Distendendo memórias, redescobrindo sentidos, reescrevendo
Transcrição
Distendendo memórias, redescobrindo sentidos, reescrevendo
-7- Distendendo memórias, redescobrindo sentidos, reescrevendo identidades negras/mestiças Carmen Rangel da Silva1 Que podemos cada um de nós fazer sem transformar nossa inquietude em uma história? E, para essa transformação, para esse alívio, acaso contamos com outra coisa a não ser com os restos desordenados das histórias recebidas? E isso a que chamamos autoconsciência ou identidade pessoal, isso que, ao que parece, tem uma forma essencialmente narrativa, não será talvez a forma sempre provisória e ao ponto de desmoronar que damos ao trabalho infinito de distrair, de consolar ou de acalmar com histórias pessoais aquilo que nos inquieta? Jorge Larrosa Sem história e sem raízes, um povo não tem identidade! Conceição Corrêa Chagas Memória I Tenho lembrado muito de minha avó materna, Eva - tal qual a primeira mulher, a africana -, a primeira de minha linhagem conhecida. Negra, de poucos risos, de poucas palavras, que a vida deixou mais soturna depois da morte do filho varão. Cabelos brancos, encarapinhados, pele lisa, quase sem rugas. Teimosa, posicionada em seus saberes comuns, do alto de sua então deliberada mudez, decidiu não mais viver, a despeito dos cuidados a ela dispensados. Cansou da vida. E fim. Há muito tinha decidido o destino de seus objetos, de parte da sua história. No início dos anos sessenta, pegou suas louças, seus copos, seu relógio, sua máquina de costura e outros objetos com os quais compartilhou boa parte de sua vida e "vendeu" para um homem branco que batera à sua porta e que, sob a promessa da paga no dia seguinte, nunca mais apareceria. Com ele se foram alguns testemunhos materiais de sua trajetória que, ao serem historiados, poderiam revelar algumas tramas importantes da vida de uma mulher que nasceu ao término da escravidão e que partilhou a vida com um também herdeiro do escravismo, que, ao contrário de muitos, chegara à condição de "homem esclarecido", com posicionamento, participação política e possuidor de algumas terras que, pouco a pouco, foram tomadas por grileiros importantes. Este exercício de memória me traz à tona o desejo que tive de, ao final de sua vida, ter podido ouvir suas histórias, suas lembranças miúdas, detalhes que seriam reveladores de seu universo, enfim. Mas, sobretudo, que teriam contribuído na reconstrução de minha identidade mestiça, de traços visíveis no tom da pele, no formato do nariz, mas tão desbotados pelos constrangimentos sentidos por quem cresce numa sociedade que convive e se satisfaz no bamboleio permanente entre o disfarce e 1 Professora de Prática de Ensino de História na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e na Faculdade Porto-Alegrense de Educação, Ciências e Letras. o acinte do racismo. Teria certamente gostado de ouvir essas histórias, de ter tido a oportunidade, quem sabe, de montar uma "colcha de retalhos" com seus fragmentos de memórias com a qual pudesse me aquecer no difícil caminho de reconstrução de minha identidade mestiça. Retidos em minha memória ficaram seus saberes no manejo das ervas herdados de seus ancestrais africanos, o doce cheiro do alecrim, mitigado sincreticamente com suas rezas, suas benzeduras e seus fervores depositados na imagem de uma santa, herdados da resistência de seus antepassados escravos. Memória II Estou em visita a uma estagiária de história numa turma de 5a série. Olho pela janela e vejo um pedaço pequeno de um pátio de escola que me arremessa para trás no tempo. O cheiro da borracha de apagar tem o mesmo vigor do saborear das madeleines de Proust. Por deveres do ofício, sabia que viria até aqui. Só não tinha como imaginar a incrível sensação de deslocamento no tempo que me invade, quase ao ponto de não conseguir prestar atenção à tarefa que aqui me traz. Sinto um certo torpor, no distender da memória, no deslocamento. Retalhos de memória desencadeados pelo cheiro da borracha e por um pedaço de pátio onde um dia partilhei recreios com meus colegas, memórias de infância, de um tempo docemente retido na lembrança. Olhar para um pedaço tão pequeno de terra hoje revestido de novos sentidos para os que o vêem e nele pisam. Para mim tão carregado de significados! Tento me ver numa destas crianças que estão à minha frente, revejo meus colegas. Me vejo sentada próximo à janela (sempre gostei de poder ver a rua...). Sentava numa posição que me permitisse estar atenta à aula, sem perder a luz da janela. Tinha muito presente que estar na sala de aula era muito importante, mas os respingos de liberdade que vinham do pátio eram fundamentais. Minha mãe forjara em mim uma convicção - partilhada por ela e pelas camadas populares que viam na escola a única forma de ascensão social - a da importância do estudo. A única forma possível de destaque para uma menina pobre e mestiça no seu entender: estudar, ser uma boa aluna, para quem sabe, um dia, "ser alguém". Boa era pouco... teria que ser, no mínimo, "muito boa", tal como ela na escolinha rural de sua infância, destaque que carregou como um troféu - quem sabe o único - pela vida toda. Todo escrito é passível de várias introduções protagonizadas por algo essencial que nos constitui, nos identifica e nos recria, dando novos sentidos às nossas práticas: nossas memórias. Práticas As crianças que agora vejo, mestiças, em sua maioria, negras, brancas, pobres, estão mergulhadas num outro contexto. Já não há o encantamento de outrora com relação à escola, mas se encontram, no mínimo, à espera de que esta esboce um sentido. Existe nelas um tempo que é destinado à escola que pode ser melhor aproveitado com outras histórias que possibilitem a abertura de novos caminhos na construção de suas identidades. O ofício de professora de prática de ensino de história me tem proporcionado o percorrer das trilhas do ensino público há já algum tempo. No acompanhar de estagiários nas escolas de ensino fundamental e médio a oportunidade de etnografar as salas de aula em seus desdobrares, seus silêncios, suas omissões, seus longos momentos de refluxo, suas enervantes lentidões, seus movimentos caóticos contidos em rotinas consagradas, suas tênues ou possibilitadoras tentativas de avanço. O examinar dos currículos e planejamentos no campo do ensino de história tem revelado uma inequívoca evidência já exaustivamente apontada: a de que a escola mantém a "opção" por ensinar "a" história eurocêntrica, de tempo linear, branca, masculina, católica e dicotomizada de sentidos mais amplos. Não se trata de uma opção maniqueísta, pois resulta de uma história de formação, informação e visão de mundo herdadas pela escola, mas que não a isenta de suas responsabilidades, que tem contribuído mais para reforçar posições de poder e dominação do que para elucidar a existência destes poderes, suas tramas contraditórias e o que se produz nos indivíduos que por ela passam. No tratamento dado à história do Brasil vislumbra-se algum esforço conceitual de historiar a forma como o capitalismo aqui se apresenta em aspectos como o da relação dominantes/dominados, da luta de classes, dos confrontos da relação capital/trabalho, dos desdobramentos do poder no campo econômico, político, social ou nos matizes diversos do ideológico. Aportes vindos de uma fase marcante da historiografia brasileira, dos bacharelados e das licenciaturas das décadas de setenta e oitenta que, na esteira de outras lutas da sociedade civil, contribuíram na formação de professores que atuaram/atuam na perspectiva de uma posição crítica em relação ao capitalismo. Encontram-se ainda tentativas de utilização das contribuições vindas da nova história, de influência mais recente principalmente na forma de leituras complementares oportunizadas pelos livros didáticos. Práticas mitigadas a um positivismo evidente que se encontra como que aderido ao modus operandi do professor, ao priorizar a famosa "seqüência-dos-fatos-marcantes-dahistória-política-que-ninguém-sabe-pra-que-serve" como se o ensino de história, para se legitimar, tivesse que estar permanentemente ligado à sua matriz do século XIX onde a necessidade oficial de dar relevância aos heróis pátrios e aos fatos escolhidos como marcantes na política deram o tom da historiografia e do ensino de história. Práticas que ao longo do século XX tiveram sua parcela de contribuição no nacionalismo, na formação do Estado brasileiro e num determinado modelo de escola e de cidadania, assim como serviram/servem para afastar os indivíduos com acesso à escola do interesse pelo ensino de história. Quem andarilha pelas escolas recolhe pedaços preciosos de falas e muitos silêncios elucidadores. Quem examina registros escritos, materiais manuseados ou nunca tocados, quem observa rostos e corpos entediados por histórias que falam de acontecimentos distantes, de nexos incompreensíveis, menos por não conterem uma lógica interna - mais por trilharem sempre uma lógica alheia, nem disponível tampouco prazerosa a quem vive uma relação tempo/espaço diferenciada — percebe quantos indícios evidenciam a carência de "significados" mais profundos para quem ouve estas histórias. A princípio, a história ensinada a todos na escola de certa forma cumpre um papel: o de "homogeneizar" a história e "equalizar" os indivíduos. Homogeneíza por insistir em parecer constituída de uma massa única a ser consumida passivamente por quem a ouve. Equaliza porque na sala de aula a forma que o ensino de história adquire reitera uma igualdade inexistente entre os indivíduos, ainda que seus conteúdos sejam atravessados por questões de classe social, de raça, de etnia, de gênero, dentre outras categorias passíveis de serem trabalhadas do ponto de vista histórico (para além das categorias históricas habitualmente abordadas), e que têm contribuído para diferenciar e manter posições subordinadas de certos grupos étnicos e sociais (Silva, 1999:102). Narrativas lineares "sobre o que aconteceu" no passado não estão preocupadas com aquilo que se produz nos indivíduos, em suas subjetividades. Carregam em si uma "neutralidade" - ainda que contestada por muitos - ao assumir uma postura de repasse do conhecimento historiográfico2, pouco refletindo sobre os efeitos, os matizes de significados produzidos em cada um na esteira destes relatos. Pertence ao jargão comum dos professores de história afirmar querer contribuir para a formação de "alunos críticos". Mas sabemos que a criticidade supõe um certo distanciamento do objeto, uma capacidade de exame e explicitação de suas contradições, uma análise que se preocupa, a princípio, com os efeitos externos de uma dada realidade. Ao mesmo tempo, faz-se necessário que esta criticidade não se revele apenas externa aos indivíduos, ou ainda, que não brote tão somente de recognições mas também de (re)significações internas, da descoberta de novos sentidos ou estará fadada a ser uma criticidade de aparências. Penso que no campo da constituição da criticidade e da subjetividade dos alunos negros e mestiços - recorte que desejo dar nesta contribuição - o ensino de história precisa ser repensado. Identidade I Meninas e meninos negros e mestiços sempre ouvem as mesmas histórias na escola: a de que suas origens estão ligadas à profunda e sangrenta marca da escravidão. E só. Como se seus ancestrais estivessem desde o início dos tempos mergulhados neste determinismo atávico e não que tivessem vivido determinada circunstância histórica que os arrancou de seus espaços de origem arremessando-os numa nova terra e numa nova condição de vida. E que, a despeito de todos os horrores impostos pela escravidão, resistiram, especialmente por terem registrado na memória suas tradições orais - elementos centrais em seus sentidos de pertencer herdados das origens africanas - e manifestado nas práticas de busca da liberdade suas raízes ancestrais. Meninas e meninos a quem sempre foi dito, de alguma forma, que eram "diferentes" ainda que partilhando com outras crianças brancas a mesma condição de pobreza material. Ser branco e pobre nunca retirou de alguma criança, de forma acintosa ou não, seu sentido de pertencer a determinado grupo em seu próprio meio social. Evidentemente o mesmo não ocorre com as crianças negras ou mestiças pobres, que, a qualquer momento em seu meio, podem ser lembradas de suas origens, de forma jocosa explícita ou velada. Estas crianças e jovens também nunca tiveram muitos 2 Para aprofundar esta discussão sobre a natureza do conhecimento que se produz em sala de aula, recomendo a leitura de RODRIGO, Maria José & ARNAY, José (Orgs.) Conhecimento cotidiano, escolar e científico, representação e mudança/ A construção do conhecimento escolar 1. São Paulo: Ática,1998. subsídios vindos da escola que lhes possibilitassem elucidar sua "diferença" na contramão do racismo e dos poderes dominantes. No que se refere ao vínculo mestiço com sua história negra, de alguma forma ainda vigora o "silêncio da cor".3 Via de regra, a história veiculada na instituição escolar ainda se atém, quando muito, às narrativas dos livros didáticos sobre formas de resistências a caminho de serem consagradas pela historiografia - como Zumbi e o Quilombo de Palmares, por exemplo -, ou às histórias de sofrimentos e maus-tratos do povo negro nas senzalas, do assédio sexual em volta da casa-grande, situando aí as origens da mestiçagem. Tudo tratado na escola de forma "asséptico-didática", dentro dos capítulos correspondentes nos livros-textos, estando mais a referendar a marca da chaga do que se dispondo a elucidar posições, sentidos e significados na construção de identidades negras e mestiças, não obstante os avanços em relação à produção de alguns livros didáticos que já contêm novas abordagens sobre as lutas do povo negro no Brasil. O que se constata é uma ausência de elos que possibilitem apontar para o resgate de uma afro-história que se distende para além ou aquém do tempo da escravidão, não para negá-la evidentemente, mas visando remontar informações e sentidos históricoculturais que têm caráter atemporal, de forma a vincular os alunos às suas origens africanas enquanto uma nova possibilidade de se ver coletiva e individualmente. O ensino de história pode e deve oferecer contrapartidas ao "branqueamento" que implicitamente ainda vigora no espaço escolar como possibilidade dominante. Se ser negro no Brasil está historicamente atrelado à marca da escravidão, ser "mestiço" 4 parece que sempre fez parte de uma espécie de "acidente de percurso" ou ainda de uma "incógnita" como nas palavras de Paulo Prado escritas nos idos de 1927: A mestiçagem do branco e do africano ainda não está definitivamente estudada. È uma incógnita. Na África do Sul Eugen Fischer (1913) chegou a conclusões interessantes: a hibridação entre bôeres e hotentotes criou uma raça mista, antes uma mistura de raças, com os característicos dos seus componentes desenvolvendo-se nas mais variadas cambiantes. Tem, no entanto, um defeito persistente: falta de energia, levada ao extremo de uma profunda indolência.(Prado, 1997:193) Se, numa primeira tomada, as ideias do autor possam parecer estar superadas pelo tempo, na prática, o imaginário brasileiro, expresso nas falas jocosas ou "sérias", ainda se mostra repleto de exemplos que ilustram o pensar sobre a "indolência" advinda de um povo mestiço, tomando como padrão, evidentemente, o vigor do trabalho herdado dos imigrantes brancos europeus. Assentado nos pudores da "insuficiência de dados" e da "imparcialidade" condizentes ao pensamento positivista e ao pensar científico de seu tempo, toma 3 Tomo esta expressão por empréstimo da análise feita por Adriana Maria Paulo da Silva, Aprender com perfeição e sem coação: uma escola para meninos pretos e pardos na corte. Brasília: Editora Plano, 2000, em relação à obra de Hebe Maria Mattos de Castro "Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista - Brasil século XIX". Rio de Janeiro: Arquivo nacional, 1995. Nesta a autora examina situações do Brasil imperial em que a "cor" começa a ser omitida à medida que os afrodescendentes querem livrar-se da marca da escravidão. 4 Atenho-me aqui especificamente à miscigenação negros e brancos, sem aprofundar a questão sobre as teorias raciais e de como elas ganham força no Brasil e no Novo Mundo. Para tal, sugiro a leitura de Schwarcz, Lilia K. Moritz. Raça como negociação: sobre teorias raciais em finais do século XIX no Brasil, In: Brasil afro-brasileiro. Fonseca, Maria Nazareth Soares (Org.). Belo Horizonte: Autêntica, 2000. cuidados, a princípio, em afirmar que a hibridação no Brasil também produziria indolência: "No Brasil, não temos ainda perspectiva suficiente para um juízo imparcial. A arianização aparente eliminou as diferenças somáticas e psíquicas: já não se sabe mais quem é branco e quem é preto." (idem) Esta "arianização" frágil, leia-se branqueamento, necessitaria ter o cuidado de não vasculhar os antepassados:"na Austrália, Mark Twain encontrou situação idêntica, em que era falta de tato perguntar, na sociedade, notícias do avô..." (ibidem) No trecho abaixo os "destaques individuais dotados de luzes" a sobressair-se dentre a mestiçagem que, no coletivo, assume características debilitantes: O mestiço brasileiro tem fornecido indubitavelmente à comunidade exemplares notáveis de inteligência, de cultura, de valor moral. Por outro lado, as populações oferecem tal fraqueza física, organismos tão indefesos contra a doença e os vícios, que é uma interrogação natural indagar se esse estado de cousas não provém do intenso cruzamento das raças e sub-raças.(Prado, p.193) O contexto histórico de mais de três séculos e meio de escravidão. O processo de exclusão social vivido no pós-abolição colado umbilicalmente à situação de pobreza material. O escamoteamento da discriminação racial. A ideologia do branqueamento. A disseminação de sentimento de culpa no negro e, por conseguinte, do mestiço, ao responsabilizá-lo pela condição de indignidade, subvida (Chagas, 1996: 33) e de inferiorização em que se encontram mergulhados negros e mestiços pobres que compõem a maior parte da população brasileira são elementos que não recebem na escola, via de regra, um tratamento que possa se apresentar como uma referência possibilitadora de modificação quanto à auto-estima do povo negro/mestiço. Mestiços conhecem a história branca mas pouco conhecem, a história negra, tal como a maioria do povo negro no Brasil, estando sujeitos permanentemente a negarem suas histórias pelo desconhecimento e pela força que adquire o branqueamento numa sociedade onde o racismo se alimenta sob o subterfúgio da cordialidade. No tempo destinado à escola, crianças e jovens negros/mestiços não encontram muito poucas referências de cunho sociohistórico que possam intervir na dinâmica de suas subjetividades na perspectiva de criar uma contraface ao quadro exposto. O passado, a memória do povo negro nos currículos ou não existe ou tem uma existência frágil e formal o que, a rigor, significa o mesmo. Contribui-se com isso com um processo de empobrecimento de expectativas quanto à própria capacidade de ver-se, situar-se e de mostrar-se enquanto indivíduo ou coletivo pensante e criativo, remetendo reiteradamente suas expectativas ao campo de possibilidades aceitas socialmente pelo mundo branco. De muitas formas persistem ainda as saídas de ascensão individual louvadas por Paulo Prado nos anos 20 e a negação do passado: No Brasil, desgraçadamente, a ascensão social do negro o condena a dar as costas ao passado.(... )Há um cansaço, uma consciência de não pertencer completamente à sociedade brasileira.(...) A grande aspiração do negro brasileiro é ser tratado como um homem comum. (p.63) O espaço de reconhecimento das identidades mestiças nos espaços de formação precisa centralmente passar pelo conhecer as histórias negras que têm atravessado o Atlântico. A tentativa de forjar uma "identidade brasileira" de muitas formas reedita a velha "cordialidade racial" escamoteando questões que merecem abordagens mais elucidadoras nos currículos escolares. A seguir, um texto "mestiço" produzido numa sala de aula, carregado de sentidos onde se evidenciam criticidade e identidade num belo processo de construção. Em especial, a explicitação do sentimento de "confusão" sobre ser mestiça produzida socialmente e incorporado subjetivamente, e a presença da discussão sobre "a cor" na família. Em que pese o reconhecimento em relação à cultura negra e à condição de mestiça, deixa entender ainda que negro é o outro. Parece haver um orgulho a ser cultivado quanto à raça negra mas de certa forma ainda envolto numa nebulosa. Eu sou mestiça mas tenho uma visão clara sobre os negros. Ser negro é ser uma pessoa alegre, bonita e trabalhadora. Por que o branco tem mais direitos do que o negro? O branco passa na rua e não ouve charadinhas como: o negro só presta para lavar os pés do branco... O negro é uma pessoa que quer ter o direito de andar de cabeça erguida, passar na rua e não ser olhado de cima a baixo. É criticado por sua cultura religiosa conhecida por "umbanda ". Por que os santos mudam de nome? Nossa Senhora dos Navegantes é "Iemanjá", Nossa Senhora Aparecida é "Oxum". Porque tantos preconceitos contra a raça negra no mundo? As pessoas da minha casa ficam discutindo que o branco vale mais que o negro ou que o negro vale mais que o branco. É uma discussão sem fundamento. Ser "mestiça" causa uma confusão. Mas eu tenho orgulho da minha cor. Ser negro deve ser maravilhoso. Todo negro deveria ter orgulho da sua cor. (Tatiane - 17anos, 19965) Identidade II É central hoje para o currículo escolar pensar sobre os ancestrais africanos do povo negro tornado "brasileiro", sobre o que eles representam do ponto de vista de sua história, mas, sobretudo, da forma como o conhecimento e a valorização desta afro-história possa contribuir na construção de traços da personalidade coletiva e individual deste povo, de sua identidade, de sua auto-estima. A possibilidade de redescoberta de regiões e das histórias da África que remontem às origens anteriores à chaga da diáspora do século XVI, assim como a busca de novas possibilidades didáticas na sala de aula no caminho da (re)significação das histórias negras/mestiças nestes cinco séculos de Brasil. É necessário o reinventar do conhecimento em relação à África, de seus povos tão ricos em diversidade e tão uníssonos em sentidos, sentimentos, atitudes e certezas em relação aos significados de suas raízes ancestrais, na força de sua história oral, de seus signos culturais. Alheia à força adquirida pela escrita nas sociedades ocidentais, a tradição oral 5 Texto produzido em uma turma do SEJA, SMED/Prefeitura Municipal de Porto Alegre. africana é portadora de riqueza e vitalidade praticamente desconhecida pela história veiculada nas escolas ainda mergulhadas: (a) numa falsa premissa de que povos sem escrita são povos sem história; (b) nas narrativas e interpretações sobre a história de origem europeia; (c) no descaso para com as histórias do povo negro, especialmente as anteriores à diáspora. É comum, ainda, nos espaços institucionais destinados ao conhecimento formal, atribuir-se à África negra uma visão simplista e superficial em que aparece constituída por sociedades segmentadas e estruturadas em "clãs", "tribos" ou grupos isolados, incapacitados de promover a integração do espaço geo-políticosocial, dotadas de economia e tecnologia "primitivas", baixo poder de comunicação por não possuírem escrita, etc., ou seja, sociedades menos ou mais paradas no tempo, destituídas de dinâmica própria e totalmente à mercê das influências exteriores. (Leite, 1993:14) O examinar das tradições da África negra através da bibliografia disponível possibilita a descoberta das origens históricas, da organização social extensa, sofisticada e altamente complexa em seus desdobramentos (Leite, 1993:15), com economias e tecnologias suficientes, o que elimina a ideia de "primitivo" ou ainda de "atraso" numa perspectiva de comparação em relação às sociedades industriais. Compatíveis com sua cosmovisão profundamente articulada que expressa uma visão do conhecimento totalmente diferenciada das tradições europeias. Dotados de uma extraordinária relação com a palavra onde a tradição oral "é a grande escola da vida, e dela recupera e relaciona todos os aspectos. Pode parecer caótica àqueles que não lhe descortinam o segredo e desconcertar a mentalidade cartesiana acostumada a separar tudo em categorias bem definidas." (Hampaté Bâ, 1982: 183) Hampaté Bâ nos dimensiona a profundidade dos significados encontrados na tradição oral onde - palavra e práticas vinculadas intimamente - o material e o espiritual não estão dissociados. "Ela (a tradição oral) é ao mesmo tempo religião, conhecimento, ciência natural, iniciação à arte, história, divertimento e recreação, uma vez que todo pormenor sempre nos permite remontar à Unidade primordial". (Idem) Mostra também uma sensível, rica e extremamente dinâmica concepção de "unidade" que molda a alma africana, fundada na iniciação e na experiência, concebendo não apenas um "tipo particular de homem" no mundo mas, especialmente, "um mundo concebido como um Todo onde todas as coisas se religam e interagem" (Hampaté Bâ, 1982:183). Em Fábio Leite, a retomada desta mesma perspectiva ao afirmar que, no interior dessa mesma concepção de totalidade, identifica-se uma sofisticada noção de pessoa e natureza, conduzindo com notável maestria os processos de socialização que promovem a integração ótima do homem na sociedade, fator que explica não só a densidade das práticas político-sociais como o humanismo de que se reveste a existência global. (Leite, 1993: 15) Nos rituais a reconstrução das histórias coletivas nunca perdidas no tempo, produzindo dinâmicas permanentes de religação entre o homem e o universo. A tradição oral baseia-se em uma certa concepção do homem, do seu lugar e do seu papel no seio do universo. (É necessário) retornar ao próprio mistério da criação do homem e da instauração primordial da Palavra: o mistério tal como ela o revela e do qual emana.( Hampaté Ba, 1982:183) Inerentes às tradições orais, encontram-se as tradições da memória nos trazendo a possibilidade do resgate da história africana que, aliadas à antropologia, à arqueologia, às religiões, aos cultos, às artes e, em especial, à preciosa memória miúda, particular dos afrodescendentes, nos permitem recompor este universo tão pouco legitimado nas salas de aula e nos currículos escolares. A dimensão da memória para as sociedades não letradas se expressa como uma tradição legítima e não por uma possível consciência de uma ausência da escrita como único registro possível para preservar a memória de um povo. O historiador Paul Thompson nos ajuda a entender a força da história oral ao afirmar que, para as sociedades não letradas, toda história era história oral. Tudo mais, porém, também tinha que ser lembrado: destrezas e habilidades, o tempo e a estação, o céu, o território, a lei, as falas, as transações, as negociações. E a própria tradição oral era muito variada. Jan Vansina (1965) (...) dividiu a tradição oral africana em cinco categorias: Em primeiro lugar, há as fórmulas - fórmulas de aprendizagem, rituais, gritos de guerra e outros, os títulos. A seguir, há as listas de nomes de lugares e de nomes de pessoas. Vem, em seguida, a poesia oficial ou privada - histórica, religiosa ou pessoal. Em quarto lugar, há as narrativas - históricas, didáticas, artísticas ou pessoais. Finalmente, há as memórias, legais ou de outros tipos. (Thompson, 1998: 46) O tempo expresso nas tradições orais africanas não se atém a uma "linha cronológica" que se preste à racionalidade de tradição europeia. Ao contrário, reinventa a vida a todo momento, religando-a pela palavra, pela memória, pelo gesto, pelo simbolismo. Boubou Hama e J.Ki-Zerbo nos falam de como o tempo africano é dinâmico constituindo-se num permanente confronto das forças que habitam o mundo, criando assim um movimento incessante que gera uma energia vital. Nem na concepção tradicional, nem na visão islâmica que influenciará a África, o homem é prisioneiro de um processo estático ou de retorno cíclico. Evidentemente, na ausência da idéia do tempo matemático e físico contabilizado pela adição de unidades homogêneas e medido por instrumentos confeccionados para esse fim, o tempo permanece um elemento vivido e social. Nesse contexto, porém, não se trata de um elemento neutro e indiferente. Na concepção global do mundo (...) o tempo é o lugar onde o homem pode, sem cessar, lutar pelo desenvolvimento de sua energia vital. (Hama e Ki-Zerbo, 1982: 68) Esta energia vital reveste-se de um dinamismo que implica uma interação permanente entre passado, presente e futuro - consubstanciados na força do animismo e na defesa contra qualquer diminuição de seu ser, no desenvolvimento da saúde, da forma física, da extensão de seus campos, na grandeza de seus rebanhos, no número de filhos, de mulheres, de aldeias (Hama e Ki-Zerbo, 1982: 68). Invocar o passado através dos ancestrais não significa um imobilismo e "não contradiz a lei geral da acumulação das forças e do progresso". Vem dos Shongai uma "estrofe mágica" que nos dá uma ideia sobre o papel dos ancestrais, importante, mas que não retira a força do presente: Não é da minha boca É da boca de A Que o deu a B Que o deu a C Que o deu a D Que o deu a E Que o deu a F Que o deu a mim Que o meu esteja melhor na minha boca Que na dos ancestrais.( idem) O sentido de uma educação viva, praticada e significada por toda vida, antecede a noção ainda pálida que temos dos sentidos profundos de uma "educação permanente". No Bafur, até os 42 anos, um homem devia estar na escola da vida e não tinha "direito à palavra" em assembléias, a não ser excepcionalmente. Seu dever era ficar "ouvindo" e aprofundar o conhecimento que veio recebendo desde sua iniciação aos 21 anos. A partir dos 42 anos supunha-se que já tivesse assimilado e aprofundado os ensinamentos recebidos desde a infância. Adquiria o direito à palavra nas assembléias e tornava-se, por sua vez, um mestre, para devolver à sociedade àquilo que dela havia recebido, mas isso não o impedia de continuar aprendendo com os mais velhos, se assim o desejasse, e deles pedir conselhos. Um homem idoso encontrava sempre outro mais velho ou mais sábio do que ele, a quem pudesse solicitar uma informação adicional ou uma opinião. "Todos os dias", costuma-se dizer, "o ouvido ouve aquilo que ainda não ouviu". Assim a educação podia durar a vida inteira. ( Hampaté Bâ, 1982: 208-209) O não-acesso à "palavra" nas assembléias "até os 42 anos" prende-se à importância atribuída ao tempo destinado ao "saber ouvir" necessário a quem se encontra em formação e para quem está maturando conhecimentos. A idade - tal como o tempo africano -assume outra dimensão, intimamente relacionada com o aprimorar-se com a vida, com o conhecimento e as experiências acumuladas, que dá aos mais velhos, por exemplo, a condição de "mestres", "sábios" tão distantes na forma e nos significados da visão moderna sobre o velho e sua "função produtiva". Quando um velho conta uma história iniciatória em uma assembléia, desenvolve-lhe o simbolismo de acordo com a natureza e a capacidade de compreensão de seu auditório. Ele pode fazer dela simples história infantil com fundamento moral educativo ou uma fecunda lição sobre os mistérios da natureza humana e da relação do homem com os mundos invisíveis. Cada um retém e compreende conforme sua capacidade. (Hampaté Bâ, 1982: 209) O velho não é apenas escutado. É um elucidador que, com suas histórias, contribui ativamente no pensar/agir das gerações mais jovens, ao mesmo tempo garantindo a continuação das futuras gerações pela preservação da memória. Possui um papel social vivo, ativo, preservador e sintetizador do tempo. Finalizando No limiar do sexto século de existência deste espaço chamado Brasil, confrontamo-nos diretamente com velhas e novas questões que vão da velha "cordialidade racial" às novas facetas do neoliberalismo e da globalização, passando por novas (e às vezes ambíguas) discussões no campo do multiculturalismo e da elucidação das diferenças que aqui se pretendem na contramão do "branqueamento" como tentativa falsa de tornar a todos iguais, numa sociedade que nasce sob o signo da força, da desigualdade e do apagamento gradual das histórias não-brancas. As intenções deste escrito se dirigem aos professores de ensino fundamental e médio, aos currículos escolares e ao ensino de história, sem deixar de lado os currículos de formação de futuros professores de história e todos os que se interessam pelas questões ligadas à construção de identidades negras/mestiças. Ficam aqui indicações quanto à necessidade: -de acervos de boa qualidade sobre a África, praticamente inexistentes nas escolas de ensino fundamental e médio e precários nas universidades; -do exame dos currículos da pré-escola à universidade no que trata da(s) história(s) do povo negro; -da construção de um ensino de história que contribua na recuperação das tramas que dão forma às identidades negras/mestiças em seus aspectos coletivo/individuais, ampliando e qualificando os espaços de conhecimento histórico e de manifestação das subjetividades ao resgatar histórias negras/mestiças na sala de aula, apontando para um redimensionamento da auto-estima do povo afrodescendente. Referências Bibliográficas CHAGAS, Conceição Corrêa. Negro:uma identidade em construção. Petrópolis, J:Vozes, 1996. HAMA, Boubou e Ki-Zerbo, J.. Lugar da história na sociedade africana. In: História geral da África:I. Metodologia e pré-história da África / J.Ki-Zerbo (org). São Paulo: Ática; (Paris): Unesco, 1982, p.61-71. HAMPATÉ BA, A. A tradição viva. In: História geral da África:I. Metodologia e pré-história da África / J. Ki-Zerbo (org). São Paulo: Ática; (Paris): Unesco, 1982, p.181-218. LARROSA, Jorge. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. Belo Horizonte: Acadêmica, 1999. LEITE, Fábio. África: moda, cultura e tradição/ textos Fábio Ávila e Fábio Leite; fotografia Maureen Bisiliat. São Paulo: Empresa das Artes, 1993. PRADO, Paulo. Retraio do Brasil: ensaio sobre a tristeza brasileira. São Paulo: Cia. das Letras, 1997. SANTOS, Milton. Racismo cordial. São Paulo: 1995. Entrevista concedida a Folha de São Paulo/Data Folha/Ática, p. 57-65. SILVA, Tomaz Tadeu da. Documentos de identidade:uma introdução às teorias do currículo. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.