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Era só uma piada! Uma apreciação crítica aos limites do humor Vinicius de Souza Faggion Resumo Quais são os limites do humor? Há humoristas que acreditam que o humor não deva ter limites, já que restrições ao seu exercício cerceiam a liberdade de expressão e prejudicam o efeito cômico. Por outro lado, alvos do humor e parte da audiência acreditam que o humor precisa ser limitado, pois é uma ferramenta capaz de causar danos à honra ou à dignidade de agentes ou grupos sociais, estigmatizados por uma piada de mau gosto. Pretendo analisar a questão dos limites aceitáveis ao humor, através de análise fornecida por um campo interdisciplinar entre a moralidade e a estética, nomeadamente, a ética do humor. Trabalharei sobretudo com casos comuns de humor representados pela piada. E com tipos de piada que costumam testar os limites do humor, ou seja, com esquetes que usam a estereotipagem de indivíduos ou classes sociais. Meu objetivo é apontar um critério capaz de acomodar razoavelmente a atividade cômica, sem cair em posturas extremamente moralistas, que pretendem proibir a expressão de certos tipos de exercício cômico. Para tanto, fornecerei noções introdutórias a respeito do que consiste o humor, bem como apresentarei classificações úteis para avaliar tanto a apreciação estética do humor quanto sua corretude moral. Por fim, pretendo experimentar o padrão fornecido na apreciação de uma decisão judicial que julgou a questão dos limites morais do humor envolvendo representantes do stand-up comedy. O teste demonstrará como o critério é ferramenta útil para avaliar se certo tipo de humor é lesivo e se merece algum tipo de Vinicius de Souza Faggion repreensão jurídica pelo Estado. A conclusão esperada é de que o humor deve ter alguns limites, mas esses são menos impeditivos do que se imagina. Palavras-chave: ética do humor; comédia; estereótipos; liberdade de expressão; limites do piadas; humor. Introdução Certa vez, ao ser questionado sobre o direito de comediantes zombarem de religiões alheias, Rowan Atkinson, intérprete do famoso Mr. Bean, manifestou a seguinte opinião: “o direito de ofender é muito mais importante do que qualquer direito de não ser ofendido” 1. Ao esmiuçar a hipótese de um controle estatal sobre a expressão artística apontou que “o problema claro da proibição do insulto é que muitas coisas podem ser interpretadas como tal. A crítica, o ridículo, o sarcasmo, apenas afirmar um ponto de vista alternativo da ortodoxia pode ser visto como insulto” 2. As declarações do comediante têm evidente inspiração na liberdade de expressão e no direito de expressar qualquer opinião ou ponto de vista, por mais fortes que possam ser. A opinião de Atkinson, na realidade, não serve somente para defender a causa de comediantes, mas um direito generalizado à expressão. Porém, tomo o teor dessas declarações para relacionálas apenas ao gênero da comédia, objeto de foco desse estudo. O humor é um veículo de diversão, cuja manifestação típica é representada pelo riso. Esse fator lúdico, a priori, fornece um elemento a mais de resistência do humor quando o mesmo é acusado de causar algum dano3 à comunidade, seja desrespeitando algum grupo social ou injuriando a dignidade de algum cidadão. Afinal de contas, o contexto Tradução livre de “the right to offend is far more important than any right not to be offended”. Disponível em: http://www. telegraph.co.uk/education/3348850/Atkinson-defends-right-to-offend.html. 2 Tradução livre de “The clear problem of the outlawing of insult is that too many things can be interpreted as such. Criticism, ridicule, sarcasm, merely stating an alternative point of view to the orthodoxy, can be interpreted as insult.”. Disponível em: http://www.telegraph.co.uk/news/uknews/law-and-order/9616750/Rowan-Atkinson-we-must-be-allowedto-insult-each-other.html. 3 Empregarei ao longo do texto o termo “dano” e temos como “injúria” (sem necessariamente exprimir o tipo criminal), “ultraje” ou “lesão” como sinônimos e marcadores que indicam o humor ter ultrapassado os limites do permissível, portanto da liberdade de ser expresso sem sofrer consequências. Com isso, quero indicar que a partir do momento em que a expressão do humor viola a margem de tolerância passa a ser legítima a provocação do Estado e do sistema jurídico para punir a transgressão contra os alvos do dano. 1 192 Cadernos do Seminário da Pós 2015 Era só uma piada! Uma apreciação crítica a os limites do humor típico do exercício cômico é leve, descompromissado, e a justificativa “era só uma piada, não pretendia ser levado a sério!” é um tipo de resposta recorrente por aqueles que enaltecem o valor da comédia. A justificativa mencionada logo acima é um típico subterfúgio usado por humoristas para escapar à responsabilidade de ter manifesto atitudes preconceituosas à religião, ao gênero, e a grupos étnicos por meio de uma piada inconveniente. Soa comum a tendência (ao menos, por parte dos humoristas) de imaginar o discurso humorístico como dotado de um status especial que o torna imune à capacidade de produzir algum ultraje, já que seu propósito é entreter ao invés de transmitir uma informação verídica ao modo dos jornalistas. Logo, assume-se arguendo que o humor teria uma espécie de imunidade frente ao julgamento moral. Paul Sturges (2010, p.184-187), autor de interessante estudo comportamental feito de entrevistas com comediantes, revela que os interpelados geralmente têm dificuldades de ver seu trabalho em termos de restrições e não costumam se sentir efetivamente censurados. Internalizam as restrições apenas como recurso de julgamento do que é boa comédia, e avaliam-na em prol do impacto que poderão produzir sobre a diversão, ao invés de vê-las como verdadeiro impedimento sobre o humor que praticam. Noutras palavras, a tendência revelada é a de que humoristas compreendem a censura mais como medidor estético de suas performances criativas, do que uma restrição normativa ao tipo de temas expressos pelo humor. O comportamento dos humoristas entrevistados seria semelhante à de uma atriz desinibida que está a escolher o vestido para acompanhar a premiação do Óscar: ela possui um leque variado de indumentárias, das mais discretas às mais extravagantes; se sua intenção for somente criar alvoroço entre os paparazzi, escolherá o vestido mais ousado sem sentir qualquer tipo de inibição quanto as opções que possui. Sua escolha cinge-se dos padrões do decoro cerimonial e se restringe apenas sobre o impacto que quer produzir na mídia, ou seja, muitas fotos, tuítes e comentários nas colunas de celebridade. Voltando aos comediantes, ao invés de mais exposição na mídia, a atitude motivadora é a produção de mais risos. Mas será que o comportamento dos humoristas é compatível com essa acepção de restrição? Talvez o impacto da restrição sobre o humor seja um pouco mais limitado, semelhante ao caso da jovem que está a escolher o vestido para a cerimônia de casamento. Ela possui um leque razoável de opções, mas não parece correto que deva escolher um vestido extremamente curto ou demasiadamente Conversações: Política, Teoria e Direito 193 Vinicius de Souza Faggion decotado, pois a escolha do vestido é determinada, ao menos parcialmente, pelos propósitos do cerimonial. Nesse caso, sua restrição não é somente uma escolha entre preferências e efeitos que se pretendem produzir, mas uma limitação externa à sua criatividade. Do mesmo modo que o casamento é fator determinante à escolha do vestido de noiva, o público para qual o humorista se dirige pode ser um obstáculo ao conteúdo de certos esquetes de humor. A grande preocupação sobre a provocação do riso e as declarações de Atkinson ilustram um aspecto à primeira vista inerente ao humor, sua tendência à falta de padrões ou convencionalidades. Tendo esse aspecto em vista, teria o humor um salvo conduto maior que outras formas de expressão simplesmente por ser uma atividade que não tem a pretensão de ser limitada ou levada à sério? Meu objetivo será colocar em causa essa aparente “blindagem” do humor frente aos danos que pode causar sobre os alvos da piada. Portanto, pretendo sustentar que o humor é uma atividade que encontra restrições como qualquer forma de expressão que ultrapasse limites razoáveis à liberdade de expressão. Tal posição teórica torna o subterfúgio “foi só uma piada!” justificativa vazia, que não fornece razões, muito menos desculpa a falta de sensibilidade. Também aproveitarei a análise para evitar certos exageros atribuídos à restrição do humor. Não farei uma crítica direta contra o humor ou defenderei algum tipo obstinado de moralismo cômico4. Bem como não trabalharei com argumentos que almejam censurar5 previamente o humor, apenas abordo casos nos quais o humor já expresso foi lesivo a ponto de provocar algum tipo de condenação. Minhas intenções buscam defender a prática do humor, mesmo daquele que emprega estereótipos sobre gênero, raça e religião, até o ponto em que possa ser plausivelmente mantido sem violar outros valores que conflitam com a liberdade de expressão, como a dignidade e a honra dos alvos do humor. Segundo Philip Percival (2005, p. 93), moralistas cômicos estão comprometidos com a ideia de que a presença de temas moralmente controversos ou reprováveis em manifestações humorísticas comprometem ou até mesmo eliminam seu efeito cômico, ou seja, a capacidade de uma piada ser engraçada ou até mesmo do enunciado pertencer ao domínio cômico. 5 Essa forma de abordagem me faz assumir duas premissas. Primeiro uma acepção ampla da liberdade de expressão de qualquer ideia, por mais ofensiva que possa ser. Segundo, que apesar de ampla, a acepção assumida não é ilimitada, pois encontrará seus limites no momento em que o teor da declaração expressa for merecedor de sanção. Nesse sentido, “nós somos de fato livres para dizer o que quisermos. [...] Um governo não pode tornar impossível dizermos certas coisas. A única coisa que pode fazer é punir pessoas depois que disseram, escreveram ou publicaram seus pensamentos. [...] Uma análise mais persuasiva sobre a liberdade de expressão sugere que a ameaça de sanção torne mais difícil e potencialmente mais custoso o exercício de nossa liberdade. (trad. Livre) (MILL, David van. Freedom of Speech. In: Stanford Encyclopedia of Philosophy, 2012. Disponível em: http://plato.stanford.edu/entries/freedom-speech/. Acesso em: 29 nov. 2014). 4 194 Cadernos do Seminário da Pós 2015 Era só uma piada! Uma apreciação crítica a os limites do humor Ao final, testarei as conclusões a respeito dos limites do humor aplicando o critério proposto por Robin Tapley (2009) e que será exposto oportunamente. Para o teste, serão sabatinadas duas piadas feitas por representantes bem conhecidos do stand-up comedy nacional, Rafael Bastos e Danilo Gentilli. Ambas repercutem na Ação Civil Pública Nº 0100503-06, do TJ-SP julgada em 2012 pelo Juíz de Direito Tom Alexandre Brandão. Na primeira piada, objeto da ação, “Rafinha” Bastos foi processado pela Associação dos Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE); na segunda, o juiz utilizou a título de comparação à primeira piada a sátira de Gentilli direcionada à comunidade judaica, alvo de grande repercussão na mídia, acendendo o debate sobre os limites da atividade cômica. O teste é um esforço interdisciplinar que demonstrará a utilidade dos conceitos teóricos trabalhados para o reconhecimento do dano produzido pelo humor, e na consequente fixação de uma punição6. Mas antes de discutir a fundo os limites do humor, acredito ser necessário dedicar uma sessão do trabalho para tecer alguns dados conceituais relevantes à compreensão do objeto de discussão. Tal esclarecimento terminológico é necessário, primeiro, porque como o objeto de estudo é o humor, nada mais adequado que conhecer, ainda que brevemente, elementos descritivos do que consiste o humor ou formas de humor. Segundo, pois a introdução até aqui feita associou termos como “humor”, “comédia”, “piadas” e “estereótipos”, que podem criar a impressão indesejada de que identifico humor somente com piadas ou anedotas feitas por comediantes, ou que só há humor com o emprego de estereótipos. A seguir faço as devidas distinções, com informações colhidas da estética ou filosofia da arte, área cuja preocupação não se limita a analisar as formas de expressão artística, mas com teorias que pretendem fornecer um conceito da arte e de manifestações artísticas, como é o caso de uma delas, o próprio humor. Também apresentarei as soluções teóricas sobre a ética do humor encontradas na literatura, e que se resumem a quatro alternativas: amoralismo cômico; imoralismo cômico; moralismo cômico forte; e moralismo cômico moderado. A análise das principais características Apesar de ser uma etapa natural perquirir quais critérios e consequências jurídicas são cabíveis sobre o responsável pela piada ofensiva, por exemplo, se o comediante deverá ser responsabilizado civil ou criminalmente, tal tarefa não fará parte dos objetivos do estudo. O que pretendo demonstrar é que o padrão para a avaliação moral do humor pode ser uma técnica de julgamento prévio empregada pelo juiz para considerar se o fato concreto (a piada emitida) é realmente merecedora de sanção, portanto sujeito à uma resposta institucional do direito à ofensa produzida. 6 Conversações: Política, Teoria e Direito 195 Vinicius de Souza Faggion dessa tipologia crítica será útil para determinar qual alternativa é a mais plausível para basear o critério de limitação ao humor danoso. Além disso, uma definição a respeito do que consiste um estereótipo será fornecida para melhor rotular quais instâncias de humor desafiam os limites do tolerável. Por fim, faço um pequeno alerta: utilizarei alguns exemplos sobre o humor que têm linguagem coloquial, forte ou até mesmo chula para muitos, e exijam certo apelo à malícia para a compreensão do humor. Não faz parte das minhas intenções ofender qualquer leitor, sequer forçá-lo a considerar engraçado quaisquer exemplos de piada. Apesar disso, acredito que, se o leitor se encontrar constantemente incomodado com a maior parte do humor reproduzido no texto, é por ser grande defensor de ideais moralistas fortes, postura que será devidamente rebatida ao longo do trabalho. Utilizo os exemplos apenas para o bem da construção argumentativa. I. O que é humor? Alguns dados teóricos relevantes Para analisar o fenômeno do humor, interessante começar por certas considerações usuais ou intuitivas sobre o mesmo. Primeiro, que se manifesta sobre formas canônicas de arte, como teatro, literatura, cinema, pintura e escultura, mas também em formas não canônicas, como é o caso de piadas contadas descompromissadamente entre amigos, ou dos humoristas do stand-up comedy. Segundo, que o humor não precisa de uma piada para ser produzido. Uma pessoa que desajeitadamente se equilibra sobre o gelo até levar um tombo é situação prática capaz de produzir riso, consequentemente humor. Portanto, há formas involuntárias e voluntárias de humor, sendo esta, o caso das piadas. O humor também é um fenômeno contextual, pois mesmo um esquete engraçado não conseguirá produzir efeito cômico se a audiência não for apropriada ou não estiver motivada para o tipo de humor que se tem em mente. Um exemplo bizarro é o caso do comediante que conta inúmeras piadas sobre morte para a plateia de um velório. Lafollett e Shanks (1993, p.330) ressaltam que o caráter contextual do humor está diretamente relacionado ao compartilhamento cognitivo de crenças ou habilidades linguísticas entre os apreciadores do humor. Se certa pessoa não compartilha da habilidade de reconhecer sarcasmo de enunciados proferidos por seus companheiros – como é o caso do personagem 196 Cadernos do Seminário da Pós 2015 Era só uma piada! Uma apreciação crítica a os limites do humor Sheldon, da série Big Bang Theory – não compreenderá a intenção cômica do falante. Logo, expressões de humor frutíferas só se reproduzem em circunstâncias propícias, para uma plateia motivada e capaz de se entreter. Apesar dessas intuições básicas, os filósofos da estética apontam dificuldades em apresentar um conceito adequado do que consiste o humor. Cohen (2005, p. 471-472) apresenta três teorias tradicionais: Primeiro há teorias da incongruência, que sustentam que há humor quando o riso surge de uma situação dissonante da realidade, ou que foge da normalidade. Por exemplo, o caso de do garoto jornaleiro que distribui as manchetes do dia pedalando sua bicicleta ergométrica em uma academia7. Segundo há teorias da superioridade, que defendem que o humor só é produzido quando há uma relação de superioridade entre o comediante e a audiência, frente o alvo da piada. Essa teoria descreve o humor produzido sobre alguém, conotando o alvo como desastrado, inato, desafortunado, etc. Esse é o caso das piadas envolvendo, por exemplo, portugueses, judeus ou mulheres. Por fim, o terceiro tipo consiste em teorias do alívio de tensão, que descrevem o humor como um exaurimento espontâneo de emoção, ocorrido num processo quase instantâneo, como num estouro de uma bexiga. Quando pessoas se divertem com certos estados mentais que guardam consigo por serem tabus, idiossincrasias ou atitudes reservadas, ao atingir o ápice ficam incapazes de mantê-las preservadas, eles “estouram” através do riso, produzindo humor. O problema das teorias abordadas é que nenhuma consegue por si só descrever com amplitude o humor, como é o caso das duas primeiras, que somente captam certas instâncias específicas de humor: a primeira, casos de humor absurdo; e a segunda, casos de humor fundados em estereótipos. Além disso, elas parecem ser ou muito ou pouco inclusivas ao caracterizarem como humor certos casos que não produzem divertimento, já que não parece ser o caso de que qualquer situação inesperada ou estereotipada produzir humor. Enquanto, a terceira teoria está mais preocupada em explicar as consequências do humor, seu efeito catártico, ao invés do humor propriamente dito. Dessa forma, nenhuma teoria é definitiva ao descrever as condições necessárias e suficientes para identificar o humor. Porém, para os propósitos da discussão, não será necessário indicar com tamanha precisão conceitual o fenômeno. Sugiro ater atenções sobre 7 Esse exemplo é encontrado no filme “A Repossuída” (1990), estrelado pelo comediante Leslie Nielsen. Conversações: Política, Teoria e Direito 197 Vinicius de Souza Faggion a segunda teoria do humor, levando-a em conta apenas pela instância de humor que ela consegue explicar, ou seja, tomando-a como teoria sobre o humor. A teoria da superioridade capta satisfatoriamente o tipo de humor alvo de censura e de críticas contra seu exercício indiscriminado. Desse modo, o tipo de humor estudado será o que utiliza como matériaprima os estereótipos e explora uma relação de assimetria entre a audiência e o alvo da piada. Focarei a análise sobre as formas não canônicas e voluntárias do humor estereotípico, como o emprego de piadas contadas por pessoas comuns ou humoristas do stand-up comedy, para trabalhar com exemplos mais simples de serem explorados em prosa. Além disso, apesar de ter traçado distinções terminológicas importantes, empregarei intercambiávelmente termos como “humor”, “piadas”, “esquetes” e “anedotas” para denotar ações cômicas produzidas por esses veículos não canônicos e voluntários. II. O que é um estereótipo? De acordo com Blum (2004, p. 251), estereótipos são entidades culturais presentes em imagens salientes de um dado grupo, ressaltando alguma característica presente com uma valência negativa, ou seja, de forma pejorativa. Mesmo quando a característica atribuída aparenta ser valorizada ou valiosa, como a inteligência ou a persistência, o enaltecimento dado pelo estereótipo geralmente acompanha um julgamento crítico acerca das qualidades ausentes no sujeito. Um estereótipo do tipo “Joãozinho é nerd, inteligente” é interpretado com um “mas...” que revela, de fato, que o estereótipo faz remendos de certas características que podem estar ausentes na pessoa estereotipada, como o fato de Joãozinho talvez não simpatizar com a prática de esportes. Logo, outra característica implícita dos estereótipos é capacidade de provocarem um estado de “miopia” ou “cegueira” perante outras prováveis características que certa pessoa ou grupo possam ter. No fim do expediente, quando alguém é alvo do estereótipo, intencionalmente o que importa ao estereotipador é somente a característica atribuída, nada mais. A noção de estereótipo ganha força na análise sobre os limites do humor na medida em que são as piadas de teor étnico, de gênero e religioso as principais responsáveis por testar a fronteira entre a liberdade de expressão e o respeito aos alvos da sátira. Os seguintes tipos de estereótipos geralmente são capturados pela criatividade dos humoristas de plantão: 198 Cadernos do Seminário da Pós 2015 Era só uma piada! Uma apreciação crítica a os limites do humor O que normalmente nós pensamos como estereótipos envolvem não somente qualquer generalização ou imagem de um grupo, mas imagens altamente mantidas e altamente reconhecidas de grupos socialmente salientes – judeus como gananciosos, endinheirados e instruídos; negros como violentos, musicais, preguiçosos, atléticos, pouco inteligentes; mulheres como emotivas, vulneráveis, irracionais; Américo-asiáticos e asiáticos como bons em matemática e ciências, trabalhadores dedicados, um ‘modelo da minoridade’; Irlandeses como ávidos bebedores; Ingleses como orgulhosos; Poloneses como estúpidos e assim por diante” (BLUM, 2004, p. 252). 8 À lista de Blum, é possível acrescentar estereótipos tipicamente reproduzidos entre nossos costumes, como é o caso dos portugueses e das loiras atribuídos à parca inteligência; dos argentinos vistos como eternos rivais de futebol (e de fronteira), alvos de troça eterna pelos brasileiros; ou da heterosexualidade dos gaúchos associada à homossexualidade. Já Smutz (2006) é cauteloso ao definir o conceito. Critica teóricos, que associam a estereotipagem à atitude de causar um mal ou prejuízo à classe generalizada. Opta por fornecer um conceito neutro a respeito do propósito generalista do estereótipo, baseando-se no fato de que existem estereótipos que são estatisticamente até precisos. De acordo com Smutz (2006, p. 166) “um estereótipo somente é claramente danoso, se, preservando-o, as expectativas tornam-se tão rígidas a ponto de impedir que um sujeito saia do modelo”. Desse modo, a valência negativa da generalização deve ser vista como um potencial lesivo, ao invés concreta marca lesiva. III. O que as teorias éticas (ou estéticas) do humor dizem sobre seus limites? Nessa seção apresento brevemente as quatro teorias que relacionam o humor produzido com a avaliação ética de seu conteúdo. Há três tipos distintos: Amoralismo Cômico: é teoria que defende que as alegações a respeito das impropriedades morais do humor erram o alvo. Para seus Tradução livre de “What we normally ,think of as stereotypes involve not just any generalization about or image of a group, but widely-held’ and widely-recognized images of socially salient groups – Jews as greedy, wealthy, scholarly; Blacks as violent, musical, lazy, athletic, unintelligent; women as emotional, nurturant, irrational; Asian-Americans and Asians as good at math and science, hard working, a ‘model minority’; Irish as drinking too much; English as snooty, Poles as stupid; and so forth.” 8 Conversações: Política, Teoria e Direito 199 Vinicius de Souza Faggion adeptos é uma falha categorial submeter o humor à avaliação moral. Dizem que o riso e o entretenimento estão além do bem e do mal (CARROLL, 2014, p. 242). Como se vê, o amoralismo já foi um tanto discutido mais acima, e representa os muitos comediantes que procuram escapar à responsabilização por piadas de gosto moral duvidoso. Porém, o argumento do amoralista pretende esconder o humor da avaliação moral do mesmo modo que se busca esconder a nudez com um véu de seda. Uma premissa que o amoralista defende é que o humor é uma atividade valiosa, ou seja, algo bom. Para o amoralista o bem produzido pelo cômico é um valor de apreciação estética, e a diversão é produzida somente em virtude da apreciação estética. Porém é questionável como é possível haver apreciação estética sem um grau mínimo de substância moral ao entretenimento cômico. Para que o humor exista é preciso uma plateia mínima que não se sinta afrontada ou que ao menos seja moralmente indiferente ao humor produzido. O argumento do amoralista não funciona, pois tanto a apreciação estética, quanto a apreciação moral do humor utilizam o mesmo canal de percepção, através da indução de nossas emoções e provocação de nossa cognição. O argumento só seria convincente se fosse possível defender que a apreciação moral e a apreciação estética são percebidos por canais distintos, nunca relacionáveis, de modo que a percepção negativa de um não age em demérito do segundo, o que não parece ser o caso. Moralismo cômico: defende que o senso de humor é sensível a considerações éticas. Noutras palavras, o fato de uma piada repousar em estereótipos negativos ou expressar alguma atitude derrogatória demonstra que ela não é engraçada (GAUT, 1998, p. 51). Em oposição ao amoralismo, que não enxerga correlação entre apreciações éticas e estéticas, para o moralista tal correlação é fundamental. A teoria comporta duas leituras: a) o moralismo forte ou obstinado que acredita que todo conteúdo imoral expresso em exercícios cômicos sempre prejudica o humor. E o moralismo moderado que sustenta ser o conteúdo imoral de alguns casos de exercício cômico prejudicial à produção de humor. Deixo para a próxima seção a discussão dos problemas do moralismo forte contra o moralismo moderado, já que se associam diretamente à busca por um critério sobre os limites do humor. Imoralismo cômico: se compromete com a premissa de que o que é insultuoso sobre a piada é precisamente o que é engraçado a respeito dela (JACOBSON, 1997, p. 172). Considere a seguinte piada cruel sobre judeus: como pôr cinquenta judeus dentro de um fusca? Dois vão na frente, outros dois atrás, o restante no cinzeiro!. Essa 200 Cadernos do Seminário da Pós 2015 Era só uma piada! Uma apreciação crítica a os limites do humor piada, se realmente for engraçada, só o é através do conteúdo vil de sua deixa. O humor somente é produzido pela alusão à cremação de judeus durante o holocausto. Tal postura teórica não tornaria o imoralista pessoa detentora de traços morais perversos? Não necessariamente. O imoralismo cômico é um tipo de teoria, que diferente às vistas acima, não está preocupada em aproximar (ou afastar) qualquer relação entre o humor e sua normatividade moral. É uma teoria apenas voltada ao valor estético potencialmente produzido. Um imoralista não entra em contradição com sua tese caso considere a piada dos judeus acima engraçada, mas, em simultâneo, chocantemente imoral, ultrajante e até mesmo reprimível. Mas se o imoralismo não é teoria ética (somente estética), qual propósito de mencioná-la num artigo cujo objetivo é fornecer um padrão ético ao humor? A opção por relacionar a tese imoralista se deu por acreditar ser a teoria que capta a hipótese de piadas com conteúdo moral perverso ainda serem capazes de produzir riso e entretenimento. Segundo Jacobson (1972, 172), de fato, há um senso óbvio no qual uma piada racista, sexista ou outra ultrajante – uma pela qual seria errado se sentir entretido – não é uma piada boa: é moralmente ruim. Mas disso não se segue que a piada não seja engraçada. Piadas moralmente más podem ser mais ou menos engraçadas; e o julgamento sobre a ofensividade não resolve a questão a respeito do seu valor cômico...9 Além disso, a premissa imoralista serve de objeção à versões obstinadas do moralismo, pois caso sejamos um tanto indulgentes com o moralismo cômico, corremos o risco de considerar como pertencentes à categoria do humor somente exercícios cômicos moralmente inertes ou probos, ou seja, com anedotas desprovidas de referências a estereótipos. Essa postura soa um tanto estranha, pois, se pessoas riem de piadas moralmente duvidosas, mas essas não são engraçadas, qual seria a causa do riso? Talvez seja preciso enquadrar tal categoria de pessoas junto ao rol de sádicos que riem e sentem prazer com outras afeições bem distintas do humor; ou o riso seria provocado por outra fonte que não a própria piada, como na hipótese improvável da audiência rir da piada moralmente controversa apenas por estar sob os efeitos involuntários do óxido nitroso (gás hilariante). Portanto, o imoralismo cômico está correto, Tradução livre de: “there is an obvious sense in which a racista, sexista, or otherwise offensive joke – one that it would be wrong to be amused by – is not a good joke: it is morally bad. But that doesn’t mean the joke isn’t funny. Morally bad jokes can be more or less funny; and the judgement that a joke is offenseive does not settle the question os its comic value...” 9 Conversações: Política, Teoria e Direito 201 Vinicius de Souza Faggion ao menos quanto à observação do efeito estético proporcionado pelo riso. Tendo feito a exposição das principais teorias éticas (e estéticas) sobre o humor é possível apresentar com maior precisão a postura teórica que tomarei na parte final. Reconheço como correta a teoria do imoralismo cômico, por não destratar a hipótese de o humor ultrajante causar riso, porém adoto uma perspectiva moralista moderada, pois apesar de concordar com a premissa imoralista de que as vicissitudes morais de uma piada é justamente o que a tornam engraçada, ainda acredito na existência de exercícios cômicos cujo grau de imoralidade incitado desvirtuam o propósito de produzir diversão. Portanto, pretendo defender que algumas instâncias de imoralidade presentes em piadas podem distorcer seu efeito cômico sadio, ou seja, ainda que o conteúdo imoral de certas piadas produza o riso, a lesividade causada ainda requer repreensão. IV. Testando os limites do humor O humor que reproduz estereótipos consegue, como proponho, produzir quatro qualidades de piadas: boas piadas, más piadas, piadas boas e piadas más. Quanto às primeiras seria o caso de piadas que empregam o estereótipo, produzem uma situação de alívio cômico ou entretenimento, sem, contudo, causarem algum dano sobre o público-alvo. As segundas são piadas que podem usar estereótipos e, apesar de não causarem algum dano, são incapazes de produzir riso generalizado à plateia. As terceiras, geralmente usam de estereótipos para produzir humor, mas são incapazes de causar uma lesão sobre o alvo da piada. Por fim, as quartas, são as que efetivamente causam algum dano, ou seja, ultrapassam os limites do humor; elas podem até provocar o riso, ou serem um fracasso para o humor, mas seu aspecto realmente saliente é a lesividade que produzem. Apresentarei exemplos de cada tipo de piada em breve, mas antes, um novo adendo sobre o moralismo. IV.1. Um novo alerta sobre o moralismo cômico Como indicado anteriormente, a análise dos limites do humor será feita sobre a perspectiva do moralismo cômico moderado. Agora, apresento motivos pelos quais se deve evitar escolher a versão moralismo cômico forte como critério. 202 Cadernos do Seminário da Pós 2015 Era só uma piada! Uma apreciação crítica a os limites do humor Acredito que o moralismo forte pode ser muito sensível e prejudique a tarefa de identificar casos de piadas más ou moralmente reprimíveis. O moralismo exacerbado é capaz de incluir nessa categoria tipos de piadas que sequer empregam diretamente o estereótipo para atingir alívio cômico, apesar de ser arguível que utilizem algum grau de imoralidade para provocar o riso. Por exemplo, considere a seguinte piada: “What’s the difference between a pregnant women and a lightbulb?... You can unscrew the lightbulb!” 10 (TAPLEY, 2005, p. 185) No exemplo dado, um moralista cômico obstinado poderia condenar o conteúdo da piada acusando-a de conter apelo sexista, posto que a piada faz humor com a figura feminina, ainda mais uma gestante. O riso produzido supostamente seria causado pela referência à mulher como objeto de uma relação sexual. Porém, basta afastar o moralismo forte para ver que a crítica da feminista é radical e não prevalece. Ao analisar a piada com mais cuidado é possível ver que o elemento que produz humor é o jogo irônico da associação feita pela palavra “screw” com duas situações bem distintas: o ato de enroscar uma lâmpada e o ato sexual envolvendo uma mulher. Portanto, a causa cômica da piada não tem qualquer relação com a postura social da mulher durante o ato sexual, sequer alguma relação que faça chacota à gravidez. É certo que a piada não teria qualquer efeito, caso a mulher grávida fosse substituída por outro sujeito, mas a presença da figura feminina na piada é inofensiva. Além do mais, é difícil associar esse tipo de piada ao apelo do estereótipo ou com a relação de superioridade entre o alvo da piada e a audiência. Tal piada, inclusive não é satisfatoriamente captada pela teoria sobre o humor da superioridade. Ela soa ser uma instância de piada melhor capturada pela teoria da incongruência. Dessa forma, esse tipo de piada não põe em xeque os limites do humor, mas, se vista com os óculos de um moralista, o apelo sexual da piada inadvertidamente torna-a um caso reprovável de humor. O moralismo cômico forte ainda é capaz de produzir uma impressão errada sobre a audiência que ri sobre piada que emprega um estereótipo. Ronald De Sousa (1987, p. 290), adepto do moralismo cômico – faz a seguinte asserção sobre piadas com estereótipo baseado no gênero: “para se achar uma piada engraçada, o ouvinte deve efetivamente Por razões evidentes, não foi possível traduzir a piada para o português, já que o humor é produzido pelo duplo sentido da palavra “screw”. Desafortunadamente, não existe em nossa língua nativa aproximação que relacione o ato de desenroscar uma lâmpada com a prática de uma relação sexual. 10 Conversações: Política, Teoria e Direito 203 Vinicius de Souza Faggion compartilhar... [certas] atitudes sexistas que estão implicadas pela piada”11. Desse modo, o sucesso da piada manifesto na audiência indica que se todos os ouvintes riram, compreenderam o teor da piada e assim o fizeram somente por também compartilharem preconceitos sexistas, racistas ou profanos à religião. Porém, esse fato me parece uma generalização precipitada12, contra a permissibilidade de piadas estereotipadas. Do fato de que posso achar uma piada de teor sexual engraçada não se segue necessariamente que compartilho preconceitos sexistas. Segundo Benatar (2014, p. 30) a introspecção de uma piada sugere que pessoas têm capacidade de desfrutar de certas piadas sem necessariamente apoiar os estereótipos reproduzidos. Em síntese, rir de uma piada estereotípica de gosto moral duvidoso não revela necessariamente preconceito da audiência. Logo, o critério moralista robusto é falacioso caso fundamente a proibição de piadas estereotípicas. IV.2 – Em que casos o humor passa os limites? No início desse tópico me comprometi em fornecer exemplos das quatro qualidades de piadas que listei. Os exemplos dados auxiliarão a compreender que tipos de humor estereotipado podem ser permissíveis e que tipos ultrapassam a fronteira da liberdade de expressão. As qualidades de humor do tipo 1) e 2) são classificadas apenas em função de sua apreciação estética, ou seja, através do efeito cômico produzido sobre a audiência. Logo, são discerníveis através do imoralismo cômico. Já as qualidades do tipo 3) e 4) são avaliadas quanto a sua moralidade, sendo então discerníveis pelo moralismo cômico moderado. 1. Uma boa piada: essa é a piada capaz de produzir uma sensação de catarse perante a audiência. Pode ser uma piada estereotipada, inclusive pode ser uma piada má, ou seja, ela pode ter um conteúdo ultrajante e danoso. O que está em jogo para uma piada ser boa é apenas sua apreciação estética, ou seja, o impacto positivo sobre a audiência. Uma piada sobre Tradução livre de “to find the joke funny, the listener must actually share... sexista atitudes that are implied by the joke”. A generalização precipitada é uma falácia de argumentação caracterizada por dar um salto direto para a conclusão deixando de lado premissas e provas importantes. A falácia ocorre quando se apresenta uma premissa com dados muito limitados para se chegar à conclusão. Um exemplo típico dessa falácia é a tradicional conclusão de que todos os políticos são ladrões, baseado na ocorrência de um caso de corrupção que envolveu apenas alguns parlamentares. 11 12 204 Cadernos do Seminário da Pós 2015 Era só uma piada! Uma apreciação crítica a os limites do humor judeus contada dentro do quartel da SS por oficiais nazistas pode levá-los ao êxtase do divertimento, apesar de possuir um conteúdo horroroso. Para fins práticos, e como o fato da piada boa envolver parâmetros subjetivos da audiência que escapam a possibilidade da precisão do exemplo, lanço uma piada estereotípica que considero engraçada sem ser injuriosa, talvez sequer aos alvos da piada13: No balcão da Alfandega: Seu nome? Abu Abdalah Sarafi. Sexo? Quatro vezes por semana. Não, não, não! Homem ou mulher? Homem, mulher. Algumas vezes camelo. 2. Uma má piada: é aquela incapaz de produzir o riso ou outra reação de divertimento. Pode-se dizer que é uma piada defeituosa, já que não consegue produzir o efeito esperado na audiência. O entretenimento aqui também é contextual e contingente à audiência. Como exemplo especulativo há a conhecida piada porque a galinha atravessou a rua? Para chegar ao outro lado!. 3. Uma piada boa: essa é a piada que intenta produzir bom entretenimento à audiência, mas o que torna a piada boa não é o seu efetivo sucesso, mas o valor contido na intensão do humorista. Uma piada boa é aquela que tenciona fazer uma crítica à prática social reprovável ou um tabu prejudicial à comunidade. Seu objetivo, além do riso, é mais valioso: pretende produzir uma sensação de conscientização ou autocrítica sobre a audiência que captou as intenções do humorista. Como exemplo, há boa parte deste humor feita pelos membros do portal “Porta dos Fundos”. Um caso paradigmático é da esquete “Negro” (2014) que narra um boletim de ocorrência sendo lavrado por uma autoridade policial caucasiana através dos relatos da vítima também caucasiana. Apesar da insistência da vítima ao afirmar que fora assaltada por um bandido de cor branca, o policial reiteradamente questiona se o assaltante não era negro, , se não estava dirigindo o assalto com o cúmplice de cor branca, ou se não tinha qualquer traço afrodescendente. A piada é de claro conteúdo estereotípico, e seu conteúdo veicula ideologias patentemente racistas, mas a intensão do humor não era desrespeitar a comunidade Apesar da piada não mencionar explicitamente que o viajante atrapalhada é representante da cultura árabe, não é absurdo imaginar que um árabe possa achar esse tipo de piada engraçada e divertida, ou mesmo que algum comediante árabe faça humor com essa piada. Para funcionar, é arguível que tal piada também surte efeito substituindo a figura do árabe por qualquer sujeito estrangeiro de uma cultura que não se conhece a fundo, já que o estereótipo necessário para a piada funcionar não é a figura do árabe, mas de um estrangeiro cuja cultura seja bem diferente da audiência. Pode até ser o caso desse humor em específico produzir o estereótipo de que pessoas árabes são ninfomaníacas ou zoofilistas, mas não acredito que isto seja suficiente para concluir que a piada transmitiu algum tipo de preconceito capaz de causar um dano reprovável. 13 Conversações: Política, Teoria e Direito 205 Vinicius de Souza Faggion afro. O objetivo da piada era destacar a figura do preconceito sobre um estereótipo comum presente fora do humor e internalizado fora da ficção: a generalização precipitada entre negros e a criminalidade. Este tipo de humor pertence ao gênero da sátira, uma espécie caracterizada pela crítica a algum vício ou forma de comportamento humano, e que procura chamar a atenção da audiência contra tais traços prejudiciais. A sátira, através do uso constante da ironia, tem o propósito implícito de desencorajar atitudes moralmente prejudiciais encontradas na sociedade (LEBOEUF, 2007, p. 3). Portanto, sua função, mais valiosa que o próprio riso, é encorajar algum tipo de transformação social através da crítica cômica 4. Uma piada má: é a piada que pode até ser capaz de produzir divertimento em parte da audiência, mas que também produz dano aos alvos da piada por induzir uma crença falsa e prejudicial sobre a audiência. O conteúdo estereotipado reproduzido pelo humor reflete uma relação de superioridade do comediante e da audiência sobre o alvo da piada. A exemplo do filme “Borat” (2006), estrelado pelo comediante Sasha Baron Cohen, que retrata a pretensa cultura dos cazaquistanezes na figura do turista Borat que ganha a oportunidade de visitar os Estados Unidos. O malefício do humor contido na obra cinematográfica está na retratação do estereótipo do cazaquistanês como um sujeito cruel, rústico, incestuoso, anti-semita, racista e cafajeste. Borat chega a caracterizar sua irmã como a quarta prostituta mais bem ranqueada no seu país. Baron Cohen criou o estereótipo de pessoas que conheceu no sudeste da Rússia. Segundo Morreal (2005, p. 107): ao criar seu novo estereótipo dos Cazaquis, com atributos negativos geralmente atribuídos aos Russos, Cohen insultou os Cazaquis duas vezes. Ele retratou-os como se tivessem vícios que não possuem: o anti-semitismo nunca fora disseminado no Cazaquistão, muito menos a perseguição de ciganos; mulheres têm deveres iguais aos homens. E, em segundo lugar, os vícios atribuídos aos Cazaquis ele tomou de estereótipos dos seus opressores russos.14 O exemplo de “Borat” revela os danos causados pela licença satírica. A forma com que os cazaquistanezes foram retratados pode ser um Tradução livre de “In creating his new fictitious stereotype of Kazakhs, with negative features often attributed to Russians, Cohen insulted Kazakhs twice. He portrayed them as having vices they don’t have: anti-Semitism was never widespread in Kazakhstan, nor was the persecution of Gypsies; women have rights equal to men’s. And secondly, the vices he attributes to Kazakhs he took from stereotypes of their Russian oppressors.” 14 206 Cadernos do Seminário da Pós 2015 Era só uma piada! Uma apreciação crítica a os limites do humor construtor de crenças equivocadas. O filme distribuído mundialmente foi capaz de introduzir traços culturais inadequados sobre os alvos da piada, que podem ser erroneamente captados por pessoas que desconhecem a cultura cazaquistaneza. Noutras palavras, é possível que pessoas comprem a premissa do humor do filme, achem-no engraçado, mas fiquem com a impressão de que, na realidade aumentada pelo fator cômico, os cazaquistanezes realmente têm certas atitudes internalizadas em sua cultura conforme retratadas pelo filme. IV.3. Em busca de um critério para testas os limites do humor Como pôde ser observado logo acima, nem todas as instâncias de humor estereotípico são capazes de produzir algum dano que as tornem impermissíveis. Piadas dotadas de boas intenções podem utilizar o humor estereotípico para atacar alguma prática social indesejável. Logo, a categoria de humor que merece maior preocupação é dos tipos de piadas más, aquelas capazes de utilizar estereótipos somente com o objetivo de diminuir ou atacar os alvos da piada perante o público. A categoria de piadas más também reflete sobre as atitudes da audiência, capaz de internalizar costumes racistas através da recepção positiva de uma piada má. Importante esclarecer que para uma piada transmitir uma crença racista (ou mesmo sexista, ou que ofende à religião) não é condição necessária que o comediante manifeste ativamente crenças racistas, basta a expressão da piada racista inculcar atitudes que provoquem o preconceito racial (BENATAR, 1999, p. 196). Robin Tapley (2004, p. 178) indica um bom parâmetro de avaliação à categoria das piadas más. De acordo com seu raciocínio é preciso separar piadas que são moralmente reprováveis, de piadas que são somente ofensivas. As primeiras são alvo da impermissibilidade e podem ser causa de legítima retratação ou reparação de dano por parte do emissor. As segundas, apenas causam certo clamor social quanto ao conteúdo da piada. Portanto temos: a) humor moralmente reprovável, sujeito à condenação ou intervenção estatal; e, b) humor ofensivo, mas tolerável. Como caso de humor tolerável, a filósofa utiliza o exemplo da piada que compara a mulher grávida à lâmpada. Nesse caso, um moralista pode achar a piada de mau-gosto, mas condenar esse tipo de humor significa ir longe demais. Já para ilustrar o caso de humor moralmente reprovável, logo Conversações: Política, Teoria e Direito 207 Vinicius de Souza Faggion condenável, o exemplo elegido, semelhante ao caso do filme “Borat”, é uma piada étnica: “qual é a diferença entre um Indiano e uma aspirina?... A aspirina é branca e funciona [trabalha]” 15. O exemplo de Tapley é um estereótipo que contrasta a cor da etnia indiana, bem como generaliza o fato falso de que os indianos são uma etnia sem qualquer utilidade. O critério proposto ainda realça uma distinção útil proposta por Benatar (1999, p. 196), entre piadas racistas ou sexistas contra piadas raciais ou sobre gênero. As primeiras são reprimíveis, enquanto as segundas são toleráveis. A distinção se adapta, respectivamente aos parâmetros a) e b) trabalhados. Portanto, piadas que transmitem atitudes preconceituosas sobre a audiência, são moralmente reprováveis e condenáveis; e piadas que transmitem conteúdo estereotípico racial ou sobre gênero são ofensivas e toleráveis, mesmo que tenham gosto moral duvidoso16. A distinção entre piadas moralmente reprováveis e moralmente toleráveis pode parecer uma linha contínua, na qual não é possível traçar uma distinção precisa. Porém Tapley (2004, p. 188), ainda destaca o potencial de o humor desumanizar ou degradar o alvo da piada ou parte da audiência como elemento de contraste entre a) e b): Para falhar ao teste de padrões da comunidade, algo deve ser mais do que ofensivo. Ofensividade é tolerável. Devemos permitir certas classes de atitudes, expressões e estilos de vida de modo a se ter uma sociedade pluralista, livre e diversa. Mera ofensa não falhará os padrões de teste da comunidade. Entretanto, desumanizar, ou degradar, é falhar ao teste de padrões da comunidade. É intolerável à nossa comunidade, que valoriza a diversidade, a igualdade e a dignidade humana, retratar certos membros como menos que humanos, ou como menos merecedores de Tradução livre de: “What’s the difference between an Indian and an aspirin?... The aspirin is White, and it works!” (TAPLEY, 2004, p. 185). 16 Dessa distinção, não se segue que piadas do segundo tipo nunca sejam capazes de induzir preconceito. Por exemplo, imagine a hipótese de um humorista contar uma série de piadas étnicas. Todas têm como alvo apenas o estereótipo dos afrodescendentes e visam desprestigiar a pequena plateia afrodescendente que está acompanhando o espetáculo. É arguível que as piadas em sequência sejam ofensivas a ponto de indicar a incitação do racismo pelo comediante. Se, ao invés de disso, o humorista tivesse feito humor contra variados grupos étnicos da plateia e da sociedade, as piadas étnicas contadas não produziriam intenções racistas sujeitas à repreensão. Esse exemplo revela ao menos uma hipótese na qual piadas étnicas, toleráveis por não conterem conteúdo racista, são capazes de ultrapassar o limite de tolerância, por transmitirem atitudes racistas capazes de degradar, caso o alvo da piada seja constantemente retratado. Esse caso é semelhante à prática do bullying escolar, que só é identificado mediante reiteradas provocações a um alvo específico. 15 208 Cadernos do Seminário da Pós 2015 Era só uma piada! Uma apreciação crítica a os limites do humor direitos humanos básicos e liberdades expressas na Constituição.17 Portanto diferença em a) e b) não é mera gradação, mas uma distinção de tipo ou qualitativa. Nessa linha de ideias, a filósofa também propõe uma classificação de piadas moralmente objetáveis, para casos nos quais o humor ultrapassa os limites da tolerância. Há piadas impermissíveis quando: “uma pessoa num grupo dominante, publica e intencionalmente mira alguma pessoa ou grupo que se encontra em uma posição social subordinada de um modo que degrada ou desumaniza aquela pessoa ou grupo” 18 19 (TAPLEY, p. 180). Pode-se notar também que o padrão de avaliação trabalhado é consistente com a teoria sobre o humor da superioridade. Sendo assim, o humor estereotípico é moralmente reprovável e produz dano tipicamente quando o alvo da piada é pessoa ou grupo minoritário. O critério deve ser este, pois estereótipos perpetuados por piadas são mais reprováveis quando eles atingem pessoas às quais faltam poder e status, e quando esses estereótipos são parte de um sistema social que os marginaliza e tenta colocá-los no seu devido lugar. A vantagem desse padrão é de não conceder inadvertidamente liberdade de expressão tão ampla ao exercício cômico, como se o humor tivesse um salvo conduto maior que outras formas de discurso e fosse imune a qualquer tipo de reprovação moral. Tradução livre de: “to fail the community standards test, something must be more than offensive. Offensiveness is tolerable. We have to allow a certain range of attitudes, expressions and lifestyles in order to be a diverse, free, pluralistic society. Mere offense will not fail the community standards. However, to dehumanize, or to degrede is to fail the community standards test. It is intolerable in our community, which values diversity and equality and human dignity, to depict certain members as less than human, or as less worthy of the basic human rights and freedoms expressed in the Charter.” 18 Alguém poderia contra argumentar, por oposição, que a relação de dominância não funciona, pois seria possível de se fazer piadas moralmente reprováveis também contra sujeitos de um grupo dominante e causar algum tipo de degradação a tal membro. Acredito que a objeção até é plausível, mas não vejo como ela é capaz de efetivamente produzir um dano. Lyttle (2010), por exemplo, acredita que piadas sobre membros da igreja pedófilos ou advogados dificilmente sofrem censura ética. O uso de estereótipos de sujeitos ocupando posições dominantes surge como uma espécie de “jogo limpo” praticado pelos humoristas que aproveitam de uma posição social privilegiada do alvo da piada para fazer humor. Morreall (2005, p. 109) chega a ser até mais enfático, ao considerar o caso de piadas dirigidas aos advogados. Acredita que dificilmente o estereótipo atribuído aos advogados no humor provoca o mau tratamento, insulto ou decadência da classe dos juristas. Até mesmo advogados parecem aprovar ou mesmo tolerar o humor feito contra sua profissão. o estereótipo aplicado sobre esse exemplo não visa desumanizar ou degradar a classe dos juristas, ressaltam um estereótipo que, apesar da valência negativa não é suficiente para causar uma lesão. O mesmo pode ser dito sobre outros estereótipos comuns em anedotas como é o caso dos portugueses ou das loiras. 19 Tradução livre de “a person in a dominant social position, publicly and intentionally targets some person or group who is in a subordinate social position in a way that degrades or dehumanizes that person or group”. 17 Conversações: Política, Teoria e Direito 209 Vinicius de Souza Faggion V. Submetendo o critério a um teste prático Por fim, após ter discutido várias questões sobre a ética do humor que repercutem na avaliação da permissibilidade moral de piadas e esquetes humorísticos e ter apresentado um critério razoável para a detecção do humor danoso, demonstrarei como o uso do parâmetro apontado pode ser útil para avaliar a pertinência da intervenção jurídica do Estado no julgamento de hipóteses de humor lesivo. Foi escolhida uma ação judicial, cujo teor apresenta casos na fronteira dos limites ao humor. Apresentarei um relato breve do caso, mencionando os tipos de humor abordados, bem como a linha de raciocínio seguida pelo juiz para proferir seu veredito. Em sequência avaliarei o grau de reprovabilidade das piadas mencionadas segundo o critério proposto, bem como o posicionamento do magistrado segundo as teses éticas do humor estudadas. A seguir, o caso, as piadas, e as opiniões: O caso selecionado foi da Ação Civil Pública Nº 0100503-06, do TJ-SP julgada em 2012 pelo Juíz de Direito Tom Alexandre Brandão, proposta pela Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais, a APAE de São Paulo, contra o humorista Rafael Bastos. O objeto da ação foi uma piada feita pelo comediante no show de stand-up “A Arte do Insulto” comercializado em “DVD”. A esquete faz referência aos deficientes mentais acolhidos pela instituição, conforme representada no acórdão: “um tempo atrás eu usei um preservativo com efeito retardante... efeito retardante... retardou... retardou... retardou... tive que internar meu pinto na APAE... tá completamente retardado hoje em dia... eu tiro ele pra fora e ele (grunhidos ininteligíveis)”. A alegação da autora é de que o réu atingiu violentamente a dignidade daqueles que suportam a realidade dura e triste causada pela deficiência. Como punição, requereu indenização pelos prejuízos causados à imagem da associação, no valor de R$ 10.000,00 para cada associado da APAE que se habilitar à favor do dano, bem como recolhimento do DVD ou a retirada da menção à APAE. Já o autor, em contestação argumentou que o humor é protegido constitucionalmente pela liberdade de expressão e não é sujeito à censura ou repressão, o único objetivo é o animus jocandi, a diversão. No julgamento do mérito da ação, o magistrado Tom Alexandre Brandão, ainda fez menção a outro caso polêmico, envolvendo outro humorista do stand-up comedy Danilo Gentilli. Apesar de não ter chegado à justiça, o 210 Cadernos do Seminário da Pós 2015 Era só uma piada! Uma apreciação crítica a os limites do humor caso repercutiu longamente na mídia e provocou discussões sobre a imposição de limitações à atividade cômica. Envolveu uma sátira feita pelo comediante em tom crítico à população elitizada do bairro de Higienópolis, cuja maioria dos moradores fazem parte de comunidade judaica, que supostamente era contrária à estação metroviária no bairro, pois não desejavam que fosse frequentado por classes sociais desqualificadas. A piada foi a seguinte: “entendo os velhos de Higienópolis temerem o metrô. A última vez que eles chegaram perto de um vagão foram parar em Auschwitz”. O Exmo. Magistrado avaliou as duas piadas como permissíveis, e não indicou que quaisquer uma delas como moralmente reprováveis ou sujeitáveis à intervenção estatal na liberdade de expressão dos humoristas, consequentemente o réu foi absolvido. Durante a sentença manifestou-se ser i) “tormentoso estabelecer critérios científicos para definir e identificar o humor”; ainda que ii) “qualquer pessoa tem capacidade de discernir, com um pouco de boa vontade e um mínimo de inteligência, o que é uma manifestação humorística, distinguindo-a de uma simples opinião”; também considera que iii) “no aspecto jurídico, a expressão humorística deve ser respeitada num grau extremamente elástico, independentemente do tipo, da qualidade e, inclusive, do assunto tratado”; por fim afirma que iv) qualquer piada, desde a mais singela possível, pode dar azo a uma interpretação cruel. Ora, quem brinca dizendo que ‘mulher no volante, perigo constante’ (minha avó fazia essa brincadeira!) pode ser tachado de machista, sexista, insensível à igualdade dos sexos, às conquistas das mulheres nas últimas décadas etc. Tudo isso para dizer que uma piada é, afinal, apenas uma piada. Simples manifestação cultural, um costume social, um atributo da inteligência humana. Antes de avaliar as piadas, começo pelo posicionamento do magistrado. A princípio o juiz indica em i) ser tarefa árdua fixar um padrão de avaliação ao humor, e em ii) sugere que a opinião pública consegue distinguir um contexto do humor de mera expressão de opinião. A conjugação de i) e ii) sugere que o magistrado não considera ser incumbência do seu papel analisar criticamente o teor de exercícios cômicos. Também seu padrão de julgamento indica que o juiz não considera a hipótese de uma manifestação humorística ser capaz de provocar algum dano. Porém essa não soa uma boa estratégia, pois, ao longo do artigo, demonstrou-se como tipos de humor, mesmo manifestos em situações que causam riso e diversão produzem resultados degradantes aos alvos da piada. Desse modo, o juiz corre elevado risco Conversações: Política, Teoria e Direito 211 Vinicius de Souza Faggion de não condenar instâncias de humor potencialmente preconceituosas. Já as declarações iii) e iv) me parecem qualificar o juiz como defensor de uma postura amoralista do humor, considerando-o como um domínio moralmente indiscutível. Mas, se essa dedução estiver correta, questiono como o juiz conseguirá efetivamente julgar a permissibilidade dos casos de humor relacionados na ação se considera o humor um tipo de atividade afastada de julgamentos normativos. A impressão que fica é de que o juiz não desafia de frente todas as vias argumentativas que o mérito do caso levanta, por exemplo, a hipótese plausível de uma manifestação, ainda que humorística, ser capaz de produzir dano. Portanto, evidenciase que o juiz não adotou um critério razoável para a avaliação do caso. O único posicionamento valioso está em iv), sobre risco da sensibilidade exagerada ao humor gerar um moralismo cômico forte taxando várias formas inofensivas de humor como predisposições ao preconceito. Agora, avalio criticamente cada piada presente no acórdão: A primeira, na qual Rafael Bastos fez alusão ao preservativo masculino associando-o à pessoas detentoras de deficiência mental, não soa ser tipo de piada danosa. Acredito que essa piada possa ter defeitos estéticos, ou seja, ser má piada, pouco engraçada aos padrões de muitas audiências, pois sua linguagem e tema de apelo sexual podem ser de mau gosto. Bem mais árduo é considerar que a piada degradou a condição dos deficientes mentais. Os associados da APAE não foram diretamente atacados e o comediante não utilizou sua posição de superioridade para tratar o alvo como menos merecedor de direitos humanos básicos conforme a discutido por Tapley (2009). Tal piada tem certas semelhanças à piada feita entre a gestante e a lâmpada, cuja produção do humor não se dá pela manifestação do preconceito, mas pelo jogo de palavras entre o “efeito retardante” do preservativo e a generalização estereotípica de que associados da APAE são portadores de algum tipo de “retardo mental” comparação, infelizmente, de extremo mal gosto, mas tolerável. É piada com teor sexual e estereotípico, mas não piada de preconceito. Já a segunda piada, foi uma sátira má-sucedida de Danilo Gentilli contra a comunidade judaica. Ao contrário da opinião manifesta pelo magistrado, que a comparou à primeira quanto a reprovabilidade, esta piada pode ser atribuível dentre formas lesivas, portanto, moralmente condenáveis. A ofensividade se manifesta no potencial que a piada possui de degradar e diminuir o grupo judeu à vitimização sofrida pelo holocausto. 212 Cadernos do Seminário da Pós 2015 Era só uma piada! Uma apreciação crítica a os limites do humor Além disso, a piada feita pelo humorista foi direcionada em reprimenda aos residentes do Bairro Higienópolis, noutras palavras, o humor possuía um alvo determinado. Mesmo que o comediante não tenha intenção ou pregue algum tipo de ideologia anti-semita, a piada teve por objeto um tema de traços racistas. Conforme exposto, piadas más, de conteúdo racista, não necessariamente carecem de dados contextuais que comprovem intensão dirigida ao preconceito. Uma forma de tentar salvar tal piada da reprovação moral seria enquadrá-la na categoria das piadas boas proposta, ou seja, o gênero da sátira. Porém é um tanto implausível sustentar essa hipótese para a piada de Gentilli, já que não há qualquer benefício discutir o tabu social do elitismo das classes sociais de um bairro de classe média-alta com uma piada dirigida à degradação de judeus. Muito menos a alusão ao holocausto parece ter a intenção de fazer crítica ao preconceito direcionado aos judeus. Portanto, a piada de Gentilli foi uma má piada, uma tentativa fracassada de satirizar um preconceito ,que acabou por produzir mais uma fonte de preconceito. Em síntese, o teste prático do critério sobre os limites ao humor demonstrou ser possível submeter tipos de humor à uma avaliação dos limites éticos de sua expressão, ao contrário do que foi professado pelo julgador responsável. Acredito que essa modo de deliberar é a forma mais razoável e honesta para abordar o problema, pois não torna o exercício cômico incólume ao julgamento moral com a escusa do animus jocandi, na mesma medida que não restringe seu exercício por ideais moralistas extremamente sensíveis. Conclusão O estudo feito sobre os limites morais do humor chegou a algumas conclusões importantes. Primeiro, que o tipo de humor que causa maior potencialidade de dano sobre o alvo da piada, à audiência, e à opinião pública – o humor estereotípico – não vem viciado de origem pelo simples fato da piada ter conteúdo sexual, étnico ou contrário à religião. Se alguém condena toda e qualquer forma de humor, então, provavelmente é um moralista forte ou obstinado, mantenedor de postura excessivamente radical e implausível. Os vícios do moralista cômico são duplos: a) ou seu conservadorismo o torna insensível para distinguir piadas que utilizam generalizações estereotípicas, cujo efeito cômico sequer tem a intensão de atacar o alvo da piada; ou b) sua Conversações: Política, Teoria e Direito 213 Vinicius de Souza Faggion convicção moral torna opaca a diferença entre casos de piadas estereotípicas imorais, mas toleráveis (casos de piadas que criticam o preconceito real ou que fazem humor sobre um grupo dominante), e moralmente reprováveis, logo, alvos de reprimenda (casos de piadas estereotípicas que atingem e estigmatizam pessoas ou grupos sociais em posição de fragilidade). Segundo, que nem todo humor que utiliza estereótipos é nocivo. Muito pelo contrário, esse tipo de humor (representado pela categoria das piadas boas) é uma ferramenta valiosa na mão de humoristas conscientes, que podem empregálo para atacar a própria propagação de estereótipos fora do domínio cômico. Terceiro, que no outro extremo, a dos comediantes amoralistas, a desculpa “foi só uma piada! Não era para ser levado a sério” é uma justificativa vazia incapaz de servir de escusa para casos em que há lesão produzida pelo humor. Por fim, pôde-se demonstrar através da análise de uma decisão judicial, que o critério para a avaliação moral do humor é uma ferramenta útil para decidir se a intervenção estatal é necessária para condenar certos tipos de humor lesivo. Também se provou que o padrão de decisão que não considera a hipótese de o humor ser sancionável é errônea, pois insiste na a justificativa “foi só uma piada”. Desse modo, a conclusão ainda mantém a expressão do humor como uma atividade prima facie boa e valiosa. O humor tem muitas características positivas que acabam desaparecendo em uma análise sobre suas limitações. Pode ser empregado para cutucar a ostentação e a pomposidade, suavizar os ânimos, e ajudar às pessoas enfrentarem suas ansiedades, medos e fobias (BENATAR, 2014, p. 35). Caso fosse censurado rígida ou previamente, apesar de atacar o humor lesivo em sua raiz, o risco seria levar consigo sementes de um humor sadio. A condenação ferrenha ao humor seguramente destruiria o timing de muitas piadas inteligentes e a criatividade de muitos comediantes, muitas risadas sadias seriam perdidas no processo. Referências bibliográficas ATKINSON defends right to offend. Disponível em: http://www.telegraph. co.uk/education/3348850/Atkinson-defends-right-to-offend.html Acesso em: 12 nov. 2014. BENATAR, David. Prejudice in Jest: Racial and Gender Humor. In: 214 Cadernos do Seminário da Pós 2015 Era só uma piada! Uma apreciação crítica a os limites do humor Public Affairs Quarterly, v. 13, n. 2, abr. 1999, p. 191-203. Disponível em: http://www.jstor.org/stable/40441225. Acesso em: 13 jul. 2015. 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