Distendendo memórias, redescobrindo sentidos, reescrevendo

Transcrição

Distendendo memórias, redescobrindo sentidos, reescrevendo
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Distendendo memórias, redescobrindo sentidos, reescrevendo
identidades negras/mestiças
Carmen Rangel da Silva1
Que podemos cada um de nós fazer sem transformar nossa inquietude em uma
história? E, para essa transformação, para esse alívio, acaso contamos com outra
coisa a não ser com os restos desordenados das histórias recebidas? E isso a que
chamamos autoconsciência ou identidade pessoal, isso que, ao que parece, tem uma
forma essencialmente narrativa, não será talvez a forma sempre provisória e ao ponto
de desmoronar que damos ao trabalho infinito de distrair, de consolar ou de acalmar
com histórias pessoais aquilo que nos inquieta?
Jorge Larrosa
Sem história e sem raízes, um povo não tem identidade!
Conceição Corrêa Chagas
Memória I
Tenho lembrado muito de minha avó materna, Eva - tal qual a primeira mulher, a
africana -, a primeira de minha linhagem conhecida. Negra, de poucos risos, de poucas
palavras, que a vida deixou mais soturna depois da morte do filho varão. Cabelos
brancos, encarapinhados, pele lisa, quase sem rugas. Teimosa, posicionada em seus
saberes comuns, do alto de sua então deliberada mudez, decidiu não mais viver, a
despeito dos cuidados a ela dispensados. Cansou da vida. E fim.
Há muito tinha decidido o destino de seus objetos, de parte da sua história. No
início dos anos sessenta, pegou suas louças, seus copos, seu relógio, sua máquina de
costura e outros objetos com os quais compartilhou boa parte de sua vida e "vendeu"
para um homem branco que batera à sua porta e que, sob a promessa da paga no dia
seguinte, nunca mais apareceria. Com ele se foram alguns testemunhos materiais de
sua trajetória que, ao serem historiados, poderiam revelar algumas tramas importantes
da vida de uma mulher que nasceu ao término da escravidão e que partilhou a vida
com um também herdeiro do escravismo, que, ao contrário de muitos, chegara à
condição de "homem esclarecido", com posicionamento, participação política e
possuidor de algumas terras que, pouco a pouco, foram tomadas por grileiros
importantes.
Este exercício de memória me traz à tona o desejo que tive de, ao final de sua
vida, ter podido ouvir suas histórias, suas lembranças miúdas, detalhes que seriam
reveladores de seu universo, enfim. Mas, sobretudo, que teriam contribuído na
reconstrução de minha identidade mestiça, de traços visíveis no tom da pele, no formato do nariz, mas tão desbotados pelos constrangimentos sentidos por quem cresce
numa sociedade que convive e se satisfaz no bamboleio permanente entre o disfarce e
1
Professora de Prática de Ensino de História na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul e na
Faculdade Porto-Alegrense de Educação, Ciências e Letras.
o acinte do racismo. Teria certamente gostado de ouvir essas histórias, de ter tido a
oportunidade, quem sabe, de montar uma "colcha de retalhos" com seus fragmentos
de memórias com a qual pudesse me aquecer no difícil caminho de reconstrução de
minha identidade mestiça.
Retidos em minha memória ficaram seus saberes no manejo das ervas herdados
de seus ancestrais africanos, o doce cheiro do alecrim, mitigado sincreticamente com
suas rezas, suas benzeduras e seus fervores depositados na imagem de uma santa,
herdados da resistência de seus antepassados escravos.
Memória II
Estou em visita a uma estagiária de história numa turma de 5a série. Olho pela
janela e vejo um pedaço pequeno de um pátio de escola que me arremessa para trás
no tempo. O cheiro da borracha de apagar tem o mesmo vigor do saborear das
madeleines de Proust. Por deveres do ofício, sabia que viria até aqui. Só não tinha
como imaginar a incrível sensação de deslocamento no tempo que me invade, quase
ao ponto de não conseguir prestar atenção à tarefa que aqui me traz. Sinto um certo
torpor, no distender da memória, no deslocamento. Retalhos de memória
desencadeados pelo cheiro da borracha e por um pedaço de pátio onde um dia
partilhei recreios com meus colegas, memórias de infância, de um tempo docemente
retido na lembrança. Olhar para um pedaço tão pequeno de terra hoje revestido de
novos sentidos para os que o vêem e nele pisam. Para mim tão carregado de
significados!
Tento me ver numa destas crianças que estão à minha frente, revejo meus
colegas. Me vejo sentada próximo à janela (sempre gostei de poder ver a rua...).
Sentava numa posição que me permitisse estar atenta à aula, sem perder a luz da
janela. Tinha muito presente que estar na sala de aula era muito importante, mas os
respingos de liberdade que vinham do pátio eram fundamentais. Minha mãe forjara em
mim uma convicção - partilhada por ela e pelas camadas populares que viam na
escola a única forma de ascensão social - a da importância do estudo. A única forma
possível de destaque para uma menina pobre e mestiça no seu entender: estudar, ser
uma boa aluna, para quem sabe, um dia, "ser alguém". Boa era pouco... teria que ser,
no mínimo, "muito boa", tal como ela na escolinha rural de sua infância, destaque que
carregou como um troféu - quem sabe o único - pela vida toda.
Todo escrito é passível de várias introduções protagonizadas por algo essencial
que nos constitui, nos identifica e nos recria, dando novos sentidos às nossas práticas:
nossas memórias.
Práticas
As crianças que agora vejo, mestiças, em sua maioria, negras, brancas, pobres,
estão mergulhadas num outro contexto. Já não há o encantamento de outrora com
relação à escola, mas se encontram, no mínimo, à espera de que esta esboce um
sentido. Existe nelas um tempo que é destinado à escola que pode ser melhor
aproveitado com outras histórias que possibilitem a abertura de novos caminhos na
construção de suas identidades.
O ofício de professora de prática de ensino de história me tem proporcionado o
percorrer das trilhas do ensino público há já algum tempo. No acompanhar de estagiários nas
escolas de ensino fundamental e médio a oportunidade de etnografar as salas de aula em
seus desdobrares, seus silêncios, suas omissões, seus longos momentos de refluxo, suas
enervantes lentidões, seus movimentos caóticos contidos em rotinas consagradas, suas tênues
ou possibilitadoras tentativas de avanço.
O examinar dos currículos e planejamentos no campo do ensino de história tem
revelado uma inequívoca evidência já exaustivamente apontada: a de que a escola
mantém a "opção" por ensinar "a" história eurocêntrica, de tempo linear, branca,
masculina, católica e dicotomizada de sentidos mais amplos. Não se trata de uma
opção maniqueísta, pois resulta de uma história de formação, informação e visão de
mundo herdadas pela escola, mas que não a isenta de suas responsabilidades, que tem
contribuído mais para reforçar posições de poder e dominação do que para elucidar a
existência destes poderes, suas tramas contraditórias e o que se produz nos
indivíduos que por ela passam. No tratamento dado à história do Brasil vislumbra-se
algum esforço conceitual de historiar a forma como o capitalismo aqui se apresenta
em aspectos como o da relação dominantes/dominados, da luta de classes, dos
confrontos da relação capital/trabalho, dos desdobramentos do poder no campo
econômico, político, social ou nos matizes diversos do ideológico. Aportes vindos de
uma fase marcante da historiografia brasileira, dos bacharelados e das licenciaturas
das décadas de setenta e oitenta que, na esteira de outras lutas da sociedade civil,
contribuíram na formação de professores que atuaram/atuam na perspectiva de uma
posição crítica em relação ao capitalismo. Encontram-se ainda tentativas de utilização
das contribuições vindas da nova história, de influência mais recente principalmente
na forma de leituras complementares oportunizadas pelos livros didáticos. Práticas
mitigadas a um positivismo evidente que se encontra como que aderido ao modus
operandi do professor, ao priorizar a famosa "seqüência-dos-fatos-marcantes-dahistória-política-que-ninguém-sabe-pra-que-serve" como se o ensino de história, para se
legitimar, tivesse que estar permanentemente ligado à sua matriz do século XIX onde a
necessidade oficial de dar relevância aos heróis pátrios e aos fatos escolhidos como
marcantes na política deram o tom da historiografia e do ensino de história. Práticas
que ao longo do século XX tiveram sua parcela de contribuição no nacionalismo, na
formação do Estado brasileiro e num determinado modelo de escola e de cidadania,
assim como serviram/servem para afastar os indivíduos com acesso à escola do
interesse pelo ensino de história.
Quem andarilha pelas escolas recolhe pedaços preciosos de falas e muitos
silêncios elucidadores. Quem examina registros escritos, materiais manuseados ou nunca
tocados, quem observa rostos e corpos entediados por histórias que falam de
acontecimentos distantes, de nexos incompreensíveis, menos por não conterem uma
lógica interna - mais por trilharem sempre uma lógica alheia, nem disponível tampouco
prazerosa a quem vive uma relação tempo/espaço diferenciada — percebe quantos
indícios evidenciam a carência de "significados" mais profundos para quem ouve estas
histórias.
A princípio, a história ensinada a todos na escola de certa forma cumpre um
papel: o de "homogeneizar" a história e "equalizar" os indivíduos. Homogeneíza
por insistir em parecer constituída de uma massa única a ser consumida
passivamente por quem a ouve. Equaliza porque na sala de aula a forma que o
ensino de história adquire reitera uma igualdade inexistente entre os indivíduos,
ainda que seus conteúdos sejam atravessados por questões de classe social, de raça,
de etnia, de gênero, dentre outras categorias passíveis de serem trabalhadas do
ponto de vista histórico (para além das categorias históricas habitualmente abordadas), e que têm contribuído para diferenciar e manter posições subordinadas de
certos grupos étnicos e sociais (Silva, 1999:102). Narrativas lineares "sobre o que
aconteceu" no passado não estão preocupadas com aquilo que se produz nos
indivíduos, em suas subjetividades. Carregam em si uma "neutralidade" - ainda
que contestada por muitos - ao assumir uma postura de repasse do conhecimento
historiográfico2, pouco refletindo sobre os efeitos, os matizes de significados
produzidos em cada um na esteira destes relatos. Pertence ao jargão comum dos
professores de história afirmar querer contribuir para a formação de "alunos críticos".
Mas sabemos que a criticidade supõe um certo distanciamento do objeto, uma
capacidade de exame e explicitação de suas contradições, uma análise que se
preocupa, a princípio, com os efeitos externos de uma dada realidade. Ao mesmo
tempo, faz-se necessário que esta criticidade não se revele apenas externa aos
indivíduos, ou ainda, que não brote tão somente de recognições mas também de
(re)significações internas, da descoberta de novos sentidos ou estará fadada a ser
uma criticidade de aparências.
Penso que no campo da constituição da criticidade e da subjetividade dos alunos
negros e mestiços - recorte que desejo dar nesta contribuição - o ensino de história
precisa ser repensado.
Identidade I
Meninas e meninos negros e mestiços sempre ouvem as mesmas histórias na
escola: a de que suas origens estão ligadas à profunda e sangrenta marca da
escravidão. E só. Como se seus ancestrais estivessem desde o início dos tempos
mergulhados neste determinismo atávico e não que tivessem vivido determinada circunstância histórica que os arrancou de seus espaços de origem arremessando-os
numa nova terra e numa nova condição de vida. E que, a despeito de todos os
horrores impostos pela escravidão, resistiram, especialmente por terem registrado na
memória suas tradições orais - elementos centrais em seus sentidos de pertencer herdados das origens africanas - e manifestado nas práticas de busca da liberdade suas
raízes ancestrais.
Meninas e meninos a quem sempre foi dito, de alguma forma, que eram
"diferentes" ainda que partilhando com outras crianças brancas a mesma condição de
pobreza material. Ser branco e pobre nunca retirou de alguma criança, de forma
acintosa ou não, seu sentido de pertencer a determinado grupo em seu próprio meio
social. Evidentemente o mesmo não ocorre com as crianças negras ou mestiças pobres,
que, a qualquer momento em seu meio, podem ser lembradas de suas origens, de forma
jocosa explícita ou velada. Estas crianças e jovens também nunca tiveram muitos
2
Para aprofundar esta discussão sobre a natureza do conhecimento que se produz em sala de aula, recomendo a
leitura de RODRIGO, Maria José & ARNAY, José (Orgs.) Conhecimento cotidiano, escolar e científico,
representação e mudança/ A construção do conhecimento escolar 1. São Paulo: Ática,1998.
subsídios vindos da escola que lhes possibilitassem elucidar sua "diferença" na contramão do racismo e dos poderes dominantes. No que se refere ao vínculo mestiço
com sua história negra, de alguma forma ainda vigora o "silêncio da cor".3
Via de regra, a história veiculada na instituição escolar ainda se atém, quando
muito, às narrativas dos livros didáticos sobre formas de resistências a caminho de
serem consagradas pela historiografia - como Zumbi e o Quilombo de Palmares, por
exemplo -, ou às histórias de sofrimentos e maus-tratos do povo negro nas senzalas,
do assédio sexual em volta da casa-grande, situando aí as origens da mestiçagem.
Tudo tratado na escola de forma "asséptico-didática", dentro dos capítulos
correspondentes nos livros-textos, estando mais a referendar a marca da chaga do que
se dispondo a elucidar posições, sentidos e significados na construção de identidades
negras e mestiças, não obstante os avanços em relação à produção de alguns livros
didáticos que já contêm novas abordagens sobre as lutas do povo negro no Brasil. O
que se constata é uma ausência de elos que possibilitem apontar para o resgate de
uma afro-história que se distende para além ou aquém do tempo da escravidão, não
para negá-la evidentemente, mas visando remontar informações e sentidos históricoculturais que têm caráter atemporal, de forma a vincular os alunos às suas origens
africanas enquanto uma nova possibilidade de se ver coletiva e individualmente. O
ensino de história pode e deve oferecer contrapartidas ao "branqueamento" que
implicitamente ainda vigora no espaço escolar como possibilidade dominante.
Se ser negro no Brasil está historicamente atrelado à marca da escravidão, ser
"mestiço" 4 parece que sempre fez parte de uma espécie de "acidente de percurso" ou
ainda de uma "incógnita" como nas palavras de Paulo Prado escritas nos idos de 1927:
A mestiçagem do branco e do africano ainda não está definitivamente
estudada. È uma incógnita. Na África do Sul Eugen Fischer (1913) chegou a
conclusões interessantes: a hibridação entre bôeres e hotentotes criou uma raça
mista, antes uma mistura de raças, com os característicos dos seus componentes
desenvolvendo-se nas mais variadas cambiantes. Tem, no entanto, um defeito
persistente: falta de energia, levada ao extremo de uma profunda
indolência.(Prado, 1997:193)
Se, numa primeira tomada, as ideias do autor possam parecer estar superadas pelo
tempo, na prática, o imaginário brasileiro, expresso nas falas jocosas ou "sérias", ainda
se mostra repleto de exemplos que ilustram o pensar sobre a "indolência" advinda de um
povo mestiço, tomando como padrão, evidentemente, o vigor do trabalho herdado
dos imigrantes brancos europeus.
Assentado nos pudores da "insuficiência de dados" e da "imparcialidade"
condizentes ao pensamento positivista e ao pensar científico de seu tempo, toma
3
Tomo esta expressão por empréstimo da análise feita por Adriana Maria Paulo da Silva, Aprender com perfeição e
sem coação: uma escola para meninos pretos e pardos na corte. Brasília: Editora Plano, 2000, em relação à obra de
Hebe Maria Mattos de Castro "Das cores do silêncio: os significados da liberdade no sudeste escravista - Brasil
século XIX". Rio de Janeiro: Arquivo nacional, 1995. Nesta a autora examina situações do Brasil imperial em que a
"cor" começa a ser omitida à medida que os afrodescendentes querem livrar-se da marca da escravidão.
4
Atenho-me aqui especificamente à miscigenação negros e brancos, sem aprofundar a questão sobre as teorias
raciais e de como elas ganham força no Brasil e no Novo Mundo. Para tal, sugiro a leitura de Schwarcz, Lilia K.
Moritz. Raça como negociação: sobre teorias raciais em finais do século XIX no Brasil, In: Brasil afro-brasileiro.
Fonseca, Maria Nazareth Soares (Org.). Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
cuidados, a princípio, em afirmar que a hibridação no Brasil também produziria
indolência: "No Brasil, não temos ainda perspectiva suficiente para um juízo
imparcial. A arianização aparente eliminou as diferenças somáticas e psíquicas: já não
se sabe mais quem é branco e quem é preto." (idem)
Esta "arianização" frágil, leia-se branqueamento, necessitaria ter o cuidado de
não vasculhar os antepassados:"na Austrália, Mark Twain encontrou situação idêntica,
em que era falta de tato perguntar, na sociedade, notícias do avô..." (ibidem)
No trecho abaixo os "destaques individuais dotados de luzes" a sobressair-se
dentre a mestiçagem que, no coletivo, assume características debilitantes:
O mestiço brasileiro tem fornecido indubitavelmente à comunidade
exemplares notáveis de inteligência, de cultura, de valor moral. Por outro lado,
as populações oferecem tal fraqueza física, organismos tão indefesos contra a
doença e os vícios, que é uma interrogação natural indagar se esse estado de
cousas não provém do intenso cruzamento das raças e sub-raças.(Prado, p.193)
O contexto histórico de mais de três séculos e meio de escravidão. O processo de
exclusão social vivido no pós-abolição colado umbilicalmente à situação de pobreza
material. O escamoteamento da discriminação racial. A ideologia do branqueamento. A
disseminação de sentimento de culpa no negro e, por conseguinte, do mestiço, ao
responsabilizá-lo pela condição de indignidade, subvida (Chagas, 1996: 33) e de
inferiorização em que se encontram mergulhados negros e mestiços pobres que
compõem a maior parte da população brasileira são elementos que não recebem na
escola, via de regra, um tratamento que possa se apresentar como uma referência
possibilitadora de modificação quanto à auto-estima do povo negro/mestiço.
Mestiços conhecem a história branca mas pouco conhecem, a história negra, tal
como a maioria do povo negro no Brasil, estando sujeitos permanentemente a negarem
suas histórias pelo desconhecimento e pela força que adquire o branqueamento numa
sociedade onde o racismo se alimenta sob o subterfúgio da cordialidade.
No tempo destinado à escola, crianças e jovens negros/mestiços não encontram
muito poucas referências de cunho sociohistórico que possam intervir na dinâmica de
suas subjetividades na perspectiva de criar uma contraface ao quadro exposto. O
passado, a memória do povo negro nos currículos ou não existe ou tem uma
existência frágil e formal o que, a rigor, significa o mesmo. Contribui-se com isso com
um processo de empobrecimento de expectativas quanto à própria capacidade de ver-se,
situar-se e de mostrar-se enquanto indivíduo ou coletivo pensante e criativo,
remetendo reiteradamente suas expectativas ao campo de possibilidades aceitas
socialmente pelo mundo branco.
De muitas formas persistem ainda as saídas de ascensão individual louvadas
por Paulo Prado nos anos 20 e a negação do passado:
No Brasil, desgraçadamente, a ascensão social do negro o condena a dar as
costas ao passado.(... )Há um cansaço, uma consciência de não pertencer
completamente à sociedade brasileira.(...) A grande aspiração do negro brasileiro é
ser tratado como um homem comum. (p.63)
O espaço de reconhecimento das identidades mestiças nos espaços de formação
precisa centralmente passar pelo conhecer as histórias negras que têm atravessado o
Atlântico. A tentativa de forjar uma "identidade brasileira" de muitas formas reedita a
velha "cordialidade racial" escamoteando questões que merecem abordagens mais
elucidadoras nos currículos escolares.
A seguir, um texto "mestiço" produzido numa sala de aula, carregado de
sentidos onde se evidenciam criticidade e identidade num belo processo de
construção. Em especial, a explicitação do sentimento de "confusão" sobre ser
mestiça produzida socialmente e incorporado subjetivamente, e a presença da
discussão sobre "a cor" na família. Em que pese o reconhecimento em relação à cultura
negra e à condição de mestiça, deixa entender ainda que negro é o outro. Parece haver
um orgulho a ser cultivado quanto à raça negra mas de certa forma ainda envolto
numa nebulosa.
Eu sou mestiça mas tenho uma visão clara sobre os negros.
Ser negro é ser uma pessoa alegre, bonita e trabalhadora.
Por que o branco tem mais direitos do que o negro? O branco passa na rua e não ouve
charadinhas como: o negro só presta para lavar os pés do branco...
O negro é uma pessoa que quer ter o direito de andar de cabeça erguida, passar na rua e
não ser olhado de cima a baixo.
É criticado por sua cultura religiosa conhecida por "umbanda ". Por que os santos
mudam de nome? Nossa Senhora dos Navegantes é "Iemanjá", Nossa Senhora Aparecida é
"Oxum". Porque tantos preconceitos contra a raça negra no mundo?
As pessoas da minha casa ficam discutindo que o branco vale mais que o negro ou que
o negro vale mais que o branco. É uma discussão sem fundamento.
Ser "mestiça" causa uma confusão.
Mas eu tenho orgulho da minha cor. Ser negro deve ser maravilhoso.
Todo negro deveria ter orgulho da sua cor.
(Tatiane - 17anos, 19965)
Identidade II
É central hoje para o currículo escolar pensar sobre os ancestrais africanos do
povo negro tornado "brasileiro", sobre o que eles representam do ponto de vista de
sua história, mas, sobretudo, da forma como o conhecimento e a valorização desta
afro-história possa contribuir na construção de traços da personalidade coletiva e
individual deste povo, de sua identidade, de sua auto-estima. A possibilidade de
redescoberta de regiões e das histórias da África que remontem às origens anteriores
à chaga da diáspora do século XVI, assim como a busca de novas possibilidades
didáticas na sala de aula no caminho da (re)significação das histórias
negras/mestiças nestes cinco séculos de Brasil.
É necessário o reinventar do conhecimento em relação à África, de seus povos tão
ricos em diversidade e tão uníssonos em sentidos, sentimentos, atitudes e certezas em
relação aos significados de suas raízes ancestrais, na força de sua história oral, de seus
signos culturais.
Alheia à força adquirida pela escrita nas sociedades ocidentais, a tradição oral
5
Texto produzido em uma turma do SEJA, SMED/Prefeitura Municipal de Porto Alegre.
africana é portadora de riqueza e vitalidade praticamente desconhecida pela história
veiculada nas escolas ainda mergulhadas: (a) numa falsa premissa de que povos sem
escrita são povos sem história; (b) nas narrativas e interpretações sobre a história de
origem europeia; (c) no descaso para com as histórias do povo negro, especialmente as
anteriores à diáspora.
É comum, ainda, nos espaços institucionais destinados ao conhecimento formal,
atribuir-se à África negra uma visão simplista e superficial em que aparece
constituída por sociedades segmentadas e estruturadas em "clãs", "tribos" ou
grupos isolados, incapacitados de promover a integração do espaço geo-políticosocial, dotadas de economia e tecnologia "primitivas", baixo poder de comunicação
por não possuírem escrita, etc., ou seja, sociedades menos ou mais paradas no
tempo, destituídas de dinâmica própria e totalmente à mercê das influências
exteriores. (Leite, 1993:14)
O examinar das tradições da África negra através da bibliografia disponível
possibilita a descoberta das origens históricas, da organização social extensa, sofisticada
e altamente complexa em seus desdobramentos (Leite, 1993:15), com economias e
tecnologias suficientes, o que elimina a ideia de "primitivo" ou ainda de "atraso"
numa perspectiva de comparação em relação às sociedades industriais. Compatíveis
com sua cosmovisão profundamente articulada que expressa uma visão do
conhecimento totalmente diferenciada das tradições europeias.
Dotados de uma extraordinária relação com a palavra onde a tradição oral "é a
grande escola da vida, e dela recupera e relaciona todos os aspectos. Pode parecer
caótica àqueles que não lhe descortinam o segredo e desconcertar a mentalidade
cartesiana acostumada a separar tudo em categorias bem definidas." (Hampaté Bâ,
1982: 183)
Hampaté Bâ nos dimensiona a profundidade dos significados encontrados na
tradição oral onde - palavra e práticas vinculadas intimamente - o material e o
espiritual não estão dissociados. "Ela (a tradição oral) é ao mesmo tempo religião,
conhecimento, ciência natural, iniciação à arte, história, divertimento e recreação, uma
vez que todo pormenor sempre nos permite remontar à Unidade primordial". (Idem)
Mostra também uma sensível, rica e extremamente dinâmica concepção de
"unidade" que molda a alma africana, fundada na iniciação e na experiência,
concebendo não apenas um "tipo particular de homem" no mundo mas, especialmente,
"um mundo concebido como um Todo onde todas as coisas se religam e
interagem" (Hampaté Bâ, 1982:183). Em Fábio Leite, a retomada desta mesma
perspectiva ao afirmar que, no interior dessa mesma concepção de totalidade,
identifica-se uma
sofisticada noção de pessoa e natureza, conduzindo com notável maestria os
processos de socialização que promovem a integração ótima do homem na
sociedade, fator que explica não só a densidade das práticas político-sociais
como o humanismo de que se reveste a existência global. (Leite, 1993: 15)
Nos rituais a reconstrução das histórias coletivas nunca perdidas no tempo,
produzindo dinâmicas permanentes de religação entre o homem e o universo.
A tradição oral baseia-se em uma certa concepção do homem, do seu lugar
e do seu papel no seio do universo. (É necessário) retornar ao próprio mistério da
criação do homem e da instauração primordial da Palavra: o mistério tal como
ela o revela e do qual emana.( Hampaté Ba, 1982:183)
Inerentes às tradições orais, encontram-se as tradições da memória nos trazendo
a possibilidade do resgate da história africana que, aliadas à antropologia, à
arqueologia, às religiões, aos cultos, às artes e, em especial, à preciosa memória
miúda, particular dos afrodescendentes, nos permitem recompor este universo tão
pouco legitimado nas salas de aula e nos currículos escolares. A dimensão da memória
para as sociedades não letradas se expressa como uma tradição legítima e não por uma
possível consciência de uma ausência da escrita como único registro possível para
preservar a memória de um povo. O historiador Paul Thompson nos ajuda a entender a
força da história oral ao afirmar que, para as sociedades não letradas,
toda história era história oral. Tudo mais, porém, também tinha que ser lembrado:
destrezas e habilidades, o tempo e a estação, o céu, o território, a lei, as falas, as
transações, as negociações. E a própria tradição oral era muito variada. Jan
Vansina (1965) (...) dividiu a tradição oral africana em cinco categorias: Em
primeiro lugar, há as fórmulas - fórmulas de aprendizagem, rituais, gritos de
guerra e outros, os títulos. A seguir, há as listas de nomes de lugares e de nomes de
pessoas. Vem, em seguida, a poesia oficial ou privada - histórica, religiosa ou
pessoal. Em quarto lugar, há as narrativas - históricas, didáticas, artísticas ou
pessoais. Finalmente, há as memórias, legais ou de outros tipos. (Thompson, 1998:
46)
O tempo expresso nas tradições orais africanas não se atém a uma "linha
cronológica" que se preste à racionalidade de tradição europeia. Ao contrário,
reinventa a vida a todo momento, religando-a pela palavra, pela memória, pelo gesto,
pelo simbolismo.
Boubou Hama e J.Ki-Zerbo nos falam de como o tempo africano é dinâmico
constituindo-se num permanente confronto das forças que habitam o mundo, criando
assim um movimento incessante que gera uma energia vital.
Nem na concepção tradicional, nem na visão islâmica que influenciará a
África, o homem é prisioneiro de um processo estático ou de retorno cíclico.
Evidentemente, na ausência da idéia do tempo matemático e físico
contabilizado pela adição de unidades homogêneas e medido por instrumentos
confeccionados para esse fim, o tempo permanece um elemento vivido e social.
Nesse contexto, porém, não se trata de um elemento neutro e indiferente. Na
concepção global do mundo (...) o tempo é o lugar onde o homem pode, sem
cessar, lutar pelo desenvolvimento de sua energia vital. (Hama e Ki-Zerbo, 1982:
68)
Esta energia vital reveste-se de um dinamismo que implica uma interação permanente
entre passado, presente e futuro - consubstanciados na força do animismo e na defesa contra
qualquer diminuição de seu ser, no desenvolvimento da saúde, da forma física, da extensão de
seus campos, na grandeza de seus rebanhos, no número de filhos, de mulheres, de aldeias
(Hama e Ki-Zerbo, 1982: 68). Invocar o passado através dos ancestrais não significa um
imobilismo e "não contradiz a lei geral da acumulação das forças e do progresso". Vem dos
Shongai uma "estrofe mágica" que nos dá uma ideia sobre o papel dos ancestrais, importante,
mas que não retira a força do presente:
Não é da minha boca
É da boca de A
Que o deu a B
Que o deu a C
Que o deu a D
Que o deu a E
Que o deu a F
Que o deu a mim
Que o meu esteja melhor na minha boca
Que na dos ancestrais.( idem)
O sentido de uma educação viva, praticada e significada por toda vida, antecede
a noção ainda pálida que temos dos sentidos profundos de uma "educação
permanente".
No Bafur, até os 42 anos, um homem devia estar na escola da vida e não
tinha "direito à palavra" em assembléias, a não ser excepcionalmente. Seu dever
era ficar "ouvindo" e aprofundar o conhecimento que veio recebendo desde sua
iniciação aos 21 anos. A partir dos 42 anos supunha-se que já tivesse assimilado
e aprofundado os ensinamentos recebidos desde a infância. Adquiria o direito à
palavra nas assembléias e tornava-se, por sua vez, um mestre, para devolver à
sociedade àquilo que dela havia recebido, mas isso não o impedia de continuar
aprendendo com os mais velhos, se assim o desejasse, e deles pedir conselhos. Um
homem idoso encontrava sempre outro mais velho ou mais sábio do que ele, a
quem pudesse solicitar uma informação adicional ou uma opinião. "Todos os
dias", costuma-se dizer, "o ouvido ouve aquilo que ainda não ouviu". Assim a
educação podia durar a vida inteira. ( Hampaté Bâ, 1982: 208-209)
O não-acesso à "palavra" nas assembléias "até os 42 anos" prende-se à importância
atribuída ao tempo destinado ao "saber ouvir" necessário a quem se encontra em
formação e para quem está maturando conhecimentos. A idade - tal como o tempo
africano -assume outra dimensão, intimamente relacionada com o aprimorar-se com
a vida, com o conhecimento e as experiências acumuladas, que dá aos mais velhos, por
exemplo, a condição de "mestres", "sábios" tão distantes na forma e nos significados da
visão moderna sobre o velho e sua "função produtiva".
Quando um velho conta uma história iniciatória em uma assembléia,
desenvolve-lhe o simbolismo de acordo com a natureza e a capacidade de
compreensão de seu auditório. Ele pode fazer dela simples história infantil com
fundamento moral educativo ou uma fecunda lição sobre os mistérios da natureza
humana e da relação do homem com os mundos invisíveis. Cada um retém e
compreende conforme sua capacidade. (Hampaté Bâ, 1982: 209)
O velho não é apenas escutado. É um elucidador que, com suas histórias, contribui
ativamente no pensar/agir das gerações mais jovens, ao mesmo tempo garantindo a
continuação das futuras gerações pela preservação da memória. Possui um papel
social vivo, ativo, preservador e sintetizador do tempo.
Finalizando
No limiar do sexto século de existência deste espaço chamado Brasil,
confrontamo-nos diretamente com velhas e novas questões que vão da velha
"cordialidade racial" às novas facetas do neoliberalismo e da globalização,
passando por novas (e às vezes ambíguas) discussões no campo do
multiculturalismo e da elucidação das diferenças que aqui se pretendem na
contramão do "branqueamento" como tentativa falsa de tornar a todos iguais, numa
sociedade que nasce sob o signo da força, da desigualdade e do apagamento
gradual das histórias não-brancas.
As intenções deste escrito se dirigem aos professores de ensino fundamental e
médio, aos currículos escolares e ao ensino de história, sem deixar de lado os
currículos de formação de futuros professores de história e todos os que se
interessam pelas questões ligadas à construção de identidades negras/mestiças.
Ficam aqui indicações quanto à necessidade:
-de acervos de boa qualidade sobre a África, praticamente inexistentes nas
escolas de ensino fundamental e médio e precários nas universidades;
-do exame dos currículos da pré-escola à universidade no que trata da(s) história(s) do
povo negro;
-da construção de um ensino de história que contribua na recuperação das tramas
que dão forma às identidades negras/mestiças em seus aspectos coletivo/individuais,
ampliando e qualificando os espaços de conhecimento histórico e de manifestação das
subjetividades ao resgatar histórias negras/mestiças na sala de aula, apontando para um
redimensionamento da auto-estima do povo afrodescendente.
Referências Bibliográficas
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1996.
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LARROSA, Jorge. Pedagogia profana: danças, piruetas e mascaradas. Belo Horizonte:
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LEITE, Fábio. África: moda, cultura e tradição/ textos Fábio Ávila e Fábio Leite;
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