretensa) au- assinalada no pós-Guerra por Camus, as redes sociais puseram em causa a tonomia do jornalismo face aos outros no primeiro editorial no jornal Combat: estrutura tradicional dos códigos de campos sociais, à natureza económica trabalho estabelecidos, tendo por base da produção de conteúdos jornalísticos “O nosso desejo, tanto mais pro a autoridade mediadora do jornalista no quadro das empresas capitalistas. fundo quanto era mudo, consistia perante a opinião pública e o seu esta- Todavia, esta discussão está parti- em libertar os jornais do dinheiro e tuto privilegiado no acesso ao palco dos cularmente patente no espaço que de lhes dar um tom e uma verdade acontecimentos. E se é certo, como nos dedicámos aqui à evocação dessa que coloquem o público à altura diz Marc Lits, que a narrativa, no relato memória-monumento que foi Albert daquilo que nele há de melhor”. dos acontecimentos nas redes sociais, Camus. Falamos agora de dois textos continua a ter por referência o discurso que resultaram das conferências de A este propósito talvez devêssemos dos media, Horky e Steizner demons- Mário Mesquita e Cristina Robalo recordar o lamento dos adeptos esco- tram, no entanto, que já não estamos Cordeiro, aquando da comemoração ceses, proferido quando dos momentos a falar apenas do mesmo por outros dos 100 anos do nascimento de Al- de derrota da sua seleção nacional meios: as redes sociais elegem novos bert Camus, realizada a 7 de novem- de futebol: “É a esperança que nos heróis desportivos, suscitam novos va- bro de 2013, na Faculdade de Letras mata”. Na verdade, o mesmo será dizer lores-notícia, dão uma carga emocional da Universidade de Coimbra. Ambos que “é a esperança que nos mantém suplementar à discussão pública e de- nos falam de liberdade: em primeiro vivos” e nos faz levantar, quando ela sencadeiam novos fatores de exposição lugar, numa liberdade dos sujeitos, encerra um projeto em que acredita- e mediatização de atletas, criando uma como pré-condição a qualquer projeto mos e ao qual sentimos que vale a alternativa à agenda mediática a que os de emancipação social; em segundo, pena dedicar o nosso tempo: um dia, próprios media não são alheios. sobre a liberdade no jornalismo. uma vida… é assim para as questões A discussão que emerge destas cons- Mais de século e meio depois de Émile da comunicação e do espaço público tatações empurra-nos inevitavelmen- de Girardin ter implantado o modelo contemporâneo; é assim, acreditamos, te para um discurso ético-normativo de negócio que colocou o Jornalismo para o projeto científico e editorial a acerca do jornalismo contemporâneo, a par da Industrialização e da cultura que agora damos início. como não poderia nem nunca poderá de massas emergente no século deixar de ser. Essa dimensão atravessa Boyle parece questionar-se se o modelo Carlos Camponez de forma subliminar os temas até aqui de negócio então criado ainda serve Ana Teresa Peixinho focados, desde a natureza da própria o jornalismo. Esta difícil convivência narrativa implícita no pacto comuni- entre capitalismo e jornalismo era já XIX , 13 Marc Lits Professor da Université Catholique de Louvain e membro do Observatoire de Recherche sur les Médias et le Journalisme ([email protected]). As investigações sobre a narrativa mediática e o futuro da imprensa © Lugares da Personagem, António Barros, 2014-2015, #3 - Coimbra_Mondego Research about media narratives and the future of the press Resumo Abstract Résumé Há vinte anos, o Observatoire de Re Twenty years ago, the Observatoire du Il y a vingt ans, l’Observatoire du Récit cherche sur les Médias et le Journalisme Récit sur les Médias et le Journalisme sur les Médias et le Journalisme forgeait (ORM) criou a noção de narrativa me- forged the concept of media narrative, la notion de récit médiatique, en utilisant diática, usando o modelo construído por using the model developed by Paul Ri- le modèle construit par Paul Ricœur dans Paul Ricoeur em Temps et Récit para o coeur in Temps et récit, in order to apply Temps et Récit, pour l’appliquer à la mise aplicar à narrativização das informações it to the set of information narrative in en récit des informations dans les médias nos media contemporâneos. Atualmente contemporary media. Nowadays, when contemporains. Aujourd’hui, à l’heure où e numa altura em que as novas tecnolo- new technologies have changed the me- les nouvelles technologies ont modifié les gias modificaram os modos de construção thods of producing the narrative and the modes de fabrication du récit et les prati- da narrativa e as práticas das redações, practices in the newsroom, when users are ques des rédactions, où les usagers sont em que os utilizadores são também co- also co-producers of the information that aussi les co-constructeurs de l’information ‑construtores da informação que leem e they read and criticize, we must re-discuss qu’ils lisent et critiquent, il faut rediscuter criticam, torna-se necessário rediscutir a the very concept of narrative. This one de la pertinence de la notion même du pertinência da própria noção de narrativa. became more fragmented, open to rein- récit. Celui-ci est plus éclaté, ouvert à des Esta surge mais fragmentada, aberta a terpretations and to forms of polyphony, réécritures, à des formes de polyphonie, reescritas, a formas polifónicas que care- which call to found a hypernarratology. qui demandent de fonder une hypernarra- cem da criação de uma hipernarratologia. This is urgent, in order to not succumb tologie. C’est urgent, pour ne pas succom- É urgente esta criação, a fim de não ceder to the dominant model of storytelling, in ber au modèle dominant du storytelling, ao modelo dominante do storytelling, para which a narratological criticism should be dont une critique narratologique doit être o qual ainda deve ser desenvolvida uma developed, and to understand the return développée, et pour comprendre le retour crítica narratológica, e para compreender of a narrative journalism in the United d’un journalisme narratif, aux États-Unis o regresso de um jornalismo narrativo, States and Europe, both in print and new et en Europe, tant en presse écrite que nos Estados Unidos e na Europa, tanto na formats, such as the magazine XXI or the dans les nouveaux formats comme la revue imprensa escrita como em novos formatos, web documentaries. XXI ou les webdocumentaires. Palavras-chave: Narrativa, media, Keywords: Narrative, media, Mots-clés: Récit, médias, hipernarratologia. hipernarratology hipernarratologie. tais como a revista XXI ou os webdocumentários. Tradução de Maria Elsa Aires ([email protected]) 15 Desde a sua criação, há pouco mais socioeconómicos, como no caso do difundida para um público de leitores/ de vinte anos, o Observatoire de Recher fait-divers, do fotojornalismo ou, hoje ouvintes, simples recetáculos passivos che sur les Médias et le Journalisme em dia, do web documentário (Lits, de sequências informativas sobre as (ORM) pretendeu teorizar a noção de 2008). Mas a narrativa constrói-se quais não tinham qualquer controlo narrativa mediática. Nessa altura, a no- também na sua reapropriação e vá- (exceto reagindo por intermédio do ção de narrativa, muito presente nas rios estudos sobre os usos sociais dos “correio dos leitores” enviado pelos teorias estruturais de análise textual, media foram desenvolvidos, a partir correios). era praticamente inexistente no campo de abordagens etnológicas de públicos A emergência de novos modos de da análise dos media e dos estudos específicos. Estes contributos permi- produção e de difusão da informação sobre a informação e a comunicação. tem-nos tratar, doravante, com uma teria, segundo se diz com frequência, Tomando por inspiração, entre outros, série de conhecimentos estabelecidos, modificado radicalmente as condições os trabalhos de Paul Ricoeur e os seus realidades informacionais tão instá- de produção da profissão, as intera- três volumes de Temps et Récit, o ORM veis quanto incertas. E este trabalho ções entre os emissores de notícias e construiu esta noção de narrativa me- é hoje partilhado por numerosas equi- os próprios recetores inscritos na rede diática e desenvolveu a narratologia pas, sendo disso testemunho alguns de transmissão dessas informações. mediática. números de revistas inteiramente E, muito logicamente, os modos de Na linha da perspetiva de Paul Ri- consagrados a esta temática da aná- escrita também teriam sido transfor- coeur, a narrativa mediática era então lise narratológica da informação, nas mados, devido à publicação em su- encarada como um vetor de constitui- revistas Réseaux (2005) ou Quaderni portes requerendo outros formatos, à ção de identidade coletiva. Os primei- (2010-2011), por exemplo. aceleração das condições de produção, ros trabalhos procuraram identificar Quando esta noção de narrativa à existência de novos públicos, for- os movimentos da tripla mimésis, mediática começou a desenvolver-se, matados pela utilização da web e das presentes na produção, na receção os jornais diários de informação e redes sociais. e na apropriação das narrativas de o telejornal eram ainda os suportes Não nos debruçaremos, aqui, so- informação. Duas décadas de inves- privilegiados de difusão da informa- bre as transformações verificadas na tigação permitiram revelar processos ção. Esta era redigida, a montante, gestão da produção de informação por do domínio da construção da perso- por jornalistas profissionais, únicos estas novas tecnologias, de que há nagem, das virtualidades narrativas detentores de informações recolhidas muito se pressentia que iriam desen- dos suportes mediáticos ou ainda das nos locais do acontecimento, ou atra- cadear grandes alterações na profis- interações entre diegeses específicas vés de conferências de imprensa ou são (Grevisse e Lits, 2007), no preciso e géneros jornalísticos ou contextos ainda graças às agências noticiosas e momento em que o modelo económico da imprensa se encontra numa cri- das práticas jornalísticas, com a emer- fornece resultados que contradizem se profunda (redução do número de gência de um jornalismo participativo um pouco esta hipótese de trabalho. leitores, diminuição das receitas da ligado ao desenvolvimento da web 2.0, Mais de 10 000 000 palavras foram publicidade, passagem dos suportes e as suas implicações sobre lógicas de analisadas de forma automatizada, a em papel para os interfaces da web). desprofissionalização que destabili- fim de detetar os marcadores de sub- Foram então realizados vários estu- zam toda a profissão. jetividade presentes nestes diferentes dos sobre a forma como as redações Se o impacto das novas tecnologias se adaptaram à gestão da informação sobre a organização das redações e em linha, seguindo lógicas integra- as transformações profissionais que O que sobressai de uma análise das ou ainda desenvolvendo equipas originaram é inegável, é também tão importante é que as hipóteses de de redação complementares. Uma necessário medir a influência des- partida, assentes numa diferenciação importante investigação belga sobre tes novos desenvolvimentos sobre a dos tipos de escrita, tanto em função “a transformação da relação com a escrita jornalística. Esta evolução dos suportes escolhidos (papel versus informação na comunicação multi- poderia parecer evidente, no sentido web) como dos objetivos redacionais média”, coordenada por Benoît Gré- em que os próprios especialistas da (um quality paper, um pure player de visse e reunindo investigadores das narratologia mediática acordaram informação e investigação, pelo menos áreas da informação e comunicação, que era necessário começar a falar na sua fase inicial, um site de infor- do direito e da linguística deu origem de hipernarratologia, de forma a poder mação cidadã e militante) são afinal a vários estudos sobre esses aspetos. ter em conta os efeitos da emergência infirmadas. Concluída a análise, ve- O colóquio internacional Towards a de novos suportes sobre os modos e rifica-se que as semelhanças vencem neo-journalism, organizado em Bruxe- formas de escrever. Contudo, a tese de- as diferenças relevantes e não é pos- las em outubro de 2012, deu origem a fendida por Anne Küppers, em 2013, sível, portanto, apenas a partir des- inúmeras apresentações de trabalhos pede que se relativize a importância tes critérios linguísticos, opor consis- neste âmbito . O livro coordenado por destas evoluções narrativas. A análise tentemente os três media escolhidos, Amandine Degand e Benoît Grevisse informatizada de um corpus importan- pese embora se posicionem em lógicas (2012) analisa estes diferentes desa- te, remetendo para os anos 2005-2009 económicas, sociais e editoriais mui- fios. Todas estas investigações per- e constituído por um diário nacional to diferentes. O resultado mais mar- mitiram analisar as reconfigurações de referência nas suas versões em pa- cante desta investigação, para quem pel e eletrónica (Le Soir), um medium analisa a escrita da imprensa, reside unicamente em linha (Rue 89) e um na constatação de que os novos me media cidadão em linha (AgoraVox) dia eletrónicos de tipo participativo 1 1 No endereço www.neo-journalism.org estão disponíveis alguns resumos das comunicações. suportes e identificar eventuais diferenças de escrita entre eles. 17 retomam afinal, inconscientemente ou estudo. Primeiro elemento perturba- em tensão, na análise de narrativas não, os padrões da escrita jornalística dor: os textos de imprensa circulam, mediáticas particulares, a sua pro- clássica. Ou porque alguns dos jorna- doravante, de forma maciça através dução e a sua receção. Esta intui- listas em linha provêm da imprensa da web e das redes sociais (que não ção antecipava a incursão maciça do tradicional; ou porque os jornalistas existiam quando o conceito foi criado). público na produção de informação, “cidadãos” reproduzem, talvez sem o Esta realidade provocou uma transfor- num contexto de novas tecnologias e desejar, os processos da escrita tra- mação das práticas profissionais dos de novos usos da informação. A parte dicional, de forma a inscreverem-se jornalistas, inclusive na sua forma de criativa do leitor, a coestruturação da e serem reconhecidos no campo jor- redigir; e, quanto ao público, veio mo- narrativa, adquire, no contexto atual, nalístico. Estes resultados interpelam dificar as formas de ler um artigo, ou um novo sentido. A narrativa, já aberta os investigadores em informação e co- mesmo de o coescrever. Os próprios ao contributo do público pela ativi- municação que, por vezes, avançam modelos de narrativização (mise en dade de leitura pessoal, completa-se, hipóteses pouco validadas por inqué- récit) ficam, assim, perturbados tan- hoje em dia, com uma interação desde ritos no terreno ou análises exaustivas to ao nível da produção como da sua a criação da narrativa de informação de corpus. Afinal, será necessário, na receção. Em segundo lugar, é necessá- (público e redes sociais como fontes situação atual, definir os contornos de rio ter em conta também que a forma de informação, reações imediatas uma escrita hipertextual, uma vez que narrativa foi formalizada e fortemente do público sob diversas formas…). os novos media procuram legitimar-se instrumentalizada pela comunicação A narrativa mediática surge também retomando as especificidades da escri- política, e ainda pela comunicação como alternativa à forma objetivante ta jornalística mais clássica? Talvez de organização, como testemunha de da escrita jornalística tradicional, ba- seja devido ao facto de ainda nos en- forma sintomática o ensaio de Chris- seada em parte numa comunicação em contrarmos num período de mutação, tian Salmon (2007). A mecânica do sentido único e na conceção de um em que os modelos antigos continuam storytelling, longe do modelo otimista público passivo. O surgimento de for- dominantes, em que as novas escritas de Ricoeur, tornou-se um instrumento mas mediáticas híbridas (reportagens estão em vias de invenção. Ou ainda de persuasão, indiferente aos desafios em banda desenhada, reportagens porque não colocamos as questões éticos dos seus objetivos, inclusive em escritas em formatos extensos inspi- pertinentes em relação ao que merece certas formas de jornalismo narrativo rados na estrutura romanesca, web- ser observado. ou de escrita narrativa com finalidade reportagens, web-documentários…) sensacionalista. é acompanhado de uma discussão Todavia, é necessário admitir que, atualmente, novos elementos têm Um dos aspetos significativos dos pública sobre os cânones objetivistas modificado radicalmente o campo de trabalhos da ORM é de ter colocado do jornalismo: reivindicação de uma Um dos aspetos significativos dos trabalhos da ORM é de ter colocado em tensão, na análise de narrativas mediáticas particulares, a sua produção e a sua receção escrita do “eu”, afirmação da dúvida, 2. Os usos da narrativa mediática uso assumido do processo narrativo, através das novas tecnologias, tan- utilização dos espaços de incertezas e to em termos de consumo como de de interpretações do recetor… coprodução da narrativa. Estas interrogações narrativas têm 3. A emergência do modelo de story obviamente ressonâncias socioeconó- telling, com todas as suas ambi- micas que não podem ser ignoradas, guidades, mas que modifica o dado que a análise narratológica só contexto teórico e prático. pode ser concebida no quadro de um 4. O sucesso de novas expressões e conhecimento aprofundado das con- de novos suportes do jornalismo dições de produção (identificação dos narrativo. proprietários do título, modos de or- 5.A necessidade de revisitar os ganização das redações, condições de modelos teóricos da narratologia trabalho dos jornalistas, ligações com e da semiologia sob a influência régies publicitárias, importância das dos novos modos de produção e de difusões e das audiências). receção das narrativas mediáticas, Se adotarmos uma atitude prospe- a fim de contribuir para a evolução tiva para definir o modo como a noção das teorias narratológicas e para de narrativa mediática pode hoje con- a emergência de uma hipernarra- tinuar a alimentar de forma fecunda tologia. a análise dos media, verificamos que cinco elementos devem ser apreendidos A desagregação do esquema em interação e submetidos à análise: narrativo 1. A desagregação do esquema narrativo clássico sob pressão da Um primeiro aspeto da construção utilização jornalística das novas narrativa que fica radicalmente trans- tecnologias e da escrita na web (e formado é o da sua temporalidade. a necessidade que daí decorre de As evoluções tecnológicas obrigam a pensar em conjunto a estrutura nar- revisitar a utilização do tempo nos me rativa e o suporte que a veicula). dia audiovisuais e nas suas declinações 19 multimédia. Ao ponto de convidar a para uma reconstrução identitária. O exemplo mais ilustrativo foi o do uma redefinição das bases clássicas da A urgência substitui a análise e impede tsunami de dezembro de 2004, quan- narratologia e a um reexame das rela- qualquer forma de reorganização das do a construção narrativa do aconte- ções entre tempo e narração tal como narrativas e dos seus múltiplos jogos cimento escapou em parte às agên- descritas por Paul Ricoeur no entrela- de temporalidade. cias noticiosas e às redações que se çar das três mimésis. A compressão do Trata-se, por conseguinte, de me- limitaram a retransmitir as imagens tempo altera, doravante, a nossa relação dir as consequências destas transfor- captadas por videoamadores, de modo com o mundo, visto que o medium tele- mações na gestão de um tempo nar- a encadearem as sequências de ação, visivo, desde a primeira guerra do Gol- rativo cada vez mais imediato. Só se sem coerência causal ou temporal, fo, joga em quase simultaneidade com pode fazer um trabalho de construção numa estética de fragmento generali- os acontecimentos mostrados, como já da intriga (mise en intrigue) com um zada. Em vez de narrativização, foram tinham evidenciado Jean Baudrillard mínimo de distanciamento, dado que, estas “micro-narrações” sucessivas (1991) e Paul Virilio (1991). A partir normalmente, a narrativa surge depois que foram apresentadas, até mesmo dessa altura, o objetivo dos media, que do acontecimento. Ora, atualmente, “cenas narrativas” baseadas em al- consistia em informar o mais depressa o ideal jornalístico consiste em co- gumas situações dramáticas estere- possível o público depois de um aconte- brir o acontecimento enquanto está a otipadas: a onda devastadora, a mãe cimento ter ocorrido, foi substituído por ocorrer, por vezes mesmo antes que desesperada, o salvador generoso, o esta exigência inimaginável até então: ocorra. Se considerarmos a segunda doador bondoso… Desde então, po- o acontecimento deve, se possível, ser guerra do Iraque, constatamos que demos continuar a falar de narração mediatizado enquanto está a ocorrer. o mais importante para os canais de mediática ou teremos de abandonar Sendo assim, se o tempo da transmissão televisão não era explicar-nos o que uma noção que já não corresponde à se torna concomitante ao acontecimen- estava a acontecer no local, mas sim- realidade das práticas jornalísticas? to, em que medida permite ainda uma plesmente afirmar a presença do seu verdadeira apropriação, uma reconfigu- enviado especial no terreno, uma vez ração no sentido entendido por Ricoeur que não tinham acesso às fontes nem na sua terceira mimésis? Eis uma das tempo necessário para a reconstrução. consequências diretas da transforma- A prioridade é dada à enunciação, à Muito claramente, esta desagre- ção radical da temporalidade mediática relação, mais do que à construção da gação tornou-se cada vez mais impor- sobre o modelo que nos serve de base informação. A possibilidade de uma tante nos relatos mediáticos atuais, de análise. A captação em bruto dos correta articulação da segunda mimé construídos segundo lógicas deses- testemunhos não deixa muito tempo sis deve, doravante, ser rediscutida. truturadas (ou estruturadas de outra Os novos usos da narração forma, mais propriamente) ao nível da Poderíamos, portanto, admitir, narrativa passa de um lugar (topológico produção como também da sua rece- como novo postulado, que a narrati- e narrativo) para outro, deixa de haver ção. Sem falar dos chats, fóruns e blogs va não desaparece, mas que se cons- unidade temática e narrativa fechada. em que a narração está provavelmente trói, doravante, com outras formas, O utilizador encontra-se perante uma menos presente, ou dos comentários pelo menos no sistema mediático e narrativa infinita, sem princípio nem com menos de 140 carateres retrans- na cultura de massas. A narrativa fim, na qual circula sem hierarquização mitidos via redes sociais como Twitter. co-constrói-se por acumulação de nem progressão construída. Porém, tal- Se a lógica do enquadramento se deixa fragmentos narrativos que se agre- vez seja preciso abandonar o singular, ultrapassar por um consumo em rede, gam pouco a pouco. A identidade dado que já não há narrativa única, mas por uma acumulação de fragmentos, narrativa partilha-se, sempre flutu- mais uma circulação concomitante de haverá ainda reconfiguração possível? ante, não fechada, sempre síncrona. narrativas múltiplas, produzidas por As narrativas são doravante consu- O modelo do broadband sucedeu ao enunciadores diferentes que se vão midas de forma cada vez mais desa- do broadcast nos media audiovisuais trocando e se interpenetram. À desa- gregada, o que obriga a reconsiderar contemporâneos. Já não é o emissor gregação da configuração corresponde a noção de fragmento, que se afigura que é determinante, é a importância simultaneamente uma deflagração da antinómica relativamente à noção de da banda que vai passando, do fluxo, refiguração. Existe, em simultâneo, narrativa. Será que podemos, hoje em que permite a interatividade, inclusive reiteração (a mesma informação sur- dia, pensar a noção de narrativa como para as estruturas narrativas. ge em vários canais), heterogeneidade uma acumulação de fragmentos, sem Se estas condições estão geralmen- (fragmentos de informação diversos cairmos num paradoxo insuperável? te reunidas quando a narrativa está não coordenados), ruturas (passagem É concebível se aceitarmos que o uso redigida e é narrada por uma mesma de um tema para outro), telescopagem da narrativa, hoje, já não está ligado a pessoa (a sequência montada no jornal (agrupamento, porque são consumidos uma lógica de armazenamento (o leitor televisivo), o que acontece quando o sucessivamente, de acontecimentos sem consulta as narrativas pré-existentes utilizador passa de um canal para outro ligação entre eles). à sua leitura, extraindo de um repo- ou vai buscar a sua informação, em A análise dos usos da internet sitório de narrativas de tipos diferen- simultâneo, em sites web? É necessário, coloca claramente a questão da de- tes colocadas à sua disposição), mas com efeito, ter em conta o facto de que sagregação enunciativa que se instala. está inscrito num fluxo permanente, a narrativa se encontra não somente É na construção e na identificação das o que nos reenvia para a questão da fragmentada como se desenrola pas- posições enunciativas que se decide, temporalidade, dos limites, do enqua- sando de um suporte para outro, em provavelmente, um novo dispositivo de dramento. migrações permanentes. Visto que a comunicação. A enunciação torna-se 21 partilhada, diluindo-se simultanea- que nos obriga também a repensar a mente no seio de trocas multipolares. própria noção de polifonia. Vemo-nos, O emissor da narrativa mediática já daqui em diante, confrontados com não é único, mas constrói-se na rela- polifonias enunciativas simultâneas ção com os seus recetores; os lugares e partilhadas, sem fim. de emissões desmultiplicam-se de tal A análise dos usos da internet coloca claramente a questão da forma que perdem a sua identidade própria e identificável. Este facto po- A emergência do modelo deria prenunciar uma recomposição do storytelling desagregação sentido em que estes protocolos de Estas transformações dos obje- enunciativa troca significariam definitivamente o tos analisados devem ser avaliadas fim do esquema clássico emissor/re- considerando as modificações simul- cetor em prol de uma discursividade tâneas do contexto de referência dos circular, verdadeiramente polifónica modelos de pensamento dominantes e de uma recursividade permanen- e das formas de produção mediática. te das transmissões de informação. A transformação mais significativa do Haveria, portanto, a esperança de se enquadramento deve-se à emergência assistir ao surgimento de novas formas de ferramentas, baseadas em discur- de narratividade, numa polifonia co- sos teóricos e agrupadas no modelo ‑construída, ou pelo menos através do do storytelling. Em 2007, a obra de entrecruzamento de narrativas parti- Christian Salmon teve o mérito de lhadas, mas com o risco da diluição atrair a atenção de um largo público, das identidades enunciativas. O risco muito para além dos investigadores em da internet não é talvez a morte do ciências humanas e sociais, sobre o sujeito, mas a sua dissolução em dema- sucesso em crescimento (em domínios siados sujeitos, sem reconhecimento tão diversificados como a publicidade possível. Será que pode ainda haver comercial, os jogos de vídeo destina- narrativa num quadro de coenunciação dos à formação de militares antes da não deliberadamente partilhado? Todo sua partida para terrenos de opera- o enquadramento é posto em causa, o ção ou a comunicação política) do uso positiva das trocas discursivas, no que se instala de uma forma de narratologia práti- explicado de que forma é que os ho- A sua decodificação do jovem negro ca declinada com fins persuasivos. mens políticos deviam ser construídos saudando a bandeira francesa, na re- A narrativa, ou pelo menos alguns dos mediaticamente como personagens de vista Paris Match, pode já entender-se seus usos gerenciais, teria portanto ficções televisivas para poderem pas- como uma denúncia do que ainda não regressado ao primeiro plano, em me- sar a sua mensagem. era apelidado de storytelling. O mito, ados dos anos 90, para desencadear Contudo, o interesse manifestado enquanto “sistema semiológico segun- um “narrativist turn”, à imagem do por Christian Salmon em relação às do” tem “uma dupla função : designa que foi o “linguistic turn” dos anos 60. manifestações peculiares do storyte e notifica, faz compreender e impõe”, É desde já necessário assinalar lling no marketing e na comunicação dizia ele então (Barthes, [1957 : 202] que, apesar de Christian Salmon política (enquanto que negligencia 1984: 188). O que Barthes desvenda evocar sucintamente as obras de totalmente a sua importância no res- através da imagem do Padre Pierre Paul Ricoeur ou o número fundador surgimento, em simultâneo, de um apresenta grandes similitudes com o da revista Communication que inau- new journalism muito marcado pelo que Christian Salmon nos propõe na gura a análise estrutural das narra- narrativo nos Estados Unidos) é inte- sua decodificação da máquina Kate tivas (1966), ele não inscreve a sua ressante na medida em que ele mos- Moss (2012). análise do storytelling numa história tra claramente como, numa sociedade Há, contudo, um implícito per- da narratologia, seja ela aristotélica, pós-moderna que já não encontra os manente nos mecanismos revelados estruturalista ou pós-estruturalista. seus pontos de referência nas gran- e denunciados por Christian Salmon, Isto parece-nos, todavia, essencial des narrativas de legitimação, como na medida em que ele se refere a uma para analisar validamente este “re- já o havia demonstrado Jean-François racionalidade que poderia construir-se gresso da narrativa”, se é que esta Lyotard (1989), outras narrativas vão sem o recurso a narrativas fundadoras, tenha alguma vez desaparecido. É preencher o espaço deixado livre, as quais seriam por essência alienan- necessário inscrever esta história da instrumentalizando a função narra- tes, e duplamente alienantes. Por um narrativização do mundo na linha das tiva, desacoplando-a do seu papel de lado, porque a narrativa seria sempre investigações de Michel de Certeau construtor de sentido para a tornar um instrumento de manipulação das (1980) ou de Gianni Vattimo (1990), num instrumento de alienação. Mas massas, uma armadilha, diria Louis ou das análises de Louis Quéré (1982) podemos interrogar-nos sobre a no- Marin (1978); por outro, porque o sobre a informação pós-moderna cons- vidade desta análise, na medida em nosso autor ainda se inscreve numa truída narrativamente, até mesmo das que é afinal bastante semelhante à forma de sociologia dos efeitos em observações de um publicitário como que era proposta no fim das Mito que a injeção de uma mensagem com Jacques Pilhan que tinha, desde 1995, logias de Roland Barthes em 1957. recurso a uma seringa hipodérmica 23 é suficiente para que esta seja aceite à miséria se todos as promessas de- discursos políticos ou publicitários, por um utilizador incapaz de a receber mocratas fossem postas em prática. não é sinal de doença degenerativa. com um distanciamento crítico. Para Finalmente, a perceção do papel Ele reafirma que a narrativa reduz a Christian Salmon, os tipos de supor- da narrativa mediática por Christian complexidade do mundo e permite, tes, as capacidades de resistência Salmon inscreve-se de forma bastante mais do que nunca, formas de rea- dos utilizadores não são parâmetros direta na filiação das teorias da Escola propriação. As mediaculturas (Maigret tidos em conta, o que se manifesta, de Frankfurt sobre a alienação das e Macé, 2005), as mediascapes (Appa- entre outros, na retoma das teorias massas pelo consumo de produções durai, 1996) oferecem-nos narrativas da propaganda. A importância onto- culturais populares concebidas para libertadoras, no seu próprio texto ou lógica da narrativa e o seu impacto fabricar um conformismo ao serviço da através das reinterpretações e dos ar- psíquico carecem provavelmente de ideologia dominante (Migozzi, 2010). ranjos que os utilizadores delas podem análises mais afinadas. É o que faz, Inscreve-se num discurso de denúncia retirar através de leituras subverso- por exemplo, Ivanne Rialland (2009), que existe desde o tempo em que se ras. O debate entre Adorno e Certeau quando denuncia a amálgama que Ch- desenvolveu o folhetim romanesco, na regressa, desta forma, ao centro dos ristian Salmon faz entre duas funções primeira metade do século XIX. A crí- novos avatares da narrativa. da narrativa: ela narra, o que pode tica feita por Christian Salmon acerca ser contemplado pela narratologia, do papel desempenhado por uma série ao mesmo tempo que persuade, o televisiva como o 24Horas na aceita- O regresso do jornalismo que deve apreender uma abordagem ção de um endurecimento das formas narrativo retórica. A publicidade, hoje em dia, de luta contra o terrorismo, após os claramente integrou estas duas fun- acontecimentos do 11 de setembro de Revistas como XXI, 6 mois, Feuil- ções, quando nos propõe modelos a 2001, é reveladora desta conceção ali- ‑leton, provam que a França, alguns serem seguidos, exempla destinados enante da narrativa mediática. anos após os Estados Unidos, se atira a suscitar a adesão afetiva do espe- Contudo, concomitantemente, à aventura dos mooks (amálgama con- tador. Os políticos fazem o mesmo outras vozes mostram que a narrati- traindo as palavras magazine e book), quando, por exemplo, na campanha va, ainda hoje, pode ter uma função para afirmar uma dupla pertença ao eleitoral norte-americana de 2008, os emancipadora, através de guiões, de universo da imprensa periódica e da republicanos construíram, a partir do argumentos que conferem sentido ao literatura (ou pelos menos do setor nada, o modelo de “Joe the plummer”, viver em conjunto. Para Yves Citton do livro). Patrick de Saint-Exupéry, supostamente representando o cidadão (2010), a generalização das narrativas, numa entrevista concedida ao diá- americano médio que ficaria reduzido inclusive na sua recuperação pelos rio belga Le Soir, a 28 de outubro de A redefinição da profissão de Jornalista passa pelo reinvestimento no modelo narrativo 2011, confirma esta dupla ancoragem: e à redução de artigos tão rapidamente “Cremos na necessidade do jornalis- escritos como lidos, mas também como mo, na necessidade da narração que uma verdadeira forma de sobrevivên- permite inscrevermo-nos na realidade cia, através de uma reinvenção dos do mundo. Por entre o dilúvio diário fundamentos de um ofício jornalístico de informações, o nosso trabalho con- em profunda crise, face à emergên- siste em mergulhar de novo no real”. cia dos novos media e às ilusões do Se a imprensa se inscreve no seio da jornalismo cidadão. Mais uma vez, cultura mediática e se aceitarmos que formas textuais, desafios económicos esta cultura mediática, assim como a e identitários, concorrências intra e literatura popular (com todas as nuan intermediáticas, regras éticas e de- ces que se devem introduzir no uso ontológicas, tensões entre suportes e destes termos e no seu paralelismo), conteúdos colidem entre si para chegar se caracterizam, entre outros, por um a uma redefinição da profissão que recurso intenso à narratividade (Lits, passa por um reinvestimento no mode- 2005; Couégnas, 1992), percebemos lo narrativo. Este new new journalism todo o interesse em reproduzir o itine- vai assentar sobre a imersão longa e rário do jornalismo narrativo, desde os a observação, o comprometimento artigos fundadores de Tom Wolfe e o com categorias sociais muitas vezes “romance verdadeiro” de Truman Ca- negligenciadas ou esquecidas, a em- pote, In Cold Blood (1966), passando patia com os sujeitos encontrados, por pelo colombiano Gabriel Garcia Már- uma redescoberta das human interest quez, o polaco Ryszard Kapuscinski stories, que haviam já sido teorizadas ou o francês Jonathan Littell. pelos investigadores norte-americanos Desde o início deste novo século, há mais de setenta anos. investigadores norte-americanos como Não se trata, aqui, de efetuar o Robert Boyton (2005) ou Mark Kramer levantamento de todos os traços tipi- (2007) vão sintetizar as características camente narrativos, que caracterizam deste regresso ao narrativo na escrita o processo de recolha da informação e jornalística, que surge como uma al- de narrativização das histórias assim ternativa à aceleração da informação reunidas em torno do tema tratado 25 (Grevisse, 2008 e Lallemand, 2011), Hibridização das formas mas antes de sublinhar o quanto o narrativas regresso à ribalta dos nonfiction wri ters é significativo, não de um novo Mas se o narrativo está de regresso avatar da forma narrativa, mas sim com força, é no entanto usado de forma da sua permanência ao longo das diferente do new journalism ou da lite- várias épocas, dos modos de expres- ratura, não só porque reinventa a cons- são, das formas e dos suportes que trução da intriga, mas também por- as veiculam. Não se trata tão-pouco que o narrativo “escrito” vai coexistir de defender um “ tudo é narrativa” com sequências, integrando a banda que seria o resultado de uma dupla desenhada, a imagem, jogos gráficos tentação: ver narrativa onde apenas diversos. Obviamente que a revista existe a acumulação de anedotas, de XXI deve o seu sucesso às longas microestruturas descritivas cobertas narrativas jornalísticas que propõe, de um verniz etnológico; integrar mas também à opção de apresentar numa superestrutura narrativa tex- reportagens gráficas, tendo percebido tos que misturam vários tipos argu- que novas formas como a reportagem mentativos, dialogais, explicativos. em BD permitiriam ainda reinventar Toda a reportagem baseada numa a escrita jornalística. Na senda de um observação de terreno, que devolve Joe Sacco, nos Estados Unidos, apre- a vivência de atores apanhados na sentado explicitamente no artigo que sua vida quotidiana, a fim de extrair lhe é consagrado como “cartoonist and uma visão mais global que ultrapassa journalist” ou da narrativa fundado- o simples relato, não é todavia uma ra, em França, de Emmanuel Guibert narrativa. Mas é inegável que, ao (Le Photographe, 2003, realizado com lado de uma informação breve com Frédéric Lemercier e Didier Lefèvre), um fluxo apertado, outros formatos, a revista pensa os seus artigos numa outras temporalidades, outras escritas lógica tripla: narrativas escritas, nar- suscitam o interesse dos leitores e dos rativas em banda desenhada ou em utilizadores da web, e que estas têm fotografia, narrativas pensadas de a ver com o tipo narrativo. A narrativa mediática contemporânea impõe uma redefinição da narrativa actual, com recurso a uma narratologia refundada, a uma hipernarratologia antemão para articularem o texto e é particularmente eficaz nas formas A impureza dos objetos e dos seus usos a imagem. híbridas da BD reportagem, dos ro- leva-nos a repensar o enquadramento mances gráficos, e até mesmo do de uma sócio-semiótica já denominada Os trabalhos dedicados à noveliza- webdocumentário. E não é por acaso por Teun Van Dijk ou Mauro Wolf. ção (Baetens e Lits, 2004 ; Baetens, se, após o sucesso de XXI, a mesma Se quisermos compreender melhor os 2008) mostraram como este objeto equipa vai lançar a revista 6 mois, que novos media no seu “papel específico era emblemático da cultura mediáti- surge acertadamente com o subtítulo de intermediários simbólicos coleti- ca, porque é híbrido e proteiforme. de “o século XXI em imagens”. vos”, apreendendo a sua “linguagem O sucesso das novelizações ilustra Sendo assim, se a narrativa ainda não somente em termos de estruturas de forma excelente o visual turn da pode ser uma categoria que permite formais, mas também como um dado nossa cultura contemporânea, onde a apreender em conjunto estas novas ex- social” (Wolf, 1993: 213), é urgente imagem, o visual se tornaram no pivô pressões jornalísticas, só poderá, no criar as bases de uma hipernarrato- central, em que a escrita passou a ser entanto, ser analisada com o recurso logia mediática. uma declinação, conservando-se vai- a novas ferramentas narratológicas. O que a narrativa mediática con- véns entre escrita e imagem. Todos os temporânea impõe é uma redefinição produtos da cultura mediática – e os das próprias condições de existência mooks inscrevem-se plenamente neste Reinventar a narratologia da narrativa atual, com recurso a uma movimento – são concebidos dentro narratologia refundada, a uma hiper- de lógicas de complementaridade, Estes desenvolvimentos recentes narratologia. É esta abordagem, consi- de contaminação entre suportes que exigem que se ultrapasse a narratolo- derando simultaneamente os avanços declinam de formas diferentes ofer- gia clássica, dado o estatuto especial tecnológicos, os novos suportes, as tas semióticas diversas, geradoras do objeto analisado, simultaneamente evoluções dos usos e dos públicos, que de novas mediagenias que conjugam discutível e híbrido. Discutível no seu permitirá apreender o homem sociali- “o potencial expressivo e comunica- estatuto de legitimidade cultural e na zado enquanto animal narrativizado, cional desenvolvido pelo medium”, o sua essência narrativa. Híbrido por ser atravessado por narrativas construídas que Philippe Marion (1997) chama composto por texto (pertencendo a gé- de acordo com formas radicalmente a sua mediatividade, e a narratolo- neros diversos), imagens e mensagens novas e abertas. A narrativa pode, gia que ele põe a funcionar. A me mistas apresentados em suportes di- doravante, seguir todos os caminhos, diagenia, esta forma expressiva que ferentes, com periodicidade variadas, voltar para trás, enveredar por vias resulta da fusão mais ou menos conse- respondendo a tantos horizontes de simultaneamente contraditórias, des- guida entre narração e mediatização, expectativas quantos media existem. truir etapas, variar entre utilizadores. 27 Para que a investigação hiper- Bibliografia narratológica possa progredir, trata- COUEGNAS, D. (1992). Introduction à la paralittérature. Paris: Éd. du Seuil. se de compreender que a dimensão APPADURAI, A. (1996/2001), Après le DEGAND, A.; GREVISSE, B. (2012). narrativa está cada vez menos do colonialisme. Les conséquences cul Journalisme en ligne. Pratiques et lado do emissor-produtor, mas, gra- turelles de la globalisation, trad. de recherches. Bruxelles : De Boeck, ças aos elementos de circularidade e l’anglais. Paris : Payot. coll. “Info&Com”. de alteridade, que encontramos em BAETENS, J.; LITS M. (dir.). (2004). La DESSINGUE, A. (2006) “Polyphonisme, simultâneo em Ricoeur e em Bakhtine novellisation. Novelization. Du film de Bakhtine à Ricœur”. In: site fa- (Dessingué, 2006), cada vez mais na au livre. From film to novel. Leuven: bula.org, atelier de théorie littéraire: instância de receção que constrói, ela, Leuven University Press. http://www.fabula.org/atelier.php?- a sua própria narrativa numa polifonia BAETENS, J. (2008). La novellisation. enunciativa. O ponto de equilíbrio da Du film au roman. Bruxelles : Les construção da intriga, que ainda se Impressions nouvelles. encontrava bem instalado no seio da segunda mimésis em Ricoeur, caiu doravante para o lado da terceira mi BARTHES, R. (1957). Mythologies. Paris : Éd. du Seuil. BAUDRILLARD, J. (1991). La guerre du Polyphonisme%2C _de_ Bakhtine_%26agrave%3B_Ricoeur GREVISSE, B.; LITS M. (2007). “L’avenir de la presse écrite”. In: Archives et bibliothèques de Belgique, “Le journal dans tous ses états”, t. LXX- mésis. Falta, então, ver como, sendo a Golfe n’a pas eu lieu. Paris : Galilée. narrativa única para cada um na sua BOYNTON, R. (2005). The New New estrutura de receção, pode ainda ser Journalism. New York: Vintage journalistiques. Stratégies rédaction partilhada e reintroduzida no círculo Books. nelles, multimédia et journalisme mimético. Trata-se de um dos desafios CERTEAU, M. (1980). L’ invention du das investigações hipernarratológicas quotidien. I. Arts de faire. Paris : confrontadas com os novos consumos Gallimard, coll. “Folio Essais”, multimediáticos. n° 146, 1990. VIII, 2007, 1-4, pp. 27-48. GREVISSE, B. (2008). Écritures narratif. Bruxelles: De Boeck, coll. “Info&Com”. KRAMER, M.; CALL, W. (dirs.) (2007). Telling true stories. A nonfiction wri CITTON, Y. (2010) Mythocratie. Storytel ter’s guide. New York: Plume Book. ling et imaginaire de gauche. Paris: KÜPPERS, A. (2013). 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The sports hero is valued desportivo é uma entidade valorizada by public projection in media discourse in pela projeção pública das narrativas the context of mass communication; in this mediáticas em contexto de comunicação medium, certain narrative genres (such as de massas; nesse âmbito, certos géneros the biography) configure the hero shaped narrativos (como a biografia) procedem through images, especially on television. à configuração de um herói conformado Furthermore, often the sports hero beco- pela proliferação de imagens, sobretudo mes endowed with collective desires and de TV. Para além disso, frequentemente values of the community he or she repre- o herói desportivo concentra si os valores sents; when the hero is defeated, it is also e os desejos do coletivo que representa; a defeat for this community. quando o herói é vencido, a sua queda arrasta a desse coletivo. Keywords: Hero, sports hero, football, futebol, narrativa mediática. media narrative. © http://gaucha.clicrbs.com.br Palavras-chave: Herói, herói desportivo, 31 1. O herói da minha adolescência grande parte aqui se trata) que dele 2. Trato aqui do herói desportivo, não foi um guerreiro, um astronauta, ficaram para sempre: o equipamento tal como o encontramos sobretudo na um político ou um cientista. O herói negro, as luvas também negras, as modalidade de alcance planetário que da minha adolescência não era por- joelheiras (às vezes uma só, na perna é o futebol. Não que ele seja, como é tuguês e nunca o vi em carne e osso; direita), o voo que a fotografia sus- óbvio, a única modalidade que gera, foi um cidadão da União Soviética, pendia, a calma de um olhar que in- difunde, dá a consumir e às vezes aju- nascido em Moscovo em 1929 e ali timidava os adversários. Foi tudo isso da a corromper heróis; outras o fazem, falecido, com pouco mais de sessen- que fez de Yashin um herói daqueles com as suas lógicas próprias. Todavia, ta anos de idade. Chamava-se Lev que jamais dececionam. é aquela dimensão planetária que o Ivanovich Yashin, media quase um Nunca assisti a um jogo do Ara- futebol ganhou, graças a procedimen- metro e noventa e dele diz-se que foi nha Negra, ao vivo, no calor do está- tos de figuração e de mediatização em o melhor guarda-redes que o futebol dio. Arrisco até dizer o seguinte: se contexto de comunicação social, que já viu, tendo ficado mundialmente o tivesse visto, talvez o não achasse, eleva os protagonistas da modalidade conhecido pelo cognome de Ara por fim, tão alto, tão ágil e tão do- à dimensão de heróis, também eles nha Negra. Digo cognome e não minador. Se para mim ele foi tudo planetários e dotados de atributos ou- alcunha, porque é pelo cognome que isso — como quem diz: um fenómeno trora exclusivos das representações celebramos aqueles cujos feitos são —, foi porque outros, à sua maneira da literatura, das artes plásticas, das dignos de memória (voltarei a isto). fazedores de heróis, assim o descre- lendas e dos mitos inacessíveis ao Os feitos deste herói foram os que veram e relataram. Chamavam-se comum dos mortais. Os heróis de que muitos quiseram imitar: dominar a Artur Agostinho, Amadeu José de aqui me ocupo são figuras tão massifi- grande área, comandar a defesa, des- Freitas e Nuno Brás, eram relatores cadas como os veículos e os discursos fazer cruzamentos, voar para deter de futebol e, num mundo ainda sem mediáticos que fazem do futebol uma um remate traiçoeiro, defender um televisão, as suas vozes enchiam presença quase obsessiva no nosso penalty. umas ondas médias em que se dizia quotidiano, assim projetando sobre Não recordarei aqui os títulos, os a insustentável leveza de um ser cog- ele aquelas propriedades e atributos. troféus e as distinções, algumas de nominado Aranha Negra. Desse e de Nem de propósito: em 2013, um feição política, que o herói Aranha outros heróis, admirados todos graças jovem fotógrafo português, Daniel Negra conquistou e recebeu em vida, à mediação do jornalismo desportivo, Rodrigues, ganhou um prémio de foto- enquanto foi guardião do Dínamo de nos dias da rádio que Woody Al- jornalismo do World Press Photo (cate- Moscovo e da seleção soviética. Bas- len evocou, num filme justamente goria “Daily Life”), por uma fotografia tam-me as imagens (é disso que em famoso. que tudo diz acerca da disseminação do futebol no quotidiano de qualquer Ulisses pagou cara a ardilosa e heroi- de superar a morte e ganhou, por um lugar do mundo, mesmo no mais re- ca vitória sobre os troianos, penando breve tempo, a celebridade que aos côndito e miserável1. As crianças da dez anos até chegar ao refúgio do lar heróis está reservada. Hoje não sabe- Guiné-Bissau que, naquela fotografia, perdido. Não dez anos, mas 19 longos mos o que é feito do jovem Martunis, jogam um futebol de pé descalço em dias (porque a condição humana hoje agora quase adulto; mas naqueles dias campo improvisado são muito pobres é menos paciente do que na Antigui- de 2005 ele foi um dos heróis a que e vivem o sonho de um dia serem um dade) foram aqueles que uma criança temos direito e que modernamente só Messi, um Cristiano Ronaldo ou um indonésia passou, na sequência do o desporto nos concede. Didier Drogba. E talvez já o sejam tsunami que, em dezembro de 2004, imaginariamente, naqueles minutos engoliu terras e gentes na remota 3. Sem almejar a densa concep- de evasão e de fantasia. É um pouco Indonésia. Entretanto, a camisola da tualização que aqui se não justifica, disso que a fotografia do jornalista seleção portuguesa de futebol que a cabe perguntar: de que falamos, quan- nos transmite: o poder mimético e o dita criança vestia naquele transe fez do dizemos de alguém que é um herói? potencial de emulação que os heróis nascer um herói: “o pequeno herói”, E também: que sentido faz (e porquê) desportivos levam até àqueles que o dizia o Jornal de Notícias a 17 de ja- transferir uma indagação acerca do deus-desporto promete libertar da neiro de 2005, “envergava a camisola herói para o campo do fenómeno des- miséria. Os pouquíssimos que o con- da seleção portuguesa de futebol”. portivo e dos discursos que o narram? seguem, não raro por entre redes de A resistência do jovem Martunis Alinharei alguns tópicos de refle- tráfico de adolescentes e ganâncias e “o milagre (…) ocorrido em Banda xão que tentarei disseminar no que de empresários inescrupulosos, che- Aceh” (dizia o Diário de Notícias no se seguirá. Primeiro: o herói é um gam a passar por provações que só mesmo dia) foram habilmente asso- componente estruturante de algumas os predestinados vencem. ciados ao poder redentor do futebol, narrativas, cuja enunciação se proces- Assim tem sido, desde os grandes porque este fez chegar até ao outro sa em função dessa figura em quem mitos da Antiguidade: para alcançar o lado do mundo uma das suas imagens se centram os conflitos e sobre quem estatuto de herói, Hércules teve de su- de marca. Aquilo que foi insinuado pe- pendem ameaças que só ele vence. perar os doze trabalhos que lhe foram los relatos mediáticos e pelas imagens Acentuo esta dimensão narrativa do impostos como redenção da culpa; e que o acompanharam veio à superfí- herói, nestes termos: sem narrativa cie do nosso imaginário: por força de não há herói. Aquilo que o legitima é uma espécie de metonímia oculta, a um trajeto de sobre-humana vitalida- criança de 7 anos recebeu do talismã de, contra obstáculos e contra forças que cobria o seu corpo frágil o poder hostis; desenrola-se esse trajeto num 1 Ver em http://p3.publico.pt/cultura/exposicoes/6690/portugues-que-venceu-o-worldpress-photo-nao-tem-maquina; acesso a 12.7.2014. 33 tempo potencialmente narrativizado d’Os Lusíadas: “O padre Baco ali sociedades ocidentais, a partir do que o herói atravessa, em movimento não consentia/No que Júpiter disse, século XVIII. Exemplo expressivo: de busca e de afirmação do seu estatu- conhecendo/Que esquecerão seus fei- Leopold Bloom é um anti-herói ba- to, com maior intensidade e dramatis- tos no Oriente/Se lá passar a Lusitana nalizado pelo quotidiano burguês de mo quando esse estatuto se coloca sob gente.” (Camões, 1972: 8). Fernando Dublin, tal como o genial romance o signo da transgressão de normas, de Pessoa, já noutro tempo, expressou a de Joyce o representou; do Ulisses limites ou de estatutos sociais. Num incómoda vizinhança dos deuses com homérico resta a memória desgastada ensaio célebre, agora com quase um os heróis terrenos, com estas palavras de um heroísmo mítico, outrora roçan- século de vida, György Lukács falou meio enigmáticas: “Como porém o ho- do o poder sobrenatural dos deuses, em herói problemático, a propósito do mem não pode ser igual dos Deuses, poder que reconhecemos inviável e protagonista de Le Rouge et le Noir de pois o Destino os separou, não corre anacrónico, naquele cenário urbano. Stendhal, e notou que naquele roman- homem nem se alteia deus pelo amor Anacrónico, mas não perdido para ce é contada a “história dessa alma divino; estagna só deus fingido, doente sempre, quanto mais não seja como que vai pelo mundo para aprender a da sua ficção.” . motivo de ironia nostálgica ou de re- 2 conhecer-se, procura aventuras para Terceiro: o herói não é uma per- nelas se testar e, por essa prova, atinge sonagem qualquer. Na palavra que o Quarto: certos tempos históricos a sua medida e descobre a sua própria designa, ressoa, de forma bem audível, são especialmente propícios à he- essência” (Lukács, 1970: 85). “uma tonalidade própria que resulta roização das personagens narrati- Segundo: o herói não é atemporal do facto de o lexema herói provir do vas, por razões que têm que ver com nem a-histórico, pelo que não se mani- vocabulário religioso, cultural, antro- as cosmovisões que as enquadram. festa do mesmo modo em todas as épo- pológico, anterior à sua inclusão no O renascimento foi um desses tempos, cas. O herói da Antiguidade Clássica da crítica literária” (Queffélec, 1991: potenciado por filosofias de vida, por povoada por mitos ou aqueloutro herói 242), bem como à sua utilização no ideais de beleza e por princípios de modelado por ela no século XVI confi- campo da análise das narrativas me- emancipação e de plenitude huma- nam ambos com a condição divina e diáticas; o que é facto, porém, é que na que levaram à redescoberta do chegam a ofender os deuses, quando aquela tonalidade própria não se perde homem como herói do seu tempo, quase os igualam: por isso, Baco ata- por completo, mesmo quando se dá viajante por espaços inexplorados e ca os novos heróis que, em navegação a secularização do herói nas narra- renovador do conhecimento de si e ousada, tendem a obscurecer o prestí- tivas subsequentes à laicização das do mundo. Por sua vez, o romantismo gio dos deuses (penso, evidentemente, do que se encontra no canto I, 30, visão modernista. associou o porte heroico à reivindica2 http://arquivopessoa.net/textos/2968 ção do individualismo como atitude A fenomenologia do herói decorre da tensa interação de certas atitudes recetivas com os dispositivos retóricos, em particular narrativos, que procedem à figuração do herói existencial, ato de rebeldia contra a mais também do que aquilo que o “normalidade” burguesa ou busca de seu autor quis representar. um absoluto que o comum dos mortais 4. Não me referi, na minha breve não entendia. caracterização do herói, a uma sua Quinto: o herói enquanto fulcro propriedade que parece adquirida nas da narrativa interpela e desafia o lei- narrativas literárias da modernidade tor. “O herói provoca a compaixão, a (quero dizer: do século XVIII em dian- simpatia, a alegria e a dor do leitor”, te), ou seja, a sua condição de enti- disse um dos formalistas russos, Bo- dade ficcional. Direi apenas que essa ris Tomachevski, em 1925; e a isto condição ficcional, podendo achar-se acrescentou: “A relação emocional vinculada a um tempo e a uma mode- decorre da construção estética da lação estética específicos (é o caso da obra e só nas formas primitivas essa novelística romântica), não é evidente relação coincide obrigatoriamente em todas as épocas nem em todos os com o código tradicional da moral relatos. Na Antiguidade Clássica ou e da vida social” (apud Todorov, no Renascimento, a feição do herói 1965: 295). A partir daqui, posso impõe aos homens comuns o respei- concluir, por agora: a fenomenologia to reverencial que é devido a figuras do herói decorre da tensa interação dotadas de exemplaridade religiosa, de certas atitudes recetivas (emoções, mitológica ou histórica, prévia a um preconceitos, imagens adquiridas, seu eventual estatuto de personagens molduras comportamentais) com os literárias. Noutros termos: as narra- dispositivos retóricos, em particular tivas épicas ou as canções de gesta, narrativos, que procedem à figura- que exaltavam heróis no universo da ção do herói. Em última instância, guerra ou do proselitismo religioso, a concretização do herói, no sentido não eram forçosamente entendidas fenomenológico da expressão, depen- como literatura, à luz dos princípios de de atos cognitivos que investem na estéticos e dos protocolos institucio- leitura do relato (do relato desportivo, nais vigentes no nosso tempo. quando é o caso) muito mais do que Isto quer dizer que a problemática aquilo que a letra do texto revela e do herói não é estritamente literária. 35 Ela abre-se a reflexões de índole Heroes, Hero-worship and the Heroic Não me alongo sobre esta que, de filosófica, ético-moral, política ou in History. Dizia Carlyle: “Tal como certa forma, é uma “matéria perigosa” doutrinária que se não restringem a entendo, a História Universal, a (diria Camões). Sabemos bem o que, às práticas literárias e aos mundos história daquilo que o homem realizou política e historicamente, veio depois imaginários em que transitam os he- neste mundo, é afinal a História dos de Carlyle e de Nietzsche; e descon- róis ficcionais; isso não impede que Grandes Homens que aqui laboraram” fiamos até que dos seus conceitos de nestes, ou seja, nos heróis ficcionais (Carlyle, 1840). Foram esses Gran- herói alguma coisa terá sido herdada, e literários, se projete uma axiologia des Homens providenciais – Maomé pela via de interpretações deformadas, do heroísmo provinda daquelas refle- e Shakespeare, Lutero e Rousseau, por ditadores, por defensores da su- xões. Em 1637, o teólogo jesuíta Bal- Cromwell e Napoleão, outros ainda, perioridade de uns sobre outros, por tasar Gracián publicou El Héroe, um nos domínios da religião, das letras agentes da intolerância ideológica e conjunto de diretrizes que deveriam ou da política – que se transforma- da violência política. Regresso, por reger a vida e as decisões dos gover- ram em modelos, no mundo em que isso, a coisas elementares, mas tra- nantes, como referência moral dos viveu “the general mass of men”. go comigo alguns dados adquiridos, homens que eles governam; e abria E pouco depois, entre 1883 e 1885, o que são os atributos com que se for- com um conselho bem significativo: Zaratustra nietzschiano enunciou os ja o herói: os sentidos do modelo, da o herói deverá cultivar o engenho de princípios constitutivos e as máximas superação individual e da calculada “ostentar-se ao conhecimento, mas que moldavam o comportamento de gestão da superioridade, bem como a não à compreensão; alimentar a ex- um herói-super-homem ameaçado pela posição de evidência do herói perante pectativa, mas nunca saciá-la de todo” “gente miúda”: o coletivo, a composição de uma sua (Gracián, 2001: 17). Diríamos hoje, imagem de mistério e de distância em como se falássemos de um herói des- “Superai-me, ó homens superiores, relação a esse coletivo. Tudo isso e portivo (já lá chegarei): o herói deve as pequenas virtudes, as mesqui também, como comecei por afirmar, a saber gerir a sua imagem (para isso nhas prudências, os escrúpulos pertinência e a vocação da narrativa servem os assessores que integram a ínfimos como grãos de areia, a como construtora de heróis. Na His- sua entourage). agitação própria de formigas, o tória, na ficção literária, na lenda e Muito tempo depois de Gracián, contentamento deplorável, a ‘ fe na mitologia. E também no desporto, em 1841, Thomas Carlyle publicou licidade da maioria’!” (Nietzsche, acrescento agora. um conhecido ensaio de forte reper- 1996: 336). cussão política, não isento de ambi- 5. Volto, então, ao mundo do des- guidades ideológicas, com o título On porto para dizer o seguinte: temos os heróis desportivos que temos porque estereotipada rigidez das suas imagens sem heróis, porque sem eles não há lemos, ouvimos e vemos relatos me- estáticas; ainda assim, quantas joga- espectáculo e nem negócio, é claro. diáticos construídos em função de um das, quantas fintas, quantas defesas “Si no hay dinero, no hay portero”, de- leque considerável de possibilidades, não fizeram, no imaginário infantil, clarou há muitos anos Carlos Gomes, dependendo de propriedades e de os heróis dos cromos da bola. um mítico guarda-redes do Sporting, combinações definidas em campos A par destes, fomos conhecendo, quando estava para ser transferido de caracterização próprios. É este ao longo do século XX, outros relatos para Espanha. Na idade do digital e da um enquadramento operatório que, mediáticos mais elaborados, no jornal informação em rede, com a celeridade estando implícito em muito do que desportivo, na rádio, escassamente e com a leveza, com a exatidão, com aqui digo, deixo com os especialis- no cinema, mais tarde na televisão, a visibilidade e com a multiplicidade tas, em particular com aqueles que esta última agora ajudada (não raro que são suas propriedades estruturan- se ocupam dos media orientados para com um barroquismo dispersivo da tes (Calvino dixit), nessa idade nova grandes massas de recetores. atenção do espectador) por incontáveis mas já nossa que é o século XXI, Dentre esses especialistas, cito câmaras, por gruas diligentes, por o espaço do jogo excedeu os limites Marie-Laure Ryan que, numa análise incessantes repetições, por ângulos físicos do campo de futebol, do court tão sucinta como esclarecedora, di- inversos, por grandes planos, por de ténis ou da piscina olímpica. Indo ferenciou as narrativas mediáticas de imagens congeladas ou em slow mo além da televisão de alcance plane- acordo com o seu alcance espácio-tem- tion, por estatísticas precisas, por di- tário, a cena de afirmação dos heróis poral, com as suas propriedades ci- agramas minuciosos, por velocidades do desporto, hoje em dia, é sobretudo néticas, com a diversidade de códigos da bola, por distâncias percorridas, o ciberespaço, ou seja, o “espaço de implicados (p. ex., os media chamados por linhas imaginárias que humilham comunicação aberto pela interconexão multicanais), com a prioridade ou hi- os árbitros. Por tudo isto e também dos computadores e das memórias dos erarquia dos canais sensoriais, com por comentadores que nada calam, computadores” (Lévy, 2007: 92). a materialidade dos signos e suportes desde o feitio da chuteira até à média Nesse novo cenário, os jogos são tecnológicos e com a função cultural de golos por campeonato, nos últimos cada vez mais videogames e talvez e métodos de produção e distribuição vinte ou até trinta anos, quase sempre até passe por aí o futuro da narra- (Ryan, in Herman et alii, 2005: 290- com desprezo pelo gozo e pelo sossego tiva. Desenvolve-se nos videogames, 291). De acordo com estas distinções, de quem vê. segundo os especialistas na matéria, até os modestos cromos da bola são Seja como for, mesmo neste mundo uma narratividade reelaborada pelas narrativas mediáticas em potência, li- em que as narrativas mediáticas são potencialidades do digital e da inte- mitadas por força do seu alcance e da exibição de si mesmas, não passamos ratividade; trata-se agora de um jogo 37 radicalmente virtual que podemos jo- à Terra. Aquele deus “tornado outra gar em qualquer lugar e em qualquer vez menino” (Pessoa, 1994: 52), di- momento, com a suave ilusão de ser- ria Alberto Caeiro, é agora um ser mos também os seus agentes e os seus humano, tal como as crianças que, protagonistas: nos videogames esco- cansadas de brincar, “limpavam o lhemos os jogadores, determinamos suor da testa quente/com a manga do as dimensões do campo, decidimos as bibe riscado” (Pessoa, 1994: 43). Ou condições atmosféricas. É nessa di- seja: desligada a PlayStation, o herói mensão do digital que se refiguram virtual refez-se pessoa normal, jovem novos heróis; e não foi por acaso, que, discreto sem brincos, tatuagens ou gel na noite de 5 de abril de 2010, depois no cabelo. Uma espécie de anti-herói de uma derrota pesada, perante um fora do campo, não tanto, ainda assim, Barcelona intratável e guiado por um como um seu companheiro de equipa, herói do futebol, marcador de quatro negação pura e confirmação a contra golos, o treinador do Arsenal, Arsène rio dos rituais do herói moderno; falo Wenger, declarou: Messi “é um joga- do extraordinário Andres Iniesta que, dor de PlayStation”. na sua aparência modesta de honrado Foi bem assim. E todavia, quem se operário já com um princípio de calví- lembra desse jogo e de tudo o que dele cie à vista, serpenteia por entre adver- fez um espetáculo memorável (espe- sários com a despojada simplicidade táculo de televisão, bem entendido), com que o dito Alberto Caeiro faz os recorda-se das suas últimas imagens, seus versos: para Iniesta, tal como na vistas por quem estava em casa mas poesia de Caeiro, o mistério do futebol não certamente pela esmagadora é ele não ter mistério nenhum. Sem maioria dos que foram ao estádio: as esse mistério e também com o rosto in- imagens são as de Messi saindo do fantil de Messi depois das jogadas de relvado, levando a bola debaixo do PlaySation, renasce alguma coisa de braço, com a alegria de uma criança uma pureza original que a tecnologia que, depois de uma tarde de futebol geradora do herói moderno rasurou de rua com amigos, regressa a casa, do nosso horizonte. suado e feliz, como um deus descido Falo do extraordinário Andres Iniesta que serpenteia por entre adversários com a despojada simplicidade com que o dito Alberto Caeiro faz os seus versos Dotado de conformação bem sin- mediática. Antes disso, está uma pro- que institucionaliza a sua imagem de gular é aquele outro herói em quem clamada e assumida metodologia do heróis modernos. Sem esse enqua- dialeticamente estava já a pensar, treino com requintes científicos, tudo dramento narrativo de que a figura quando descrevi a singeleza infantil desembocando numa imagem cuja tida por excecional carece, não se- de Lionel Messi. Trata-se do “irmão dimensão humana é quase residual. ria adequadamente realçada aquela desavindo” Cristiano Ronaldo; e di- Com o apoio de gráficos, de estatísti- semântica da ação (ação desportiva, go-o nestes termos por saber que o cas e de iconografia computorizada, neste caso) de que falou um grande motivo do irmão desavindo (Frenzel, o herói está feito um robot, com de- filósofo da linguagem, Paul Ricoeur; 1980: 146-153), como o motivo do ri- signação a condizer: CR7. Trata-se foi em função dela que Ricoeur aludiu val inconciliável, são ambos tão anti- agora de uma espécie de organismo a uma “fenomenologia do sofrer-agir” gos como os relatos fundacionais da ci- cibernético, cuja sofisticada agressi- (Ricoeur, 1984: 90) deduzida dos vilização judaico-cristã e as narrativas vidade se traduz em imagens verbais trajetos humanos e da sua inscrição identitárias da Antiguidade Clássica, que os narradores do relato mediático na temporalidade que leva da vida à matrizes de um imaginário de que já estereotiparam: Cristiano Ronaldo morte. se alimentam também as narrativas não marca livres; CR7 dispara mísseis mediáticas do fenómeno desportivo. tomahawk. A biografia é um género em que consabidamente se combinam duas Caim e Abel, Esaú e Jacob, Rómulo propriedades que muito importam à e Remo, num outro plano que é o da 6. Continuo interessado no herói heroização do atleta. Primeiro: a bi- rivalidade dos heróis, David e Golias, desportivo, na sua figuração narrati- ografia exalta uma personalidade que Aquiles e Heitor, Artur e Lancelote va e nas suas cumplicidades com o merece ser destacada do fluxo da His- não seriam heróis sem a conflitualida- universo dos relatos literários. E falo tória, assim ganhando uma proeminên- de às vezes fratricida que expressa a de outras narrativas, cuja matriz pa- cia homologada pelo facto de ser essa diferença e acentua a energia vital que raliterária é agora mais clara: reporto- personalidade a grande figura (o grande caracteriza o comportamento heroico. me à biografia como género narrativo herói) da narrativa. Segundo: a biogra- Em tudo distinto de Messi, o herói e, a seu modo, também mediático. fia recorre a elementos paraficcionais, Cristiano Ronaldo é filho da mesma Uma evidência relativamente trivial: ou seja, a componentes da “história” mãe mediática, mas é moldado por nos nossos dias, tal como acontece contada que, não sendo verificáveis em- uma figuração paraficcional própria. com os grandes estadistas, com os piricamente, às vezes ocultam zonas Expressa-se essa figuração na exube- grandes artistas ou com os grandes menos nobres da vida passada. Com rante musculação e na gestualidade de escritores, alguns desportistas ga- a conivência, até com a exigência dos guerreiro Matrix que se exibe na arena nham direito à narrativa biográfica interessados, as chamadas biografias 39 Figura 1: Aquela imagem é também a fotografia do autorizadas são exímias em cultivar pés não o tem necessariamente com Ronaldo, transforma-se em heroína, esses estratagemas de camuflagem. a pena. quando dela se publica uma biografia Curiosamente (e sintomaticamen- Trata-se, em geral, de obras de generosamente ilustrada e com título te), as biografias de homens e de mu- extensão relativamente reduzida (a brechtiano: Mãe Coragem. O subtítulo lheres do desporto são quase sempre vida que para ali importa é tão curta A mulher a quem o sofrimento nunca da autoria de jornalistas ou, no míni- como breve é a atividade do desportis- apagou a esperança prenuncia o tom mo, escritas em regime jornalístico. ta), em estilo simples, direto e pouco geral da narrativa, engendrada por Não tendo lido, de fio a pavio, os tí- dado a flores de retórica (a não ser a Paulo Sousa Costa, a figura de quem tulos que se seguem, pude perceber, hipérbole, é claro), relatando origens menos se falou na ampla divulgação pelo que deles vi, como são construí- humildes, a que se seguiu a árdua mediática a que o livro teve direito. dos: Cristiano Ronaldo: A Verdadei superação de obstáculos de toda a Insisto aqui num aspeto relevante ra História do Melhor Futebolista do ordem, com o justo prémio de taças, desta explanação, ou seja, o império Planeta (2008), por Tom Oldfield; campeonatos, medalhas e recordes, das imagens enquanto instância de Rosa Mota: Memória de uma Carrei por entre viagens incessantes, duros figuração do herói desportivo. E lem- ra (1999), por Leonor Pinhão; Carlos treinos e algumas lesões; um trajeto de bro imagens talvez já esquecidas, que Lopes (1992), por Carlos Pinhão, que vitórias, em suma, aqui e ali alternan- deram a volta ao nosso pequeno mundo foi um dos grandes jornalistas d’A do com uma ou outra chorada derrota. português; foram elas recolhidas no Bola de outrora. Para além destes e Não faltam na biografia testemunhos dia em que um herói foi derrotado de outros mais, lembro um caso assaz do visado e prolixos depoimentos de e com ele uma nação. Refiro-me às bizarro de disfuncionalidade discur- familiares, amigos, treinadores e com- fotografias de Eusébio debulhado siva, ainda no campo da narrativa panheiros de profissão. Tudo isso e em lágrimas, num certo dia 26 de da vida: uma autobiografia escrita imagens, muitas imagens, sobretudo julho de 1966, logo depois da derrota não pelo próprio, como mandam as de proezas, às vezes também de fra- por 2 a 1 com a Inglaterra (uma das regras do género, mas por um escri- cassos, porque são estes que, por fim, derrotas que, naquele tempo, eram ba de serviço: Meu nome é Eusébio: humanizam o herói. transformadas em vitórias morais). autobiografia do maior futebolista do Como se isso não bastasse, em cer- Pois bem: o que impressiona não é mundo (1966), prefácio e narrativa tos casos (que são talvez extremos), a apenas a desolação de um moço sim- recolhida por Fernando F. Garcia. Re- biografia do herói completa-se com ples de 24 anos, consolado em gesto colhida e certamente reescrita, digo a daqueles que o geraram. Por um paternal pelo selecionador Manuel da eu sem maldade, porque a derrogação efeito metonímico de impulso retroa- Luz Afonso. A desolação fala por si e é perdoável: quem tem talento com os tivo, Dolores Aveiro, mãe de Cristiano não carece de mais comentários. Mas © TALKING SPORT/Photoshot/Fotobanco fotógrafo que apoia Eusébio 41 Figura 2 e 3: Os heróis, quando derrotados pagam o preço © Esq. PA/Fotobanco | Dir. ZumaPress/Fotobanco da solidão que o poder das imagens acentua 43 aquela imagem é também fotografia do solidário abdicou. Por isso, quando de novos e mais excitantes capítulos. fotógrafo, não do que a captou, é claro, terminou a final (essa final que tragi- Mourinho, de resto, logo em 2003 mas da segunda figura que apoia Eu- camente sempre perdemos), Cristiano tivera direito a uma biografia, da sébio, o inesquecível Formidável, uma Ronaldo ergueu os olhos ao céu dis- autoria de Luís Lourenço, biografia presença que ali significa o seguinte: tante e mudo; depois chorou sozinho, que hoje sabemos provisória, porque o fotógrafo estava lá, porque tinha que perdido no relvado onde foi herói por faltava (e falta) muito para a história estar, mas por momentos fez parte do cumprir e vítima inconsolável, crian- acabar. drama como ser humano, não como su- ça abandonada à crueza de imagens Quem era José Mourinho e por porte e operador da máquina (figura 1). excessivas e quase indecorosas. Nes- que razão este herói então em projeto Com a câmara fotográfica momenta- se dia, o fotógrafo estava onde devia, indignou alguns, chocou outros e se- neamente esquecida, o fotógrafo diz- atrás da câmara (figura 2 e 3); com duziu não poucos? Era alguém que, ali nos, sem o dizer: houve um tempo em ele estavam os agentes das imagens no coração da “pátria do futebol” (me- que o espectáculo desportivo e o seu que (passe a redundância) fazem íco- táfora cara a utentes do lugar-comum), herói, começando já a ser imagem, nes e configuram heróis. Heróis que, sabia que estava a falar para o mundo consentiam a trégua de um gesto de quando derrotados, pagam o preço de (as televisões filmaram e as imagens carinho. E assim, o fotógrafo não fo- uma solidão que o poder das imagens permanecem no ciberespaço); alguém tografou porque preferiu confortar o cruelmente acentua. que afirmava um poder que nada auto- herói, porventura inocente dessa sua condição. rizava, a não ser a crença nas virtudes 7. Foi de peito aberto que, num de um heroísmo por provar. E assim, Quer isto dizer que os atletas já dia de junho desse mesmo ano de um treinador jovem, chegado de um não choram? De modo algum. Quase 2004, em Londres, um treinador pequeno país do sul, historicamente quatro décadas depois, no derradeiro português, José Mourinho, contrata- colónia económica da Grã-Bretanha, jogo do Euro 2004, um herói por- do por um milionário russo proferiu aliado poderoso e imperialista, afron- tuguês ainda em crescimento (quero uma declaração que o acompanha- tava o John Bull robusto e prosaico dizer: antes de ser o robot que dispara rá pelo resto da vida: “I am the de quem, como muitos outros, falou mísseis e antes de ter a mãe famosa European champion. I think I am a Ramalho Ortigão. E fazia-o na própria de hoje) não conteve o pranto. Mas special one.” Assim mesmo, sem ro- casa de quem o acolhia, como que nesse dia, o jovem quase adolescente deios nem modéstias, ficava enuncia- compensando, quase quarenta anos não foi acalentado por nenhum For- do o que parecia ser o princípio de depois, a derrota no Mundial de 66. As midável; todo ele era imagem, uma uma narrativa, mas que, afinal, era lágrimas de Eusébio estavam vinga- imagem de que nenhum fotógrafo já a sua continuação e a promessa das; e mais vingadas ficaram quando o jovem treinador mostrou que era herói por palavras e por atos. Por tudo isso, pela imagem que soube cultivar e pelo cognome “the special one” que o próprio Mourinho escolheu, como se desse modo se definisse a marca de água que o distingue como herói desportivo. Falo, então, do cognome como procedimento de figuração que destaca o herói desportivo dos demais praticantes, até daqueles que comungam do mesmo nome próprio. Mas antes, continuando com o “special one” e para bem justificar a justeza do epíteto, insisto na imagem desse que hoje é um herói fora das quatro linhas (outra imagem estafada), ali à beira do terreno de jogo, como líder das tropas que afrontam o inimigo (figura 4). A expressão parece excessiva e antidesportiva, mas a realidade mostra o contrário, quando sabemos que os famosos mind games do “special one” atraem sobre o treinador uma agressividade que dessa maneira é desviada dos guerreiros, libertando-os para a tarefa que lhes cabe: jogar futebol. Explico-me: José Mourinho é herói e Se o Aranha Negra balas, sabendo que o sacrifício é necessário. A História mostra-o bem e a lembra os membros iconografia confirma-o; vejamos como. No dia 3 de maio de 1808, na ma- longos que drilena Moncloa, centenas de rebeldes espanhóis, resistindo à invasão fran- protegem a baliza cesa que punha em causa a independência de Espanha, foram fuzilados, e, juntamente com num sangrento episódio de execução em massa que o genial Goya imorta- eles, a cor que os lizou numa tela famosa, “Los fusilamientos del tres de mayo” (figura 5). reveste, o Pantera De tal modo que um grande poeta português foi sensível ao episódio e fez Negra evoca a dele motivo para um extenso poema: “Estes fuzilamentos, este heroísmo, africanidade de este horror,/foi uma coisa, entre mil, acontecida em Espanha/há mais de Eusébio e das um século e por violenta e injusta/ ofendeu o coração de um pintor cha- suas origens, mado Goya,/que tinha um coração muito grande, cheio de fúria/e de mais o estilo amor” (Sena, 1988: 123-124), assim escreveu Jorge de Sena em “Carta a felino da corrida, meus filhos sobre os Fuzilamentos de Goya”. da impulsão e José Mourinho certamente nunca leu o poema de Sena e talvez não do remate conheça a tela de Goya. Mas o seu mártir porque, com desassombro e desassombro provocador leva-o, como com desprendimento, dá o corpo às a Hidra de Lerna, monstro mitológico 45 Figura 4: Mourinho dá corpo a outros projéteis: máquinas fotográficas e câmaras de televisão © Foto de Pierre-Philippe Marcou Figura 5: Los fusilamentos del tres de mayo, de Goya 47 que reganhava forças sempre que era futebol. O cognome impõe, então, uma transferida para Johan Cruijff, dito o atacada, a colocar-se no lugar dos fu- imagem que vem a ser ela mesma e o Pelé Branco, um dos jogadores mais zilados, quando chega a hora do mar- mais que lhe está associado. elegantes e inteligentes que já pisaram tírio que faz heróis. O episódio acon- Se o Aranha Negra lembra os relvados. teceu mesmo e a pouca distância da membros longos que protegem a baliza Por entre todos eles escapa-se, com Moncloa, onde tombaram os patriotas e, juntamente com eles, a cor (que é, fintas e com simulações nunca vistas, espanhóis; foi no dia 1 de dezembro de de facto, uma não-cor) que os reveste, um nome de pássaro, Garrincha. Mas 2012, quando o Real Madrid recebeu o Pantera Negra evoca a africanidade Garrincha foi outra coisa, foi um herói no Santiago Bernabéu o rival Atlético de Eusébio e das suas origens, mais o quase impossível, plebeu de pernas de Madrid e Mourinho, vinte minutos estilo felino da corrida, da impulsão e tortas saído do nada e tornado alegria antes de começar o jogo, subiu ao do remate. Nos anos 50 e até meados do povo. Disse-o Nelson Rodrigues, relvado disposto a chamar sobre si a dos 60, o Real Madrid de Puskas e que bem entendeu que Mané Garrin- atenção dos adeptos indispostos com Gento era comandado por um avança- cha, Manuel Francisco dos Santos de a carreira do Real; o treinador-herói do extraordinariamente veloz, para os nome próprio, devolveu a um povo hu- não foi executado, mas, em imitação padrões da época: Alfredo Di Stéfano, milde e anónimo um poder de que ele diferida do quadro de Goya, deu o chamado “la Saeta Rubia”, para que estava despojado, mas que a magia do corpo aos projéteis. Outros projéteis, justiça fosse feita à velocidade de um jogador resgatou, em particular quan- claro, disparados estes por outras ar- jogador de cabelos claros, coisa talvez do foi herói de duas Copas. mas, que a seu modo ferem e de ou- pouco usual num argentino. Outras tra forma também matam: máquinas alcunhas, sendo menos “nobres”, as- “Em 58, ou 62,” escreveu Nelson fotográficas e câmaras de televisão. sinalam outras diferenças. Diz-se de Rodrigues, “ o mais indigente Talvez por isso e com escasso exagero Edson Arantes do Nascimento que fi- dos brasileiros pôde tecer a sua falamos às vezes em imagens assassi- cou Pelé por corruptela do nome Bilé fantasia de onipotência. // E, por nas. Mourinho sabe-o bem, mas não – que era o de um guarda-redes por tudo isso, as multidões, sem que se intimida. ele admirado. Pouco importa. Muitos ninguém pedisse, e sem que nin pensam que Pelé quer dizer “o Rei” guém lembrasse, as massas der 8. A expressão “the special one” e está bem assim, porque não houve rubaram os portões. E ofereceram traz consigo o timbre do lugar onde foi outro como ele; por ser o rei que é, a Mané Garrincha uma festa de inventada e também a marca linguís- Pelé ficou, até hoje, um herói nacional amor, como não houve igual, nun tica de uma internacionalidade que e o génio futebolístico por antonomá- ca, assim na terra como no céu” hoje é própria dos heróis errantes do sia, de tal modo que a designação foi (Rodrigues, 1994: 138). Não raro o herói desportivo é ele mesmo e mais o coletivo sugerido pelo cognome, com as suas virtudes, com os seus defeitos e com os seus valores mágoa de quantos pensavam que DaDas multidões rendidas ao herói vid derrubaria Golias; não foi assim e -plebeu falaram também dois poetas foi também evidente que ali estiveram brasileiros: Drummond de Andrade em causa representações e atitudes de que, no dia seguinte à morte de Gar- identificação bem mais densas do que rincha, escreveu: o “agente divino” um mero jogo de futebol. foi “um pobre e pequeno mortal que Foi algo mais do que o futebol que, ajudou um país inteiro a sublimar suas com propósito nacionalista, se quis tristezas” (Andrade, 1983); e Vinicius inculcar, quando a seleção portuguesa de Moraes, no soneto “O anjo das per- de 1966 levou para Inglaterra o epíteto nas tortas”, lembrando o mágico poder coletivo de Magriços; e não por esta- mobilizador do rei do drible: “Num só rem os jogadores desnutridos, como transporte a multidão contrita/Em ato então alguns pensaram, mas porque se de morte se levanta e grita/Seu uníssono queria recuperar o episódio fantasioso canto de esperança” (Moraes, 1962). dos Doze de Inglaterra e do seu líder Não raro o herói desportivo é ele Álvaro Gonçalves Coutinho, o Magri- mesmo e mais o coletivo sugerido pelo ço. O dito episódio está n’Os Lusíadas cognome, com as suas virtudes, com e tal bastou para que os poderes de os seus defeitos e com os seus valores. então pensassem que isso era motivo Na seleção alemã campeã do mundo suficiente para que se galvanizasse de 1974, destacavam-se dois jogado- (termo bem futebolístico) um povo. Só res, o ponta de lança Gerd Müller e que os Magriços originais eram uma o médio Franz Beckenbauer, capitão lenda literária, não uma imagem nítida da equipa. O primeiro era o Panzer, e visível; sem ela, nada feito. o segundo era o Kaiser. Não é preciso dizer mais, para reconhecer os 9. Deixo de lado os cognomes e sentidos de militarismo, de disciplina, fixo-me, então, nas imagens que, numa de poder e de imperialismo que estes cultura mediática que vive delas, va- sobrenomes conotam. No jogo final lem por muitos manifestos políticos e desse mundial, a Alemanha derrotou por não poucas proclamações ideoló- a Holanda de Cruijff e Neeskens, para gicas. E fazem heróis coletivos. 49 Quando não ganha quem se espera, ao ouvido, por entre as aclamações 69 minutos de jogo, o italiano Marco quando a finta é desfeita e a defesa fica da multidão, palavras de prudente Tardelli marcou o segundo golo à Ale- incompleta, o herói é vencido e com ele lembrança de uma condição humana manha e correu para a glória, porque as ilusões que lhe havíamos confiado. que nenhum herói deve esquecer. Os o jogo estava praticamente ganho. Cor- Dentro e fora do campo, fisicamente deuses podiam ficar invejosos do ex- rijo: aquilo que nos contam as imagens ou moralmente. Como que atingido cesso da glória. Outros excessos, por de euforia que deram a volta ao mundo por uma maldição aziaga, Fernando causa da fama atingida ou a atingir, não é tanto o golo de Tardelli3 , é a Pascoal das Neves, de alcunha Pavão, derrubam moralmente heróis despor- vitória de uma certa latinidade con- tombou morto no Estádio das Antas tivos do nosso tempo, desavisados dos tra os povos do Norte. Os italianos ao minuto 13, num jogo da jornada riscos da ambição: os casos de Lance vinham de um Estado unificado por 13, num dia chuvoso de dezembro de Armstrong e de Oscar Pistorius (este Garibaldi, mas também pelo despor- 1973, a três dias de cumprir 26 anos, com a alcunha, já de si inquietante, to-rei; para além disso, eram boni- ou seja, duas vezes 13. Antes e depois de Blade Runner) falam por si e dis- tos, elegantes, ágeis e tinham nomes dele outros heróis ficaram por cumprir, pensam comentários, a não ser dizer musicais – Graziani, Gentile, Conti, porque caíram em plena competição. que a derrota moral parece ainda mais Oriali, Altobelli. Do outro lado esta- O primeiro de todos, na nossa memó- penosa do que a derrota desportiva. vam os germânicos, louros e hirsutos, ria coletiva, foi talvez o maratonista Esta, para todos os efeitos, faz parte com nomes que aos ouvidos do sul Francisco Lázaro, evocado como per- da lógica do jogo. soavam quase como bárbaros, Horst sonagem de um romance de José Luís É precisamente da queda do he- Hrubesch, Karl-Heinz Rumenigge, Peixoto, Cemitério de Pianos (2006). rói enquanto atleta cumpridor das leis Paul Breitner, Harald Schumacher. De todos podemos afirmar como Fer- do jogo que quero ainda falar. Para o Venceram os latinos e por uma vez nando Pessoa, na morte de Mário de fazer como comecei, trago de novo à não valeu aquela máxima mais tar- Sá-Carneiro: “Morre jovem o que os reflexão a personagem que se destaca de inventada por um jogador inglês, Deuses amam”. Como quem diz: há na grande narrativa que é o jogo de Gary Lineker: “O futebol é um jogo heróis desportivos que se vão, talvez futebol: o guarda-redes. Tal como o simples: são onze contra onze e no porque eram grandes de mais para herói romântico, ele está solitário en- fim ganham os alemães.” Nem sempre, a sua precária condição de mortais. tre os postes e é diferente dos demais: como se viu. 3 Veja-se em https://www.youtube.com/ watch?v=7XOL8o-3TZ8. Conta-se que, na Roma antiga, equipa-se de modo distintivo e segue durante o desfile da vitória, o ge- regras próprias que às vezes transgri- neral vencedor era acompanhado de, por exemplo, quando, em desespe- por um escravo que lhe murmurava ro de causa, vem à área adversária ou © http://gaucha.clicrbs.com.br Na final do Mundial de 1982, aos Figura 6: Mundial de 1950: a onze minutos do fim, nascia no Maracanã, sob o olhar de 200 mil pessoas, o anti-herói. 51 quando ousadamente finta o avançado nos ombros, em segundos decisivos, um anti-herói, o guarda-redes, na- que o ameaça. O colombiano Higuita sem apelo nem retorno. turalmente. Por causa dele e só por saía a jogar com os pés e às vezes da- Não foi preciso um penalty para causa dele, desatava-se o pranto num va-se mal; e o brasileiro Rogério Ceni que, numa tarde de 1950, um guarda país inteiro, que se tinha por vencedor deixou a baliza para marcar, de livre -redes passasse de herói a anti-herói antecipado. A culpa, carregada até ao e de penalty, mais de cem golos pela em frações de segundo. Há poucas fim da vida por aquele atleta negro sua equipa, o São Paulo. Guarda-redes imagens da tragédia (digo tragédia, nascido em Campinas, era irremissí- contra guarda-redes: não há fratricídio sem exagero), porque nesse tempo a vel. Não foi o defesa que falhou o de- mais dramático. televisão não entrara ainda nos está- sarme, não foi o médio que desajudou Na marcação do penalty é a solidão dios de futebol, o cinema tinha as suas o defesa. Quem perdeu e para sempre total do condenado à execução. Nes- limitações e as fotografias eram pou- foi o guarda-redes, arrastando no seu se momento em que o tempo parece cas e às vezes de qualidade precária. fracasso todo um povo, mais as suas deter-se, trava-se um duelo que de Falo da final do Mundial de 1950, num ilusões desfeitas e as suas alegrias um dos lados tem sempre o mesmo dia 16 de julho em que um pequeno frustradas 4 . protagonista, herói celebrado quando país venceu a grande nação que fazia Que o guarda-redes erra muitas defende, anti-herói humilhado quando do futebol uma causa coletiva e um vezes, é sabido. Afinal de contas e é batido. Foi um pouco disso que Pe- emblema de afirmação identitária. para todos os efeitos, se ele é o pri- ter Handke transpôs metaforicamente O Uruguai-David bateu o Brasil-Go- meiro que ataca é também ele o último para uma novela intitulada A Angús lias, com um golo do avançado Alcides que defende. Seja como for, naquela tia do Guarda-Redes antes do Penal Ghiggia marcado ao guarda-redes Bar- história que já muitas vezes se contou ty (1970), depois passada ao cinema bosa; em três instantâneos estão fixa- ao longo de 90 minutos e que se chama por Wim Wenders; e foi certamente dos os tempos do desastre: a bola que jogo de futebol, lá está ele sempre. Di- a pensar no título de Handke que voa, o guarda-redes que parece olhá-la, ferente dos outros, elegante, carismá- o antigo jogador argentino Jorge Val- já certo da derrota, por fim o retrato tico e distante. O herói guarda-redes. dano escreveu sobre “O penalty sem do irrecuperável desalento, quando o O autêntico “special one”. angústias”, dizendo dele: é “um golo derrotado tarda em reerguer-se, sob o por acabar (e que pode acabar mal)” peso imenso do erro já irremediável. (Valdano, 1983: D5). Para o guarda Faltando dez minutos para as cinco -redes, antes de mais, para a equipa da tarde e apenas onze para o jogo juntamente com ele e para tudo o mais terminar, nascia, no Maracanã e sob o que aquele singular jogador carrega olhar aterrorizado de 200 mil pessoas, 4 Ver http://gaucha.clicrbs.com.br/rs/noticia-aberta/ghiggia-conta-como-calou-o-maracana-na-copa-do-mundo-de-1950-54120. html. Bibliografia RODRIGUES, N. (1994). À sombra das files/1091/1091-h/1091-h.htm (aces- chuteiras imortais. Crônicas de CAMÕES, L. de (1972). Os Lusíadas. Leitura, prefácio e notas de Álvaro Júlio da Costa Pimpão. Lisboa: Instituto de Alta Cultura. FRENZEL, E. (1980). Diccionario de motivos de la literatura universal. Madrid: Gredos. GRACIÁN, B. (2001). El héroe. Barcelona: Estrategia Global. LÉVY, P. (2007). Cibercultura. 2ª ed. São Paulo: Editora 34. LUKÁCS, G. (1970). La théorie du roman. Paris: Éditions Gonthier. so a 12.7.2014). MORAES, V. de (1962). Livro de sonetos. futebol. 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Paris: Seuil. 53 Rui Machado Gomes Professor da Faculdade de Ciências do Desporto e de Educação Física da Universidade de Coimbra: [email protected] © Lugares da Personagem, António Barros, 2014-2015, #4 - Cerveira_Vulto Limite Ascensão e Queda das Celebridades Desportivas Resumo: Abstract: A análise crítica da construção das cele- The critical analysis of the construction of bridades desportivas contemporâneas pelos the contemporary sports celebrity by the meios de comunicação proporciona o en- media provides the framework necessary quadramento necessário à conceptualização for conceptualizing the way people use do modo como os sujeitos usam os recursos media resources for their creativity and for mediáticos para a sua criatividade e para production of identity. It is considered that os processos de produção de identidade the nature of the sports celebrity suffered defendida pelo autor. Considera-se que a strong mutations since the ‘ 60, that the natureza da celebridade desportiva sofreu creation and maintenance of the celebrity fortes mutações desde os anos 60, que a is in itself an industry made possible by criação e manutenção da celebridade é em si the media and that this process is driven mesma uma indústria tornada possível pelos from one-dimensional visions. The media meios de comunicação e que este processo creates narratives that often oppose the é conduzido a partir de visões unidimensio- sporting heroes and villains. This narra- nais e maniqueístas. Os media criam com tive structure is part of a more general frequência narrativas que opõem os heróis e process of globalization of the society of os vilões desportivos. Esta estrutura narra- the spectacle. Providing a temporary tar- tiva integra-se num processo mais geral da get for the collective consciousness, the mundialização da sociedade do espectáculo. sporting performances and the iconomania Proporcionando um alvo temporário para a guarantee the illusion of immediacy and, consciência colectiva, os espectáculos des- simultaneously, of self-referentiality. It is portivos e a iconomania que os acompanha concluded that the universalization of the garantem a ilusão de instantaneidade e, modes of life guaranteed by sport gaze simultaneamente, de autoreferencialidade. accompanies the maximum of individua- Conclui-se que a universalização dos mo- lization of each in your private space. dos de vida garantidos pela desportivisão acompanha o máximo de singularização de cada um no seu espaço privado. Palavras-chave: Celebridade; sociedade Keywords: Celebrity; society of spectacle; do espectáculo; iconomania; desportivisão iconomania; sport gaze. 55 A sociedade do espectáculo: desportivisão acompanha o máximo do homem memorável de singularização de cada um no seu ao homem calculável espaço privado. Este não é um fenómeno recente, mas o desenvolvimento Os pós-modernistas dizem que sem precedentes da homogeneização vivemos numa sociedade do espe- e codificação das regras desportivas táculo. O lazer e a cultura popular em todo o planeta, bem como o con- estão verdadeiramente fascinados trolo acrescido do fenómeno desportivo pelos espetáculos de massas como por fortes interesses financeiros, tem os grandes concertos ou os grandes acentuado, nas duas últimas décadas, eventos desportivos. A multiplicação o seu correlato: a desportivização do sem fim das competições desportivas mundo como metáfora por excelência internacionais domina a perceção que da globalização. Sob o regime da difu- hoje temos do fenómeno desportivo e, são televisiva em direto, que permite a num certo sentido, do próprio mundo. transmissão electrónica quase instan- Os Jogos Olímpicos, os Campeonatos tânea dos acontecimentos desportivos, do Mundo das mais diversas modali- assiste-se a uma nova espacialização dades, os torneios de ténis e de golfe planetária dominada por um tempo e a miríade de acontecimentos des- unificado. Ao ritmo das competições portivos que todos os dias invadem as e dos calendários desportivos surgem nossas casas constituem um dos mais novas ofertas nos mass media que não poderosos veículos de fascinação das se limitam a transmitir acontecimentos multidões. Pelo seu modo de difusão, ou a influenciar, mas são elas próprias o desporto tornou-se num dos princi- criadoras de realidade. pais motores da mundialização. Pro- A iconomania (Anders, 2001) porcionando um alvo temporário para transformou os campeões e os despor- a consciência coletiva, os espetáculos tistas de alto nível em modelos publi- desportivos garantem a ilusão de ins- citários e em formas de identificação tantaneidade e, simultaneamente, de juvenil; os estilos de vida, a imagem autorreferencialidade. A universaliza- e o corpo dos novos ícones passaram ção dos modos de vida garantidos pela a ser modelos desejáveis de sucesso Pelo seu modo de difusão, o desporto tornou-se num dos principais motores da mundialização social. No início deste novo século o desporto-espectáculo e desenvolver A medida da performance desportiva desporto transformou-se na indústria o culto individual do corpo. Cada manifesta um novo poder da raciona- de entretenimento mais conhecida e um aceita para si a busca de uma lização corporal. Em primeiro lugar, mais vista em todo o globo. harmonia natural com o seu corpo, porque converte o desportista num No entanto, a este movimento ao passo que colectivamente, e isso campo racional, medível, calculável ascendente do desporto visto não acontece cada vez mais através de e programável; em segundo lugar, tem correspondido um movimento intermediários interpostos, cada porque torna possível a constitui- homólogo de atividade física e um se submete à ideologia com- ção de um arquivo escrito sobre a desportiva feita. Trata-se de um as- bativa de corpos artificialmente performance individual do despor- peto particular do gap mais geral entre profissionalizados” (Andrieu, tista e a sua posição relativa numa espetacularização da sociedade e re- 2004: 55). determinada população; em terceiro dução da experiência corporal que tem lugar, porque estabelece a norma e também como consequência o forte É neste paradoxo que reside o respectivos desvios. A consolidação impacto das grandes vedetas despor- poder mercantil das celebridades desta tecnologia permitiu que a ati- tivas no imaginário e nos desejos da desportivas. A compreensão deste vidade desportiva, de competição, de cultura popular. paradoxo remonta à própria génese lazer ou de saúde se desenvolva hoje Embora a performance desportiva da desportivização da sociedade. sob um regime de registo, prova e de alto nível pertença a uma lógica A racionalização, a quantificação e graduação e a sociedade se organize diferente da lógica de manutenção do a busca constante do record são três segundo normas de produtividade. corpo, a desportivização da socieda- caraterísticas que fazem do despor- Deste modo, a cultura visual ins- de promovida pelo olhar desportivo, to um fenómeno social homólogo dos crita na atividade desportiva inclui ordena os comportamentos de lazer e fundamentos da sociedade capitalista um regime ético para as atividades de consumo de acordo com rituais de e da modernização. A prova despor de lazer. Na verdade, aquilo que é autodisciplina, racionalização e regu- tiva e a medida da performance que hoje considerado uma forma “suave” laridade. O cronómetro do desportista a acompanha constituem as tecno- de ouvir e seguir o próprio corpo (o profissional deu lugar a um cronómetro logias que, no contexto desportivo, jogging, por exemplo) é acompanhado incorporado em cada um. fundamentam a arte de racionalizar o frequentemente de sofrimentos, dietas gesto desportivo e, simultaneamente, alimentares, observação de interditos “O paradoxo da nossa sociedade estabelecem as estruturas cognitivas e estilos de vida típicos que conduzem está em, simultaneamente, pôr em que tornam aceitável e necessário o praticante ao ascetismo, vivido em- cena a competição desigual do pessoas calculáveis (Hacking, 1986). bora como hedonismo. 57 E esse é bem o paradoxo da so- eventual e sempre transitória. O ho- O desporto é uma construção so- ciedade da desportivisão. Um novo mem memorável deu lugar ao homem cial que, enquanto tal, representa as complexo de saberpoder constituiu- calculável, sujeito à racionalidade e à ideias e valores dominantes. O despor- se com a possibilidade de estabelecer mobilidade meritocrática. A celebrida- to de alta competição tem sido utili- medidas objectivas do valor humano. de desportiva é, por conseguinte, um zado pelos Estados para promoverem A marca do desportista funciona, si- fenómeno típico da época do homem as interpretações que procuram de- multaneamente, como um registo de comum. Do homem comum que pode monstrar como deve funcionar a vida uma performance pretérita e como ascender à notoriedade através da de- social (Coakley, 1998). Por outro lado, uma expressão quantificada do valor monstração dos seus feitos. Graças ao o record revela as provas desportivas humano. Depois de agregadas, as aparelho estatístico que acompanha as como uma das metáforas dominantes marcas tornam-se numa medida da técnicas de notação, registo e arqui- da conceção democrática e meritocrá- competência subjacente do sujeito, vo das marcas desportivas é possível tica da sociedade (Bromberger, 1995). constituindo um novo modo de pro- estimar o valor de cada indivíduo e, Valores como o trabalho, espírito de blematização de si face aos outros. simultaneamente, apreciar e caracteri- equipa, ambição, união, esforço, mo- Esta é a base racional da criação das zar os grupos. Por um lado, nasce uma déstia, respeito e disciplina, entre celebridades desportivas, embora nova modalidade de poder, em que outros, tornam proeminente a crença depois sejam sujeitas a um efeito de cada um recebe como estatuto aquilo na eficácia da superação de si. ampliação extraordinário pelos meios que parece ser o seu valor intrínseco; No entanto, a natureza da cele- de comunicação. por outro lado, instituise a repartição bridade desportiva atual é bastante Durante muito tempo os comporta- das diferenças individuais no conjunto diferente da dos anos 60. Enquan- mentos individuais estiveram ao abrigo da população. Num único lance, o des- to as celebridades desportivas de da descrição pública. Conhecer o valor porto competição inicia a construção há 50 anos eram conhecidas pelos de cada um, por intermédio da sua de uma estrutura de oportunidades seus feitos desportivos, a celebrida- história de vida, estava reservado a aparentemente universal, formas de de contemporânea é apenas parcial- um restrito grupo social que tratava de mérito padronizadas e estratégias de mente construída por intermédio do narrar os seus feitos. Em todo o caso, obtenção de estatuto e mobilidade so- seu sucesso. Com efeito, a criação e as narrativas de vida visavam consti- cial. A democratização da reputação manutenção da celebridade é em si tuir uma memóriamonumento. Com a dissolve o estatuto do antigo herói mesma uma indústria tornada possível performance desportiva não se trata numa estrutura de oportunidades em pelos meios de comunicação. A cons- de constituir uma memória futura, mas que, supostamente, todos podem ter trução de celebridades desportivas um feito para uma utilização imediata, acesso ao estatuto de celebridade. pela comunicação de massas é feita a partir de visões unidimensionais e mesmo como estrelas convidadas em Nos anos mais recentes, alguma maniqueístas. Os media criam com soap operas. A sua importância me- literatura dos estudos de comunicação frequência narrativas que opõem os diática deixou de estar restringida às e jornalismo passou a interessar-se heróis e vilões desportivos. A boa con- carreiras desportivas. As suas vidas mais pela pesquisa do modo como duta de Lineker é comparada com a pessoais, transformadas em narrati- os sujeitos usam os recursos mediá- vilania de Vinnie Jones; a brutalidade vas melodramáticas, são transportadas ticos para a sua criatividade e para de Dennis Rodman é oposta à rectidão para as revistas cor-de-rosa, para os os processos de produção de identi- de Jordan. No entanto, assim como os tablóides ou para os videojogos. A im- dade. Este novo interesse, de que o media os podem erguer aos píncaros portância mediática não se restringe modelo de Abercombrie e Longhurst também os podem atirar abaixo do pe- às suas carreiras desportivas, passan- (1998) do espétaculo/performance é destal como os casos de Armstrong e do a sua vida pessoal a ser alvo de o exemplo mais evidente, afasta-se Pistorius recentemente demonstram, programas televisivos e de primeiras da consideração das audiências e ou os casos de Maradona e Gascoigne páginas dos jornais, como o demons- dos consumidores como o ponto final demonstraram no passado. tram bem os casos de Paul Gascoigne e culminante do processo de comuni- Grande parte da linguagem usada durante o Mundial de 90, ou de David cação, considerando, em alternativa, para descrever as estrelas desporti- Beckam há mais de uma década e mais os actos de produção das audiências vas vai buscar ao melodrama a sua recentemente de Cristiano Ronaldo. e a totalidade do ciclo de produção e estrutura narrativa. Os heróis sobem Os estudos sobre os media têm e caem, os vilões são derrotados e as uma longa tradição assente numa Os efeitos económicos e de reco- mulheres cumprem os seus papéis visão passiva das audiências, enten- nhecimento das marcas provocado de suporte aos papéis dramáticos didas como recetáculos desta sedução pelo envolvimento das celebridades dos homens. Neste sentido, os media produzida pelos mass media. Embora desportivas tem sido medido com cumprem um papel de educação das Adorno tivesse razão quando chamava precisão. Sabe-se que os efeitos são audiências, fazendo-as aceitar o des- a atenção para o facto de a indústria tremendos e se medem por transac- porto como uma espécie de melodra- cultural se basear num sistema de do- ções de milhões de dólares. O que ma. Rowe (1995) sugere que muitas minação, essa tradição dos estudos é menos claro são os motivos psico- celebridades desportivas ultrapassam críticos, centrada no efeito provocado lógicos, emocionais e culturais que as fronteiras entre o desporto e outras pelos emissores, esquece o modo como fazem os consumidores seguir o aval indústrias de entretenimento. As ce- os padrões mais globais de interacção que as celebridades dão às marcas. As lebridades desportivas aparecem em formam e são formados pelas redes de pessoas compram ténis ou champôs shows televisivos, em videojogos e relações sociais. devido às proezas físicas dos atletas? de consumo das notícias. 59 Ou porque têm confiança no seu per- respeito e exercem uma influência sagrado e das igrejas, os pressupostos curso de atletas que se fizeram a si preventiva na gestão das emoções religiosos da via da salvação viram próprios? Invejam e admiram o seu na vida quotidiana; as suas referências muito limitadas. sucesso material ou os consumidores 4) As celebridades são símbolos de Celebridade e espetáculo preencheram são atraídos pelos seus estilos de vida sucesso material que deste modo o vácuo provocado pela erosão das re- construídos em torno de actividades atraem sentimentos de desejo, in- ligiões, contribuindo para o culto da tidas por não laborais? E poderíamos veja ou desaprovação. distração que valoriza o superficial juntar muitos outros motivos. e o domínio da cultura de consumo. As perguntas ilustram bem a com- A passagem de uma sociedade plexidade das relações entre os dese- Dos valores de uso aos baseada na ética do trabalho para jos dos consumidores e fãs e o estatuto valores de troca uma sociedade de consumo provocou das celebridades. E isso só pode ser um conjunto de mudanças profun- bem diagnosticado através da inves- Uma das caraterísticas da socieda- das. Em primeiro lugar, alterou-se tigação empírica junto dos receptores de capitalista é a transição dos valores o modo como se preparam e educam das mensagens dos meios e das marcas de uso para os valores de troca como os sujeitos para satisfazer as condi- que veiculam as celebridades despor- modo dominante das interacções so- ções impostas pela sua identidade tivas. O que os estudos empíricos têm ciais. Em sociedades dominadas pelo social. As instituições clássicas de revelado confirma algumas hipóteses valor de troca, o idioma da apresen- tipo disciplinar caíram em desuso. teóricas que Rojek (2001) sintetiza: tação corporal aumenta em importân- O tipo de treino proporcionado pelas cia social e económica. Ser atrativo e instituições panópticas – o emprego 1) As celebridades desportivas trans- capaz de produzir desejo tornaram-se na fábrica ou no escritório para toda mitem-nos modelos de individua- atributos procurados no mercado. O a vida, o serviço militar obrigatório, a lização (que alguns designam por corpo deixa de ser um mero local de escola, etc – já não serve à formação heroísmo) numa época de estan- desejos e torna-se na superfície em dos novos consumidores. Enquanto a dardização e previsibilidade; que a distinção e a atracção são re- sociedade das disciplinas formatava 2) As celebridades desportivas são re- gistados. O corpo torna-se por conse- as pessoas para comportamentos ro- guinte numa mercadoria. tineiros e monótonos, eliminando ou cecionadas como objetos sexuais que atraem os consumidores; A celebridade desportiva é parte limitando as possibilidades de escolha 3) As celebridades expressam as vul- deste processo através da sua parti- individual; os requisitos necessários nerabilidade humanas que, deste cipação na cultura de distracção e a um bom consumidor exigem agora modo, mobilizam a simpatia e o entretenimento. Com o declínio do uma subjetividade assente num estado A cultura de celebridade não consegue produzir valores transcendentais. Qualquer gesto que vise a transcendência é, no limite, cooptado pela mercadorização. permanente de escolha, avesso a qual- sociedade é uma comunidade de car- quer rotina. tões de crédito e não de cupões de Em segundo lugar, o modo de aforro. A ética protestante do trabalho, ação da produção e do consumo têm tem no uso autodisciplinado do tempo, naturezas muito diversas. Enquanto a no trabalho duro e na satisfação re- produção é uma ação coletiva que su- tardada os princípios fundamentais da põe a divisão de tarefas, a cooperação automodelação dos sujeitos. O traba- entre os agentes e a coordenação das lho é um dever que está acompanhado suas atividades, com os consumido- por uma atitude rígida relativamente res passa-se justamente o contrário. ao prazer e aos divertimentos. Pelo O consumo coletivo não existe: trata-se contrário, a estética do consumo tem de uma atividade individual, solitária, na possibilidade de fazer coincidir o que se cumpre no livre jogo individual momento da escolha com o momento das sensações e desejos. Como afirma da vivência gratificante a sua principal Bauman (2003), se a comunidade de caraterística. Por isso, as normas regu- produtores era essencialmente plató- ladoras do consumo são improcedentes nica, centrada que estava nas regras perante uma lógica generalizada de e na estrutura final das ações, a socie- sedução que pressagia novas emoções. dade de consumidores é basicamente Acumular primeiro para adquirir de- aristotélica, orientada que está por pois deixou de fazer sentido em face comportamentos pragmáticos e uma da estética do consumo que premeia matriz cognitiva flexível. A liberdade as experiências intensas. O único cri- de escolha é a medida que estabelece tério válido é consumir primeiro para a estratificação na sociedade de con- pagar depois, já que a noção de tem- sumo. Quanto maior é a liberdade de porário, transitório e efémero marca escolha sem restrições mais elevada é todo o objecto e toda a experiência a posição na hierarquia social. de consumo. A mercantilização do Uma terceira característica que futuro que carateriza as dívidas do marca a transição da produção para consumidor passa a estar intimamente o consumo diz respeito à ética. Na feliz associada a um trabalho de domínio síntese de Bauman (2003), a nossa de si, já que o consumo não se limita 61 a uma perspectiva hedonista de just O desejo passa a organizar-se em A cultura da celebridade é par- fun, constituindo uma forma básica de torno da estética do efémero. Neste cialmente a expressão de uma cultura autoprodução da identidade. regime de consumo é no olhar e no organizada em torno deste desejo abs- Appadurai (2004: 95-119) de- próprio corpo que se inscrevem as trato. Trata-se de um instrumento de senvolveu o pressuposto do consumo principais técnicas de autodisciplina mercadorização da sociedade visto que enquanto vivência estética. Conside- e automodelação. o desejo é incorporado, fornecendo aos rando que a competência para cada consumidores padrões de emulação um se orientar pelos fluxos temporais obrigatórios. A cultura de celebridade abertos do crédito e da compra implica Coda: a cultura é um dos mais importantes mecanis- uma nova forma de trabalho, conclui de consumo mos de mobilização do desejo. Des- que este trabalho não visa sobretudo de logo porque materializa o desejo a produção de mercadorias, mas antes Mas o que carateriza esta cultu- num objecto animado que permite a criação de condições de consciên- ra de consumo? Em primeiro lugar é níveis mais profundos de ligação e cia em que pode ocorrer a compra. O incapaz de produzir uma cultura in- identificação. A celebridade pode ser núcleo deste trabalho é aquilo a que tegrada visto que apresenta cada pro- reinventada para renovar o desejo e o Appadurai chama a disciplina social duto como uma distinção momentânea envelhecimento dos ícones desportivos da imaginação. Esta disciplina está e, portanto, efémera. Deste modo, a pode mesmo funcionar como um ponto ancorada na incorporação do prazer cultura da celebridade não consegue a favor do seu valor de mercado desde do efémero, ilustrada pela produzir valores transcendentais visto que reciclado como objeto de nostal- que qualquer gesto que vise a trans- gia. Os exemplos de Boby Charlton, curta vida de prateleira dos pro cendência é, no limite, cooptado pela McEnroe e outros demonstram que o dutos e dos estilos de vida; a ve mercadorização. O capitalismo requer envelhecimento e mesmo a morte não locidade com que muda a moda; que os consumidores desenvolvam um são um impedimento ao processo de a velocidade dos gastos; os polir desejo abstrato por objetos de con- mercadorização. ritmos do crédito, da aquisição e sumo. Esta qualidade abstrata torna O mundo das celebridades é um da oferta; a transitoriedade das o desejo dos consumidores alienado mundo que repousa na opinião. A re- imagens dos produtos na televisão; na medida em que estes são conduzi- núncia ao segredo é o preço a pagar a aura de periodização que paira dos a substituir permanentemente a para aceder ao estatuto de celebri- sobre os produtos e os estilos de procura de certos objetos por outros dade neste mundo da notoriedade. vida na iconografia dos meios de novos, num autêntico fetichismo da Para ser conhecido é preciso aceitar comunicação de massas. mercadoria. revelar tudo sem nada esconder ao seu público. Existe uma verdadeira aler- das celebridades desportivas é hoje Hacking, I. (1986). Making up people. In T. gia ao segredo por parte dos públicos. tão sujeito a processos de erosão, es- C. Heller, M. Sosna e D. E. Wellberg Daí que as celebridades desportivas quecimento e queda abrupta. Os cinco (eds.). Reconstructing Individualism. estejam permanentemente confronta- minutos de fama de Wharol continuam Stanford: Stanford University Press, das com os exercícios confessionais, a ser a alegoria do valor efémero de pp. 222-236. habitualmente realizados através dos toda a celebridade. Rojek, C. (2001). Celebrity. London: Reak- media. As vedetas aceitam assim re- tion Books. nunciar à sua vida privada. No mundo baseado na opinião a Rowe, D. (1995). Popular Cultures: Rock Bibliografia Music, Sport and the Politics of relação de grandeza é uma relação de Pleasure. London: Sage. identificação. O sujeito célebre produz Abercombrie, N., Longhurst, B. (1998). o público e constitui-o enquanto tal, Audiences: A Sociological Theory do mesmo modo que é feito por ele. of Performance and Imagination. Estabelece-se assim uma relação de London: Sage. adesão entre o público e a celebri- Anders, G. (2001). L’Obsolescence de dade que se expressa em termos de L´Homme. Paris: L’Encyclopédie influência. As marcas permitem cristalizar numa imagem este movimento de opinião. A instrumentação dos des Nuisances. Andrieu, B. (2004). A Nova Filosofia do Corpo. Lisboa: Instituto Piaget. media assegura a objetivação através Appadurai, A. (2004). Dimensões culturais dos rumores, dos ruídos e do julga- da globalização. Lisboa: Teorema. mento de opinião. Ser grande neste Bauman, Z. (2003). Trabajo, consumismo mundo significa ter uma certa quota y nuevos pobres. Barcelona: Gedisa de presença nos meios de comunica- Editorial. ção, um certo número de seguidores Bromberger, C., Hayot, A., Mariottini, J.- nas redes sociais, um certo volume de M. (1995). Le Match de Football: reações positivas da opinião pública. Ethnologie d’une passion partisane Ser pequeno é cair na banalidade ou à Marseille, Naples et Turin. Paris: ter uma imagem fluida ou indiferente. Maison des Sciences de l’Homme. Desaparecer dos media significa ser Coakley, J.J. (1998). Sport in Society (6ª esquecido. E é por isso que o mundo ed.). Boston: McGraw –Hill. 63 Raymond Boyle é membro do Center for Cultural Policy Research da University of Gasgow (Escócia) Reflexões Sobre Comunicação e Desporto: Sobre Jornalismo e Cultura Digital ([email protected]) Reflections on Communication and Sport: On Journalism and Digital Culture Resumo investigações futuras necessárias para and the entertainment industries. The fo- Raymond Boyle reflete sobre a evolução ao auxiliar a compreensão dos impactos cul- cus section further considers the real and longo dos últimos 20 anos no Reino Unido turais das mudanças tecnológicas sobre o projected effects of digital journalism and da pesquisa em desporto, no quadro dos papel do jornalismo desportivo. the potential of citizen journalists to trans- © Lugares da Personagem, António Barros, 2014-2015, #5 - Sevilha_Metropol Parasol - J. Mayer H. estudos dos média e da comunicação. Na form sport journalism. The essay closes primeira parte do artigo, a importância Palavras-Chave: Jornalismo desportivo, with consideration of future research that cultural da comunicação e do desporto televisão, desporto, digital, jornais will be needed to help us understand the é sublinhada. Na segunda, são passadas cultural impacts of technological change em revista as influências na agenda de on the role of sport journalism. pesquisa do autor, em especial na área Abstract do jornalismo desportivo, e as mudanças In this essay, Raymond Boyle reflects on Keywords: Sports journalism; television; estruturais arrastadas pelos média digi- how the study of sport within media and sports; digital; newspapers tais. Nesta secção, Boyle evoca os inves- communication studies has evolved in the tigadores e os trabalhos mais influentes United Kingdom over the last 20 years. na área da comunicação e desporto. A The first part of essay comments on the terceira parte, dedicada ao jornalismo cultural importance of communication and e à cultura digital, contém uma análise sport. The second section traces the in- da evolução do jornalismo desportivo e fluences on the author’s research agenda, das mudanças ocorridas no papel dos particularly in the area of sportjournalism jornalistas desportivos. O autor analisa and the structural changes brought toitby concretamente a mercantilização, a co- digital media. Here, Boyle comments on mercialização e a internacionalização do the most influential scholars and works jornalismo desportivo, bem como os efeitos on communication and sport. The focus da emergência das relações públicas e da section of the essay considers the evolution sinergia entre a indústria do desporto e of sport journalism and the changing role as indústrias de entretenimento em geral. of sports journalists. In this section, the Nesta secção, o autor considera ainda os author considers the nexus of marketiza- efeitos reais e previstos do jornalismo di- tion, commercialization, and the interna- gital e o potencial dos jornalistas-cidadãos tionalization of sport journalism and com- para transformar o jornalismo desportivo. ments on the riseof public relations and O artigo termina com a consideração de the synergies between the sports industry Tradução de Rita Basílio de Simões, FLUC ([email protected]) * Artigo originalmente publicado na revista Sage Communication & Sport, 2013 (1/2):88-89. 65 Qual a importância ser uma forma cultural incerta para se evolução, as suas implicações e o seu do desporto expressar abertamente qualquer senso impacto sobre nós diz-nos muito sobre e da comunicação? de identidade nacional, uma vez que a nossa sociedade, as suas priorida- a natureza competitiva dos desportos des, desejos e aspirações. A media O desporto é importante mais em de equipa de elite significa que o fra- ção do desporto e os discursos que o razão do que nos diz sobre a socie- casso é muitas vezes mais propenso a conectam com os domínios da política, dade do que especificamente sobre a aparecer no caminho de sucesso. Na da economia e da cultura de modo mais natureza da competição desportiva. Escócia, por exemplo, o desejo pelo geral oferecem ricos e esclarecedores No seu nível mais básico, o desporto sucesso do futebol a nível internaci- caminhos de compreensão da relação oferece uma visão sobre o caráter, a onal, apesar do desporto estar a ser entre os media e a sociedade e as es- natureza humana (o melhor e o pior tecido na trama da vida cultural do truturas de poder que moldam e in- de) e a criatividade humana. Reve- país, diz-se: “É a esperança que nos fluenciam a nossa existência diária. la aspetos da identidade individual mata”. Cada novo torneio de futebol Estar interessado, então, na relação e coletiva e a sua rica diversidade oferece a possibilidade tentadora de entre comunicação e desporto é estar de formas (quando é que um jogo se redenção e sucesso para a Escócia, fascinado e intrigado com a socieda- torna um desporto?) permite-nos pro- já que cada evento ou torneio garan- de que produz e sustenta tal relação. jetar os nossos próprios sentimentos te que breves momentos de sucesso Compreender qualquer sociedade e emoções através de uma atividade e, no sentido inverso, de persistente parece-me um importante ponto de cultural, quer no evento “ao vivo” quer ausência dele estejam cada vez mais partida para qualquer estudioso da por meio do discurso mediatizado. É a incorporados na psique nacional. comunicação. capacidade do desporto para se conec- Claro que o desporto importa, por- tar, com frequência, com o emocional que, no século XXI, oferece uma infi- e não com o elemento de racionalidade nidade de conteúdos mediáticos que A minha própria jornada dentro de nós que o torna tão atraente. podem orientar modelos de negócios pela comunicação O desporto pode desempenhar a tarefa e atrair patrocinadores, anunciantes e e o desporto de pegar no mundano e de elevá-lo assinantes para uma variedade de pla- a algo mais do que a soma das suas taformas digitais. O desporto de elite e Há mais de 20 anos que estudo partes. A capacidade de comunicar profissional tornou-se também profun- e ensino a relação entre o desporto e isso individualmente e coletivamente damente entrelaçado com os contornos os meios de comunicação. Com uma é uma parte essencial do apelo dura- do capital nacional e transnacional. formação de base em Media e Histó- douro desta forma cultural. Continua a Entender este processo complexo em ria e um mestrado em Comunicação, comecei a desenvolver cursos universi- mais ampla entre cultura, economia Power and Culture: A Social and His tários em Media e Desporto no final da e política. Eles dão sentido ao meu torical Analysis of Popular Sports in década de 1980 e início da década de próprio desenvolvimento como inves- Britain, de John Hargreaves (1986), 1990. Naquela época, a luta travada tigador e oferecem, além disso, uma estes trabalhos começaram a fornecer era para que o desporto fosse levado imagem de como o campo da pesquisa um contexto importante no qual a rela- a sério dentro dos estudos dos media em comunicação e desporto começou ção entre media e desporto poderia ser e da comunicação, campo que estava a evoluir nos anos de 1980 e 1990, no analisada e investigada. Devido ao seu ele próprio ainda a tentar alcançar Reino Unido. Garry Whannel’s (1983) foco histórico, o trabalho de Hargrea- credibilidade dentro da academia, Blowing the Whistle: The Politics of ves lembra-nos de como a trajetória no Reino Unido. Em resultado, havia Sport (atualizado e reeditado em 2008) da cultura desportiva sempre esteve significativamente menos material de foi um dos primeiros livros a colocar ligada à política e à cultura do seu pesquisa do que hoje. Um nome domi- o desporto numa posição cultural e tempo. Ao vincular o poder político nava a breve lista de leituras do meu política mais ampla de forma acessível com a cultura popular e ao olhar para primeiro curso em Media Desportivos e emocionante. Em particular, pela o desporto como uma área contestada e era o de Garry Whannel. No Rei- forma de escrever que, sem deixar de luta ideológica, estes três livros no Unido, Garry era o fundador da de ser academicamente informada, ofereceram um amplo quadro de refe- investigação contemporânea em me se destinava a um público mais ge- rência do qual derivou a maior parte dia desportivos, área a que deu foco ral. Whannel também foi importante do trabalho académico desenvolvido e credibilidade. O autor ofereceu a pela abordagem política da posição ao longo da década seguinte. uma nova geração de investigadores do desporto dentro das estruturas Dois outros textos-chave captura- uma área de estudo legítima, embora, de poder da sociedade, por meio da ram a necessidade de abordar a econo- muitas vezes, ainda carente de expli- articulação do conceito de hegemo- mia política do desporto e dos media, cações sobre os motivos pelos quais nia. Esta abordagem gramsciana ao ao mesmo tempo que eram sensíveis importava. Nesta seção, quero desta- desporto e aos media também ficou ao papel dos meios de comunicação na car apenas alguns dos livros que me evidente na obra de John Clarke e criação de determinadas representa- inspiraram a levar a sério o estudo Chas Critcher (1985) The Devil Makes ções ideológicas em torno do desporto. dos media e desporto e confirmar a Work: Leisure in Capitalist Britain, Coordenada por Geoffrey Lawrence e minha convicção de que, através dessa que mapeou com brilhante clareza a David Rowe (1986), Power Play: The análise, a cultura dos media despor- razão de as questões de lazer serem Commercialisation of Australian Sport tivos pode oferecer contributos reais tão importantes nas políticas públicas foi uma coletânea de artigos que des- para a compreensão da uma relação e na política. Juntamente com Sport, tacou a importância de compreender 67 a economia política do desporto e a escritores e jornalistas desportivos natureza da maneira como o desporto eram muitas vezes importantes para interage com os meios de comunicação dar acesso a um ambiente profissio- e as indústrias promocionais. O traba- nal pouco discutido ou analisado na lho ilustrava o crescente interesse da academia e até mesmo no tradicional academia australiana pelo desporto e jornalismo desportivo do Reino Unido. pelo seu impacto cultural mais amplo Usado então com este fim, Pocket Mo que, nesse sentido, se revelava à frente ney: Bad-Boys, Business-Heads, and do Reino Unido no que diz respeito ao Boom-Time Snooker, de Gordon Burn desenvolvimento de um corpo crítico (1986), continua a ser um dos meus li- de trabalho nesta área. A partir dele vros favoritos sobre o desporto. Escrito tomei contacto com a obra de David pelo jornalista e romancista Gordon Rowe (Hutchins & Rowe, 2012), que Burn demonstra o que pode fazer-se continua a influenciar-me até hoje. quando se tem acesso ao santuário Fields in Vision: Television, Sport interior do desporto e se é corajoso e and Cultural Transformation, de Gar- talentoso o suficiente para ser capaz ry Whannel (1992), seria o livro que de dar sentido a esse mundo ao leitor. testemunharia a abordagem séria, por Neste caso, o assunto era o mundo parte da academia do Reino Unido, emergente do snooker na televisão. O ao estudo da comunicação desportiva livro dedica-se a um desporto que, mediática. O trabalho combinou uma transformado pela televisão, se torna abordagem económico-política com internacional, enquanto os jogadores uma preocupação com as questões lutam para alcançar equilíbrio entre da representação cultural e definiria a fama e a fortuna que a exposição à o ponto de referência para o que o televisão traz. Levou-me a escrever a estudo dos media e da comunicação minha tese de licenciatura precisa- orientado para a televisão e o desporto mente sobre snooker e televisão e, ao poderia alcançar. longo do caminho, a entrevistar alguns Dada a escassez de livros académi- dos atores principais que moldaram a cos sobre media e desporto na década modalidade, incluindo o produtor de de 1980 e início de 1990, livros de televisão da BBC Nick Hunter (que foi Os jornalistas sempre foram intermediários culturais importantes entre desporto e sociedade. pioneiro na transmissão em direto de questões levantadas sobre desporto, Olímpicos de Inverno. Além do robus- competições de snooker) e o gestor e media e identidade nacional e sobre to corpo de trabalho académico que promotor Barry Hearn. Este continua a crescente centralidade do desporto nas últimas décadas floresceu em tor- a ser um dos livros de desporto a que como uma forma de conteúdo me- no da comunicação e do desporto, esta regresso em busca da sua clareza, sa- diático num ambiente em acelerada eclética seleção permite destacar – gacidade e brilhantes considerações. transformação, com a introdução dos espero – como aspetos do cruzamento Por várias razões, um complemento sistemas de satélite e de cabo, na dé- da prática jornalística com a cultura deste trabalho é o livro de McCarra e cada de 1980, por meio da Internet, desportiva moldaram o meu próprio Woods (1988) One Afternoon in Lis na década de 1990, e com o ambiente pensamento no campo e alimentaram bon, que também ilustra a importância digital, nos anos 2000. Sob a atenção de forma crescente o meu fascínio com de reunir evidências empíricas tendo de grande parte deste trabalho estive- a compreensão do específico desafio por base eventos desportivos particu- ram várias formas de jornalismo e o que é atribuir sentido ao jornalismo lares e de definir o desporto no seu jornalismo desportivo foi adquirindo desportivo. contexto cultural mais amplo. Baseado um espaço crescentemente nuclear em entrevistas com os jogadores de na minha pesquisa. O estranhamen- futebol do Celtic, que faziam parte te chamado Laptop Dancing and the Foco: Sobre Jornalismo da primeira equipa britânica a vencer Nanny Goat Mambo: A Sportswriter’s e cultura digital a Taça dos Campeões Europeus, em Year (2003), do jornalista desportivo 1967, esta obra é um bom exemplo Tom Humphries, do brilhante Irish Os jornalistas sempre foram inter- de como situar o desporto dentro do Times, continua a ser para mim um mediários culturais importantes entre seu contexto de classe mais amplo. O dos livros mais perspicazes, honestos desporto e sociedade. Quando os pri- estudo demonstra as vantagens meto- e engraçados sobre jornalismo des- meiros promotores do boxe do século dológicas da utilização de entrevistas portivo, a sua prática, as pressões e XX organizaram eventos, os jorna- como parte do processo de pesquisa a relação entre a mudança dos media listas eram uma parte fundamental e destaca a centralidade da narrativa impressos e a emergente nova geração na promoção e venda desses eventos na formação do discurso desportivo. de estrelas do desporto da televisão. numa era pré-televisão. Os jornalistas No início da década de 1990, o Qualquer estudante que pretenda ser desportivos foram também os fabri- meu próprio trabalho, desenvolvido um jornalista desportivo fará bem em cantes do mito do desporto à medida com colegas tais como Neil Blain e ler o seu relato sobre a cobertura de que embelezavam as qualidades em Hugh O’Donnell e, mais tarde, Ri- eventos desportivos internacionais, in- campo das estrelas desportivas e igno- chard Haynes, desdobrava-se em cluindo sobre a cobertura dos Jogos ravam as atividades fora de campo que 69 pudessem manchar a sua perceção, reformulados e transformados (Boyle dor. Na era das notícias 24 sobre 24 pelo público em geral, como ícones & Haynes, 2009; Jones & Salter, 2011; horas, sete dias por semana, em que desportivos, cuidadosamente construí- Miller, 2011). A cultura digital faci- a cobertura jornalística decorre em da (Boyle, 2006). litou a reformulação da relação entre contínuo, o jornalista tem também Avançando rapidamente para o jornalistas e públicos e também abriu de ser um blogueiro, um tweeter e final do século XX, encontramos um fluxo em tempo real transnacional ainda de ser capaz de apresentar (ou uma relação bem estabelecida entre de informação que era inimaginável atualizar) notícias numa variedade o desporto e os media. Esta relação na era analógica do jornalismo. Como de plataformas (impressa, online, variou ligeiramente de país para país e Nick Couldry (2012: 2) argumenta: móvel). Ao regressar a Sports Jour nalism (2006) fiquei impressionado consoante os mercados mediáticos, no entanto o desporto de elite foi de for- “Os media digitais correspondem com o modo como a cultura digital ma crescente sendo subscrito do pon- meramente à última fase do con está a mudar a prática organizacional to de vista financeiro pela televisão, tributo dos media para a moderni dos jornalistas desportivos. O editor incluindo em matéria de direitos de dade, mas a mais complexa de to desportivo do jornal londrino Times transmissão. Enquanto durante gran- das. Uma complexidade ilustrada recorda o tempo em que um jornalista de parte do século XX os jornalistas pela influência da internet como enviado de Londres para o Norte de dos media impressos dominaram, em uma rede de redes…. Os media Inglaterra para cobrir uma partida de muitos aspetos, o setor do desporto tornaram-se suficientemente flexí futebol entre o Newcastle United e o mediático, à medida que a indústria veis e interconectados para fazer Arsenal estaria sempre desconectado se foi transformando e reestruturando, do “ambiente mediático” o nosso da redação até que o ouvissem dentro com a chegada da tecnologia digital, único ponto de partida, deixando do estádio, pouco antes do jogo. Agora, estes profissionais foram forçados a de considerar-se de forma isolada salientou o jornalista, os repórteres lutar entre si num meio onde a ideia cada medium.” estão em contacto permanente com a da exclusividade foi usurpada pela das redação via telefone móvel ou e-mail. notícias 24 sobre 24 horas, sete dias A tecnologia também tende a ser Espera-se que façam atualizações das por semana (Meikle & Young, 2011). disruptiva relativamente aos padrões matérias para o site enquanto viajam À medida que a mercantilização, a e práticas existentes entre os traba- para o jogo de comboio e também comercialização e a internacionalização lhadores e profissionais dos media que estejam online, interagindo com do nexo media-desporto avançou em (Deuze, 2010). Para os jornalistas, os leitores. Tudo isso antes de chega- ritmo acelerado, desporto e jornalis- a transição do analógico para o di- rem a Newcastle para cobrir o jogo, mo foram sendo, nesses processos, gital trouxe tanto de prazer como de de onde irão apresentar depois da Uma das características do jornalismo digital corresponde à dissolução da tradicional divisão entre as categorias notícia e desporto partida as notícias e as entrevistas. os jornais lutam para encontrar um Para a maioria dos jornalistas des- modelo de negócio viável numa época portivos com quem falei, a tecnologia de conteúdos online de acesso livre digital foi libertadora (acabaram-se as (Davies, 2008; Hobsbawn, 2010). correrias frenéticas nas viagens fora, A mudança de poder para as estrelas tentando encontrar um telefone que e atletas (com os seus agentes, pa- funcione para que se possa enviar para trocinadores e assessores de media) as redações as matérias produzidas!). é sinónimo de problemas de acesso, Contudo, o impacto mais amplo da di- de aprovação e cópia de imagens, fa- gitalização, quando combinada com zendo aumentar os desafios para os outros fatores, acima mencionados, jornalistas em busca de informações que reformularam a cultura popular dentro do mundo do desporto (Evans, na última parte do século XX, também 2012). Claro, muitos desses desafios significou, para muitos jornalistas, um não são novos. De facto, a questão momento de pausa na reflexão. da confiança (ou da falta dela) entre A emergência das relações públi- estrelas do desporto e jornalistas tem cas (RP) e a sinergia entre a indústria uma longa e infame história. do desporto e a indústria de entre- Tim Adam observa, na sua brilhan- tenimento em geral têm sido instru- te análise do tenista John McEnroe, mentais para que práticas bem es- cujas relações com jornalistas des- tabelecidas em, digamos, Hollywood portivos foram sempre geladas, que, se tornarem cada vez mais a regra mesmo no início da década de 1980, na cultura desportiva dentro e fora ele dispensou pouco tempo aos jorna- do Reino Unido (Boyle, 2006, 2012). listas que produziam notícias para a De facto, há agora mais pessoal das imprensa tabloide britânica: relações públicas do que jornalistas no Reino Unido (muitos RP são ex- Quando o jovem Alastair Cam- jornalistas) e a indústria do jorna- pbell do Mirror (último arquiteto da lismo – especificamente o setor da máquina de relações públicas do New imprensa – tem sido reestruturada Labour e spin doctor do primeiro-mi- através da sua redução, à medida que nistro) foi confrontado com a questão 71 de saber se aceitava que milhões de e internacional convincente torna-o hierarquia jornalística (estando os de jovens o copiassem, McEnroe suposta- numa forma cultural potente. É tam- política e os correspondentes estran- mente “rosnou” e disse incisivamente:’ bém uma forma cultural que tem de geiros perto do topo) estaria cada vez se adaptar e lidar com o impacto que mais ultrapassado. Pareceu-me que os “ deve dar uma olhadela no Mir o dinheiro da televisão gera nas suas processos que foram transformando o ror e ver quem está a estragar as estruturas de concorrência e gover- desporto e as organizações dos media crianças”, antes de acrescentar, nança. Este processo tem levado a uma (entre eles, a digitalização) fizeram com um pouco prescientemente, “O po crescente perceção do papel desem- que muitas das práticas e experiências der que você tem é triste”. Quando penhado pelas RP no binómio despor- dos jornalistas desportivos fossem cada Campbell perguntou se ele tinha to-comunicação (Hopwood, Kitchin & vez mais genéricas para o jornalismo e algum arrependimento em relação Skinner, 2010). Enquanto escrevo, o para os jornalistas em geral. Claro, as ao seu comportamento, McEnroe Channel 4 (um canal minoritário do diferenças permanecem, com muitos respondeu (profeticamente, para Serviço Público de Televisão do Rei- jornalistas desportivos a despenderem uma geração de correspondentes no Unido) publicou o seu maior share mais tempo na estrada e fora das re- parlamentares): “O meu único ar de sempre de fim-de-semana graças dações do que os seus colegas, mas à rependimento é ter tido de lidar às audiências da cobertura dos Jo- medida que aumenta o ritmo do fluxo com pessoas como você” (Adams, gos Paraolímpicos de Londres 2012 de informações, a ascensão dos RP, a 2004, pp 36-37) (tradicionalmente, visto não como um natureza “sempre ligada” dos media so- evento desportivo de topo da televisão). ciais e digitais, bem como a reestrutu- Uma das características do jor- À medida que a cultura desportiva se ração organizacional das indústrias dos nalismo digital corresponde à disso- foi tornando cada vez mais central para media foram tendo impacto em diferen- lução da tradicional divisão entre as as indústrias de entretenimento, que tes esferas do jornalismo, erradicando categorias notícia e desporto. O uso moldam e orientam grande parte da algumas das práticas jornalísticas mais dos media sociais e a proteção online cultura popular, também as celebrida- arreigadas (Jones & Salter, 2011). Por da reputação das marcas são agora des e os seus valores-notícia, enquanto exemplo, um impacto dos meios digitais amplamente reconhecidas pela indús- conteúdos mediáticos apetecíveis, se a pedido no Reino Unido consistiu num tria das RP como dois dos principais tornaram centrais ao desporto. aumento da quantidade da cobertura problemas com os quais se confron- Um argumento nuclear de Sports dos media e do espaço dedicado a con- ta. Numa era de audiências digitais Journalism (2006) foi o de que a opi- fragmentadas, a capacidade de o nião vigente de que os jornalistas des- O desporto é agora também sobre desporto oferecer conteúdo nacional portivos ocupariam a parte inferior da política, negócios e governança e não teúdos relacionados com desporto. apenas esforço desportivo e competição. a forma como os media sociais e tem, em muitos aspetos, sido uma das Enquanto alguns eventos desportivos digitais continuam a mudar o áreas do jornalismo mais profunda- sempre foram megaeventos mediáticos, modo como o jornalismo é prati mente afetadas por esta mudança. a cobertura desportiva na era digital cado: o crescimento e o sucesso dos A investigação de Hutchins e Rowe tem expandido ainda mais este proces- blogs ao vivo, a adoção do micro- (2012) sobre desporto na rede ecoa so. A cobertura dos Jogos Olímpicos de blogging, a redução do ciclo de (2012) o antigo argumento de Coul- Londres de 2012 foi impulsionada pelo notícias e o crescimento das con dry sobre a crescente importância de centro de media do evento (LOCOG), versas em tempo real entre as elites compreender tanto o ambiente, como a funcionar 24 sobre 24 horas (80.000 políticas e os media. Um número qualquer instituição mediática singu- metros quadrados), que auxiliou o tra- crescente de jornalistas reconhece lar ou plataforma. balho de mais de 20.000 jornalistas, que os media sociais não são ape O discurso do desporto é, com radialistas e fotógrafos. Ao mesmo tem- nas algo que respeita à equipa da frequência, sobre emoções e opiniões po, o Centro de Media de Londres, no web, mas são relevantes para todos profundamente arreigadas e pronta- centro da cidade, servia mais 10.000 os membros da redação.” mente expressas por atletas e fãs. Re- jornalistas não credenciados, que tam- fletindo sobre a sua experiência como bém cobriram os Jogos Olímpicos de Embora estas observações se re- Correspondente Chefe de Futebol do 2012 (Wicks, 2012). Através da sua portem aos jornalistas políticos, são jornal The Guardian, aquando da co- presença online, a BBC cobriu todos igualmente aplicáveis para aqueles bertura do sexto Campeonato Mundial os eventos e o advento dos primeiros que trabalham no setor do desporto. da FIFA, em 2010, na África do Sul, Jogos Olímpicos verdadeiramente digi- À lista de conversas em tempo real Kevin McCarra defendeu: tais fez com que uma plataforma como referidas acima, pode acrescentar- o Twitter tenha sido vista como parte se que os fãs se envolvem cada vez “Acredito que é no futebol que a do ambiente jornalístico e não como um mais diretamente com os principais relação entre escritor e leitor mais apêndice opcional. Numa análise, rela- jornalistas desportivos que twittam tem mudado, especialmente porque tiva ao jornalismo político, do uso dos (Boyle, 2012). esses papéis já não são fixos. O media sociais na cobertura das eleições Assim, a tecnologia digital tem acesso à internet, estou contente de gerais de 2010 no Reino, Nic Newman perturbado a tradicional relação o dizer, afastou totalmente a tola (2010) argumenta que: entre o jornalista, os media e o pú- suposição de que os jornalistas têm blico. Também a partir dela o fluxo acesso a um conhecimento supe “Mesmo os jornalistas [de política] de informação se tornou imediato e rior. Inúmeros sites cobrem todos os veteranos ficam surpreendidos com transnacional. O jornalismo desportivo aspetos do futebol em praticamente 73 todas as nações. Se algum jogador rádio, depois a televisão e, por fim, tweets de figuras-chave do desporto, num Campeonato do Mundo é uma a Internet, mudou a relação entre o o jornalista desportivo tem de ofere- incógnita, será puramente porque desporto e aqueles encarregados de cer algo mais do que o suposto lugar as pesquisas não foram realizadas o relatar profissionalmente, atribuin- de camarote. Assim, por exemplo, com suficiente profundidade. (...) do-lhe sentidos, para um público. A Charlie Lambert (2012) defende que Websites, quer sejam estatísticos, partir de uma visão lata da cultura da os jornalistas desportivos precisam de solenes, esotéricos ou cómicos dis comunicação, os media sociais podem “elevar o seu jogo” se quiserem manter seminam quantidades limitadas ser vistos como parte de uma tradição a credibilidade jornalística, crucial de informação sobre mesmo os evoluindo dentro do jornalismo des- para o sucesso da marca impressa e mais obscuros futebolistas e agen portivo, que oferece aspetos de mu- online do seu jornal. Como os fãs têm tes. A imprensa engana-se se supõe dança, mas também de continuidade. cada vez mais acesso a sites genéricos por um instante que pode cons Para esse fim, as redes de media agregadores de notícias de desporto, o tituir-se como um sacerdócio que sociais, tais como o Facebook e o Twit- jornalista necessita de adicionar visão possui um conhecimento sagrado ter, oferecem simplesmente os mais e valor real de modo que o seu twitter (McCarra, 2010). recentes desafios e oportunidades revele a importância de ser seguido. para o jornalismo desportivo como Numa discussão recente, Richard Wil- Os jornalistas desportivos sempre uma profissão. Existem lutas pela son, o premiado jornalista desportivo negociaram o mito do acesso à história continuidade no jornalismo despor- do jornal nacional escocês The Herald a partir do centro da cultura desporti- tivo pela sobrevivência de convenções identificou dois fatores fundamentais va e a sua capacidade de a trazer para e códigos de trabalho estabelecidos, relativos ao modo como os media so- o seu público. Os repórter desporti- pela autoridade e exclusividade, assim ciais têm alterado e melhorado o seu vo dos Estados Unidos da América como pontos de partida inovadores à trabalho como jornalista: Leonard Koppett (2003) documentou medida que os jornalistas desportivos soberbamente este processo num livro dominam as novas tecnologias e inte- “Duas razões pelas quais eu real de memórias concluído pouco antes gram novas formas de comunicação mente uso os media sociais. Quan da sua morte, livro em que também na produção de conteúdo de notícias do eu era freelancer, usei o Twitter analisou a cultura em mudança dos de desporto. para projetar o meu perfil e mos media e a forma como molda o jor- Tendo a audiência acesso cres- trar o meu trabalho. Ainda o faço, nalista desportivo moderno. Nesse cente a conferências de imprensa na mas também o uso agora para in trabalho observou como cada nova televisão e a sites oficiais, poden- teragir com os leitores. Tem que tecnologia mediática, inicialmente a do também acompanhar os últimos se peneirar às vezes as respostas, A confiança numa fonte que ofereça visão, perceção e análise verdadeiras são características que permanecem importantes, mesmo quando se trata de simplesmente relatar eventos mas obtém-se uma perspetiva di Olimpíadas de Verão, Patrick Collins, ferente e um feedback interessante. o chefe desportivo veterano do jornal Eu diria os leitores, assim como a Mail on Sunday, no Reino Unido ob- interação, pois funciona nos dois servou: sentidos. Além disso, muitas vezes é uma boa fonte de notícias, infor “Como jogo dos media funciona. mações e análises (Entrevista com Acho que chegou a um ponto onde o autor, 13 de dezembro, 2011).” a notícia é tão rápida que, para chegar lá primeiro, a competição Como defendem Hudson e Temple é, em certo sentido, sem sentido. (2010), também acredito, no entanto, O elemento de velocidade é per que é demasiado simplista argumen- dido quando tudo é tão rápido. tar que, agora, somos todos jornalistas. Destes Jogos Olímpicos saíram his A confiança numa fonte que ofereça tórias de bastidores; parecia que visão, perceção e análise verdadeiras sobre cada medalhista havia um são características que permanecem conto fascinante para contar. Foi importantes, mesmo quando se trata de estranhamente comovente. Havia simplesmente relatar eventos. Dito isto, um monte de pessoas interessantes o diálogo entre jogadores, fãs e meios de (Wilson, 2012)”. comunicação está a mudar e a tornar-se mais complexo e assim que o génio dos Esta citação reflete uma série de media sociais “saltar fora da garrafa”, temas que continuarão a influenciar será para sempre (Boyle, 2012). a relação entre comunicação, deporto e jornalismo. A tecnologia e a sua capacidade de melhorar e perturbar Olhando para o Futuro a prática jornalística continuará a da Investigação em evoluir com ritmo. Na era digital, do Comunicação e Desporto suporte e do conteúdo (Boyle, 2010), as noções tradicionais do jornalista Enquanto refletia sobre a experiên- desportivo de imprensa continuarão a cia de cobrir a sua décima edição das mudar. Uma pesquisa recente (Enders 75 Analysis, 2012) indica que 125 mi- ocupando os conteúdos desportivos, dizer-nos as verdades sobre os valores lhões de novos telemóveis inteligentes e na Europa o futebol em especial, que temos como sociedade. Este é o foram vendidos nos primeiros 3 meses um lugar nuclear. Isto permite real- lugar de onde venho e o que faz do es- de 2012, um crescimento de 30% ao çar que o desporto é demasiado im- tudo dos media e desporto tão continua ano (2012) O relatório do Consumer- portante para ser deixado no domínio e surpreendentemente enriquecedor Lab das tendências internacionais de exclusivo dos jornalistas desportivos. para qualquer investigador na área da televisão indica que 67% dos telespec- Como a cultura do desporto se cruza comunicação, mesmo depois de todos tadores estão a utilizar smartphones, com a lei, a economia, a política, as estes anos. tablets e laptops para ver televisão, relações internacionais, questões de enquanto 62% estão a usar os media governança, de direitos e de cida- sociais enquanto veem televisão. Quais dania, todos formarão parte do que são as implicações económicas deste pode ser visto como uma agenda de processo para o jornalismo profissional comunicação e desporto ampliada. impresso e financiado e para o jornalis- Esta agenda não tem sido sempre re- mo online? Novos modelos de negócios fletida ou abordada dentro do jorna- BOYLE, R. (2010). “Sport and the media são necessários. Contudo, o conteúdo lismo desportivo dominante. A era da in the UK: The long revolution?”. desportivo permanece um dos aspetos comunicação de muitos-para-muitos In: Sport in Society, 13, 1300–1313. mais interessantes do jornalismo, em vai mudar este este estado de coi- BOYLE, R. (2012). “Social media parte devido às narrativas humanas sas, mas o paradoxo é que isso exige sport? Journalism, public rela- do desporto que os media impressos um jornalismo profissional, rigoro- tions and sport”. In: Krovel, R. e online tanto fazem para melhorar e so, descomprometido, devidamente & Roksvold, T. (Eds.) We love to sustentar através do fornecimento de financiado num momento em que a hate each other: Mediated football histórias de bastidores, como Collins turbulência económica caracteriza fan Culture. Stockholm, Sweden: lhes chama. O jornalismo desportivo a indústria do jornalismo. Nordicom Press. competitivo terá sempre valor. Bibliografia ADAMS, T. (2004). On being John McEn roe. London: Yellow Jersey Press. Continuidade e mudança continua- BOYLE, R., & Haynes, R. (2009). Power Outras áreas na era da conver- rão a influenciar a comunicação e o play: Sport, the media and popular gência digital que merecem o cres- desporto num processo que Williams culture, 2nded. Edinburgh: Edinburgh cente interesse da pesquisa gra- (1961) chamou de a longa revolução University Press. vitam em torno do policiamento e entre comunicação e mudança cul- BOYLE, R., & Haynes, R. (2011). “Sport, controlo dos direitos de transmissão tural (Boyle, 2010). 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Social media offerings by As ofertas dos media sociais através de the likes of Facebook and Twitter trans- likes do Facebook e do Twitter transfor- form the well-known process of agenda mam o conhecido processo de agenda se setting and mediatisation into a process tting e mediatização num processo que we call “social media agenda setting”. designamos “agenda setting dos media This contribution starts with a brief over- sociais”. view of social media offerings during the Esta contribuição inicia-se com uma breve London Olympic Games 2012. This is panorâmica das manifestações dos me followed by a closer look at a theoretical dia sociais durante os Jogos Olímpicos de model and an evaluation of the potential 2012. Ao que se seguirá um olhar mais impact and consequences of this process. próximo ao modelo teórico e uma avalia- The analysis of different forms of themati- ção do impacto e consequências potenciais sation and mediatisation of sporting heroes deste processo. A análise de diferentes will be shown with the help of case studies formas de tematização e de mediatização of German athletes during the Olympic de heróis desportivos será demonstrada Games in London 2012. Measured by the com recurso a estudos de caso de atletas influencing factors of “social media agen- alemães durante os Jogos Olímpicos de da setting”, Marcel Nguyen and Christoph Londres de 2012. Tendo como referência Fildebrandt can be characterized as the os fatores de influência do agenda setting most popular German athletes during the dos media sociais, Marcel Nguyen e Chris- Olympic Games. toph Fildebrandt podem ser caracterizados como os atletas mais populares durante os Jogos Olímpicos. Palavras-Chave: Media sociais, Jogos Key-words: Social media, Olympic Olímpicos, agenda-setting, tematização, Games, agenda setting, thematisation, Alemanha, heróis. Germany, heroes. Tradução de Inês Fernandes Godinho, CEIS20 - UC ([email protected]) e de Rita Basílio de Simões, FLUC ([email protected]). 79 Introdução conhecidas por causa da cobertura nos o fenómeno relativamente recente de jornais ou na TV. Um herói de futebol “agenda setting dos media sociais”. O desporto é um dos tópicos mais moderno como o Cristiano Ronaldo é importantes tratados pelos media tra- frequentemente visto na TV, mas, além dicionais em todo o mundo: a cobertu- disso, tem mais de 75 milhões de fãs Media e Desporto: ra jornalística do futebol ou de outros no Facebook e de 25 milhões de se- Perspetivas desportos mediáticos obtém elevados guidores no Twitter. O mesmo impacto e Diferenciação índices de audiência e grandes tira- destas novas formas de media sociais gens em quase todos os países euro- é visto em relação a quase todas as es- O desporto e os media são dois peus. Os media tradicionais tendem trelas do futebol. Na Alemanha, Franz sistemas sociais com papéis e níveis a focalizar heróis de desportos “ami- Beckenbauer e Uwe Seeler eram acima de diferenciação distintos. Para com- gos” dos media, tais como o futebol, a de tudo conhecidos através dos media preender a dinâmica deste processo, fórmula 1 e o ténis (Whannel, 2002; tradicionais. As novas estrelas alemãs, iremos enunciar as principais carac- Bette, 2007). Todavia, a situação tem como Mario Götze (FC Bayern Muni- terísticas de forma sumária. vindo a alterar-se significativamente ch), com quase 4,5 milhões de likes O sistema do desporto é dominado desde o nascimento dos media so- no Facebook, ou o jogador do Arsenal por uma clara estrutura hierárquica ciais. A promoção e o marketing de Mezut Özil, com mais de 450,000 likes com aspetos financeiros, políticos e heróis do desporto foram fortemente no Facebook, são muito populares nos organizacionais (competição, orienta- influenciados pela interação entre os media sociais. O que acresce à sua ção para o desempenho, promoção). media tradicionais e os media sociais visibilidade em plataformas tradicio- A comunicação é um dos processos e também trouxeram consigo a me- nais dos media. mais importantes no desporto. Pode diatização de desportos e de atletas Esta nova espécie de consciência compreender-se cada ação desportiva menos populares. Os media sociais ti- das estrelas desportivas nos media como uma forma de uma comunica- veram um enorme impacto no desporto sociais leva a novas formas de te- ção de desempenho desportivo frente e no jornalismo desportivo. Isto levou matização dos heróis do desporto na a um público. Esta comunicação tem a diferentes tipos de reportagem e, nossa sociedade. Este trabalho visa de ser vista de diferentes perspetivas: consequentemente, a diferentes formas ilustrar isso mesmo. Dará um olhar atletas (desportistas como indivíduos e de cobrir o desporto e as suas estrelas. mais atento à tematização dos heróis como jogadores); organizações (clubes Para dar um exemplo: as antigas es- do desporto alemães durante os Jo- e associações como o enquadramento trelas de futebol portuguesas Eusébio gos Olímpicos de Londres de 2012, de organizações e comunicação); me e Luís Figo eram provavelmente mais usando estudos de caso para explicar dia (o desporto como um importante Quadro 1: Processo e desenho da definição de agenda (gráfico próprio, baseado em Bonfadelli, 2004, p: 239) tópico de comunicação, assim como o de feedback e pela oportunidade de tem um impacto progressivo no proces- financiamento do sistema desportivo). participação do utilizador. Contras- so comunicacional através dos media Prosseguindo a partir daqui, cada uma tando com o conteúdo dos media tra- tradicionais. Para compreender estas destas perspetivas tem de ser vista em dicionais produzidos por jornalistas, mudanças, será útil olhar mais de perto dois níveis diferentes: agora obtemos conteúdo gerado pelo para a teoria do agenda setting, que Desempenho/Consciência, que é utilizador, tendo de constatar a mu- explica o processo temporal da tema- bastante diferente consoante estamos dança nas formas de comunicação de tização dos media (McCombs, 2004; a falar de desporto mediático ou de “um-para-muitos” para “muitos-para- para o desporto veja-se Fortunato, desporto minoritário, de desporto in- muitos”. Para sintetizar as principais 2008). Os mass media não influenciam dividual ou de desporto de equipa – e mudanças: existiu uma democratiza- verdadeiramente o que pensamos, mas Relevância, com a sua diferenciação ção dos recursos de produção (apare- determinam aquilo sobre que vamos na importância nacional ou interna- lhos móveis, câmaras digitais, blogs, refletir. Os mass media definem os as- cional da ação desportiva. etc.) e uma democratização dos recur- suntos na nossa agenda: a tematização O sistema dos media é, acima de sos de publicação (não é necessário e a ordem dos tópicos. tudo, definido pela seleção, avaliação um meio de suporte). Os principais O conhecido processo de agenda setting é e publicação de assuntos pelo jornalis- canais de media sociais são o Face- progressivamente transformado por novos mo desportivo, de acordo com aspetos book, o serviço de micro blogging de canais de comunicação, como os media financeiros, políticos e organizacio- 140 caracteres Twitter, o Google +, sociais. O impacto das notícias online, nais. Existem perspetivas bastante o Youtube, Blogs com possibilidades das redes sociais e dos comentários pú- diferentes quando se pensa nos Ca para comentário, algumas formas blicos leva a um processo designado de nais de Media tradicionais (impressos, de Web-TV (Live-Streaming/Social intermedia agenda setting. Os primeiros TV, rádio, online), as diferentes áreas Screening) e o número crescente de estudos de caso mostram a maior parte do de Público (opinião pública, interesse ofertas de partilha de fotos e vídeo impacto de novas categorias como a au- nos tópicos) e o Valor das Notícias (Instagram, Pinterest). tenticidade, a frequência de comunicação (relevância). e a interação com os utilizadores (Sayre Há alguns anos, assistimos a uma et al., 2010; Groshek & Groshek, 2013; transformação dramática do público A Teoria do Grzywińska & Borden, 2012). Em relação através de novos canais de distribui- Agenda Setting à comunicação desportiva na Alemanha, ção de informação designados media o processo de intermedia agenda setting sociais. As redes sociais e os media- O processo dinâmico de comunica- -web.2.0 são definidos por um canal ção pelos media sociais está a crescer e foi ilustrado em relação ao Mundial de Futebol de 2010 (Horky, 2013). 81 1 Figuras 1, 2 e 3: Exemplos de comunicação de atletas em media sociais – página de Facebook de Cristiano Ronaldo e Moritz Fürste – página Tumblr de Mo Farah 2 3 Perspetiva 1: Atletas nos Media Sociais Quase todas as estrelas do desporto modernas criaram um canal de comunicação em plataformas de me dia sociais. O objetivo destes canais e formas de comunicação diverge. Vão desde mega estrelas como o Cristiano Ronaldo – o herói desportivo mais popular no mundo dos media sociais – a atletas olímpicos com muito sucesso, como o praticante de hóquei em campo alemão, vencedor de duas medalhas de ouro, Moritz Fürste, que é muito ativo, mas não tem muitos fãs (até 4.000 likes no Facebook). Alguns Assistimos a uma Atletas alemães nos Jogos Olímpicos de Londres transformação Como caso de estudo, reanalisá- dramática do mos os dados de todas as contas de atletas alemães no Facebook durante público através os Jogos Olímpicos de Londres de 2012, que foram inicialmente apre- de novos canais sentados em posts de blog por Knüwer (2012a; 2012b). O período de análise de distribuição foi entre 23 de julho e 14 de agosto de 2012 e os dados foram recolhidos de informação e apresentados por AllFacebookStats. Com uma análise de conteúdo quanti- designados tativa, foi medido cada like, partilha e post ou atualização das contas de media sociais todos os atletas alemães nos Jogos atletas de desportos olímpicos popu- Olímpicos. lares tentam comunicar de um modo Os resultados são bastante sur- especial, por forma a aumentar a sua preendentes: a equipa olímpica alemã própria visibilidade pública. Um exem- foi muito preguiçosa na sua utilização plo é o atleta inglês Mo Farah, com dos media sociais. Apenas 42% dos uma página Tumblr extraordinária. atletas oferecem uma página pessoal A diferenciação é sobretudo basea- e apenas 30.2% têm uma página de da em categorias como a consciência Facebook oficial (não contando com do desporto (desporto mediático vs. as páginas de Facebook privadas). desporto amador), a autenticidade da O Twitter parece desempenhar um pa- comunicação (agência profissional vs. pel menor. Apenas 18.2% dos atletas comunicação pelo próprio atleta) e a utilizam contas no serviço de micro frequência da comunicação (número blogging como ferramenta de comu- de posts e respostas). nicação ou de marketing. Existem 83 4 Figuras 4 e 5: Página do Facebook de Marcel Nguyen e atualização de Marcel Nguyen de 2 de Agosto de 2012 (Fonte: Knüwer, 2012b) 5 Quadro 2: Aumento dos likes do Facebook (em %) dos atletas alemães nos Jogos Olímpicos de Londres – Top 10 variações entre os diferentes tipos de desporto. Alguns atletas de desportos minoritários na Alemanha, como o hóquei de campo ou o Taekwondo, são ativos nos media sociais, outros, como a equipa de tiro com arco, não têm nenhuma conta no Facebook ou no Twitter (Knüwer, 2012a). Tendo presente esta pequena base, o ginasta Marcel Nguyen foi o “vencedor dos media sociais” dos Jogos Olímpicos de 2012. Nguyen, que ganhou uma medalha de prata, obteve o maior aumento de likes na sua página de Facebook. A utilização aumentou mais de 250,000 % (!) durante o período em análise. Depois de ganhar a medalha de prata a 1 37,973 % de likes a mais; na terceira Ainda mais surpreendente é a ca- de Agosto, cada atualização ou post posição ficou a atleta de pista (salto tegoria da frequência de comunicação por Nguyen foi partilhada por milha- em vara) Silke Spiegelburg (com mais nos media sociais que é relacionada res de fãs. Além disso, ele obteve o 37,186 % de likes). com a autenticidade dos posts. Em ge- maior número de comentários e likes ral, o nadador Christoph Fildebrandt de qualquer atualização durante os A atualização mais partilhada no teve a mais alta “taxa de comentários” Jogos. Esta atualização foi uma foto- Facebook durante os Jogos Olímpicos de todos os atletas alemães. Aumentou grafia da sua medalha de prata, dis- foi uma fotografia da medalha de ouro em quase cerca de 80 %. Fildebrandt ponibilizada a 2 de Agosto, a qual do atleta de equitação (CCE) Michael tinha apenas 488 likes no Facebook, obteve 66,680 likes e 1,806 comen- Jung, que foi partilhada 675 vezes. mas os seus poucos fãs comentaram tários. Na segunda posição ficou a Marcel Nguyen ficou com o segundo muito sobre os posts autênticos, exci- equipa de vólei de praia, vencedora lugar, com uma fotografia dele próprio tantes e interessantes, com informação de uma medalha de ouro, de Julius a competir no ringue. Foi partilhada de bastidores intrigante na sua página Brink e Jonas Reckermann, com 610 vezes. de Facebook. Como muitos dos atletas 85 Figura 6: Página do Facebook de Christoph Fildebrandt (Fonte: Knüwer, 2012b) Quadro 3: Crescimento da “taxa de comentários” (em %) no Facebook dos atletas alemães nos Jogos Olímpicos – Top 10 no Top 10 da “taxa de comentários”, o O mesmo balanço de poucos fãs de atletas de desportos menos popu- nadador Christoph Fildebrandt não é com uma elevada taxa de interação lares, que comunicam por si próprios. um atleta alemão muito popular. Um pode ser encontrado nas posições se- Como exemplo, a página de fãs oficial facto muito interessante: nenhum dos guintes: a mergulhadora Katja Die- do jogador de ténis de mesa Dimitrij atletas populares ficou nas posições ckow e o atleta de canoagem Ronald Ovtcharov encontra-se apenas em cimeiras. Um facto deveras interessan- Rauhe não tinham muitos fãs, mas eles quinto (uma média de crescimento de te: as posições 5 e 10 foram ocupadas foram em média muito ativos com as 30%) em termos de interação, todas por duas equipas de vólei de praia atualizações nas respetivas páginas. as posições cimeiras são ocupadas por – mas não pela equipa que ganhou a medalha de ouro… atletas menos populares de desportos Os dados apresentados mostram minoritários. O ginasta Fabian Ham- algumas grandes diferenças na fre- büchen, um dos atletas olímpicos mais A segunda categoria relacionada quência de comunicação nos media populares na Alemanha, é somente com a frequência de comunicação nos sociais, acima de tudo relacionadas classificado no décimo lugar quando media sociais é designada a “taxa de com a consciência do desporto. As po- se trata do crescimento dos likes no interação”. Os dados mostram o nú- sições mais altas foram conseguidas Facebook (um aumento de 144%). mero médio de posts e de respostas por heróis desportivos de desportos Há que reconhecer que os atletas pelos fãs a uma determinada atuali- menores ou minoritários na Alema- populares têm um maior número de zação na página de Facebook do atleta nha: hóquei de campo, ginástica e fãs, mas perdem em percentagem nas (não uma atualização da página!). Esta um nadador desconhecido. Os atle- importantes categorias de frequência, taxa ilustra o aumento da interação tas populares a competir em despor- autenticidade e, com isso, consciência. com atualizações. O maior aumento tos mediáticos, como atletas de pista, Este processo, que promove os em percentagem foi obtido pelo des- estrelas de natação ou a equipa de novos heróis desportivos dos media conhecido jogador de hóquei de campo vólei de praia, que ganhou a medalha sociais, pode ser perigoso: abrir a co- alemão Maximilian Müller. A sua taxa de ouro, foram vencidos pelos novos municação de alguém ao público pode de interação cresceu em média cerca heróis desportivos dos media sociais. ter um impacto na opinião pública, e de 50 % durante os Jogos. Com ape- Ao que acresce existir uma diferença pode ser influenciado por fenómenos nas 16 likes no Facebook, o jogador, significativa na autenticidade da co- tais como perseguição e comentários que ganhou a medalha de ouro com a municação em páginas de Facebook de negativos. Um exemplo é a popu- equipa alemã, não tinha muitos fãs, atletas populares organizadas maiori- lar atleta de salto em altura alemã mas os seus fãs falaram muito sobre tariamente por agências profissionais, Ariane Friedrich. No início de 2012, cada atualização no seu Facebook. em oposição às páginas de Facebook Friedrich tornou pública a sua luta 87 Figura 7: Página de Maximilian Müller (Fonte: Knüwer, 2012b) Quadro 4: Aumento da interação (em %) no Facebook dos atletas alemães nos Jogos Olímpicos de Londres – Top 10 contra um perseguidor do Facebook, que publicou muitos comentários negativos na sua página de Facebook. Os media alemães foram inundados com discussões sobre a segurança e os comentários jocosos nos media sociais e Friedrich anulou a sua página de Facebook, que remete agora para a Wikipedia. Na Alemanha, existem muitas páginas de internet de federações de desportos menos quase todas populares, como o rugby ou o ténis de mesa, que tentam criar algumas as federações ofertas, mas não têm dinheiro suficiente. Como consequência, a pági- tentam controlar na de internet oficial da Federação de Rugby alemã, representando um o impacto dos desporto olímpico no Rio de Janeiro em 2016, foi encerrada devido a media sociais Perspetiva 2: Organizações e Federações nos Media Sociais Para compreender a relevância e o impacto dos media sociais, temos de lançar um olhar, ainda que de relance, às organizações e federações desportivas. Tudo depende da posição financeira da organização e, consequentemente, da consciência do seu desporto. Na Alemanha, podem problemas financeiros. Quase todas as federações ten- através da emissão tam controlar o impacto dos media sociais através da emissão de dire- de diretrizes e trizes e regulamentos sobre como lidar com o Twitter e com o Facebook. regulamentos A Federação Internacional de Futebol (FIFA) publicou as suas diretrizes sobre como lidar para o Twitter pouco tempo antes do Mundial de Futebol de 2010 na com o Twitter e África do Sul. O Comité Internacional Olímpico (IOC) colocou as suas com o Facebook. diretrizes para blogging antes dos observar-se grandes diferenças entre Jogos Olímpicos de Londres de 2012. páginas de internet de grandes clubes Nos Estados Unidos, podem encon- de futebol e de clubes de desportos trar-se inúmeros regulamentos de or- minoritários. O FC Bayern Munich ganizações relativos à influência dos tem uma página multimédia com media sociais. Um exemplo bem co- cobertura TV e rádio, ofertas para nhecido é a Liga Nacional de Futebol os fãs e uma integração de contas (NFL), que permite posts unicamente Facebook e Twitter. Por outro lado, até 90 minutos antes de um jogo e 89 8 Figuras 8 e 9: Exemplos da integração de media sociais e de jornalismo de dados (data-driven journalism) do New York Times e do Guardian durante o Campeonato do Mundo de Futebol de 2010 9 O processo de escândalo nos media é bem conhecido, mas, nos media sociais, a dinâmica e a velocidade deste processo está a crescer muito rapidamente proíbe o uso de telefones móveis ou de). Este stream de media social cha- outros aparelhos de comunicação até ma-se “Wir für Deutschland” 1 (“Nós ao final da conferência de imprensa. pela Alemanha”). A Liga Nacional de Hóquei (NHL) De forma igualmente breve, que- publicou um designado “período de remos salientar que alguns atletas e blackout” em dias de jogo. federações usam as ofertas dos media Mas muitas federações que não sociais acima de tudo como ferramenta se preocupam em regulamentar so- de marketing: em 2010, o antigo fute- bre media sociais previnem-se com bolista brasileiro Ronaldo publicou no as suas próprias campanhas de re- Twitter em nome de uma companhia de lações públicas: consequentemente, telefones, na conta @ClaroRonaldo, com as grandes federações desportivas de mais de 240,000 seguidores, aquando desportos mediáticos (i.e. IOC, DOSB, do Campeonato do Mundo. Imediata- FIFA, DFB) divulgam as suas próprias mente antes da cerimónia de abertura ofertas de vídeo ou de media sociais. dos Jogos Olímpicos de Londres de Isto foi visto pela primeira vez no Cam- 2012, um parceiro da DOSB criou um peonato do Mundo de Futebol de 2010 canal especial via media social no Fa- com extensas ofertas da FIFA e da cebook e no Youtube para promover os seleção de futebol alemã. Nos Jogos seus produtos e a filosofia da empresa. Olímpicos de 2012, a IOC apresentou uma abordagem especial integrada às contas de Twitter dos atletas com o Perspetiva 3: Media – Olympic Athletes Hub, que constituía Novas Formas de Jornalismo uma amálgama dos feeds de todos os nos Media Sociais atletas acreditados em Londres 2012. Na Alemanha, a Federação dos Des- A terceira perspetiva, relativa ao portos Olímpicos alemã (DOSB) faz impacto dos media sociais no processo a mesma coisa com uma integração de mediatização é o efeito nos media dos feeds do Twitter, do Facebook e de em si mesmos. A integração de media ofertas RSS no German Olympic Hub (www.deutsche-olympiamannschaft. 1 Em alemão no original. N do T. 91 Figura 10: Tweet e página de Facebook contra Katrin Müller-Hohenstein e tweet da emissora alemã ZDF pedindo desculpas pelas declarações, todas de 13 de junho de 2010 sociais dentro da cobertura e reporta- Escândalos No decurso da noite, a ZDF qua- gem de media tradicionais e online foi lificou a declaração, seguindo-se vista pela primeira vez no Campeonato O processo de escândalo nos me um pedido de desculpa pelo editor do Mundo de Futebol de 2010: os jor- dia é bem conhecido, mas, nos media de desporto e pelo editor chefe da nais online integravam feeds através do sociais, a dinâmica e a velocidade emissora. Twitter, permitiam aos fãs comentar e deste processo está a crescer muito Como reação a esta tempestade deixavam os seus jornalistas criarem rapidamente. Um primeiro caso de de insultos embaraçosa, muitas pá- blogs com links interessantes, entre ou- estudo relaciona-se com o Campeo- ginas de internet de media tradicio- tras coisas. Especialmente as páginas do nato Mundial de Futebol de 2010 nais, como o maior canal online de Guardian em Inglaterra e do New York na África do Sul: começou em 13 notícias da Alemanha, Spiegel On Times nos Estados Unidos obtiveram de junho de 2010 com a discussão line, escreveram sobre a declaração muita consciência da sua integração nos ao intervalo entre a apresentadora e os efeitos nos media sociais. Estes media sociais e no jornalismo de dados. Katrin Müller-Hohenstein e o perito canais tornaram os acontecimentos (antigo guarda-redes alemão) Oliver em notícias tradicionais e, assim, Kahn durante uma transmissão em envolveram os protestos numa his- O Processo de Agenda direto na televisão alemã (ZDF) do tória jornalística digna de ser notí- Setting dos Media Sociais jogo Alemanha-Austrália. Após o golo cia. Incluíram algumas citações de no Desporto marcado pelo jogador alemão nascido pessoas proeminentes, por exemplo, na Polónia Miroslav Klose, a apresen- de representantes de organizações de Tendo como pano de fundo as três tadora citou uma frase nazi infame judeus na Alemanha. perspetivas acima referidas do im- e falou da “innerer Reichsparteitag” Mais tarde, os media de referên- pacto dos media sociais no desporto de Klose (aludindo às convenções do cia alemães tentaram desdramatizar a partir dos atletas, das organizações partido durante o Terceiro Reich). o debate sobre a declaração nazi. e dos próprios media, podemos ob- Em minutos, os espectadores in- Estes jornais cobriram o caso, a servar a existência de processos di- dignados publicaram as suas reações tempestade dinâmica de insultos e nâmicos desta influência crescente. no Twitter utilizando hashtags como a reação da emissora e discutiram Iremos mostrar três destes proces- “#fail ou #Reichsparteitag”. Pouco o tópico de forma bastante calma. sos dinâmicos (escândalos, rumores, depois, foram colocadas páginas di- Também forneceram alguma infor- notícias) com a sua relevância para ferentes, e por vezes muito polémicas, mação sobre a influência dos media o processo geral de agenda setting de ódio no Facebook com comentários sociais nos processos de comunica- dos media. contra Katrin Müller-Hohenstein. ção públicos. 93 Figura 11: Tweet do utilizador @breitnigge (4 de February de 2013) e a cobertura de acompanhamento do BILD (7 de fevereiro de 2013) Todavia, tal não terminou o debate sobre os media sociais. Três pági- tentativa dos media de referência de pode ser encontrado com frequência reagir calmamente. no desporto. Outro exemplo famoso nas de Facebook e dois utilizadores foi um alegado comentário da por- do Twitter (um com o pseudónimo tadora de bandeira alemã Natascha @reichsparteitag) controlaram o de- Rumores Keller, durante os Jogos Olímpicos senvolvimento do assunto durante de Londres de 2012: os jornalistas muito tempo. O último tweet relacio- O segundo exemplo de um proces- gregos maldisseram a jogadora de nado com a frase nazi foi encontrado so dinâmico de agenda setting pelos hóquei de campo e antiga medalha- dois anos mais tarde, no Verão de media sociais refere-se aos rumores. da de ouro pouco antes da cerimó- 2012, a propósito do papel de Katrin O rumor mais discutido do último ano nia de abertura com alguns tweets Müller-Hohenstein como apresenta- foram as declarações sobre uma possí- falsos, sugerindo que ela teria feito dora durante o Campeonato Europeu vel transferência do jogador de futebol comentários racistas. Os rumores nos de Futebol de 2012 na Suíça e na alemão Robert Lewandowski (Borussia media sociais (especialmente no Twi- Áustria. Dortmund) para o rival FC Bayern Mu- tter) foram seguidos da cobertura em Irrompeu um escândalo similar nich. O rumor começou com um tweet canais de media tradicionais e online durante os Jogos Olímpicos de Londres por um fã de futebol alemão (utilizador na Alemanha e na Grécia. Em conse- de 2012. A 31 de julho, o repórter ale- @breitnigge) a 4 de fevereiro de 2013. quência, Natascha Keller foi forçada mão da ARD Carsten Sostmeier reagiu Lewandowski é um dos jogadores mais a encerrar a sua página do Facebook à medalha de ouro da Alemanha em populares na Alemanha, mas o seu e a sua conta do Twitter. CCE como se segue: “…desde 2008 tweet foi partilhado apenas duas vezes. cavalga-se para trás…” (uma referên- Contudo, deu início a alguma cobertura cia à invasão alemã da Polónia, sobre a nos media online e, subsequentemente, qual Adolf Hitler comentou “Desde as também nos media tradicionais. Uma 5.45 da manhã que estamos a ripostar pista: a discussão nos media sociais Tomando tudo isto em conside- fogo e a partir de agora as bombas sobre a transferência durou mais de ração, o impacto dos media sociais encontrar-se-ão com bombas”. Como a um ano até que Robert Lewandowski nos media desportivos tradicionais Katrin Müller-Hohenstein, antes dele, anunciou oficialmente a sua mudança poderá ser descrito como um certo a página de Facebook de Sostmeier para o Bayern de Munique. tipo de notícias dos media sociais: Notícias de Media Sociais os canais de media tradicionais uti- foi inundada com comentários jocosos e de assédio. Ao que se seguiu um Este processo de rumores inicia- lizam conteúdo dos media sociais, pedido de desculpa de Sostmeier e a do e difundido pelos media sociais como fotografias, citações ou tweets 95 especiais, para acrescentar relevância, autenticidade e proximidade à sua própria cobertura. Com isso, os media sociais tornam-se num importante canal de distribuição e de expansão de notícias através de links para histórias, links para diferentes fontes e via a agregação da informação. Os media sociais geram informação nova (fotografias, citações, visões especiais) que, de outro modo, não estariam disponíveis a jornalistas desportivos operando sob os estritos regulamentos das federações desportivas acima descritos. Além dos exemplos dados, relativos a jornais tradicionais, existe O processo de agenda setting dos media sociais no jornalismo deportivo leva a novas formas de personalização que criam novos heróis desportivos Sumário, Avaliação e Discussão O papel e o crescente impacto dos media sociais na mediatização do desporto são óbvios. Neste trabalho descrevemos, a partir de diferentes perspetivas, um processo circular e dinâmico de influência mútua dos media tradicionais e sociais no desporto. A maior parte das vezes, este processo tem início com eventos cobertos pelos media tradicionais. A isto seguem-se muitos tipos diferentes de reação nos media sociais (como posts de Facebook ou de Twitter) que empolam a história, a maioria dos um impacto crescente do conteú- quais atribuindo comentários e emo- do dos media sociais na cobertura ções ao evento ou dramatizando a sua televisiva. Isto levou ao “tweet da cobertura. No que toca a esta reação, noite” por membros do público do os media tradicionais transformam a popular programa desportivo ale- cobertura em notícias (tradicionais) e mão Aktuelles Sportstudio, trans- usam-na para verificar e autenticar a mitido aos Sábados. Qualquer pes- história. Além disso, existem frequen- soa pode colocar ao convidado uma temente comentários subsequentes pergunta via Twitter e estes tweets nos media sociais relacionados com são mostrados durante a emissão. as notícias nos media tradicionais. A Muitos destes exemplos apareceram democratização das ferramentas de também nas tabelas dos media so- produção e de publicação nos media ciais na Alemanha, em 2013 (http:// sociais como o Facebook, o Twitter, www.10000flies.de/). etc., desencadeou novos fatores na elevação e mediatização dos atletas e media tradicionais desempenham fatores frequência da comunicação, a levou ao processo que designamos por um papel diferente. O (novo) público autenticidade, os ratings de comuni- “agenda setting dos media sociais”. dos media sociais cria uma bolsa de cação, as possibilidades de multimé- A natureza circular ou espiral tópicos para os media tradicionais, o dia e os links. Deve notar-se que a deste tipo de comunicação sobre novo papel dos media leva à autenti- participação altamente emocional dos desporto e os seus protagonistas é cação das notícias dos media sociais destinatários gera oportunidades, mas mensurável. As novas variáveis são pelas subsequentes histórias e inves- também riscos. Isto leva a uma tenta- a frequência, a autenticidade e a tigação. Com estes novos processos tiva dos organizadores e das associa- consciência das comunicações. A e novas formas de publicidade pelos ções desportivas de regular a função comunicação tem início nos media media sociais, as histórias focalizam democrática do público no desporto tradicionais, leva a uma interação ex- frequentemente escândalos, rumores e através de diretivas e de medidas de traordinariamente dinâmica entre as novos tipos de notícias, que chamamos controlo. ofertas dos media tradicionais e dos de notícias dos media sociais. Estas media sociais e, na volta, determina notícias apresentam informação como como os media tradicionais continua- fotografias, citações ou perspetivas pu- Conclusão: Novo Balanço rão a relatar a história, muitas vezes blicadas pelos atletas, organizações através dos Media Sociais com mais ênfase do que antes. Este ou federações, que são normalmente processo circular pode ser encontrado restringidas por rigorosos regulamen- O processo de agenda setting dos acima de tudo em grandes eventos tos e que os media tradicionais não media sociais no jornalismo desporti- desportivos como Jogos Olímpicos ou podem investigar. Relacionado com os vo transforma a estrutura hierárquica Campeonatos de Futebol. Jogos Olímpicos de Londres de 2012, dos media e do sistema desportivo e As consequências do processo aci- alguns exemplos, como ângulos de câ- leva a novas formas de personaliza- ma descrito são claras: em comparação mara especiais ou tópicos tweetados ção que criam novos heróis despor- com as histórias dos media tradicio- pelos atletas, podem ser encontrados tivos. Esta transformação a todos os nais e do seu respetivo desenvolvi- no blog do Twitter, em https://2012. níveis leva a uma democratização da mento (envolvimento dos tópicos nos twitter.com/. comunicação com novas estruturas, media noticiosos), durante o “agen Este processo de agenda setting um novo balanço de poderes e uma da setting dos media sociais” pode dos media sociais manifesta-se em di- forte dinamização da comunicação, verificar-se um aumento da emoção ferentes níveis estruturais e através de relacionada, acima de tudo, com o e da velocidade de cobertura. Neste várias características: influenciando elevado envolvimento afetivo no des- processo de crescimento rápido, os a sua forma de tematização estão os porto. Como consequência, podemos 97 observar uma mediatização a todos os GRZYWI Ń SKA, I., & BORDEN, J. 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In: International Journal of Sport Communication, 3, 422–437. 99 Ana Teresa Peixinho Professora da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra ([email protected]) A cidade e as suas personagens em fim de século: Luís Augusto Costa Dias Investigador do CEIS20 ([email protected]) quadro de emergência de uma cultura urbana de massas em Portugal The city and its characters in the end of the 19th century: Framing the emergence of the urban mass culture in Portugal Resumo: Abstract: Este artigo corresponde a uma etapa de um This article represents a step in a broader projeto de investigação mais amplo que pre- research project that aims to study the emer- tende estudar a emergência da cultura de gence of the Portuguese mass culture in the massas em Portugal no contexto da moder- context of modernity. We intend to describe nidade. Descreve-se, de um ponto de vista the context of the “printed civilization” from da história cultural, o contexto da civilização a standpoint of cultural history. This period, do impresso, que quadra entre o quartel that court between the final quarter of the final do séc. e o do princípio do séc. nineteenth century and the early twentieth que foi o cenário típico da emergência century, was the typical scenario of the de uma cultura de massas de matriz urbana emergence of a mass culture of urban matrix envolvendo toda uma transformação social. that involved an entire social transformation. A modernidade construiu, desde os seus Modernity, since its foundation, built this fundamentos, este espetáculo feito de novos spectacle made of new social professionals, tipos sociais e profissionais, novos lugares new urban places of leisure and fun, new urbanos de ócio e diversão, novas relações social and discursive relations and types. sociais e discursivas. Se, até ao dealbar da If, during the industrial era and until the globalização, Portugal prolongou uma rea- dawn of globalization, Portugal extended an lidade estrutural essencialmente agrária a essentially agrarian structural reality that que corresponderam representações persis- corresponded persistently to rural represen- tentemente rurais, constituindo fatores de tations (constituting factors of resistance to resistência à modernidade que marcaram modernity that marked much of our twentieth grande parte do nosso séc. a verdade century), the truth is that in the transition of é que, na transição para o século seguinte, the nineteenth century to the next, we can podemos identificar um quadro cultural e identify in the Portuguese society a cultural * Abordagem experimental no âmbito de um social de efeitos multiplicadores de desen- and social framework of multiplier effects projeto de investigação sobre “Modernidade volvimento que teve os centros urbanos como of development that had urban centers as a e cultura de massas em Portugal (séculos XIX polo de importantes transformações. hub of important changes. e XX)”, numa parceria do Centro de Estudos © ALugares da Personagem, António Barros, 2014-2015, #7 - Guimarães_Coisas Reais - CAAA XX , XIX XX , Interdisciplinares do Século XX - Ceis20, da Palavras-chave: Cidade, cultura de Keywords: City, mass culture, urban Univ. de Coimbra, com o Instituto de História massas, personagens urbanas, imprensa. characters, press. Contemporânea da Univ. Nova de Lisboa. 101 1. Um novo espaço aproximar o centro das margens ur- Passeio Público, em frente de duas público urbano banas: elétricos para Cais do Sodré e chávenas de café” procurara, através Algés em 1889, para o Campo Grande das letras, “acordar tudo aquilo a ber- De regresso a Lisboa, aí por volta em 1906; comboios para Belém ainda ros” (Queirós, 2009: 159), compreen- de 1887, numa encruzilhada de tempo em 1889. Eram também, em grande dendo afinal que, ao abrir o último retida pelo autor de Os Maias, “de- parte, outros os ocupantes da cidade, quartel do século, o espaço público pois dum exílio de quase dez anos” na “toda uma geração nova” de gente que começara a mudar com o despertar cosmopolita cidade de Paris para se contribuía para desfigurar a “cidade de novas camadas urbanas, essas que, refazer da sua anterior tragédia amoro- velha” e, numa conversão geral, “ar- num brevíssimo lapso revolucionário, sa, Carlos Eduardo em vão procurava ranjar-se à moderna” (Queirós, 1970: o nosso escritor acreditou poderem reconhecer velhos lugares, na compa- 690-703). sustentar uma Comuna em Lisboa: nhia de João da Ega, sobretudo a mais Ora, para o que à história cultural operários, pequenos comerciantes, simbólica das referências da capital. interessa, a cidade e as personagens, trabalhadores de serviços (Queirós, Onde outrora se estendera o Passeio no cenário da fantasmagoria baude- 1983: 61). Um espaço público novo Público da Baixa, murado de grades lairiana em fim de século que Walter que Eça tão bem soube captar no fi- e solene no remanso de personagens Benjamin tão bem assinalou (Benja- nal romanesco magistral de O Crime lentas, rasgava-se agora um grande e min, 2011: 31 e ss.), são as ruas e do Padre Amaro, em que o Cónego movimentado boulevard: os seus transeuntes − les rues e les Dias, o Conde de Ribamar e Amaro flâneurs. Da dinâmica entre ambos, descem indolentes o Chiado, por onde − Ora aí tens tu essa Avenida! sob um cenário de espetáculo de ecoavam gritos dos ardinas, trazendo Hem?... Já não é mau! que o meio urbano se tornava espaço as novas da Comuna de Paris. Este ce- apelativo, resultaram diversificados nário urbano, tumultuoso, construído Não se tratava apenas, porém, da esquemas de circulação e formas so- de tipos novos e com uma dinâmica Avenida da Liberdade, que perdera o ciais de apropriação da cultura, em tal diferente, nunca passara desperce- anterior “catitismo domingueiro” do momento sob o impulso e em torno dos bido ao escritor. Uns anos antes, em velho parque gradeado; aliás, já as objetos impressos, também estes sob 1867, instalado na capital alentejana Avenidas Novas se projetavam então uma nova dinâmica, por vezes mesmo (não obstante um centro interior e de para o Campo Grande, quando a peri- com novos objetos. lento crescimento), o então jovem es- feria da cidade tinha sido alargada no Mais de uma década antes, já Eça critor olhava a cidade à distância e, sentido de Belém e dos Olivais. Aliás, de Queirós, na companhia de Rama- vestindo com talento e mestria a pele em breve, os transportes urbanos iriam lho Ortigão, “numa noite de verão, no de jornalista, comentava na coluna de uma “Correspondência do Reino” pela um quadro cultural e social de efeitos entre o último quartel de Oitocentos pena de um correspondente fingido: multiplicadores de desenvolvimento e primeiro quartel de Novecentos. que teve os centros urbanos como Se muito destes fenómenos está ain- Agora vou por essas ruas, api polo de importantes transformações. da por conhecer em profundidade nhadas de gente, indolentemen No sentido em que, para a nova his- na sua dimensão económico-social, te, estudando os tipos como um tória cultural, a população representa a expressão ainda menos abordada, verdadeiro ocioso, rindo-me dos o corpo social sem o qual a cultura porém significativa, como procura- penteados femininos, vendo os li não pode integralmente ser pensada, remos mostrar aqui nos seus traços vros novos, ouvindo as dissertações é necessário partir de mobilidades fundamentais, consistiu na emergência políticas, a graça dolorosa e insí sociais mais gerais − nomeadamen- de uma cultura urbana de massas que, pida dos nossos folhetinistas, mas te a deslocação migratória a partir aliás, acompanhou sensivelmente a si- olhando sobretudo para o sol, [...] dos meios rurais (para além de uma tuação europeia da época (Dias, 2008; como um verdadeiro meridional emigração expressiva, interessa aqui Kalifa, 2001). Trazendo uma vez mais (Queirós, 1981: 540). uma não menos importante desloca- o testemunho queirosiano, cuja obra, ção interna para os principais centros sobretudo a dos textos de imprensa, Ora, que dimensão e que relevân- urbanos). E, no seguimento de pro- reflete e acompanha as grandes trans- cia tinha então essa população urba- gressos materiais ao cabo do período formações societais do tempo, chame- na de final de século, com crescente “fontista”, nomeadamente a interliga- se à colação uma crónica enviada para acesso à cultura? Qual a dinâmica do ção nacional ou, melhor, interurbana, a Gazeta de Notícias do Rio de Janeiro, seu despertar? pelas vias de comunicação telegráfica porém escrita na capital francesa onde Se, ao longo da era industrial e até e ferroviária, encurtando o tempo e exercia funções diplomáticas: trata-se ao dealbar da globalização, Portugal o espaço – avaliar que o nosso país de um interessante texto de Ecos de prolongou uma realidade estrutural assistiu no último quartel do sécu- Paris, datado de 1 de julho de 1894, essencialmente agrária a que corres- lo XIX, mais propriamente nas três intitulado “O Salon”, que tem como ponderam representações persistente- últimas décadas, à primeira grande mote um evento anual de grande pro- mente rurais, constituindo fatores de expansão dos meios urbanos da época jeção cultural – o salão de belas artes resistência à modernidade que mar- contemporânea. parisiense. No entanto, a argúcia e caram grande parte do nosso século No interior do tecido urbano, ou- humor queirosianos conduzem mais XX, a verdade é que, na transição do tras mobilidades sociais participa- longe que a referência a uma mera século XIX para o seguinte, podemos ram no arranque dos processos de exposição, detendo-se o texto na ver- identificar na sociedade portuguesa industrialização e terciarização, já dadeira “peregrinação instrutiva” de 103 que socialmente (leia-se pejorativa- quais deviam parar, e fazer “ah!” valorização da rua e da sua frequenta- mente) se revestia o evento, sobretudo e sentir uma emoção, e depor um ção quotidiana, de que o Naturalismo porque permitiu ao cronista matéria de louvor (Queirós, 2002: 477). fez razoável inquérito literário à ga- reflexão sobre questão mais funda que leria de tipos e de ambientes sociais, o aspeto artístico propriamente dito. A partir daqui, o autor alargou- desde Eça de Queirós a Abel Botelho, Neste cenário, Eça apercebia-se da in- se em considerações, muitas delas sem esquecer as crónicas citadinas capacidade inata do homem social na ainda de grande atualidade, sobre o que deram lastro à abordagem de cos- sua época – leia-se num final de século fracasso dos ideais revolucionários e tumes em que Fialho de Almeida se em ebulição − de pensar com a sua da Democracia, pois que já no final do celebrizou, nem o magistral poema de própria cabeça, de ajuizar livremente, século o público (leia-se aqui o Cesário “O Sentimento de Um Ociden- independentemente dos ditames profe- público urbano burguês) se comporta tal.” Daí, a cidade tornou-se no centro ridos pelos líderes de opinião ou pelos como o habitante de Damasco ou de de gravidade de novas e complexas jornais (aliás, também Stendhal, em Bagdad que não prescindia do seu práticas culturais e representações textos publicados nas revistas ingle- “cádi” ou do seu “ulemá” para poder sociais variadas, segundo vivências sas, refletiu esta preocupação, pers- ter uma opinião que seguir; com uma que o novo espaço urbano então abriu, petivando o jornal como um ecrã que diferença, imposta pelos tempos mo- sob o signo de um conceito de cultura opacificava a realidade, impedindo o dernos: neste fim de século, nenhum mais alargado. contacto direto do cidadão com a arte homem civilizado que se queira res- O espaço público, para tomar de e a literatura e conduzindo-o ao reduto peitado pode prescindir da Arte ou empréstimo à Sociologia um conceito das ideias feitas): da Literatura, pois elas representam a muito generalizado que serve bem a “sobrecasaca da inteligência”, rápida nossa perspetiva, era então um espa- Como uma fila submissa de bons e fugazmente consumidas nos jornais, ço culto de natureza essencialmente carneiros, todos estes milhares de afinal os grandes (de)formadores da urbana, compreendendo os indivíduos seres pensantes, e únicos donos opinião pública. que, de alguma forma, participavam XIX , do seu pensamento, marchavam A cidade – de que Paris era, à épo- na vida pública e a determinavam arrebanhadamente para aquelas ca, o modelo − foi, no contexto geral numa esfera de interferência social e obras que, na véspera, o Estudo da sociedade portuguesa da época a cultural mais alargada, isto é, para lá Crítico, ou antes o Guia Crítico que nos reportamos, a grande “novi- dos estreitos limites de uma burguesia do “Salão”, publicado pelo jornal, dade” (Silva, 1996: 696) . Com mais culta e proprietária, típica do quadro lhes indicava, ou melhor lhes im precisão, do ponto de vista da história romântico-liberal, mas integrando pusera, como as únicas diante das cultural, a cidade tornou-se cenário de lentamente novos setores emergentes. A cidade tornou-se no centro de gravidade de novas e complexas práticas culturais e representações sociais variadas, segundo vivências que o novo espaço urbano então abriu Ora, a burguesia, em decisiva ascen- iniciou o seu processo de autonomi- são desde o século XVI , começara por zação nesse século das Luzes. Não se modificar profundamente a esfera pú- tratava ainda de uma esfera distinta- blica europeia desde meados do sé- mente burguesa, pois que abrangia a culo XVIII . Público e privado passam aristocracia urbana, frequentadora e a constituir-se como dois domínios dinamizadora dos salões e dos teatros. distintos, embora mantendo relações Na senda de Habermas, o termo pú e articulações, uma vez que o público blico, na França do século só existe a partir de indivíduos que se aplicado aos destinatários e consu- assumam como tal na privacidade. 1 midores de arte e literatura, tanto na A valorização da intimidade e o surgi- corte, quanto nos salões aristocráticos mento de um novo conceito de família, e nos teatros. Filipe Carreira da Silva, domínios separados da vida profissio- numa leitura crítica da obra do filósofo nal, marcaram influências profundas contemporâneo, encontra uma síntese ao nível dos processos de reprodução muito precisa para esta ideia quando cultural. Antes, porém, do nascimen- afirma que “a esfera pública burguesa to de uma esfera pública política, surgiu do encontro entre os herdeiros ela existiu no seio de um campo – o da sociedade aristocrática e humanis- cultural, sobretudo o literário – que, ta, em que se baseava a esfera pública embora ainda de forma incipiente, literária, e a camada intelectual da XVII , era burguesia, então em ascensão.” (Silva, 2002: 17-18) 1 Como explica João Pissarra Esteves: “Temos, assim, o público da modernidade projetado numa dupla relação com o privado: em contraposição e em estreita articulação. É esta ambivalência que estabelece o primeiro nível de mediação simbólica concretizada pelo público: a reunião das pessoas num público, o seu encontro num espaço comum […] de discussão e de ação, começa por ser uma oportunidade de afirmação individual de cada um dos participantes, um espaço de desenvolvimento da interioridade e de afirmação subjetiva de cada um dos membros do público” (Esteves, 2003: 191). Se olharmos para uma das instituições que mais contribui para a formação e consolidação desta esfera pública – o salão – facilmente percebemos esta ideia. Os salões assumiram-se, desde cedo, como um espaço sociodiscursivo de nivelamento ou encontro de classes sociais distintas, em que a burguesia se infiltrava e convivia 105 com a aristocracia. Os critérios de dis- artísticas 3. Em Portugal, foi reconhe- para a publicitação de ideias e para tinção social existentes fora do salão cido o salão da Marquesa de Alorna a circulação de produtos e de críti- esbatiam-se através da conversação, foco de ebulição cultural, onde se cas culturais: cafés, ruelles, teatros. modelo comunicativo igualitário, para debatiam as novas ideias políticas e Entre outros, em que poderíamos James Melton, (2001). Segundo este também as novas correntes estéticas acrescentar o aburguesamento das estudioso, o salão tem algumas carac- e literárias, frequentado por nomes filarmónicas musicais que retiraram terísticas essenciais da esfera pública como os de Bocage e Alexandre Her- o monopólio dos salões cortesãos nos do Iluminismo, nomeadamente o facto culano 4; em breve, na primeira meta- meados do Portugal de Oitocentos, são de a sua origem se prender com uma de do século português, o salão todos espaços urbanos, já que a cidade crescente autonomia relativamente ao ganhou crescente preponderância se configura como o polo aglutinador mundo da corte, ser um espaço em burguesa, de que pode, entre outros, destes novos agrupamentos sociais, que, apesar da preponderância da dar-se o exemplo do salão de Maria em que se começou a estabelecer “a comunicação oral, a palavra escrita Krus, animado por Almeida Garrett e paridade entre as pessoas cultivadas circulava e, finalmente, ser um espaço onde participavam literatos e homens procedentes da sociedade aristocráti- de nivelamento social em que se esba- de negócios, políticos e funcionários; ca e as da intelectualidade burguesa” tia a rigidez e a formalidade da corte. 2 o próprio Grémio Literário, fundado (Habermas, 2002: 70). XIX Quer isto dizer, portanto, que o no conturbado ano de 1846, pode ver- Estamos, portanto, perante o nas- conceito de público moderno come- se como formalização pública dessa cimento de um novo tipo de organiza- ça por ganhar contornos definidos tendência. Naturalmente que, como ção das elites cultas, em que “a di- no âmbito das artes e da literatura, explica Habermas, a par dos salões, visão simbólica, fundada em motivos publicitadas e discutidas nos salões, existiram um conjunto de instituições e convicções, […] se sobrepõe […] tribunas de legitimação das criações variadas que em muito contribuíram às tradicionais divisões religiosas, étnicas, económicas, etc.” (Esteves, 2 “Eminence in the salon also undermined traditional conceptions of nobility based on birth by encouraging a more elastic behavioral definition. Eminence in the salon depended not on blood-lines but on the refinement and esprit one exhibited in conversation with others. Politeness and cultivation became qualities to which noble and bourgeois could aspire” (Melton, 2001: 195-225). 3 “El salón mantenía, por así decirlo, el monopolio de la primera publicación: um nuevo opus, incluído el musical, tenía que comenzar legitimándose ante esa tribuna.” (Habermas, 2002: 72) 4 “Empossada no título e nos bens do Marquesado de Alorna, fez do seu salão um foco das novas ideias estéticas; a influência que exerceu, como “Staël portuguesa”, ressalta do testemunho agradecido de Herculano” (Coelho, 1994). 2003: 194). Na esfera pública burguesa, numa perspetiva habermasiana que, como já se disse, não reúne consensos, a força da argumentação e os valores simbólicos sobrepunham-se a outros recursos de tipo material ou social; para além do mais, dinamiza discussões críticas, com base racional, sobre temas e assuntos até ao momen- última análise, deram lugar ao espaço Foi neste espaço privatizado que foi to monopolizados pelo Estado e pela público político. Assim, o ideal ilu- possível experienciar uma nova forma Igreja; um terceiro aspeto inerente a minista de um espaço público esteve de individualidade e de subjetividade esta esfera pública burguesa, não obs- ligado a um conjunto de fenómenos e foi nessa experiência que, simulta- tante os estreitos limites de um modelo culturais no século ampliados neamente, o conceito de público pas- censitário em que, entrado o século na centúria seguinte: desde o desen- sou a fazer sentido: o espaço público XIX , a burguesia assentou o seu poder volvimento de novos espaços públicos, mantém-se público no sentido de que político (Habermas, 1997: 127), diz como o parque, o museu e o café mas ele existe pela publicidade, o modo respeito ao carácter democrático da também à rápida expansão da indús- pelo qual as opiniões podem evoluir participação: ao menos em abstrato tria da imprensa, bem como à filosofia pela crítica e pelo debate para uma – e a configuração mais abstrata foi política liberal que moldou as grandes opinião pública, mesmo quando, para a construção oitocentista da ideia de revoluções do século. O espaço públi- lá da literacia, o espaço público veio cidadão 5 −, todos podiam participar, co existiu na Europa das Luzes como a alargar-se, já na segunda metade criticar, julgar bens acessíveis a todos. uma rede discursiva, através da qual do século O desenvolvimento de uma “re- os indivíduos, abstraídos dos interes- de massas nos meios urbanos. pública das letras” iluminista foi, ses privados, chegavam a consensos para Habermas, o fundamento sobre sobre questões públicas, através das o qual se estabeleceu uma exigência discussões, das cartas, de livros ou de da república política. Desde cedo, ensaios. Por isso, para Habermas, a portanto, na construção deste espaço sociedade civil, que cresceu em tor- Por agora, esse espaço público é público emergente, o impresso teve no da cultura dos cafés e dos salões, ainda essencialmente o espaço do pu- um papel angular, patente no valor resultou numa esfera pública literária blicado; a cultura, antes da afirmação das redes epistolares fulcrais nesta que, em última análise, influenciou a de uma civilização da imagem e do república das letras e que marcam esfera pública política. som na passagem para o século muito bem a transformação de uma XVIII , ante a concentração 2. O espaço do publicado À medida que, desde finais do XX , era então predominantemente impres- esfera pública literária em uma esfera século se formou uma escrita sa, circulava e informava na forma de pública política, através da reunião especializada e aumentou o número de objetos impressos: do jornal e do livro de pessoas privadas. Desta reunião pessoas alfabetizadas, desenvolveu-se estendeu-se ao folheto e ao cartaz pu- nasceram públicos de debate que, em o gosto pelo espaço privado da vida blicitário, sem esquecer que estamos doméstica, cada vez mais confinada à perante uma dinâmica de apropriações habitação da família nuclear restrita. sociais da cultura (e da informação 5 No caso português, ver Dias (1990). XVIII , XIX , 107 em geral) por via simultânea do ler, cidades que, literacia à parte, possuía masculino residentes nos limites da do ver e do ouvir (Dias, 2011). Esta aptidões de leitura extensíveis a uma cidade. Mas Lisboa não era um caso civilização do impresso que finalmente “massa semiletrada” de que a elite excecional, não obstante a capital nos ocupa, a partir da 2ª metade do culta em vão pretendeu demarcar-se. ser a cidade megalómana que mais século XIX − com a invenção das co- Reconhecia-se, aliás, como fez Fialho cresceu durante todo este período: a leções literárias, nomeadamente em de Almeida nas suas crónicas urbanas, população com apetências de leitura livros de bolso, a imediata e rápida a pressão daquilo a que chamou “cul- na Coimbra escolar (com 56%) e no afirmação da imprensa industrial, tura industrial” de objetos impressos Porto culto de fim-de-século (com os jornais diários a baixo preço e de generalizados e que Eça tão bem ca- 55%) era mesmo superior à dos lis- grande tiragem, dentre uma parafer- ricaturou na célebre carta-prefácio a boetas (que rondavam os 54%). E esta nália de folhetos, magazines e boletins Azulejos do Conde de Arnoso. era a situação nas principais cida- 6 de lazer cuja venda proliferava tanto des portuguesas de um eixo litoral em estabelecimentos livreiros e afins Em breve panorama, indicadores que começava em Viana do Castelo como em pontos comerciais fora do mais precisos obrigam a mudar o ân- e terminava em Lisboa, desfasado do circuito habitual dos impressos −, sur- gulo de visão sobre o atraso cultural interior e sul do país, aí escassamente giu concomitante com uma elevação português. Por volta de 1880, antes alfabetizado mesmo entre os citadi- paulatina dos níveis culturais da po- mesmo do Maia e do Ega reconhe- nos (por exemplo, Castelo Branco com pulação urbana que contraria, afinal, cerem uma Lisboa transfigurada e a 28%, Beja com 30% e Faro com 25% a perspetiva de um atraso cultural por- descentrar-se do fórum regenerador dos seus habitantes de alguma forma tuguês até há bem pouco dominante (figura 1), até então circunscrito pelas instruídos)7. entre a nossa historiografia. elites ao Rossio e Chiado, a percen- Tais indicadores permitem, então, Pois, no último quartel do século tagem da sua população urbana com explicar de forma decisiva a curva as- XIX e numa tendência que se estendeu acesso à cultura − isto é, todos os cendente nas extraordinárias tiragens até ao primeiro quartel do século XX, o que, de alguma forma, sabiam ler e das publicações periódicas, sobretudo analfabetismo endógeno e persistente, escrever (incluindo aqueles que as es- dos títulos diários, sabendo que os jor- sim, numa escala nacional (com índi- tatísticas, embora escassas, remetem nais finisseculares concorriam entre si ces próximos dos 80% dos indivíduos para uma coluna intermédia dos que nos grandes centros urbanos. Antes de sem instrução, perto da percentagem sabem ler, sem escrever) − ultrapas- Carlos da Maia regressar da Europa da população rural) não se compagi- sava os 50% dos indivíduos do sexo na com o crescimento da população residente no interior das principais 6 Ver Queirós, 2009: 187 e SS. 7 Dados referentes ao início do último quartel do século XIX in Anuário Estatístico (1884). Figura 1 Uma Lisboa transfigurada e a descentrar-se do fórum regenerador, até então circunscrito A. desc. (planta parcial). Museu da Cidade, Reservas, MC.GRA.992 pelas elites ao Rossio e Chiado. 109 (acreditando ele que, essa, sim, era cul- centro urbano, pelo menos com 1/4 dos ombro e farda de serviço 10, lendo um ta, numa apreciação vista do alto das exemplares destinados a pequenas e jornal numa esquina da cidade. E à elites), a população residente em Lis- próximas cidades e vilas; no caso de leitura popular, identificando novas boa, com cerca de 300 mil habitantes, O Século e do Diário de Notícias, deve franjas de um espaço público social- tinha disponíveis tiragens diárias de contar-se com uma circulação para ou- mente alargado, devemos ainda acres- 50 mil exemplares de jornais (Cunha, tras cidades do país − a verdade, não centar a leitura feminina, cujos ganhos 1941: 10 n.), 17 mil dos quais por obstante, é que o índice de consumo di- através da instrução atravessaram o conta do pioneiro Diário de Notícias reto de impressos nos grandes núcleos último quarto de século de Oitocen- (Miranda, 2002: 128) − isto é, cerca urbanos foi nessa época considerável. tos (Gomes, 1996: 33 e seg.), dando de um exemplar para 6 habitantes da Por esta altura, quando vamos já finalmente lugar à primeira e notável capital. Até final do século XIX, quando conhecendo os níveis dos lazeres po- geração de “feministas” dos princípios o Diário de Notícias tirava cerca de pulares através de atividades de cul- de Novecentos (Lousada, 2012). 30 mil exemplares diários, já um novo tura e recreio a que só era possível Ora, a imprensa de larga difusão vespertino lisboeta ultrapassava tais aceder com um mínimo de instrução construiu estratégias e criou dispo- tiragens (Salgado, 1894: 60). Trata-se (Figueiredo, 2011), também os perió- sitivos de afirmação, fidelização e de O Século que, em breve, veio a cons- dicos dos meios laborais conheciam ampliação de públicos que tiraram truir um verdadeiro (e o primeiro) im ampla circulação, como foi o exemplo partido de uma encenação do espaço pério mediático em Portugal e, antes do semanário Voz do Operário, edita- urbano, reforçando a sua presença de 1910, atingia a tiragem média de do pela coletividade homónima, que nesse cenário de espetáculo. Antes de 85 mil exemplares diários − quase o tirava 50 mil exemplares por número todos, o Diário de Notícias fez crescer dobro em dias de acontecimentos rele- em 1908 . Nas dinâmicas culturais da as suas tiragens com a introdução vantes, segundo memória de Brandão transição de século, a leitura popular, de quiosques de rua espalhados pelo (1998: 142). Nessa altura, os lisboetas como prática de rua, foi, aliás, belis- espaço urbano, mas também com o pouco mais eram que 400 mil residen- simamente iconizada pelo fotógrafo recurso aos ardinas que apregoavam tes urbanos, havendo uma proporção Joshua Benoliel, na capa da Ilustração as notícias a céu aberto e cujo nú- de um jornal para 4 habitantes da ca- Portuguesa de 13 de junho de 1908: mero não parou de aumentar até ao pital. Naturalmente, as tiragens eram com o título sugestivo “À esquina”, a também expedidas para fora do grande “chapa” do nosso fotógrafo surpreen- 8 9 dia um moço de fretes, de gancho ao 8 Segundo uma publicação do “império” de O Século, a Ilustração Portuguesa (1908, jul. 13). 9 Exemplo dado pela Ilustração Portuguesa. (id.). 10 O uso de farda pelos “moços de fretes” (figura 2) fora determinado numa então recente postura municipal, demonstrativa da integração das personagens numa paisagem urbana que se pretendia moderna. J. Benoliel (foto), “À esquina”. Ilust. Portuguesa (1908). Figura 2 Lendo um jornal numa esquina da cidade. 111 em 1891, esta- eram publicadas “primeiro num pla vam registados no Governo Civil de card que fizemos afixar nos lugares Lisboa quase 10 mil ardinas(Cunha, do costume”12 . final do século XIX : 1941: 36-40). Já por essa altura, Não se trata, porém, de um pro- O Século expandia-se com ramifica- cesso isolado da dinâmica urbana em ções pelos principais bairros da ca- geral: esse espaço mediatizado cor- pital, através da criação de sucursais respondia, integrando-se nele, a um em lojas que chegaram a ser 17 na cenário de espetáculo nas principais cidade de Lisboa em 1911, altura em cidades que começava nas fachadas que recorreu igualmente aos quios- dos prédios, por vezes com térreas ques para se localizar em praças e arcadas de passagem, e terminava jardins; na mesma época, estendia nos quiosques de café ao ar livre, em essas sucursais a vilas próximas em percursos que os transeuntes faziam crescimento, por exemplo em Alma- sob o colorido e as formas dos toldos, da e na Amadora (nesta, situada no dos avançados metálicos, das placas “centro comercial” junto à sede dos publicitários, dos cartazes comerciais “Recreios”). A completar esse espa ou de espetáculos; mas também ao ço mediatizado, os jornais possuíam ritmo dos novos aparelhos de repro- em geral, espalhados pela cidade, dução sonora, vulgares no princípio pontos de afixação das notícias que de novecentos entre comerciantes de eram lugares de difusão privilegia- porta aberta que chamavam a atenção dos, segundo um jornalista lisboeta: do público com essa música de rés-do- “Por toda a parte, onde os jornais chão 13. A cidade multiplicava então, têm “placards”, o povo estaciona, em aliás, uma diversidade de aconteci- massa, comentando os acontecimen- mentos artísticos, alguns de ama- tos” ; aliás, conforme afirmava um dores em plena rua, a céu aberto… jornal portuense, antes de chegarem mesmo os mais inusitados e capazes 11 aos pontos de venda, ainda antes de apregoadas pelas ruas, as notícias 12 O Comércio do Porto (1908, out. 5). 11 O País (1908, ag. 21). 13 Informação (e expressão sublinhada) que devemos e agradeçemos ao meu colega Manoel Denis Silva (IHC/UNL). A imprensa de larga difusão construiu estratégias e criou dispositivos de afirmação, fidelização e ampliação de públicos que tiraram partido de uma encenação do espaço urbano de encher, em poucas horas, um largo, de “interview” (então, assim mesmo, Com a exceção de Cesário Verde e da uma praça com milhares de espec- ainda sem tradução, os grandes gé- sua poesia de ambiente urbano e, tam- tadores. neros do moderno jornalismo nascen- bém por isso, percursor de uma moder- A civilização do impresso, que te), com uma vivacidade acrescentada nidade estética, foi necessário esperar quadra entre o quartel final do sécu- ao facto, um poder de sugestão e de pela vanguarda modernista para assis- lo XIX e o do princípio do século XX , emoção com que os novos “reporters” tir a um assomo citadino que teve em foi, pois, o cenário típico da emer- enfatizavam o caso. Afinal de contas, António Ferro, o jornalista capaz de gência de uma cultura de massas de afirmava um jornalista da época, tal experienciar a cidade, os seus ritmos, matriz urbana que envolveu toda uma imprensa guiava-se “pela necessidade as suas emoções, as suas personagens. transformação social: a modernidade incessantemente renascida de procu- Nessa altura, porém, o processo de construiu, desde os seus fundamentos, rar a variedade, de achar novidades” crescimento de uma cultura de mas- este espetáculo. A imprensa, cujo am- conforme “o paladar do leitor […] que sas de matriz urbana, fruto de uma biente apenas aflorámos, foi disso um absorve especialmente toda a curiosi- ampliação do espaço público por via exemplo, mesmo na sua narratividade, dade moderna” . de importantes transformações no cor- 14 nos instrumentos de escrita (motivos, Porém, o “paladar” das elites cul- po social no último quartel do século técnicas, recursos) que o jornalismo tas, nesse tempo que era já de crise do XIX moderno autonomizou sob a égide Naturalismo, acentuava uma tendência sofreu um abrandamento considerável do momento, do acontecimento. Para do imaginário para o ruralismo, o bu- durante o regime Republicano e um efeitos políticos ou quaisquer outros colismo, a tradição, a ancestralidade retrocesso decisivo durante o regime efeitos mais comezinhos na dinâmica na literatura, como na pintura, na fo- do Estado Novo que suspenderam, já desse cenário urbano, a espetaculari- tografia, nas artes em geral. Aliás, a para lá de meados desse último século, zação da notícia esteve presente nes- elite culta na transição de século trou- nova e decisiva explosão da cultura sa matriz de massas: a “invenção” do xe, com conceitos e práticas, a ideia de massas. acontecimento, incluído o sentido em de fruição do campo na cidade, com a que toda a literatura é invenção, não criação e ampliação de parques e, no descurou o efeito metafórico, a ampli- limite, com esse ritual tornado simbó- ficação, o exagero, o insólito; mesmo lico da plantação da árvore com data no mais fugaz, efémero, quotidiano marcada no calendário (republicano). acontecimento, a intriga, o crime, o facto escabroso ou simplesmente inusitado dão matéria de “reportage” ou 14 Trecho de uma crónica na Ilustração Por tuguesa (13 jul. 1908). 113 e primeiro quartel do século XX , Bibliografia: − (1990). “Uma doutrinação liberal da KALIFA, D. (2001). La Culture de Masse “opinião pública” como modelo de en France - 1. 1860-1930. 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Para além da Licenciatura de Jornalismo, estiveram na organização científica os Estudos Franceses da FLUC e o Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX. 117 Cristina Robalo Cordeiro Diretora do Bureau Maghreb de l'Agence Universitaire de la Francophonie; foi vice-reitora da Universidade de Coimbra ([email protected]) Camus, o Africano Camus, the African Resumo Abstract Antes de abordar diretamente a questão Before considering directly the question da africanidade de Albert Camus, preciso of the “African-ness” of Albert Camus, I de descrever o caminho que me levou até must briefly describe the way which led aí. Depois de ter ‘ensinado’ a obra e falado my thoughts to it. Having, years along, sobre o homem durante muito tempo nas taught the work and evoked the man in minhas aulas de literatura, descobri em my lessons of literature, I lately realized, mim, através do contacto prolongado com in a prolonged contact with North-Africa o norte de África e da prática da escrita and in my own fictional writing, how deep ficcional, a força e a fecundidade da sua and fertile his influence has been on my influência. Essa influência é, sem dúvida, own personality. This influence comes, no a da terra africana, do seu clima brutal, doubt, from the African soil itself, from da violência das suas paisagens, de onde its harsh climate and violent landscapes. o escritor fez surgir o lirismo das suas But such a physical fascination, so vividly mais belas páginas. Mas será este fascí- represented in his work, is not the only nio físico, tão vividamente representado origin of his feeling of African belonging. na obra, a única fonte do sentimento de There is here an enigma to be accounted pertença à África? Há um enigma que for, a taboo to be dispelled. My opinion is devemos tentar resolver, um tabu que that the “African-ness” upheld by Camus tem de ser quebrado. Na minha opinião, – this sensation of freedom, this moral a africanidade reivindicada por Camus - lawlessness – does not derive only from his essa sensação de liberdade, essa ausência youth as a “pied-noir”, but above all from de lei moral - não advém apenas da sua the books he read, from J.J. Rousseau and juventude de pied-noir, mas acima de tudo Arthur Rimbaud in particular. das suas leituras, especialmente da leitura de Rousseau e de Arthur Rimbaud. Palavras-Chave: Africanidade, Keywords: African-ness, Testemunho ,Tabu, Enigma, Lei Moral Testimony, Taboo, Enigma, Moral Law 119 É-me impossível começar a minha E também não porque o tema que título para a minha causerie Camus, comunicação sobre Camus sem vou tratar seja relativo à carreira jor- o Africano deixo-me guiar por uma felicitar o departamento de Jornalismo nalística de Albert Camus (o professor intuição mais do que por um saber e e Comunicação pelo seu aniversário Mário Mesquita esgotará o assunto), tenho absoluta consciência do risco e agradecer do fundo do coração ter ainda que esta seja uma faceta não que corro. pensado em me convidar a tomar parte circunstancial ou adventícia – mas A questão é, com efeito, particu- nesta bela (e oportuna) iniciativa. antes substancial e constitutiva – da larmente delicada e exigiria precau- sua obra e do seu destino. ções oratórias – que não tenho tempo Impossível não só no que toca à boa educação mas também por uma razão Se falei de uma razão de ordem de tomar – ou considerações prévias de ordem digamos mais causal do que causal ou lógica que me obriga a sobre a geografia e a história, o passa- lógica. Se se trata de uma jornada de começar a minha breve conferência do e o presente, que não tenho compe- reflexão sobre o jornalismo, a vocação dirigindo uma saudação muito caloro- tência para articular. Reconheço, no e a missão do/da jornalista que explica sa aos meus colegas do departamento entanto, que me é mais fácil avançar que me disponha – vinda de propósito de Jornalismo e aos meus colegas de neste terreno difícil perante vós, aqui de Rabat – a evocar durante alguns mesa, é porque a amizade que ma- em Coimbra do que em Orão ou em instantes a figura de Albert Camus, nifestam para comigo é com efeito a qualquer outra parte de África do Nor- neste dia 4 de novembro de 2013, sob verdadeira premissa do meu propósito. te, tendo como destinatários colegas os auspícios do vosso departamento, Camus colocava a confiança, a sim- aos ouvidos de quem a palavra África é mais sobre uma certa conceção da patia, a sinceridade na base de toda não significa nada ou, pelo contrário, comunicação entre as consciências que a comunicação. E, pela minha parte, significa demais. quero construir a minha intervenção. não vejo (já não vejo) outro ponto de Perguntei há dias a um amigo mar- Não que possua a mínima auto- partida para qualquer tomada pública roquino, reitor de uma universidade, ridade na vossa especialidade (pois de palavra senão esta vontade de par- se se sentia “africano”. Nenhuma não basta ter publicado artigos num tilha e esta esperança de comunhão. hesitação na resposta: Não, de forma jornal para se ser jornalista) – mesmo A (minha) recusa do inteletualismo nenhuma! Repeti a experiência com se recordo com gosto ter, no final do discursivo conduz-me assim ao limiar diversos interlocutores do Magrebe e século passado, lecionado neste de- do problema que quero agora abor- a maioria reagiu de forma idêntica. partamento o seminário de Mestrado dar. Apenas abordar, pois que a sua Deixo-vos o cuidado de interpretar de “narratologia mediática”, o que me complexidade me leva a pensar que uma tal denegação, evidentemente permitiu muito beneficiar do contacto não serei sequer capaz de convenien- sobredeterminada. É verdade que mui- com profissionais já experientes. temente o enunciar. Ao propor como tos portugueses, há 40 anos, teriam Não estava Camus, face à insuportável arrogância dos intelectuais parisienses (...) disposto já a aparentar-se a todos os “negros”, todas as cores confundidas, do planeta? manifestado a mesma veemência em que circunstâncias, é apenas porque se verem identificados como Europeus, delas me vem a sugestão da minha mesmo independentemente do debate intervenção desta tarde. sobre a integração na CEE… No âmbito de um júri de doutora- Que quis então Camus dizer ale- mento, fui levada a ler uma dissertação gando a sua africanidade numa car- de literatura comparada, acompanha- ta, datada de janeiro de 1949, a Jean da de uma vasta bibliografia passiva, Grenier, seu antigo professor de facul- sobre a imagem do Árabe nos textos dade em Argel (Grenier, 1981: 152)? de Paul Bowles e de Albert Camus. Indicarei mais à frente o contexto que Visivelmente influenciado pela doxa esclarece esta afirmação. pós-colonial, o autor do trabalho fa- Mas antes tenho que precisar o zia de Camus um racista sem o saber, lugar de onde eu própria falo quando absolutamente indiferente à cultura falo de Camus, o que me permitirá autóctone e virando as costas ao Islão, justificar a abordagem que faço hoje em suma, um petit blanc, generoso por da sua obra e que difere daquela que certo mas obnubilado pela ideologia precedeu as minhas atuais viagens pied-noir. Inútil dizer-vos que uma tal através do Magrebe e a frequentação apresentação começou por me escan- assídua dos magrebinos. dalizar, mesmo se em geral sempre Este lugar de onde vos vou falar olhei com benevolência as teses que de Camus não é já o da professora procuram contestar as ideias feitas. de literatura. Não só já não ensino, O candidato foi aliás admitido, tendo como deixei de me manter informada a minha oposição servido apenas para sobre o trabalho crítico que continua animar o debate. Voltarei ao nó da a fazer-se em torno dos seus textos e discussão e à minha própria evolução sem dúvida a renovar a sua compreen- nesta matéria. são. Não espereis pois da minha parte Permiti, para já, que precise a uma visão do “estado da arte” sobre natureza e sobretudo a amplitude do a investigação camusiana. O meu úl- meu atual afastamento dos estudos li- timo esforço nesse sentido data já de terários, pois que Camus não é estra- há 5 ou 6 anos e, se vou precisar em nho a esta mudança que se operou na 121 minha vida profissional tanto quanto Tipaza, a (belíssima) localidade cele- compreendeis a minha incapacidade no meu pensamento. Para começar, brada em Noces, foi-me mostrada por em falar de Camus sob um modo que se aproveitei a primeira ocasião que um colega argelino que, conhecendo o não seja íntimo. As poucas horas livres a mim se ofereceu para ir viver no meu culto de Camus, teve a gentileza a que a minha atividade me autoriza, Norte de África – e não em qualquer de me guiar por esses lugares tornados consagro-as ou a uma deambulação outro lugar do mundo! – é, tenho hoje míticos. pelas ruas da Medina e do souk de Ra- disso plena consciência, ao efeito de Talvez vos espante que tenha uti- bat ou à escrita. Deixei então, nestes inutrição exercido por certas páginas lizado a expressão “afastamento dos últimos meses, que uma espécie de líricas de Noces, de L’Eté ou de L’En estudos literários” quando, ao invés, narrativa se fizesse em mim, sem plano vers et L’Endroit que o devo: estes tenho o sentimento de regressar às fon- preconcebido, sem busca de efeitos, textos magníficos de um Camus solar tes da literatura deixando-me penetrar em suma, como sob hipnose. Agora haviam estruturado a minha perce- pelas minhas impressões de viagem na que releio esse texto, com o “olhar ini- ção do Magrebe antes mesmo de ter Argélia. Mas há dois usos distintos, migo” que Mallarmé preconizava, não desembarcado pela primeira vez em e talvez incompatíveis, da literatura posso deixar de nele encontrar o rasto Tânger, há já cerca de 30 anos. Pa- e da arte em geral. Há a literatura de antigas leituras que continuam a rodiando a linguagem de Kant, posso vivida, seja ela por nós escrita ou obcecar-me, e mais precisamente a considerar que as imagens de Camus lida, e a literatura analisada de que novela que abre a coletânea L’Exil et constituíram as “formas a priori” da fazemos, enquanto críticos e profes- le Royaume, último livro publicado minha sensibilidade norte-africana… sores, o argumento de um discurso. por Camus. Uma questão em particu- Num plano mais prático, não irei É verdade que neste preciso momen- lar colocada nesta narrativa, escrita ao ponto de dizer que foi o espírito de to, gostaria de apenas vos comunicar, em estilo indireto livre, parece as- Camus que me conduziu a trabalhar na sob um modo “histérico” (direi antes sombrar as minhas próprias páginas: Agência Universitária da Francofonia. “afetivo” para vos tranquilizar) a mi- Janine, la femme adultère, ao chegar É no entanto como diretora do Bureau nha experiência pessoal dos livros de ao limiar do deserto, interroga-se da Maghreb da AUF que me desloco mui- Camus mas, devendo conformar-me seguinte forma: “Qu’y avait-il donc à to regularmente, uma vez por mês, à mais ou menos ao código semiótico de voir ici? Elle ne pouvait détacher ses Argélia, e que me é dado visitar Orão, uma conferencista, sinto-me obrigada a regards de l’horizon. Là-bas, plus au a cidade de La Peste, Constantina, lu- racionalizar um pouco o modesto teste- sud encore, à cet endroit où le ciel et gar onde nasceu, Argel, claro, a cidade munho subjetivo que vos quero deixar… la terre se rejoignaient dans une ligne de L’Étranger, Tipaza e tantos luga- Far-vos-ei, no entanto, ainda pure, là-bas, lui semblait-il soudain, res onde a sua memória não morreu. uma última confidência para que quelque chose l’attendait qu’elle avait ignoré jusqu’à ce jour et qui pourtant como o teatro, Caligula, Le Malenten de lucidez não consegue vencer, evi- n’avait cessé de lui manquer” (Camus, du, l’Etat de Siège e Les Justes apre- dentemente ligado ao sentimento de 1992 : 27). Acontece que as minhas sentavam, no plano pedagógico, um uma falta menos moral do que onto- personagens (marroquinas e portugue- diferente grau de interesse, embora lógica, e cito: sas) são elas também mulheres empur- figurassem sempre, a par das suas nar- radas pelo desejo de uma completude rativas, como leituras complementares “L’angoisse en Afrique quand le que a vida lhes recusara até então. a que vivamente encorajava os meus soir rapide descend sur la mer Não irei mais longe no segredo da alunos (falo de uma época antedilu- ou sur les hauts plateaux ou sur minha tentativa de criação, segredo viana !), persuadida de que Camus não les montagnes tourmentées. C’est que vos confesso mais a título de caso se explica senão por Camus. l’angoisse du sacré, l’effroi devant telepático ou de exemplo individual Em 1994, teve lugar um acon- l’éternité. La même qui, à Delphes, daquilo que Jauss teorizou sob o nome tecimento que me obrigou, e muitos où le soir, produisant le même ef pomposo de “estética da receção”. outros comigo, a matizar a imagem do fet, a fait surgir des temples. Mais E o nome de Jauss permite-me regres- escritor. O aparecimento de Le Pre sur la terre d’Afrique les temples sar a um registo mais universitário. mier Homme. Sabeis sem dúvida que sont détruits, et il ne reste que Catherine Camus hesitou longamente ce poids immense sur le cœur” (Camus, 1994 : 318). Não apenas Camus foi, desde a antes de se resolver a publicar o ma- minha adolescência, uma espécie nuscrito descoberto no automóvel em de maître à sentir – e sem dúvida que o seu pai encontrou a morte a 4 também maître à penser (sinto-me de janeiro de 1960. Ao compor Le Premier Homme, Camus quis escrever novas Confessions, muito menos próxima de André Mal- Mais do que qualquer outra, esta não as de um pagão convertido mas raux e de Jules Supervielle a quem obra inacabada, este romance auto- as de um apostato (como o Renegado consagrei as minhas duas teses de biográfico, que muito se assemelha a de L’Exil et du Royaume). Faço aqui doutoramento), como também a ele uma auto-análise, vem pôr a nu as alusão ao livro de Santo Agostinho, dediquei muitas das minhas aulas. raízes do mal, não direi do comple- bispo berbere de Hippone, hoje An- Títulos como L’Etranger, La Peste, xo, camusiano. Ora esse mal não é naba, cidade situada em território L’Exil et le Royaume preencheram os senão a relação ambígua, filial mas argelino, a alguns quilómetros da meus sumários e, ano após ano, com sem dúvida incestuosa, em todo o Tunísia e a quem Camus, estudan- a ajuda dos meus estudantes, aprendi caso apaixonada com África. É num te de filosofia, havia dedicado a sua a lê-los melhor. Os tratados Le Mythe outro sentido da expressão, o mal du dissertação de mestrado. Em todo o de Sisyphe ou L’Homme Révolté, assim pays, uma melancolia que a vontade caso, quis “ raconter l’histoire d’un 123 monstre ” (Camus, 1994: 300), mons- nossos compatriotas regressados de francês. Por isso, a prudência incita- tro no sentido de criatura dupla ou Angola, da Guiné, de Moçambique : nos a desconfiar das pseudo-analogias compósita, que não encontra (o seu) “africanistas”, não que sejam especia- e a praticar em história um nomina- lugar no meio dos homens. listas de línguas e culturas africanas lismo rigoroso. Há tantos pós-colonia- Acabo de evocar Santo Agostinho. mas porque tiveram e têm ainda “in- lismos quantas as antigas colónias. Poderia, na outra extremidade ociden- teresses” em África, interesses que E sem dúvida em termos puramente tal do pequeno Magrebe (o grande se tornaram apenas afetivos, depois psicológicos, tantas colónias quantas inclui a Líbia e a Mauritânia), fazer de terem sido materiais até à perda cabeças de colonos, tal como para Mia uma aproximação, em nada fantasis- destes territórios. Mas quantos destes Couto “todo o homem é uma raça”. ta, com o Humphrey Bogart do filme “africanistas” se diriam “africanos”? Le Premier Homme é uma reflexão, Casablanca, que, na sua indiferença Acontece-me, de tempos a tempos, em forma romanceada, sobre o conflito primeira, não deixa de se asseme- ouvir o programa Começar de novo, interior de um pied noir tanto quanto lhar psicologicamente ao Meursault editado pela Antena 1, onde “refugia- sobre a guerra da Argélia para a qual de L’Etranger e, naturalmente, num do” rememoram a sua juventude em o General de Gaulle procura encontrar plano absolutamente físico, ao próprio África e o drama do regresso à me- uma solução política no momento em escritor… trópole. Para eles, África permanece que Camus redigia o seu texto. Não é um tema doloroso. Não creio que uma pois surpreendente que encontremos Mas é tempo de formular, já quase tal emissão fosse possível em França, neste livro e sobretudo no seu prefá- só em jeito de conclusão, o problema pelo menos no que toca à comunidade cio ecos da obra jornalística reunidos da africanidade de Albert Camus. pied-noir. É ainda um tema quase tabu em Actuelles. Não estamos já a lidar Nós portugueses estamos em me- cuja complexidade nos faz medir a com o Camus humanista coroado pelo lhor situação para entender o proble- diferença entre as nossas perceções, Prémio Nobel, mas sim com um homem ma do que muitos outros ocidentais, do lado francês e do lado português, dilacerado em busca da sua humani- mas talvez também em melhor posição de uma problemática em aparência dade. Daí decorre que a questão da para nos enganarmos. Tivemos, como idêntica. identidade africana domine sem nunca os franceses, os nossos retornados, e Que avaliação teria Camus feito ao contudo ser diretamente enunciada. hoje ainda, depois de quase quatro celebrar este aniversário? Afirmar-se-ia Cabe-nos a nós torná-la explícita, e décadas, é fácil adivinhar, nem sei “africano” como o fez em janeiro de há apenas três ordens – ou níveis – de por que sinais, quem de entre nós é 1949? Teria, em 1962, optado pela razões a distinguir. Contentar-me-ei, originário das nossas antigas colónias. nacionalidade argelina? Um Mia Cou- pois que devo concluir, em apontá-las Existe mesmo uma palavra para os to é quase inconcebível no contexto sem as desenvolver. Primeiro nível: bastará ter nascido Argelinos de gema têm dificuldade em ce ciel gorgé de chaleur. Ce n’est pas em África e nela ter passado a sua se designar como africanos (e talvez si facile de devenir ce qu’on est, de juventude para nos podermos dizer que o preconceito racial não seja es- retrouver sa mesure profonde. Mais à “africanos” como fazia Camus? Jac- tranho a este sentimento). regarder l’échine du Chenoua [mas- ques Cormery, o herói de Le Premier Num segundo nível de sentido, Ca- sif surplombant Tipasa], mon cœur Homme, nasceu numa noite de outo- mus seria africano como esses pintores se calmait d’une étrange certitude. no de 1913, em Mondovi, distrito de que, na esteira de Delacroix, dese- J’apprenais à respirer, je m’intégrais Bône, é francês pelo pai originário nharam paisagens e populações da et je m’accomplissais”. da Bretanha e de ascendência ibérica África do Norte. Quem terá dúvidas Esta relação erótica (que já o tí- pela mãe. Mas se cada um de nós é de que Camus não seja inseparável tulo Noces sugere) com o meio, e lar- antes de mais filho da sua infância, da terra que lhe inspirou os acentos gamente antecipada por André Gide Cormery-Camus é argelino por todas mais líricos da literatura francesa do (também ele fascinado pela Argélia na as suas impressões de juventude. seu tempo? Mas, na sua paixão pela sua busca desesperada e frenética do Argelino de Argel mais do que da felicidade, não será Camus mais me- deserto), nada tem de especificamente Argélia, pois que nenhum pied-noir diterrânico do que africano? Se tivesse africano. ou “Francês da Argélia” teria ima- passado a sua juventude nas costas ginado, mesmo enraizado desde há do Algarve (como Manuel Teixeira três gerações, dizer-se Africano, Gomes), as condições de formação Mas, ao dar este último passo, exceto Camus cuja narrativa retraça da sua sensibilidade estética teriam entramos no domínio de todas as as memórias de um pequeno colono provavelmente sido as mesmas (com “amálgamas” e de todas as confu- proletário do bairro Belcourt de Argel. a diferença de alguns graus de tem- sões. Quantos avatares, com efeito, Nem pela língua, nem pela religião, peratura de água…) e teria também não conheceu a noção de africanida- nem pela etnia (digamos a “raça”), o podido escrever linhas como estas de desde a publicação (em 1933) de jovem Camus se aparenta aos rapazes extraídas de Noces: “Que d’heures l’Histoire de la Civilisation Africaine argelinos com os quais, aliás, quase passées à écraser les absinthes, à de Léo Frobenius ! E o conceito de não tem relações. Como em L’Etranger caresser les ruines, à tenter d’accorder negritude veio agravar definitivamen- e La Peste, os autóctones são mais fi- ma respiration aux soupirs tumultueux te o equívoco, pois que o poeta da gurantes do que atores. Esta distância du monde ! Enfoncé parmi les odeurs Martinica Aimé Césaire, amigo de perante eles dá razão, em certa medi- sauvages et les concerts d’insectes Senghor e nascido como Camus em da, ao doutorando a que há pouco me somnolents, j’ouvre les yeux et mon 1913 (mas, contrariamente a Camus, referia. Mas, como já disse, mesmo os cœur à la grandeur insoutenable de falecido quase centenário) recusava-se E forçoso é que avance para um terceiro nível. 125 a reduzi-lo à cor da pele. Não estava perigoso, incorreto antropologicamen- Camus, face à insuportável arrogância te tanto quanto politicamente. dos intelectuais parisienses (de Sartre e de Francis Jeanson em particular), Perdoar-me-eis que não pronun- disposto já a aparentar-se a todos os cie mais nenhuma palavra, senão para “negros”, todas as cores confundidas, agradecer a vossa amável atenção. do planeta? Mas na época em que se declarava africano, Camus não tinha ainda razão para se queixar dos in- Bibliografia sultos dos seus antigos camarades de “Combat”… GRENIER, J. (1981). Correspondance Albert Camus. Paris: Gallimard. Tendo esgotado o meu tempo de palavra, não posso senão levantar ligeiramente o véu sobre a explicação dada pelo próprio Camus na carta a Jean Grenier. Explicação que exigiria infinitos comentários. Eis a passagem: “J’ai essayé (et j’y ai eu bien du mérite, étant africain) d’ être un homme de morale. Il le fallait sans doute. Mais finalement, cela détruit beaucoup de choses, en soi et autour de soi (Camus, 1981: 152)”. É assim ao “negro” de Arthur Rimbaud e, mais atrás ainda, ao mito do bom selvagem de Jean-Jacques, que seria necessário regressar para dar conta da africanidade de Albert Camus. Voltar a uma natureza livre, não submetida ainda à lei moral. Regresso CAMUS, A. (1992). L’Exil et le Royaume. Folio : Gallimard. CAMUS, A. (1994). Le Premier Homme Paris : France Loisir. Mário Mesquita Professor da Escola Superior de Comunicação Social, de Lisboa ([email protected]). Albert Camus ou a experiência do jornalismo crítico Resumo Abstract Mário Mesquita fala-nos neste texto de Mário Mesquita speaks of a utopian jour- um jornalismo utópico: um jornalismo nalism: a critical journalism, free of the crítico, liberto dos interesses da política interests of politics and money, inserted e do dinheiro, inserido no campo da cul- in the field of culture, able to undermine tura, capaz de se pôr em causa e profun- itself and deeply committed to democracy. damente empenhado com a democracia. A Journalism that Albert Camus took with Um jornalismo que Albert Camus assumiu no illusions, but turned out to consider sem ilusões, mas que acabou por consi- one of the most beautiful professions in derar uma das mais belas profissões do the world. Writer, even before journalist, mundo. Escritor, antes mesmo de ser o who did not reject to start the basic tasks jornalista que não enjeitou iniciar-se pelas of an intern in the newsroom of the Com- tarefas básicas de estagiário na redação bat, and intellectual: Camus was never a do Combat, e inteletual: Camus nunca man of conformism in literature, neither foi um homem de conformismos nem na in thought nor in journalism, fact that literatura, nem no pensamento, nem no jor- explains its isolation in the French intel- nalismo, facto que lhe valeu o isolamento lectuality. Well beyond the opinion maker na intelectualidade francesa. Muito para of our days, he was the intellectual with além do opinionmaker dos nossos dias, the moral courage of free and different ele foi o intelectual com a coragem moral opinion. Mario Mesquita’s words concer- da opinião diferente e livre. Palavras de ning the centenary of the birth of Albert Mário Mesquita a propósito do centenário Camus in the 20 years of the Degree in do nascimento de Albert Camus e dos 20 Journalism in the University of Coimbra. anos da Licenciatura em Jornalismo da Universidade de Coimbra. Palavras-Chave: Camus, jornalismo Keywords: Camus, critical journalism, crítico, Combat, intelectual. Combat, intelectual. 127 Albert Camus não escolheu o jor- estilo de escrita (literária e jornalís- povo com três séculos de atraso, no nalismo por vocação. À semelhança de tica)” (Lahire, 2006: 275), sobretudo seu próprio dizer – ficaram célebres tantos outros, foram as necessidades quando está em causa a linguagem e integram hoje as obras completas de subsistência a determinar que, da informação condicionada, desde o da Pléiade. Não foi apenas colunista além de escritor, pensador e drama- telégrafo ao digital, pelas tecnologias ou colaborador da imprensa, como turgo, fosse também jornalista. Por que a moldam e pelos diversos públi- tantos outros escritores célebres do motivos relacionados com mercados cos que visa atingir. seu tempo, de Sartre a Mauriac. Tri- de leitura, que variam de país para Aos 25 anos, Albert Camus aceitou lhou o percurso habitual de qualquer país, os escritores acumulam, por via o convite do seu amigo Pascal Pia para aprendiz da profissão pelo caminho do de regra, pelo menos durante algum redator do Alger Républicain, jornal de fait divers que substitui nas grandes tempo, duas ou mais profissões. esquerda, próximo da Frente Popular. cidades o rumor das aldeias. Não está em causa apenas a ques- Não nutria ilusões sobre a profissão, Durante alguns anos da sua vida, tão do “segundo ofício”, conforme ex- que considerava um “ofício dececio- em Argel (1937- 40) e em Paris (1944- plica o sociólogo Bernard Lahire, mas nante”, embora capaz de proporcionar 47), retirou da imprensa o seu prin- o problema “mais complexo” da “dupla “uma sensação de liberdade” (Todd, cipal meio de subsistência. Não usou vida” dos escritores (Lahire, 2006: 1996: 243). Mas quem o convidou para apenas os jornais como um lugar de 19), na medida em que essa outra ati- o diário entendia que Camus possuía expressão de intelectual público, em- vidade profissional lhes condiciona o a capacidade, o estilo e o “sentido de penhado nas grandes causas públi- quotidiano e lhe proporciona novas encenação do bom repórter”. cas do seu tempo, desde a questão experiências e constrangimentos. Desta forma, Camus começou a argelina, à crítica dos diversos tota- Entre os segundos ofícios mais fre- sua aprendizagem – já com dois livros litarismos. Aderiu por inteiro a essa quentes encontram-se funções como publicados – pelas tarefas básicas do profissão que, de início, não o atraía. as ligadas ao ensino, ao jornalismo ou estagiário: os crimes, os acidentes, os Porque vivemos num tempo em que o à edição, mas, por exemplo, no nosso necrológios e os processos judiciais, jornalismo nas suas diferentes formas, país – onde escasseiam as condições todo esse mundo de ocorrências trans- parece afastar-se cada vez mais do de subsistência material – escritores, formadas em notícias que, sendo con- modelo exigente proposto e praticado médicos, advogados ou publicitários, sideradas tarefas menos nobres, ligam por Camus, faz todo o sentido evocar também se dedicaram à criação literá- o jornal ao quotidiano das cidades a sua intervenção jornalística. ria. No caso do jornalismo colocam-se, (Robert Park, Michael Schudson). As O seu excecional biógrafo Olivier por vezes, as questões relacionadas suas reportagens sobre a pobreza e o Todd conta que, no imediato pós- com a gestão de possíveis “conflitos de sofrimento da população árabe – um Guerra, já consagrado como escritor Propor o “jornalismo crítico” de Albert Camus como modelo para os nossos dias é seguramente utópico – com a publicação de O Estrangeiro O jornal perdeu o brilho e a inspiração – Camus entra, de novo a convite de iniciais, mas com novas direções e Pascal Pia, na redação de Combat, menor sucesso Combat permaneceu diário fundado por um grupo da re- na paisagem jornalística francesa até sistência à ocupação alemã, ainda na 1974. Bem tinha avisado Pascal Pia, clandestinidade. Aceita o novo desafio logo no início da experiência: “Va- – nas palavras de Todd – “não só para mos tentar fazer um jornal razoável, desenvolver ideias, mas também por- mas, como o mundo é absurdo, ele que gosta desse meio” onde reencontra vai falhar”. “o trabalho de equipa e o jornalismo, Apesar disso, o jornal foi, nos pri- droga doce e dura” (Todd, 1996: 494). meiros três anos, um êxito, com uma O romancista cultiva as relações, não tiragem média diária de 122 mil exem- só com os colegas redactores e repór- plares em 1947, quando o “popular” teres, mas também com os revisores France-Soir atingia 578 mil exempla- e os tipógrafos, ainda ao tempo da res e o Le Monde 174 mil (Bellanger composição a chumbo, “espécie de et al. 1958, 357). Todd lembra que aristocracia operária, corporativista, Camus já “era conhecido como es- consciente das suas qualidades e dos critor”, mas “com os seus artigos do seus privilégios” (Todd, 1996: 495). Combat transforma-se num jornalista Era um jornal pluralista, difícil de célebre. Enquanto romancista atingia caracterizar pela diversidade dos seus alguns milhares de leitores. Como edi- colaboradores, na sua maior parte de torialista influencia várias centenas esquerda não-comunista, mas que se de milhares de franceses”. iriam dividir, antes do final dos anos Entre 1944 e 1947, Camus acu- 40, com alguns deles, entre os quais mula três profissões: escritor, jorna- o diretor, Pascal Pia, a aproximarem- lista e membro do comité de leitura se do General De Gaulle e outros, à da Gallimard. O interesse do seu re- semelhança de Camus, à procura do gresso às redações não resulta apenas oximoro do socialismo em liberdade. dessa notoriedade suplementar, que Por diferentes motivos, Albert Camus bem poderia ter dispensado, mas do e Pascal Pia afastaram-se do projeto. projeto de criar um novo jornalismo 129 saído do “espírito da Resistência”, em que o público quer”. Mas para o autor porque o democrata define-se, entre nítida rotura com a imprensa da IIIª de L’Étranger não era isso o que o outros predicados, por admitir “que República que considerava enfeudada público queria, mas sim aquilo que lhe um adversário pode ter razão” e, por- aos interesses da política e do dinhei- ensinavam a querer. E argumentava: tanto, o “deixa exprimir-se e aceita ro. No primeiro editorial do Combat, “se vinte jornais, todos os dias do ano, refletir acerca dos seus argumentos”. enquanto órgão legal, escreve: “O criam à sua volta o mesmo ambiente Essa modéstia praticava-se dentro do nosso desejo, tanto mais profundo de mediocridade e de artifício, ele próprio jornal, através da diversida- quanto por vezes era mudo, consistia (público) respirará nesse ambiente de dos colaboradores, mas até nos em libertar os jornais do dinheiro e de e terá dificuldade em dispensá-lo” textos do próprio Camus que enun- lhes dar um tom e uma verdade que (Lévi-Valensi (org.), 2002: 165). ciava na primeira pessoa do plural coloquem o público à altura daquilo Dirigido por Pascal Pia e Albert as atitudes comuns a toda a equipa que nele há de melhor” (Lévi-Valensi Camus, o diário Combat deixará uma do jornal e na primeira pessoa do (org.), 2002: 160). marca forte na história da imprensa singular os artigos que refletiam a O mesmo Camus que, nos anos francesa que se deve à prática daquilo sua própria visão. 30, menosprezava o jornalismo, vai a que Camus chamava o “jornalismo Vários dos seus editoriais de designá-lo, passada mais de uma crítico”. Tal prática distinguia-se do Combat ficaram célebres, desde o década, como “uma das mais belas jornalismo partidário ou comercial. seu editorial angustiado aquando profissões que conhece”1. Porquê? A esse tipo de jornalismo exigia-se da bomba atómica de Hiroshima, as O melhor é reter a opinião do próprio uma relação ao leitor. Explica Camus: discordâncias sobre os muito incertos escritor: “o jornalismo exige que os “Em face das forças desordenadas da rumos da depuração política france- jornalistas se ponham em questão a história, que têm nas informações o sa, a oposição à tolerância das demo- si próprios” (Malye, 2013 : 70). Mas, seu eco, pode ser positivo anotar, dia cracias vencedoras da Guerra com a à luz desta exigência, a forma como a dia, a reflexão de um espírito ou ditadura de Espanha franquista, em a imprensa se reconfigurava após a as observações comuns a diversos nome da realpolitik da Guerra Fria, o libertação de Paris constituía para espíritos. Mas isso não pode ser feito silêncio de certos intelectuais perante Camus uma desilusão. A cedência sem escrúpulos, sem distância e sem as atrocidades da URSS, justificado às exigências comerciais era sempre uma certa ideia do relativo (…)” (Lévi em nome das injustiças do capitalismo justificada da mesma forma: “É isto o ‑Valensi (org.), 2002: 181). ou a análise da vida de Roosevelt na 1 Em entrevista à revista Caliban, em 1951 (apud Malye, 2013 : 70). Esta ideia está intimamente li- perspetiva da luta contra a doença, gada à relação que Camus estabe- experiência similar à do próprio Ca- lece entre “Democracia e Modéstia” mus (com a tuberculose). Em 1947, quando abandona a re- seu meio, nem possuía um ambiente exerce às cegas, nas ruas de Argel dação de Combat, Albert Camus já jornalístico semelhante ao de Combat. por exemplo, e que um dia pode atin- deixou demarcado o território que A crença numa possível conciliação gir a minha mãe ou a minha família. conduziria, aquando da publicação entre franceses e árabes da Argélia Acredito na justiça, mas defenderei a do ensaio L´Homme Revolté, à rotura parecia tardia e utópica. No final dos minha mãe antes da justiça”. Isolada com Sartre e o grupo da revista Les anos 50, acabaria por lhe concitar, em do contexto, a última frase permitiu Temps Modernes. Reformista, demo- simultâneo, o ódio dos colonialistas da toda a espécie de especulações filo- crata da esquerda moderada, desi- Organisation Armée Secrète 3 (OAS) e sóficas ou pseudo-filosóficas (Froloff, ludido com os socialistas da SFIO , da esquerda radical apoiante da FNL 2009: 613). enredados nas malhas do colonialismo e dos métodos de terrorismo a que o Propor o “jornalismo crítico” de argelino, Camus ficaria, ao longo da movimento nacionalista recorreu. Os Albert Camus como modelo para os década de 50, mais e mais isolado na louros do Prémio Nobel que lhe foi nossos dias é seguramente utópico. intelectualidade francesa. Ostracizado outorgado em 1957, longe de contri- Basta olhar à volta da nossa paisagem pelas tendências marxistas, enquanto, buírem para a sua tranquilidade em mediática – e não só a portuguesa… à direita, Raymond Aron e outros o França ou na Argélia, vieram inten- – para se verificar que será muito di- tratavam com quase humilhante con- sificar as polémicas à sua volta. Os fícil que nele desempenhe papel de descendência. mecanismos da “espiral do silêncio” relevo um intelectual que preza um criaram um certo vazio à volta. certo relativismo, acredita nas virtu- 2 Volta à imprensa, nas páginas do 4 magazine L’Express (1955-56), para Numa conferência de imprensa des da dúvida, defende a autonomia defender, ao lado de François Mau- em Estocolmo, Camus dirá: “Sempre dos jornalistas e outros atores do de- riac, uma solução moderada, quiçá condenei o terror. Tenho de conde- bate público (Guerin, 2009; 420). Ao utópica, para a Argélia, que poderia nar igualmente um terrorismo que se tempo de Camus, como escreve Milan ter sido executada pela figura excecional de Pierre Mendès-France. Mas a revista de Servan-Schreiber e Françoise Giroud, moldada pelo modelo norte-americano da Time, não era o 2 Section Française de l’Internationale Ouvrière, liderada por Guy Mollet. Transformou-se, na década de 70, no atual Partido Socialista. Kundera, “o jornalismo não era ain- 3 A Organisation Armée Secrète, também conhecida pela sigla OAS, foi criada em Madrid em 11 de fevereiro de 1961 e defendia a manutenção da presença francesa na Argélia, a todo o custo e recorrendo a todos os meios necessários, inclusivamente o terrorismo. da classificado, fora da cultura, nessa categoria a que se chama hoje ‘os media’” (Kundera, 2003: 104-105). A intervenção pública de Albert Camus situava-se nos antípodas do ul- 4 Do livro de Noel-Neumann, La Espiral del Silencio. Veja-se, em especial o capítulo “Vanguardistas, hereges y disconformes: los desafiantes de la opinión pública” (NoelleNeumann, 1995: 183-187). trapassado conceito de opinionmaker ou dos conselheiros e especialistas integrados em think tanks, ao serviço 131 de governos, partidos ou grupos de FROLOFF, N. (2009). “Nobel, Prix”. In: pressão. Para terminar esta palestra Guérin, J. (org.), Dictionnaire Albert em homenagem a um escritor e jorna- Camus. Paris: Robert Lafont. lista franco-argelino, afiguram-se ade- GUÉRIN, J. (2009). “Intellectuel”. In: quadas estas palavras de Tony Judt: Guérin, J. (org.), Dictionnaire “a coragem moral necessária para ter Albert Camus. Paris: Robert Lafont, uma opinião diferente e impô-la a lei- p. 420 tores irritados ou ouvintes insensíveis KUNDERA, M. (2003). “Le greffier de continua em todo o lado a ser pouca” l’ephémère”. In: Daniel, J., Obser (Judt, 2010: 155). vateur du Siècle. Paris: BNF/Saint- ‑Simon. JUDT, T. (2010). Um Tratado Sobre os Nossos Bibliografia: Actuais Descontentamentos. Lisboa: Edições 70. LAHIRE, B. (2006). La Condition Lit téraire – la double vie des écrivains. Paris : Éditions de la Découverte TODD, O. (1996). Camus, Une Vie. Paris: Gallimard. BELLANGER, C. (et al.), (1975). Histoi re Générale de la Presse Françai se, Tome I: de 1940 à 1958. Paris: Presses Universitaires de France. LÉVI-VALENSI, J. (org.) (2002). Cahiers Albert Camus: Camus à Combat. Paris: Gallimard. MALYE, F. (2013). Le Point (hors-série, numéro 15), oct.-nov. NOELLE-NEUMANN, E. (1995). La Espiral del Silencio. Barcelona: Paidós, Comunicación. Recensões 133 João Miranda Investigador do CEIS20. (joaosantosmiranda@gmail. com) Recensão Crítica GOMES, Pedro Marques (2014). Saneamentos Políticos no Diário de Notícias: Verão Quente de 75. Lisboa: Alêtheia Editores, Coleção Media e Jornalismo. (322 pp.) O fim da censura prévia e o intenso Rui Cádima (2001), numa perspetiva Saramago no curso de acontecimen- confronto político-partidário decor- mais ampla do decurso, e, num âm- tos e a ascendência do caso na vida rentes do movimento político e mili- bito mais focalizado, nos estudos de política do país. tar de 25 de abril e do subsequente Pereira Caldas (1999), sobre a Rádio Nesta análise, o autor recorre a processo revolucionário influenciaram Renascença; Mário Mesquita (1994), três fontes primárias essenciais: ar- determinantemente uma completa e acerca do ‘Caso República’; João Fi- tigos e recortes de imprensa, docu- progressiva restruturação do panora- gueira (2007), no papel do ‘Diário de mentos de arquivo e publicações ofi- ma mediático português (Mesquita, Notícias’, ‘Expresso’ e ‘Jornal Novo’; ciais, e um conjunto de 22 entrevistas. 1994). A par de um movimento de e Helena Lima (2012), na sua análi- Esta intersecção de fontes verifica-se ocupação do controlo da imprensa se à imprensa portuense – todos eles essencial, no sentido em que os de- pelos jornalistas e outros trabalha- referenciados pelo autor (pp. 24-25). poimentos recolhidos – obviamente dores, enquanto instrumento de lutas É neste sentido que aponta o presen- centralizados nas figuras dos jorna- de classes (Hallini e Mancini, 2010), te estudo de Pedro Marques Gomes, listas (do grupo de entrevistados, 20 este decurso é pautado pela importa- o de traçar um retrato focalizado do são jornalistas intervenientes no caso ção das tensões políticas vividas nos processo de saneamento de 22 jorna- e seis pertencem ao grupo de subscri- vários espectros da vida social do país listas do ‘Diário de Notícias’ em agosto tores do “Documento dos 30”) – ma- para dentro das redações e estrutu- de 1975, mas, mais do que isto, des- nifestam a caraterística interessante ras empresariais dos media (Cádima, crever o percurso do jornal durante o de, volvidos 40 anos, reproduzirem 2001), uma metamorfose da natureza período que liga o dia 25 de abril ao as tensões e conflitos intrínsecos à narrativa da imprensa, no sentido de momento exatamente posterior ao 25 época. De resto, como refere Pedro um conteúdo marcadamente ideoló- de novembro. Marques Gomes, “há, todavia, muitas gico e uma predominância do cará- Resultado da sua dissertação de incógnitas por esclarecer quanto às ter dramatizado do discurso (Sousa, mestrado, em ‘Saneamentos Políticos acusações e críticas lançadas pelos 2003), e a proliferação de processos no Diário de Notícias’, Pedro Mar- diversos trabalhadores, em grande de saneamento da mais diversa ordem ques Gomes procura ainda encontrar medida devido aos testemunhos con- (Pinto, 2006). respostas para as diferentes teses e traditórios sobre muitos dos episódios então vividos” (p. 84). Na verdade, este processo – não indagações contraditórias sobre os obstante uma certa carência biblio- motivos que originam os saneamen- Estruturados num modelo explicita- gráfica sobre a temática – é profun- tos, a influência do PCP em todo o mente diacrónico, os três capítulos fun- damente retratado nas análises de encadeamento e na linha editorial do damentais a que o autor dedica a sua Mário Mesquita (1994) e Francisco ‘Diário de Notícias’, o papel de José análise central percorrem a cronologia 135 dos factos do processo através de nu- problemáticas próprias da investiga- por parte da direção (p. 90). A figura merosos subcapítulos, que discernem ção da narrativa e conteúdo noticioso. central das crítica assume-se José o tempo, as personagens e o espaço da O cerne da obra, a análise do au- Saramago, o qual é apontado pelos ação. Conquanto o tronco central da tor, encontra-se divido em três momen- diferentes intervenientes como o ver- narrativa se estabeleça nos aconteci- tos chave: todo o trajeto relacionado dadeiro diretor do jornal. Este docu- mentos diretamente conectados com os com a preparação e dinamização do mento encontrará eco no Sindicato dos processos de saneamento e as rotinas “Documento dos 30”; o contexto do sa- Jornalistas, cuja recém-eleita direção do ‘Diário de Notícias’, denota-se uma neamento dos 22 jornalistas, natureza era preenchida por elementos do PS preocupação relevante de pautar amiu- do inquérito, respetivas consequências e MRPP, e servirá de mote para um dadamente a descrição, com elementos e influência do caso no panorama po- prolongado conflito entre comunistas, mais gerais sobre o contexto mediático lítico português; e o corolário do 25 e socialistas e sociais-democratas, na do “Verão Quente”, onde se destaca a de novembro, nova direção do ‘Diário Assembleia Constituinte. atenção conferida aos projetos falhados de Notícias’, inversão dos papéis no Nos plenários de redação e de da “Comissão Ad-Hoc”, “Projeto Jesuí- processo de saneamento e fundação trabalhadores, pormenorizadamente no” e “Lei da Censura Militar” e aos do diário ‘Dia’. retratados na obra, o clima de agi- diferentes processos intrínsecos à or- Resultado de um decurso intenso tação é agudizado pela dinamização ganização, discussão e dinamização da de confrontos políticos, tensões cres- da carta, constando a principal acu- atividade do Sindicato dos Jornalistas. centes e cisões no plano civil e militar, sação aos contestatários no facto de Assim, Pedro Marques Gomes co- intensificados pelo desfecho do 11 de esta ter sido tornado pública antes de meça por estabelecer uma contextua- março de 1975, Pedro Marques Go- ser discutida internamente, violando lização do panorama da comunicação mes encontra no ‘Diário de Notícias’, assim o estatuto editorial. Na verdade social no pós-25 de abril, que, mais do então já sob a direção Luís de Barros/ será este um dos motivos, a que se que nos fornecer uma simples intro- José Saramago, uma redação marca- somarão pressões e falta de consen- dução à obra, se reverte num profícuo damente afeta ao PCP – assim como a so, que conduzirá à desvinculação de e aprofundado Estado da Arte, que restante estrutura empresarial –, onde alguns jornalistas inicialmente afetos compreende diferentes vetores dos es- as tensões aumentam gradualmente. É ao documento. tudos mediáticos – como as questões neste contexto, que trinta jornalistas Ainda que o autor dedique uma socioeconómicas, expressões do direi- redigem e apresentam um documento, especial atenção a todo o inquérito to e âmbito político, aspetos inerentes onde contestam a orientação do jor- que conduzirá ao saneamento dos 22 à ética e deontologia ou, até mesmo, nal, evidenciando situações de “sec- jornalistas (a que se juntarão outros tarismo”, “descrédito” e “desprezo” dois), verifica-se, nesta passagem, uma indispensável abertura da análise a serão elementos centrais na fundação Passadas quatro décadas sobre o um campo mais geral do âmbito social de um novo diário, o ‘Dia’, sobre o qual acontecimento, o contexto mediático dos acontecimentos, onde inscrevem a obra confere alguns elementos inte- português conhece uma realidade as manifestações civis de repúdio à di- ressantes, como o estatuto editorial e a completamente díspar da que nos é reção do jornal, processos de conflito composição de colaboradores. Parale- apresentada em ‘Saneamentos Políticos em outros meios de comunicação e as lamente, o autor desvenda a posição do no Diário de Notícias’. A estruturação diferentes posições assumidas pelos PCP sobre todo o processo, eliminando da narrativa, a profusão dos depoi- partidos políticos, condição essenci- assim a possibilidade de confirmar a mentos apresentados e a reprodução al para a compreensão das disputas tese da influência do partido na de- de comunicados, recortes de imprensa internas do ‘Diário de Notícias’ como cisão de saneamento dos jornalistas. e boletins oferecem uma notável leitura elemento de um âmbito mais vasto do Conquanto se verifique a impos- complementar do contexto mediático confronto político-partidário. sibilidade de encontrar conclusões do período revolucionário. Ao mesmo Comparativamente mais sumaria- assertivas para muitas das contradi- tempo, apresenta-se como uma análise do, o último capítulo da análise, pela ções e questões de partida – como a indispensável para a compreensão da profusão de factos e cursos, seria me- influência direta do PCP na linha edito- história da comunicação social portu- recedor de um maior aprofundamento. rial do jornal ou o motivo que, de facto, guesa e para a perceção da conjuntura Não obstante, encontram-se inclusos conduz ao saneamento –, os múltiplos atual do media. todos os elementos necessários para o documentos e depoimentos recolhidos entendimento da conjuntura mediática permitem asseverar um grupo de conclu- advinda do 25 de novembro e para sões importantes para uma compreen- a compreensão do desfecho do caso. são desenvolvida do processo: a origem Referências Bibliográficas: Após um curto período de cessação dos saneamentos reside oficialmente no CÁDIMA, F. R. (2001), “Os Media na de publicação, em dezembro de 75 facto de não terem submetido previa- Revolução (1974-1976)”. In: BRI- o ‘Diário de Notícias’ conhece uma mente o documento à discussão interna; TO, J.M. Brandão (2001), O País nova direção, encabeçada por Vic- a desarticulação e desacordo entre os em Revolução. Lisboa: Editorial tor Cunha Rego e Mário Mesquita, subscritores do documento; o papel cen- Notícias, pp. 321-358. a que se acresce a suspensão de 14 tral de Saramago em todo o processo, HALLIN, D. C., e MANCINI, P.(2010). trabalhadores, entre os quais Luís de a tentativa de controlo, mais ou menos Sistemas de Media: Estudo Com Barros e José Saramago. Ao mesmo direto, do jornal pelas diferentes forças parativo. Três modelos de comu tempo, os jornalistas envolvidos no políticas; e as repercussões que o caso nicação e política. Lisboa: Livros processo de saneamentos de agosto assumiu no confronto político nacional. Horizonte. 137 MESQUITA, M. (1994), “Os Meios de Comunicação Social”. In: REIS, A. (1994), Portugal 20 Anos de Democracia. Lisboa: Círculo dos Leitores, pp. 507-544. PINTO, A. C. (2006). “O Legado do Autoritarismo e a Transição Portuguesa para a Democracia 1974-2004”. In: LOFF, M., e PEREIRA, M. C. (2006), Portugal: 30 Anos de De mocracia. Porto : Editora a Universidade do Porto, pp. 37-70. SOUSA, P. D. (2003). A Dramatização na Imprensa do PREC. Coimbra: MinervaCoimbra. Ana Teresa Peixinho Professora da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e membro do Centro de Estudos Interdisciplinares do Século XX. ([email protected]) Recensão Crítica LITS, M. (2008). Du Récit au Récit Médiatique. Bruxelles: DeBoeck. (235 pp.) A narrativa é o modo discursivo diferenciados: das reportagens tele- e utilizadores. Dividida em cinco ca- privilegiado de construção do mundo visivas às notícias de imprensa; dos pítulos, Du Récit au Récit Médiati e da experiência, sendo incontestá- filmes às séries; da publicidade à que começa por desenhar um quadro vel a sua importância na edificação crónica de rádio. histórico do relevo ocupado pela nar- das sociedades, na estruturação do Estranhamente, os estudos narrati- rativa na construção das sociedades pensamento e na definição das iden- vos parecem ser, sem dúvida, uma das e do imaginário humanos: do mito à tidades do mundo atual. Deste modo áreas mais carenciadas em Portugal ao lenda, do conto ao fait-divers, Marc a define Paul Ricoeur, quando afirma nível dos estudos sobre media e jorna- Lits revisita um conjunto de géneros que “existe entre a atividade de contar lismo, embora sejam indiscutivelmente narrativos para demonstrar como, uma história e o caráter temporal da uma das áreas mais relevantes, sem mesmo em pleno século experiência humana uma correlação a qual não se conseguem perceber os formas narrativas mais sofisticadas, que não é puramente acidental, mas fenómenos de produção e de receção o mito, enquanto alicerce da nossa apresenta uma forma de necessidade dos produtos mediáticos. Na linha de cosmovisão, se encontra reinventa- transcultural.” (Ricoeur, 1987: 85). Barthes, para quem o estudo da nar- do. Ora, se na Antiguidade eram os O estudo da narrativa mediática, rativa deveria constituir um dos mais mitos as grandes narrativas estrutu- como tipo narrativo dominante, é uma importantes inquéritos às sociedades rantes da civilização, atualmente os tarefa complexa que exige a mobiliza- humanas (Barthes, 1968), entende-se grandes produtores de narrativas são ção de um conjunto variado de ferra- que a compreensão do modo como as os media. Responsáveis pelo modo mentas e a articulação de múltiplas narrativas foram evoluindo e se adap- como organizamos o mundo, como áreas do saber, quer porque a narrati- taram aos formatos da sociedade de geramos imagens do real, como articu- va seja um fenómeno transversal, quer massas é essencial para o estudo das lamos e lemos a sua complexidade, as porque os objetos mediáticos sejam relações entre sociedade e indivíduo. narrativas mediáticas – ficcionais ou A obra que agora se apresenta, da- factuais – produzem crenças sociais, Na verdade, trata-se de uma área tada já de 2008 e infelizmente ainda ditam normas de conduta, disseminam que, por um lado, incorpora contri- não traduzida para português, conse- estereótipos e fornecem-nos imagens butos que vão desde a linguística aos gue de um modo muito claro propor dos outros. Podemos mesmo afirmar, estudos de discurso, da sociologia às uma reflexão alicerçada nessas três em consonância com alguns autores, ciências cognitivas ou aos estudos li- vertentes: a da variedade dos objetos que o mundo a que temos acesso se terários, e, por outro, tem como objeto em análise, a da necessária interdis- constrói necessariamente de acordo uma grande variedade de géneros ma- ciplinaridade das abordagens e a das com certos princípios narrativos, pois terializados em materiais e suportes complexas relações entre mensagens que o nosso pensamento, as nossas muito heterogéneos. 139 XXI , sob estruturas mentais e o nosso conhe- análise e compreensão devem assentar de arte proporcionam a cada releitu- cimento se processam por meio da nas condições de produção e receção. ra uma fruição estética crescente e narrativa. Desde os folhetins televisi- Ora, é precisamente essa análise que sempre renovada. Daí a ênfase acen- vos, aos reality-shows, passando pelas se desenvolve nos terceiro e quarto tuada sobre o papel desempenhado rubricas desportivas da imprensa ou capítulos da obra, dedicados, respe- pelo recetor – leitor, espectador ou pelos videojogos, aquilo que os media tivamente, à análise da receção nar- ouvinte - na experiência estética: “um hoje nos oferecem é um conjunto de rativa e à compreensão das principais texto postula o próprio destinatário narrativas, em que a ficção e a fac- categorias que a constroem. como condição indispensável não só tualidade se hibridizam, matizando Revisitando as principais teorias da própria capacidade comunicativa perigosamente as suas fronteiras. de abordagem à narratividade, o autor concreta, mas também da própria Conclui o autor que o conhecimento assume o distanciamento crítico em potencialidade significativa”, afirma do funcionamento destas narrativas é relação às correntes estruturalistas, o semiólogo italiano, reconhecendo crucial para a desejável atitude crítica para as quais o texto narrativo era um a importância da leitura como fator do recetor face às produções narrati- objeto fechado, composto por funções determinante da existência do texto. vas mediáticas que consome. que dependiam exclusivamente de si Estava trilhado o caminho para a va- próprias, para seguir a via da herme- lorização da receção na compreensão nêutica ricoeuriana. dos objetos comunicativos. Sabe-se Feito este enquadramento, nos capítulos seguintes, o professor belga propõe-se estudar as narrativas A pós-modernidade trouxe consi- hoje o quanto os Estudos Narrativos, mediáticas nas suas três dimensões go, de facto, um conjunto de corren- sobretudo nos últimos anos, têm in- comunicativas: enquanto resultado tes de pensamento que investiram na sistido nas abordagens cognitivistas: de modos de produção específicos; relativização de todos os conceitos. autores de referência como Jens Edder enquanto objeto apropriado por ato- Recorde-se que, no início da déca- ou Fotis Jannidis têm dedicado parte res sociais concretos em específicos da de 60, Umberto Eco dá à estampa das suas investigações precisamente contextos de receção; e como produto a sua afamada Obra Aberta, um dos à valorização da vertente recetiva na de um conjunto de procedimentos de seus livros mais disruptivos, dedicado compreensão do funcionamento de que o conceito de narratividade nos à teoria estética contemporânea em algumas categorias narrativas. Já no dá conta. Na senda de abordagens que se concede um lugar de destaque final da década de 80, Gerald Prince mais recentes e refutando os limites a produtos da cultura de massas, como apresenta uma abordagem ao conceito da teoria estruturalista, Marc Lits a televisão, os cartoons e o cinema. de narratividade que se compagina perspetiva a narrativa mediática como Eco propõe o conceito de abertura precisamente com a valorização da objeto sociodiscursivo mediador cuja textual, no sentido em que as obras instância de receção: “a narratividade A compreensão do modo como se estruturam e funcionam as narrativas dominantes da contemporaneidade é absolutamente central, para que se percebam as relações entre produtores e recetores de narrativas de um texto depende da medida em de que a abertura excessiva da receção que o texto concretiza a expectativa carece: a retórica e a estilística, quer do recetor, representando totalidades num texto literário, quer em narrativas orientadas temporalmente (...) signifi- informativas dos media, determinam cativas em termos de um projeto hu- a perceção do leitor. Parece-nos im- mano e de um universo humanizado.” portante que o autor tenha concedi- (Prince, 1987: 160). do especial relevância à personagem Marc Lits, embora não refira a num trabalho dedicado às narrativas corrente cognitivista, que conheceu mediáticas, uma vez que entendemos desenvolvimentos sobretudos em anos dever ser esta objeto central de re- mais recentes, opta por uma análise flexão, nomeadamente em termos das complexa do trabalho do leitor e do suas potencialidades transliterárias e seu efeito no texto, a partir de várias transmediáticas. perspetivas: semiótica, sociológica e Deste modo, a compreensão do estética. Contudo, não deixa de nos modo como se estruturam e funcio- alertar para os riscos de um excessivo nam as narrativas dominantes da enfoque no potencial interpretativo da contemporaneidade é absolutamen- leitura, que pode conduzir a derivas te central, para que se percebam as populistas ou a ilusões emancipató- relações entre produtores e recetores rias. Assim, o capítulo seguinte da de narrativas. No último capítulo da obra é precisamente dedicado à cons- obra, ao apresentar uma visão geral do trução da narrativa e às suas cate- debate sobre a relação entre os media gorias essenciais, nomeadamente o e os seus públicos, o autor assume tempo e a personagem, nas quais o uma posição matizada, consideran- autor se concentra de modo mais cir- do que, no período pós-moderno, a cunstanciado. As opções do narrador, influência dos media na sociedade é em termos de perspetiva, de gestão inegável: eles constroem as nossas temporal e de figuração de persona- identidades individuais e coletivas e gens, são absolutamente decisivas, estabelecem debates públicos, con- segundo Lits, para a orientação ideo- dição sine qua non do funcionamento lógica do leitor, conferindo os limites da democracia. O domínio absoluto da 141 Referências Bibliográficas: narrativa hipertextual, essencialmente media, abrindo inúmeras pistas para construída numa lógica intertextual e posteriores investigações. Cada capí- multimedial, veio, na última década, tulo termina com uma síntese e com BARTHES, R. (1966). “Introduction à transformar a nossa relação com a um conjunto de sugestões bibliográficas l’Analyse Structurale des Récits”. realidade. Recorrendo aos prenún- sobre cada subtema abordado. Tem a In: Communications, N.º8, pp. 1-27. cios de Guy Debord, sobre a civiliza- grande vantagem de apresentar inúme- PRINCE, G. (1987). Narratology. The Form ção do espetáculo, Lits reflete sobre ros exemplos concretos, inspirados nos and Functioning of Narrative. Berlin a transformação radical dos suportes produtos mediáticos atuais, a partir dos / New York: Mouton Publishers. tecnológicos e dos nossos quadros de quais o autor ilustra as reflexões teó- referência que arrastam necessaria- ricas, suportadas num vasto conjunto mente uma recomposição dos modos de leituras assinaladas na bibliografia de organização narrativa e dos papéis final. dos agentes no sistema mediático. Esta obra parece-nos, assim, es- Consciente do papel disruptivo dos pecialmente importante para estudan- novos media – sobretudo a WEB – tes de Comunicação, embora também Marc Lits sublinha a urgente alteração tenha todas as qualidades científicas dos modelos de análise, propondo a para reunir o interesse de investigado- criação de uma “hipernarratologia res de ciências sociais e humanas que mediática” que permita analisar tais necessitem de entender o funcionamen- objetos complexos, como as histórias to das narrativas mediáticas no nos- dos media de hoje, problematizando o so quotidiano. Finalmente, julgamos sensacionalismo e o enfraquecimento que seria importante a sua tradução de fronteiras entre o real e o virtual. para língua portuguesa, dada a quase Escrito numa linguagem muito cla- inexistência de estudos do género no ra e estruturado de um modo legível, este livro tem sobretudo uma importante componente didática: organizado, como vimos, em cinco capítulos, oferece ao leitor um estado da arte muito completo sobre a aplicação dos estudos narrativos ao campo de estudos dos panorama editorial nacional. RICOEUR, P. (1987). Temps et Récit. Paris: Seuil. António Sousa Ribeiro Professor da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra/CES ([email protected]) Recensão Crítica Helen Small, The Value of the Humanities, Oxford, Oxford University Press, 2013, 204 p. “Mas que privilégio”, tive que ou- pressionadas por lógicas mercanti- à mesma irrelevância que lhes é as- vir uma vez da boca de um colega da listas e sujeitas a critérios de ava- sacada pelas lógicas mercantilistas. área da Engenharia, “que privilégio liação utilitaristas do ponto de vista Se é verdade, assim, como já tenho ser pago para ler romances!”. Tratan- dos quais o que é específico do saber escrito, que o futuro das Humanida- do-se de uma frase vinda de alguém humanístico tende a ser visto como um des não pode estar simplesmente no com uma posição de destaque no meio luxo inútil ou um desperdício a evitar. seu passado, livros como o de Helen universitário e, tenho que admitir, Quase vinte anos depois da publica- Small, professora de Estudos Ingleses com um nível de inteligência acima ção d’A Universidade em Ruínas, de da Universidade de Oxford, represen- da média, ela é bem representativa das Bill Readings, o diagnóstico sombrio tam contributos importantes para a representações erradas que continuam traçado nesta obra de referência não reconceptualização necessária a um a ser muito correntes mesmo nesse tem cessado de confirmar-se. reposicionamento produtivo das Hu- meio relativamente à relevância das No espaço dessas ruínas, a reflexão manidades no diálogo dos saberes Humanidades. Na verdade, a discus- sobre o futuro das Humanidades tem contemporâneos. É uma obra escrita são sobre o valor das Humanidades de começar pela questão elementar a partir de um contexto específico, o não é de hoje, nem mesmo de ontem, de saber se as humanidades têm um britânico, cujos problemas e desafios mas tem de ser equacionada nos nos- futuro. É forçoso reconhecer que, no não são necessariamente idênticos sos dias em condições que talvez não quadro presente, muito do que tem aos de outros contextos, desde logo o tenham nunca sido tão desfavoráveis. sido o discurso tradicional das Hu- português. No entanto, não só esses Não se trata, em primeira linha, da manidades se encontra inteiramente outros contextos estão crescentemente tão decantada “crise” – na verdade, desarmado para responder a essa sujeitos a um forte mimetismo relati- a condição da crise é, pode dizer-se, questão. O apego a uma noção enfá- vamente ao universo anglo-saxónico, consubstancial a toda a história das tica de cultura na linha das “ciências desde logo no tocante a feiticismos disciplinas humanísticas e, na medi- do espírito” novecentistas ou a defe- bibliométricos como padrão de ava- da em que aponta para a capacidade sa correlativa de uma legitimidade e liação, como as questões abordadas auto-reflexiva dessas disciplinas, ela função “naturais” das humanidades são de inteira relevância, já que en- constitui mesmo um factor de evidente não podem senão conduzir a estéreis troncam em profundidade, a partir relevância para a capacidade de pro- posições defensivas, a uma estraté- de uma perspetiva amplamente in- dução de contemporaneidade por parte gia de hibernação, bem presente em formada, na discussão atual sobre o das Humanidades. Trata-se, sim, mui- contributos relevantes como o de Ge- valor das Humanidades, entendido to mais, da transformação estrutural orge Steiner, que condena, em última explicitamente como um bem público. das universidades, crescentemente análise, o espaço das Humanidades Os cinco capítulos que (para além 143 de uma introdução e uma conclusão) ao longo dos vários capítulos, que, a constituem a obra estão estruturados propósito do equacionamento do lugar na forma de um balanço crítico dessa distintivo das Humanidades, começam discussão, através de um percurso por por uma revisitação da controvérsia, alguns dos paradigmas argumentati- sucessivamente reeditada, das “duas vos correntes em defesa das Humani- culturas”, prosseguindo depois com dades. Os títulos são representativos: uma reflexão sobre “inutilidade” das “1. Distinction from Other Discipli- Humanidades e a forma como as pres- nes”; 2. Use and Usefulness; 3. Socra- sões utilitaristas se abatem em parti- tes Dissatisfied: The Argument for a cular sobre o ensino e a investigação Contribution to Happiness: 4. ‘Demo- nesse âmbito – uma reflexão que, com cracy Needs Us’: The Gadfly Argument referência particular à influência de for the Humanities; 5. For Its Own Matthew Arnold no contexto britânico, Sake”. A substancial bibliografia e o não deixa ser particularmente crítica índice remissivo final dão testemunho da cegueira de algumas posições an- da amplitude das referências, mesmo ti-intrumentalistas. Capítulos subse- que limitadas ao universo de língua quentes abordam a contribuição das inglesa. Humanidades para a felicidade dos Talvez o maior mérito desta obra indivíduos e das comunidades – sendo seja o de recusar liminarmente a es- que essa contribuição, como sublinha terilidade da posição defensiva a que a autora, consiste primacialmente na me referi no início, ao mesmo tempo reflexão crítica sobre “em que é que que lança um olhar matizado sobre consiste a felicidade, como podemos qualquer tipo de pretensões de cen- esperar atingi-la da melhor maneira, tralidade hegemónica. Evidentemente qual pode ser a relação entre a feli- que aquela recusa não exclui aquilo cidade psicológica individual e o bem a que a autora chama um “gesto pro- -estar da sociedade, e de que forma a tetor” (p. 29) relativamente à especi- educação pode alterar tanto a quali- ficidade dos modos de construção do dade como o espectro de prazeres dis- conhecimento no âmbito das Humani- poníveis para o indivíduo” (p. 175). A dades. Esse gesto está bem presente obra centra-se depois no debate sobre Talvez o maior mérito desta obra seja o de recusar liminarmente a esterilidade da posição defensiva ao mesmo tempo que lança um olhar matizado sobre qualquer tipo de pretensões de centralidade hegemónica a relação entre as Humanidades e a relativamente aos vários aspetos que dimensão que não só não me parece democracia, no âmbito do qual assume aborda contribuem para fazer desta suficientemente sublinhada como é especial relevo uma abordagem crítica obra uma referência importante. mesmo objeto de algum ceticismo. do contributo de Martha Nussbaum; e, Qualquer discussão produtiva Mas isso não obsta a que The Value finalmente, procede a uma ponderação sobre a questão das Humanidades e, of the Humanities fique doravante a da medida em que poderá defender-se concomitantemente, sobre o valor das constituir uma referência importante que as Humanidades e a investigação Humanidades, tem que começar por num campo em que a discussão, seja no âmbito das Humanidades têm um reconhecer que não é possível abordar em forma de livro, seja no espaço das valor em si, isto é, se autojustificam a questão a partir de perspetivas sim- revistas, prossegue com assinalável pelo modo como “alguns objetos e plesmente disciplinares. Não se trata vitalidade. atividades podem ter valor como um de definir “áreas de especialidade”, fim em si próprios” (p. 176) – uma mas sim de ter consciência do modo ponderação claramente na linha da específico de produção de conheci- formulação kantiana da autonomia da mento próprio das Humanidades, um esfera estética. modelo que, por definição não pode ser Em torno das questões que suma- substituído por outra forma de abor- riamente inventariei, os diferentes dagem ou ser subsumido nela. Um dos capítulos organizam-se como revisão elementos mais definidores do espaço crítica de posições centrais represen- das Humanidades é, sem dúvida, o seu tadas por alguns dos autores e das desiderato essencial de antropologiza- autoras de referência para a discussão ção do saber ou, dito de outro modo, mais recente. A obra de Small, e não a sua resistência à separação sujeito/ é este o menor dos seus méritos, vale, objeto característica da evolução da assim, como balanço crítico e como ciência moderna. Ao centrar-se em perspectivação geral do estado atual objetos como a linguagem, a cultura, dessa discussão. A forma ponderada a memória, as identidades, as Huma- e equilibrada como, sem prejuízo da nidades percorrem transversalmente firmeza da opinião crítica, vão sendo todas as esferas da experiência social debatidos os diferentes contributos e, enquanto tal, estabelecem-se como relevantes e o modo como Small vai um saber por definição fronteiriço. Na privilegiando o modo interrogativo abordagem de Helen Small, esta é uma 145 Uma galeria de imagem Lugares da Personagem Por António Barros. Autor convidado A coleção presente desenhada com oito peças inéditas, parte integrante desta Galeria [Lugares da Personagem, Fotografia, 2014-2015: #1 - Madrid_Teatro Beatriz; #2 - Coimbra_Mondego; #3 - Coimbra_Mondego; #4 - Cerveira_Vulto Limite; #5 - Sevilha_Metropol Parasol - J. Mayer H.; #6 - Coimbra_agenda setting; #7 - Guimarães_Coisas Reais - CAAA; #8 - Coimbra_Retrato de Albert Camus] surge nesta publicação formulando visitações diversas dirigidas a diferentes artigos editados na constelação da revista Mediapolis. Sem pretenderem resultar ilustrativas, as imagens - essas dos lugares cénicos a habitar, vagas até ao devir da personagem residente - desafiam o leitor a uma contemplação não resignada, mas uma outra: a que convoque, nesta convulsiva interação, novas razões semânticas. A construção plástica e textual do trabalho de António Barros conjuga - numa mesma condição de coisas reais_pessoas reais -, uma cumplicidade constante entre a Imagem e a Palavra. Obra de grande compromisso Gráfico, trabalha desde os anos 70 uma identidade FLUXUS (gerada a partir de George Maciunas, autor propulsor de uma consciência fundadora da condição de Obra Gráfica, identitária, afirmada num desígnio conjugado com as múltiplas Artes e seus enunciadores - Joseph Beuys; Wolf Vostell). António Barros trabalhou com Vostell na Alemanha, e em 1988 vem a inscrever o simpósio Design Gráfico 88, com Abraham Moles. Obras premiadas, como as peças “Escravos”, “Ex_Patriar”, e 1.º Prémio do Concurso Nacional Cartaz para a Bienal Internacional de Arte Cerveira. Inscreve a sua escrita - numa conjugação literária e plástica parte integrante do Visualismo -, a POEX - Poesia Experimental Portuguesa. No domínio do Design de Comunicação estudou no IADE - Creative University, Lisboa, e na Facultat de Belles Arts, Universitat de Barcelona - Curso Master en Diseño y Producción Gráfica dirigido por Eric Tormo i Ballester, pós-graduação em Direito de Autor e Direitos Conexos e Curso de Direito de Imagem, direção de Jorge Calado, Fundação das Descobertas - Centro Cultural de Belém Ministério da Cultura, Lisboa, e foi professor convidado da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Curso de Pós-graduação em Museologia. Teve atividade docente no Instituto Técnico, Artístico e Profissional de Coimbra e na Universidade de Coimbra, também no Design de Comunicação. É consultor do Arquivo Digital da Literatura Experimental Portuguesa, Universidade Fernando Pessoa. Direção de Arte e Imagem em diversos programas na Universidade de Coimbra. É autor da Identidade Visual de múltiplas estruturas como: Imprensa da Universidade de Coimbra; Teatro Académico de Gil Vicente; Centro de Dramaturgia Contemporânea; RUC_Rádio Universidade de Coimbra; UCV_Televisão WEB da UC; UC_Digitalis. Direção Artística de Rua Larga, Revista da Reitoria da Universidade de Coimbra. A sua Obra inscreve os arquivos internacionais : Walden Zero - Transdisciplinary Art and Education Project, Locarno, Suiça; Archivio Guglielmo Achille Cavellini, Brescia, Itália, e as coleções da Fundação de Serralves - Museu de Arte Contemporânea, Porto; Museo Vostell Malpartida, Espanha; Fundação Bienal Cerveira e, entre outras, a Universidade do México. http://barrosantonio.wordpress.com/ http://po-ex.net/ 147 Créditos Apoios P. 41 Figura 1: Eusébio. TALKING SPORT/Photoshot/Fotobanco P. 42 Figura 2: Cristiano Ronaldo. PA/Fotobanco P. 43 Figura 3: Cristiano Ronaldo. ZumaPress/Fotobanco P. 46 Figura 4: José Mourinho. Getty Images/AFP:157272995 FBL-ESP-LIGAREALMADRID-ATLETICO. Foto de Pierre-Philippe Marcou P. 51 Figura 6: Final do Mundial de Futebol (1950), entre Brasil e Uruguai: http://gaucha.clicrbs.com.br/rs/noticia-aberta/ghiggia%AD-conta-como-calou-o-maracana-na-copa-domundo-de-1950-54120.html P. 109 Figura 1: Planta da parte da cidade baixa: Museu da Cidade (de Lisboa) Museu da Cidade, Reservas, MC.GRA.992 P. 111 Figura 2: Benoliel (“A Esquina”): Ilustração Portuguesa (1908). UID/HIS/00460/2013