Solidariedade no exílio: os laços entre argentinos e brasileiros

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Solidariedade no exílio: os laços entre argentinos e brasileiros
1
Solidariedade no exílio: os laços entre argentinos e brasileiros1
Samantha Viz Quadrat2
A ditadura brasileira teve início em 31 de Março de 1964, quando um golpe
civil-militar depôs o presidente João Goulart. Com o início da ditadura, que iria durar
até o ano de 1985, assistimos a saída de milhares de brasileiros para o exílio. Segundo
Rollemberg, podemos identificar duas gerações do exílio brasileiro neste período
histórico.3 A primeira é a geração 1964, formada por grupos de pessoas mais velhas e
com profissão definida; em sua maioria associado aos projetos das reformas de base
defendidas pelo presidente deposto, ele mesmo um exilado, aos sindicatos e partidos
políticos, como o PTB (legal) e o PCB (na ilegalidade).4 Já a segunda geração de
exilados brasileiros é formada a partir de 1968 por militantes mais jovens, em sua
maioria oriundos do movimento estudantil e da luta revolucionária pela via armada.5
Os caminhos do exílio brasileiro, a exemplo de outros casos na América Latina,
seguiram majoritariamente os seguintes destinos: Uruguai (especialmente a primeira
geração), Chile (ponto de chegada da segunda geração) e Europa após o 11 de setembro
de 1973. 6 No entanto, alguns brasileiros preferiram ficar na América Latina. Seguiram
para a Argentina, Cuba e México.
No caso do exílio argentino no Brasil, alvo desta comunicação, podemos
identificar duas gerações.
7
A primeira geração, marcada nitidamente por intelectuais,
chegou ao país a partir de 1966, com o início da “Revolução Argentina”, liderada pelo
general Onganía. Já a segunda geração, formada por pessoas de diferentes idades, níveis
1
Trabalho apresentado na IV Jornadas de Historia Reciente – Universidad Nacional de Rosário –
Argentina – Maio de 2008.
O trabalho aqui apresentado faz parte do projeto “O exílio argentino no Brasil ditatorial”, desenvolvido
no Núcleo de Estudos Contemporâneos da Universidade Federal Fluminense. O projeto conta com o
apoio da FAPERJ e do Fundo Setorial de Infra-Estrutura (CT-INFRA) por intermédio do MCT/CNPq no
âmbito do Edital Primeiros Projetos – 2006. Gostaria de agradecer as estagiárias Bianca Rihan (CNPq),
Paula Rollo (FAPERJ) e Renata Reis (FAPERJ), pela coleta de dados na parte brasileira, e a Lívia
Gonçalves Magalhães, pelo auxílio na pesquisa na parte argentina.
2
Professora Adjunta de História da América Contemporânea da Universidade Federal Fluminense e
pesquisadora do Núcleo de Estudos Contemporâneos na mesma instituição. E-mail para contatos:
[email protected]
3
ROLLEMBERG, Denise. Exílio: entre raízes e radares. Rio de Janeiro: Record, 1999.
4
Idem, p. 50
5
idem
6
idem
7
Cabe esclarecer que estamos pensando a questão geracional, a exemplo de Rollemberg, a partir das
concepções de J. Sirinelli para o qual as gerações não são identificadas por recortes de idades, vistos
como insuficientes, mas por uma experiência ou grande evento comum com os quais se identificam. Cf.
SIRINELLI, J. “A geração” in: FERREIRA, Marieta de M. e AMADO, Janaína (orgs). Usos & abusos
da história oral. Rio de Janeiro: FGV, 1996 e “Os intelectuais". in : RÉMOND, René. Por uma história
política. Rio de Janeiro: UFRJ/FGV, 1996.
2
sociais e formação profissional e política, começou a chegar antes mesmo do golpe de
24 de março de 1976 em função das ações da Triple A e também das próprias medidas
repressivas autorizadas por María Estela Martínez.
A chegada dessa segunda geração ao Brasil corresponde também a um momento
especial dentro da ditadura brasileira. Vivia-se no país o início da redemocratização
anunciada pelo presidente-general Ernesto Geisel como um processo de abertura “lenta,
gradual e segura”.
8
Com isso, havia no Brasil um clima de incerteza política, dos
caminhos que iríamos seguir a partir de 1974, visto que não havia uma “agenda” de
compromissos para esse processo. Ao mesmo tempo, era notória a alegria e a
reorganização política que ocupava novamente as ruas das principais cidades, através
das manifestações pela anistia, a favor do retorno dos exilados brasileiros e da libertação
dos presos políticos, greves, etc.9 Contudo, a insegurança permanecia. A máquina
repressiva não havia parado de funcionar, não queria perder o poder e as vantagens
acumulados ao longo da ditadura, 10 e casos como os assassinatos do jornalista Vladimir
Herzog, em 1975, do operário Manuel Fiel Filho e do “massacre da Lapa”, ambos em
1976, geravam temor e apontavam os limites da transição política ainda presentes
naquele momento. 11
Num recente trabalho sobre o exílio argentino no Brasil realizado por mim pode
se ter uma falsa impressão de que essa experiência tenha sido uma festa.12 Um exílio no
qual a dor, a separação, a culpa, a confusão, a insegurança e outros sentimentos tão
comuns a esta situação não estivessem presentes. No entanto, é necessário chamar a
atenção para o próprio clima brasileiro. O processo de abertura conjugado às
experiências de contracultura ditavam um ritmo diferente ao país, que não passou
8
O processo de transição democrática no Brasil teve início em 1974, com a posse do presidente-general
Ernesto Geisel. No entanto, o poder Executivo só seria devolvido a um civil em 1985, quando Tancredo
Neves e José Sarney foram eleitos, respectivamente presidente e vice, por um Colégio Eleitoral. Com o
falecimento de Tancredo Neves, ainda em 1985, Sarney assumiu e sucedeu ao último presidente militar, o
general João Baptista Figueiredo. Num processo classificado pelas ciências sociais e políticas como
negociado ou pactuado, a transição brasileira à democracia durou 10 anos.
9
Na segunda metade da década de 1970 assistimos, dentre outros movimentos, a luta pela anistia política,
com destaque para as ações dos Comitês Brasileiros de Anistia (CBAs) e do Movimento Feminino pela
Anistia e, a partir de 1979, a reorganização do movimento estudantil; do sindicalismo, com a eclosão das
greves do chamado ABC paulista; etc. .
10
Sobre o tema ver: QUADRAT, Samantha. Poder e informação: o sistema de inteligência e o regime
militar no Brasil. Rio de Janeiro, IFCS/UFRJ,2000. Dissertação de mestrado
11
As principais leis autoritárias foram retiradas aos poucos. Podemos destacar, em 1978, o fim do AI-5 e,
em 1979, a lei de anistia e permissão da livre reorganização partidária.
12
QUADRAT, Samantha. Exiliados argentinos en Brasil: una delicada situación. In: YANKELEVICH,
Pablo y JENSEN, Silvina (orgs). Exilios. Destinos y experiencias bajo la dictadura militar.Buenos Aires:
Libros El Zorzal, 2007. p. 63-102.
3
despercebido aos argentinos que lá se fixaram especialmente para os que foram viver no
Rio de Janeiro. O clima era de fato diferenciado e constantemente associado pelos
próprios brasileiros a uma festa, a uma grande festa. Com a anistia em 1979, o retorno
dos exilados brasileiros e a liberação dos presos políticos trouxeram ainda mais tempero
a esta festa.
13
Os exilados eram recebidos por centenas de pessoas nos aeroportos de
todo o país, saudados como verdadeiros “heróis” davam entrevistas sobre a experiência
do exílio, da sensação de estar de volta e dos novos planos. Alguns dos argentinos
entrevistados para o projeto que desenvolvo chegaram a ir aos aeroportos, a viver a
experiência da volta, do retorno do outro do exílio.
No entanto, apesar destes esclarecimentos iniciais, o exílio no Brasil apresentava
dificuldades semelhantes às outras experiências: a língua, a comida, os costumes, o
calor, a incerteza, a decepção, a sensação de derrota... Como reconheceu Viñar, todos
esses movimentos de adaptação são sentidos como agressões suplementares.
14
As
etapas do exílio latino-americano identificadas por Ana Vasquez e Ana Araújo também
estão presentes na experiência argentina no Brasil, são elas:
« une première étape qui est psychologiquement marquée par le traumatisme, le
deuil et un très foro sentiment de culpabilité. C’est l’arrivée. Une deuxième
étape centrée sur les processus de transculturation. Dans la mesure ou l’exil se
prolonge, on constate une troisième étape où l’ébranlement des mythes entraîne
des remises en question de soi et du projet collectif initial. »15
E mais,
“Para um exilado, a ruptura da ancoragem narcísica se faz em um conjunto
violento, sobretudo para quem outrora tinha um papel social reconhecido por ele
e pela comunidade. Perde o espelho múltiplo a partir do qual criava e nutria sua
própria imagem, seu personagem. No exílio, ninguém o conhece, ninguém o
reconhece. Aquele que eu era não existe mais. O personagem está morto, o
cenário não é mais o mesmo, os atores tampouco. E nos encontramos ali, sem
olhar, sem palavra: comoção e crise radical da identidade”16
13
Após intensas pressões e negociações, a lei de anistia brasileira, ainda hoje alvo de debate e
questionamentos, especialmente na questão da chamada reciprocidade, foi aprovada em 28 de Agosto de
1979. Desde 1988, com a Constituição democrática, a anistia tem sofrido alterações visto que nem todos
os envolvidos por parte das esquerdas foram anistiados até o presente.
14
VIÑAR, Marcelo e VIÑAR, Maren. Exílio e tortura. São Paulo: Escuta, 1992. p. 71
15
VASQUEZ, Ana e ARAUJO, Ana Maria, Exils latino-américains: la malédiction d’Ulysse, Paris,
L’Harmattan/CEMI, 1988. p. 34
16
VIÑAR e VIÑAR. op. cit, p. 71
4
Se a identidade era construída destacadamente ao redor da militância política, no
exílio ela deverá também ser reconstruída, reinventada. No Brasil, o Estatuto dos
Estrangeiros proibia o envolvimento em questões políticas. Apesar da abertura, ainda
existia no Brasil uma ditadura. A militância deveria ser de outra maneira, embora
muitos alimentassem o desejo de voltar à Argentina. Além disso, uma questão
importante rondava a grande maioria dos entrevistados: ficar ou não no Brasil? Seria
apenas um lugar de passagem?
Permanecer próximo da Argentina tinha suas vantagens: a família poderia visitálos mais facilmente e a possibilidade de retorno imediato para a retomada da luta
política parecia mais fácil. Mas tinha também grandes desvantagens: o Brasil não
oferecia o status de refugiado ou exilado político,
17
com isso, não era possível receber
nenhuma ajuda do governo, e mesmo que estivéssemos no processo de abertura
vivíamos numa ditadura e o medo (não subjetivo, mas baseado em fatos reais) das ações
conjuntas entre as forças de repressão era uma constante. O Plano Condor, ainda que
não identificado na época por este nome, já se fazia presente e as notícias de
espionagem e desaparecimentos circulavam entre as pessoas.
18
O objetivo deste trabalho é discutir, diante das dificuldades encontradas no
Brasil tanto para quem resolveu ficar como para quem usou o país como lugar de
passagem, as ações de solidariedade fomentadas e que atenderam não apenas
argentinos, mas também chilenos, uruguaios, bolivianos e paraguaios.
Grande parte das ações analisadas nesta comunicação reuniu representantes da
Igreja Católica brasileira, mas desde já reconhecemos que o trabalho ainda não está
completo devido à falta de espaço e tempo para esta comunicação. As relações entre o
Estado autoritário e uma das principais instituições do Brasil, a Igreja Católica, foram
tensas em boa parte do período ditatorial. Do apoio ao golpe em 1964 ao surgimento de
vozes duras contra as ações da ditadura, especialmente da condenação da pena de morte
que nunca chegou a ser aplicada embora estivesse presente nas leis aprovadas pelo
governo, as relações foram caracterizadas pela ambigüidade e por negociações, em
17
Em 1960, o Brasil havia ratificado a Convenção de 1951, sobre o Estatuto de Refugiados, com reserva
temporal (reconhecia como refugiados apenas aos cidadãos perseguidos na Europa antes de 1951) e
geográfica (somente reconhecia como refugiados as pessoas de origem européia). Todos os latinoamericanos que chegavam ao Brasil recebiam o visto de turista por 90 dias, período que o ACNUR tinha
para encontrar um país que os recebessem.
18
QUADRAT, Samantha. A repressão sem fronteiras: perseguição e colaboração entre as ditaduras do
Cone Sul, Niterói, Programa de Pós-Graduação em História – Universidade Federal Fluminense, 2005.
Tese de doutorado.
5
alguns casos secretas.
19
Ao lado dos representantes do catolicismo, integrantes de
outras religiões, como o pastor da Igreja Prebisteriana, Jaime Wright,20 e integrantes da
chamada sociedade civil, como advogados, jornalistas, etc. Dentre eles, não apenas
brasileiros, mas também estrangeiros no país, como a jornalista inglesa Jan Rocha.
Daremos especial atenção aos parceiros do ACNUR no Brasil, com destaque para: a
Cáritas Arquidiocesana do Rio de Janeiro, Comissão de Justiça e Paz, o grupo Clamor e
às ações individuais dentro da própria Igreja Católica e/ou de organizações civis.
Nas entrevistas realizadas até agora para o projeto “O exílio argentino no Brasil
ditatorial” a solidariedade dos brasileiros, das chamadas “pessoas comuns”, tem sido
recorrentemente mencionada.
21
No entanto, para esta comunicação focaremos a nossa
atenção para as ações coletivas e de alguma maneira institucionalizadas.
Góis defende que ética e solidariedade tornaram-se bandeiras de luta importantes
no Brasil dos anos 1980 e 1990. 22 Sobre a questão da solidariedade, Góis afirma que “a
solidariedade foi o denominador comum que, na passagem de tantas turbulências e
truculências, assumiu a função de novo catalisador social e de alternativa à barbárie e às
bárbaras respostas a elas que muitos de nós apresentamos.” 23 Nesse sentido,
“confere à retórica da solidariedade um aspecto reativo, na medida em que surge
como resposta a uma situação previamente construída. Vale dizer, uma situação
em que a violência se institucionaliza de forma a deixar pouco espaço para a sua
contestação. No que tem de mais importante, a retóricas da solidariedade
apresenta-se como uma enorme força criadora de verdades, de razões, lógicas,
padrões e, principalmente, de novos homens. Ao opor-se à selvageria, abandono,
indiferença, violência e preconceito ajudou a salvaguardar direitos e tradições
humanitárias, assim como operou no redesenhar de amplas áreas do nosso
comportamento que constituem muito da própria noção de civilização
humana.”24
Será nesta direção que iremos caminhar daqui por diante ao analisarmos os
laços de solidariedade formados anos 1970 e 1980, que, em alguns casos, se mantém até
19
Ver: SERBIN, K. Diálogos na sombra. São Paulo: Cia das Letras, 2001.
O Pastor Jaime Wright também foi atingindo na sua família com o desaparecimento do seu irmão,
Paulo, militante da esquerda, em 1973.
21
Do mesmo modo, encontramos referências à exploração do trabalho por conta da ausência de
documentos. Néstor Correa ressalta a solidariedade argentina e brasileira, mas também esse outro lado
em seu depoimento no livro La Argentina exiliada, organizado por Daniel Parcero, Marcelo Helfgot e
Diego Dulce (Buenos Aires: Centro Editor de América Latina, 1985. p. 41.)
22
GÓIS, João Bosco Hora. “A solidariedade como um projeto: o aporte teórico de Richard Rorty” in: Em
pauta (Revista da Faculdade de Serviço Social da UERJ), UERJ, RJ, n. 17, p. 87-103, jan./jun. de 2002.
23
Idem, p. 91
24
Idem, p. 102 e 103
20
6
os dias atuais no combate pelo fim da impunidade e na valorização dos direitos
humanos. 25
A ditadura e a possibilidade de permanência no Brasil
Era na cidade do Rio de Janeiro onde ficava o escritório ad hoc do ACNUR, 26
criado em 1977 após acordo com o governo brasileiro para dar conta de cerca de 20 mil
pessoas, dentre elas, argentinos, chilenos, paraguaios, uruguaios e outros estrangeiros
que chegavam ao país.
Convém observar que a chegada de argentinos ao Brasil não despertou apenas o
interesse de pessoas ou grupos envolvidos com o combate às violações de direitos
humanos, nosso alvo prioritário nesta comunicação. O governo brasileiro ficou
particularmente preocupado com o afluxo de pessoas que cruzavam a fronteira em busca
de refugio.
O governo Geisel (1974-1979) foi um período de intenso debate sobre a
presença de estrangeiros no Brasil. Na exposição de motivos, de 14 de abril de 1976, o
general Gustavo Moraes Rego Reis, então Secretário Geral do Conselho de Segurança
Nacional, alerta para a recomendação de um grupo de trabalho interministerial com a
missão de avaliar o quadro institucional da imigração para o Brasil. Dentre as propostas
de mudanças, destaca-se a “alteração da legislação vigente para que tenhamos o suporte
jurídico capaz de permitir a redução do fluxo de estrangeiros aos estreitamente úteis e
necessários ao nosso desenvolvimento.”27
Nos demais aspectos e preocupações, a ação do ACNUR era considerada lenta e
gerava tensão na Polícia Federal brasileira, que avaliava não possuir pessoal suficiente
para manter vigilância sobre os refugiados, que poderiam estar “transmitindo técnicas
de guerrilha urbana a brasileiros.”28
25
Um dos objetivos iniciais desta comunicação era analisar a reciprocidade, ou seja, os brasileiros que
foram recebidos na Argentina no início dos anos 1970 e que no final desta década acabaram retribuindo a
solidariedade. Contudo, por motivos alheios a minha vontade, não foi possível a realização das entrevistas
com brasileiros até o presente momento. Espero suprir esta lacuna num próximo encontro e/ou
publicação.
26
. Parte da documentação burocrática do ACNUR pode ser consultada no Arquivo Nacional – Fundo
DSI/Ministério da Justiça (Rio de Janeiro – Brasil). Cabe ressaltar que nem todos os argentinos que
fizeram do Brasil um lugar de passagem pediram o status de refugiado.
27
Fundo: Ernesto Geisel EG Série Presidência 1974.03. 18 – folha 1243 – Fundação Getulio Vargas
28
Processo 100877/77 – Caixa 616/05282 – Fundo DSI/Ministério da Justiça – Arquivo Nacional – Rio
de Janeiro – Brasil.
7
Para examinar a questão foi criado pelo governo brasileiro um grupo informal,
composto por representantes do Ministério de Relações Exteriores, Ministério da Justiça
e o Secretário-Geral do Conselho de Segurança Nacional. O grupo concluiu, dentre
outros fatores, que: o ACNUR deveria retirar o mais rápido possível as pessoas sob sua
proteção, afinal o Brasil só as recebeu por razões “estritamente políticas e humanitárias”
29
; deveria ser organizado um fichário completo de todas as pessoas que se colocassem
sob a proteção do ACNUR, valendo-se de dados fornecidos pela própria agência;
reconhecia que a questão era mais de natureza política do que jurídica, pois temia uma
repercussão política e jornalística nacional e internacional que lhe fosse desfavorável e
que beneficiasse o “movimento comunista internacional”30; ressaltava que a tolerância e
boa-vontade não eram inesgotáveis e podiam estar próximas dos seus limites e que
deveria ser exercido um grau razoável de controle e fiscalização. No entanto, o
funcionário que escreveu o relatório sugeriu que fossem adotadas medidas que visassem
dificultar e desestimular a ação do ACNUR no Brasil. Dentre essas medidas, o
fornecimento dos endereços e a apresentação de todos na Polícia Federal para serem
fichados.31 Podemos interpretar tais ações como uma tentativa do governo de exercer
maior controle e disseminar o medo entre os que chegavam.
Solidariedade no exílio
No Brasil, no final dos anos 1970, vimos surgir as primeiras organizações de
defesa dos direitos humanos. A campanha pela anistia política movimentou diversos
setores da sociedade brasileira e serviu, também, de pontapé inicial para a inserção
política de uma nova geração.
No entanto, de maneira silenciosa, outros grupos atuaram. Serbin chama a nossa
atenção para o fato que:
“a maior parte das análises sobre a Igreja brasileira aponta corretamente para a
Arquidiocese de São Paulo como líder na luta pelos direitos humanos, mas
organizações baseadas no Rio de Janeiro também contribuíram de forma
significativa. Três dos mais importantes grupos estavam localizados a poucos
29
Não deixa de ser curioso observar que os exilados brasileiros tinham sérias críticas ao Ministério de
Relações Exteriores e aos consulados e embaixadas. Primeiro, por não tê-los ajudado no momento do
golpe de 11 de Setembro de 1973, no Chile. Segundo, pela freqüente negativa de registrar como
brasileiras as crianças nascidas no exílio de seus pais.
30
Uma das principais preocupações da ditadura militar brasileira era coibir o que ela acreditava ser uma
campanha feita pelos exilados e organismos estrangeiros, como a Anistia Internacional, para desabonar o
Brasil no exterior.
31
Processo 10077/77 – Caixa 614/05280 – Fundo DSI/Ministério da Justiça – Arquivo Nacional – Rio de
Janeiro – Brasil.
8
quarteirões um do outro no Rio – a sede da CNBB na Villa Venturoza; a Cúria
da Arquidiocese do Rio de Janeiro no Palácio São Joaquim, e a CJP-BR, a
Comissão Justiça e Paz – Seção Brasileira, sediada no escritório de Candido
Mendes na praça XV de Novembro. Por causa do prestígio internacional dessas
organizações, o Rio de Janeiro se tornou um tipo de central dos direitos
humanos.”32
D. Eugenio Sales era o cardeal do Rio de Janeiro, figura chave neste cenário e
dividia com D. Paulo Evaristo Arns, de São Paulo, os holofotes da Igreja e também
opiniões. Sales sempre foi apontado como conservador e “amigo do regime”. Arns era a
resistência e a defesa intransigente dos direitos humanos no Brasil. Contudo, se D.
Eugenio pouco teria feito pelos brasileiros presos no país a sua postura não teria sido a
mesma para com os estrangeiros. 33 Seguidor fiel da política papal, D. Eugenio agia com
descrição e constantemente buscava o diálogo com o governo, com quem tinha boas
relações.
Nas palavras do próprio D. Eugenio, “se eu anunciasse o que estava fazendo,
não tinha chance. Muitos não concordavam, mas eu preferia dialogar e salvar. Agora, eu
mantinha uma posição da Igreja, que era essa.”34
A primeira pessoa a buscar a sua ajuda foi um argentino que já havia passado
pelo Chile e chegado ao Brasil com um papel onde constava apenas o endereço de D.
Eugenio Sales. Naquela noite, D. Eugenio viveu um drama. Nas suas palavras:
“Foi um drama. Com o crucifixo na mão, eu pensava: ‘ como cidadão brasileiro
não posso receber montonero, tupamaro, aqueles refugiados que vinham... Se
entravam no país, se passavam para o território brasileiro...’Em seguida,
repensava: ‘Agora eu, como pastor, tenho o dever de receber...’Aí está o drama
todo: eu tinha o dever de receber.” 35
As críticas para D. Eugenio eram tanto internas e externas a Igreja Católica.
Considerado um anticomunista feroz e oponente das correntes mais progressistas dentro
da Igreja Católica, D. Eugenio Sales representa a “ambivalência”, a convivência entre o
apoio e a rejeição, a zona cinzenta e o penser-double apontados pelo historiador francês
32
SERBIN, K. op. cit, p. 321
Opinião da vice-presidente do grupo Tortura Nunca Mais do Rio de Janeiro e ex-presa política, Cecília
Coimbra. Jornal O Globo, 03 de março de 2008, p. 5. No momento em que eu finalizava esta
comunicação foi publicada no jornal O Globo uma série de reportagens sobre a atuação da Igreja Católica
no auxílio aos cidadãos do Cone Sul.
34
Jornal O Globo, 03 de março de 2008, p. 4.
35
Jornal O Globo, 02 de março de 2008, p. 16
33
9
Pierre Laborie para a França de Vichy.36 E assim é D. Eugenio Sales, o homem que se
recusou a rezar uma missa em comemoração ao AI-5, mas que proibiu os dominicanos
de rezarem missas pelas mães dos presos políticos porque as celebrações religiosas eram
anunciadas nos jornais.
Como vimos anteriormente, foi durante o governo Geisel que começou a chegar
o maior número de pessoas dos países vizinhos ao Brasil em busca de segurança.
“D. Eugenio recebia os refugiados na residência episcopal. No início de 1976,
quando o número de pessoas pedindo asilo aumentou, o cardeal organizou uma
rota clandestina para despachar pessoas para o exílio nos Estados Unidos e na
Europa. A arquidiocese alugou 62 apartamentos – principalmente em bairros de
classe média do Rio, como Flamengo, Botafogo e Copacabana – para abrigar
temporariamente os refugiados. No início, cada exilado recebia um pseudônimo,
depois um número. Logo depois do começo do programa, as Nações Unidas
ofereceram apoio financeiro, Até o final da década cerca de 6 mil pessoas
deixaram o continente por meio desses esforços.”37
As ações se davam especialmente via Cáritas, que chegou a organizar uma
escola para as crianças, filhos dos exilados políticos de todas as nacionalidades que
chegavam ao país, como nos relatou Silvia, que chegou a trabalhar como professora
dessas crianças e a testemunhar o impacto das rupturas no mundo infantil. 38
O dinheiro para as ações inicialmente vinha dos cofres da Mitra. Somente depois
o escritório local do PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento)
auxiliava em questões emergenciais.
39
A Cáritas estabeleceu doações mensais de
acordo com o número de pessoas em cada família para a manutenção dos que chegavam
ao país até se estabelecerem ou cruzarem mais uma vez as fronteiras. Era fornecido
ainda auxílio jurídico, assistência médica e educacional.
O patrulhamento e vigilância eram enormes, da janela do palácio episcopal, D.
Eugenio acompanhava a movimentação, mas segundo ele, “não me incomodava muito
com a polícia brasileira. Eu tinha medo é da polícia argentina. Sabia que estavam
aqui.”40 A sua segurança com relação ao que faria a polícia política brasileira deve-se
36
Para os conceitos de zona cinzenta e penser-double, ver LABORIE, P.. Les Français des années
troubles. De la guerre d' Espagne à la Liberation. Paris : Seuil, 2003 e L´opinion française sous Vichy.
Les Français et la crise d' identité nationale. 1936-1944. Paris: Seuil, 2001.
37
SERBIN, K. op. cit. p. 324
38
Entrevista realizada com Silvia, em 16 de agosto de 2007, na cidade de Buenos Aires
39
Até a instalação do escritório ad hoc do ACNUR era o PNUD que estava respondendo pela questão dos
refugiados. Ver: Processo 100877/77 – Caixa 616/05282 – Fundo DSI/Ministério da Justiça – Arquivo
Nacional – Rio de Janeiro – Brasil.
40
Jornal O Globo, 02 de Março de 2008, pág 17.
10
aos bons contatos com o governo. Tão logo começou a receber os refugiados avisou ao
general Sylvio Frota, homem forte do Exército, de que se ele fosse informado de que D.
Eugenio estava recebendo comunistas estrangeiros na sua residência era verdade. 41
D. Eugenio tinha razão em sentir-se inseguro, assim como boa parte da
comunidade argentina residente no país por perseguições políticas.
Em 06 de agosto de 1979, dez refugiados, entre 2 argentinos, 7 chilenos e 1
uruguaia, invadiram o Consulado da Suécia no Rio de Janeiro. Liderando o grupo estava
o argentino que se apresentava como Roberto Marenco, da Frente de Refugiados
Latino-americanos. O cônsul da suécia, Lennart Hennings, chamou o representante do
ACNUR, Rolf Jenny, que por sua vez, apelou para D. Eugenio.
Na porta do Consulado, Marenco dava declarações para jornalistas do O Globo:
“Estamos lutando pela segurança dos companheiros que correm risco na Argentina.”42
A ocupação durou dias, até que foram convencidos por D. Eugenio, que via naquela
ação um caminho para colocar tudo a perder do que já havia sido feito até então e o que
ainda precisava ser feito, a deixar o país rumo ao exílio na Dinamarca. Depois foi
descoberto que, na verdade, Marenco era um agente infiltrado entre os exilados. Outra
forma de atuação da ditadura argentina foi o envio de agentes para seguir as pessoas que
eles acreditavam dar abrigos aos argentinos e o envio de listas de nomes para a Cúria
em busca de informações nunca fornecidas. 43
A atuação da Igreja Católica do Rio de Janeiro e de D. Eugenio Sales sempre foi
muito discreta e despertavam desconfiança e sentimentos negativos. Ao contrário do
que vemos em São Paulo, com a atuação da Igreja Católica sob o comando de D. Paulo
Evaristo Arns.44 Nesse sentido, podemos apontar a importância da criação da Comissão
Justiça e Paz e, de uma maneira um pouco diferente, do grupo Clamor.
Em 1972 começaram as discussões para a criação da Comissão Justiça e Paz. No
relato de Dom Paulo, o início dos trabalhos,
41
Jornal O Globo, 02 de março de 2008, pág. 16.
Jornal O Globo, 02 de março de 2008, pág. 18.
43
SERBIN, K. op. cit. pág. 326
44
No golpe chileno de 11 de setembro de 1973, D. Paulo entrou em contato com o arcebispo de Santiago,
cardeal Raúl Silva Henríquez, pedindo que a Igreja auxiliasse os brasileiros que se encontravam
refugiados naquele país. A resposta do cardeal chileno assegurava “as garantias que o Governo do Chile
já deu no sentido de que cada caso, seja de presos estrangeiros ou chilenos, será tratado com o mais
profundo sentimento cristão e humanitário que inspira os condutores dos novos destinos do Chile.”
SYDOW, Evanize e FERRI, Marilda, Dom Paulo Evaristo Arns: um homem amado e perseguido,
Petrópolis, Vozes, 1999. p. 156-157
42
11
“Pensei em comissão de defesa contra a tortura e contra as prisões. Foi aí que vi
que já existia em Roma, fundada por Paulo VI, uma Comissão (Justiça e Paz), da
qual participava um membro da Universidade de Notre Dame, que mais tarde me
concedeu o título de Doutor Honoris Causa, juntamente com Jimmy Carter.
Quando fui a Roma, este homem me disse o que fazer. Alertou para não deixar
ninguém sozinho, para formar uma comissão de juristas e de pessoas
respeitáveis, de notáveis dentro da sociedade.”45
Entre os primeiros integrantes da Comissão, além do próprio Dom Paulo,
estavam Fábio Konder Comparato, Dalmo de Abreu Dallari, e Mário de Passos Simas.
Aos poucos foram convidados também Luiz Antonio Alves de Sousa, Waldemar Rossi,
José Carlos Dias, Luiz Antonio de Sousa e Margarida Bulhões Pedreira Genevois,
primeira mulher a receber o convite para integrar a Comissão.46
A Comissão, ao contrário do grupo Clamor, que veremos a seguir, não tinha
previsão de término, sua duração seria por tempo indeterminado. Os objetivos traçados
para a sua atuação eram, dentre outros,
“analisar e interpretar as encíclicas e documentos conciliares relacionados com
os ideais de justiça e paz visando converter aquelas aspirações em conquista de
cada homem e de cada nação; analisar e interpretar todos os documentos
relacionados com os direitos humanos, com justiça e a paz, e com o progresso
social dos povos.”47
Embora inicialmente voltada, majoritariamente, para questões relativas à
ditadura, a Comissão não estava restrita, desde esse momento, aos debates políticos e,
com isso, mesmo com o retorno à democracia, continuou atuando na defesa e promoção
dos direitos humanos, inclusive com projetos educacionais e contra a instituição da pena
de morte no Brasil.
A Comissão recebia denúncias de casos brasileiros e também prestava
assistência jurídica. A partir de 1973, com o golpe no Chile, começaram a chegar os
estrangeiros, lotando o pátio da Cúria. Nas lembranças de Margarida Genevois:
“Ficavam ali com crianças, mulheres. Esperavam ser atendidos. E a gente aflita
porque não estava dando conta, não tinha possibilidade. Precisavam de tudo, de
casa para morar, de roupas para vestir, de médico e atendimento psicológico. Fui
a Paris e me indicaram o ACNUR (...). Fui ver a madame Taviani, uma senhora
45
FESTER, Antonio Carlos Ribeiro. Justiça e Paz: memórias da Comissão de São Paulo. São Paulo:
Loyola, 2005, p. 32.
46
Idem, p. 31.
47
Idem, p. 36.
12
de origem italiana, muito expansiva. Expliquei: ‘Nós estamos com uma multidão
de refugiados. É uma loucura’. ‘Não se preocupe, isso tem em todo país, vocês
estão com ditadura, todo dia chega brasileiro aqui, e vocês tentam impedir
ditaduras que estão lá, não entendo nada disso, é complicado mas é assim’”.48
Do mesmo modo que a Cáritas do Rio de Janeiro, a Comissão tinha o cuidado de
não anotar os nomes dos que chegavam em seus arquivos, mas acumulavam ali farto
material, como também recortes de jornais, para denúncias. Todos se envolviam dos
integrantes aos funcionários. “Muitas pessoas, membros da Comissão, católicos
progressistas ou não, militantes políticos, ordens religiosas, pessoas de boa vontade em
geral acolhiam os refugiados ou mesmo os brasileiros que viviam na clandestinidade,
em suas casas, ou prestavam-lhes algum tipo de solidariedade.”49
Um outro ponto forte de atuação da Comissão e dos juristas que a integravam e
que é de suma importância para esta comunicação foi a alteração da Lei dos
Estrangeiros, em 1979, vista como uma pressão sobre o presidente-general João
Baptista Figueiredo para que o país em tempo de transição não virasse o paraíso da
subversão. A alteração foi bastante questionada pelos grupos que davam apoio aos
estrangeiros que chegavam ao país por conta da suspeição dos estrangeiros contra a lei
de segurança nacional. Na avaliação do advogado Belisário dos Santos Júnior, em
tempos no qual o Mercosul começava a engatinhar, a nova Lei dizia: “cada um que
ficasse na sua casa e não se atrevesse a sair dela para um lugar que começasse a respirar
mais.”50
Foi também a Comissão que se mobilizou durante o episódio da segunda prisão
de Adolfo Pérez Esquivel no Brasil, onde foi fazer conferências em 1981.
Outro grupo, criado em 1978, foi o Clamor, nascido em função da chegada de
centenas de refugiados políticos, alguns clandestinos, à Cúria da Igreja Católica de São
Paulo. Algumas dessas pessoas chegavam ao Brasil, no momento em que já havia sido
iniciado o processo de transição à democracia, apenas com a roupa do corpo, trazendo a
família e o trauma da fuga e/ou dos centros de torturas dos outros países. Em função
dessas pessoas, Luis Eduardo Greenhalgh, Dom Paulo Evaristo Arns, Jaime Wrigth e a
jornalista inglesa Jan Rocha formaram o Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para
os Países do Cone Sul, sua sigla, uma palavra de fácil compreensão em diferentes
línguas: CLAMOR. Seu símbolo: uma vela acesa.
48
Idem, p. 64
Idem, p. 67
50
Idem, p. 163
49
13
O Clamor estava vinculado à Igreja Católica através da Comissão
Arquidiocesana de Pastoral dos Direitos Humanos e Marginalizados, criada em 1976.
Em seu primeiro boletim, em junho de 1978, o grupo se apresentava da seguinte
maneira:
“Clamor tem por objetivo a defesa dos direitos humanos na América Latina,
especialmente nos países do Cone Sul. Com a finalidade de dar o conhecer de
suas atividades, periodicamente editará o presente boletim com informações. É
interesse do Clamor estreitar vínculos com órgãos congêneres para cooperação
mútua. A perspectiva do Clamor é cristã, ecumênica, sem filiação partidária e
seus objetivos são humanitários. Este primeiro número do boletim, saindo às
vésperas da Copa do Mundo, quando a atenção do mundo está voltada para a
Argentina, é dedicado exclusivamente àquele país.”51
D. Paulo relembra o começo do Clamor:
“Tudo começou numa sala pequenina da Cúria Metropolitana de São Paulo, de
forma discreta e tensa. Eram histórias íntimas, trágicas, sussurradas. Era preciso
estar com espírito forte, era preciso ser solidário. Sabíamos que os militares de
alguns países da América Latina estavam em constante comunicação entre si, e
nós aqui, consequentemente, em constante perigo de prisão. Mas como cardeal,
nunca tive medo de sofrer algum tipo de atentado por causa do Clamor, embora
tivesse noção do risco que corríamos.”52
Um dos momentos de maior tensão para D. Paulo
“foi o culto ecumênico realizado na igreja da Consolação pelos 12 mil
desaparecidos argentinos, em 04 de setembro de 1979. O ato foi feito a pedido
dos exilados políticos argentinos que se refugiaram na cidade – cerca de 100
pessoas – e gerou uma carta indignada do então cardeal-presidente da
Conferência Episcopal da Argentina. Apesar e por causa disso, talvez tenha sido
este – conforme atestaram os jornalistas brasileiros – o momento da maior
difusão das denúncias.”53
A notícia da existência do grupo logo chegou aos refugiados, que aumentavam
dia a dia. Os integrantes do Clamor recebiam também inúmeras cartas. Algumas
queriam denunciar, outras eram apenas um desabafo sobre a perda do filho. A
correspondência com outros grupos da América Latina permitiu a formação de listas de
51
Informativo Clamor, ano 1, número 1, junho de 1978. Arquivo do Centro de Documentação e
Informação Científica “Prof. Casemiro dos Reis Filho” - PUC (São Paulo)
52
ARNS, D. Paulo Evaristo. “Um movimento novo e singular” in: LIMA, Samarone. Clamor: a vitória
de uma conspiração brasileira. São Paulo: Objetiva, 2003.
53
idem
14
desaparecidos na Argentina e das crianças apropriadas pelas forças de repressão.
Justamente uma das operações de maior destaque do CLAMOR diz respeito a duas
crianças.
Em 26 de dezembro de 1976, dois irmãos, Anatole, 3 anos, e Victoria, 1 ano,
viviam com seus pais na Argentina. Roger Cáceres, o pai, era uruguaio e buscou na
Argentina um refúgio aparentemente seguro para fugir da repressão no seu país. No
entanto, já era tempo do vôo do Condor e Roger foi localizado. A repressão invadiu a
casa onde se encontrava com sua esposa, a francesa Victoria Grisonas, e seu dois filhos.
Num gesto desesperado para salvar as crianças, Roger as colocou na banheira da casa,
escondidas. Roger e sua esposa foram assassinados. Mas havia as crianças. O que fazer
com elas?54
Numa decisão ainda incompreensível as crianças foram levadas de carro de
Buenos Aires até Valparaíso, Chile. Lá, foram abandonadas a própria sorte numa praça
da cidade chilena. Ficaram horas, com frio e fome, até serem achados por uma
assistente social que as encaminhou para um orfanato. Os irmãos permaneceram juntos
e foram adotados por um casal de chilenos, que nada teve a ver com a morte de seus
pais.
Anos depois, em 1979, mesma assistente social assiste na televisão venezuelana,
onde passava as férias, o depoimento de uma avó uruguaia que buscava seus netos. O
choque veio ao ver as fotos: eram as crianças que ela havia resgatado em 1976.
As Abuelas de Plaza de Mayo também receberam a informação de que crianças
uruguaias tinham sido vistas no Chile.
Teve início então a montagem de uma operação sigilosa e perigosa: confirmar se
eram as crianças e devolvê-las a sua avó em plena ditadura Pinochet.
Lima reconstrói com brilhantismo e emoção a operação de resgate das crianças
desde o envio dos primeiros “investigadores” até o encontro da avó com as crianças.55
A localização das crianças foi um ótimo trunfo nas denúncias contra os militares.
A repressão não atingia apenas “terroristas”, mas também crianças indefesas, largadas a
própria sorte num país estranho. Foi também a vitória da rede internacionalista de
direitos humanos.
54
A história do casal de irmãos, suas trajetórias e depoimentos, podem ser vistos no documentário
Condor, de Roberto Mader (Brasil, 2007).
55
LIMA, Samarone. Clamor: a vitória de uma conspiração brasileira. São Paulo: Objetiva, 2003.
15
Nesse sentido, além de ajudar os recém-chegados, o Clamor atuou em conjunto
com outras organizações de direitos humanos latino-americanas, com países e
organizações européias e organizações mundiais, buscando denunciar ao mundo o que
estava acontecendo na América Latina. Quase ao mesmo tempo em que testemunhamos
o ápice da colaboração à perseguição política entre as forças de repressão dos países do
Cone Sul – o Plano Condor –, foi possível assistir à criação de laços de solidariedade
entre organizações de direitos humanos.56 Madres e Abuelas de Plaza de Mayo e
SERPAJ em suas várias representações mantinham permanente contato com o
CLAMOR. O que nos levar a pensar que se tínhamos uma operação internacionalista de
repressão, como a Condor, havia também a sua equivalente na defesa dos direitos
humanos.
Tanto no Clamor como na Comissão trabalharam alguns refugiados enquanto
esperavam a resposta de algum dos três países que eles haviam indicado. É o caso de
Gustavo, que trabalhou na Comissão e nos relatou o profundo impacto de ouvir as
histórias de quem chegava ao Brasil em busca de ajuda da ACNUR e deveria comprovar
a perseguição política.57 Horror ao que se passava na Argentina e dúvidas sobre a
veracidade das histórias diante da real possibilidade de infiltração foi um peso a mais
para Gustavo no período que ficou no Brasil antes de seguir para a França. Outras
pessoas que também trabalharam em São Paulo, entre 1979 e 1980, foi Alcira Rios,
atualmente trabalhando com o grupo Abuelas de Plaza de Mayo, e seu marido, que
recepcionava as pessoas no aeroporto, assim como fazia entrevistas. 58
Foi no Brasil, em 1983, através do Clamor e diante da visita de representantes
das Abuelas de Plaza de Mayo, que a história do centro La Cancha foi construída com
depoimentos de pessoas que passaram por ele, como a própria Alcira .
Os grupos de brasileiros serviram de plataforma para as denúncias do que se
passava na Argentina e desta maneira como escudo para quem estava no Brasil por
conta das limitações políticas impostas pelo Estatuto do Estrangeiro e também pela
própria situação política de incerteza que vivíamos.59
56
QUADRAT, Samantha, op. cit, 2005.
Entrevista realizada com Gustavo, em 02 de agosto de 2007, em Buenos Aires, Argentina.
58
Entrevista consultada no acervo do Memoria Abierta, Buenos Aires, Argentina.
59
Um importante documento que contou com o aval do Clamor e foi divulgado a nível nacional e
internacional foi o livro escrito em espanhol, inglês e português, Desaparecidos na Argentina, publicado
em 1983. No mesmo dia, 13 de janeiro de 1983, foi lançado em parceria com as Abuelas de Plaza de
Mayo um calendário, cuja as folhas traziam fotografias de crianças e das idades que tinham quando
desapareceram. No dia do desaparecimento uma marca em vermelho assinalava o acontecimento.
SYDOW, Evanize e FERRI, Marilda. op. cit. p. 308-309
57
16
Por fim, ainda que de maneira menos aprofundada devido a limitação de espaço,
não podemos omitir a atuação de duas organizações civis não ligadas diretamente à
Igreja Católica, mas que também tiveram importante atuação no auxílio aos argentinos
que chegaram ao Brasil.
No Rio Grande do Sul, área de fronteira com outros países, e onde temos muitas
ações conjuntas das forças de repressão, foi criado, em 1979, o Movimento de Justiça e
Direitos Humanos (MJDH).
O MJDH reuniu pessoas que já vinham trabalhando pelos direitos humanos no
Rio Grande do Sul antes da sua fundação. Dentre as suas primeiras atividades destacamse a ajuda para a retirada de estrangeiros que chegavam ao país, campanhas de
denúncias de violações de direitos humanos e movimentos pela libertação de presos
políticos, como por exemplo, Flávio Koutzii (preso na Argentina) e Flávia Schilling
(presa no Uruguai).
No contexto da transição à democracia, em 1981 foi criado, no Rio de Janeiro, o
Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase), liderado por Herbert de
Sousa, o Betinho. Além de alguns argentinos, como Carlos,60 terem trabalhado no
momento inicial, de construção, através do IBASE articulou-se com uma organização
estrangeira o financiamento de bolsas de estudos para que os exilados seguissem o
ensino universitário. 61
Laços permanentes: considerações finais
Nos últimos anos vimos surgir diversos trabalhos que buscam compreender a
montagem e funcionamento da rede de repressão política, especialmente do que ficou
conhecido como o Plano Condor. Tema importante dentro dos diversos processos que
tramitam em cortes nacionais e internacionais, onde se destaca o processo espanhol
conduzido por Baltazar Garzón.
A minha tese de doutorado em História defendida em 2005 na Universidade
Federal Fluminense (Niterói – Rio de Janeiro – Brasil) tratou exatamente deste tema, ou
seja, buscou analisar as condições que permitiram e proporcionaram a criação de ações
conjuntas entre os países sob ditadura na América do Sul na segunda metade do século
XX. Na pesquisa para a tese, pude observar e acompanhar as discussões entre os
60
-Entrevista com Carlos, realizada em 30 de Agosto de 2006, no Rio de Janeiro.
Nas entrevistas não se chegou a um consenso se a ONG responsável pelo financiamento seria sueca ou
suíça. Sobre a trajetória do IBASE ver FICO, Carlos. Ibase, usina de idéias e cidadania. Rio de Janeiro:
Garamond, 1999.
61
17
governos dos países latino-americanos desde o início do século XX sobre a expansão da
“subversão”, com maior destaque para o comunismo.
No entanto, à medida que o trabalho de campo avançava, num outro extremo do
que eu estava estudando, a outra face da moeda, pude observar o surgimento de laços
de solidariedade entre pessoas e instituições, algumas das quais, inclusive, não
raramente haviam apoiado o golpe, como a Igreja Católica brasileira. É claro que não é
um movimento de toda a sociedade; as denúncias sobre a presença de estrangeiros,
mais claramente visível no caso chileno, e/ou “subversivos” é uma constante em boa
parte destas ditaduras. Contudo, a oportunidade de estudar o exílio argentino no Brasil
me levou de volta à questão da solidariedade, que havia aparecido timidamente na
minha tese por uma resistência muito particular em não terminar um trabalho sobre
violência política de maneira “pessimista”.
Através da chegada de estrangeiros no Brasil, um movimento ainda pouco
estudado quando se trata da presença das pessoas dos países vizinhos, diferentemente
das presenças portuguesa e espanhola dos tempos de Salazar e Franco respectivamente,
os laços de solidariedade ganharam novos impulsos e forças. Incomoda a ditadura e as
forças de repressão. Receio do que fazer com argentinos, chilenos, uruguaios e
paraguaios que cruzavam as fronteiras em busca de refúgio ou de um lugar de
passagem. Ao mesmo tempo, o receio de que ações mais drásticas contra essa presença,
num momento em que o Brasil já havia iniciado o processo de abertura político,
poderiam arranhar ainda mais a imagem do governo civil-militar no exterior, onde já
enfrentava denúncias por parte do exilados brasileiros e a crítica da Comissão de
Direitos Humanos da ONU na segunda metade dos anos 1970.
62
É claro que esses
receios não impediram ações mais radicais do governo, como demonstram os
desaparecimentos de argentinos no Brasil ou o caso dos uruguaios Lílian
Celiberti/Universindo Diaz, seqüestrados no Rio Grande do Sul, em 1978, numa ação
conjunta dos dois países.
Contudo, se tivemos uma repressão sem fronteiras, tivemos também uma rede
internacional de solidariedade, de respeito à vida humana, de amor, de paz e ao mesmo
tempo de gana por justiça, pelo fim das ditaduras e pela restauração da democracia na
região.
62
Ver: QUADRAT, Samantha Viz. “A emergência do tema dos direitos humanos na América Latina”. In:
FICO, C., FERREIRA, M. ARAUJO, M e QUADRAT, S. (orgs). Ditadura e democracia na América
Latina. Rio de Janeiro: FGV, 2008.
18
Fontes:
a) Argentina:
* Arquivo Memoria Abierta (Buenos Aires)
* Entrevistas citadas no decorrer do texto
b) Brasil:
* Arquivo do Centro de Pesquisa e Documentação de História do Brasil Contemporâneo –
Fundação Getulio Vargas (Rio de Janeiro)
Fundos: Ernesto Geisel e Azeredo da Silveira
* Arquivo Nacional (Rio de Janeiro)
Fundo: DSI-Ministério da Justiça
* Arquivo do Centro de Documentação e Informação Científica “Prof. Casemiro dos
Reis Filho” - PUC (São Paulo)
Fundo Comitê de Defesa dos Direitos Humanos para os países do Cone Sul - Clamor
* Arquivo do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (Rio Grande do Sul)
Documentos sobre os desaparecidos argentinos no Brasil
* Acervo da Luta contra a Ditadura (Rio Grande do Sul)
* Entrevistas citadas no decorrer do texto
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