A Bioquímica e a Química Orgânica

Transcrição

A Bioquímica e a Química Orgânica
A Bioquímica e a Química Orgânica – Rui Fontes e Nuno Alçada
A Bioquímica e a Química Orgânica
Sendo a Bioquímica um ramo interdisciplinar da ciência que utiliza princípios e métodos da Química
na investigação da composição e das transformações que ocorrem nos seres vivos, compreende-se que
algumas noções de Química Orgânica (estudo da composição química, das propriedades e reacções de
compostos que contêm cadeias de carbono) sejam imprescindíveis para o trabalho em Bioquímica. Com o
texto que a seguir se apresenta pretende-se rever algumas noções de Química Orgânica de importância
fundamental para o estudo da Bioquímica.
Índice
1.
2.
3.
4.
5.
6.
7.
8.
9.
10.
11.
12.
Os hidrocarbonetos alifáticos saturados e insaturados (isomeria cis-trans) .............................................................. 1
Os hidrocarbonetos aromáticos ................................................................................................................................. 3
Os álcoois e os éteres. ............................................................................................................................................... 4
Os grupos que contêm enxofre: os tióis, os sulfuretos e os dissulfuretos.................................................................. 5
Os aldeídos e as cetonas............................................................................................................................................ 6
Os semiacetais e os acetais........................................................................................................................................ 7
Os ácidos carboxílicos, os ésteres, as lactonas e os tioésteres................................................................................... 9
Os grupos fosfato, sulfato e as ligações fosfoéster, fosfodiéster e sulfoéster .......................................................... 12
Os anidridos e os fosfoanidridos ............................................................................................................................. 14
Os grupos azotados: as aminas, as amidas, o grupo guanidina e os sais de amónio substituído ............................. 14
Os heterociclos ........................................................................................................................................................ 18
A isomeria óptica (ou quiral) .................................................................................................................................. 19
1. Os hidrocarbonetos alifáticos saturados e insaturados (isomeria cis-trans)
Os compostos orgânicos mais simples são os hidrocarbonetos: os hidrocarbonetos são constituídos
apenas por carbono e hidrogénio.
O hidrocarboneto mais simples é o metano (CH4; ver Fig. 1): a sua molécula contém um único átomo
de carbono ligado a 4 átomos de hidrogénio. O etano (CH3CH3), o propano (CH3CH2CH3), o butano
(CH3CH2CH2CH3), o pentano (CH3CH2CH2CH2CH3) e o hexano (CH3CH2CH2CH2CH2CH3) também são
hidrocarbonetos. Nestes casos, os compostos são constituídos por cadeias alifáticas (não aromáticas; ver
Capítulo 2) saturadas (só ligações simples) e têm o nome colectivo de alcanos. Os alcanos acima referidos
são todos não ramificados mas quando têm mais de 3 carbonos podem ser ramificados: um átomo de carbono
pode ligar-se a 3 (ou 4) átomos de carbono.
Fig. 1: Modelos tridimensionais e representações do metano, de uma cadeia alifática linear saturada com 14 carbonos e
de duas insaturadas também com 14 carbonos (em baixo). Uma destas é um isómero trans (à esquerda) e outra é cis (à
direita).
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As cadeias alifáticas saturadas podem ser cíclicas como no caso do ciclopentano, cuja fórmula
molecular é C5H10; no ciclopentano cada átomo de carbono está ligado por ligações simples a outros dois
H
H
carbonos e a dois hidrogénios. (
H
C
H
C
H
H
C
H
C
H)
C
H
H
Quando, num hidrocarboneto, há uma ou mais ligações duplas (ligando átomos de carbono) os
compostos em questão dizem-se alcenos: são exemplos o eteno (H2C CH2), o propeno (H2C CH CH3), o 1buteno (H2C CH CH2 CH3), o 1-penteno (H2C CH CH2 CH2 CH3) e o 1-hexeno (H2C CH CH2 CH2 CH2 CH3). (Nos
alcenos, os carbonos são numerados de forma a que os carbonos que contêm duplas ligações tenham o
número mais baixo possível). Nestes casos as cadeias dizem-se insaturadas porque podem, aceitando átomos
de hidrogénio (ou seja, sofrendo redução), converter-se em alcanos.
Na Fig. 2 representam-se as fórmulas estruturais do eteno e de dois isómeros1 do 2-buteno. De notar
que o 2-buteno pode ser descrito como um eteno em que dois dos hidrogénios (um em cada carbono) foram
substituídos por grupos metilo (-CH3). Ao contrário do que acontece nas ligações simples, quando há
ligações duplas deixa de haver rotação em torno das ligações: assim os compostos 2-cis-buteno e 2-transbuteno são compostos distintos (são um par de isómeros cis-trans; ver Fig. 2). Na Fig. 2, o buteno da
esquerda diz-se cis porque ambos os substituintes do hidrogénio (neste caso, os metilos) estão voltados para
o mesmo lado; o da direita diz-se trans porque os substituintes do hidrogénio estão voltados para lados
opostos. Dois isómeros cis-trans diferem entre si nas posições dos átomos relativamente a um plano
específico que contém os átomos considerados em posições rígidas. Para este tipo de isomeria devem existir,
pelo menos, dois átomos (ou grupos de átomos) iguais de cada lado da ligação dupla2 – no caso dos
isobutenos em análise existem dois pares iguais (um H e um CH3 de cada lado da ligação dupla).
1
H
H
4
4
H3C
CH3
H
CH3
1
2
2
3
2
3
C
C
C
C
C
C
1
H
H
H
H
H3C
H
Fig. 2: Modelos tridimensionais e fórmulas estruturais do eteno, do 2-cis-buteno e do 2-trans-buteno. Na linha de baixo
e à direita está representado o 2-trans-buteno numa maneira que é muito comum em Química Orgânica e em
Bioquímica: foram omitidos os hidrogénios e as suas ligações; os carbonos estão representados como os extremos das
linhas que representam ligações simples ou duplas.
Nos alcanos não ramificados cada átomo de carbono está ligado por ligações simples a hidrogénios e
(exceptuando o caso do metano) a, pelo menos, um átomo de carbono. Se considerarmos um qualquer átomo
de carbono como estando no centro de um tetraedro, os outros átomos a ele ligados ocupam os vértices do
tetraedro: os ângulos entre as diferentes ligações são, em todos os casos, de 109,5º (ver Fig. 1). Por isso é
comum representar-se uma cadeia alifática que só contém ligações simples como uma linha quebrada como a
mostrada na Fig. 1. Quando há ligações duplas, os três átomos ligados ao carbono que contém a ligação
dupla estão no mesmo plano e os ângulos entre as 3 ligações (a dupla e as duas simples) são de 120º. Os
isómeros de tipo cis (à direita e em baixo na Fig. 1) são estruturalmente muito diferentes dos alcanos que têm
1
Isómeros são compostos que, tendo a mesma fórmula molecular, não têm a mesma estrutura. Por exemplo, o n-butano
(cadeia alifática linear saturada com 4 carbonos) é um isómero (isómero de cadeia) do isobutano (ou 2-metilpropano;
propano com um grupo metilo no carbono 2). Em ambos os casos a fórmula molecular é C4H10.
2
Quando tal não ocorre pode usar-se outra nomenclatura (Z-E) que é ignorada no presente texto.
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o mesmo número de carbonos; pelo contrário, no caso dos isómeros trans (à esquerda e em baixo na Fig. 1) a
diferença estrutural relativamente aos hidrocarbonetos saturados correspondentes não é tão marcada.
Os grupos químicos derivados dos alcanos por perda de um átomo de hidrogénio chamam-se,
genericamente, grupos alquilo (-CnHn*2+1). O grupo metilo (-CH3) é o grupo alquilo mais simples. O grupo
químico derivado do eteno designa-se de vinilo ( CH CH2).
O isopreno é um hidrocarboneto ramificado não saturado com cinco carbonos (é um butadieno
metilado no carbono 2; ver Fig. 3). Muitos compostos de origem animal e vegetal contêm na sua constituição
polímeros do isopreno (terpenos) ou de unidades isopreno que foram reduzidas, não contendo, por isso,
duplas ligações. São exemplos de compostos que contém unidades isopreno ou os seus derivados saturados
a vitamina A, os carotenóides, a vitamina K, a vitamina E, a ubiquinona e os precursores do colesterol.
Unidades repetidas de isoprenos são também encontradas ligadas a muitas proteínas membranares
(denominadas de proteínas preniladas). A presença de polímeros do isopreno confere propriedades
hidrofóbicas às substâncias que os contêm.
O
CH3
H2C
CH2
CH3
H2
C
H3C
CH3
CH3
CH3
H3CO
OH
C
C
H
CH3
CH2
H3CO
CH3
H
O
CH3
6-10
Fig. 3: Estruturas do isopreno (a unidade isoprenóide que habitualmente aparece repetida) e de substâncias que contém
polímeros de isopreno (terpenos): uma forma de vitamina A, o retinol e a ubiquinona.
2. Os hidrocarbonetos aromáticos
O hidrocarboneto aromático mais simples é o benzeno (ver Fig. 4): tem 6 átomos de carbono e 3
duplas ligações conjugadas (intervaladas de ligações simples). Por razões que têm que ver com a forma de
partilha dos electrões das ligações duplas do benzeno (e doutras estruturas aromáticas) é costume
representar-se o benzeno como um hexágono que tem inscrita uma circunferência (ver Fig. 4). O grupo
químico correspondente ao benzeno é o grupo fenilo. Na Fig. 4 mostram-se as estruturas de dois
aminoácidos: à direita, a da alanina e ao seu lado esquerdo a da fenilalanina. A fenilalanina pode ser
entendida como a alanina em que um dos hidrogénios do carbono 3 foi substituído por um grupo fenilo.
Fig. 4: Três formas frequentes de representar o benzeno (à esquerda) e estruturas dos aminoácidos fenilalanina e
alanina.
Um outro composto aromático é, por exemplo, o fenantreno (ver Fig. 5). Na Fig. 5, para além da
estrutura do fenantreno, está também representada a estrutura do colesterol. As estruturas dos compostos
com relevância biológica são, muitas vezes, complexas e, por isso, é frequente não se usarem as regras da
nomenclatura sistemática nem na sua nomeação nem na numeração dos seus carbonos. O colesterol, por
exemplo, é normalmente descrito como sendo constituído por um núcleo de ciclopentanoperhidrofenantreno
contendo um grupo hidroxilo no carbono 3, uma ligação dupla no carbono 5 (quer dizer, entre o 5 e o 6), dois
grupos metilo (carbonos 18 e 19) ligados nos carbonos 13 e 10 e uma cadeia alifática ramificada com 8
carbonos (grupo alquilo) ligada no carbono 17. A designação do núcleo ciclopentanoperhidrofenantreno
resulta do facto de este núcleo poder ser entendido como um ciclopentano ligado a um fenantreno saturado
(perhidrofenantreno). Para além do colesterol, existem muitos outros compostos que estão presentes nos
seres vivos e que contêm o núcleo ciclopentanoperhidrofenantreno. Tal como no caso do colesterol o núcleo
pode estar parcialmente insaturado e a denominação genérica destes compostos é a de esteróides. Quando os
esteróides possuem pelo menos um grupo hidroxilo (como também acontece com o colesterol) denominamse esteróis.
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21
18
HC
20
CH3
12
19
11
24
26
HC
25
23
CH3
17
27
16
14
1
9
10
15
8
3
7
5
4
HO
CH2
13
H3C
2
22
CH3
CH2
CH2
H3C
6
Fig. 5: Ao lado esquerdo está representado o fenantreno e, ao lado direito, a estrutura de uma substância muito
importante em Bioquímica: o colesterol.
3. Os álcoois e os éteres.
O colesterol (ver Fig. 5) é um álcool porque tem um grupo hidroxilo (-OH) no carbono 3. Os álcoois
são compostos orgânicos com um ou mais grupos hidroxilo. Os álcoois mais simples são o metanol (um
carbono) e o etanol (dois carbonos; ver Fig. 6). Como norma, quando um álcool tem apenas um grupo
hidroxilo os carbonos são numerados de tal forma que o carbono ligado ao grupo hidroxilo tenha o número
mais baixo possível. No caso do etanol, por exemplo, o carbono 1 é o que está ligado ao hidroxilo e o
carbono 2 é do grupo metilo.
H
H
C
H
O
H
H
H
C
C
H
O
O
H
H
C
C
H
H
H
H
H
Fig. 6: Modelos tridimensionais e fórmulas estruturais do metanol, do etanol e do etilenoglicol.
H
O
H
O etilenoglicol (ou 1,2-etanodiol) é o poliálcool mais simples (ver Fig. 6). Um dos poliálcoois com
maior importância em Bioquímica é o glicerol (1,2,3-propanotriol): contém 3 carbonos e 3 grupos hidroxilo
sendo que dois deles são primários (os das extremidades) e o outro secundário (ver Fig. 7). Outros
poliálcoois com alguma importância em Bioquímica são o inositol e o sorbitol (ver Fig. 7).
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Fig. 7: Fórmulas estruturais do glicerol, do inositol e do sorbitol. O glicerol é um poliálcool com 3 grupos hidroxilo. Os
grupos hidroxilo das extremidades dizem-se primários porque o carbono a que estão ligados contém apenas uma ligação
C-C. O grupo hidroxilo do carbono 2 diz-se secundário porque o carbono a que está ligado contém duas ligações C-C.
A estrutura do inositol pode ser descrita como um ciclo-hexano em que cada um dos 6 carbonos está ligado a um grupo
hidroxilo (todos secundários). O sorbitol também é um poliálcool com 6 carbonos mas a sua estrutura é linear: 2 dos
grupos hidroxilo são primários e 4 são secundários.
Quando duas moléculas de um álcool reagem entre si com libertação de uma molécula de água formase um éter (ver Fig. 8). Um éter pode ser descrito como contendo a estrutura R-O-R’, sendo R e R’ grupos
alquilo (ou fenilo). Os epóxidos são éteres intramoleculares: ou seja, o átomo de oxigénio é um dos átomos
de um anel em que os restantes átomos são carbonos; eventualmente, pode haver mais que uma ligação
epóxido no mesmo anel e nestes casos haverá mais de um átomo de oxigénio no anel. Um exemplo é o 2,3epoxiesqualeno, um composto que se forma durante a síntese endógena do colesterol (ver Fig. 8).
2
H
H
H
C
C
H
H
H
H2O
O
H
H2O
H
H
C
C
H
H
O
H
H
C
C
H
H
H
O
Fig. 8: Reacção de desidratação do etanol com formação do éter dietílico (à esquerda) e fórmula estrutural do 2,3epoxiesqualeno (à direita). O 2,3-epoxiesqualeno contém um grupo epóxido (éter intramolecular) e forma-se durante a
síntese do colesterol.
4. Os grupos que contêm enxofre: os tióis, os sulfuretos e os dissulfuretos
Algumas substâncias importantes em biologia têm grupos tiol (-SH) que podem ser entendidos como
grupos hidroxilo em que o oxigénio foi substituído por enxofre (daí a denominação tio – tiol ou tioalcool).
Dois exemplos são a coenzima A (CoA) e o aminoácido cisteína (ver Fig. 9). Frequentemente, para pôr em
evidência a existência de um grupo tiol na molécula da coenzima A, escreve-se: CoASH.
Quando o hidrogénio de um grupo tiol está substituído por um grupo alquilo estamos em presença de
um sulfureto orgânico: é o caso do aminoácido (ou ácido aminado) metionina que contém um metilo ligado
por uma ligação sulfureto (R-S-R’) à restante molécula (ver Fig. 9).
Duas moléculas de cisteína podem reagir entre si formando uma de cistina (ver Fig. 9): o processo
envolve uma oxidação formando-se uma ligação dissulfureto (R-S-S-R’). Nalgumas proteínas existem
ligações dissulfureto dentro da mesma cadeia aminoacídica ou ligando cadeias aminoacídicas distintas: estas
ligações dissulfureto resultam da oxidação (e ligação) catalisada enzimicamente de dois resíduos de cisteína
e ocorre após a tradução. O mesmo acontece no caso do glutatião, um peptídeo que contém um resíduo de
cisteína.
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NH2
N
N
COO
CH2
O
O
P
O
-
COO
N
O
H
H3N
COO
H
+
H
O
H3N
H
O
O
P
O
-
O
OH
P
O
O
H2C
H3C
O
-
-
N
-
H
H
N
N
C
-
H3N
+
C
+
C
C
CH3
H
C
CH2
CH2
H
CH2
CH2
SH
S
S
S
CH2
H
CH3
+
C
NH3
COO
-
SH
C
O
H
H
HO
C
-
O
Fig. 9: Por ordem estão representadas a coenzima A e os aminoácidos cisteína, metionina e cistina. Os dois primeiros
contêm grupos tiol. O aminoácido metionina contém um grupo sulfureto em que um átomo de enxofre serve de ponte
entre um grupo metilo e a restante molécula. A cistina é formada pela ligação e oxidação (perda de dois electrões e dois
protões, ou seja, perda de H2) simultânea de duas cisteínas e contém um grupo dissulfureto.
5. Os aldeídos e as cetonas
Quando um grupo hidroxilo primário é oxidado (ver Fig. 10) perdendo dois electrões (e dois protões,
H
ou seja, dois átomos de hidrogénio) dá origem a um grupo aldeído (-CHO ou
). No caso de ser um
C
O
grupo hidroxilo secundário forma-se uma cetona (
O ).
C
Um dos aldeídos mais simples3 é o etanal
(também chamado de acetaldeído ou aldeído acético; CH3CHO), um composto que se forma no organismo
durante a oxidação do etanol da dieta (ver Fig. 10). A cetona mais simples é a acetona (CH3COCH3; ver Fig.
10). Os grupos aldeído e cetónicos são colectivamente designados de grupos carbonilo.
H
H
H
C
C
H
H
O
H
NAD
H
H
+
+
NADH + H
C
O
C
H
H
O
H
C
C
C
H
+
H
H
H
H
Fig. 10: A oxidação do etanol pelo NAD (que é o oxidante) leva à formação do etanal (ou acetaldeído) que contém um
grupo aldeído (lado esquerdo). A acetona (lado direito) contém um grupo cetónico.
Os monossacarídeos (também designados de oses) são, frequentemente, definidos como derivados
aldeídicos ou cetónicos de poliálcoois. Na Fig. 11 mostra-se a estrutura de diferentes oses. O gliceraldeído
(uma triose), a eritrose (uma tetrose), a ribose (uma pentose) e a glicose (uma hexose) são aldoses porque
contêm um grupo aldeído; a di-hidroxiacetona (triose) e a frutose (hexose) são cetoses porque contém um
grupo cetónico. No caso das aldoses o carbono 1 é o que contém o grupo aldeído. No caso das cetoses
naturais o grupo cetona está sempre no carbono 2.
A di-hidroxiacetona e o gliceraldeído têm a mesma fórmula molecular (C3H6O3) mas as suas estruturas
moleculares são diferentes – são isómeros (ver Fig. 11). Não será por isso de estranhar que, baseando-se a
interacção das moléculas nos seres vivos (nomeadamente a ligação específica a enzimas ou a receptores de
membrana) na complementaridade estrutural, a di-hidroxiacetona e o gliceraldeído sejam reconhecidos como
substâncias diferentes pelos seres vivos. Neste caso, porque a diferença se deve à diferente posição que um
grupo carbonilo e um grupo hidroxilo ocupam na estrutura molecular, o gliceraldeído e a di-hidroxiacetona
3
O aldeído mais simples é o metanal (CH2O) também designado de formol (ou formaldeído), um conservante usado
para preservar cadáveres ou material biológico obtido por biopsia em estudos de Anatomia, Histologia e
Anatomopatologia.
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dizem-se isómeros de posição. Também são exemplos de isómeros de posição a glicose e a frutose (ver Fig.
11).
H
H
O
H
H
C
C
OH
H
C
OH
OH
C
H
O
C
H
O
O
C
H
H
OH
OH
H
C
OH
H
C
OH
H
C
OH
H
C
OH
HO
C
H
H
C
OH
H
C
OH
H
C
OH
OH
C
H
C
OH
C
H
H
OH
C
H
C
C
C
H
H
H
H
O
H
H
C
OH
C
O
HO
C
H
H
C
OH
H
C
OH
H
C
OH
H
H
Fig. 11: Estrutura de diferentes monossacarídeos (ou oses). Por ordem estão representados o gliceraldeído, a dihidroxiacetona, a eritrose, a ribose, a glicose e a frutose. A di-hidroxiacetona e a frutose são cetoses enquanto as
restantes são aldoses. O gliceraldeído e a di-hidroxiacetona assim como a glicose e a frutose são isómeros de posição.
6. Os semiacetais e os acetais
Os monossacarídeos (ou oses) com número de carbonos superior a 4 são mais estáveis quando formam
estruturas cíclicas que nas formas lineares representadas na Fig. 11. O processo de ciclização envolve um
rearranjo molecular em que o grupo carbonilo reage com um grupo hidroxilo formando-se uma ligação
semiacetal (ver Fig. 12). Um semiacetal é facilmente identificado tendo em conta que temos um carbono
com um grupo hidroxilo ligado a outro carbono através de um átomo de oxigénio (ver Fig. 12 e Fig. 13).
H
H
O
R
H
O
+
C
HO
R1
C
H
R
O
C
C
R1
H
H
H
Fig. 12: Representação esquemática da formação de uma ligação semiacetal. Os oxigénios e o hidrogénio envolvidos no
processo estão representados a cores para se perceberem melhor as modificações estruturais ocorridas durante o
processo. R e R1 representam o resto da molécula.
Na Fig. 13 mostra-se como pode ser compreendido o processo de ciclização da glicose. O carbono 1
da glicose, que na forma linear contém o grupo aldeído, na forma cíclica contém um grupo hidroxilo ligado
através de um átomo de oxigénio a um outro átomo de carbono (mais frequentemente o carbono 5). O
carbono que constitui o grupo carbonilo nas formas lineares das oses (o 1, no caso das aldoses, ou o 2, no
caso das cetoses) passa a designar-se de carbono anomérico quando falamos das estruturas cíclicas (o
carbono ligado a dois átomos de oxigénio no semiacetal).
H
O
C
H
OH
C
1
OH
1
6
H
C
HO
C
H
C
H
C
2
OH
H
C
HO
C
OH
H
C
OH
H
C
2
OH
H
3
H
3
H
4
OH
HO
5
OH
3
6
H
2
1
OH
5
H
CH2OH
H
H
4
4
O
5
O
OH
CH2OH
6
Fig. 13: A glicose na sua representação linear de acordo com a convenção de Fischer (à esquerda; ver Capítulo 12). A
mesma glicose representada na forma cíclica de acordo com a convenção de Fischer modificada (no centro) e na forma
como é habitualmente representada nos livros de texto de Bioquímica (convenção de Haworth; à direita). A formação
da forma cíclica envolve a formação de um semiacetal. O carbono que, na forma linear, constitui o grupo carbonilo
chama-se, na forma cíclica, carbono anomérico.
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Os acetais podem ser compreendidos como resultando da reacção entre um semiacetal e um álcool
com perda de água4 (ver Fig. 14; podemos entender os acetais como estruturas do tipo R1-O-CHR2-O-R3).
H
H
C
H
R1
C
H
H
O
C
R3
OH
H
H
H
OH
R1
H
O
C
C
C
O
R3
H2O
R2
H
R2
Fig. 14: Uma ligação acetal pode ser entendida (ver nota de rodapé nº 4) como resultando da ligação entre um grupo
semiacetal e um grupo hidroxilo com perda de H2O.
Os dissacarídeos (como a maltose; ver Fig. 15) são formados por dois resíduos5 de oses (no caso da
maltose por dois resíduos de glicose). No caso dos dissacarídeos, o átomo de carbono ligado a dois átomos
de oxigénio é o carbono anomérico da ose que contribuiu para a ligação acetal com o grupo semiacetal. No
contexto do estudo dos glicídeos, a ligação acetal também se designa de glicosídica de tipo O. Nas ligações
glicosídicas de tipo O existe um átomo de oxigénio a ligar o carbono anomérico de uma ose com um outro
resíduo; no caso da maltose este outro resíduo é também um resíduo de glicose (ver Fig. 15). Como
estudaremos à frente, as ligações glicosídicas de tipo O, envolvendo sempre o carbono anomérico de uma
ose, podem ligar esta ose a um grupo fosfato (ver Capítulo 8). As ligações glicosídicas também podem ser de
tipo N e o seu estudo será feito no Capítulo 10. As relações entre as ligações glicosídicas e a isomeria óptica
dos glicídeos serão sumariamente abordadas no Capítulo 12.
As ligações glicosídicas podem sofrer hidrólise (rotura por reacção com a água) libertando como
produtos a ose que contribuía com o semiacetal para a ligação e a outra substância a ela ligada. No caso da
hidrólise da maltose geram-se, como produtos, glicose + glicose (a reacção inversa da indicada na Fig. 15).
OH
OH
O H
H
O H
H
H
H
OH
H
OH
HO
H
OH
H
H
OH
OH
H2O
OH
O H
H
OH
HO
OH
O H
H
H
H
OH
H
H
OH
HO
OH
H
H
OH
OH
O
Fig. 15: Representação esquemática (não real; ver nota de rodapé nº 4) da formação da maltose. Quando um
monossacarídeo se liga a outro envolvendo na ligação o carbono anomérico do primeiro, os dois resíduos ficam, no
dissacarídeo resultante, ligados por uma ligação acetal. Esta ligação é, em Bioquímica, designada como ligação
glicosídica de tipo O.
4
De facto, a reacção de formação de acetais com perda de água é, termodinamicamente, muito desfavorecida e o que é
termodinamicamente possível nas condições habituais nos seres vivos é a reacção inversa: a hidrólise do grupo acetal.
Uma situação semelhante acontece nos casos das ligações éster, tioéster, anidrido, amina e amida que serão tratadas
noutros Capítulos deste texto.
5
Quando se fala de polímeros as partes constituintes dizem-se resíduos. Por exemplo, a maltose é constituída por dois
resíduos de glicose, uma proteína é constituída por resíduos de aminoácidos, etc.
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A Bioquímica e a Química Orgânica – Rui Fontes e Nuno Alçada
7. Os ácidos carboxílicos, os ésteres, as lactonas e os tioésteres
O
A oxidação de grupos aldeído origina grupos carboxilo (-COOH ou
C
). As substâncias com
OH
grupos carboxilo são ácidos fracos e a libertação do protão origina a base (ou sal6) correspondente. O ácido
carboxílico mais simples é o ácido fórmico (HCOOH). Outros ácidos monocarboxílicos (só com um grupo
carboxílico) com relevância biológica e que contêm cadeias alifáticas saturadas lineares são o acético
(CH3COOH), o propiónico (CH3CH2COOH), o butírico (CH3CH2CH2COOH), o mirístico
(CH3(CH2)12COOH), o palmítico (CH3(CH2)14COOH) e o esteárico (CH3(CH2)16COOH). As formas
ionizadas (as bases ou sais respectivos) designam-se, respectivamente, como formato, acetato, propionato,
butirato, miristato, palmitato e estearato.
Em Bioquímica, usam-se frequentemente as expressões que designam as formas salinas para incluir
colectivamente as formas ácidas não ionizadas e as formas ionizadas (as formas com o protão desligado).
Assim, é também comum usar a expressão grupo carboxilato (-COO- ou
) quer para designar o grupo
carboxílico ionizado quer as duas formas (ionizada e não ionizada) no seu conjunto. Este facto não é de
estranhar já que, tendo em conta o pKa dos ácidos carboxílicos (cerca de 3 a 5) e o pH das células e do meio
extracelular (próximo de 7), a maioria das moléculas dos ácidos carboxílicos encontra-se, no meio interno,
desligada do protão7. No entanto, também não é infrequente usar, por exemplo, a expressão “ácidos gordos”
para incluir colectivamente os ácidos gordos e os respectivos sais. Só o contexto poderá indicar-nos se a
expressão “palmitato” se refere ao conjunto ácido palmítico+palmitato (a esmagadora maioria das vezes) ou
ao sal dissociado do protão (quando se discutem reacções ácido-base). Também só o contexto nos permitirá
distinguir se, por exemplo, as expressões “grupo carboxílico” e “ácido palmítico” se referem ao conjunto das
formas dissociadas e não dissociadas ou às formas ácidas não dissociadas do protão. Ao contrário do que
acontece na maioria das reacções que ocorrem nos seres vivos as reacções de protólise e de ligação a protões
(reacções ácido-base) não são catalisadas enzimicamente mas são muito rápidas e as formas ácidas e básicas
encontram-se em equilíbrio dinâmico.
Com a excepção do ácido fórmico, todos os ácidos (e respectivos sais) referidos no primeiro parágrafo
deste Capítulo podem ser entendidos como uma cadeia alifática não ramificada ligada a um grupo
carboxílico por uma ligação C-C simples (ver Fig. 16). Os ácidos gordos têm uma enorme importância em
biologia e são assim designados porque a cadeia alifática é hidrofóbica. O grupo carboxílico (ou carboxilato)
é, pelo contrário, hidrofílico o que confere propriedades anfipáticas8 a estes ácidos. Quando a cadeia alifática
é muito curta (como no ácido acético e no propiónico) o adjectivo “gordo” poderá ser considerado, em
termos estritos, inadequado mas não é infrequente incluir estes ácidos no conjunto dos ácidos gordos.
O
-
2
1
4
3
α
β
6
5
γ
8
7
10
9
δ
14
12
16
11
13
15
ω6
ω5 ω4
ω3 ω2
CH3
ω
ω1
O
Fig. 16: A estrutura do palmitato mostrando o grupo carboxilato ligado a uma cadeia alifática linear saturada com 15
carbonos. Mais frequentemente os carbonos são numerados de tal maneira que o carbono do grupo carboxílico é o 1.
Uma forma também frequente é designar por α (alfa) o carbono da cadeia alifática que se liga directamente ao carbono
do grupo carboxílico, por β (beta) o seguinte e por ω (ómega) o último. No contexto do estudo dos ácidos gordos
insaturados é frequente nomearem-se os carbonos por ordem inversa: neste caso o último carbono será o ω1 e os
seguintes, ω2, ω3, etc. Nos ácidos gordos ω3 a última dupla ligação é entre os carbonos ω3 e ω4; nos ω6 a última dupla
ligação é entre os carbonos ω6 e ω7.
6
Embora a libertação do protão dos ácidos carboxílicos origine bases, a sua afinidade para os protões pode, em muitos
contextos, não ter relevância sendo, por isso, frequentemente, designados de sais. É frequente dizer-se que o palmitato
é, por exemplo, o sal resultante da protólise do ácido palmítico: CH3(CH2)14COOH → CH3(CH2)14COO- + H+. Os sais
dos ácidos gordos designam-se de sabões: o palmitato é um sabão.
7
Quando um determinado ácido AH que tem um pKa de valor X está num meio aquoso em que o pH é X significa que
metade das moléculas do ácido estão ionizadas (forma salina; A-) e metade estão não ionizadas (forma ácida; AH):
quando o pH do meio coincide com o pKa de um ácido este encontra-se hemidissociado. Quando o pH<pKa, a maioria
das moléculas encontra-se na forma não ionizada (AH). Se, como acontece aos ácidos carboxílicos no meio interno,
pH>pKa, a maioria das moléculas encontra-se na forma ionizada (A-).
8
Dizem-se anfipáticas as substâncias que contém, simultaneamente, regiões hidrofílicas e regiões hidrofóbicas na sua
estrutura molecular.
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A Bioquímica e a Química Orgânica – Rui Fontes e Nuno Alçada
Para além dos ácidos referidos acima também são ácidos gordos com enorme importância biológica os
ácidos gordos que contém duplas ligações na cadeia alifática. Na Fig. 17 mostra-se a estrutura de três ácidos
gordos insaturados naturais. Na esmagadora maioria dos ácidos gordos insaturados naturais os isómeros são
de tipo cis de tal forma que a cadeia alifática tem uma estrutura muito diferente da dos ácidos gordos
saturados (ver Fig. 17 e Fig. 1). Porque existe um maior número de ligações intermoleculares
(frequentemente designadas, em Bioquímica, de hidrofóbicas) entre as diferentes moléculas de um ácido
gordo saturado (devido a um “empacotamento” mais extenso) que as ligações entre as estruturas “mais
desordenadas” dos ácidos gordos insaturados naturais, os ácidos insaturados têm pontos de fusão mais baixos
que os saturados com igual número de carbonos. Por exemplo, enquanto o ácido esteárico (18:0) é um sólido
à temperatura ambiente, o oleico (18:1;9) é um líquido quando acima dos 7 ºC.
Fig. 17: O oleato, o linoleato e o α-linolenato (de cima para baixo na figura) são os sais dos ácidos oleico, linoleico e αlinolénico. Todos têm 18 carbonos mas ao contrário do ácido esteárico (18:0) que é saturado, estes têm duplas ligações
(são insaturados). O ácido oleico (18:1;9) tem uma dupla ligação no carbono 9 (ou, também se pode dizer, no ω9). O
ácido linoleico (18:2;9,12) tem duas ligações duplas, uma no carbono 9 e outra no 12 (ou nos carbonos ω9 e ω6). O
ácido α-linolénico (18:3:9,12,15) tem três duplas ligações, nos carbonos 9, 12 e 15 (ou nos carbonos ω9, ω6 e ω3).
Muitas substâncias com enorme importância biológica contêm grupos carboxílicos. Na Fig. 18 estão
representados alguns destes compostos (ou, mais propriamente, os respectivos sais). Dois deles já foram
referidos acima: o acetato (2:0) e o propionato (3:0). O lactato e o piruvato são produtos da glicólise. O
acetoacetato é uma substância que se forma no fígado durante o jejum. O succinato, o fumarato, o malato, o
oxalacetato, o α-ceto-glutarato (ou α-oxo-glutarato uma vez que, por vezes, em vez de ceto usa-se o termo
oxo), o citrato e o isocitrato são intermediários do ciclo de Krebs e o glutamato é um aminoácido que faz
parte das proteínas e é um metabolito em variadas vias metabólicas. De facto, como será discutido no
Capítulo 10, todos os aminoácidos contêm, pelo menos, um grupo carboxílico.
COO
COO
-
H
CH3
C
-
COO
H
HO
H
COO
C
-
COO
O
H
C
COO
-
CH2
OH
C
CH3
COO
CH3
-
COO
CH2
C
H
CH2
COO
COO
C
C
-
-
O
CH2
COO
+
C
C
-
-
COO
C
H
COO
H
COO
C
O
COO
-
-
COO
-
CH2
COO
CH2
-
-
CH2
HO
-
CH2
COO
-
O
CH3
CH2
CH2
-
HO
H
COO
H3N
COO
C
CH2
CH2
-
COO
-
CH2OH
CH3
COO
-
-
H
C
COO
HO
C
H
COO
-
-
Fig. 18: Estrutura de sais de ácidos carboxílicos com grande importância biológica. Na linha de cima representam-se
sais de ácidos monocarboxílicos. Por ordem: acetato, propionato, lactato, piruvato, glicerato e acetoacetato. Na linha do
meio estão quatro sais de ácidos dicarboxílicos: succinato, fumarato, malato e oxalacetato. Na linha de baixo mais dois
sais de ácidos dicarboxílicos (α-ceto-glutarato e glutamato) e dois sais de ácidos tricarboxílicos (citrato e isocitrato). De
notar que o citrato e isocitrato são isómeros de posição.
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Os ésteres podem ser entendidos como resultando da reacção entre um álcool e um ácido com perda de
água. Na Fig. 19 está representado o éster do ácido palmítico com o colesterol (um colesterídeo) e na Fig. 20
o glicerol esterificado com três estearatos (o triestearil-glicerol, que é um triacilglicerol ou, também se pode
dizer, um triglicerídeo). Quando a formação de uma ligação pode ser entendida como resultando da reacção
de um tiol com um ácido diz-se que estamos em presença de um tioéster: na Fig. 21 está representada uma
substância que contém coenzima A e acetato ligados por uma ligação tioéster: a acetil-coenzima A (acetilCoA).
Ao contrário dos grupos carboxilo que têm a capacidade de libertar protões (são ácidos) os grupos
éster e tioéster são aprótidos, ou seja, não funcionam nem como ácidos nem como bases.
H3C
CH3
CH3
CH3
O
H3C
H3C
HO
OH
H3C
CH3
H2O
CH3
O
H3C
CH3
H3C
O
Fig. 19: Representação esquemática (não real; ver nota de rodapé nº 4) da formação do palmitil-colesterol, um éster de
colesterol (ou colesterídeo).
Fig. 20: Representação esquemática (não real; ver nota de rodapé nº 4) da formação do triestearil-glicerol, um triéster de
glicerol com 3 estearatos. Os triésteres de glicerol designam-se, genericamente, de triacilgliceróis (ou triglicerídeos).
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NH2
N
O
O
P
O
P
H
N
N
O
O
H
-
O
O
O
O
-
O
O
H
HO
SH
H3C
CH3 H
O
OH
-
O
N
O
P
O
H
N
H
H
-
HO
N
P
H
H
O
O
CH3
-
H
O
C
P
-
O
O
O
HO
OH
P
-
N
N
O
H
H
O
N
N
O
-
O
NH2
O
H
N
N
H3C
O
S
CH3 H
O
C
O
O
CH3
H2O
Fig. 21: Representação esquemática (não real; ver nota de rodapé nº 4) da formação do acetil-coenzima A, um tioéster
de acetato e coenzima A.
Os resíduos correspondentes aos ácidos carboxílicos nos ésteres e tioésteres chamam-se,
genericamente, acilos. Um acil-colesterol e um acil-CoA são, respectivamente, ésteres de colesterol e CoA
em que não se especifica a natureza do ácido ligado ao álcool ou ao tiol. Uma situação semelhante acontece
no caso dos triacilgliceróis (também chamados de triglicerídeos). Quando se quer especificar o ácido
envolvido substitui-se a terminação -ico do ácido (ou -ato do sal correspondente) por -il. Assim, por
exemplo, diz-se acetil-CoA, propionil-CoA, 1-butiril-2-linoleíl-3-palmitil-glicerol (um triacilglicerol em que
os resíduos acilo derivam do butirato, do linoleato e do palmitato).
A hidrólise das ligações éster (reacções inversas às representadas na Fig. 19 e na Fig. 20) gera como
produtos os ácidos e os álcoois; no caso das ligações tioéster os produtos são ácidos e tióis (reacção inversa à
representada na Fig. 21).
Os grupos hidroxilo e os grupos carboxilo têm natureza polar e conferem à molécula algum grau de
hidrossolubilidade, mas quando se formam as ligações ésteres esta natureza polar desaparece na quase
totalidade: por isso os triacilgliceróis e os ésteres de colesterol são muitíssimo mais hidrofóbicos que os
ácidos e os álcoois de onde derivam.
Na Fig. 22 está representado, à esquerda, um ácido carboxílico que deriva da glicose por oxidação do
grupo aldeído: o ácido glicónico. As lactonas são ésteres intramoleculares, resultando (pelo menos
teoricamente) da reacção entre um grupo carboxílico e um grupo hidroxílico da mesma molécula. Na mesma
Fig. 22 está representada, à direita, a gliconolactona.
O
HO
C
H
C
OH
HO
C
H
H
C
OH
H
C
OH
CH2OH
H2C
OH
O
H
H
H2O
OH
H
H
OH
O
HO
Fig. 22: Representação esquemática (não real; ver nota de rodapé nº 4) da formação da gliconolactona, um éster interno
derivado do ácido glicónico.
8. Os grupos fosfato, sulfato e as ligações fosfoéster, fosfodiéster e sulfoéster
O ácido sulfúrico (H2SO4) forma-se no metabolismo dos mamíferos mas sendo um ácido forte, existe,
no meio interno, na sua forma totalmente dissociada (salina), ou seja, na forma de sulfato (SO42-). Uma
situação com algumas semelhanças acontece no caso do ácido fosfórico (H3PO4) mas, neste caso, as formas
predominantes no meio interno são as formas mono- e di-dissociadas (H2PO4- e HPO42-; o di- e o monohidrogenofosfato, respectivamente) que se designam, colectivamente, por fosfato inorgânico (Pi).
Nos sistemas biológicos, existem muitos compostos orgânicos que estão ligados através dos seus
grupos hidroxilo a grupos fosfato ou sulfato e essas ligações são de tipo éster. Porque o ácido envolvido na
ligação é o fosfórico ou o sulfúrico, as ligações designam-se de fosfoéster ou de sulfoéster, respectivamente.
Na Fig. 23 estão representadas a glicose-6-fosfato (linha de cima) e a glicose-3-sulfato (linha de baixo) que
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contêm, respectivamente, ligações fosfoéster e sulfoéster típicas. Na linha do meio da mesma Fig. 23 está
representada a glicose-1-fosfato que, de acordo com a nomenclatura, contém uma ligação fosfoéster; neste
caso é o grupo semiacetal da glicose que está ligado ao ácido fosfórico e esta ligação, em Bioquímica, diz-se
glicosídica de tipo O.
Na coenzima A (ver Fig. 9), um resíduo de ribose liga-se por ligações fosfoéster a dois resíduos de
fosfato: um está ligado no carbono 3 e outro no carbono 5 da ribose. A ligação de um outro fosfato ao grupo
hidroxilo do ácido pantoténico (constituinte da coenzima A) também é de tipo fosfoéster (ver Fig. 9).
O
O
HO
OH
P
HO
OH
H
H2O
OH
H
OH
O
HO
OH
P
OH
OH
O
OH
O OH
H
H
HO
H
HO
O O
H
H
H
H
OH
OH
H
HO
H
O
HO
S
H2O
H
H
H
H2O
OH
OH
OH
H
H
H
O
HO
OH
OH
O OH
H
OH
P
OH
H
HO
OH
OH
H
H
OH
H
H
O OH
H
H
OH
OH
OH
O OH
H
P
O
HO
HO
O S OH H
O
H
O OH
H
OH
Fig. 23: Representação esquemática (não real; ver nota de rodapé nº 4) da formação da glicose-6-fosfato (linha de
cima), da glicose-1-fosfato (linha do meio) e da glicose-3-sulfato (linha de baixo). Os ácidos fosfórico e sulfúrico
também se podem ligar a grupos hidroxilo formando ligações éster que, nestes casos, se designam de fosfoéster ou
sulfoéster, respectivamente. No caso da glicose-1-fosfato está envolvido o grupo semiacetal da glicose (o carbono
anomérico) e a ligação é glicosídica de tipo O. Ao contrário do que está representado nesta figura, nos livros de
Bioquímica representam-se as formas ionizadas do ácido fosfórico e do ácido sulfúrico quer quando estão isolados quer
quando esterificados.
Em alguns casos, como nos ácidos nucleicos e nos fosfolipídeos, o ácido fosfórico serve como ponte
entre dois resíduos que continham grupos hidroxilo e a ligação é sempre de tipo fosfoéster (ver Fig. 24).
Nestes casos é costume dizer-se que existe uma ligação fosfodiéster.
+
NH2
O
O
NH3
HOH2C
N
P
C
COO
-
H
O
N
O
-
O
O
NH2
O
O
N
OH
P
N
O
H
O
N
O
-
O
O
O
N
H3C
O O
C
H
O
C
H
O
P
+
O
OH
H3C
H2C
-
O
P
O
-
O
NH3
O
CH2
C
COO
-
H
Fig. 24: Nos ácidos nucleicos (à esquerda) cada grupo fosfato está ligado, simultaneamente, a dois resíduos de ribose
por duas ligações éster e, por isso, é costume designar-se esta ligação como fosfodiéster. Nos glicerofosfolipídeos
(lipídeos contendo resíduos de glicerol, de fosfato e de ácidos gordos) acontece uma situação semelhante; por exemplo,
na fosfatidilserina (à direita e em baixo) o fosfato liga-se aos resíduos de glicerol e de serina (à direita e em cima) por
ligações fosfoéster.
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9. Os anidridos e os fosfoanidridos
As ligações que podem ser entendidas como resultando da reacção entre dois ácidos (ou sais) com
perda de água designam-se de ligações anidrido. Na Fig. 25 são apresentados vários exemplos: a ligação
entre o fosfato e o carbono 1 do 3-fosfoglicerato no 1,3-bisfosfoglicerato, a ligação entre os resíduos de
fosfato no ATP (adenosino-trifosfato) e a ligação entre o resíduo de sulfato e um dos fosfatos do PAPS (3’fosfo-adenosil-5’-fosfossulfato). Na coenzima A (ver Fig. 9) a ligação entre os dois fosfatos também é,
obviamente, de tipo anidrido. Quando estão envolvidos dois resíduos de fosfato (casos do ATP e da
coenzima A) a ligação diz-se fosfoanidrido.
Fig. 25: O 1,3-bisfosfoglicerato (à esquerda, em baixo) pode ser entendido como formado pela reacção entre o 3fosfoglicerato (em cima à esquerda, com uma ligação fosfoéster no carbono 3) e o fosfato com perda de água. Na
ligação intervêm um ácido carboxílico e o ácido fosfórico e, por isso, o anidrido é misto. No ATP (em cima, à direita)
as ligações entre os vários resíduos de fosfato são de tipo fosfoanidrido ao contrário da ligação entre o primeiro fosfato
e a ribose que é de tipo éster (entre um ácido, no caso o fosfato, e um álcool, o hidroxilo da ribose). Também a ligação
entre os dois resíduos de fosfato no pirofosfato (PPi) é de tipo fosfoanidrido. No 3’-fosfo-adenosil-5’-fosfossulfato (à
direita, em baixo) a ligação entre o resíduo de sulfato e o de fosfato ligado no carbono 5 da ribose é de tipo anidrido. As
ligações anidrido são, termodinamicamente, instáveis e, na presença de hidrólases adequadas sofrem hidrólise.
10. Os grupos azotados: as aminas, as amidas, o grupo guanidina e os sais de amónio
substituído
O amoníaco (NH3) é uma base que, aceitando um protão, origina o ião amónio (NH4+). Porque o pKa
do amónio (cerca de 9,3) é muito superior aos pHs que podem ser observados nas células e no líquido
extracelular a maior parte das moléculas está, nos seres vivos, na forma protonada (ou seja, na forma NH4+).
Pode dizer-se que as aminas resultam da substituição de um ou mais hidrogénios do amoníaco por
cadeias carbonadas; dependendo do número de átomos de hidrogénio substituídos dizem-se aminas
primárias, secundárias ou terciárias.
Algumas moléculas com relevância biológica contêm grupos amina (-NH2) que, tal como no caso do
amoníaco estão no meio interno maioritariamente na forma protonada (-NH3+). Na Fig. 26 estão
representadas três substâncias que contêm grupos amina no carbono 2: a glicosamina, o glutamato e a
glutamina. Nesta Fig., ao contrário do que é costume, quer os grupos amina quer os grupos carboxílicos estão
representados na forma não ionizada. Na Fig. 27 estes mesmos grupos químicos estão representados na
forma como são normalmente representados nos livros de texto de Bioquímica, ou seja nas suas formas
ionizadas (grupos carboxílicos sem o protão e grupos amina protonados). Os aminoácidos que fazem parte
das proteínas têm todos um grupo amina no carbono 2 (ou α – daí a denominação α-aminoácido) e um grupo
carboxílico que contém o carbono 1 (ver Fig. 27). A lisina, para além deste grupo amina, contém outro grupo
amina no carbono 6 (ver Fig. 27). Quando o átomo de azoto do grupo amina se liga a apenas um átomo de
carbono diz-se que é uma amina primária e quando se liga a dois diz-se secundária: com excepção da prolina
(amina secundária) todos os grupos α-amina dos aminoácidos que fazem parte das proteínas são grupos
amina primários (ver Fig. 27).
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O
OH
C
H2N
C
H
CH2
OH
O
O OH
H
H2N
C
O
H
OH
OH
H
H
H
C
CH2
H
HO
OH
C
CH2
CH2
NH3
C
OH
H2O
O
NH2
H2O
OH
O OH
H
H
OH
H
O
HO
H
H
C
CH3
HO
NH2
H2O
OH
O OH
H
H
OH
H
HO
H
H
CH3
HN
O
Fig. 26: Representação esquemática (não real; ver nota de rodapé nº 4) da formação da glicosamina (ao centro) a partir
de glicose e amoníaco, da N-acetil-glicosamina (em baixo) a partir de glicosamina e ácido acético e da glutamina (em
cima, à direita) a partir de amoníaco e glutamato. O glutamato e a glutamina têm um grupo amina no carbono 2 (ou α)
mas só a glutamina tem um grupo amida no carbono 5.
Fig. 27: Exemplos de aminoácidos que fazem parte das proteínas. Na linha de cima estão representados a glicina, a
treonina, a leucina, a isoleucina e a lisina. Na de baixo a prolina, o aspartato, a asparagina, o glutamato e a glutamina.
De notar que a leucina e a isoleucina são isómeros de cadeia.
Os grupos amina podem ser entendidos como resultando (pelo menos teoricamente; ver nota de rodapé
nº 4) da reacção entre o amoníaco e grupos hidroxilo com perda de água (ver Fig. 26). Pelo contrário, os
grupos amida resultam (pelo menos teoricamente) da reacção entre um ácido e o amoníaco ou entre um ácido
e um grupo amina com perda de água. Na Fig. 26 e na Fig. 27 mostra-se que, enquanto o glutamato contém
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O
um grupo carboxílico no carbono 5, a glutamina contém um grupo amida (-CONH2 ou
) no mesmo
C
NH2
carbono. Uma situação semelhante, neste caso relativa ao carbono 4, acontece nos casos do aspartato e da
asparagina (ver Fig. 27).
Quando um ácido (como o ácido acético; ver na Fig. 26 a representação esquemática da formação da
N-acetil-glicosamina) se liga a um grupo amina diz-se que a ligação é de tipo amida. Nos esfingolipídeos
(como a esfingomielina; ver Fig. 28) os ácidos gordos também se ligam ao esfingol (um álcool com 18
carbonos, dois grupos hidroxílicos nos carbonos 1 e 3 e um grupo amina no carbono 2) por uma ligação
amida.
Fig. 28: Estruturas do esfingol (ou esfingosina; em cima e à esquerda), da colina (em cima e à direita) e de uma
esfingomielina (em baixo) que contém palmitato ligado ao esfingol por uma ligação amida (assinalada com uma seta).
Uma situação semelhante acontece no caso das proteínas e dos peptídeos em que os resíduos
aminoacídicos se ligam entre si por ligações que envolvem os grupos carboxílicos (carbonos 1) e os grupos
α-amina e que os químicos designam por ligações amida. Em Bioquímica é, contudo, mais frequente
designar as ligações amida que envolvem os grupos α-amina e carboxílicos dos resíduos aminoacídicos das
proteínas e peptídeos como peptídicas. A hidrólise das ligações peptídicas leva à libertação dos aminoácidos
constituintes (ver Fig. 29).
Ao contrário dos grupos carboxílicos (que têm carácter ácido) e dos grupos amina (que têm carácter
básico) de onde derivam, os grupos amida (tal como os éster) são aprótidos.
Fig. 29: A hidrólise de ligações amida leva à formação de ácidos e aminas. A hidrólise das ligações peptídicas do
pentapeptídeo glicil-leucil-lisil-glutamil-prolina leva à formação dos aminoácidos glicina, leucina, lisina, glutamina e
prolina.
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A Bioquímica e a Química Orgânica – Rui Fontes e Nuno Alçada
Quando o grupo semiacetal de uma ose se liga a um átomo de azoto a ligação diz-se glicosídica de tipo
N. Um exemplo deste tipo de ligação está representado na Fig. 30 onde a parte glicídica de uma
glicoproteína se liga à parte proteica através de uma ligação glicosídica que envolve o carbono anomérico da
N-acetil-glicosamina e o grupo amida da asparagina. Na Fig. 9, na Fig. 24 e na Fig. 25 mostram-se outras
ligações glicosídicas de tipo N envolvendo em todos os casos o carbono anomérico da ribose e um átomo de
azoto de bases azotadas púricas ou pirimídicas.
O
C
OH
O H
O
O OH
H
H
H
OH
O
H
CH3
C
NH
NH C
CH3
HN
O
H
H
OH
H
H
H
C
H2C
C
O
HN
NH
C
H
CH2
C
O
H2N
O
O
C
O
NH
C
H
C
H2O
O
NH
C
H
H2C
OH
C
H
NH C
H
CH2
OH
C
O H
O NH
H
O
H
H
OH
H
H
O
CH3
HN
O
H
CH3
HN
O
Fig. 30: Representação esquemática (não real; ver nota de rodapé nº 4) da formação de uma ligação glicosídica de tipo
N numa glicoproteína. Neste tipo de ligação um resíduo de N-acetil-glicosamina (ligado ao resto da cadeia glicídica por
uma ligação glicosídica de tipo O) liga-se ao grupo amida de um resíduo de asparagina da parte proteica por uma
ligação glicosídica de tipo N. O grupo semiacetal (e o carbono anomérico) da N-acetil-glicosamina está envolvido na
ligação.
Nalgumas substâncias os três átomos de hidrogénio e o protão que fazem parte do ião amónio estão
substituídos. O exemplo mais relevante em Bioquímica é a colina, uma amina quaternária. Como se mostra
na Fig. 28, a colina pode ser vista como um ião amónio (NH4+) em que os hidrogénios e o protão foram
substituídos por 3 grupos metilo e por um etanol (daí a denominação destes compostos como sais de amónio
quaternário).
Um dos aminoácidos que fazem parte das proteínas, a arginina, contém ligado no seu carbono 5 um
grupo complexo que se denomina guanidina (ver Fig. 31). O grupo guanidina pode ser visto como um grupo
imina (-C=NH ou –C=NH2+) em que o carbono se liga a dois grupos amina (um primário e o outro
secundário). O mesmo grupo guanidina também existe na creatina e na fosfocreatina9. Na fosfocreatina
existe uma ligação fosfamida: um grupo fosfato ligado à amina terminal do grupo guanidina.
9
A creatina e a fosfocreatina são aminoácidos que, não fazendo parte da estrutura das proteínas, têm um papel
importante no metabolismo energético muscular.
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O
-
O
O
C
+
H3N
C
HO
H
CH2
N
H3C
CH2
NH2
N
O
C
P
NH
-
O
NH2
+
NH2
H3C
+
C
NH
C
C
CH2
CH2
-
O
O
O
C
CH2
O
-
O
O
-
P
-
+
NH2
-
H2O
O
NH2
Fig. 31: Estruturas do aminoácido arginina, da creatina e da fosfocreatina. A fosfocreatina contém uma ligação amida
em que o ácido envolvido na ligação é o ácido fosfórico e por isso se designa de fosfamida. A ligação fosfamida pode
ser vista como resultando da reacção entre um fosfato e uma amina com perda de água.
11. Os heterociclos
Heterociclos são cadeias cíclicas que contêm, para além de átomos de carbono, outros átomos como o
oxigénio e o azoto. Nas linhas superior e inferior da Fig. 32 estão representados heterociclos com
importância biológica.
Os anéis furano e pirano contêm um átomo de oxigénio; o primeiro é pentagonal e o segundo
hexagonal. Olhando para estas estruturas pode entender-se porque se designa de piranósica a estrutura cíclica
da glicose em que o semiacetal envolve os carbonos 1 e 5 (ver Fig. 13) e de furanósica a estrutura da ribose
em que o semiacetal envolve os carbonos 1 e 4 (ver, por exemplo, a Fig. 9, a Fig. 24 e a Fig. 25).
O anel imidazol contém 3 carbonos e dois azotos e faz parte da estrutura do aminoácido histidina (ver
Fig. 32). O anel indol pode ser compreendido como sendo constituído por um anel benzénico ligado a um
anel pirrol (ou pirrole ou pirrolo) e faz parte da estrutura do triptofano (ver Fig. 32).
O anel pirimidina (ver Fig. 32) é hexagonal e contém dois átomos de azoto e faz parte da estrutura das
bases pirimídicas como, por exemplo, a citosina (ver Fig. 24, em cima e à esquerda). O anel purina (ver Fig.
32) pode ser compreendido como sendo constituído por um anel pirimidina ligado a um anel imidazol. As
bases púricas (como, por exemplo, a adenina; ver Fig. 9 e Fig. 25) contêm um anel purina.
H
N
O
O
N
H
N
COO
H
N
COO
N
+
-
NH3
+
NH3
N
H
N
N
N
-
N
N
H
N
N
H
Fig. 32: Na linha de cima então representados os anéis furano, pirano, imidazol e indol; na do meio os aminoácidos
histidina e triptofano e, na de baixo, os anéis pirimidina, purina e pirrol. Em todos os compostos representados os anéis
têm carácter aromático (são heterociclos aromáticos) e poderiam, tal como no caso do benzeno (ver Fig. 4), ser
representados omitindo as duplas ligações e inscrevendo um círculo dentro dos anéis.
O anel pirrol é um anel pentagonal que contém um átomo de azoto (ver Fig. 32). Na Fig. 33 está
representado o heme que contém quatro anéis pirrólicos ligados entre si por pontes metenilo (-CH2=). O
heme é o grupo prostético de proteínas hemínicas como, por exemplo, a hemoglobina.
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COO
H3C
-
COO
CH3
IV
III
-
N
N
2+
Fe
N
II
N
I
CH3
H2C
CH3
CH2
Fig. 33: Estrutura do heme. O heme é o grupo prostético da hemoglobina e contém quatro anéis pirrol (I a IV) ligados
entre si por pontes metenilo (-CH2=). Cada anel pirrol está ligado a dois grupos que substituem átomos de hidrogénio.
Nos anéis I e II esses substituintes são grupos metilo e vinilo; nos anéis III e IV são grupos metilo e propionilo. Um
átomo de ferro liga-se aos 4 azotos dos anéis pirrol.
12. A isomeria óptica (ou quiral)
Como já referido, dois compostos orgânicos são isómeros quando têm a mesma fórmula molecular e
diferentes fórmulas estruturais (ver nota de rodapé com o nº 1). Para além do n-butano (CH3CH2CH2CH3) e
do isobutano (2-metil-propano) são também isómeros os casos do cis-buteno e do trans-buteno (ver Fig. 2),
do gliceraldeído e da di-hidroxiacetona, da glicose e da frutose (ver Fig. 11), do citrato e do isocitrato (ver
Fig. 18) assim como da leucina e da isoleucina (ver Fig. 27).
Os casos apontados nos parágrafos anteriores distribuem-se entre três tipos de isomeria de fácil
apreensão: isomeria de cadeia, cis-trans e de posição. O tipo de isomeria que será objecto de análise sumária
neste capítulo é a isomeria óptica: é de compreensão mais difícil porque implica a visualização das
moléculas no espaço tridimensional. Tal como nos outros casos de isomeria, compreender que, por exemplo,
o gliceraldeído-D e o gliceraldeído-L são substâncias diferentes (ver Fig. 34 e Fig. 35) é relevante para um
estudante de Bioquímica porque quando uma enzima (ou uma outra qualquer proteína) é capaz de interagir
com uma das estruturas pode não ser capaz de interagir com a outra10.
Uma molécula diz-se quiral quando a sua imagem num espelho plano não é sobreponível consigo
própria mesmo se a rodarmos e fizermos rodar as ligações simples. Quiral significa “relativo às mãos”: a
imagem no espelho da mão esquerda é sobreponível com a mão direita mas não com a mão esquerda e o
mesmo acontece com os casos do gliceraldeído-D e L (ver Fig. 34). Em todas as moléculas quirais existe,
pelo menos, um carbono assimétrico: um ou mais dos carbonos está ligado a quatro substituintes distintos.
Os gliceraldeídos-D e L são moléculas quirais com um único carbono assimétrico, o carbono 2 (ver Fig. 34).
De acordo com a convenção de Fischer, quando se representam no plano do papel estruturas com
carbonos assimétricos, os carbonos alinham-se por ordem numérica na vertical11 e os carbonos a ele ligados
estão, na estrutura tridimensional, atrás do plano do papel. Obviamente que, dada a geometria tetraédrica das
ligações (ver Fig. 1 e Fig. 34), os outros dois grupos ligados ao carbono assimétrico se encontram para cá do
plano do papel. No caso do gliceraldeído-D, quando se coloca o carbono assimétrico (o 2) no plano do papel,
o carbono 1 fica acima e atrás do papel, o 3 fica abaixo e atrás do papel, o grupo hidroxilo à direita e para cá
do papel e o hidrogénio à esquerda e para cá do papel (ver Fig. 34). Por convenção, a posição do substituinte
do hidrogénio (neste caso, o hidroxilo) no último carbono assimétrico (neste caso, o 2) indica-nos se o
isómero é D (hidroxilo à direita) ou L (hidroxilo à esquerda).
10
Algumas enzimas, denominadas isomérases, são capazes de interagir com dois isómeros catalisando a sua
interconversão.
11
Nas aldoses os carbonos são numerados de forma a que o carbono do grupo aldeído é o 1; nas cetoses, numeram-se de
forma a que o carbono do grupo cetónico tenha o número mais baixo possível (nas cetoses naturais acaba sempre por
ficar com número 2). Nos aminoácidos o carbono 1 é o grupo carboxílico que fica mais perto do grupo α-amina.
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H
O
H
C
O
C
HO
C
H
H
C
OH
HO
C
H
HO
C
H
H
H
Fig. 34: O carbono 2 do gliceraldeído é um carbono que se diz assimétrico porque está ligado a 4 grupos diferentes que
ocupam os 4 vértices do tetraedro. Num dos vértices do tetraedro está o carbono 1 com o grupo aldeído (-CHO), noutro
um hidroxilo, noutro um hidrogénio e no quarto um grupo metanol (-CH2OH). O mesmo não acontece no caso do
carbono 1 (que tem apenas três grupos ligados nos vértices de um triângulo) e no caso do carbono 3 em que duas
posições do tetraedro são ocupadas por hidrogénios: os carbonos 1 e 3 não são carbonos assimétricos.
Fig. 35: Na imagem da esquerda representam-se os locais de ligação de uma “proteína” para o gliceraldeído-D. No
centro mostra-se que não é possível encaixar simultaneamente os grupos aldeído do carbono 1, o grupo hidroxilo do
carbono 2 e o grupo metanol (carbono 3) do gliceraldeído-L. Na imagem da direita mostra-se que, no caso do
gliceraldeído-D, esse encaixe é possível.
Quando dois compostos quirais se distinguem entre si por terem, em todos os carbonos assimétricos,
os substituintes em posições invertidas dizem-se enantiómeros e são a imagem em espelho um do outro. São,
obviamente, enantiómeros o gliceraldeído-D e o gliceraldeído-L mas também são enantiómeros a glicose-D e
a glicose-L, o lactato-L e o lactato-D assim como a alanina-L e a alanina-D (Fig. 36). O facto de, geralmente,
as enzimas envolvidas na síntese das substâncias só poderem “encaixar” uma das formas permite
compreender que na esmagadora maioria dos casos só exista na natureza um dos enantiómeros de uma
determinada substância. Por isso, num contexto bioquímico, é desnecessário dizer glicose-D, lactato-L ou
alanina-L; nos seres vivos toda a glicose é D assim como todo o lactato ou toda a alanina (e a esmagadora
maioria dos aminoácidos) são de tipo L12.
12
Para além da sua importância em Bioquímica, também poderá ter interesse saber que as moléculas quirais podem ser
submetidas a estudos analíticos específicos porque, ao contrário das não quirais, rodam o plano da luz polarizada.
Embora não se compreenda o porquê, um facto é que, se o enantiómero-D de uma determinada substância roda o plano
da luz polarizada para a esquerda (diz-se que é levógira ou -) podemos estar certos que o seu enantiómero-L o roda para
a direita (é dextrógira ou +). No caso da glicose é o enantiómero-D (a glicose-D) que é dextrógira e, por isso, a glicose
natural (a glicose-D) também se denomina dextrose. Já a frutose-D é levógira e, por isso, é também denominada
levulose. À sacarose (o açúcar comum) hidrolisada também se chama açúcar invertido; esta denominação resulta do
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H
O
H
O
C
H
C
OH
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C
H
H
C
H
C
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H
C
OH
OH
HO
C
H
OH
HO
C
H
HO
-
O
O
C
HO
CH2OH
-
O
O
C
H
C
H
CH3
-
O
C
O
+
OH
C
H3N
CH3
C
CH3
-
O
O
C
C
H
H
C
+
NH3
CH3
CH2OH
Fig. 36: Representação, respeitando a convenção de Fischer, dos enantiómeros glicose-D e glicose-L, lactato-L e
lactato-D e também alanina-L e alanina-D. Na natureza apenas existem as formas D da glicose e as formas L do lactato
e da alanina; as formas L da glicose e as formas D do lactato e da alanina só existem porque podem ser obtidas por
síntese química. A maioria das oses da natureza existe na forma D (uma excepção é, por exemplo, a fucose-L). Com a
excepção da glicina (CH2NH2COOH) que não tem carbonos assimétricos (não é quiral), todos os aminoácidos que
fazem parte das proteínas são de tipo L: quando representados de acordo com a convenção de Fischer o grupo α-amina
fica do lado esquerdo.
Quando dois compostos quirais diferem entre si na posição dos substituintes de apenas um dos
carbonos assimétricos esses compostos dizem-se epímeros; são epímeros a galactose e a glicose assim como
a glicose e a manose (ver Fig. 37). Embora se possam chamar epímeros a dois enantiómeros que só têm um
carbono assimétrico (casos da alanina-L e D assim como o lactato-L e D) habitualmente reserva-se a
expressão para os pares de compostos que têm mais de um carbono assimétrico. A palavra
“diasteroisómeros” tem um significado muito abrangente: são diasteroisómeros isómeros ópticos que não são
enantiómeros (não diferem em todos os carbonos, logo não estão um para o outro como o objecto e sua
imagem no espelho) o que incluí os epímeros galactose e glicose assim como glicose e manose. Contudo, a
palavra usa-se mais vezes nos casos de isómeros ópticos que não são nem epímeros nem enantiómeros: a
galactose e a manose são, por exemplo, diasteroisómeros (ver Fig. 37).
H
O
H
C
O
C
H
C
OH
HO
C
H
HO
C
H
C
H
O
C
C2
H
C
OH
HO
C
H
HO
C
H
HO
C
H
H
H
C
OH
H
C
OH
OH
H
C
OH
H
C
OH
CH2OH
C4
CH2OH
CH2OH
Fig. 37: Representação, respeitando a convenção de Fischer, da galactose-D, da glicose-D e da manose-D. A galactose e
a glicose são epímeros; também são epímeros a glicose e a manose. A galactose e a manose dizem-se diasteroisómeros.
Quando a molécula de glicose (ou outra qualquer ose) sofre ciclização (ver Fig. 13) o carbono que, na
forma linear continha o grupo carbonilo e não era assimétrico, passa a ser assimétrico e, como já referido,
passa a denominar-se anomérico (ver Fig. 38). No caso das aldo-hexoses (como a glicose) o carbono
anomérico está ligado a um hidroxilo, a um hidrogénio, ao oxigénio do anel e ao carbono 2 do anel. Havendo
mais um carbono assimétrico passam a poder existir dois isómeros ópticos distintos que não existiam na
forma linear. Esses isómeros chamam-se anómeros sendo que um deles é o α (aquele em que o hidroxilo do
carbono anomérico fica voltado para o lado oposto do último carbono) e outro o β (ver Fig. 38). De notar
que, porque apenas se distinguem na configuração de um carbono assimétrico, os dois anómeros α e β são
também epímeros entre si. Embora seja impossível representar no plano as moléculas das oses, as
representações dos anómeros α e β mais frequentemente utilizadas espelham o que se passa na estrutura
molecular (ver Fig. 38).
facto de a sacarose ser dextrógira e de o produto da sua hidrólise (uma mistura em partes iguais de glicose e frutose) ser
levógiro.
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Fig. 38: Modelos tridimensionais e representação (de Haworth) dos anómeros glicose-β e glicose-α. O carbono
anomérico é um carbono assimétrico nas formas cíclicas dos glicídeos; na forma linear corresponde ao carbono do
grupo carbonilo. Nas formas como são habitualmente representadas, na molécula de glicose-β, o hidroxilo ligado ao
carbono anomérico (o 1) fica voltado para o mesmo lado do carbono 6 (em geral, os dois para cima); no caso do
glicose-α o hidroxilo do carbono anomérico fica voltado para o lado contrário do carbono 6 (em geral, o carbono 6 para
cima e o hidroxilo para baixo). Na glicose em solução, as formas α, β e linear estão em equilíbrio químico, sendo as
formas cíclicas muito mais abundantes que a linear.
Na natureza existem as duas formas anoméricas (a α e a β) que, via desciclização e ciclização não
enzímicas, estão em equilíbrio químico entre si (e com a forma linear). No entanto, quando se forma uma
ligação glicosídica, o processo de desciclização e ciclização não enzímicas do carbono anomérico envolvido
na ligação deixa de existir. Assim, por exemplo, a maltose é constituída por dois resíduos de glicose que se
ligam através de uma ligação glicosídica que se diz α(1→4): diz-se α porque a glicose que se liga através do
carbono anomérico (o carbono 1) com o outro resíduo de glicose (envolvendo o hidroxilo do carbono 4) está
estabilizada na forma α (ver Fig. 15 e Fig. 39). A celobiose (ver Fig. 39) é, como a maltose, um dissacarídeo
constituído por dois resíduos de glicose mas a ligação glicosídica é β(1→4). No tubo digestivo humano
existem enzimas capazes de catalisar a hidrólise da maltose (gerando glicose que é absorvida) mas não
existem enzimas capazes de catalisar a hidrólise da celobiose; se ingerirmos celobiose, esta perde-se nas
fezes.
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OH
OH
O H
H
H
OH
H
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O H
H
1
4
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OH
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1
H
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O H
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OH
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O
4
H
OH
H
H
H
OH
OH
H
OH
Fig. 39: Modelos tridimensionais e fórmulas estruturais da maltose e celobiose. Na maltose o resíduo de glicose que
participa na ligação glicosídica é a glicose α e a ligação é glicosídica α(1→4); na celobiose o resíduo de glicose que
participa na ligação glicosídica é a glicose β e a ligação é glicosídica β(1→4). Embora, em ambos os casos, os resíduos
de glicose que participam na ligação com o hidroxilo do carbono 4 estejam representados na forma α, na verdade
sofrem desciclização e ciclização não enzímica podendo estar nas formas β ou α.
Bibliografia consultada
1. Chang, R. (1994) Química, 5ª edn, McGraw-Hill, Lisboa.
2. Meisenberg, G. & Simmons, W. H. (1998) Principles of Medical Biochemistry, Mosby, St. Louis.
3. Murray, R. K., Granner, D. K. & Rodwell, V. W. (2006) Harper's Illustrated Biochemistry, 27th edn, Lange, Boston.
4. Vargas, J. J. & Macarulla, J. (1979) Fisiquimica fisiologica, 5ª edn, Interamerica, Madrid.
5. Morrison, R. & Boyd, R. (1992) Química Orgânica, 13ª edn, Fundação Caloust Gulbenkian, Lisboa.
Agosto de 2010; os autores (Rui Fontes e Manuel Nuno Alçada) agradecem as críticas e sugestões das professoras
Isabel Azevedo, Raquel Soares e Maria João Martins.
([email protected] e [email protected] )
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