Filosofia, Poesia e Espionagem

Transcrição

Filosofia, Poesia e Espionagem
Filosofia, Poesia
e Espionagem
Gustavo de Castro & Daniel Innerarity
Abertura
Luiz Martins da Silva
Prefácio
Florence Dravet
By Castro, Gustavo de. ; Innerarity, Daniel.
Capa: Marcelo Costa Nunes
Ilustração:
Revisão: F.D. & G. C. S.
Editoração eletrônica: Flávia Esperança
Coordenação editorial: Luiz Martins da Silva
Printed in Brasil
Impresso no Brasil
2004
Direitos para esta edição
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Filosofia, poesia e espionagem/ Gustavo de Castro e Daniel Innerarity - Brasilia: Casa das Musas, 2004.
ISBN
1. Filosofia 2. Antropologia 3. Ensaios I. Castro, Gustavo de. II. Innerarity, Daniel. III. Título.
CDU
101
SUMÁRIO
*
Abertura, p. 9
Cuidados ao espiar
Luiz Martins da Silva
***
Prefácio, p.15
Portais do desconhecido,
Florence Dravet
***
Primeiro Portal, p.23
Poesia e espionagem
Gustavo de Castro
***
Segundo Portal, p.43
Filosofia e espionagem
Daniel Innerarity
*
Não há nada mais visível que o oculto.
Confúcio
A harmonia invisível é superior a visível.
Heráclito
Pensar é outra forma de sonhar.
Sonhar é outra forma de não ser.
Não ser é outra forma de existir.
Roberto Juarroz
Agradeço a Fernando Antônio Castro e Silva ,
pelo apoio.
ABERTURA
Cuidados ao espiar
Luiz Martins da Silva
Cuidado leitor. Este livro é um livro de desassossego. De inquietação. Da denúncia de que mais vale
o que se não vê do que as certezas escancaradas. Daí, o elogio da espionagem, da suspeita, da
desconfiança. Ou, pelo menos teríamos de admitir: certezas é lá com os números, a matemática, as
máquinas, ou, quem sabe, algo ou alguém que é capaz de repetir sistematicamente, estruturalmente,
as mesmas proposições. Evidentemente, que nessas condições ninguém dirá algo novo e criativo,
pois estará condenado ao nível da evidência, da superfície dos fenômenos que caracteriza as coisas
já dominadas. E, quando isto acontece, o conhecimento parou. Ficamos estagnados, viramos
engrenagem.
Nem sei se eu próprio sou assim, mas, diria: felizes os que desconfiam. Pois serão menos
ingênuos. Quando menos, receberão menos cheques sem fundos. Serão menos trapaceados.
Paradoxalmente, pessoas espertas não são pessoas acostumadas com a verdade, mas com a
incerteza, com a consciência de que a verdade é uma infinitude a ser obsessivamente procurada e
que, talvez, jamais a encontremos por inteiro. Por quê? Porque as respostas sinceras não apontam
para verdades estáveis, mas para complexidades dinâmicas.
Torturante, conseqüentemente, é a jornada daqueles que se enveredam, se esgueiram, se
entregam aos limites da descoberta. Ai dos espiões! Pois, jamais terão o prazer do sono completo, o
conforto do repouso profundo. Filósofos? Coitados. Certamente, serão insones, pois, na sua
extremada lucidez, saberão o quanto a sabedoria é o sem fundo do cosmos, o sem fronteiras (o
Apeiron) do mundo do conhecimento, o desvão do universo. Cientistas, então, seres dedicados ao
autoflagelo de uma vida, para, quem sabe, ao final dela, poder dizer: descobri alguma coisa que
valeu a pena. Investigar, portanto, é ir atrás do que não se dá, não se entrega e tem, por essa
natureza, de ser apreendido, extraído, interceptado, surpreendido. A verdade é sorrateira. É preciso
que se lhe armemos ciladas. Pode até, em determinados momentos, ficar nua, aparecer no alto de
uma montanha, mas, difícil é fazer com que ela se ponha lá, no alto e bem visível.
E os poetas? De duas, uma. Ou se acovardaram e renunciaram de vez por todas à
possibilidade de verdade, quando menos, de que alguém os ama, ou, então, escolheram os caminhos
mais tortuosos de encontrar algo ‘real’: a imaginação, o ineludível, o inefável, o indizível, o
invisível. Caprichosamente, preferem a discursividade do intangível para expressar o que alguém
pode ter de mais autêntico, mas, também, não menos impalpável: sentimento, emoção, fideliade.
Este terrível livro que me puseram às mãos e que me arranhou os olhos e feriu o meu
sossego, acabou de vez com a minha acomodação e com o meu sono. Chamou-me
irrecuperavelmente à realidade dos inquietos. E, se o leitor é, como eu, um desses que viveu em
ânsias de ser filósofo e poeta, um último aviso. Não o leia. Retroceda enquanto é tempo. Poupe os
seus trocados. Faça melhor uso deles: compre algo palpável, visível, tangível, ainda que, em
minutos, desapareça, vire uréia, ou matéria fecal, mas, dê-se ao gosto do bom bocado. Uma barra de
chocolate, uma caixa de chicletes, um maço de cigarros. De preferência, algo que o distraia. Pois,
mesmo o devaneio é perigoso: ele é a própria senda da cisma, da desconfiança. O que este livro
quer, em síntese, é nos arrancar do nosso conforto e nos chamar a uma vocação ainda mais
descabida: a da espionagem, essa espécie de Cabo do Bojador da existência. Leitor, leitor! Se você
quer, de fato, saber do mundo, haverá de se aventurar por praias muito mais distantes. E não,
confiar ingenuamente nas informações do caminho. Serão muitos os enganadores. Sobretudo, os
arautos das trilhas seguras. Veja, pois isto é mais do que olhar; desconfie, pois isto é mais do que
ver; espie, pois isto é mais do que perceber. Esteja alerta, pois, a qualquer vacilo, poderá estar sendo
engambelado pelos cantos de sereias.
É claro que as aparências enganam. Mas, ai dos mortais, pois só a partir delas é que
chegarão a algum sentido. Esta é a peça principal que nos pregaram os deuses. Tentar saber é uma
assombrosa condição. Felizes os irracionais, pois a eles se deram a certeza do instinto e a leitura
imediata do razoável. Quanto aos humanos, que destino! Sondar a imensidão dos segredos do
mundo, da vida e do universo a partir da ilusão dos sentidos. Por vezes, até temos a impressão de
que eles nos foram dados exatamente para que possamos nos enganar. Felizmente, para além dos
sentidos, há a sensibilidade. Mas, eis que aparecem estes autores e advertem: é preciso ter o dom da
espionagem. Só assim poderemos obter algum sossego com a filosofia e com a poesia.
PREFÁCIO
Portais do desconhecido
Florence Dravet
Desde que o mundo é humano, homens investigam o universo. Desde que o homem
desenvolveu a linguagem e o raciocínio, homens buscam estender os limites do conhecido e do
compreensível. Desde que o homem escreve, homens dedicam páginas ao desvendamento dos
mistérios do universo e da humanidade. Dois arquétipos desses homens curiosos e inquietos
compartilham as páginas deste livro. O poeta e o filósofo abrem dois dos principais acessos do
pensamento humano sobre o real; dois portais, situados no círculo da via do conhecimento. O
primeiro, aberto pelo poeta, é o do imaginário; o outro, aberto pelo filósofo é o da razão. Pelo portal
do imaginário, passam todos os sonhadores, poetas, escritores; todos os contadores de histórias; em
versos e em prosa, escritas e faladas, ditas e caladas... Pelo portal da razão, passam todos os
filósofos, os pensadores, os indagadores da verdade e da ilusão; os cientistas e suas observações e
experiências; sua lógica, suas induções e deduções; também suas intuições e sensações. Esses dois
arquétipos, o poeta e o filósofo, manifestam-se aqui através da figura do espião.
Nada de interesse e curiosidade malevolentes na espionagem aqui tratada. Os espiões deste
livro se complementam para constituir a figura do investigador do invisível escondido por trás do
visível, daquele que busca mostrar o que está oculto, o que há de misterioso e secreto na realidade.
Mas os dois têm objetivos e instrumentos diferentes. Ambos se deparam, no seu ofício, com a dupla
face do real: o visível por um lado e o invisível por outro. O espião poeta busca preencher o vazio
das coisas visíveis, o vazio que fascina e move o homem através da vida em direção à morte, em
busca de algo mais. O espião filósofo procura preencher o vazio da sociedade do invisível com as
rédeas do conhecimento e da reflexão, através da identificação de falhas, irregularidades e exceções
nos modelos sociais. Os dois se confrontam ao desejo de preencher o vazio. Mas, enquanto o poeta
sabe que esse nunca será preenchido, o filósofo parece ter a intenção de suprir os espaços em branco
deixados na realidade aparente.
O ponto de partida comum entre os espiões é que para eles, a realidade vista é apenas a
superficialidade do real existente. Mas, diante das duas perspectivas aqui tratadas, podemos dizer
que o visível se situa entre duas camadas do invisível: uma, abaixo do visível, é o que está por trás,
o que é apenas pressentido pelo poeta; outra, ao nível do manifesto, que podemos situar em meio ao
visível, é o que está oculto mas que o pensador precisa conceber para dominar. E é justamente na
concepção do que é oculto, do espaço em branco entre dois espaços visíveis, que reside o
verdadeiro ofício do filósofo espião, para cumprir o seu papel na sociedade.
Há uma diferença fundamental entre o espião filósofo e o espião poeta. Enquanto o
primeiro age pelo conhecimento, pela apreensão do que está oculto, buscando revelações e
desvendamentos não só lógicos mas também intuitivos, a fim de tornar a exercer o controle racional
sobre a sociedade, o segundo busca se aproximar do inacessível, busca atingir dimensões
inatingíveis, age pelo sensível e pelo imaginário e não procura o controle de nenhum fenômeno a
não ser o do seu próprio processo criativo.
O poeta narrador tem consciência da sombra que o acompanha, inevitavelmente – o
hidebeing -. Ele não luta contra a sua própria condição de homem incompleto, mas adere a ela e se
acomoda com o desejo inalcançável de ver o invisível. Sua busca não é tanto a de preencher uma
lacuna, mas a de satisfazer um desejo, o desejo de reencantar o real. O poeta sabe que o homem é
uma criança que levou a vida restringindo-se, limitando-se, provando-se, vendo-se limitada e
aceitando esta limitação. Porque somente a criança, ainda enquanto feto, conhece o ilimitado, o
infinito, cercada pelo útero esférico e esferificante, e pelo sono que se constitui como a nãofronteira por excelência. Por isso, o invisível poético pode ser esse ilimitado, esse infinito que todo
homem tem em si como algo fundamental, primitivo, original, algo conhecido, algo reminiscente,
algo perdido...
Para o poeta - e isso fica claro em Calvino e Borges - a imaginação parece ser uma das
formas de se atingir o invisível num processo de criação artística onde tudo é possível. Para a
filosofia, realista, vê-se as coisas primeiro, imagina-se depois. A imaginação seria, portanto, feita de
fragmentos do real percebido, de lembranças do real vivido, mas seria impossível atingir o reino de
uma imaginação fundamentalmente criadora. No entanto, o poeta, assim como o sonhador de
Bachelard, pode criar imagens imaginadas e penetrar o universo do vazio deixado pelo infinito, no
homem.
Com o filósofo, saímos da esfera do sensível e entramos no universo do conhecimento. O
invisível do filósofo não se desvenda por nenhum processo criativo, por nenhuma força da
imaginação liberta. Não se trata do invisível enraizado na natureza do homem, mas do invisível
contido na sociedade, ou seja, em meio ao visível. O invisível é então uma metáfora para o que não
é percebido, explicado ou controlado pelo homem pensante.
Mas existe, aqui também, a idéia de um objeto inalcançável da filosofia, já que ocultar algo
faz parte da natureza dos signos. E essa impossibilidade de desvendar o invisível encontra-se
reforçada quando se defende que a sociedade, embora seja por vezes denominada de sociedade de
imagens, está cada vez mais tomada de invisibilidade. Muito mais fortes que os fatos e dados
visíveis da sociedade de imagens, são, na sociedade atual, os poderes invisíveis e seus signos
opacos. Participar das disputas de interpretação dos signos opacos e das lutas hermenêuticas entre
as potências invisíveis do mundo atual parece ser uma nova tarefa para a filosofia no século XXI.
Entre seus instrumentos, o filósofo conta com a intuição do espião, uma certa imaginação
realista, que lhe permite conceber o real de forma singular, inovadora, inesperada. Com a
observação paciente do visível nos seus mínimos detalhes, o espião confere ao filósofo uma visão
quase involuntária e intuitiva do invisível que se esconde entre uma forma do real e outra, entre uma
representação e outra.
Ao terminar este livro, abriu-se para mim a possibilidade dos dois portais serem
complementares e de, no fundo, existir apenas uma busca fundamental: a da verdade sobre, entre e
sob o real aparente. Perguntei-me se o poeta e o filósofo não estavam caminhando pela via do saber
e da verdade por percursos distintos que um dia se encontrariam. Pensei na mística como o terceiro
portal que o homem abriu para acessar à verdade. Mas também me perguntei se não havia um
quarto portal, ainda invisível, que reunisse os três primeiros e que no fundo seria o único
verdadeiro, a soma de todos os outros, ou a sua anulação, que permitisse alcançar a verdadeira
realidade do universo.
PRIMEIRO
PORTAL
Poesia e espionagem
Gustavo de Castro
1.
Mesmo quando o olho atravessa o granito no intuito de investigar a natureza da pedra, o
poeta, ainda assim, não se contenta. Ele quer mais, quer ir além e descobrir o que há no interior dos
espaços cobertos de nada... Quer investigar a alma do mundo que está além da rocha, dentro do
sopro, no ânimo da flor... O poeta vislumbra poder conhecer as raízes por onde cresce o existente, o
núcleo das coisas visíveis e a fonte em que viceja a linguagem. Quer saber por que a pedra dorme,
por que o vegetal sonha, por que as rosas necessitam de atenção e, o mais difícil, quer saber por que
o homem não pensa adequadamente o mundo aparente... Talvez o olhar possa ir além do que vê,
pensa ele, e sondar por trás do que existe, o inexistente, sem deixar de dar valor a matéria em toda a
sua solidez... Talvez o olhar possa colher uma visão que contenha outras esferas; realidades
possíveis, quem sabe, de serem sentidas até de olhos fechados... Talvez o olhar necessite ser
reeducado e aprender lições que só o nexo visível-invisível possa suscitar, fazendo emergir daí um
novo conhecimento do mundo físico...
Espionar o invisível no seio do visível, eis aí o sonho do poeta...
...Ante os terríveis esconsos do mundo, não cabe aos olhos o desvio. Se os olhos anseiam
desviar-se, o poeta teima em fitar, fotografar, ficar face-a-face com a terrificante Medusa, mesmo
sob o risco de tornar-se ele mesmo pedra, rocha, granito. Escolhe então a espionagem como meio de
sondar esse monstro de muitas faces que é o real, pois se acha, do mesmo modo, espião, cúmplice e
amante do terrificante irreal. Assim ele escolhe preferencialmente ter uma visão direta da realidade
aliada à uma visão indireta, essa, aliás, a visão privilegiada da poesia. Uma visão que sustenta-se
sobre os minúsculos traços luminosos da palavra ou então, sobre o que há de mais frágil e leve: as
nuvens, as pétalas, o vento, o sussurro de algumas cores. Tudo aliado a uma visão que não renuncia
ao que há de mais chocante, morboso, petrificante e vazio.
Será necessário descobrir outro mundo por trás deste? Se for, para que é necessário? Este já
não nos basta? Já não é suficientemente desgraçado, desencantado? O poeta sabe apenas que é
necessário constantemente redescobrir a poesia como a seiva a alimentar uma arte de viver
(bionomia), assim como também uma arte de viver junto (simbionomia). Redescobrir a poesia como
a seiva a alimentar seres e mundos para que eles sejam, quem sabe, mais encantados ou, numa
palavra, felizes. Saber construir o seu universo particular é uma arte cara a poucos. Deixar que
outros construam para nós o mundo que eles querem é muito cômodo. Um certo poeta argentino,
que soube construir o seu mundo ao lado dos livros, disse: Aos outros fica o universo. A mim a
penumbra, o hábito do verso. E mesmo que o mundo do poeta Jorge Luis Borges tenha sido recluso
aos livros, este, o seu paraíso particular, não foi em nenhuma medida menos fantástico, ao contrário.
Cego, Borges escreveu sobre o terrificante irreal dentro do real, descobriu um ‘outro’ mundo que se
abre atravessando a esfera semi-líquida da íris, mundo que não tem margem, nem fronteira.
Tanto o indizível quanto o invisível são elementos valorizados em Borges, particularmente
revestidos sob o signo do mistério. O fantástico é o mistério que provoca estranhamento, confusão,
incerteza e espanto. Do mesmo modo, ele não crê que o mistério possa ser, de todo, resolvido, se
calhar de ser, não é mistério e, mesmo que de alguma forma seja decifrado, ainda assim, a sua
solução não deixa de ser inferior ao mistério. De certa forma, o mistério não pode ser resolvido,
apenas verificado, constatado.
As coisas visíveis são como máscaras alçadas por sobre o rosto incerto do nada, de modo
que é preciso descobrir o outro mundo por trás deste, sem renunciar a nada que as máscaras deste
revelam. Porque é nos limites de tudo o que vemos, que a diversidade do invisível se torna legível
aos olhos, ou seja, através das incertezas da luz, dos reflexos, dos sonhos, dos equívocos, dos
lapsos, dos desvios incontroláveis do olho e da coisa, do oculto que teima em permanecer opaco.
Ver é sempre ocultar alguma coisa de modo que ela possa ser descoberta em seguida e, caso
não seja descoberta, possa ser suposta, ou cogitada, que exista. Ver é ter o olho educado para
identificar o vazio das coisas, ao exemplo da célula, que tem noventa e nove por cento do seu
espaço vazio; ou da porta, cujo espaço vazio é o que permite a passagem; ou do filtro d’água, que só
cabe em si o líquido, por poder ser preenchido; ou do pneu, cujo ar permite a solidez do movimento;
ou da caneca, na qual o vinho lhe completa o sentido, ou de tudo o mais que completa-se assim,
vazios nos cheios, cheios prenhes d’algo que não vemos, como se fossem palavras supridas de
silêncios.
2.
Espionar o que há sempre foi a fonte a alimentar cognitivamente a ciência. A ciência, assim
como qualquer pensar rigoroso, nasce sob o crivo da investigação. Os modelos de realidade
vulgarmente aceitos, para que se tornem modelos, devem ser medidos, analisados, pesados,
decifrados e engendrados sob a ordem de uma explicação articulada e convincente. Como um
espião, o cientista supõe, cogita, rumina, interroga, cruza dados, vigiando atentamente as hipóteses
e a dinâmica do processo.
Diferente da ciência, a poesia espia o real sem a preocupação com a objetividade e a
veracidade. O seu modo muitas vezes é visionário, buscando aceder ao espaço do impossível ou, se
preferirmos, ao espaço do indizível. Diferente da ciência, a poesia cria realidades, agrega-as,
vislumbrando nas palavras não um simples modo de expressão, mas um modo de participar da
realidade. Quando a poesia fala da realidade, fala de algo que não se compreende totalmente, que
não é possível definir, assim como não é possível definir totalmente a poesia.
3.
Italo Calvino escreveu um poema narrativo composto de quarenta e uma estrofes em que, a
partir da questão: “que forma tem o mundo” ele discorre, em primeira pessoa, sobre a realidade
contida por trás do real ou, sobre a substância que compõe as substâncias das coisas. Do Opaco é
uma espécie de poética do vazio.
Frente a hipotética pergunta acerca da forma do mundo, ele se vê confrontado com o que
escapa radicalmente ao poder da visão. O opaco é a metáfora metafísica por excelência da luz. As
zonas de sombra por trás da luz reconstroem o mundo pelo caráter da ausência.
O espaço invisível modela integralmente a interioridade e a exterioridade das coisas,
recriando o próprio espaço. As implicações da contemplação do que está ausente, podem ser
classificadas de reflexões encarnadas de aspiração à totalidade. Ver apenas as coisas visíveis
implica numa visão parcial da realidade. É preciso aprender a ver também o invisível. E a lidar
permanentemente com o vazio. Mas como isso é possível? Ora, o que não pode ser visto pode ser
sentido, intuído, suposto. Se não se segue o paradigma de São Tomé (aonde crer relaciona-se a ver)
pode-se muito bem pelo menos cogitar, supor, investigar, exatamente pelo fato de não se ver.
A partir da multiplicidade de tons e cores do mundo, da diversidade de elementos que se
apresentam aos nossos olhos constantemente e da gama de formas, objetos e perspectivas de cada
ínfima estrutura da natureza, Calvino elabora o que ele chama de os “múltiplos modos de ser do
espírito”. O ver aqui condiciona o ser. O não-ver também. O vazio-invisível condiciona na medida
em que é adotado como ‘alma do mundo’, substância que subjaz no ser de cada um, estimulando-o
a ser (ou assumir) a forma de sua vontade. O invisível está diretamente relacionado aqui à força de
vontade. Agilulfo, personagem central do romance O cavaleiro inexistente, revela que, no mundo,
não somos nada nem ninguém, mas que podemos nos tornar algo ou alguém se tivermos convicções
fortes, força de vontade, e com isso, abraçarmos uma causa à qual valha a pena viver e morrer.
O múltiplo é adotado também como técnica narrativa e visão de mundo, aprendizado cedo
copiado do poeta Ludovico Ariosto. A Multiplicidade é uma das Seis propostas para o próximo
milênio. Nela, ele revela que somente a partir do entendimento da complexidade é que podemos
aspirar a compreensão da verdadeira forma e do verdadeiro conteúdo da qual o mundo é feito. A
variedade das formas levou Calvino aos limites do incorpóreo: Qfwfq, personagem do As
Cosmicômicas, não possui forma porque é dotado de todas as formas, vive num tempo sem tempo,
invariavelmente num tempo zero, potencial, que pode ser negativo e seguir para trás em direção
passado, e como positivo, direcionando-se no caminho oposto. Qfwfq vive sobretudo o instante, o
hic et nunc e a totalidade do momento presente.
Somente os romancistas e os poetas têm essa capacidade de levar o pensamento a atuar no
campo da “imaginação dos possíveis”, como salienta Ilya Prigogine. Imaginário, diz ele, que é um
dos traços fundamentais à inteligência humana. Ao espiar o que há por trás do visível, Calvino
acabou por construir uma poética do incorpóreo. O ‘artifício é a verdadeira substância do todo’, diz
ele no Se um viajante numa noite de inverno. O conjunto de possibilidades que a idéia de invisível
reúne em torno de si, dá ao escritor a base necessária para o desenvolvimento dos elementos de sua
poética. Noções como ‘vago’, ‘opaco’, ‘inexistente’, ‘vazio’, ‘separado’, fazem parte dos elementos
que ele explora em sua literatura.
Do invisível, há uma imagem que ele colhe de um conto de Jorge Luis Borges, do Livro dos
seres imaginários, no qual conta a história do Hide-Behing, animal habitante das florestas geladas e
íngremes do estado do Minessota e do Winsconsin (EUA). A lenda do lugar dá conta de um animal
costuma acompanhar silenciosamente os lenhadores que aventuram-se na floresta para cortar lenha
ou caçar. O Hide-Behing nunca se deixa ver. É mais rápido do que os olhos. E, embora nunca tenha
sido visto, todos crêem nele, porque sabem exatamente onde ele se esconde: o animal habita
exatamente o arco atrás da nossa cabeça, o ângulo posterior exato ao correr dos olhos,
permanecendo sempre imperceptível.
Dizem os lenhadores que o bicho é mais horrendo e espantoso do que qualquer outro
animal, é o “nada absoluto”. “Diante disso, seria legítimo uma vez constatado que atrás de nós
existe sempre o vazio, estender tal descoberta para outras direções”, diz Italo Calvino, completando:
Se não estiver imobilizado o homem pode girar o pescoço constantemente e ter a
confirmação de que o mundo existe também ali, mas isso será igualmente a confirmação de que o
que ele tem pela frente é sempre o seu campo visual que se estende pela amplitude de tantos graus
e nada mais, ao passo que às suas costas existe sempre um arco complementar no qual naquele
momento o mundo pode não estar.
Se o vazio é o que completa a nossa perspectiva de mundo, melhor então é lançar sobre ele
um olhar semelhante ao do homem que pilota o seu carro e tem constantemente aos olhos o espelho
retrovisor, como forma de responder as incógnitas do vazio à nossas costas. Com esse “olhar
retrovisor” poderá o homem agora tentar compreender os dois campos visuais contrapostos, o da
frente e o detrás, sem o obstáculo da imagem de si no mesmo no espelho.
De qualquer modo, o traçado refletido no espelho retrovisor não deixa de ser meio
fantasmagórico, já que é sempre uma imagem invertida. Não adianta também dobrar o pescoço e
olhar diretamente para trás, pois o arco invisível aonde habita o vazio sempre acompanhará a parte
posterior da nossa cabeça. De nada adiantará também quebrar o espelho. Fazendo isso, estamos
apenas construindo labirintos, propiciando aos caminhos que desdobrem-se, multiplicando-os em
traçados e silhuetas, dissimulando-os em trajetos de miríades e presenças cujo os reflexos parecem
inesgotáveis.
O nada diante de mim, o vazio atrás de mim, isto é, o poeta se vira, vê o vazio, torna a
girar sobre si mesmo e o vazio se estende por todos os lados. (...) O homem tem sofrido sempre a
falta de um olho na nuca e sua atitude cognitiva só pode ser problemática, porque ele nunca estará
seguro do que existe às suas costas, não tem como ver se o mundo continua entre os pontos
extremos que consegue ver.
Dada a incapacidade do homem de ver em 360 graus e, se qualquer visível supõe sempre
um invisível e, se esse invisível supõe sempre a presença-de-um-ausente-aparente, essa carência
humana poderia vir a ser suprida com a abertura de visões mais profundas, noutras palavras, através
de uma mística (da espionagem) da totalidade. Uma poética capaz de perceber nas pistas deixadas
pelas coisas visíveis, os rastros do desconhecido e do imaterial. Ora, mas se já vemos com
dificuldade ao mundo e a nós mesmos, quê dizer daquilo que nada sabemos? Se já vemos com
dificuldade o que vemos, que dizer daquilo que não vemos? Se não compreendemos o grau de
distorção das imagens que vemos, nem suas reais dimensões ou profundidade, de que adianta buscar
um ponto ou descortinar uma arte, capaz de assegurar uma contemplação onde a caoticidade surreal
do mundo possa ser amenizada? De frente, atrás, nos lados, para cima, para baixo, para dentro de
nós, para onde quer que se olhe, os caminhos se bifurcam em topologias diversas, em narrativas
diversas, silêncios diversos... De que nos servirá ampliar a complexidade dessa atmosfera noológica
se não compreendemos nem a lógica da realidade do nosso dia-a-dia?
Uma outra imagem escolhida por Calvino vem do poeta Eugenio Montale, particularmente
da convivência ‘mnemônica’, diz ele, com um poema, Forse um mattino andando in un’aria di
vetro [Talvez certa manhã andando em ar de vidro]. Trata-se de um poema (escrito em 1923) que
possui um movimento narrativo próprio, cheio de imaginação e de pensamento abstrato, que
contrapõe o homem à coisa observada. O poema, na tradução de Nilson Moulin, é o seguinte:
Talvez certa manhã andando em ar de vidro,
árido, virando-me, verei cumprir-se o milagre:
o nada pelas costas, o vazio atrás
de mim, com um terror de bêbado.
Logo, como numa tela, acamparão de chofre
árvores casas morros com o engano de sempre.
Mas será tarde demais; e eu seguirei sem voz
entre os homens que não se voltam, com meu segredo.
Por trinta e cinco anos, Calvino andou com este poema na cabeça. Aprendeu-o aos dezoito
anos e desde então, volta e meia, diz ele, o poema voltava a versar em seu toca-discos mental. A
mola que desencadeia o poema é a palavra milagre, ela cria um efeito de irrealidade, como se, a
partir do enunciado da primeira linha, um halo de transparência enxuta e cristalina, de tom invernal,
invadisse o poema, fazendo com que algo de sobrenatural acontecesse. A irrealidade do mundo é o
fundamento de religiões, filosofias e literaturas, diz Calvino. A irrealidade, neste caso, é o
fundamento deste poema. Ele observa ainda que aqui o espaço se desconecta do mundo e se impõe
enquanto tal, vazio e sem limites, e que a descoberta do nada às costas é festejada pelo poeta com
simpatia, como milagre, como aquisição de verdade contraposta ao engano de sempre.
O vazio e o nada encontram-se ocultos, pelas costas, atrás de mim. Este é o ponto
fundamental do poema. O poema constrói uma hipótese que Calvino elabora nos seguintes termos:
Dada a bipartição do espaço que nos circunda num campo visual perante nossos olhos e
num campo invisível às nossas costas, se define o primeiro como tela de enganos e o segundo como
um vazio que é a verdadeira substância do mundo.
Seria legítimo ampliar esta hipótese, estendendo-a para outras lateralidades e outras
direções? Ou seja, uma vez constatado que atrás de nós existe o vazio, tal descoberta poderia ser
investigada também enquanto modelo do próprio espaço? Um vazio que se estende por todos os
lados, onde podem habitar seres invisíveis como o Hide-Behing, do conto de Borges ou até mesmo
cidades como no livro As cidades invisíveis, de Calvino. Se o homem conseguisse unir a
diversidade de campos (anterior e posterior, visível e invisível, dentro e fora) não teria o problema
da incognoscibilidade, do não-mundo, pois somaria os diversos campos sucessivamente até
construir um mundo circular completo, total, coerente, único.
Trata-se aqui de ir além, é mais do que simplesmente aspirar a um olhar demiurgo, que
retransforma constantemente o mundo, reencantando-o, mas trata-se de um olhar que aspira a
totalidade, um olhar complexo. É um olhar que busca rejuntar pelo imaginário, pela fantasia e pela
mística, partes cindidas, dicotomizadas. O sábio-filósofo Palomar, personagem de romance
homônimo, se dá conta de quão aproximativo e voltado ao erro são os nossos critérios de mundo,
critérios aos quais acreditamos encontrar precisão e norma universal. Ele entende que existe uma
norma oculta no fundo daquilo que existe; que o visível é apenas um adorno do invisível, o nó de
uma rede de correlações invisíveis. Mas adverte: não se pode estar cem por cento seguro a respeito
do nada, visto que ele é invisível.
Devemos por isso estar atentos às epifanias, por que elas revelam-se quando menos se
espera. Advindas não se sabe de onde, recompõem a realidade por intermédio de filamentos de
encantos, instantes em que a realidade se apresenta aos nossos olhos múltipla, não mais espinhosa,
com estratos sobrepostos de poesia misturada à realidade. A epifania certamente é um aceno para
nós advindo dos mundos incognoscíveis.
Levantamos à pouco a hipótese do espaço que nos circunda ser todo ele composto de
materialidades e imaterialidades, de seres visíveis e invisíveis como o Hide-Behing que teriam
verdadeiramente o seu lugar na espacialidade geométrica do mundo, lugar que Theillard de Chardin
e Edgar Morin chamam de noosfera. A noosfera seria um campo mediador, espécie de meio
condutor do conhecimento humano, domínio da natureza interposto entre nós e o cosmo,
envolvendo-nos como atmosfera antropossocial, em que entidades feitas de substância espiritual e
dotadas de certa existência, habitam. Entidades tanto logomorfas (doutrinas, teorias, filosofias,
sistemas de idéias) quanto cosmo-bio-antropomorfas (mitos, lendas, gênios, espíritos, deuses).
Haveria então uma simbiose entre essas esferas, todas elas a intervir no mundo e no homem, assim
como o homem estaria a intervir nelas e a recriá-las.
A radicalidade desta hipótese, como vemos, é comum tanto à antropologia quanto a poesia.
Mas o fato da poesia não estar amarrada a nenhum critério de cientificidade, pode fazer com que ela
vá mais longe, extraindo dessa radicalidade a sua substância vital.
A poesia vive também do poder de irradiar hipóteses, divagações, associações de idéias em
territórios distantes, ou melhor, de trazer a si e agregar idéias de várias proveniências,
organizando-as numa rede móvel de referências e refrações, como através de um cristal.
Talvez o único sentido das coisas seja mesmo a intensidade sem sentido do mundo, assim
como disse o poeta Roberto Juarroz. Talvez o único sentido de procurar conhecer o desconhecido
seja fugir um pouco da ignorância do que pensamos conhecer ou, quem sabe, simplesmente o
desejo de celebrar a harmonia dos opostos:
Celebrar o que não existe.
Há outro caminho para celebrar o que existe?
Celebrar o impossível.
Há outro modo de celebrar o possível?
Celebrar o silêncio.
Há outra maneira de celebrar a palavra?
Celebrar a solidão.
Há outra via para celebrar o amor?
Celebrar o reverso.
Há outra forma de celebrar o direito?
Celebrar o que morre.
Há outra senda para celebrar o que vive?
O poema é sempre celebração
porque é sempre o extremo
da intensidade de um pedaço de mundo,
sua espada de fervor restituído,
seu punho de entusiasmo desvairado,
sua mais justa anunciação, a mais firme,
como se estivesse florescendo a voz.
O poema é sempre celebração,
ainda que suas bordas reflitam o inferno,
ainda que o tempo se crispe como um órgão ferido,
ainda que o passadiço histriônico que empurra as palavras
desordene suas voltas-retas com suas piscadelas.
Nada pode ocultar ao infinito.
Seu gesto é mais amplo que a história,
seu passo é mais largo que a vida.
4.
O hipervisualismo de Calvino parece ser inversamente proporcional à cegueira borgiana,
mas não o é. No caso de Borges, sua cegueira física não quer dizer ver menos, ao contrário, por
vezes, é ver mais, mais além e, embora ambos possuam uma dinâmica mental muito semelhante na
leitura do mundo (labiríntica, fantástica, em que filosofia, ciência e antropologia dialogam o tempo
todo com a literatura), eles estabelecem um novo contrato com o invisível, fazendo do vazio a
forma aberta por excelência sobre o qual devemos moldar as nossas vontades e, se possível,
reencantar o real, abarcando o mistério contido do outro lado das coisas visíveis, assim, quem sabe,
poderemos aprender do vazio algo sobre a secreta arte de ser pleno, inteiro, total...
SEGUNDO
PORTAL
Filosofia e espionagem
Daniel Innerarity
Numa certa ocasião, Umberto Eco afirmava que ele nunca havia assinado manifestos do
tipo dos que aparecem contra a fome ou a AIDS, ou em favor da paz e do entendimento entre os
povos. Se ele agia dessa maneira, não era, evidentemente, por defender o contrário, mas porque era
impossível defender o contrário. Não adianta de nada defender algo quando ninguém no seu bom
juízo defenderia o contrário. Os manifestos não deveriam aspirar a essa verdade inevitável dos
horóscopos, que em geral parecem acertar nas suas previsões, formulados de maneira a encaixar-se
nas circunstâncias de qualquer um. Quando são ditas coisas que não podem deixar de ser
verdadeiras, então não se toma parte, em realidade, toma-se o todo que fica adulterada quando se
instala no campo do que todo mundo sabe, da evidência ou da trivialidade.
A tarefa intelectual não tem outra justificativa a não ser a ruptura com a previsibilidade que
transforma os discursos públicos em algo tão mecânico e evidente que não serve para compreender
absolutamente nada. Quando só se diz o que cabe esperar, o correto e o apropriado à opinião
dominante, não se acrescenta nada no momento de entender a realidade social; e essa
inautenticidade desperta a suspeita de que a verdade tem que ser buscada precisamente fora da
unanimidade, do linchamento e da adulação que governam a opinião pública, em algum lugar não
controlado pelos argumentos de oportunidade ou as reações convenientes do politicamente correto,
um lugar onde as coisas ditas tenham de seus emissores. Trata-se de uma verdade que é de certa
forma inesgotável, indescritível, já que somente é possível descrever com exatidão os processos que
acontecem na superfície; o que tem por trás é mais objeto da suspeita ou do medo. A filosofia que
respeita tal parcialidade de toda verdade sabe muito bem que aquilo que se explica rapidamente e
com clareza, o que não oculta nada, é prontamente esquecido e arquivado. Não quero com isso dar a
entender que vivemos numa sociedade onde todos, ou pelo menos os poderosos, mentem e
manipulam, como poderia se deduzir das teorias da simulação de Baudrillard ou do espetáculo
segundo Debord. Não é que existam simuladores ou pessoas que pretendem conscientemente
manipular. O que eu acho interessante é que o fato dos signos ou imagens dizerem ou não a verdade
carece de significado. Os signos ou as imagens verdadeiras ocultam o fundo de sua verdade, da
mesma forma que as mentirosas ocultam o fundo de sua mentira. Ocultar algo faz parte da própria
natureza dos signos, assim como não há representação sem omissão, identidade sem exclusão ou
visão sem desatenção.
Por isso seria inoportuno psicologizar a sinceridade, ou seja, entendê-la como uma exigência
de que os signos coincidam com o que se pensa, como se todo assunto fosse decidido numa relação
voluntária e consciente do sujeito consigo próprio. A sinceridade seria entendida então como a
exigência de que o que se diz corresponda ao que se pensa. Mas, desde antes da psicanálise,
sabemos que o homem não sabe, em última instância, o que pensa, ou que, ao menos, o que pensa
não é tão claro nem tão evidente nem imediato. O homem também é para si próprio um mistério,
uma superfície atrás da qual está oculta uma dimensão à qual ele não tem acesso privilegiado
enquanto observador de si próprio. Alguns destes desmascaramentos, ou as velhas teorias da
conspiração, são muito simples porque não perceberam que o oculto que se mostra, inevitavelmente
oculta algo, que a verdade não eqüivale à sinceridade, nem a democracia é sinônima de
transparência, e entenderam a evidência de uma forma naturalista. Daí a pretensão de ter revelado
verdades definitivas que já não ocultam nada. Talvez tenha sido Heidegger o primeiro a advertir que
a ocultação é inevitável e que a suspeita não pode ser revogada definitivamente porque não reside
na subjetividade e sim no auto-ocultamento do próprio ser.
É possível explicar esta estratégia da filosofia por analogia com determinados procedimentos
estéticos. A filosofia procura o excepcional num contexto de normalidade. A típica cena originária
da filosofia é a sensibilidade normal da vida quotidiana. Quando se lê os textos de Descartes ou de
Freud, dos mestres da suspeita, todos começam com uma cena comum. Sentimo-nos num cômodo
onde tudo é familiar, mas talvez seja tudo um sonho que esconde algo terrível, que não tem nada a
ver com a realidade. Podemos dormir, mas talvez o que sonhamos não tenha a inocência que
aparenta ter e corresponda a uma realidade latente ou reprimida; alguém pensa, mas talvez, na
melhor das hipóteses, esteja acreditando num preconceito; outra pessoa decide livremente, mas
pode estar condicionada a outro nível mais profundo do seu ser; outra vota, mas é possível que
esteja sendo ocultamente manipulada. O temor aparece em meio à normalidade. Esta é a idéia de
Adorno de que o maior engano é a normalidade, de que o lugar da normalidade é precisamente o
lugar da máxima suspeita e de que os signos de reconciliação com essa normalidade são os mais
perigosos. E esta também é a suspeita elementar que se encontra nos filmes de Hitchcock. Quando
uma seqüência nos mostra o quotidiano e normal, então, sabe-se o que isto significa: que a qualquer
momento vai acontecer algo terrível. A fonte de toda a sedução nos filmes de Hitchcock, e de outros
tantos, é a questão da normalidade das seqüências nas quais nada acontece e, constantemente, se
espera pelo assassinato. A filosofia vive igualmente de um suspense desse tipo, no qual a
normalidade tende para um momento revelador. Pensar eqüivale a estar preparado para essa
revelação mediante procedimentos detetivescos no estilo recomendado por Luhmann: buscar teorias
que representem o normal como inverossímil e o evidente como incompreensível, formular os
problemas de um modo inusual.
A exceção é mais reveladora que a normalidade. Quando alguém repete insistentemente a
mesma coisa, não dá a impressão de que está dizendo o que pensa mas, ao contrário, de que está
dizendo algo diferente do que pensa. Surge a suspeita de que não diz o que pensa ou, como às vezes
acontece, de que não pensou o que disse. O autômato pensa pelos outros. Não é para nós um
personagem de confiança –aqui também vale a analogia estética - quem atua de maneira mecânica,
automática, sem se desviar do estabelecido, sem discrepância, sem essa irregularidade que nos
constitui como seres humanos. Ter personalidade eqüivale a ser algo mais que um caso singular de
uma lei geral. Uma instituição que só diz o que dela se espera ou a coletividade que destaca aquele
aspecto que faz parte de sua previsível identidade suscitam a mesma impressão de falsidade. Desta
forma, se explica que sociedades e instituições tenham sucumbido, repentinamente corroídas pela
sua mentira interna. O próprio, o típico, o esperável, não é sincero. É o efeito que produz tudo o que
se adequa exatamente às convenções vigentes ou às expectativas dos demais. Falar como uma
personagem típica da direita, ser indiscutivelmente progressista, exibir-se como um produto típico
do país, criticar por princípio, como se espera da oposição, ou defender, igualmente por princípio, a
autoridade... A sinceridade não é contrária à mentira, mas ao automatismo e à rotina.
Enquanto a verdade científica se confirma com a repetição, existem outros tipos de verdades
que se perdem precisamente com a repetição. A repetição automática é a apresentação de alguns
signos que não manifestam o pensamento da pessoa, seu espírito, a identidade profunda, a
autenticidade. O corrente, o tradicional e o repetitivo escondem o fundo das coisas e das pessoas
como um escudo opaco. Não acreditamos em quem é unicamente um representante (um signo que
se limita a representar, a transmitir, sem imprimir sobre a mensagem algum caráter particular).
Acreditamos em quem fala ou atua em condições de perda das evidências, das seguranças da
normalidade (alguém para quem não está tudo evidente, que atua sem as seguranças do roteiro e
abandona o conforto das normas de conduta). Mas, se não percebemos nenhum deslocamento do
habitual, nenhuma distorção da superfície, nenhum movimento, essa imobilidade provoca suspeitas,
da mesma forma que a calma anuncia, narrativamente, algum tremor. Por isso, a ortodoxia é muitas
vezes inquietante, como a heterodoxia convencional. Algo semelhante acontece, por exemplo, nas
sociedades ou nas organizações, quando não há lugar para uma crítica aberta: é possível esperar o
pior. Quando todo o mundo está de acordo, podemos supor que o procedimento para forjar uma
opinião comum não tenha sido adequado.
O filósofo que observa a realidade espera um desvio involuntário do programa, um
movimento, uma agitação, uma falha, um deslize, ou seja, um signo incomum no meio da rotina. Só
o diferente se manifesta como sincero. Uma expressão incomum pode ser falsa, uma conduta
excêntrica pode ser danosa, mas são coisas autênticas e reveladoras. A sinceridade é o diferente no
meio do próprio, constitui uma resistência contra a normalização, a padronização das opiniões, a
rotinização da conduta, a aparatização da política, a apoteose do politicamente correto. Não existe
verdade sem anomalia, nem liberdade sem dissidência. Na literatura e na vida, o interessante é
sempre o desvio do esperado, o anômalo, a diferença.
Neste cenário tão impreciso como apaixonante, movimenta-se a filosofia. Ela institucionaliza,
por assim dizer, a pesquisa de irregularidades; é o lugar onde se cultiva a suspeita a partir do lugar
comum e a esperança numa revelação. A essa longa busca do invisível e oculto que a caracteriza
desde suas origens, acrescentamos agora, pelo processo de amadurecimento, um avanço nada
desprezível a respeito das filosofias do “desmascaramento” do século XIX: a universalização da
suspeita, que inclui também uma suspeita perante si própria, resultado da consciência de sua
finitude, que aboliu seu tradicional privilégio observador. Agora podemos suspeitar de uma forma
melhor porque descobrimos que não existe visão sem cegueira, que a invisibilidade começa por nós
mesmos. A chamada cibernética de segunda ordem nos ensinou a ver que não se pode ver o que não
se pode ver. Esta é a definição do ângulo cego que corresponde a toda visão finita. Só pode estar à
altura da verdade da suspeita uma consciência que se sabe intransparente para si própria. Esse tipo
de verdade nunca se pode refutar absolutamente nem se pode confirmar absolutamente e caracteriza
o tipo de certeza da vida humana, maior ou menor segundo os casos, mas sempre aberta e possível
de se seguir. Os momentos de sinceridade atuam nela como desvelamentos provisionais que, como
numa novela policial ou na literatura de espiões, se estruturam sempre em função do suspense
mantido pela promessa de uma revelação definitiva. Mas, a suspeita nunca pode ser totalmente
desativada, por uma regra lógica: é própria da exceção que não funciona como uma categoria
irrefutável já que não proporciona nenhum critério para ser identificada como tal pois não se pode
presumir sob uma regra. O valor da exceção não é “objetivo”, ou seja, não pode ser determinado por
uma diferenciação empírica, visual em contraposição à normalidade. Por isso, é possível entender a
filosofia sob a metáfora do vôo sem visibilidade: o vôo deve acontecer por cima das nuvens e deve
contar com uma capa de nuvens bastante fechada. Há que se entregar aos próprios instrumentos
(Luhmann).
A sociedade é o banco de pro(no sentido mais inocente da expressão).
Talvez tudo isto possa servir para explicar a volta da espionagem, que tinha perdido
importância depois do fim da “guerra fria”. Os atentados do 11 de setembro foram também um
fracasso para os serviços de inteligência cujos pressupostos e ofertas de postos de trabalho não
pararam de crescer desde então. Esta circunstância implica uma mudança cultural e não uma
simples estratégia, que muito tem a ver com a invisibilidade social. Esta volta da espionagem é
devido ao fato de que a tradicional oposição entre o poder explícito e o criminal foi substituída pela
suspeita, pela intriga e a conspiração. Os documentos mais interessantes para compreender esta
nova situação podem se encontrar nas obras de escritores tais como: Don DeLillo, Thomas Pynchon
ou Alain Robbe-Grillet. As mais importantes teorias sociais se encontram hoje na literatura de
espionagem: na noção de submundo de Dom DeLillo, no modo como Pynchon mostra a
especificidade paradoxal da representação no mundo midiático, ou na ruptura com o relato linear e a
legibilidade imediata levada a cabo por Robbe-Grillet para abordar as tramas nas quais os sujeitos
mudam de identidade, encontram o seu doublé, obrigados a se mover no mundo ambíguo dos
espiões, das mensagens erradas e da usurpação dos signos.
Há um paralelo entre a crise da representação (falta de limites, ambigüidade, inabrangência,
confusão...) e o interesse crescente pelos romances de intriga desde o século XIX. A mesma época
que, por exemplo, estabelecia uma forma de vestir anônima e geral, produzia também a figura do
agente secreto ou o detetive privado. Numa situação na qual os poderosos não somente não se
distinguiam oticamente dos demais, mas começavam a comer e beber a mesma coisa, a falar a
mesma linguagem, o detetive assumiu a tarefa de determinar quem tem o poder e quem não tem, de
diferenciar entre o conspirador e o inocente. A atividade investigadora é a narrativa dominante
quando as coisas não se reconhecem com facilidade, quando as aparências enganam e a
normalidade é confusa. A batalha consiste em interpretar a informação, em desenvolver estratégias
contra signos extremamente opacos.
Isto significa que por trás da superfície dos signos existe uma força determinante que só é
possível intuir. A importância dos serviços secretos obedece às dificuldades gerais para estar
informado, entender e interpretar a realidade sobre a qual se atua; também não é um assunto que
somente interessa a defesa e a segurança. No futuro, qualquer instituição ou empresa terá que
dedicar mais esforços a esse tipo de averiguações à medida que o mundo no qual se move fica
menos claro, e que as estratégias unilaterais ou o culto ao evidente levam à mais absoluta
perplexidade. A inteligência é, cada vez mais, uma tarefa interpretativa, da mesma forma que o
interesse próprio resulta de uma crescente complicação dos outros. Em ambos os casos, a imediatez
e a visibilidade ingênua se fazem enganosas e aquele que olha sem interpretar não se informa de
nada.
Os lugares de poder estão no espaço escuro da suspeita, que Boris Groys chamou de
“submidial”, o porão de um mundo mediatizado, em cuja superfície estes lugares não são
reconhecíveis. São os espaços nos quais realmente estão combatendo os terroristas e os
contrapoderes secretos, a partir do momento em que a única possibilidade de enfrentar uma
conspiração é organizar outra. Pensando as coisas desta forma, ganhamos uma perspectiva para
entender o que nos acontece e adivinhar aonde estão indo as controvérsias do futuro imediato. As
novas proibições, a vigilância e a insegurança, tudo isso tem a ver com o fato de que os signos se
tornaram suspeitos, de que reina também uma complexa ambigüidade em relação aos nossos
direitos. Aqui reside, ao meu ver, a verdadeira gravidade dos acontecimentos recentes, resultado por
sua vez de uma forma dramática do mundo atual, com suas injustiças e desigualdades, protegidas
freqüentemente por uma aparência correta.
Todo esse assunto parece ter dado razão àqueles que sublinharam de diversas formas a
opacidade social, como Ulrich Beck com sua teoria sobre a invisibilidade da sociedade de risco ou
Luhmann quando considera os sistemas sociais como realidade de transparência irredutível, perante
os que decretaram a instauração de uma sociedade transparente ou a transparência comunicativa na
opinião pública. A suspeita nunca pode ser completamente desativada, já que é algo constitutivo de
toda superfície, como prova o fato de que o discurso antiterrorista também pode servir para ocultar
outras coisas. Tudo aquilo que se mostra se torna suspeito, e viria a ser o postulado de uma
ontologia da sociedade invisível. A realidade não é o que aparenta ser, contra os nostálgicos do
“live”, da imediatez, mas também não é o que está meramente oculto que bastaria pôr à luz,
segundo sempre sugeriram os críticos e os terapeutas. A nostalgia de uma realidade mais real que
aquela encenada pela política e retransmitida por todos os meios de comunicação explica o interesse
dos programas ao vivo. No mundo da simulação, o real se transforma em algo obsessivo. Nossa
cultura fica fascinada pela diferenciação autenticidade/simulação. E o resultado epistemológico de
tudo que dissemos poderia ser formulado desta forma: para compreender a realidade social tem que
aceitar que os dados e os fatos não servem para quase nada, os conflitos sociais são guerras
hermenêuticas, disputas de interpretação. Ater-se simplesmente aos feitos, sem interpretação, sem
suspeita, sem filosofia, é fonte de uma frustração similar à que acontece, continuando a metáfora
televisiva, quando o programa que desejamos ver está codificado e que não temos assinatura desse
canal.
Invertendo o célebre aforismo, é possível sentenciar hoje que, quando um dedo assinala ao céu o
imbecil olha para o céu. A reflexão atualmente exige atentar para os signos, resistir aos encantos da
imediatez, atrever-se a interpretar. As coisas não são exatamente como nos são mostradas, não se
esgotam em seus signos, nem se fazem completamente transparentes nas suas manifestações. Tudo
dever ser olhado duas vezes; somente nessa reduplicação pode ser corretamente compreendido e
julgado. O mundo do visível deve ser interrogado, relativizado, valorado em relação a uma
segunda realidade, pensada, mas nele escondida (...) Com a sociedade do risco surge uma era
“especulativa” da percepção e do pensamento (Beck) . A filosofia leva muito tempo investigando
essas pistas difíceis, o suficiente para ter apreendido que não há observatórios absolutos, motivo
pelo qual o inteligente é pôr em marcha uma cooperação de acordo com a vigilância do mundo.
Com esta série de conferências, celebramos que existe a filosofia e que existe na sua forma atual, a
saber, como uma disciplina atenta às mudanças sociais e às sensibilidades da cultura, interessada em
aprender de outras ciências, e firmar com elas intercâmbios para espionar a realidade e poder
compreendê-la melhor. A filosofia seria então um tipo de saber que desenvolve especialmente uma
capacidade de perceber os desajustes num mundo que aparenta homogeneidade, tempo real,
visibilidade e sincronia. O mais autêntico é aquilo que não está presente, a outra cara das coisas, o
ausente, o inclassificável, o reprimido, o reverso e a esperança.
Sobre os autores
Florence Dravet é escritora, tradutora e poeta. Doutora em Ciências da Linguagem pela Universidade Paris III- Sorbonne
Nouvelle, na França, é professora universitária em Brasília.
Gustavo de Castro é poeta e ensaísta. Doutor em Antropologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, é
professor universitário, pesquisador do Grupo de Estudos da Complexidade e coordenador do Instituto Hermeum de
Ciências Antropológicas, Filosóficas e Místicas. Autor, entre outros, de O Mito dos Nós (Ed. Casa das Musas, 2004).
Daniel Innerarity é filósofo e ensaísta. Doutor em Filosofia pela Universidade de Navarra é professor de História da
Filosofia na Universidade de Zaragoza, Espanha. É tradutor para o espanhol de Holderlin, Schiller e Fichte. Publicou,
entre outros, A Filosofia como uma das belas artes (Ed. Teorema, 1995).
Luiz Martins da Silva é poeta e jornalista, professor do curso de Comunicação Social da Universidade de Brasília. É
Mestre em Comunicação e Doutor em Sociologia (UnB/Universidade Nova de Lisboa); pesquisador e consultor ad hoc do
CNPq e do Ministério da Educação (MEC). Coordena na UnB a linha de pesquisa Jornalismo e Sociedade no Programa
de Pós-Graduação em Comunicação da mesma universidade.