A arte de mal tourear em toda a sela

Crónica de Touros
A arte de mal tourear
em toda a sela
JOSÉ DE VASCONCELOS
RIBEIRO
ÉRAMOS tão poucos os pousados nas arquivoltas das bancadas que até o solipsismo
desses escassos ofereceu-me,
espontânea, a oportunidade
de descuidada e perceptivelmente os distinguir. Além dos
assíduos obstinados que cada
vez se contam menos e dos
sacrificatórios escrevinhadores que do deslustroso evento
se comprometeram a lavrar
acta, outros houve de que lhes
conheço a faceira mas de
quem ignoro o apelido.
Por lá, na aridez daquele
deserto, surpreendi, todavia,
inusitadamente sisudo e circunspecto no rebordo da barreira, receoso da escapadela
de cáustico e apropriado cbiste, Herman
José; mais
aquém, o infalível clínico Fernando Teixeira, tão talentoso
nas análises como apaixonado
das touradas; mais acima, esgargalado e de farripas ao léu,
inquieto no corredor vago dos
degraus, não sei se por via do
rebusco do tema ou da pilhéria, o admirado Solilóquio.
trepando os degraus, corcovado, submisso e cortês, o aceno
de Vitor Escudero, ufano dos
seus ostentosos bigodes e da
policroma revista de que é director; logo acima, acomodado sobre a laje, José Manuel
Maurício, devotado apicultor,
parceiro de fadigas e labores,
de gorra resguardando da friagem noctívaga a calva, que
aos touros vem, de longe em
longe, cativado pela parentela
arribada a Lisboa; mais além.
o popular Ronquillo, tonitroante doutros tempos, silente e
cabisbai!,o pela desesperança
actual. E que, agora, já nem o
menor mote se mantém para o
apupo ou para a zombaria.
Com efeito, com um cartaz
tâo pobretana só efémeras e
poucachas expectativas subsistiriam. E as debilitadamente resistentes finavam-se logo,
com o escaldão dos preços, no
sORé das bilheteiras.
E que, realmente. nem o
ignoto cavaleiro António Jerónimo Ventura nem o abúlico rejoneador Rafael Peralta,
outrora vibrante mas nunca
correcto, atrairiam gentiaga à
tijolaria do Campo Pequeno.
Do terceto de folhelho apenas
uma semente de gramínea retinha viço para germinar. Tal
sementalha é de Elvas, dá
pelo nome de Joaquim Carvalho Tenório e usa o apelido de
Bastinhas.
Não desejando tergiversar
do conceito do título sinto-me
obrigado a esclarecer que
para tourear a cavalo são necessários três propósitos: o
primeiro ter cavalos com
doma e ensino perfeitos e
temperamentalmente tendentes para a função; o segundo
saber montar, e o terceiro conhecer, com alguma minúcia.
as regras básicas da lide de
touros.
Sumariamente considera-se
um cavalo bem ensinado
quando bem reunido de prumos, ele docilmente se submete aos avisos do marialva
- ao afago da rédea contrária
na tÚbua do pescoço, ao encosto da bota, e não da espora, à aba do ventre e à súbita
descompressão da sela.
Reconhece-se facilmente as
boas qualidadade de um cavaleiro na postura que este assume sobre a montada. Costas c
pernas verticais, mão do oportuno governo da brida junto à
comissura das coxas. tacão da
bota para baixo e ponteira da
mesma para cima e para fora.
Em qualquer situação. No
cite, no arranque, nos diversos andamentos, nas mudanças de mão, na passage, no
piaffé e no parar.
Conhecer as normas básicas
do toureio à gineta, entre outros muitos e variados preceitos, é dar a prioridade de ataque a"{era, é entrar de frente e
sem vantagens na reunião, é
cravar justo ao estribo. e não
a cilhas passadas ou muito
menos à garupa, é citar sempre de locais contrários ou
pelo menos não favoráveis à
crença natural do touril. é. em
suma. fatigar'e curvar a cerviz
do cornípeto.
Algum dos meus confrades
de suplício observou da parte
de António Ventura ou de
Rafael
Peralta
qualquer
observância às cláusulas enunciadas? Eu não vi.
a que assisti foi a desenfreados galopões com integral
ausência de cites. a enormes e
abjectos pescanços. a farpas
vergonhosamente prendidas à
garupa, a cruéis repuxões nas
rédeas, ao atroz repicar das
esporas e a quejandas infâmias e abjectos vitupérios.
Logo não tourearam!
J,i o cavaleiro Tenório tragou com ademalles as teima-
(Ias investidas dos inimigos e
citou. empenhado, bem e de
frente. Aplicou-se com afinco
na brega e obteve até no sexto. a excelente consumação
duma extraordinária banda rilha, a última. Ajustada, de
frente e cravada ali, na aresta
da caixa do estribo. Em contrapartida deslustrou a sua
participação com mÚltiplos
ferros presos em fuga, no espelho da anca dos cavalos,
com alguns cites vantagistas
da porta dos currais e com a
permissão desvalorosa de repetidos avisos, do interior da
teia, do inoportuno capote do
peão Jorge Marques, a desunir-lhe feiamente o antagonista dos voejos da cauda da
montada.
Os novilhos de exemplar
porte colaboraram no festejo,
com maior interesse o terceiro, o quarto e de modo saliente o quinto, com o seu migalha de mansuetude o primeiro
e o segundo, e com sentido o
último.
Do redondo edifício retirei-me sem dificuldade recolhido
e veloz. Afinal éramos tão
poucos os pousados nas arguivoltas das bancadas.
Campo Pequeno, 29 de
Maio de 1986 - Novilhos
da Soe. Agrícola de Santo
Estêvão para os cavaleiros
Joaquim Bastinhas, Rafael
Peralta e António Ventura
que tomou a alternativa, e
para os Forcados Amadores
Os Lusitanos e Académicos
de Santarém.