o sublime e o mito no ciberespaço e suas consequências

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o sublime e o mito no ciberespaço e suas consequências
CAMBIASSU – EDIÇÃO ELETRÔNICA
Revista Científica do Departamento de Comunicação Social da
Universidade Federal do Maranhão - UFMA - ISSN 2176 - 5111
São Luís - MA, Janeiro/Dezembro de 2010 - Ano XIX - Nº 7
O SUBLIME E O MITO NO CIBERESPAÇO E
SUAS CONSEQUÊNCIAS NO JORNALISMO.
Ludimila Santos Matos. Jornalista. Mestranda do Programa de PósGraduação em Comunicação da Pontifícia Universidade Católica do Rio
de Janeiro – PUC-Rio. Especialista em Telejornalismo pela Universidade
Estácio de Sá do Rio de Janeiro - UNESA.
RESUMO: O presente estudo foca-se numa análise sobre os mitos que circundam a Internet e
o Ciberespaço, observando as conseqüências dessa nova configuração nas práticas
jornalísticas. Para tal utiliza-se recente estudo elaborado pelo autor da Economia Política da
Comunicação, Vincent Mosco, num esforço para desmistificar a democracia eletrônica.
Aborda também a transformação desse espaço em commodity sob a luz da Web 2.0 e dos
produtos multimídia e transmídia. Finalmente, exemplifica, por meio do trabalho de Virgínia
Pedralina mudanças visualizadas nas rotinas de produção e nas relações de trabalho a partir da
informatização do jornalismo.
ABSTRACT: This study focuses on an analysis of the myths surrounding the Internet and
Cyberspace, observing the consequences of this new configuration in journalistic practices.
For such uses recent study by the author of the Political Economy of Communication, Vincent
Mosco, in an effort to demystify the electronic democracy. It also discusses the
transformation of that space into a commodity under the light of Web 2.0 and multimedia
products and transmedia. Finally, exemplifies, through the work of Virginia Pedralina
changes seen in the routines of production and labor relations from the computerization of
journalism.
PALVRAS-CHAVE: Jornalismo; Ciberespaço; Mito; Economia Política da Comunicação.
KEY-WORDS: Journalism; Ciberspace; Myth; Political Economy of Communication.
The Digital Sublime
Na década de 1990, a partir da popularização da Internet, o computador conectado à
rede torna-se o ícone mais representativo da tão almejada democratização da informação e da
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comunicação, simbolizando mudanças revolucionárias nas formas de produção e distribuição
dos mais diversos conteúdos midiáticos. As novas tecnologias fincam lugar no imaginário
geral como sinônimo de evoluções e transformações positivas e modernas, atuais. Desta
forma poucos espaços se destinam a críticas ou análises mais diversificadas à cerca da
digitalização de tudo, seja na Academia ou no senso comum, passando despercebida a
utilização dessas tais tecnologias como mais uma ferramenta da industrialização da
informação.
O presente artigo toma por base inicial o trabalho elaborado por Vincent Mosco, The
Digital Sublime, no qual o autor intui desmistificar a democracia eletrônica sugerida pelo
cenário digital. Como assistente de pesquisa de Daniel Bell, Mosco observou como o
surgimento de uma nova tecnologia está sempre submerso em crenças de mudanças
revolucionárias “both for better and for worse” (MOSCO, 2007, p.2). O teórico concentrou-se
na tecnologia da TV a cabo, “which many people were taking seriously as a potential
successor to radio and broadcast television. Cable TV (…) had the potential to connect
people like no other technology” (2007, p.2), gerando uma sociedade governada pela
Democracia Eletrônica.
Para Mosco, cada nova tecnologia inaugurada traz consigo algo de sublime. Assim
como uma nova Era inicia-se com o surgimento de uma tecnologia nova. O teórico
exemplifica que as sociedades já vivenciaram a “Era do Telégrafo”, “Era da Eletricidade”,
“Era do Telefone”, “Era do Rádio”, “Era da Televisão” e, hoje, finalmente, vivencia a “Era do
Computador”. No entanto, com a popularização de cada uma dessas tecnologias, elas deixam
de ser novidades, “enter the realm of the commonplace and the banal. They no longer inspire
visions of social transformation. They are no longer sublime”(MOSCO, 2007, p.2). O autor
foca-se em desmistificar que a comunicação possibilitada pelo computador faria com que os
seres humanos experimentassem transcender o tempo (“the end of history”), o espaço (“the
end of geography”), e o poder institucionalizado (“the end of politics”). Desta forma, o autor
define mito como
(...)stories that animate individuals and societies by providing paths to transcendence that
lift people out of banality of everyday life. They offer an entrance to another reality, a reality
once characterized by the promise of the sublime. (MOSCO, 2007, p.3).
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O ciberespaço, cujo Mosco considera como um espaço mítico que transcende o banal
no dia-a-dia, toma corpo como centro dos mitos na cultura moderna “to create a vision or
dream what cannot be realized in pratice” (2007, p.14). O espaço cibernético vem envolto em
várias camadas de mitos cintilantes e encantadores: democracia eletrônica, democracia na
produção de conteúdos midiáticos, convergência das novas mídias, interatividade, fim das
fronteiras geográficas, transmídia, mudanças de papel entre emissor e receptor, inclusão social
por meio da inclusão digital, entre tantos outros. A redenção do mundo parece estar localizada
no ambiente digital conectado às redes. Como se no ciberespaço os seres humanos
adquirissem super-poderes capazes de eliminar as barreiras do tempo, da geografia e do
espaço concreto; de forma que pudessem comportar-se e agir como se nesse lugar não
houvesse lei, poderes institucionalizados, regras a obedecer ou punições a temer.
Muitos chamariam Mosco de conspirador pessimista. Seguindo em direção
semelhante, Niel Postman já havia alertado que as tecnologias também possuem sua carga de
consequências negativas às dinâmicas sociais e comportamentos individuais. O intuito aqui
não é, no entanto, construir um pensamento que desconsidere as possibilidades abertas pela
Internet, porém, há um esforço significativo de diversos autores de Cibercultura em não
abordar os traços mais desconfortáveis de uma pretensa teoria dessas novas tecnologias,
esforço em desconsiderar que tais novas tecnologias podem não ser exatamente o que o
conceito de “novo” engloba.
Em Tecnopólio: a rendição da cultura à tecnologia (1994), Postman trata como as
sociedades e as culturas se alteram em função das tecnologias, e define o neologismo
“Tecnopólio” como um estado de cultura. Para ele, este estado de cultura “procura sua
autorização na tecnologia, encontra sua satisfação na tecnologia e obedece à tecnologia”
(1994, p.79). O autor também acredita que as tecnologias não são neutras, sendo, deste modo,
geradas para executar papéis específicos, que tomam forma a partir do momento em que seu
criador as considera prontas. O que define a função de uma tecnologia é a forma como esta é
utilizada, independentemente do objetivo que incitou sua elaboração. Para Postman as
tecnologias têm ideologias associadas a todos os aspectos que a constituem, posto isto, à
medida que esta é aceita – ou constituída - como algo intrínseco à sociedade moderna
permite-se a abertura para “um conjunto de suposições, das quais mal temos consciência, mas
que ainda assim dirigem nossos esforços para dar forma e consistência ao mundo”
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(POSTMAN, 1994, p.129), afirmação que remonta ao que Mosco estabelece como função dos
mitos.
Enquanto Mosco situa the end of Power como mito, Postman sugere que estaria
apenas constituindo-se outro poder, não a inclusão digital ou a democracia eletrônica já que
“aqueles que têm o controle do funcionamento de uma tecnologia particular acumulam poder
e, de maneira inevitável, formam uma espécie de conspiração contra aqueles que não têm
acesso ao conhecimento especializado” (POSTMAN, 1994,p.19). Apresentam-se, então,
algumas questões proeminentes: Quem tem o controle do funcionamento dessa tecnologia
COMPUTADOR+INTERNET? Quem acumula poder no panorama da digitalização de todas
as coisas? Quem não tem acesso ao conhecimento especializado? Neste estudo interessa
particularmente: Quem acumula poder no panorama da digitalização das informações
jornalísticas? Qual o interesse das empresas de jornalismo num cenário multimídia, ou
transmídia? A “participação” publicizada por essas empresas é palpável? Há, efetivamente,
um esforço em democratizar as lógicas de produção tradicionais?
WEB 2.0, Multimídia/Transmídia e Participação/Interação: as novas commodities
Num cenário onde tudo pode ser transformado em mercadoria, com a rede e suas
largas possibilidades o caminho não seria inverso. A Internet, sob o modelo da Web 2.0, vem
modificando, reconfigurando – ou até desconstruindo - papéis e práticas sociais, até então,
bem delineados. É relevante, no entanto, compreender como a “informação” adquiriu valor de
mercado. Para tal, este trabalho utiliza estudo desenvolvido por Dan Schiller, pesquisador
americano, que organizou de forma cronológica alguns aspectos que teriam contribuído para
uma comodificação52 da informação. É possível entender que, para este autor, o fator
principal da transformação da informação em mercadoria estaria nas primeiras definições
sobre seu conceito, passível de constante transformação até suas definições mais
contemporâneas.
As late as 1933, the Oxford English Dictionary gave no hint of the profound shifts
beginning to occur in the conceptualization of information. The dictionary revealed only
that “information” had been in currency in English since Chaucer, when it denoted an
item of training or an instruction, and that the word then accrued several additional
52
O autor utiliza amplamente o termo inglês commodification, que optou-se aqui por traduzir, literalemente, como “comodificação”.
Norman Fairclough (2000), utiliza comodificação para designar a mercantilização de todas as coisas.
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meanings: an idea, the communication of news, or a complaint against a person
represented in court. (SCHILLER, 2007, p.4)53
De acordo com o texto de Schiller, os estudiosos que desenvolveram a Teoria
Matemática da Informação, no final dos anos 1940 e início dos 1950, tentaram desenvolver
soluções para um transporte eficiente, e a baixo custo, de informações nos canais de
transmissão. Assim, “they had forced a radical break with these past usages” (SCHILLER,
2007, p.4), alegando, também, ser possível precisar a quantidade de informação dentro de um
sistema. Apesar da novidade dos novos usos para “informação”, a Teoria proposta pelos
matemáticos e engenheiros não podia ser facilmente aplicada aos processos de interação
social, em uma simples transposição para outro objeto. Para o autor, determinar o que é um
“sistema” sempre foi alvo de dificuldades para os estudiosos que se propuseram a tal feito.
Neste caso específico a aplicabilidade do modelo matemático aos estudos sociológicos era um
problema que adquiria maior proporção, uma vez que as sociedades se apresentam como
“sistemas extremamente complexos”.
Posteriormente os teóricos pós-industrialistas das décadas de 60 e 70, – momento no qual
identifica-se uma sociedade pós-industrial emergente - tentaram “to elucidate a social
framework for information”(SCHILLER, 2007, p.6). Para esta corrente, ainda de acordo com
Schiller (2007, p.6), “the new ‘intellectual’technologies – above all, the computer – were
dramatically discontinuous with earlier systems of information processing and control”,
localizando as novas tecnologias no centro dessa sociedade que surgia. Finalmente, o pósindustrialistas argumentavam que
information itself had become the transforming resource of social organization (...)
The postindustrial society broke with and transcendend the Elemental relations –
including, most crucially, the opposition between capital and labor – that had shaped
its antecedent. Knowledge was supplanting capital and labor as the decisive factor of
production. (SCHILLER, 2007, p.6)54
53
“Ainda em 1933, o Dicionário Oxford de Inglês não fez nenhuma alusão às mudanças profundas nas conceituações de informação que
começavam a aparecer. O dicionário revelou apenas que "informação" constava em Inglês desde Chaucer, quando indicava um item de
formação ou de uma instrução, e que a palavra em seguida acumulou vários significados complementares: uma idéia, a comunicação da
notícia, ou uma queixa contra uma pessoa representada em juízo”. (SCHILLER, 2007, p.4)
54
A informação tornou-se, por si só a fonte de transformação da organização social (...) A sociedade pós-industrial rompeu e transcendeu
as relações elementares – incluindo, mais crucialmente, a oposição entre capital e força de trabalho – que deu forma à sociedade
antecedente. O conhecimento estava suplantando o capital e a força de trabalho como o fator decisivo da produção.
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Para Schiller, os pós-industrialistas deixaram algumas lacunas em seus estudos,
propositalmente. Por exemplo, o grave dano econômico causado pela guerra contra o Vietnã
não é abordado, ou citado, assim como a transnacionalização. De acordo com o autor, foi
necessário romper as ligações com o passado, e as novas tecnologias se encaixaram como a
ferramenta que os Estados Unidos precisavam para instaurar um novo sentimento na nação
para a implementação de outra dinâmica para o mercado econômico. A “informação” torna-se
o ponto central de uma renovada teoria da economia, especialmente a partir da II Guerra
Mundial.
Os contrapontos propostos por Schiller são dotados de argumentos eficientes. Os pósindustrialistas previram mudanças que desencadeariam na sociedade e na era da informação.
Tais aspectos observados por estes últimos estudiosos são identificados de forma mais
evidente a partir do computador e das transformações sociais iniciadas com a popularização
deste. Para o estudo proposto neste trabalho, é de importância basilar retomar uma
constatação dos teóricos do pós-industrialismo: a substituição da força de trabalho pelo
conhecimento e a instituição deste como centro da nova lei econômica que emerge. Ao
observar que a Internet - núcleo do que aqui se define como segundo momento das novas
tecnologias (é a válvula propulsora de uma nova dinâmica da economia, o mercado digital) - e
que esta constitui-se no fluxo contínuo de informações em bits por meio de redes telemáticas,
situando-se como continente sinequanon da sociedade do conhecimento, atualmente está
situada como mais um canal de produção e distribuição de commodities informacionais.
“O ano de 2001 é considerado o marco do boom ponto-com e não seu colapso, como
muitos previriam”, é o que diz Tim O`Reilley, exatamente contrário a Mosco, para quem
“between the first quarter of 2001 and the second quarter of 2002, Silicon Valley lost 127,000
jobs (...). Software, computer hardware, and semiconductor firms lost 22 percent of their jobs
over the same period” (2007, p.5) . Porém, a O`Reilley Media55, em parceria com a MediaLive
International, intuíam ser o momento de investir em produtos para a Web e inauguraram o
termo Web 2.0 numa conferência interna, cujo objetivo era pensar tais produtos. Desta forma,
ao observar o modo como o termo foi disseminado, é possível compreendê-lo, erroneamente,
como uma atualização de software, uma nova versão, um update da própria Internet e seus
55
Produtora de mídia e editora Americana. Publica livros e websites.
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fluxos de troca de informação. No entanto, é necessário delimitar o que define a denominada
segunda geração da rede.
De acordo com O`Reilley (2007), “A Web como uma plataforma” seria o princípio
norteador desse novo conceito. Esta seria o “Sol gravitacional de um sistema de sites”, cujas
competências centrais remontam aos seguintes aspectos, ainda abordando O`Reilley (2007):
1- A Web como um ambiente de serviços, não mais baseada na distribuição de “softwares
empacotados”; 2- lógica de funcionamento e manutenção baseada na “arquitetura da
participação” do usuário; 3- fonte e transformação de dados remixáveis, re-editáveis; 4Software em dispositivos múltiplos e; 5- aplicação da “inteligência coletiva”. O autor cita
ainda o Google como exemplo de ferramenta típica da plataforma Web 2.0 que, desde sua
criação foi oferecida como um serviço,
Nenhuma das armadilhas da velha indústria de software estava presente. Não havia prazos
marcados para o lançamento de software, apenas contínuos aperfeiçoamentos. Nada de
licenças ou vendas, apenas uso. (...) O serviço do Google não é um servidor, nem um
navegador. Nem o serviço de busca que é seu carro-chefe sequer hospeda o conteúdo que
permite seu cliente encontrar. Muito parecido com um telefonema, que acontece não apenas
nos aparelhos em cada extremo da ligação, mas na rede entre eles, o Google acontece no
espaço entre navegador e ferramenta de busca, e o servidor de conteúdo de destino, como
um possibilitador ou intermediário entre o(a) usuário(a) e a sua experiência on line.
(O`REILLEY, 2007, p.5)
O exemplo de O`Reilley é deslumbrante, hipnótico e simplista. Henrique Antoun,
porém, chama atenção para o início do movimento Web 2.0 “onde publicitários, marketeiros e
empreendedores pensam a internet como um lugar capaz de revolucionar a publicidade, o
marketing e os negócios” (Levine, Locke, Searls & Weinberger IN ANTOUN, 2008, p.19)
que, de acordo com estes estariam desgastadas pela mídia de massa e “seu modelo caro”
(ANTOUN, 2008, p.19). As possibilidades de interação e participação na rede são
transformadas em filão no mercado midiático; os produtos multimídia – ou transmídia –
contribuem para a manutenção de um poder já constituído, efeito contrário ao que previram os
publicitários, marketeiros e empreendedores. A mídia de massa está simplesmente
transferindo seus produtos para esta nova plataforma e reconfigurando – para o bem, ou para
o mal – os tradicionais padrões de produção midiática.
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Jornalismo e Novas Tecnologias
Na década de 90, a digitalização das redações surge “embrulhada” no mito da
modernização. Logo em seguida, com a disseminação da Internet, com a popularização da
banda larga e barateamento de equipamentos de informática paralelamente à migração dos
conteúdos de mídia para o ambiente da rede através dos produtos multimídia, tornou-se lugar
comum propagar um discurso no qual é possível aglutinar mídia impressa e mídia digital,
televisão e internet; o jornalismo transforma-se em jornalismo colaborativo e assim
sucessivamente. Utilizando aqui uma expressão de Henrique Antoun, “poderíamos nos
entregar cegamente a essa interpretação”, e à magia sublime desse novo meio de distribuição
de conteúdo.
Num esforço pela desmistificação do paraíso digital, Virgínia Pradelina realizou
estudo no conglomerado de mídia RBS, uma das pioneiras na implantação de novos conceitos
a partir da busca por um padrão multimídia. A pesquisadora identificou mudanças
organizacionais, estruturais, de produção e do trabalho jornalístico. O estudo é concentrado na
mídia impressa, porém, os aspectos mais gerais de outras mídias desse mesmo grupo também
foram abrangidos.
Segundo as constatações de Pradelina, a primeira grande transformação teria sido a
informatização das redações, mudança esta que está diretamente relacionada à mudança para
um modelo flexível na organização do trabalho e na produção (PRADELINA, 2008, p.220).
A partir dessa nova tecnologia – a implantação do software C-Text – foi possível gerenciar
texto, fotos e gráficos entre os vários núcleos de produção da RBS. A corrida do
conglomerado em instituir um ambiente multimídia nas redações não estava relacionado às
possibilidades de democratização eletrônica. O produto jornalístico definido pela autora foi o
jornal impresso Zero Hora, pertencente ao grupo. Pradelina observou que
as novas tecnologias de comunicação e de informação, assim como a reorganização do
trabalho, são implantadas em Zero Hora com o objetivo de aumentar os lucros da empresa, e
isso se manifesta fundamentalmente: a) na aceleração e no aprofundamento da convergência
entre mídias; b) na compressão do tempo; c) na redução de custos de produção. (2008,
p.230)
Em 2003, em função da substituição do C-Text pelo News2000 fica mais visível a
migração do jornalismo para um padrão multimídia que vem a obedecer aos três quesitos
apontados pela autora como objetivos da reorganização do trabalho. As praticidades
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permitidas pela adoção do novo software “permite a um mesmo profissional a realização
simultânea de muitas tarefas antes fragmentadas na extensa ‘linha de produção’”
(PRADELINA, 2008, p.230). Desta forma, reduz-se o tempo destinado à produção de
conteúdos jornalísticos, exige-se do profissional conhecimentos técnicos antes destinados a
outras áreas – a exemplo da diagramação -, exige-se do profissional capacidade multimídia
sem que este passe a receber mais pelo acúmulo de funções que lhe acometem, reduzindo
custos, aumentando lucros.
Ainda sem mencionar a nova dinâmica de distribuição na qual o mesmo conteúdo que
vai ao ar no rádio é postado na rede; o mesmo texto que é impresso no jornal é postado no site
do veículo; o mesmo telejornal apresentado na TV está disponível on-line. Afinal, o que há de
novo na Internet? Sua carga de sublime está simplesmente em trocar os móveis de lugar? A
televisão continua sendo televisão, mesmo que exibida em outro suporte seja num
computador ou num aparelho de TV. O rádio continua sendo rádio seja este transmitido para
um aparelho de rádio da década de 1950 ou num celular de última geração. Só um impresso
perde a característica do papel, mas não foi reconfigurado para a tela, o texto não se modifica,
é somente “copiado e colado”. Estamos estão consumindo pelos menos duas vezes
exatamente o mesmo conteúdo.
Outro aspecto considerado por Pedralina está relacionado à jornada de trabalho. De
acordo com ela, a jornada de 5h estabelecida por legislação, ultrapassa o dobro. Esta seria de
onze, doze horas e meia. Entretanto, o diretor da redação afirmou que “a multiplicidade de
tarefas não implica alongamento da jornada nem aumento de produção” (2008, p.246). O
mesmo não é dito pelos repórteres e produtores. A pesquisadora entrevistou esses
profissionais e estes
Reclamam da longa jornada e explicam que, mesmo tendo uma ou duas pautas por dia, o
trabalho se estende para além das sete horas contratadas e registradas em carteira. Do
contrário, não dariam conta de todas as suas tarefas. Ocorre que, além das matérias para
entrar na edição do dia, eles sempre têm atribuições para o dia seguinte, para a edição de
domingo e para os muitos cadernos segmentados publicados ao longo da semana. (2008,
p.247)
Tais modificações nas relações de trabalho e na produção de mídia foram instauradas
especificamente a partir da informatização dessa área. Então, o ciberespaço e a digitalização
dos conteúdos midiáticos, exultados em sua maleabilidade e liquidez, permitidas por sua
transmutação em bits, entre cujos benefícios míticos estaria o “fim do poder” parecem
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possibilitar também a manutenção e potencialização de uma lógica de mercado anterior a seu
surgimento e não sua “transcendência”.
Conclusão
Ao longo da história cada nova tecnologia que era inventada – alguns preferem o
termo “descoberta” – enfrentava duras resistências. Desconfianças. Receio. Alguns dos
cientistas mais famosos da humanidade pagaram um preço alto por suas descobertas, a
exemplo da própria vida. Embora possa soar dessa forma, o presente estudo não foi elaborado
com objetivos de manifestos ou preciosismos em relação aos tempos em que a máquina
datilográfica ditava o ritmo das redações de jornalismo. Nem ao menos é intenção incentivar
um movimento contra os computadores e a Internet.
Inegavelmente, a combinação desses dois ingredientes tem sim sua parcela de
contribuição positiva em diversos aspectos das sociedades conectadas, do mundo globalizado.
É possível enxergar que novas práticas sociais se delineiam e surgem a partir daí, a exemplo
da proliferação alucinante das redes sociais on-line, da avalanche da troca de dados, entre
tantos outros aspectos. Porém o que se pretende aqui é suscitar o questionamento, fator não
muito pop diante das “luminosas” novas tecnologias. Há aspectos positivos e negativos na
instituição de uma novidade tecnológica. O carro traz conforto, entretanto polui. Redes sociais
são uma forma de comunicação rápida e eficaz, porém expõem quem está nelas. Simples
assim: “preto no branco”, “certo-errado”, “bom-ruim”. Onde estão as dicotomias do
ciberespaço? Há nele o bem e o mal. Vantagens e desvantagens. Por que temos mais acessos
aos “bens” e as “vantagens”? Talvez neste quesito esteja a comprovação de que “cada
tecnologia vem carregada de ideologia” como pensou Niel Postman.
As grandes empresas de mídia de massa utilizam-se das expressões típicas do
ciberespaço para a construção de sua imagem como empresas modernas e que atentam os
desejos e opiniões de sua audiência/ leitores/ ouvintes, antes classificados como “receptores
passivos”. Eram estes realmente passivos? Estão eles, hoje, ativos? O que difere um receptor
passivo de um receptor ativo? Estão os receptores migrando para o lugar dos emissores? Essa
migração caracteriza a cristalização da democracia eletrônica, da democracia da informação e
da comunicação? Que receptores têm em mãos a possibilidade e os aparatos e conhecimentos
técnicos para que se tornem colaboradores ativos nos processos de produção de conteúdo?
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Quem é o receptor dos conteúdos produzidos por esse novo personagem dessa nova realidade
que é o ciberespaço? Um computador conectado à rede tem maior alcance que uma grande
mídia de massa como a televisão? Quem concentra o maior percentual de informações
jornalísticas na rede mundial? Que conteúdos postados na Internet têm maior caráter de
credibilidade?
Diversos caminhos são possibilitados pelas novas tecnologias, no entanto, as mídias
não são novas. Novo é o meio que tem se mostrado mais uma alternativa de distribuição dos
mesmos conteúdos. As formas de interagir na Web existem desde sua versão 1.0, elas apenas
foram popularizadas, e novas ferramentas para essa “interação” foram elaboradas. Porém, o
ciberespaço é virtual. O que Mosco sugere é que os obstáculos transcendidos nesse espaço
digital podem não ser passíveis de transcendência no espaço palpável com a mesma facilidade
e velocidade. O mundo fora do computador – ou qualquer outro dispositivo conectado à rede
– não é transferido para esse ambiente na íntegra. As noções de espaço, tempo e poder
aplicáveis nas rotinas sociais fora desse espaço digital não são perfeitamente aplicáveis a um
sistema paralelo. Qualquer um pode ser outra pessoa no ciberespaço, mas esta outra pessoa,
criada, não existe fora dele.
O`Reilley coube aqui como o exemplo completo de como este espaço cibernético pode
ser tão manipulável quanto as grandes mídias. Elaborou-se um termo sem definição sólida
para a disseminação de produtos midiáticos, commodities informacionais, posto que, de
acordo com sua própria definição, não é possível identificar a diferença efetiva entre os dois
“modelos” de Web – 1.0 ou 2.0. Ressaltando a observação de Henrique Antoun que a Web
2.0 foi uma tentativa de um nicho de mercado de se livrar do domínio das grandes mídias.
A agilidade permitida aos processos de produção jornalística a partir da sua
informatização facilitou a manutenção da antiga dinâmica do mercado das informações,
contribuindo para o lucro cada vez maior das empresas sem que este atinja o jornalista. A
possibilidade da produção multimídia exige cada dia mais dos profissionais, delegando a estes
o acúmulo de funções e de volume de trabalho, como demonstrou Pedralina em pesquisa
realizada no conglomerado de mídia RBS, no Rio Grande do Sul.
A partir deste artigo, pretende-se provocar o debate a respeito do significado, funções
e contribuições do que se vem denominando Ciberespaço. Observando a considerável parcela
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de pesquisadores e estudiosos concentrados em estabelecer as vantagens e os mitos do
ciberespaço, este artigo conclui que é relevante a continuidade de análises dos discursos
míticos relacionados à Cibercultura, e suas conseqüências nas áreas de ampla proximidade
com esse ambiente, a exemplo do próprio jornalismo e suas dinâmicas de produção e
distribuição.
REFERÊNCIAS
ANTOUN, Henrique. De uma teia a outra: a explosão do comum e o surgimento da
vigilância participativa. In: ANTOUN, Henrique (Org.). Web 2.0: participação e vigilância
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MOSCO, Vincent. The Digital Sublime.
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SCHILLER, Dan. How to think about information. 1st Ed. Illinois: Illinois University Press,
2007.
POSTMAN, Niel. Tecnopólio – A rendição da cultura à tecnologia. São Paulo, Nobel, 1994.
PRADELINA, Virgínia. Indústria de Notícias: capitalismo e novas tecnologias no jornalismo
contemporêneo. Cidade: UFRGS Editora, 2008.
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