Coisas que mudam
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Coisas que mudam
coisas que mudam os processos de mudança nos sítios conchíferos catarinenses e um olhar isotópico sobre o caso do sítio Armação do Sul, Florianópolis/SC gabriela oppitz UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO MUSEU DE ARQUEOLOGIA E ETNOLOGIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUEOLOGIA Gabriela Oppitz Coisas que mudam: os processos de mudança nos sítios conchíferos catarinenses e um olhar isotópico sobre o caso do sítio Armação do Sul, Florianópolis/SC Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Arqueologia do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo para obtenção do título de Mestre em Arqueologia. Orientador: Prof. Dr. Paulo DeBlasis Linha de pesquisa: Arqueologia e Identidade * Versão revisada. A original se encontra na Biblioteca do MAE/USP. São Paulo 2015 Agradecimentos Nada como um mestrado para se descobrir cercada de pessoas incríveis. Não é que eu já não soubesse, mas a passagem pelo mestrado torna tudo mais evidente, pois se percebe que, sem essas pessoas incríveis, simplesmente não haveria mestrado, dissertação, ou qualquer outra coisa similar que justificasse estes agradecimentos. O que me resta, então, é agradecer! Agradecer por terem possibilitado que eu chegasse a esse momento retrospectivo final de reconhecimento e gratidão. Começo pelo meu orientador, Paulé, agradecendo pela confiança depositada em mim, pelas conversas inspiradoras e insights que vinham sempre no momento certo. Também pela agilidade na resposta de e-mails e eficiência na resolução de dúvidas e angústias, pelas sugestões que foram fundamentais para que a dissertação tomasse a forma que tomou e por todo o apoio na submissão, envio das amostras para o Beta, pagamentos e prestação de contas do projeto Fapesp – fica aqui, também, meu agradecimento ao Tiago, por ter contribuído com a sua mágica para que tudo isso acontecesse! Enfim, Paulé, obrigada por toda atenção e carinho que, aliás, vêm desde os tempos do TCC. Aí passo para duas pessoas muito especiais que são também autoras desta dissertação, Murilo e Lú. Afora a amizade e apoio moral, ambas tiveram participação enorme tanto na concepção do projeto quanto na sua concretização. Murilo, obrigada por ter me introduzido ao mundo dos isótopos, pelos muitos ensinamentos e pela disposição em me acompanhar pessoalmente em todo o processo de preparação das amostras, em São Paulo e no Rio. Lú, obrigada pela ajuda na escolha do sítio Armação do Sul como estudo de caso, pelos ensinamentos e por ter realizado a coleta das amostras comigo naquelas semanas em que o sótão do colégio escaldava sob o sol do verão e tu deverias estar na praia de férias. Só vocês sabem a importância que tiveram para que tudo fosse possível. Espero um dia poder retribuir. Valeu demais. i Agradeço à professora Veridiana por ter topado integrar o projeto Fapesp e por ter aberto as portas do Centro de Pesquisas Geocronológicas (CPGeo/IGc/USP) para mim, onde realizei as análises isotópicas de estrôncio. Obrigada pelo interesse demonstrado desde o nosso primeiro contato, por ter estado sempre pronta para ajudar no que fosse preciso e pelas sugestões valiosas feitas para o texto final da dissertação. Agradeço também à professora Andrea por ter aceitado prontamente o convite para me co-orientar e integrar o projeto Fapesp, bem como pela leitura do texto, sugestões e conversas às vésperas da atribulada entrega da dissertação. Aproveito para deixar registrada minha enorme gratidão a toda equipe do CPGeo/IGc/USP, em especial à Lili, Ivone, Helen e Rodrigo, pela recepção maravilhosa, pelo apoio na realização das análises, pelos aprendizados diversos e por todo o carinho. Lili, obrigada por ser sempre tão querida e atenciosa! Um grande abraço a todos! Ah, obrigada também ao Gustavo pelo drill. Ainda com relação às análises isotópicas de estrôncio, agradeço à equipe do Laboratório de Sistemas Cársticos (IGc/USP) pelo espaço que me foi cedido para a preparação das amostras, em especial ao Christian e ao Valdir por toda a atenção. Valdir, obrigada também pelas trocas de ideias paleoclimáticas, bem como pela ajuda na elaboração e posterior revisão do trecho da dissertação em que falo sobre paleoclima. Com relação às análises isotópicas de nitrogênio e carbono, agradeço à equipe do Laboratório de Ecologia Isotópica (CENA/USP) pelo apoio técnico e pela recepção, em especial ao professor Plínio, à Roberta, à Fabiana, à Maria Antônia e ao professor Marcelo. Professor Plínio, obrigada por possibilitar que as análises fossem realizadas no CENA, pela recepção em Piracicaba, pelas caronas e por ter me livrado de ter que pagar por um hotel. Roberta, obrigada por abrir as portas do teu lar para mim e me permitir conhecer a Letícia e o Nick! Foi um prazer passar aquela semana com vocês. Fabiana, obrigada por toda a ajuda e pela paciência quando cometi todos aqueles erros de principiante! Valeu também pelo apoio pós-análises via whatsapp que, bem, tu sabes, foi minha salvação! Por fim, agradeço ao professor Marcelo pela pronta ajuda na interpretação dos dados e por ter descoberto o fator de correção dos dados que resolveu o problema das razões C:N que estavam fora da faixa de variação esperada. ii Nesse ensejo, ficam também aqui meus sinceros agradecimentos à equipe do Laboratório de Paleoparasitologia (ENSP/FIOCRUZ) por ter aceitado esta intrusa destruidora de placas de petri em seu espaço durante duas semanas, para preparação das amostras. Em especial, agradeço ao querido professor Adauto, sempre muito atencioso, e às meninas Isabel, Xênia, Morgana, Mônica e Bruna pela simpatia e recepção maravilhosa, bem como pela ajuda nas trocas de ácidos e tudo o mais nos dias em que o tempo ficou curto! Não posso deixar de mencionar a Vânia, que dedicou uma tarde a me ajudar com seus conhecimentos zooarqueológicos na seleção das amostras de fauna marinha a serem analisadas; tampouco o Anderson, colega do MAE, que ajudou na identificação de algumas espécies. Valeu! E, por falar em MAE, fica aqui minha lembrança aos colegas e aos professores do programa de pós-graduação em Arqueologia, bem como aos demais funcionários do Museu, em especial o Helio, pela simpatia de sempre e boas conversas, ao Cleber, à Regina, à Aline e à Karen, pela ajuda e eficiência em todos os momentos decisivos. Aliás, peço desculpas pelas correrias e confusões de última hora! Agradeço ainda à FAPESP pelo deferimento do projeto “Armação do Sul: velhas questões, novas abordagens” e auxílio concedido, bem como à CAPES pela bolsa de mestrado. E, claro, minha vida em São Paulo não teria sido a mesma coisa sem ti, Mari! Obrigada pela amizade, pela hospitalidade em tantas ocasiões, pela ajuda na busca por um apartamento, por me ensinar a viver a metrópole paulistana e a USP, pelos passeios agradabilíssimos, filminhos, showzinhos e chocolates quentes – e isso tudo serve para a Aglaê também! Nesse sentido, agradeço ainda à Rejane pela amizade e longas conversas de um ano e meio dividindo apartamento. Passou rápido demais. Quanto aos amigos da UFSC, Bia, Kal, Lucas, Isa, Angela, Fê, Bruno, Garganta e Letícia – que obviamente não estão em ordem de importância porque seria simplesmente impossível ranqueá-los assim – acho que nem preciso dizer o quanto sou grata pela amizade, incansável apoio moral e pensamentos positivos. Vocês são incríveis, e isso é tudo o que eu posso dizer. iii Enquanto isso, no meu mundo florianopolitano não arqueológico, outras pessoas incríveis estavam tornando esta dissertação possível. Entre elas estão meus pais, Rossana e Rodrigo, responsáveis pela minha disciplina e dedicação aos estudos. Agradeço por terem sempre apoiado as decisões que tomei, torcendo para que eu fosse bem sucedida mesmo quando isso acabaria me levando embora para outra cidade. Mamis, obrigada por viver as coisas junto comigo por meio da constante preocupação e interesse, mesmo à distância! Obrigada também pelos almoços expressos congelados, nos momentos finais de loucura e enclausuramento. Estão ainda a minha irmã, Rafaela – gracias, sis – e as amigas Letícia e Tati. Nossos encontros frequentes foram fundamentais para que eu espairecesse de tempos em tempos, mudando o foco dos pensamentos. Letícia, obrigada demais por toda a ajuda com a bibliografia às vésperas da entrega da dissertação. Eu não sei se tu consegues sacar o quão importante foi a tua participação, então eu vou enfatizar: sério mesmo, teria sido impossível sem ti! Finalizo agradecendo ao Lucas, meu bem, que inevitavelmente foi o mais afetado por esses três anos de mestrado. Entendo que os períodos mais críticos tenham sido minha estada em São Paulo e os últimos seis meses que antecederam a defesa, logo, agradeço imensamente por teres conseguido encontrar forças para me apoiar mesmo em situações que para ti também foram tão – e quiçá mais – adversas. Posso dizer que foram as pausas para seriados e lanchinhos, as porcarias de supermercado, as isenções de lavar louça e, claro, a Frida, que mantiveram minha sanidade mental quando, nesses últimos meses, a sanidade física já havia ido para o saco. Obrigada ainda por ler e revisar todas as muitas páginas desta dissertação nos instantes finais, além de ajudar pacientemente na preparação da apresentação, para que chegasse aos 15 minutos permitidos. Obrigada do início ao fim. iv Resumo O registro arqueológico associado aos sítios conchíferos do litoral catarinense aponta para uma intensificação nos processos de mudança a partir de 2000 anos AP, marcada por acontecimentos diversos como a diminuição no número de sítios, a diminuição no uso de conchas em sua formação, o aparecimento da cerâmica, o aumento da violência e a alteração do padrão de residência pós-marital. Com o objetivo de compreender melhor esses processos de mudança e entendendo o sítio Armação do Sul (Florianópolis/SC) como elemento chave para essa compreensão, foram realizadas análises isotópicas de estrôncio (87Sr/86Sr), carbono (δ13C) e nitrogênio (δ15N) nos indivíduos que nele se encontram sepultados, juntamente com a análise das práticas mortuárias associadas a esses sepultamentos e o estabelecimento de uma cronologia que associa informação estratigráfica com datações radiocarbônicas obtidas para diversos esqueletos. A partir de uma perspectiva de longa duração centrada na prática e do reconhecimento da multidimensionalidade inerente aos processos de mudança, os dados gerados foram entendidos contextualmente na curta, média e longa duração, e em escala de sítio (Armação do Sul), local (litoral central) e regional (litoral catarinense), em busca de uma tensão positiva entre indivíduo e estrutura, mudança e estabilidade, sincronia e diacronia. Ao fim, concluiu-se que os processos de mudança se desenrolaram diferentemente em porções litorâneas distintas do litoral catarinense e que, no caso do sítio Armação do Sul, as mudanças observadas estão relacionadas a um quadro de acontecimentos interrelacionados que envolveu: maior circulação e incorporação de indivíduos de diferentes partes do litoral central; mudança na dieta dos indivíduos do sexo masculino em direção ao consumo de recursos C4 ou à diminuição no consumo de recursos marinhos de alto nível trófico; desenvolvimento de uma hierarquia social mais claramente observável no registro arqueológico e, possivelmente, hereditária; aumento da violência; inovações em alguns elementos que compõem as práticas mortuárias; mudança no sedimento que compõe o sítio; adensamento populacional ou maior quantidade de indivíduos sendo sepultados no mesmo local; transição para um padrão de residência virilocal; e alterações paleoclimáticas e paleogeográficas. Foram ainda feitas algumas breves contribuições para um melhor entendimento das peculiaridades do panorama arqueológico do litoral central, com o auxílio de conceitos oriundos da teoria de sistemas adaptativos complexos e sob a perspectiva dos regimes de historicidade. Palavras-chave: Isótopos estáveis. Práticas mortuárias. Mudança. Sítios conchíferos. Litoral catarinense. v Abstract The archaeological record associated with shell mounds in the Santa Catarina coast points to an intensification in the processes of change starting at 2000 years BP, marked by various events such as the decrease in the number of sites, the reduction in the use of shells in their formation, the appearance of ceramics, increased violence and alterations of the pattern of post-marital residence. In order to better comprehend these processes of change and understanding the Armação do Sul site (Florianópolis/SC) as a key element to said comprehension, we have performed isotopic analyses based on strontium (87Sr/86Sr), carbon (δ13C) and nitrogen (δ15N) in the individuals that are buried there, along with the analysis of the mortuary practices associated with those burials, and the establishment of a chronology that associates stratigraphic information with radiocarbon dating obtained for several skeletons. From a long-term perspective focused on practice and recognition of the multidimensionality inherent to change processes, the resulting data were observed contextually in short, medium and long terms, and in site (Armação do Sul), local (central coast) and regional (Santa Catarina coast) scales, in search for a positive tension between individual and structure, change and stability, synchrony and diachrony. Finally, we have concluded that the change processes unfolded differently in distinct coastal portions in the Santa Catarina coast and that, in the case of the Armação do Sul site, observed changes are related to a setting of interrelated events which involved: increased circulation and incorporation of individuals from different parts of the central coast; change in the diet of male individuals towards consumption of C4 resources or the decrease in the consumption of marine resources of high trophic level; development of a social hierarchy more clearly observable in the archaeological records and, possibly, hereditary; increased violence; innovations in some elements which compose the mortuary practices; change in the depositional pattern; increase in the population density or in the number of individuals buried in the same place; transition to a pattern of virilocal residence; and climate and geographic alterations. We have also made some briefs contributions towards a better understanding of the peculiarities of the archaeological panorama in the central coast, with the aid of concepts from the theory of complex adaptive systems and within a perspective of the regimes of historicity. Keywords: Stable isotopes. Mortuary practices. Change. Shell mounds. Santa Catarina coast. vi Sumário Agradecimentos I Resumo V Abstract VI Introdução, objetivos e hipóteses 1 PARTE I: Entre arqueólogos e culturas mutantes 9 1 PARA COMEÇAR 10 1.1 O litoral central 10 1.2 O sítio Armação do Sul 15 1.3 Sítios conchíferos: uma perspectiva de longa duração 31 2 COISAS QUE MUDAM: mudanças regionais e mudanças locais nos sítios conchíferos catarinenses 36 2.1 Tecnologia 37 2.2 Padrão deposicional 40 2.3 Contato e mobilidade 43 2.4 Quantidade de sítios e cronologia 46 2.5 Violência 52 2.6 Paleogenética 53 2.7 Padrão de residência pós-marital 56 2.8 Paleodieta 57 3 INTERPRETANDO A MUDANÇA 63 3.1 Percepções de mudança ontem e hoje 65 3.2 Longa duração, razões práticas e multidimensionalidade 78 PARTE II: Criando uma textura densa de dados 86 4 UM OLHAR PARA O INVISÍVEL: análises isotópicas na arqueologia 87 4.1 Radiocarbono ( C) 4.2 Isótopos de nitrogênio (δ N) e carbono (δ C) 4.3 Isótopos de estrôncio ( Sr/ Sr) 5 CRONOLOGIA E PRÁTICAS RITUAIS 5.1 Datações radiocarbônicas 14 88 15 87 13 91 86 100 106 106 5.1.1 Materiais e métodos 106 5.1.2 Resultados 107 5.1.3 Discussão 113 5.2 Análise dos contextos funerários 118 5.2.1 Materiais e métodos 122 5.2.2 Resultados da análise espacial e discussão 129 5.2.3 Resultados da análise dos acompanhamentos funerários e discussão 165 6 PALEODIETA E MOBILIDADE 187 6.1 Análises isotópicas de nitrogênio (δ N) e carbono (δ C) 15 13 187 6.1.1 Materiais e métodos 187 6.1.2 Resultados 189 6.1.3 Discussão 211 6.2 87 86 Análise de isótopos de estrôncio ( Sr/ Sr) 220 7 6.2.1 Materiais e métodos 220 6.2.2 A formação geológica local 223 6.2.3 Resultados 224 6.2.4 Discussão 241 FINALIZANDO: TUDO AO MESMO TEMPO AGORA REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 250 264 ANEXO I: Exemplo de uma das fichas de registro de sepultamentos preenchidas por Rohr e Andreatta ANEXO II: Planta baixa geral dos sepultamentos da área I 281 282 Índice de figuras Figura 1: Delimitação do litoral central com detalhe da Ilha de Santa Catarina, da barra do rio Itapocu até o município de Garopaba........................................................................... 10 Figura 2: Localização do sítio Armação do Sul na Ilha de Santa Catarina e detalhe da planície costeira da praia da Armação, onde ele se situa. .............................................................. 15 Figura 3: Vista da área do sítio Armação do Sul a partir da ponta das Campanhas (sentido leste-oeste) .......................................................................................................................... 16 Figura 4: O entorno do sítio Armação do Sul. ......................................................................... 17 Figura 10: Sítio de inscrição rupestre situado no costão entre a praia de Matadeiro e a Lagoinha do Leste. Foto de Rodrigo Dalmolin. .................................................................. 19 Figura 5: Vista geral da área onde se situa o sítio conchífero Ponta da Armação, na ponta das Campanhas. Foto da autora. ........................................................................................ 19 Figura 6: Bloco de rocha com inscrição rupestre, retirado da ponta das Campanhas. ........ 19 Figura 7: Seixos e blocos de rocha ao longo da ponta das Campanhas, onde há uma enorme variedade de amoladores-polidores fixos. ......................................................................... 19 Figura 8: Detalhe de dois suportes situados no terreno da pousada Maré de Lua .............. 19 Figura 9: Estruturas remanescentes da armação baleeira. Nota-se a presença de um bloco com amolador-polidor fixo côncavo-convexo. Foto de Bueno et al. (2015). ................... 19 Figura 11: Evolução paleogeográfica da planície costeira da praia da Armação. Adaptado de Castilhos (1995). .................................................................................................................. 20 Figura 12: Croqui da área escavada do sítio Armação do Sul. Fonte: Schmitz et al. (1992). 21 Figura 13: Perfil estratigráfico do sítio da Armação do Sul. ................................................... 23 Figura 14: A escavação do sítio Armação do Sul ..................................................................... 30 Figura 15: Ilustração do processo de decaimento radioativo beta nos isótopos de carbono14, de acordo com uma meia-vida de 5730 ± 40. Fonte: Goffer (2007: 274). ................. 89 Figura 16: Representação da forma como estão distribuídos os valores δ15N e δ13C na cadeia alimentar. Fonte: Price e Burton (2011: 203). ....................................................... 95 Figura 17: Representação da forma como se dá o fracionamento dos isótopos de carbono .............................................................................................................................................. 96 Figuras 18a e 18b: Valores δ15N e δ13C obtidos a partir do colágeno de grupos humanos históricos e pré-históricos. .................................................................................................. 99 Figura 19: Localização do esmalte dentário (enamel) na estrutura do dente. Fonte: Hillson (2005: 9). ............................................................................................................................ 101 Figura 20: Diagrama representando os fatores que podem interferir na assinatura isotópica de uma amostra. Fonte: Bentley (2006). ......................................................................... 103 Figura 21: Distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul, acompanhados de suas respectivas datações (em anos cal AP)..................................... 112 Figura 22: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 3065 a 2880 anos cal AP. ................................................................................... 130 Figura 23: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2955 a 2750 anos cal AP. ................................................................................... 131 Figura 24: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2790 a 2720 anos cal AP. ................................................................................... 132 Figura 25: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2760 a 2720 anos cal AP. ................................................................................... 133 Figura 26: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2750 a 2620 anos cal AP. ................................................................................... 134 Figura 27: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2725 a 2355 anos cal AP. ................................................................................... 135 Figura 28: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2490 a 2345 anos cal AP. ................................................................................... 136 Figura 29: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2360 a 2315 anos cal AP. ................................................................................... 137 Figura 30: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2350 a 2210 anos cal AP. ................................................................................... 138 Figura 31: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2345 a 2155 anos cal AP. ................................................................................... 139 Figura 32: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2300 a 2020 anos cal AP. ................................................................................... 140 Figura 33: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 1575 a 1360 anos cal AP. ................................................................................... 141 Figura 34: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 1430 a 1315 anos cal AP. ................................................................................... 142 Figura 35: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 1315 a 1275 anos cal AP. ................................................................................... 143 Figura 36: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 3065 a 2880 anos cal AP ......................................................................................................................... 146 Figura 37: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2955 a 2750 anos cal AP ......................................................................................................................... 147 Figura 38: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2790 a 2720 anos cal AP ......................................................................................................................... 148 Figura 39: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2750 a 2620 anos cal AP ......................................................................................................................... 149 Figura 40: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2725 a 2355 anos cal AP ......................................................................................................................... 150 Figura 41: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2490 a 2345 anos cal AP ......................................................................................................................... 151 Figura 42: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2360 a 2315 anos cal AP ......................................................................................................................... 152 Figura 43: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2350 a 2210 anos cal AP ......................................................................................................................... 153 Figura 44: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2345 a 2155 anos cal AP ......................................................................................................................... 154 Figura 45: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2330 a 2020 anos cal AP ......................................................................................................................... 155 Figura 46: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 1575 a 1360 anos cal AP ......................................................................................................................... 156 Figura 47: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 1430 a 1315 anos cal AP ......................................................................................................................... 157 Figura 48: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 1315 a 1275 anos cal AP ......................................................................................................................... 158 Figura 49: Planta baixa geral dos sepultamentos datados do sítio Armação do Sul, de 3065 a 1275 anos cal AP. ............................................................................................................ 159 Figura 50: Representação dos diferentes agrupamentos de sepultamentos do período 1 do sítio Armação do Sul .......................................................................................................... 161 Figura 51: Croqui da área escavada, com localização dos sepultamentos. Adaptado de Schmitz et al. (1992). ......................................................................................................... 164 Figura 52: Desenvolvimento dentário humano, em estágios de um ano. Fonte: Hillson (2005[1986]: 224). ............................................................................................................. 221 Figura 53: Mapa geológico de Santa Catarina. Litoral central demarcado. Fonte: Silva e Bortoluzzi (1987). .............................................................................................................. 224 Índice de gráficos Gráfico 1: Histograma das datações disponíveis para os sítios conchíferos catarinenses. .. 47 Gráficos 2a e 2b: Representações das flutuações no número de sítios conchíferos ativos nas diferentes porções litorâneas de Santa Catarina ao longo do tempo. ............................. 49 Gráfico 3: Histograma representando a frequência das datações radiocarbônicas (anos cal AP) do sítio Armação do Sul. ............................................................................................. 109 Gráfico 4: Gráfico de dispersão das idades obtidas para o sítio da Armação do Sul e da Tapera, representadas pelos intervalos de calibração. ................................................... 110 Gráfico 5: Ausência e presença de ocre entre crianças, adultos femininos e adultos maduros dos períodos 1 e 2.............................................................................................. 166 Gráfico 6: Ausência e presença de adornos entre crianças, adultos femininos e adultos maduros dos períodos 1 e 2.............................................................................................. 166 Gráfico 7: Ausência e presença de pontas ósseas entre crianças, adultos femininos e adultos maduros dos períodos 1 e 2. ............................................................................... 166 Gráfico 8: Ausência e presença de artefatos fusiformes entre crianças, adultos femininos e adultos maduros dos períodos 1 e 2. ............................................................................... 166 Gráfico 9: Ausência e presença de machados e/ou lâminas entre crianças, adultos femininos e adultos maduros dos períodos 1 e 2. ........................................................... 167 Gráfico 10: Ausência e presença de percutores ou seixos com marca de uso entre crianças, adultos femininos e adultos maduros dos períodos 1 e 2. ............................................. 167 Gráfico 11: Ausência e presença de lascas entre crianças, adultos femininos e adultos maduros dos períodos 1 e 2.............................................................................................. 167 Gráfico 12: Ausência e presença de artefatos não identificados e/ou fragmentos de rocha com alteração antrópica entre crianças, adultos femininos e adultos maduros dos períodos 1 e 2. ................................................................................................................... 167 Gráfico 13: Ausência e presença de artefatos raros (ponta em quartzo e bastão de diabásio) entre crianças, adultos femininos e adultos maduros dos períodos 1 e 2. .... 168 Gráfico 14: Ausência e presença de conchas entre crianças, adultos femininos e adultos maduros dos períodos 1 e 2.............................................................................................. 168 Gráfico 15: Ausência e presença de ossos de fauna entre crianças, adultos femininos e adultos maduros dos períodos 1 e 2. ............................................................................... 168 Gráfico 16: Ausência e presença de seixos e/ou fragmentos de rocha entre crianças, adultos femininos e adultos maduros dos períodos 1 e 2. ............................................. 168 Gráfico 17: Histograma do número mínimo de acompanhamentos funerários entre sepultamentos de indivíduos do sexo masculino, do sexo feminino e crianças. ........... 177 Gráfico 18: Distribuição do número mínimo de acompanhamentos funerários dos indivíduos do sítio Armação do Sul. .................................................................................. 177 Gráfico 19: Representação da distribuição dos diferentes números de acompanhamentos funerários entre indivíduos adultos femininos, adultos masculinos e crianças. ............ 179 Gráfico 20: Distribuição do número mínimo de acompanhamentos dos indivíduos do período 1 e do período 2, com marcação daqueles que contam com lâminas de machado ou outro tipo de lâmina. ................................................................................... 180 Gráfico 21: Distribuição dos valores δ15N e δ13C das amostras humanas e faunísticas analisadas do sítio Armação do Sul, com inserção de dados de outros autores (Bender 1968; Smith e Epstein 1971; Schoeninger e Moore 1992; De Masi 2001, 2009; Colonese et al. 2014). ........................................................................................................................ 193 Gráficos 22a e 22b: Histograma dos valores δ13C e δ15N dos indivíduos analisados do sítio Armação do Sul. ................................................................................................................. 194 Gráfico 23: Dispersão dos valores δ13C e δ15N entre adultos do sexo feminino, masculino e crianças (sem determinação de sexo) do sítio Armação do Sul, com identificação dos sepultamentos 2, 22, 39, 52 e 69. .................................................................................... 195 Gráficos 24a e 24b: Boxplot dos valores δ13C e δ15N do grupo feminino e masculino do sítio Armação do Sul. ................................................................................................................. 196 Gráfico 25: Dispersão dos valores δ13C e δ15N entre adultos do sexo feminino, adultos do sexo masculino e crianças (sem determinação de sexo) do sítio Armação do Sul, com identificação dos sepultamentos. ..................................................................................... 198 Gráficos 26a e 26b: Correlação entre os valores δ13C e δ15N e as idades radiocarbônicas dos indivíduos do sítio Armação do Sul. .................................................................................. 199 Gráficos 27a, 27b e 27c: Dispersão dos valores de δ13C e de δ15N nas diferentes faixas temporais de ocupação do sítio Armação do Sul............................................................. 200 Gráficos 28a e 28b: Correlação entre os valores δ13C e δ15N nos diferentes períodos de ocupação do sítio Armação do Sul.................................................................................... 202 Gráfico 29: Dispersão dos valores δ13C e δ15N obtidos para os sítios Tapera (Bastos 2014), Porto do Rio Vermelho I, Porto do Rio Vermelho II, Canto da Lagoa I (De Masi 2001) e Armação do Sul. ................................................................................................................. 204 Gráfico 30: Dispersão dos valores δ13C e δ15N obtidos para os sítios Tapera (Bastos 2014), Porto do Rio Vermelho I, Porto do Rio Vermelho II, Canto da Lagoa I (De Masi 2001) e Armação do Sul, juntamente com suas correlações. ....................................................... 205 Gráfico 31: Dispersão dos valores δ13C e δ15N obtidos para os indivíduos analisados dos sítios do litoral central [Tapera (Bastos 2014), Porto do Rio Vermelho I, Porto do Rio Vermelho II, Canto da Lagoa I (De Masi 2001) e Armação do Sul] e do litoral norte [Forte Marechal Luz (Bastos 2014)]. ............................................................................................ 208 Gráfico 32: Dispersão das médias e representação da direção da mudança ao longo do tempo nos valores δ13C e δ15N dos sítios do litoral central [Tapera (Bastos 2014), Porto do Rio Vermelho II (De Masi 2001) e Armação do Sul], do litoral norte [Forte Marechal Luz (Bastos 2014)] e do litoral sul [Jabuticabeira II e Galheta IV (Colonese et al. 2014)]. ............................................................................................................................................ 210 Gráfico 33: Histograma das razões isotópicas ⁸⁷Sr/⁸⁶Sr presentes no esmalte dentário dos indivíduos analisados do sítio Armação do Sul. ............................................................... 226 Gráfico 34: Boxplot representando as razões isotópicas ⁸⁷Sr/⁸⁶Sr presentes no esmalte dentário dos indivíduos analisados do sítio da Armação do Sul. .................................... 227 Gráfico 35: Gráfico de probabilidade normal dos valores isotópicos ⁸⁷Sr/⁸⁶Sr obtidos para a população do sítio Armação do Sul, com exclusão do sepultamento 2.. ....................... 228 Gráfico 36: Gráfico de dispersão dos valores isotópicos 87Sr/86Sr obtidos para a fauna e os indivíduos analisados do sítio Armação do Sul.. .............................................................. 230 Gráfico 37: Gráfico representando a correlação entre a razões 87 Sr/86Sr e as datações radiocarbônicas. ................................................................................................................ 232 Gráfico 38: Representação da dispersão dos valores 87Sr/86Sr nos diferentes momentos de ocupação do sítio. .............................................................................................................. 233 Gráfico 39: Boxplot das razões isotópicas 87Sr/86Sr obtidas para os indivíduos pertencentes ao período 1 e ao período 2. ............................................................................................. 234 87 Gráfico 40: Gráfico de dispersão dos valores Sr/86Sr dos indivíduos do sexo feminino e masculino. .......................................................................................................................... 235 87 Gráfico 41: Gráfico de dispersão dos valores Sr/86Sr dos indivíduos do sexo feminino e masculino pertencentes ao período 1 (sepultados na areia marrom e/ou datado entre 3100 e 2500 AP) e ao período 2 (sepultados na terra preta e/ou datado entre 2500 e 1200 AP). ............................................................................................................................ 236 Gráfico 42: Gráfico de dispersão dos valores 87Sr/86Sr das crianças, adultos jovens, adultos e adultos maduros do sítio Armação do Sul. ....................................................................... 237 Gráfico 43: Boxplot das razões isotópicas 87 Sr/86Sr obtidas para os indivíduos dos sexo feminino e masculino analisados dos sítios Tapera (Bastos 2014) e Armação do Sul. .. 238 Gráfico 44: Gráfico de dispersão dos valores 87 Sr/86Sr dos indivíduos analisados do sítio Armação do Sul, Tapera (Bastos 2014) e Forte Marechal Luz (Bastos 2009)................. 239 Gráfico 45: Boxplot dos valores 87Sr/86Sr dos indivíduos analisados do sítio Armação do Sul, Tapera (Bastos 2014) e Forte Marechal Luz (Bastos 2009). ............................................ 240 Índice de Tabelas Tabela 1: Datações radiocarbônicas dos indivíduos sepultados no sítio Armação do Sul .. 108 Tabela 2: Lista das variáveis utilizadas na análise das práticas mortuárias do sítio Armação do Sul. ................................................................................................................................. 127 Tabela 3: Resultados da análise dos valores δ15N e δ13C dos indivíduos analisados do sítio Armação do Sul. ................................................................................................................. 190 Tabela 4: Resultados da análise dos valores δ15N e δ13C dos indivíduos analisados do sítio Armação do Sul. ................................................................................................................. 191 Tabela 5: Média dos valores δ13C e δ15N obtidos para os sítios Tapera (Bastos 2014), Porto do Rio Vermelho II (De Masi 2001) e Armação do Sul, do litoral central; Forte Marechal Luz (Bastos 2014), do litoral norte; e Jabuticabeira II e Galheta IV (Colonese et al. 2014), do litoral sul. ...................................................................................................................... 209 Tabela 6: Resultados da análise das razões isotópicas ⁸⁷Sr/⁸⁶Sr dos indivíduos analisados do sítio Armação do Sul. ......................................................................................................... 225 Tabela 7: Resultado da análise das razões isotópicas ⁸⁷Sr/⁸⁶Sr da fauna analisada do sítio Armação do Sul. ................................................................................................................. 229 Índice de Quadros Quadro 1: Padrões de uso dos diferentes tipos de acompanhamentos funerários e diferentes quantidades entre indivíduos adultos femininos, masculinos e crianças dos períodos 1 e 2. ................................................................................................................... 181 Introdução, objetivos e hipóteses Se pensado em termos cronológicos, o processo de ocupação pré-colonial do litoral de Santa Catarina é bastante semelhante para as porções litorâneas norte (entendida aqui como a região da baía da Babitonga), central (Ilha de Santa Catarina, ilhas adjacentes e continente próximo) e sul (entendida aqui como a região de Laguna, Tubarão e Jaguaruna); e esta semelhança cronológica vem acompanhada por alguns fenômenos que são recorrentes ao longo da costa catarinense. Por volta de 2.000 e 1.500 A.P., ocorre uma mudança aparentemente repentina nos padrões deposicionais de diversos sambaquis, período em que passam a ser formados por um sedimento escuro com grande quantidade de matéria orgânica como carvão e ossos de peixes. No caso do sítio Jabuticabeira II – que até o momento foi o mais detalhadamente estudado – apesar da variação composicional, nesta camada escura mantêm-se os processos construtivos associados às estruturas funerárias, bem como as características das indústrias lítica e óssea (DeBlasis et al. 2007, Nishida 2007, Bendazzoli 2007, Villagran 2008, DeBlasis e Gaspar 2008/2009). No momento seguinte, a partir de 1.500 A.P., começa a aparecer cerâmica nos horizontes superficiais de alguns sambaquis e em sítios conchíferos rasos, cerâmica esta que costuma ser atribuída a grupos da família linguística Jê e que vem acompanhada por algumas mudanças em conteúdo e estratigrafia que, contudo, não parecem constituir uma ruptura ou mudança estrutural absoluta. Embora tal sintonia cronológica aponte para um único e grande processo de ocupação para o litoral catarinense inteiro, um olhar mais atento sobre os contextos arqueológicos das três porções litorâneas permite entrever diferenças e particularidades que levam à ideia de processos de ocupação distintos, porém condicionados pelos mesmos eventos primordiais. Processos de ocupação que se interseccionam em determinados 1 pontos – ou nós – no tempo e no espaço, porém que se desenrolam de forma desigual quanto à direção, intensidade, atores envolvidos e outros elementos, diferenciando-se para, em longo prazo, diferenciar também cada um dos contextos e suas texturas. Este processo de diferenciação, no entanto, parece ter decorrido de forma mais intensa no litoral central, onde o panorama arqueológico pré-colonial atualmente conhecido apresenta-se mais acentuadamente peculiar se comparado àquele conhecido para as porções litorâneas que lhe são adjacentes ao norte e ao sul. Tal peculiaridade é denunciada por aspectos como as menores dimensões dos sambaquis (Oppitz 2011); a maior ocorrência de sítios conchíferos com presença de cerâmica (Bandeira 2004, Fossari 2004, Farias e Kneip 2010); a maior ocorrência de oficinas líticas (CNSA/IPHAN); e, sobretudo, a ocorrência de inscrições rupestres, especificidade do litoral central de Santa Catarina no contexto litorâneo nacional (Comerlato 2005). O sítio Armação do Sul (Florianópolis/SC), que é estudado nesta dissertação, não apresenta cerâmica, mas conta com pouca quantidade de conchas em sua composição e apresenta uma descontinuidade em sua estratigrafia que lembra – não necessariamente corresponde – esta mudança no padrão deposicional dos sambaquis catarinenses, com passagem para terra preta e manutenção das características das indústrias lítica e óssea. O mesmo não acontece, porém, com as práticas mortuárias, que mudam ao longo do tempo, passando de sepultamentos envoltos em ocre para sepultamentos sem ocre e alterações em outros elementos de acompanhamento, como será demonstrado aqui. Esta descontinuidade nas práticas mortuárias confere peculiaridade ao sítio tanto num contexto regional quanto local, peculiaridade que se intensifica ainda mais se atentarmos às suas outras características: até o momento ele é o único sítio sem cerâmica com evidência de violência (Lessa e Scherer 2008); trata-se de um sítio ambíguo, de difícil classificação segundo as categorias comumente utilizadas, uma vez que não pode ser considerado um sambaqui e tampouco um sítio raso com cerâmica como Tapera e Base Aérea; foi um sítio fundamental para o estudo de Neves (1988), no qual ele desenvolveu a ideia de que o litoral central teria sido ocupado por uma população biologicamente distinta. 2 Assim, o sítio Armação do Sul parece incorporar algumas das continuidades e descontinuidades dos sítios do litoral catarinense, mostrando-se sintonizado com aquilo que estava acontecendo a nível regional, e, ao mesmo tempo, apresenta características particulares que remetem ao caráter peculiar do panorama arqueológico do litoral central e àquelas relações que estavam sendo empreendidas a nível local: incorpora o contexto macro no micro. E, por esse motivo, está sendo tomado como elemento chave para entender tanto as particularidades do processo de ocupação que diferenciou o litoral central das demais porções litorâneas catarinenses, quanto as mudanças que se deram em nível regional a partir de 2.000 A.P., culminando no aparecimento da cerâmica e no posterior fim das práticas associadas à formação de sítios conchíferos. A ideia é, portanto, compreender melhor os processos de mudança que se deram nesse momento mais tardio da formação de sítios conchíferos no litoral de Santa Catarina, como foco no litoral central e a partir de um estudo de caso, que é o sítio Armação do Sul. De quebra, espero também contribuir para um melhor entendimento do processo de ocupação responsável pela maior diferenciação da porção central do litoral catarinense com relação aos territórios vizinhos. De forma a atingir esse objetivo maior, foram estabelecidos – e alcançados ao longo da pesquisa – os seguintes objetivos específicos: Realizar a datação de alguns indivíduos sepultados, estabelecendo uma cronologia estratigraficamente referenciada com base na distribuição dos sepultamentos e situando diacronicamente as mudanças que ocorrem no sítio. Estas mudanças apresentam sintonia cronológica entre si e com as mudanças que ocorrem no contexto maior do litoral catarinense? Realizar análise de isótopos de estrôncio (87Sr/86Sr) provenientes do esmalte dentário dos indivíduos sepultados, em busca de informações sobre migração e mobilidade humana. As mudanças que ocorrem no sítio podem estar associadas à migração e incorporação de indivíduos não locais por sua população? Analisar a paleodieta dos indivíduos sepultados a partir de isótopos de carbono (δ13C) e nitrogênio (δ15N). A paleodieta apresenta descontinuidades que acompanham a 3 mudança na estratigrafia e práticas mortuárias? É possível observar diferenças entre as paleodietas de diferentes grupos de indivíduos? Analisar os contextos funerários. É possível identificar elementos das práticas mortuárias do sítio Armação do Sul como pertencentes a uma tradição regional de longa duração que permanece – ou não – em meio a elementos que aparecem como manifestações locais? É possível observar diferenças entre os acompanhamentos funerários de diferentes grupos de indivíduos? A partir desse conjunto de dados, busco dimensionar – em termos eventuais, conjunturais e estruturais; locais e regionais – a mudança que ocorre na estratigrafia do sítio e nas práticas mortuárias nele cristalizadas, e, entendendo o sítio Armação do Sul como elemento chave para a compreensão do processo de ocupação do litoral central catarinense, “extrapolar” à realidade arqueológica regional os resultados obtidos. São, ainda, verificadas três hipóteses principais: Hipótese 1: Há indivíduos não locais no sítio Armação do Sul. O sítio Armação do Sul teve sua série de esqueletos apontada por Neves (1988) como biologicamente distanciada das demais séries provenientes de sítios conchíferos sem cerâmica do litoral central catarinense e, quando reanalisado por Okumura (2008), teve sua série feminina apontada como “outlier” em relação aos outros sítios do litoral central, logo, é possível que haja indivíduos não-locais incorporados à população do sítio, tanto homens quanto mulheres, mas, principalmente mulheres. Hipótese 2: A paleodieta dos indivíduos do sítio Armação do Sul é predominantemente marinha. De um ponto de vista diacrônico, no entanto, há uma sutil mudança em direção a uma dieta menos marinha ou mais terrestre; pequena variação dentro de uma tendência mais geral. Estudos isotópicos apontam para dietas predominantemente marinhas entre as populações associadas a sítios conchíferos do litoral catarinense (De Masi 2001, 2009; Bastos 2014; Colonese et al. 2014), o que é indicado também por estudos zooarqueológicos (Bandeira 1992, Figuti 1993, Klökler 2001). As análises realizadas por De Masi (2009:72), no entanto, mostram que dentro dos 4 limites dessa tendência geral houve transformação para uma dieta mais terrestre – ou menos marítima – por volta de 1.000 A.P., independentemente da presença de cerâmica nos sítios ou não. Bastos (2014) também observa mudança em direção a uma dieta mais terrestre, porém em tempos posteriores ao aparecimento da cerâmica. Hipótese 3: As mudanças observáveis nas práticas mortuárias do sítio Armação do Sul e no sedimento que o compõe – passagem para terra preta – se deram entre 1.500 A.P. e 1.000 A.P. O sítio Armação do Sul foi datado em 2.670 +-90 A.P. (I-9212) a partir de uma amostra de carvão coletada da camada mais profunda do sítio na etapa de 1969 (Schmitz et al. 1992:27). O momento da mudança é mais recente estratigraficamente, o que possivelmente implicará numa datação também mais recente. Além disso, Nishida (2007) encontrou a datação de 1.930 +- 50 A.P. (Beta 228507) para a camada de sedimento escuro e ossos de peixe do sítio Jabuticabeira II, e de 1.550 +- 60 A.P. (Beta 228506) para a camada de terra preta: é possível, então, que as camadas de areia escura e de terra preta do sítio Armação do Sul apresentem datações próximas a estas, caso estejam de alguma forma relacionadas às transformações que tiveram lugar no litoral sul. Trata-se de uma biografia do sítio Armação do Sul, pautada numa cronologia fina e numa textura densa de dados isotópicos 87Sr/86Sr, δ13C e δ15N e dados relativos às práticas mortuárias, o que vai ao encontro daquilo que Morris (2000: 24) entende como sendo História Cultural: “taking cultural history seriously means thinking on all three temporal levels described by Braudel and Giddens. And this requires a shift away from grand theory, toward more prosaic concerns – creating the densest possible texture of data and the tightest chronology”. Vai, também, no sentido da arqueologia como história de longa duração de Hodder (2009 [1987]) que, em outro lugar, coloca que since action in the world partly depends on concepts, and since concepts are learnt through experience in the world, in which one is brought up and lives, it is feasible that long-term continuities in cultural traditions exist, continually being renegotiated and transformed, but nevertheless generated from within. Part of the aim of archaeology may be to identify whether such long-term continuities exist, and how they are transformed and changed (Hodder e Hutson 2003: 30). 5 Esta aproximação com uma história cultural, ou história de longa duração, é aqui acompanhada por um quadro teórico que promove a associação entre os três tempos de Braudel (1984, 2005[1992]), a teoria da prática de Bourdieu (2011[1967], 1989, 2011[1994]) e o pensamento de Sahlins (2011 [1985]) sobre a relação entre estrutura e história, numa tensão positiva entre indivíduo e estrutura, curta e longa duração, local e regional, mudança e estabilidade. A superação dessas dicotomias envolve também uma relação de cumplicidade ontológica com o mundo, no sentido do ser-no-mundo de Heidegger (2008[1927]) e da noção de incorporação de Merleau-Ponty (1999[1945]: 273), em que “o corpo próprio está no mundo assim como o coração no organismo; ele mantém o espetáculo visível continuamente em vida, anima-o e alimenta-o interiormente, forma com ele um sistema”. Além do reconhecimento da multidimensionalidade inerente aos processos de mudança. Ao final, e entendidos também sob a perspectiva da prática, são empregados brevemente alguns conceitos oriundos da teoria de sistemas adaptativos complexos – resiliência (Holling 1973, Leslie e McCabe 2013) e rigidez (Hegmon et al. 2008) – e da perspectiva dos regimes de historicidade (Hartog 2013[2003], Sahlins 2011[1985]), na tentativa de entender as variações existentes nos processos de mudança que se desenrolaram nas diferentes porções litorâneas e a maior diferenciação que se deu na porção litorânea central com relações às demais, resultando em um panorama arqueológico mais acentuadamente peculiar. O sítio Armação do Sul foi bastante estudado pela equipe do Instituto Anchietano de Pesquisas na década de 1990, com análise da indústria lítica e óssea, dos sepultamentos, da fauna, das estruturas de combustão e de aspectos da distribuição espacial intrassítio – os dados e interpretações estão publicados em Schmitz et al. (1992). Nesta dissertação, esse importante sítio do litoral catarinense é revisitado a partir de uma problemática distinta, e desta vez com foco na coleção esquelética, sua práticas mortuárias e propriedades “invisíveis” – idades e razões isotópicas 87 Sr/86Sr, δ13C e δ15N. Com o auxílio de novos métodos e técnicas, o sítio da Armação do Sul é estudado sob um novo olhar. 6 Esta pesquisa foi concretizada por meio do projeto “Armação do Sul: velhas questões, novas abordagens. Os sítios conchíferos do litoral central de Santa Catarina na longa duração” (FAPESP 2013/11193-4), coordenado pelo Prof. Dr. Paulo DeBlasis e integrado por mim, pela prof. Dra. Andrea Lessa (Museu Nacional/UFRJ) e pela prof. Dra. Veridiana de Souza Martins (Instituto de Geociências/USP). A dissertação se inicia com a apresentação do sítio Armação do Sul, em que faço uma breve contextualização espacial e arqueológica do sítio para, depois, discorrer sobre a pesquisa nele empreendida por João Alfredo Rohr e Margarida Andreatta em fins da década de 1960 e meados da década de 1970, bem como sobre o estudo posterior do material gerado na escavação, realizado pela equipe do Instituto Anchietano de Pesquisas (IAP/UNISINOS). Em seguida, apresento a perspectiva de longa duração que serve de pano de fundo para todas as reflexões aqui realizadas, no reconhecimento de uma continuidade histórica entre os sítios conchíferos sem e com presença de cerâmica. Assim se constitui o capítulo 1. O assunto do capítulo 2 são as diversas mudanças e permanências observáveis no registro arqueológico dos sítios conchíferos catarinenses ao longo do tempo, principalmente a partir de 2000 anos AP; mudanças que se dão em escala regional e mudanças que são específicas de determinadas localidades. Ao fim desse capítulo, é possível perceber que a alteração no padrão deposicional e o aparecimento da cerâmica são apenas duas dentre uma multiplicidade de mudanças e permanências que se dão multidimensionalmente. No capítulo 3, a mudança ainda é o tema central, no entanto, o foco se desloca da mudança no registro arqueológico para mudança como objeto de estudo e como constituinte do arqueólogo enquanto sujeito. Primeiramente, faço uma breve revisão de como a questão da mudança vem sido percebida pelos diferentes paradigmas que marcaram o desenvolvimento da disciplina arqueológica, ao mesmo tempo em que apresento as percepções existentes na literatura sobre a mudança nos sítios conchíferos catarinenses. Em seguida, tento demonstrar o modo como a mudança é entendida por mim, apresentando as ferramentas teóricas a serem utilizadas na interpretação dos dados gerados pela análise das práticas mortuárias e pelas análises isotópicas. 7 Esse conjunto formado pelos capítulos 1, 2 e 3 compõe a primeira parte da dissertação, “Entre arqueólogos e culturas mutantes”, a qual idealizei justamente como um momento de contextualizações e reflexões diversas sobre o sítio Armação do Sul, a mudança e as percepções de mudança; um prelúdio a tudo o que será apresentado e discutido na segunda parte, em que nos veremos “Criando uma textura densa de dados”. Começo a segunda parte discorrendo sobre a aplicação de análises isotópicas na arqueologia, com foco no radiocarbono (14C) e nos isótopos estáveis de nitrogênio (δ15N), carbono (δ13C) e estrôncio (87Sr/86Sr), o que compõe o capítulo 4. A partir daí, passo a apresentar os dados gerados ao longo desta pesquisa. O capítulo 5 é dividido em dois momentos. No primeiro deles, constam os dados relativos às datações radiocarbônicas realizadas em 30 indivíduos do sítio Armação do Sul e 3 indivíduos do sítio Tapera que apresentam lesões causadas por pontas ósseas, bem como a descrição da amostra, dos métodos e a discussão dos resultados. No segundo momento, após uma breve introdução ao estudo de práticas mortuárias na arqueologia, constam os resultados da análise dos contextos funerários do sítio Armação do Sul, bem como a sua discussão e a descrição dos materiais e métodos empregados. O capítulo 6 também está dividido em duas partes. A primeira é reservada às análises isotópicas de nitrogênio (δ15N) e carbono (δ13C), e começa com a descrição dos materiais e métodos, seguida pela apresentação dos resultados e da discussão. A segunda é reservada às análises de estrôncio (87Sr/86Sr) e apresenta estrutura idêntica à anterior, com o acréscimo de um item sobre a caracterização da geologia da Ilha de Santa Catarina. No capítulo 7, todos os dados apresentados são colocados para conversar, na conformação de um quadro de acontecimentos locais, regionais e globais interrelacionados sincrônica e diacronicamente. Estava tudo acontecendo ao mesmo tempo, e, nessa convergência de espaços e tempos, se encerra a dissertação. 8 Parte I: Entre arqueólogos e culturas mutantes 9 1 Para começar 1.1 O litoral central Quando falo em litoral central de Santa Catarina, me refiro à faixa que se estende da barra do rio Itapocu, no município de Barra Velha – que corresponde ao limite norte da porção central na divisão que Lago (1968) e Ab’Sáber (2006) fazem do litoral catarinense – até o município de Garopaba, ultrapassando o limite sul da divisão destes autores para um pouco além do término da Ilha de Santa Catarina. Figura 1: Delimitação do litoral central com detalhe da Ilha de Santa Catarina, da barra do rio Itapocu até o município de Garopaba. 10 Essa delimitação do litoral central está baseada em critérios geográficos, geológicos e arqueológicos, embora em algumas situações um critério tenha se sobreposto ao outro. O trecho entre os municípios de Navegantes e Barra Velha, por exemplo, é pouco conhecido arqueologicamente, porém está incluído no setor central por ainda fazer parte da porção recortada da costa. O trecho correspondente aos municípios de Paulo Lopes e Garopaba, por outro lado, não apresenta motivos geográficos ou geológicos para fazer parte do litoral central, tendo sido incluído na delimitação por apresentar elementos que remetem ao panorama arqueológico dessa porção litorânea. No litoral central, as formações cristalinas com mata ombrófila densa esbarram mais frequentemente no mar, resultando numa planície litorânea mais estreita e em numerosos costões, enseadas, baías e ilhas que fazem dessa porção a mais recortada do litoral catarinense (Lago 1968). Além disso, é nessa porção que se encontra a maior variedade de unidades litoestratigráficas do litoral catarinense (Silva e Bortoluzzi 1987). O caráter recortado dessa faixa litorânea permite a visualização entre pontos distantes no espaço, conectando visualmente sítios arqueológicos às vezes separados por quilômetros de distância. Ao ultrapassarmos os limites do litoral central, esse contexto muda: a intervisualização é possibilitada pelos grandes corpos d’água como a baía da Babitonga e a região da paleolaguna de Santa Marta, que centralizam essa unidade visual conectando diferentes pontos no espaço. No litoral central, corpos d’água menores também exercem uma centralidade importante, como a lagoa da Conceição ou a área da paleolaguna da bacia do rio Ratones, mas, ao que parece, essa forma de visualidade coexistia ou foi sucedida por outras percepções mais relacionadas ao ambiente marinho. Arqueologicamente, o litoral central se diferencia das demais porções litorâneas de Santa Catarina pela ocorrência de sítios de inscrições rupestres e sambaquis de menores dimensões, bem como pela maior ocorrência de sítios de amoladores-polidores fixos e de sítios conchíferos com presença de cerâmica da tradição Itararé, esta aparecendo tanto nos níveis superficiais de sambaquis quanto em sítios conchíferos rasos. Os sítios de inscrição rupestre se situam, na maior parte dos casos, em costões rochosos voltados para o oceano, tanto em ilhas quanto em terras continentais – mas 11 principalmente em ilhas – entre os municípios de Porto Belo e Garopaba. Em sua pesquisa de doutorado, Comerlato (2005) percebeu a existência de uma gramática plástica comum nas representações rupestres de toda essa faixa litorânea, o que permite pensarmos no litoral central como um espaço integrado por uma percepção de mundo intimamente relacionada com o ambiente marinho, que teria sido vivenciada por determinados grupos humanos, em determinado momento; ou, ao menos, na possibilidade de uma integração promovida por um código visual compartilhado. Ainda, os limites norte e sul da área de ocorrência de inscrições rupestres, Porto Belo e Garopaba, equivalem ao alcance máximo que os olhos de um observador situado na Ilha de Santa Catarina e ilhas adjacentes têm das terras continentais; da mesma forma, aquele que ultrapassa os limites dessa área logo perde de vista as terras insulares. A unidade promovida pela gramática plástica comum sugerida por Comerlato (2005), portanto, está estreitamente relacionada a um campo visual que permite avistamentos recíprocos entre diferentes pontos no espaço e que parece estar centrado na Ilha de Santa Catarina. Quanto aos sambaquis, embora os sítios de Santa Catarina sejam conhecidos como os “maiores do mundo”, chegando alguns deles a atingir dimensões gigantescas, com mais de 30 m de altura, esses sítios de grandes dimensões têm ocorrência restrita às porções norte e sul do litoral catarinense, não sendo encontrados na porção central (Oppitz 2011), onde possuem, em média, de 1 m a 2 m de altura, com alguns poucos atingindo dimensões intermediárias entre 3 m e 7 m e excepcionais casos apresentando por volta de 10 m de altura – Rio Tavares III, 6-11 m (Wiener 1876); Ponta das Canas I, 10-15 m; e Lagoinha da Ponta das Canas I, mais de 10 m (Bigarella 1949). Os sítios de amoladores-polidores fixos (Amaral 1995, Sophiati 2010) são presença constante no litoral central, com 33 casos registrados no Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos (IPHAN), podendo ser vistos – algumas vezes em grande quantidade, com centenas de marcas diferentes no mesmo sítio – em quase toda a praia onde houver um dique de diabásio intrometendo-se entre a rocha granítica, mas, também, no próprio granito e em suportes riolíticos. 12 Os sítios conchíferos com presença de cerâmica Itararé também são ocorrência frequente, com 17 sítios só na Ilha de Santa Catarina (Fossari 2004), enquanto que no litoral norte existem 10 ocorrências conhecidas (Bandeira 2004) e, no litoral sul, apenas cinco (Farias e Kneip 2010). Devido à presença de cerâmica, esses sítios vêm comumente sendo associados pela literatura arqueológica a grupos provenientes do interior, pertencentes à família linguística Jê, embora até o momento não haja qualquer evidência material que aponte nesse sentido; pelo contrário, os dados vêm indicando que esses sítios possivelmente teriam sido formados por populações litorâneas (Bastos 2009, 2014). No litoral central, a cerâmica mencionada ocorre tanto nos horizontes superficiais de alguns sambaquis quanto em um tipo de sítio que Rohr (1984) costumava chamar de “sítio raso de sepultamento”: o sítio de sepultamentos apresenta uma camada arqueológica, que oscila de trinta centímetros a um metro de espessura. É composta de restos de cozinha: húmus, carvão vegetal, conchas, ossadas de peixes e de outros animais e o mais variado material arqueológico, análogo ao encontrado nos sambaquis. O sítio de sepultamento distingue-se dos sambaquis, apenas, por encerrar pequeno teor de conchas, enquanto o sambaqui é essencialmente composto de conchas (Rohr 1984: 84). E que Villagran (2012:82) – ver também Giannini (2010:111) – mais recentemente, chamou de “montículos ictiológicos”, sítios ou camadas sobre sítios “formados por misturas maciças ou mal estratificadas de areia com ossos de peixe, carvão, conchas ocasionais e, em alguns casos, fragmentos cerâmicos”. O sítio Armação do Sul, embora não necessariamente apresente aspecto monticular1, parece se enquadrar nessas categorias definidas por Rohr e Villagran quanto à sua composição e estratigrafia. Outros possíveis exemplos são os sítios Tapera e Base Aérea, estes com presença de cerâmica e também situados em Florianópolis. Apesar de ocorrerem ao longo de todo o litoral catarinense, esses sítios tornam-se mais raros conforme são ultrapassados os limites estabelecidos para esta pesquisa e adentrados os domínios dos grandes sambaquis, ao norte da barra do Itapocu e ao sul de Garopaba, o que significa também que nas porções norte e sul a cerâmica aparece mais comumente 1 Somente com base nas informações constantes na bibliografia sobre o sítio Armação do Sul não é possível afirmar ou refutar essa possibilidade. Para isso, se fariam necessárias novas intervenções no sítio. 13 nos horizontes superficiais dos sambaquis. Interessante é que a composição desses horizontes superficiais em termos de sedimento, fauna e cultura material parece ser semelhante à composição dos sítios rasos de sepultamento, com a diferença de que aqueles contribuem para o volume das formações monticulares, enquanto estes se situam diretamente sobre o chão. Há ainda dados resultantes dos estudos de paleogenética de Neves (1988), Hubbe (2005) e Okumura (2008) que, apesar das limitações amostrais2, devem ser levados em consideração quando se pensa numa caracterização para o contexto de sítios conchíferos do litoral central. Analisando marcadores osteológicos não-métricos de esqueletos provenientes de sítios arqueológicos do litoral paranaense e catarinense, Neves (1988: 138) sugere que o litoral central de Santa Catarina teria sido ocupado por um grupo biológico distinto, uma vez que a série dos sambaquis do litoral central é a que mais se distancia biologicamente dentro do conjunto das séries de sítios sem presença de cerâmica da faixa litorânea por ele estudada. Hubbe (2005), em um estudo multiescalar a partir de dados inéditos e dados já existentes na bibliografia, não corrobora essa ideia, limitando-se a constatar a tendência das séries agruparem-se de acordo com sua posição geográfica. Nesse sentido, coloca que as séries do litoral norte catarinense associam-se mais intimamente às séries do Paraná, e que este agrupamento difere das séries do litoral sul de Santa Catarina e de São Paulo. A Ilha de Santa Catarina, neste contexto, ora se aproxima do litoral sul, ora se aproxima do litoral norte, o que pode significar que a biologia dos grupos que viveram na Ilha teria recebido contribuição genética de ambas as porções litorâneas. Assim, segundo o autor, o litoral central não se apresenta claramente associado a nenhum dos três conjuntos, demonstrando, quem sabe, se tratar de um universo microevolutivo em si. Okumura (2008), por sua vez, em estudo posterior a partir de marcadores osteológicos métricos e não-métricos, conclui que não é possível confirmar nem tampouco refutar o resultado 2 Os autores elencam como limitação à confiabilidade de seus dados a utilização de séries mistas, compostas por indivíduos oriundos de sítios diversos; o reduzido tamanho amostral de algumas séries; a possibilidade de enterramentos relacionados a níveis diferentes de ocupação de um mesmo sítio terem sido englobados numa mesma série; o fato de várias gerações superpostas estarem representadas numa amostra de enterramentos; a incerteza sobre o grau de determinação genética dos marcadores antropológicos utilizados (Neves 1988:146); além do grande intervalo cronológico abarcado pelas séries e a total ausência de datações para muitas delas (Okumura 2008:278). 14 obtido por Neves (1988), mas levanta uma nova possibilidade ao demonstrar como a maior parte de suas análises indicou proximidade morfológica entre as séries de sítios com cerâmica e sem cerâmica da Ilha de Santa Catarina, sugerindo a existência de afinidade biológica entre os grupos associados a estes tipos distintos de sítios. Tais possibilidades paleogenéticas, aliadas aos demais elementos acima arrolados que caracterizam o panorama arqueológico do litoral central, diferenciam essa porção do litoral de suas porções litorâneas vizinhas, convidando a uma investigação em torno do processo de ocupação e das relações empreendidas com o meio e demais elementos constituintes do mundo vivido responsáveis por essa diferenciação. 1.2 O sítio Armação do Sul Localizado na planície costeira de praia com o mesmo nome na porção sul da Ilha de Santa Catarina, o sítio Armação do Sul se encontra delimitado, de um lado, pelo oceano Atlântico e, do outro, pelo rio Quinca Antônio, que dá vazão à lagoa do Peri (Rohr 1969:135). Figura 2: Localização do sítio Armação do Sul na Ilha de Santa Catarina e detalhe da planície costeira da praia da Armação, onde ele se situa. 15 A área de aproximadamente 2000 m² que, de acordo com estimativa de Rohr (1974), deveria compor o sítio, hoje se apresenta totalmente urbanizada e descaracterizada, estando o sítio sob as casas, restaurantes, pousadas e estacionamentos que se estendem ao longo da faixa de areia da praia. Figura 3: Vista da área do sítio Armação do Sul a partir da ponta das Campanhas (sentido leste-oeste). O sítio de situa ao fundo, sob as casas do balneário. À esquerda da foto, o rio Quinca Antônio; à direta, o mar da praia da Armação. É possível observar os morros do maciço do Ribeirão da Ilha ao fundo. Foto da autora. O entorno do sítio corresponde, em sua porção norte, à extensão da praia da Armação, Morro das Pedras e Campeche; na porção noroeste, à lagoa do Peri, separada da praia da Armação por uma estreita faixa de depósitos holocênicos; na porção oeste, ao maciço montanhoso do Ribeirão da Ilha; na porção sudoeste, à estreita planície que conecta a praia da Armação com a praia do Pântano do Sul; na porção sul, ao rio Quinca Antônio e ao maciço da Lagoinha do Leste; na porção sudeste, à praia do Matadeiro; na porção leste, à ponta das Campanhas; e; na porção nordeste, ao oceano Atlântico. 16 Figura 4: O entorno do sítio Armação do Sul, sendo 1) a área do sítio vista a partir de um dos locais escavados por Rohr, hoje correspondente à pousada Maré de Lua, sentido sul-norte; 2) a área do sítio vista a partir da estrada que passa sobre ele, sentido norte-sul; 3) vista da extensão da praia da Armação; 4) vista da lagoa do Peri; 5) imagem de satélite dos morros do maciço do Ribeirão da Ilha; 6) imagem de satélite da planície que conecta a praia da Armação com a praia do Pântano do Sul; 7) vista do rio Quinca Antônio; 8) vista da praia de Matadeiro a partir da ponta das Campanhas; 9) vista da ponta das Campanhas com detalhes; 10) vista do mar da praia da Armação, com a ilha do Campeche ao fundo. Fotos da autora. 17 Há também no seu entorno uma grande variedade de sítios arqueológicos, tanto do período pré-colonial, representado por sítios conchíferos, amoladores-polidores fixos, inscrições rupestres e sítios líticos sobre dunas, quanto do período de ocupação histórica da área, a exemplo da armação baleeira que deu nome à praia e que se situa diretamente sobre o sítio Armação do Sul. Focando nos registros que remetem ao período pré-colonial, na ponta das Campanhas está o sítio conchífero mais próximo, com presença de cerâmica e sepultamentos – sítio Ponta da Armação (Fossari 1987). Segundo relato de Rohr (1974), em 1944 foi retirado da ponta das Campanhas um bloco de rocha com inscrições rupestres, junto ao qual havia um grande número de amoladores-polidores de forma arredondada. Alguns desses amoladores-polidores e, também, o bloco com inscrição rupestre, atualmente se encontram expostos no Museu do Homem do Sambaqui “Pe. João Alfredo Rohr”. Afora esses exemplares, é possível observar inúmeros amoladores-polidores de forma arredondada e de sulco ao longo da ponta das Campanhas, no terreno da pousada Maré de Lua – que se situa diretamente sobre uma das áreas escavadas do sítio – e na barreira de pedras que protege a orla do bairro da Armação do avanço do mar, embora, em sua maioria, os suportes onde se encontram as evidências não estejam mais em seus locais originais. Há, inclusive, alguns suportes que foram utilizados na construção da antiga armação baleeira, e que podem ser observados nas estruturas que restam desse sítio histórico, à beira mar. Ainda no entorno imediato, existem dois sítios de amoladorespolidores fixos e uma inscrição rupestre na praia do Matadeiro (Bueno et al 2015), além do conjunto de sítios de inscrições rupestres, amoladores-polidores fixos e sítio conchífero que compõe a ilha do Campeche. Um pouco mais distante, na praia da Lagoinha do Leste, há outro sítio de amoladorpolidor fixo; na praia do Pântano do Sul, há dois sítios conchíferos, uma inscrição rupestre, dois sítios de amolador-polidor fixo, dois sítios com vestígios líticos sobre dunas e outros dois que, além dos vestígios líticos, apresentam cerâmica Guarani; e, na praia dos Açores, há um sítio de amolador-polidor fixo (Bueno et al. 2015). 18 Figura 5: Vista geral da área onde se situa o sítio conchífero Ponta da Armação, na ponta das Campanhas. Foto da autora. Figura 6: Bloco de rocha com inscrição rupestre, retirado da ponta das Campanhas. Os sulcos se encontram “reavivados” com giz. Acervo do Museu do Homem do Sambaqui “João Alfredo Rohr”. Foto da autora. Figura 7: Seixos e blocos de rocha ao longo da ponta das Campanhas, onde há uma enorme variedade de amoladores-polidores fixos. Ao fundo, o sítio Armação do Sul. Foto da autora. Figura 8: Detalhe de dois pequenos suportes situados no terreno da pousada Maré de Lua, um com marcas em forma de sulco (à esquerda) e outro com marcas arredondadas (à direita). Foto da autora. Figura 9: Estruturas remanescentes da armação baleeira. Nota-se a presença de um bloco com amolador-polidor fixo côncavo-convexo. Foto de Bueno et al. (2015). Figura 10: Sítio de inscrição rupestre situado no costão entre a praia de Matadeiro e a Lagoinha do Leste. Foto de Rodrigo Dalmolin. 19 O entorno do sítio Armação do Sul, contudo, nem sempre foi marcado pela mesma paisagem. Castilhos (1995) mostra que a área que hoje corresponde à planície costeira da praia da Armação passou por transformações ao longo do tempo, sendo inicialmente caracterizada pela presença de uma baía, que virou laguna, que virou lagoa. O local onde foi assentado o sítio – um terraço marinho holocênico coberto por areias eólicas – formouse por volta de 5.000 A.P., situando-se à beira da paleolaguna que existiu até mais ou menos 3.600 A.P. e, a partir daí, começou a fechar para, mais tarde, deixar de existir, tornando-se a lagoa do Peri. Figura 11: Evolução paleogeográfica da planície costeira da praia da Armação. Adaptado de Castilhos (1995). 20 O sítio Armação do Sul foi escavado por João Alfredo Rohr em duas etapas, uma em 1969, com a participação de Margarida Andreatta e publicação de nota prévia (Rohr e Andreatta 1969), e outra em 1974, cujos resultados foram publicados no jornal Correio do Povo, de Porto Alegre (Rohr 1974). Com base no diário de campo de Rohr, perfis, plantas e fotografias geradas ao longo da pesquisa, a equipe do Instituto Anchietano de Pesquisas realizou a curadoria e o estudo posterior do material referente ao sítio – situado no Museu do Homem do Sambaqui “Pe. João Alfredo Rohr, S.J.”, no Colégio Catarinense –, com análise da indústria lítica e óssea, dos sepultamentos, da fauna, das estruturas de combustão e de aspectos da distribuição espacial intrassítio. Os dados das escavações, o resultado das análises e demais interpretações desenvolvidas podem ser encontradas na dissertação de mestrado de De Masi (1990) e em Schmitz et al. (1992). O material referente à armação baleeira que há sobre o sítio conchífero, estudada por Comerlato (1998) em sua pesquisa sobre as armações baleeiras da Ilha de Santa Catarina, também se encontra no Museu do Homem do Sambaqui. Figura 12: Croqui da área escavada do sítio Armação do Sul. Fonte: Schmitz et al. (1992). 21 A partir de uma amostra de carvão coletada da camada mais profunda na etapa de 1969, o sítio conchífero Armação do Sul foi primeiramente datado em 2.670 +-90 A.P. (I9212) (Schmitz et al. 1992:27). Hoje, com a realização da datação de 30 indivíduos sepultados no sítio para esta pesquisa, sabemos que ele é um pouco mais antigo, tendo sua formação provavelmente sido iniciada por volta de 3065-2880 anos cal AP, e sido interrompida por volta de 1315-1275 anos cal AP. Com uma área total estimada em 2000m², o sítio teve 269m² escavados – 85m² na primeira etapa e 184m² na segunda, com 10m de distância entre as duas áreas – sendo atingidos 2m de profundidade e revelada estratigrafia semelhante para as áreas escavadas nas diferentes etapas: 1) Camada de húmus e raízes; 2) Camada de ocorrência de caliça, pedras e entulho da antiga estrutura da armação para caça de baleias; 3) Camada de húmus e fragmentos de material sub-recente; 4) Camada entre 50 e 80 cm, descrita como de terra preta com areia, compacta, com conchas e grandes lentes de conchas, nas profundidades em que não mais ocorrem pedras da estrutura da Armação – esta camada é menos espessa na área escavada da segunda etapa; 5) Camada entre 80 e 110 cm, composta por areias de cor marrom escura com terra; 6) Camada entre 110 e 190 cm, composta por areias de cor marrom clara; 7) Camada a partir de 190 cm, de areias de cor marrom clara, que formam a base do sítio (Rohr 1969:136, Schmitz et al. 1992:25-27). A impressão de descontinuidade que a estratigrafia do sítio pode evocar, passando de areia marrom para terra preta, é acompanhada por uma descontinuidade nas práticas mortuárias relacionadas aos 86 sepultamentos escavados – embora, de acordo com Schmitz et al. (1992: 169), o mesmo não aconteça com relação à tecnologia lítica e óssea3 – tornando possível vislumbrar dois momentos diferentes na ocupação pré-colonial do sítio da Armação do Sul. O primeiro deles está associado aos horizontes de areia marrom escura e areia marrom clara, com sepultamentos envoltos em pigmentos vermelhos e, por vezes, acompanhados de adornos (crianças), além de outros artefatos e fragmentos de artefatos, fragmentos de rocha e seixos, material ósseo e malacológico. O segundo momento está 3 “Buscamos saber, através de alguns indicadores, como os artefatos fusiformes e as pontas de projétil em osso, se existe continuidade tecnológica no sítio. Através desses indicadores, que nos pareceram os melhores, não percebemos nenhuma descontinuidade” (Schmitz et al. 1992: 169). 22 associado ao horizonte de terra preta, com sepultamentos que, em geral, não apresentam pigmentos vermelhos e raramente estão acompanhados de adornos (crianças), porém costumam vir acompanhados por abundantes pontas ósseas. Há, no entanto, indivíduos de datação mais recente que continuam apresentando ocre e alguns que, em vez de estarem na camada de terra preta, se encontram sepultados em meio à areia marrom escura. Artefatos líticos e fragmentos de artefatos, fragmentos de rocha e seixos, material ósseo e malacológico são também ocorrências frequentes junto aos sepultamentos desse segundo momento. Figura 13: Perfil estratigráfico do sítio da Armação do Sul. Fonte: Schmitz et al. (1992:29). A mudança nas práticas mortuárias do sítio será abordada com detalhe mais à frente, mas cabe mencionar que Schmitz et al. (1992: 155) a interpretam como estando relacionada a um possível aumento dos conflitos e consequente valorização de chefes guerreiros, o que poderia estar atrelado à movimentação de populações ao longo do litoral ou do planalto para o litoral, sendo bastante representativo o caso de um indivíduo acompanhado de 50 pontas ósseas junto à cabeça, situado na transição entre os diferentes momentos do sítio. Esta ideia é reforçada por Lessa e Scherer (2008: 91-92) que, em 23 análise da série esquelética do sítio em questão, identificaram um indivíduo masculino adulto cuja quarta vértebra lombar apresentava uma ponta óssea dentro do corpo vertebral, sem sinais de cicatrização ao redor da lesão. Até o momento, este é o único dado disponível sobre violência em sítios conchíferos sem cerâmica, ocorrência antes conhecida somente para sítios com cerâmica: Tapera e Base Aérea, no litoral central; Itacoara e Enseada I, no litoral norte (Lessa e Scherer 2008: 93-94). Resta ainda compreendermos melhor a passagem da areia marrom clara para a areia marrom escura, e desta para a terra preta, de um ponto de vista sedimentológico (Nishida 2007, Villagran 2008, 2012). Está claro que a camada de areia marrom clara representa a areia da praia da Armação, mas qual é a origem da areia marrom escura e da terra preta? Seriam solos formados localmente na interação entre as atividades empreendidas no sítio e a areia da praia, ou sedimentos depositados intencionalmente por agente antrópico? Infelizmente, isso não será respondido aqui, mas é uma questão interessante para trabalhos futuros. A indústria lítica do sítio foi analisada por De Masi (1990), tendo sido identificadas as seguintes matérias-primas: granitoides, basaltoides, metapelitos, xistos, quartzo leitosos, cristal de quartzo, sílica microcristalina e madeira silicificada. Os granitoides e basaltoides aparecem principalmente sob a forma de seixos e, no caso dos diabásios, na forma de prismas ou plaquetas. O quartzo leitoso, o cristal de quartzo, a sílica microcristalina e a madeira silicificada aparecem como fragmentos. A maior parte dessas matérias-primas pode ser encontrada na ponta das Campanhas, situada no entorno imediato do sítio, com exceção dos xistos, que afloram um pouco mais ao sul, nas proximidades do Pântano do Sul; e da madeira silicificada, proveniente do continente próximo à Ilha de Santa Catarina. É importante mencionar que o material lítico estudado não corresponde à amostra total, tendo em vista que uma grande quantidade de material, em geral seixos considerados como naturais por Rohr, não foi coletada do sítio. O material analisado foi classificado em grupos, estes aglutinados a partir da morfologia da matéria-prima utilizada. Os seixos constituem 70,27% do total, sendo representados por grupos de seixos inteiros, quebrados e lascas (35,18%); seixos oxidados 24 (11,79%); restos de percussão bipolar (núcleos bipolares 9,21%, fragmentos bipolares 7,45%, lascas bipolares com ou sem uso 10,81%); seixos usados com nenhuma ou pouca modificação intencional (percutores 13,64%, bigornas 4,75%, seixos com entalhes – pesos de rede – 1,69%); seixos lascados para formar artefatos, geralmente cortantes e muitas vezes com entalhes laterais para encabamento, inteiros, quebrados e fragmentos (4,23%); seixos polidos para formar artefatos, geralmente cortantes e muitas vezes com entalhes laterais para encabamento, inteiros, quebrados e fragmentos (1,20%). Os prismas, juntamente com os blocos – estes mais raros – constituem 23,64% do total, sendo representados por grupos de prismas naturais quebrados (17,81%); lascas de prismas (23,94%); refugos naturais (41,75%); artefatos reconhecíveis inteiros, quebrados, fragmentos, refugos de produção (polidores 9,70%, artefatos fusiformes 9,63%, instrumentos produzidos por lascamento 8,83%, prismas polidos 0,94%, artefatos fusiformes ou prismas polidos 4,16%, instrumentos produzidos a partir de prismas, com gume numa extremidade e muitas vezes entalhes laterais 23,79%). Afora esses agrupamentos, há um artefato polido produzido sobre cristal de quartzo e um fragmento de biface em sílica microcristalina. Dentre o total de artefatos reconhecíveis coletados do sítio, os mais frequentes são aqueles utilizados para cortar ou raspar (44,67%), produzidos tanto por lascamento (14,14%), quanto por polimento – e lascamento – (30,53%), e aqueles utilizados para quebrar, esmagar ou polir (percutores 27,50%, bigornas 9,57%, polidores 8,26%). Os artefatos fusiformes correspondem a 8,19% dos vestígios, e os seixos com entalhes (pesos de rede) a 3,41%. Há ainda uma grande quantidade de seixos oxidados (8,28%), possivelmente utilizados na produção de pigmentos vermelhos. Para descrição mais detalhada e desenhos da indústria lítica, ver De Masi (1990) e Schmitz et al. (1992). A indústria de artefatos em osso, dente e concha foi analisada por Maria Heloisa Maciel de Almeida, Mônica Lacroix Wacker e Pedro Ignácio Schmitz, estando descrita em Schmitz et al. (1992). As pontas são os artefatos em osso mais comuns, geralmente produzidas a partir de ossos longos de pequenos, médios e grandes mamíferos e aves, bem como de esporões e acúleos de peixes. Elas foram classificadas em diferentes grupos relacionados aos seus modos de preensão: pontas com preensão paralela à linha da haste, 25 incluindo o grupo de pontas que envolvem a ponta da haste (1 exemplar) e o grupo de pontas embutidas na haste ou presas externamente, mas sem a envolver completamente (45 exemplares); e pontas com preensão oblíqua à linha da haste (13 exemplares). Nestes números não estão incluídas as 50 pontas associadas ao sepultamento 29. Afora as pontas, existem alguns ossos longos de mamíferos terrestres e aves com marcas de cortes que parecem decorrentes da produção de artefatos como as pontas; fragmentos de ossos de cetáceos entre 4,5 e 21 cm com alteração antrópica (dois artefatos que se parecem com facas junto ao sepultamento 36, dois casos com marcas de corte ou percussão, um fragmento com um dos lados polido como base para moer ou esmagar, e alguns casos que apresentam as extremidades seccionadas por corte); e ossos perfurados, estes mais raros (uma vértebra de peixe junto ao crânio do sepultamento 53, duas vértebras de peixe junto ao braço direito do sepultamento 36, um disco intervertebral de mamífero marinho com perfuração perto da borda e outro com perfuração central, um fragmento de costela perfurado em uma das extremidades). Quanto aos dentes perfurados, há dois dentes de capivara polidos em ambas as extremidades e perfurados perto da extremidade distal; dois dentes de cação mangona com a placa basilar desgastada, um deles com depressão na mesma; e quatro dentes de porco-do-mato dos quais pelo menos dois apresentam pequenos pontos de desgaste artificial na face interna distal, estando um deles associado ao sepultamento 18. As conchas foram utilizadas principalmente na produção de adornos, sendo as bivalves recortadas em pequenas rodelas com bordas polidas e perfuração central, combinadas em adornos que contém de 11 a 738 contas; e os gastrópodes perfurados no ápice, formando adornos independentes ou parte dos adornos de bivalves, variando entre 1 e 30 contas por peça. Há apenas um caso de molusco com perfuração no alto de uma voluta, associado ao sepultamento 27. Para mais detalhes e imagens da indústria em ossos, dentes e conchas, ver Schmitz et al. (1992). Os restos faunísticos foram identificados por André Luis Jacobus e Marta Gazzaneo, estando especificados e quantificados em Schmitz et al. (1992). De acordo com esses autores, contudo, o material analisado não corresponde à totalidade de material da área escavada, nem mesmo à quantidade presente em uma única quadra do sítio, uma vez que 26 não passou por coleta sistemática. Dentre o material coletado e analisado, foram identificadas 13 espécies de mamíferos, 8 de aves, 2 de répteis, 14 de peixes, 13 de moluscos bivalves, 10 moluscos gastrópodes e, também, equinodermos. O sítio também conta com diferentes tipos de estruturas, descritas em Rohr e Andreatta (1969), Rohr (1974) e Schmitz el al. (1992). As fogueiras são as mais frequentes, sendo que duas delas possuem em torno de 2 m de diâmetro, estão localizadas na porção central da área escavada em 1969 e apresentam longa duração, começando nos níveis mais profundos e persistindo até níveis mais recentes – de 200 cm a 130 cm e de 140 cm a 90 cm. As demais fogueiras, menores, possuem em torno de 50 cm de diâmetro, e estão distribuídas ao longo de toda a área escavada em 1969. Em geral, as fogueiras parecem ter sido iniciadas como buracos no solo revestidos de argila e ocre, e são repletas de carvão, material lítico, ósseo e restos faunísticos em seu interior. É mencionada também a presença de cinco estruturas às quais Rohr e Andreatta (1969) e Rohr (1974) se referem como “núcleos de ocre”, que seriam blocos compactos de hematita com presença de fragmentos de limonita, bolotas de argila, carvão, cinzas, restos faunísticos calcinados e fragmentos de rocha. Para Rohr (1974), poderiam se tratar de “fornos polinésicos”; já Schmitz et al. (1992) pensam que são vestígios de fogueiras que podem ter sido parcialmente removidas por sepultamentos posteriores, inclusive para utilização do material corante. Ocorrem ainda agrupamentos de seixos e pedras, para os quais os autores mencionados não aventam uma função, mas que parecem estar associadas aos sepultamentos. Aliás, em geral, todas as estruturas mencionadas se situam próximas aos sepultamentos, parecendo estar associadas aos contextos funerários, e, embora em muitos casos estejam em área de grande concentração de sepultamentos, raramente se sobrepõem ou são sobrepostas por eles. O sítio Armação do Sul vem sendo entendido por De Masi (1990) e Schmitz et al. (1992) como um sítio de habitação com choupanas que estariam dispostas no entorno das duas grandes fogueiras centrais, estando os sepultamentos no interior ou ao redor dessas habitações. Não há, contudo, qualquer evidência arqueológica que remeta à existência dessas choupanas, pelo contrário: penso que a forma como se distribuem espacial e 27 estratigraficamente as diferentes estruturas do sítio, bem como o material ósseo, lítico e faunístico, dá margem para considerarmos o sítio Armação do Sul – ou pelo menos sua porção escavada em 1969 e parte da área de 1974, onde estão os sepultamentos – como um sítio funerário, assim como se vem entendendo alguns dos sítios conchíferos catarinenses (DeBlasis et al. 2007; Bendazzoli 2007; Klökler 2008; Villagran 2010; DeBlasis, Farias e Kneip 2014 – no prelo). As estruturas de combustão e de pedras e a quase totalidade do material faunístico e da indústria sobre ossos, dentes e conchas aparecem em estreita relação espacial com os sepultamentos. E embora o material lítico se distribua em toda a área do sítio – com diferenças conforme o tipo de material – as maiores concentrações estão nas áreas de sepultamentos. Antes de finalizar essa breve apresentação do sítio Armação do Sul, devo lembrar que ele é um sítio com características especiais dentro do quadro arqueológico conhecido para o litoral central, características estas que lhe conferem um caráter ambíguo e, portanto, dificultam sua classificação dentro das categorias de sítios litorâneos que habitualmente são utilizadas. Ele não é o que costumeiramente se denomina sambaqui, devido a pouca quantidade de conchas e pequena espessura da camada arqueológica e, embora se assemelhe a sítios como Tapera e Base Aérea – tendo sido considerado um “sítio raso de sepultamentos” por Rohr (1984) e, talvez, podendo ser em alguns aspectos entendido como um dos “montículos ictiológicos” de Villagran (2012) – tampouco se enquadra junto a eles, uma vez que possui datação mais recuada e não apresenta cerâmica. Devo ainda mencionar que Rohr, segundo informação pessoal concedida a Walter Neves (1988:45), não descarta a possibilidade de o sítio se tratar de um sambaqui em fase inicial de formação. No estado atual do nosso conhecimento sobre os sítios litorâneos de Santa Catarina, os únicos outros casos desse tipo são o sítio Rua do Papagaio, em Bombinhas, que se assemelha ao sítio Armação do Sul, porém possui datação muito mais recuada (informação pessoal de Andrea Lessa); o sítio Içara, no litoral sul, com datação de 1.160 ± 50 AP (Schmitz et al. 1999) e entendido como um cemitério litorâneo de uma população 28 interiorana (Izidro 2001); e o sítio Pântano do Sul (Rohr 1977), situado em Florianópolis, de caráter misto: em uma das extremidades, configura-se como sambaqui, porém, por baixo deste, continua uma camada arqueológica de 2 m de espessura datada em 4515 anos A.P. e que vai até as dunas, configurando-se como sítio raso. Em seu estudo de paleogenética, Neves (1988) sugere que a população associada ao sítio Armação do Sul seria biologicamente diferenciada das demais séries provenientes de sítios conchíferos sem cerâmica do litoral central. Assim como em sua pesquisa a série do litoral central mostrou-se biologicamente distanciada das demais num contexto litorâneo regional sul brasileiro, a série do sítio Armação do Sul mostrou-se biologicamente distanciada num contexto litorâneo local centro catarinense, sugerindo a presença de dois grupos distintos em termos de morfologia craniana nessa porção litorânea em tempos anteriores ao aparecimento da cerâmica. Okumura (2008), no entanto, não observou essa diferença: a série feminina – assim como a série feminina do sambaqui Praia Grande – realmente aparece como outlier dentre os outros sítios do litoral central; a série masculina, contudo, apresenta-se totalmente integrada às dos demais sítios. 29 Figura 14: A escavação do sítio Armação do Sul, sendo A) Sepultamentos 55 e 56, na areia marrom escura, e sepultamento 57, na areia marrom clara; B) Sepultamentos 8, 9, 14, 15 e 18, na transição entre a camada de areia marrom e escura e a de terra preta; C) Sepultamentos 38 e 40, junto a grande agrupamento de pedras; D) Sepultamento 28, com “núcleo de ocre” de um lado e fogueira do outro; E) Vista parcial da área escavada em 1969; F) Vista parcial da área escavada em 1974; G) Perfil da área escavada em 1974; H) Vista parcial da área onde se situa o sítio – à esquerda da foto está o local escavado em 1969, no centro, terreno no qual não foi permitido escavar, e, à direita, está o local da escavação de 1974. Fotos de João Alfredo Rohr. Acervo do Museu do Homem do Sambaqui. .João 30 1.3 Sítios conchíferos: uma perspectiva de longa duração A Arqueologia dos sítios litorâneos pré-coloniais de Santa Catarina vem tradicionalmente envolvendo o estudo de três grupos considerados culturalmente distintos, comumente associados a três categorias de sítios distanciadas cronologicamente e consideradas igualmente distintas: grupos associados aos sambaquis, com datações entre aproximadamente 6.500 AP e 1.300 AP; grupos da família linguística Jê, associados a sítios conchíferos rasos ou horizontes superficiais em sambaquis com presença de cerâmica da tradição pronapiana Taquara ou Itararé, com datações em torno de 1.300 AP e 600 AP 4; e grupos da família linguística Tupi-Guarani, associados a sítios com presença de cerâmica da tradição Guarani, apresentando datações que vão, aproximadamente, de 600 AP até o período colonial (Silva et al. 1990, De Masi 2001, Bandeira 2004, Fossari 2004, DeBlasis et al. 2007, Giannini et al. 2010, Milheira 2010). Transitando com suas características cambiantes entre as fronteiras conceituais dos sambaquis e dos sítios conchíferos com cerâmica, o sítio da Armação do Sul desafia as categorizações dos arqueólogos. Sua ambiguidade confere fluidez a um quadro engessado, e evidencia a continuidade num momento de mudança no registro arqueológico litorâneo que geralmente é entendido somente em termos de descontinuidade ou de blocos estruturais que se sucedem no tempo. O reconhecimento da existência de continuidade em meio às descontinuidades insere o sítio numa perspectiva de longa duração (Braudel 2005), perspectiva esta que entende sambaquis e sítios conchíferos com cerâmica como pertencentes a uma mesma e única categoria, “sítios conchíferos”, aglutinadora de todos os sítios litorâneos com presença não negligenciável de conchas. Eu poderia aqui utilizar-me das categorias desenvolvidas por Gianinni et al. (2010) e Villagran (2012) para os sítios litorâneos do sul do Estado com base no padrão 4 Desde que Chmyz (1967, 1968) estabeleceu a tradição Itararé e apontou para a semelhança entre a cerâmica desta tradição e aquela produzida pelos indígenas Kaingáng aldeados em Palmas, no Estado do Paraná. 31 estratigráfico – padrão conchífero, núcleo quartzo-arenoso e montículos ictiológicos5 – e assumir continuidade entre elas. Uma vez, no entanto, que o contexto dos sítios do litoral sul se difere do contexto do litoral central em diversos aspectos, e que os sítios do litoral central nunca passaram por estudos aprofundados do ponto de vista da estratigrafia que permitissem estabelecermos comparações, penso não ser possível estender essa categorização à porção central. Pensar em “sítios conchíferos” não implica dizer que uma mesma e única população ocupou o litoral catarinense ao longo desses 6.000 de história, nem desconsiderar as diferenças sincrônicas e diacrônicas que, de fato, existem na morfologia, na estratigrafia, textura e aspectos da cultura material em geral, mas evitar que tais diferenças sejam transformadas em barreiras culturais intransponíveis. Pensar em “sítios conchíferos” é desvelar as continuidades existentes em meio às descontinuidades e fazêlas prevalecer. É aproximar os diferentes sítios numa intersecção de conchas – em maior ou menor quantidade –, peixes como principal fonte de subsistência, implantação em ambientes estuarinos e, ainda, semelhanças na indústria lítica, óssea e práticas mortuárias; intersecção esta que, aparentemente, vem a findar somente com o predomínio de sítios associados a grupos Guarani. Cabe mencionar, também, que a ideia de “sítios conchíferos” não encerra qualquer pretensão de se tornar um modelo. Trata-se de uma ferramenta, desenvolvida no âmbito desta dissertação, para que o pressuposto de continuidade entre os sítios conchíferos sem e com presença de cerâmica possa ser trabalhado sem a interferência do pressuposto da diferença que se faz constante na literatura e que acaba sendo veiculado pelos termos mais comumente utilizados como “sambaqui”, “sítio raso”, “assentamento” ou “acampamento” – sendo estes dois últimos ainda mais problemáticos por carregarem também atribuição de funções que nunca foram de fato comprovadas para os ditos sítios 5 Padrão conchífero: caracteriza-se pela presença de interestratificação entre lâminas conchíferas centimétricas a decimétricas e lâminas mais delgadas de sedimentos pretos; pode eventualmente estar coberto por camada arenolamosa preta, de espessura decimétrica a métrica (ex. Jabuticabeira II). Núcleo quartzo-arenoso: caracteriza-se por estratigrafia aparentemente simples, formada por núcleo quartzoarenoso monticular, maciço, e capa decimétrica de areia com conchas, muitas vezes lamosa e rica em matéria orgânica (ex. Encantada III e Carniça III). Montículo ictiológico: caracteriza-se por misturas maciças ou mal estratificadas de areia com conchas e ossos em grande parte queimados, fragmentos líticos – e às vezes cerâmicos – e carvão (ex. Galheta IV e Costão do Ilhote) (Giannini et al. 2010:111, Villagran 2012:82). 32 rasos. Nota-se que tanto a ideia de diferença quanto a ideia de continuidade são, apenas, pressupostos, com a diferença de que aquela se encontra mais consagrada na literatura do que esta última. A ideia de continuidade entre os diferentes tipos de sítios conchíferos, contudo, nada tem de novidade. Determinismo ecológico à parte, Rohr (1977: 89) já havia colocado que todos os sítios rasos de sepultamento até então estudados por ele no litoral catarinense, como Armação do Sul, Itacoara, Balneário das Cabeçudas, Base Aérea e Tapera, “apesar de não serem sambaquis, pertencem à cultura sambaquiana. Os homens construtores dos sambaquis, vindo a faltar-lhes as conchas, devido a mudanças ecológicas, dedicavam-se, predominantemente, à pesca e à caça”. Mais do que mera especulação, essa ideia possui dados em seu favor, apresentados em estudos diversos e, inclusive, aqui nesta dissertação. A partir de análises estratigráficas, composicionais e micromorfológicas, Villagran (2012) constatou que há permanência no processo de formação dos dois montículos ictiológicos por ela analisados – ambos com presença de cerâmica – em relação ao processo de formação dos sambaquis conchíferos. A única e maior diferença está no material utilizado para a formação desses sítios, conchas no caso dos sambaquis conchífero e ossos de peixe no caso dos montículos ictiológicos, o que faz a autora concluir que ambos os tipos de sítios teriam sido formados por uma mesma população – transformada pela intensificação no contato com grupos Jê (Villagran 2012:406). Estudos de paleogenética sugerem afinidade biológica entre populações de sítios com e sem cerâmica do litoral norte e, principalmente, do litoral central de Santa Catarina (Okumura 2008:193), enquanto análises isotópicas de estrôncio mostram que os indivíduos sepultados nos sítios conchíferos Tapera e Forte Marechal Luz – ambos com presença de cerâmica – são, em sua maioria, locais, embora na Tapera haja uma variação maior entre as assinaturas de estrôncio das mulheres (Bastos 2014) e no Forte Marechal Luz tenham despontado três indivíduos não-locais, dois deles no horizonte cerâmico do sítio e um no horizonte sem cerâmica (Bastos 2009). Algumas pesquisas vêm, inclusive, mostrando haver continuidade na paleodieta das populações litorâneas, que teriam mantido uma dieta predominantemente marinha após o 33 aparecimento da cerâmica (Bandeira 1992; Figuti 1993; Klökler 2001; De Masi 2001, 2009), sem modificação também no consumo de alimentos amiláceos em termos de presença e quantidade (Wesolowski 2007). A própria cerâmica, ao que parece, estava sendo utilizada principalmente no processamento de alimentos marinhos (Hansel 2006, Colonese et al. 2014) e, não, como se vinha pensando, na implantação da “revolução neolítica”. E não se trata apenas de continuidade e mudança: como veremos mais à frente, os dados apontam para fluidez e complexidade; para diferentes ritmos de permanência e mudança que são desvelados conforme o olhar empregado, a escala temporal e espacial escolhida e o material analisado. A longa duração pode ser a perspectiva privilegiada do arqueólogo, como bem colocou Hodder (2009 [1987]), mas, é claro, está longe de esgotar a multiplicidade de escalas analíticas possíveis – e, menos ainda, os regimes de temporalidade vividos pelas sociedades estudadas, difíceis de serem acessados a partir do registro arqueológico. A própria noção braudeliana de longa duração está atrelada a uma ideia de temporalidade baseada em tempos múltiplos, expressos em três elementos que coexistem entre continuidades e descontinuidades: o evento, a conjuntura e a estrutura. Segundo Braudel (2005[1992]:45-49), o evento (curta duração), é explosivo e “com sua fumaça excessiva enche a consciência dos contemporâneos, mas não dura, vê-se apenas sua chama”; a conjuntura (média duração) é uma medida mais ampla, que envolve os eventos em ciclos ou interciclos; e a estrutura (a longa duração) é uma realidade que o tempo veicula longamente, uma coerência que, em alguns casos, pode atingir inúmeras gerações. A estrutura braudeliana corresponde a uma realidade que o tempo tende a preservar, e não a modificar. Essa superação do indivíduo e do evento, contudo, não significa sua negação. A despeito da limitação à ação, imposta pela tendência estrutural, o indivíduo possui uma liberdade relativa: dentro dos limites estruturais ele pode exercer sua autonomia e fazer a história, da mesma forma que a história o faz (Reis 1994). A noção de tempo de Braudel constitui-se de durações solidárias umas às outras, de tempos múltiplos, pluridirecionados, onde sobre as permanências ocorrem mudanças mais e menos lentas (Braudel 2005[1992]:72). 34 No âmbito desta pesquisa, a escolha pela longa duração é uma escolha de ponto de vista e é uma escolha contingente; uma opção por uma escala temporal feita a partir de uma problemática específica. E um ponto de vista que é tomado apenas como ponto de partida, como porta de acesso a outras possíveis escalas temporais. Como ponto de vista, a longa duração converte diferença em transformação. O reconhecimento de alguma continuidade histórica em meio às descontinuidades – que não necessariamente representa continuidade genética, podendo também se dar por meio de tradições e percepções de mundo compartilhadas – altera completamente a maneira de tratar os dados e interpretá-los, e aquilo que era diferença estatisticamente significativa vira mudança significativa, aquilo que era incomparável torna-se comparável. Antes de refletir sobre a relação entre os diferentes sítios conchíferos e investigar a mudança no registro arqueológico do litoral catarinense, é preciso reconhecer que tal relação existe. É preciso assumir uma continuidade histórica para, então, poder pensar a mudança como um processo que se dá multidimensional e contextualmente, na articulação local de inúmeros fatores internos e externos. A longa duração pressupõe uma sociedade que se transforma no tempo, e não a chegada massiva de uma população distinta à costa que a substitui por completo. Com essa perspectiva inicial, é possível dar um novo tom à forma como se pensa a mudança no registro arqueológico da costa catarinense e, a partir daí, expandir as possibilidades interpretativas. Outros autores trabalham com a ideia de estruturas duradouras que se mantêm ao mesmo tempo em que mudam, como Bourdieu (2011[1967]) e Sahlins (2011[1985]), mas a perspectiva exclusivamente diacrônica de Braudel me parece mais adequada nesse momento inicial de estabelecer a continuidade histórica entre os sítios conchíferos. Mais à frente, quando chegar o momento de pensarmos os mecanismos de mudança, aí a estrutura Braudel se fará insuficiente e Bourdieu e Sahlins ganharão voz. É com a longa duração braudeliana em mente, então, que vamos dar sequência a esse começo de dissertação. 35 2 Coisas que mudam: mudanças regionais e mudanças locais nos sítios conchíferos catarinenses . Por volta de 2.000 A.P., ocorre uma mudança aparentemente repentina nos padrões deposicionais de diversos sítios conchíferos, período em que passam a ser formados por um sedimento escuro com enorme quantidade de carvão e outros materiais orgânicos. No momento seguinte, a partir de 1.500 A.P., começa a aparecer cerâmica nos horizontes superficiais de alguns sambaquis e em sítios conchíferos rasos, cerâmica esta que costuma ser atribuída a grupos da família linguística Jê. Em um olhar retrospectivo que tenta englobar 5 mil anos de história num único e distanciado instante de apreciação, essas são as mudanças mais perceptíveis no contexto de sítios conchíferos do litoral catarinense. São as mudanças que costumam ser tomadas como ponto de virada, encerrando um longo período de aparente “estabilidade” nas características dos sítios conchíferos e dando início a um novo momento, mais curto, que ninguém ainda sabe ao certo o que significou. Essa, contudo, é apenas uma das várias formas de ver as coisas, na qual a mudança é inferida a partir de elementos facilmente visíveis no registro arqueológico, a partir de um olhar nu e distante que evidencia; é a percepção de apenas uma dentre as várias dimensões através das quais a mudança pode se manifestar. Imagino que a apreensão deste mesmo registro arqueológico sob outros olhares – em geral mais aproximados – pode gerar outras percepções de mudança, e que se essa apreensão for feita a partir de mais de um olhar ao mesmo tempo poderá revelar o caráter multidimensional e complexo das mudanças e permanências pelas quais passaram as populações associadas aos sítios conchíferos catarinenses. 36 2.1 Tecnologia Afora o aparecimento da cerâmica, a tecnologia associada aos sítios conchíferos – em termos de indústria lítica e óssea – apresenta uma aparente continuidade ao longo do tempo, permeada por algumas variações muito sutis que só se fazem perceptíveis a partir de um olhar mais aproximado. Embora combinem elementos diferentes em sítios distintos, essas variações estão geralmente relacionadas a um aumento na diversidade da indústria óssea que, com o tempo, ganha também um aspecto mais “elaborado”. Nishida (2007:84), por exemplo, observou que a camada de terra preta do sítio Jabuticabeira II, situado no litoral sul, apresenta artefatos em osso mais rebuscados com relação ao resto do sítio, como uma placa polida possivelmente em osso de tartaruga, argolas e pontas. No sítio Forte Marechal Luz, no litoral norte, as bipontas que aparecem no fim da camada conchífera (zona IV), pouco antes da mudança para o sedimento escuro (zona V), tornam-se mais frequentes nas camadas ainda mais recentes (zonas VI e VII), que apresentam cerâmica. Já os anzóis e dentes de tubarão – trabalhados com perfurações e raízes alisadas ou não –, aparecem pela primeira vez somente na camada da mudança para o sedimento orgânico escuro (zona V), e se tornam mais frequentes nas camadas com presença de cerâmica (zonas VI e VII) (Bryan 1993 apud Wesolowski 2007:53). Ainda no litoral norte, o sítio Enseada I conta com uma indústria óssea mais diversificada e elaborada no horizonte cerâmico, no qual se destaca a ocorrência de anzóis, exclusivos dessa camada. Pontas, bipontas, adornos, dentes e vértebras perfuradas ocorrem nas duas camadas, porém com um aumento de frequência no horizonte cerâmico – com exceção das pontas, que passam a aparecer em menor quantidade (Beck 2001[1972], Fossari 1985). No litoral central, após revisitar as coleções referentes às escavações de Rohr nos sítios conchíferos sem cerâmica do Pântano do Sul, Laranjeiras I e Armação do Sul, e nos sítios conchíferos com cerâmica da Tapera, Laranjeiras II e Cabeçudas, Schmitz (1996:185) concluiu que eles partilham uma mesma indústria lítica, com continuidade “[...] no uso da matéria-prima, na tecnologia de produção, na morfologia e no uso inferido”, embora isso 37 não queira dizer “que não existem diferenças de um sítio para o outro, decorrentes, possivelmente, da duração destes e da história de cada um”. A indústria óssea também se apresenta semelhante em todos os sítios, formada principalmente por pontas ósseas e dentes de seláquios e mamíferos, porém a frequência desse material parece aumentar nos sítios cerâmicos, que guardam também algumas especificidades de tipo e técnica, como a ocorrência de anzóis (com exceção da Tapera), pontas pedunculadas com aletas e dentes de seláquios com duas perfurações. Uma mudança interessante com relação às indústrias líticas e ósseas dos sítios conchíferos é o surgimento de esculturas zoomórficas (zoólitos e zoósteos) em sítios que, por suas datações situadas principalmente em torno de 4.500 A.P. e 3.000 A.P., representam o momento de expansão demográfica e geográfica das populações associadas aos sítios conchíferos. A partir de 3.000 A.P. esse tipo de artefato se torna raro, com ocorrência somente em um sítio de 2.750 ± 250 A.P. (Matinhos/PR), e aí desaparece de vez do registro arqueológico (Gomes 2012). Quanto à cerâmica, sua primeira ocorrência no registro arqueológico litorâneo se dá em 1390 ± 40 A.P., no sítio Enseada I (litoral norte), continuando a aparecer até mais ou menos 600 A.P., momentos antes de surgirem os primeiros sítios Guarani na costa. O litoral central conta com mais de 17 sítios conchíferos com presença de cerâmica – número estimado para a Ilha de Santa Catarina (Fossari 2004), e que, portanto, aumenta ao serem consideradas as ilhas adjacentes e o continente – 10 no litoral norte (Bandeira 2004) e 5 no litoral sul (Farias e Kneip 2010). Essa cerâmica, no litoral central, ocorre tanto em sítios conchíferos rasos quanto nos horizontes mais superficiais de alguns sambaquis, porém no litoral norte e sul aparece mais frequentemente nos horizontes superficiais dos sambaquis. O aparecimento da cerâmica é uma dessas mudanças facilmente visíveis, e que tende a ser considerada com ponto de virada fundamental, em parte por sua evidenciação clara no registro arqueológico, mas, também, pela possibilidade de estar relacionada a assuntos que nos são caros, e caros à Arqueologia desde seu surgimento, e que sempre serviram como referência para as classificações e periodizações feitas – desde os períodos paleolítico e neolítico até as tradições Umbu e Humaitá. São eles: o surgimento da 38 agricultura e da complexidade social, que costumam aparecer atrelados um ao outro (Childe 1975[1936]) e que, claro, têm a ver com aquilo que julgamos importante para o florescimento de nosso muito estimado mundo moderno ocidental, segundo uma tradição irrecuperavelmente narcisista. No caso do litoral de Santa Catarina, a ideia de que a cerâmica estaria associada ao início de práticas de cultivo na costa ganha força com sua frequente associação a grupos Jê, o que vem sendo feito desde que Chmyz (1967, 1968), ao final da década de 1960, estabeleceu a tradição Itararé e apontou para a semelhança entre a cerâmica desta tradição e aquela produzida pelos indígenas Kaingáng aldeados em Palmas, no Estado do Paraná – até então, essa cerâmica litorânea permanecia sem qualquer filiação cultural, sendo considerada, simplesmente, como não pertencente à cultura Guarani (Schmitz 1959). Esses grupos Jê, vindos do interior, teriam entrado em contato com as populações litorâneas e, quiçá, se estabelecido no litoral, difundindo a cerâmica e, com ela, a “revolução neolítica” – ou pelo menos parte dela. Mesmo quando não é associado ao início de práticas de cultivo pela literatura, o aparecimento da cerâmica acaba por ser associado a outras mudanças diversas no modo de vida das populações litorâneas, geralmente relativas ao contato com estes grupos do planalto e/ou à sua fixação na costa. Os dados apresentados nesse capítulo e que serão apresentados nos próximos, contudo, mostram que a cerâmica talvez não tenha sido uma grande condicionadora de mudanças, e que – no caso da dieta – parece ter sido utilizada mais na manutenção do que na mudança da dieta dessas populações litorâneas, embora possivelmente tenha levado a mudanças em elementos gerais da alimentação como o preparo, o processamento e o transporte de alimentos. Por esse motivo, tento aqui desprovê-la da importância que costuma assumir, conferindo o mesmo peso e lugar de destaque a todas as mudanças observáveis do registro arqueológico dos sítios conchíferos catarinenses. 39 2.2 Padrão deposicional Eis a outra grande mudança facilmente visível nos sítios conchíferos que, antes formados principalmente por conchas, passam a ser formados, entre 2.000 e 1.500 A.P., por um sedimento escuro com muita matéria orgânica e ossos de peixe, chamado também de terra preta. Tal mudança no regime deposicional é perceptível nas camadas superficiais que recobrem os sambaquis, mas, também, diretamente sobre o chão, com o aparecimento de sítios conchíferos rasos com e sem presença de cerâmica compostos predominantemente por esse sedimento escurecido. Por vezes, essas camadas de terra preta e sítios rasos foram entendidos como um momento em que a falta de moluscos, causada por mudanças ambientais ou pelo esgotamento devido à exploração antrópica, teria levado as populações litorâneas a dedicarem-se mais à pesca do que à coleta de moluscos – embora hoje saibamos que a pesca sempre foi a principal atividade dessas populações litorâneas em termos de dieta (Bandeira 1992, Figuti 1993, Klökler 2001). E até recentemente, foi entendida também como resultante de atividades domésticas, relacionadas às tão procuradas áreas de habitação dos sambaquis. Olhares zooarqueológicos (Nishida 2007), arqueoestratigráficos (Bendazzoli 2007) e sedimentológicos (Villagran 2008) sobre a camada de terra preta do sítio Jabuticabeira II, contudo, mostraram que aquilo que num olhar distanciado e segundo uma descrição física parecia uma grande mudança, num olhar mais aproximado, por vezes em escala microscópica, significava também continuidade: o padrão construtivo de formação de montículos associados aos sepultamentos, observável na camada conchífera, permanece ao longo da camada de terra preta, com manutenção também no uso de restos faunísticos como material construtivo. A diferença principal está na troca das conchas pelos ossos, em geral de peixes. No sítio Jabuticabeira II, a camada de terra preta propriamente dita possui datação de 1.540-1.330 anos cal AP (Beta 228506), e é precedida por uma camada marrom com sedimento escuro e ossos de peixes, de datação 1.990-1.710 anos cal AP (Beta 228507). Enquanto na terra preta os componentes faunísticos e vegetais estão completamente 40 carbonizados, na camada marrom esses vestígios não foram queimados, conservando sua cor natural com apenas uma leve alteração (Nishida 2007). De acordo com Villagran (2008), o aspecto enegrecido da camada de terra preta teria resultado da combinação de componentes naturais e culturais, representados em mais de 50% pelas areias terrígenas quartzosas oriundas de depósitos paleolagunares e, de resto, pelos vestígios faunísticos e carvões. Estes últimos, os carvões, seriam fruto da queima intencional dos resíduos alimentares – que em muitos casos alcançaram o estado de carbonização e calcinação – e, também, de madeira e outros materiais vegetais indicados pela análise de fitólitos, possivelmente utilizados como combustível para as fogueiras. Todos estes componentes, naturais e culturais, após serem preparados conjuntamente em outro local, teriam sido depositados sobre o sítio por um agente antrópico, o que é indicado por sua presença conjunta e misturada no depósito arqueológico. O lançamento de novos olhares sobre a terra preta do sítio Jabuticabeira II mostrou que essa camada representa uma continuidade no simbolismo e na dinâmica ritual que caracterizou o sítio Jabuticabeira II desde o início de sua formação, numa ritualização dos componentes da vida doméstica em torno do ritual funerário (Villagran 2008); não se tratando, como um dia se pensou, de uma área de habitação. Em busca pelos motivos da mudança no material utilizado na formação do sítio, Nishida (2007) verificou que o tamanho e idade dos moluscos que estavam sendo coletados pela população associada ao sítio Jabuticabeira II não diminuíram ao longo da estratigrafia – o que aconteceria no caso de uma superexploração dos bancos de moluscos –, e que a mudança se deu de forma excessivamente brusca para que estivesse acompanhando uma mudança ambiental, concluindo que a alteração no padrão deposicional estaria muito mais relacionada a fatores culturais do que ambientais. Recentemente, Villagran (2012) constatou a ocorrência desse mesmo padrão em sítios conchíferos com presença de cerâmica, chamados por ela de “montículos ictiológicos”. Análises estratigráficas, composicionais e micromorfológicas nos sítios Santa Marta VIII e Galheta IV revelaram evidências de continuidade no processo de formação desses sítios com relação ao processo de formação observado nos sambaquis, embora as 41 conchas, antes principal material construtivo, tenham sido substituídas por ossos de peixe. A cerâmica, em meio a essa manutenção ritual, torna-se uma pequena descontinuidade em meio ao que parece ser uma continuidade estrutural. Cabe lembrar que os estudos citados foram realizados em sítios do litoral sul de Santa Catarina e, portanto, os resultados obtidos não necessariamente podem ser estendidos às demais porções litorâneas, embora tudo indique que isso se trate, sim, de algo que se deu em escala regional: diversos sítios do litoral norte e central, numa observação superficial, também apresentam camadas superficais formadas por terra preta nesse mesmo momento cronológico. Quanto aos sítios conchíferos rasos com e sem cerâmica do litoral central, por serem rasos e apresentarem sedimento mais escuro, com muita matéria orgânica e ossos de peixe, eles às vezes são entendidos como áreas de habitação associadas a populações focadas na pesca, e não, na coleta de moluscos. Aldeias em que os mortos seriam enterrados no interior do espaço domiciliar ou em cemitérios contíguos às moradias (Rohr 1977, Silva et al. 1990, De Masi 1991, Schmitz et al. 1992). Essas interpretações são semelhantes àquilo que se costumava pensar da camada de terra preta do sítio Jabuticabeira II antes de ela ser estudada mais detalhadamente por Nishida (2007), Bendazzoli (2007) e Villagran (2008), o que se explica pela semelhança que, numa descrição visual, esses sítios rasos guardam com as camadas mais escuras, marrons e de terra preta, dos sambaquis: segundo Rohr, eles seriam compostos de “restos de cozinha: húmus, carvão vegetal, conchas, ossadas de peixes e de outros animais e o mais variado material arqueológico, análogo ao encontrado nos sambaquis”. Não é possível, contudo, extrapolar com convicção os resultados encontrados para a terra preta – com relação à composição do sedimento e à continuidade na dinâmica ritual associada aos montículos – aos sítios conchíferos rasos, uma vez que eles não foram alvo de estudos detalhados que permitam esse tipo de inferência. Alguns dados, no entanto, permitem que pensemos na possibilidade de uma correlação, pelo menos com relação à dinâmica de rituais funerários intimamente associados aos restos faunísticos que caracteriza a formação das camadas escuras dos sambaquis. São eles: as datações mais tardias que os sítios rasos apresentam, sendo em 42 muitos casos contemporâneos às camadas de terra preta dos sambaquis e aos montículos ictiológicos do litoral sul; o fato de apresentarem sempre uma grande quantidade de sepultamentos; e a forma como, no caso do sítio da Armação do Sul, as maiores concentrações de material arqueológico aparecem sempre acompanhando os sepultamentos – o que já foi demonstrado no primeiro capítulo. 2.3 Contato e mobilidade É verdade que objetos podem se deslocar sozinhos, mas dificilmente serão capazes de, sozinhos, cobrirem grandes distâncias e atravessarem os contrafortes serranos em direção ao litoral e, muito menos, em direção ao planalto. Para que artefatos como esculturas zoomórficas, ou alimentos como pinhão se desloquem do litoral para a serra e da serra para o litoral, algum indivíduo dotado de pernas, intenção e muita disposição deve tê-los carregado consigo. Mesmo que adquiridos por troca, alguém deve ter migrado. As evidências de contato interétnico e mobilidade no registro arqueológico podem facilmente se misturar, uma vez que tanto um fator quanto o outro podem ser responsáveis pelo deslocamento de objetos para longe de suas áreas de ocorrência costumeiras. A partir do momento em que há contato entre populações de áreas distintas, tem-se também possivelmente algum tipo de mobilidade, embora a ocorrência de mobilidade para além das áreas de ocupação tradicionais não signifique necessariamente que tenha havido contato. É claro, também, que nem todo contato resulta em trocas de cultura material, o que faz com que esse tipo de acontecimento por vezes se torne invisível no registro arqueológico e, portanto, aos olhos do pesquisador. A literatura arqueológica relacionada aos sítios conchíferos está repleta de evidências – em geral fortuitas – de contato e/ou mobilidade caracterizada por grandes deslocamentos no espaço mostrando que, embora as populações do planalto e do litoral permanecessem em suas regiões de origem ao longo do ano (De Masi 2001), artefatos, matérias-primas, alimentos e pessoas estavam em movimento, atravessando serras e 43 fronteiras entre o litoral e o interior, encosta e planalto, e também entre diferentes partes do litoral. Essas evidências não se fazem suficientes para indicar variações na forma como as migrações e relações de contato – em termos de atores envolvidos, intensidade e tipo de relação – foram empreendidas ao longo do tempo; indicam-nos, contudo, que a migração e/ou o contato sempre aconteceram, pelo menos desde os tempos em que ainda eram produzidos zoólitos até os momentos mais tardios. Comecemos pela cerâmica. Possivelmente surgida na costa por volta de 1.300 A.P., é tradicionalmente atribuída a grupos da família linguística Jê (Chmyz 1967, 1968), sugerindo contato das populações litorâneas com esses grupos do interior. Pontas líticas que se enquadram na tradição Umbu aparecem aqui e acolá por toda a faixa litorânea como ocorrências isoladas em sítios conchíferos, a exemplo das encontradas no sítio da Armação do Sul, litoral central, e da Caiera, litoral sul (Schmitz et al. 1992). Alguns sítios caracterizados pela presença de pontas e outros materiais líticos lascados também aparecem ao longo da costa catarinense (Rohr 1984), porém não sabemos se são contemporâneos aos sítios conchíferos, uma vez que ainda não foram alvo de estudos sistemáticos. No sítio conchífero Itacoara, no litoral norte, Bandeira (2004) encontrou artefatos feitos em matéria-prima proveniente de outras regiões: um peso de rede em riolito alterado, rocha que ocorre na região serrana de Campo Alegre, e um polidor em arenito, rocha que ocorre nas proximidades do planalto lageano. Nesse mesmo sítio, foram encontradas lascas em ágata, matéria-prima possivelmente proveniente do planalto, e dois virotes – na camada inferior sem cerâmica –, artefato que até então só havia aparecido em sítios do planalto (Tiburtius, Bigarellla & Bigarella 2011 [1951]). Existem, ainda, algumas ocorrências de zoólitos no planalto do Rio Grande do Sul (Gomes 2012) e, em Alfredo Wagner, último município antes do início do planalto serrano catarinense, foi encontrado um zoólito em forma de baleia, que hoje está exposto no Museu de Arqueologia de Lomba Alta. Achados inusitados, tendo em vista se tratar de um artefato que costuma ser encontrado somente em sítios conchíferos litorâneos. 44 No litoral norte, as análises que Wesolowski (2007) fez nos dentes dos indivíduos sepultados na camada com cerâmica do sítio Itacoara revelaram possíveis fitólitos de pinhão em seus cálculos dentários, indicando que ou esses indivíduos foram até o pinhão, ou o pinhão veio até eles. E se os objetos estão se movendo, as pessoas também estão. No litoral norte, Bastos (2009) evidenciou, a partir da análise de isótopos de estrôncio, a presença de três indivíduos não-locais no sítio Forte Marechal Luz, um situado em horizonte sem cerâmica e dois situados em horizonte cerâmico. Em estudo posterior, e por meio do cruzamento desses resultados com dados sobre a paleodieta dessa população, Bastos (2014) sugeriu que possivelmente esses indivíduos não-locais seriam provenientes da região da Cananéia, no litoral sul de São Paulo, ou então de alguma outra região litorânea mais próxima. Esses dados, contudo, dizem respeito somente ao sítio Forte Marechal Luz, no litoral norte. As mesmas análises foram realizadas no sítio Tapera (Bastos 2014), sítio com cerâmica do litoral central, porém não indicaram a presença de indivíduos não-locais, embora as mulheres tenham apresentado uma maior variação nas razões isotópicas que pode ser interpretada como resultante da circulação de indivíduos do sexo feminino ao longo do litoral catarinense, talvez por meio de casamentos. Os sítios do litoral sul até o momento não foram alvo de pesquisas desse tipo. Tal possibilidade levantada por Bastos (2014) para o sítio Tapera foi também observada por Hubbe et al. (2009) entre as séries cerâmicas de seu estudo de paleogenética. Essas são as evidências mais contundentes de contato disponível até o momento e se fazem extremamente significativas por confirmarem aquilo que as outras evidências já vinham indicando: o contato com populações de diferentes localidades sempre aconteceu, mesmo em tempos anteriores ao aparecimento da cerâmica na costa. E aconteceu tanto com o interior quanto com o litoral, tomando formas diferentes em diferentes locais. A cerâmica poderia, então, estar relacionada a um momento de intensificação nesse contato que sempre existiu? É o que se costuma pensar, mas isso não é indicado por qualquer dado disponível, nem tampouco por esses dados de Bastos (2009). O único argumento em favor de um papel de destaque para a cerâmica nas questões relacionadas ao contato – e à mudança em geral – é ela mesma. 45 Com isso, o contato também perde um pouco de sua grandeza. Se ele sempre aconteceu, não pode ser tomado, por si só, como um fator decisivo para as mudanças que tiveram início na costa a partir de 2.000 A.P., embora venha sendo entendido exatamente assim pela literatura pertinente. 2.4 Quantidade de sítios e cronologia Como bem nos demonstra Mendonça de Souza (2014), a paleodemografia dos sítios conchíferos é um tema bastante complexo e ainda incipiente no Brasil. Quando se trata de inferi-la de um ponto de vista bioarqueológico, a partir dos ossos, as dificuldades são muitas, a começar pelos vieses causados pelas escolhas relacionadas às práticas funerárias em si, pelos processos pós-deposicionais e pelos fatores bioculturais, que reduzem ou distorcem a representatividade das séries. Estimativas paleodemográficas indiretas, no entanto, são possíveis, e vêm tradicionalmente sendo realizadas por meio da composição das habitações, do número de assentamentos, da área dos sítios e outros dados culturais provenientes do registro arqueológico (Mendonça de Souza 2014). A esses elementos, pode também ser acrescentado o tamanho das habitações, o potencial da área para captação de recursos, a produção e consumo desses recursos por meio da quantidade de vestígios no sítio e a distribuição cronológica (Chamberlain 2006). A frequência das datas disponíveis para os materiais e depósitos arqueológicos, de acordo com Chamberlain (2006: 132), pode ser utilizada no lugar da frequência de vestígios, e as descontinuidades nas distribuições das datas podem ser interpretadas como decorrentes de mudanças na distribuição e densidade das populações ao longo do tempo. Frente às dificuldades apontadas por Mendonça de Souza (2014), atenho-me aqui a fazer uma análise superficial da frequência das datas disponíveis para os sítios conchíferos catarinenses e das flutuações na quantidade de sítios ativos ao longo do tempo. Levarei também em consideração o número de sepultamentos presentes em cada sítio, aspecto que será mais detalhadamente analisado para o litoral central. Trata-se, na verdade, de um exercício. Parto do pressuposto de que a frequência de datas, o número de sítios 46 concomitantemente ativos, bem como o número de sepultamentos encontrados ou estimados para cada um deles, deve estar, de alguma forma, relacionado à paleodemografia local, mesmo que não direta e proporcionalmente. Gráfico 1: Histograma das datações disponíveis para os sítios conchíferos catarinenses. Para a maior parte dos sítios existe somente uma datação, geralmente da base, e foram essas as datas utilizadas. Nos casos de sítios com mais de uma datação disponível, foram consideradas a mais antiga e a mais recente. Dados provenientes de Farias (2011), De Masi (2001), Duarte (1981), Rohr (1977), Hurt (1974), Fossari (2004), Bandeira (2004), Giannini (2010), DeBlasis et al. (2007) e desta pesquisa. É complicado, entretanto, fazer estimativas paleodemográficas a partir das frequências das datações no caso dos sítios conchíferos, uma vez que eles costumavam ser formados ao longo de centenas e às vezes milhares de anos, em ritmo episódico e/ou contínuo, rápido e/ou lento. A utilização de uma data por sítio – duas, no caso de existirem mais datas disponíveis – como foi feito aqui, não nos deixa entrever a quantidade de sítios ativos em cada momento. Tampouco isso seria possível com a utilização de todas as datas 47 disponíveis, uma vez que enorme quantidade de datas existentes para alguns sítios poderia distorcer o gráfico. É importante lembrar também que o litoral sul conta com 48 sítios datados, enquanto que para o litoral norte temos disponíveis apenas 19 datações e, para o litoral central, apenas 14. Essa situação de forma alguma reflete diferenças na quantidade de sítios em cada uma dessas porções litorâneas, somente a maior intensidade na realização de pesquisas no litoral sul, e com certeza enviesa qualquer tentativa de comparação entre as cronologias do litoral sul, norte e central. De qualquer forma, a análise das flutuações na quantidade de sítios ativos ao longo do tempo – dividido em períodos de 1000 anos – apresentou resultados interessantes, e me pareceu bem mais proveitosa e fiel à realidade do que a análise da frequência das datas. É perceptível nos gráficos que o número de sítios mudou ao longo do tempo, mas parece que não mudou da mesma forma nas diferentes porções do litoral catarinense. No litoral sul, a quantidade de sítios ativos aumenta paulatinamente entre 8000 e 6000 AP até chegar a um momento de aparente estabilidade entre 6000 e 4000 AP, com a manutenção de uma dezena de sítios ativos. No período entre 4000 e 3000 AP ocorre um rápido aumento nesse número, que passa de 10 para 20, sendo este o momento com maior número de sítios ativos. A partir de 3000 AP, contudo, tem início uma queda vertiginosa. Com o maior fechamento da paleolaguna de Santa Marta a partir de 1.700 A.P. o número de sambaquis concomitantemente ativos diminui consideravelmente (ver Kneip 2004 e Giannini et al. 2010) e, no momento seguinte, a partir de 1.300 A.P., permanecem ativos e/ou surgem somente três sítios, passando para quatro entre 1000 e 500 AP. A forma como se dá o crescimento no número de sítios ativos no litoral norte é bastante similar àquela observada para o litoral sul. Tendo em vista que o litoral norte conta com menos da metade da quantidade de datações disponíveis para o litoral sul, essa similaridade é, no mínimo, curiosa. A maior diferença parece estar no rápido crescimento após o período de estabilidade que, no litoral norte, não é tão rápido assim e aumenta o número de sítios em apenas cinco, o que faz também com que a queda posterior – que chega a sete entre 2000 e 1000 AP e a dois entre 1000 e 500 AP – não seja tão impactante. 48 No litoral central, o crescimento é diferente. Os números aumentam em ritmo bem mais lento, até chegar a sete sítios ativos entre 3000 e 2000 AP. No momento seguinte, entre 2000 e 1000 AP, a quantidade cai para quatro sítios e, depois, para três entre 1000 e 500 AP. Parece haver, portanto, maior continuidade na quantidade de sítios ao longo do tempo, sem as subidas e quedas abruptas que observamos no litoral norte e sul. N. de sítios ativos 25 20 15 Litoral Sul 10 Litoral Norte Litoral Central 5 0 Anos AP 25 N. de sítios ativos 20 15 Litoral Sul 10 Litoral Norte Litoral Central 5 0 Anos AP Gráficos 2a e 2b: Representações das flutuações no número de sítios conchíferos ativos nas diferentes porções litorâneas de Santa Catarina ao longo do tempo. Dados provenientes de Farias (2011), De Masi (2001), Duarte (1981), Rohr (1977), Hurt (1974), Fossari (2004), Bandeira (2004), Giannini (2010), DeBlasis et al. (2007) e desta pesquisa. 49 Os dados apresentados indicam que o período de 4000 a 3000 AP, no litoral sul, e o período de 3000 a 2000 AP, no litoral norte e central, podem sido marcados por um maior adensamento populacional, ocasionando maior frequência de rituais funerários e, portanto, a necessidade de manutenção de sítios antigos e formação de novos espaços para as práticas rituais. Indicam também que após esse momento de pico deve ter havido rápida dispersão e/ou diminuição das populações nas diferentes porções litorâneas, embora no litoral central essa queda não tome contornos tão drásticos. A outra possibilidade é de que os rituais funerários nos sítios conchíferos tenham passado a ser reservados a somente alguns indivíduos do grupo, ideia que, contudo, não faria sentido para o litoral central, como veremos em seguida. Tendo em vista as discrepâncias no número de datações disponíveis para cada porção litorânea, somente com base nos gráficos não é possível dizer que o inferido adensamento populacional tenha sido maior no litoral sul, a não ser que acrescentemos a eles informações sobre tamanho dos sítios e a quantidade de sepultamentos encontrados ou estimados para cada um deles. Em geral, os sítios do litoral sul apresentam grandes dimensões e grande quantidade de sepultamentos. Uma estimativa feita para o sítio Jabuticabeira II, por exemplo, levando em consideração uma cifra de 0,137 sepultamentos por metro cúbico, chegou ao número de 43000 indivíduos, que teriam sido sepultados no sítio ao longo de 1000 anos (DeBlasis et al. 2007). De acordo com Mendonça de Souza (2014), esse número poderia estar representando uma população estável, com cerca de 70 mortes por ano, e, assumindo-se um intervalo de 4 anos entre os nascimentos, essa população deveria ter um número médio de 280 mulheres em idade de engravidar, um número equivalente de homens adultos e em torno de 840 indivíduos imaturos. Com isso, a autora conclui que o tamanho médio da população relacionada ao sítio Jabuticabeira II, por ano, seria de 1050 pessoas, o que é um número elevado para sociedades caçadoras-coletoras. De acordo com DeBlasis et al. (2007:49), se este tipo de cálculo for estendido aos demais sambaquis do litoral sul, “as cifras expandem-se de maneira quase assustadora”, porém, os parâmetros demográficos são bastante frágeis ainda e, portanto, assim também o são as inferências feitas com base neles. 50 Se considerarmos a possibilidade de um maior adensamento populacional no litoral sul do que nas demais porções litorâneas, podemos falar da aparente diminuição no tamanho da população a partir de 2000 anos AP em termos mais drásticos. Galheta IV, por exemplo, um sítio com cerâmica que surge no período mais tardio da ocupação costeira por essas populações, conta com um número muito pequeno de sepultamentos (DeBlasis, Farias e Kneip 2014) perto da enorme quantidade de esqueletos exumados em sítios de períodos anteriores. A diminuição no número de sepultamentos, aliada ao pequeno número de sítios concomitantemente ativos nesse período, reforça a ideia de que ou apenas uma minoria privilegiada passou a ser sepultada nos sítios conchíferos, ou a sociedade em questão vivenciou um verdadeiro colapso. No litoral norte, os sítios não apresentam dimensões tão monumentais e nem possuem tantos sepultamentos quanto os sítios do litoral sul, porém são ainda grandes e contam com mais sepultamentos do que aqueles do litoral central. Com base nisso, imagino que nessa porção litorânea tal adensamento populacional também tenha se dado em grandes proporções, porém não na mesma escala do litoral sul. Em rápida busca na bibliografia referente a algumas pesquisas empreendidas em sítios do litoral norte (Tiburtius, Bigarella e Bigarella 2011[1941]; Beck 2007[1971]; Bandeira 2004; Wesolowski 2007), não observei mudanças relevantes na quantidade de sepultamentos a partir de 2000 AP. Como já vimos que o número de sítios concomitantemente ativos diminui bastante, não podemos associar uma aparente manutenção na quantidade de sepultamentos com a ideia de manutenção no tamanho da população, mas podemos entender que, no litoral norte, essa suposta diminuição do contingente populacional não se deu de forma tão “implosiva” quanto no litoral sul. O litoral central, por sua vez, apresenta sítios de menores dimensões e com menor quantidade de sepultamentos. Esse período mais tardio de diminuição no número de sítios ativos, contudo, é marcado pela rápida proliferação de sítios conchíferos rasos com e sem cerâmica que, em comparação com aqueles do período anterior, apresentam um aumento significativo na quantidade de sepultamentos. Estes passam de uma média de 19 em sítios como Pântano do Sul (Rohr 1977), Ponta das Almas (Piazza 1966, Beck 2007[1973], Hurt 1974), Porto do Rio Vermelho II (De Masi 2001), Praia Grande (Rohr 1959) e Laranjeiras I 51 (Schmitz e Bitencourt 1996), para uma média de 106 sepultamentos em sítios como Armação do Sul (Rohr e Andreatta 1969), Tapera (Rohr 1966), Base Aérea (Rohr 1959), Cabeçudas (Schmitz e Verardi 1996) e Laranjeiras II (Schmitz et al. 1993). Isso aponta para a possibilidade de manutenção do tamanho da população, ou até mesmo de aumento desta, mas é possível também que represente, simplesmente, uma maior concentração de rituais funerários em sítios específicos, o que poderia estar relacionado a um maior adensamento da população – que antes estaria mais dispersa – em determinados locais da porção litorânea central. É claro que para uma análise mais cuidadosa seria necessário maior número de dados, bem como considerar os volumes das áreas escavadas e estimar a quantidade de sepultamentos para o volume total ou original dos sítios. Uma vez que essas questões paleodemográficas não estão entre os objetivos deste trabalho, paramos por aqui. 2.5 Violência Considerando as ocorrências de lesões associadas à violência – como perfurações por pontas ósseas, fraturas nas epífises distais das ulnas e fraturas em depressão nos crânios – em indivíduos de diferentes sítios do litoral catarinense, Lessa e Scherer (2008) sugerem um aumento significativo do comportamento agressivo ao longo do tempo. Enquanto a prevalência de lesões entre os sítios mais antigos é de apenas 3,1% (Lessa e Gaspar 2012), esse número chega a 13,2% no conjunto de sítios formado por Tapera e Base Aérea (litoral central), Itacoara e Enseada I (litoral norte) (Lessa e Scherer 2008), todos eles pertencentes ao período mais tardio de ocupação da costa e com presença de cerâmica, situados nas porções litorâneas norte e central. Há ainda uma ocorrência no sítio Armação do Sul, também mais tardio, porém sem presença de cerâmica, mostrando que o aumento da violência não necessariamente está relacionado ao aparecimento dessa tecnologia. Não podemos deixar de atentar para o fato de que esse tipo de evidência, até o momento, não foi observada para o litoral sul. Além disso, enquanto no litoral central a maior parte das lesões observadas são de perfurações por pontas ósseas, que é o tipo de 52 evidência mais decisiva quando se trata da identificação de comportamento violento, no litoral norte esse tipo de lesão foi observado somente no sítio Itacoara, o que talvez esteja indicando que no litoral central esse aumento da violência foi mais significativo. É importante ainda lembrar que as lesões ósseas observadas no registro arqueológico podem subestimar quantitativamente a ocorrência dos confrontos, uma vez que apenas uma minoria dos ferimentos de causa violenta atinge o esqueleto e aqueles ferimentos ocorridos nos tecidos moles ou os casos em que houve remodelação perfeita do tecido ósseo não ficam registrados. Os percentuais estimados para traumas agudos violentos em sítios arqueológicos, portanto, representam apenas o número mínimo de lesões (Lessa e Gaspar 2014). Quanto às explicações para essa alteração no comportamento agressivo, Lessa e Scherer (2008) levantam duas possibilidades: 1. Com o fim da prática de acumulação de conchas para a formação dos sambaquis e da ideologia subjacente a essas práticas, aliado à introdução de uma nova tecnologia como a cerâmica, é possível que a agressividade tenha ganhado uma nova dimensão e importância num contexto que antes contava com outros mecanismos para a resolução de conflitos e, assim, mantinha os níveis de agressividade mais baixos. 2. Uma diminuição na oferta de alimentos marinhos – que seria observável na maior quantidade de vestígios de fauna terrestre apresentada pelos sítios mais tardios –, decorrente das oscilações no nível do mar, poderia ter gerado novas tensões sociais no litoral, levando a comportamentos mais violentos. As autoras chamam atenção, ainda, para a Anomalia Climática Ambiental, evento climático que ocorreu entre aproximadamente 900 A.D. e 1.350 A.D, e que teria tido repercussões ambientais e culturais em diferentes partes do mundo, dentre elas o aumento da violência em função de desequilíbrios nos modos de subsistência tradicionais. 2.6 Paleogenética Embora existam diferenças entre as séries pertencentes às diferentes porções litorâneas (norte, sul e central) – possivelmente devidas a variações ao acaso (deriva genética) do patrimônio genético ou fluxo gênico de outras populações (Neves 1988) – os 53 tempos anteriores ao aparecimento de cerâmica na costa são marcados por continuidade biológica, dos sítios mais antigos aos mais recentes. Essa continuidade parece persistir após o aparecimento da cerâmica, uma vez que a maior parte das séries cerâmicas apresentam afinidades morfológicas com séries sem cerâmica; algumas séries, no entanto, mostram-se distanciadas das demais, indicando que em alguns casos a cerâmica pode estar relacionada à chegada de um novo patrimônio genético (Neves 1988, Okumura 2008). O caso do sítio da Armação do Sul, por sua vez, mostra que patrimônios genéticos distintos já poderiam estar presentes na costa antes do aparecimento da cerâmica (Okumura 2008). Ao analisar marcadores osteológicos não-métricos de esqueletos provenientes de sítios arqueológicos do litoral paranaense e catarinense, Neves (1988) conclui que as séries cerâmicas Tapera, Base Aérea, Cabeçudas (litoral central) e Itacoara (litoral norte) se aproximam das séries sem cerâmica setentrionais. As séries cerâmicas Laranjeiras II (litoral central) e Enseada I (litoral norte), no entanto, distanciam-se de todas as demais séries, cerâmicas e não cerâmicas. Da mesma forma, Armação do Sul, um sítio sem cerâmica, distancia-se de todos os grupos cerâmicos e não cerâmicos do litoral central. Não obstante a variação entre as séries, ao avaliar as distâncias biológicas (M.M.D.s), Neves (1988:129) coloca que: das 66 distâncias calculadas, 27 apresentaram-se significativas ao nível de 0.025, ou seja, cerca de 40%. Se levarmos em consideração que os grupos pré-históricos envolvidos inserem-se numa faixa cronológica de aproximadamente 4.000 anos, somos forçados a admitir uma continuidade biológica considerável durante este vasto período. Hubbe (2005) chega à conclusão semelhante. Embora de início coloque que há uma tendência das séries cerâmicas do litoral catarinense separarem-se das não-cerâmicas, ao inseri-las em um contexto mais amplo – com inclusão de séries litorâneas geograficamente mais distantes – percebe que essa diferença deixa de existir de forma clara. Além disso, ao incluir séries provenientes do interior no contexto de análise, o autor não observa associações entre elas e as séries cerâmicas do litoral, enfraquecendo ainda mais a ideia da chegada de um grupo biologicamente distinto à costa. 54 Assim, apesar de ter partido das seguintes hipóteses quanto à ocupação do litoral catarinense: I – Entrou de fato uma nova morfologia no litoral com a chegada da cerâmica (difusão dêmica), e o novo grupo passou a trocar genes extensivamente com as populações costeiras, de modo que as semelhanças ou diferenças observadas entre as séries cerâmicas e entre elas e as séries não-cerâmicas devem-se ao grau de mistura genética entre ceramistas e não-ceramistas. II – A cerâmica não veio acompanhada por uma nova leva biológica (difusão cultural) e as diferenças morfológicas observadas se devem a modificações nos hábitos de vida entre os grupos ceramistas. Esta hipótese explica porque as diferenças entre ceramistas e não ceramistas são tão instáveis. III – A cerâmica veio acompanhada por uma nova leva biológica (difusão dêmica), mas foi por vezes apenas assimilada por alguns grupos litorâneos, de modo que apenas em alguns sítios cerâmicos se observa a presença de uma nova leva biológica. Esta hipótese previamente levantada por Neves (1988a) se encaixa em uma posição intermediária entre as hipóteses anteriores (Hubbe 2005:147-148). Ao fim, Hubbe (2005) coloca que os resultados obtidos favorecem a ideia de que o aparecimento da cerâmica no litoral não foi acompanhado pelo aparecimento de uma biologia distinta, apontando mais para a possibilidade de uma difusão cultural da cerâmica, sem difusão dêmica expressiva – embora essa possa sim ter acontecido em determinados locais. Quanto às análises morfológicas realizadas por Okumura (2008), embora em alguns momentos as séries com cerâmica do litoral norte e central do Estado tenham se mostrado biologicamente mais próximas às séries sem cerâmica de suas respectivas regiões, as análises apontaram preferencialmente para uma afinidade entre as séries ceramistas – com exceções: Morro do Ouro, sítio sem cerâmica, aproxima-se dos sítios cerâmicos do litoral norte; Praia do Embrulho, sítio com cerâmica, apresenta-se distanciado dos demais sítios cerâmicos do Litoral Central. Na Ilha de Santa Catarina, por outro lado, a maioria das análises indicou proximidade morfológica entre as séries de sítios com cerâmica e sem cerâmica da Ilha, sugerindo a existência de afinidade biológica entre os grupos associados a estes tipos distintos de sítios (Okumura 2008: 193). Tal proximidade foi também observada por Hubbe (2005). 55 Vale lembrar que os autores citados alertam para a fragilidade dos dados que apresentam, principalmente por questões de caráter amostral, mas também devido à incerteza sobre o grau de determinação genética dos marcadores antropológicos utilizados (Neves 1988, Hubbe 2005, Okumura 2008:144). 2.7 Padrão de residência pós-marital Buscando verificar se o aparecimento da cerâmica e a mudança no padrão deposicional dos sítios conchíferos foram acompanhadas por mudanças na estrutura social dessas populações litorâneas, Hubbe et al. (2009) analisaram as práticas de residência pósmarital de sítios conchíferos com e sem cerâmica do Paraná e Santa Catarina, a partir da variabilidade craniométrica intragrupo entre homens e mulheres e das correlações entre distâncias Mahalanobis e distâncias geográficas de diferentes grupos. Os autores partiram do pressuposto de que regras de residência refletem elementos sociais, econômicos e simbólicos, e que, portanto, uma mudança em qualquer um desses elementos poderia acarretar mudanças nas regras de residência. De fato, os resultados alcançados apontaram nesse sentido: enquanto as séries sem cerâmica apresentaram um padrão de variabilidade esperado em sistemas matrilocais, as séries com cerâmica apresentaram um padrão esperado em sistemas patrilocais, mostrando que as mudanças comumente observadas no registro arqueológico em tempos mais tardios foram possivelmente acompanhadas por mudanças em importantes aspectos da organização sociopolítica dessas populações. Assim, a cerâmica não seria uma assimilação tecnológica simples e direta, mas estaria relacionada a tal mudança no padrão de residência pós-marital: by showing that pottery arrived in association with a new postmarital residential practice by local groups, we undermine the idea of a simple and straightforward technological assimilation. Important shifts in social organization also characterized the transition from the pre-ceramic to the ceramic periods. In this context, the adoption of pottery could have been a consequence of the change in postmarital residential pattern per se. […] Although there are no current archaeological or ethnohistorical data to support it, we suggest that the changes observed resulted from the 56 assimilation of the social model imposed by pottery-using people coming from the interior plateau who settled on the coastal plains around 1200 years BP (Hubbe et al. 2009:10). Hubbe et al. (2009:9) sugerem que mesmo não havendo qualquer evidência arqueológica ou bioantropológica que permita pensarmos que todas as séries com cerâmica apresentavam a mesma organização social, as correlações encontradas para elas, mais extremadas se comparadas às das séries sem cerâmica – sexo imóvel com maior correlação geográfica e sexo móvel com menor correlação geográfica – indicam que a patrilocalidade foi, sim, adotada por todos os grupos associados a sítios cerâmicos. 2.8 Paleodieta Hoje sabemos que a despeito da grande quantidade de valvas de moluscos que caracteriza a estratigrafia dos sambaquis, os grupos humanos a eles associados tinham provavelmente nos peixes sua principal fonte de alimento, sendo os moluscos utilizados para outros fins e consumidos em quantidade muito menor do que um dia se supôs. Sabemos também que, embora baseada principalmente nos peixes, a dieta dessas populações era bastante variada, contando também, em menor quantidade, com moluscos, crustáceos, aves, mamíferos marinhos, mamíferos terrestres e, ainda, com alimentos vegetais oriundos de tubérculos, gramíneas e palmeiras em quantidades provavelmente significativas, o que, inclusive, abre caminho para especulações em torno do desenvolvimento de práticas de manejo e cultivo entre essas populações (Bandeira 1992; Figuti 1993; Klökler 2001; De Masi 2001, 2009; Scheel-Ybert 2001; Sheel-Ybert et al. 2003; Wesolowski 2000, 2007; Hansel e Schmitz 2006). Mas não foi sempre assim. Os estudos sobre a paleodieta das populações associadas aos sambaquis da costa sul e sudeste brasileira passaram por duas relevantes viradas teórico-metodológicas nas últimas décadas. A primeira delas se deu na década de 1990, e está relacionada ao reconhecimento da relevância dos peixes na dieta desses grupos litorâneos; a segunda, nos anos 2000, diz respeito ao uso de novos métodos provenientes das mais diversas 57 relações interdisciplinares que, entre outras contribuições, possibilitaram o reconhecimento da importância dos vegetais. A primeira virada – a dos peixes – teve início com estudos de zooarqueologia que a partir de cálculos do Número de Peças Identificadas (NPI) e Número Mínimo de Indivíduos (NMI) estimaram a proporção de massa comestível entre restos de peixes e moluscos presentes nos sítios, mostrando que os pescados correspondem à maior parte da massa comestível estimada (Bandeira 1992, Figuti 1993, Klökler 2001) e, portanto, à principal fonte proteica na dieta desses grupos. Até então, a impressionante quantidade de restos de conchas nos sítios, a desatenção à forma como os processos tafonômicos afetam diferentemente conchas e ossos de peixes, e a inadequação dos métodos de análise levava os pesquisadores a pensarem que a dieta dessas populações baseava-se predominantemente em moluscos (Beck 2007 [1972]). Por volta dos anos 2000, métodos provenientes de relações interdisciplinares diversas – como as estabelecidas pela antracologia, paleopatologia, paleobotânica, arqueologia biomolecular e arqueologia isotópica – mudaram novamente o rumo das pesquisas no Brasil, acrescentando novos olhares possíveis à investigação da paleodieta dos grupos litorâneos, antes baseada, sobretudo, na zooarqueologia e em alguns estudos pontuais de paleopatologia. Foi a “virada dos vegetais”. Como colocam Scheel-Ybert et al. (2003:110) e Wesolowski (2007:6), a escassez de evidências diretas preservadas – o que em parte se deve a um contexto nacional de solo e clima desfavoráveis à preservação – fez com que por muito tempo o papel dos vegetais entre as populações litorâneas fosse subestimado. Sua presença vinha sendo inferida somente a partir de sementes e coquinhos queimados encontrados fortuitamente ou, então, por evidências indiretas como artefatos líticos aos quais são atribuídas funções de preparação de alimentos vegetais (almofarizes, socadores e moedores) (Tenório 1991), e observações de frequências e prevalências excepcionalmente altas de cárie em alguns sítios (Wesolowski 2000). Esforços metodológicos no sentido de revelar a presença vegetal para além de achados fortuitos e evidências indiretas, tiveram início somente com estudos de antracologia (Sheel-Ybert 2001, Scheel-Ybert et al. 2003), que chamaram atenção para a 58 presença constante de macro-restos de tubérculos carbonizados – tanto do tipo C3 (carás) quanto do tipo C4 (gramíneas) – ao longo da estratigrafia dos sítios. Mais tarde, o estudo de microfósseis como fitólitos e grãos de amido a partir dos cálculos dentários de sepultamentos do litoral norte de Santa Catarina (Morro do Ouro, Enseada I, Forte Marechal Luz e Itacoara) (Wesolowski 2007), realizado na interface entre paleopatologia oral e paleobotânica, veio corroborar e acrescentar novas informações aos resultados antracológicos, identificando nos cálculos dentários das séries analisadas possíveis grânulos de milho, batata doce/Araceae e carás/Dioscorea SP (apenas no sítio Morro do Ouro), bem como possíveis fitólitos de gramíneas/Poaceae, palmeiras/Arecaceae e – inusitadamente – de pinhão (nos sítios Itacoara e Enseada I). Olhares antracológicos, paleopatológicos e paleobotânicos permitiram que as plantas fossem finalmente “vistas” no registro arqueológico, e associados aos achados fortuitos e evidências indiretas – tecnológicas e paleopatológicas – sugerem que as plantas contribuíram significativamente para a dieta dos grupos associados aos sambaquis e demais sítios conchíferos litorâneos, levando-nos até mesmo a pensar na possibilidade da prática de manejo e cultivo de vegetais por essas populações (Sheel-Ybert 2003, Wesolowski 2007) o que, apontam DeBlasis et al. (2007:52), poderia ter tido um papel importante no sedentarismo e na notável expansão demográfica observável entre as sociedades litorâneas em meados do Holoceno. Seguindo por caminho diferente, olhares isotópicos e biomoleculares sintonizados com as dimensões invisíveis do registro arqueológico – no nível do átomo e das moléculas – também sugeriram o consumo de vegetais por populações litorâneas, além de confirmarem a preponderância dos peixes na dieta, já demonstrada na década de 1990 por Bandeira (1992) e Figuti (1993). Análises de isótopos estáveis de carbono (δ13C) e nitrogênio (δ15N) – indicadores do uso relativo de plantas C3 e C4 e uso relativo de recursos marinhos e terrestres, respectivamente – a partir do colágeno de ossos e dentes humanos (De Masi 2001, 2009; Bastos 2014; Colonese et al. 2014) e da apatita do esmalte dentário (Bastos 2014) revelaram uma dieta predominantemente marinha, baseada principalmente em peixe, 59 para diversos sítios do litoral catarinense, porém com uma variação intra e intersítio considerável. Resíduos de lipídios preservados em fragmentos cerâmicos de sítios do litoral catarinense (Enseada I, Ponta do Lessa, Rio do Meio e Tapera), analisados por cromatografia gasosa e cromatografia gasosa-espectrometria de massa (Hansel e Schmitz 2006) apontaram nesse mesmo sentido. Os lipídios de origem animal – e, em geral, animais de origem marinha – predominaram entre os extratos orgânicos totais, mas compostos lipídicos de origem vegetal como triterpenos (resinas) e ésteres (ceras epicuticulares), estes provavelmente relacionadas à fervura de folhas para consumo e a produção de fibras, também foram detectados, porém em menor quantidade e com exceção do sítio Ponta do Lessa. Os resultados obtidos por Hansel e Schmitz (2006) mostraram que produtos de origem animal eram processados em maior quantidade nos vasilhames cerâmicos analisados do que produtos de origem vegetal, o que é bastante interessante, tendo em vista a forma como a presença ou ausência de cerâmica nos arqueológicos costuma ser interpretada em termos de paleodieta, sendo a introdução da cerâmica geralmente associada ao consumo de produtos vegetais cultivados – e, logo, ao início de práticas horticultoras. Ao sugerirem que os vasilhames estavam sendo utilizados principalmente para o processamento de produtos de origem animal e marinha, os dados gerados apontam para a manutenção, entre grupos portadores de cerâmica, de uma dieta que tinha sua matriz nos peixes. Apontam para continuidade, e não para descontinuidade. Outras percepções de mudança e continuidade, contudo, podem ser acessadas a partir de outras abordagens. Bandeira (1992), por exemplo, ao estudar a mudança no meio de subsistência dos grupos associados ao sítio Enseada I (São Francisco do Sul) a partir de análises zooarqueológicas, mostra que há diferenças e semelhanças tanto quantitativas quanto qualitativas entre os recursos utilizados na passagem do horizonte sem cerâmica para o horizonte com cerâmica do sítio. Do ponto de vista zooarqueológico, portanto, a cerâmica não representou uma ruptura na dieta da população associada ao sítio Enseada I, nem tampouco uma permanência. A dieta dos dois momentos da ocupação, com e sem cerâmica, segue uma tendência geral encabeçada pelos peixes – que se mantém inclusive 60 com relação às espécies de peixe mais consumidas – e, na sequência, pelos mamíferos e crustáceos, apontando para uma continuidade em termos de principais recursos alimentares. Ao mesmo tempo, contudo, o segundo momento da ocupação apresenta diferenças quantitativas e qualitativas em termos de número de fragmentos e variedade de recursos, apontando para descontinuidade. No estudo de paleopatologia oral desenvolvido por Wesolowski (2007) nos sítios Morro do Ouro, Forte Marechal Luz (séries sem cerâmica), Enseada I e Itacoara (séries com cerâmica), em geral as séries apresentaram poucas cáries, desgaste intenso, pouca perda dentária em vida e presença significativa de cálculo com tamanho de depósito tendendo a moderado, resultado comumente esperado para séries esqueléticas provenientes de sambaquis e que teve como exceção somente as séries do Morro do Ouro, com frequências e prevalências altas de cáries, do Forte Marechal Luz e Enseada I, com frequências e prevalências altas de perda dentária. A análise de micro-resíduos (fitólitos e grãos de amido) nos cálculos dentários indicou consumo de alimentos amiláceos por todas as séries, sem diferenças significativas entre as concentrações médias observadas. Esses resultados apontam para a inexistência de correlação entre presença de cerâmica e cáries, ou presença de cerâmica e consumo de vegetais. Tanto séries com cerâmica quanto séries sem cerâmica apresentaram frequências e prevalências baixas de cárie, e séries com e sem cerâmica apresentaram aporte semelhante de alimentos amiláceos, o que nos leva a atentar mais uma vez para continuidade, dessa vez no consumo de vegetais e nas escolhas, técnicas de processamento e padrões de ingestão dos alimentos que, como coloca a autora (Wesolowski 2007:155), poderiam, entre outros fatores, ter atuado na modulação do – baixo – desenvolvimento de cárie dessas séries. O consumo de alimentos altamente proteicos como os peixes, por exemplo, é levantado pela autora como um possível fator cariostático que estaria impedindo o desenvolvimento de cáries entre as séries estudadas, mesmo sob uma dieta que conta com quantidades significativas de amido. De um ponto de vista qualitativo, no entanto, Wesolowski (2007: 157) observou variações entre as séries analisadas com relação aos tipos de alimentos amiláceos consumidos, sugerindo que a escolha e apropriação dos vegetais disponíveis para uso alimentar variou segundo fatores locais, temporais e possivelmente culturais. 61 Por fim, o olhar isotópico. As análises de isótopos estáveis de δ15N e δ13C realizadas por De Masi (2001, 2009), Bastos (2014) e Colonese et al. (2014) em indivíduos de diversos sítios do litoral catarinense, com e sem presença de cerâmica, revelaram – como já mencionado – uma dieta essencialmente marinha, havendo, no entanto, alguns indivíduos com dietas mais terrestres e/ou essencialmente terrestre nos sítios Morro do Ouro, Enseada I, Ponta das Almas, Ponta do Lessa, Forte Marechal Luz, Tapera, Jabuticabeira II e Galheta IV. Em tempos mais tardios, a dieta se mantém essencialmente marinha tanto em sítio cerâmicos quanto em não cerâmicos, porém, nesse período, alguns grupos baixam seus valores δ15N ao mesmo tempo em que mantêm, diminuem ou aumentam os valores δ13C, o que poderia estar indicando a entrada de um componente alimentar diferente, como a introdução ou o consumo maior de plantas C3 ou C4. Os dados isotópicos, portanto, indicam que a dieta permaneceu essencialmente marinha ao longo do tempo e, ao mesmo tempo, indicam que dentro dos limites dessa tendência geral houve transformação para uma dieta mais terrestre – ou menos marítima – em tempos mais tardios, independentemente da presença de cerâmica nos sítios ou não. Pequenas variações num todo homogêneo maior. A partir das pesquisas apresentadas, é possível perceber como as noções de mudança e permanência são dependentes das escalas e dos métodos de análise empregados. Diferentes olhares revelam diferentes dimensões dos fenômenos de mudança e continuidade: temos continuidade no consumo de peixes a partir de um olhar biomolecular; continuidade no consumo das mesmas espécies de peixes e descontinuidade em termos de quantidade de fragmentos e diversidade de espécies a partir de um olhar zooarqueológico; continuidade com relação ao consumo de alimentos amiláceos e um conjunto de fatores mantenedores de baixos índices de cárie escolhas, a partir de um olhar paleopatológico/paleobotânico, porém descontinuidade nos tipos de alimentos amiláceos consumidos; e, por fim, a partir de um olhar isotópico, novamente continuidade e descontinuidade, dessa vez, respectivamente, em termos de uma dieta com tendência marinha – numa escala menor, mais distante – e em termos das pequenas variações dentro da tendência geral – numa escala maior, mais aproximada –, que apontam para dietas mais terrestres ou menos marinhas. 62 3 Interpretando a mudança A crença na coisa e no mundo só pode significar a presunção de uma síntese acabada, e todavia este acabamento é tornado impossível pela própria natureza das perspectivas a ligar, já que cada uma delas reenvia indefinidamente, por seus horizontes, a outras perspectivas. Maurice Merleau-Ponty, Fenomenologia da percepção, 1945 As coisas mudam. É impossível adentrar o mesmo rio duas vezes; o rio muda, nós mudamos. As ideias, as representações, os objetos, a vegetação, o clima, a alimentação, as leis, os governantes, a tecnologia, a língua, a arte, a moral, as crenças, os deuses, a crosta terrestre. Tudo muda. Coisas que mudam em ritmos e escalas que lhes são próprias; coisas que mudam segundo pontos de vista específicos; coisas que mudam para mudar, coisas que mudam para manter e coisas mantidas para mudar. Ao lançarmos o olhar sobre o passado, toda essa mudança se manifesta claramente. Em retrospecto, as transformações se fazem mais perceptíveis – é evidente que as coisas mudaram – e, por isso, entender a mudança sempre foi uma questão central na Arqueologia. E se é verdade ser impossível adentrar o mesmo rio duas vezes, é também verdade que um arqueólogo não estuda o mesmo sítio duas vezes. A mudança, assim, não se faz apenas objeto de estudo do arqueólogo, ela constitui o arqueólogo enquanto sujeito. O sítio muda, o arqueólogo muda. E nesse mudar, muda também a forma como se percebe e se entende a mudança. O tal olhar retrospectivo, portanto, permite vislumbrar a mudança nas ideias, nas representações, nos objetos, na vegetação, no clima, na alimentação, nas leis, nos governantes, na tecnologia, na língua, na arte, na moral, nas crenças, nos deuses, na crosta 63 terrestre, no registro arqueológico e nos arqueólogos. Permite vislumbrar, por exemplo, como a própria constituição da Arqueologia como disciplina científica e sistemática está intimamente relacionada à mudança na percepção de mudança entre filósofos e naturalistas do século XIX, engendrada pela aceitação das ideias evolucionistas e pela passagem do catastrofismo de Georges Cuvier – até então paradigma dominante na Geologia – para o uniformitarismo de Charles Lyell que levou à aceitação dos trabalhos de Boucher de Perthes e ao reconhecimento da antiguidade do ser humano. Voltando um pouco mais no tempo, permite vislumbrar como até mesmo o antiquarismo, que floresceu em meio à Renascença europeia e daria origem à disciplina, tomou força justamente por uma mudança na percepção de mudança; ou melhor, pela própria aceitação da mudança. Ao buscarem inspiração nos atos e pensamentos grecoromanos, os humanistas do renascimento deram início à crítica filológica: os textos e a linguagem dos antigos passaram a ser estudados minuciosamente e, para atingir plenitude de compreensão, era necessário considerar as circunstâncias e os períodos em que foram escritos os textos, como também estudar as características das sociedades e civilizações antigas. Surgiu, assim, a crítica histórica, que criou na mente renascentista a percepção de mudanças, de transformações nos costumes, línguas e civilizações ao longo do tempo. A noção de modificação sobrepôs-se aquela de permanência e continuidade, tão presente em períodos anteriores (Sevcenko 1984: 14-15). Aqui, a mudança e os arqueólogos são entendidos contextualmente. De que forma mudam as culturas? Como arqueólogos que mudaram e mudam entendem a mudança? Como mudanças teórico-metodológicas nos paradigmas que marcaram o desenvolvimento da Arqueologia – histórico-culturalismo, processualismo e pós-processualismo – levaram a compreensões diferenciadas da mudança no registro arqueológico que dizem respeito não apenas ao registro em si, mas à própria Arqueologia em sua relação pendular entre a Antropologia e a História, e aos próprios arqueólogos e suas compreensões de mundo? Como vêm sendo entendidas as transformações nos sítios conchíferos catarinenses e que ferramentas teóricas posso utilizar para interpretar a mudança no sítio Armação do Sul? 64 3.1 Percepções de mudança ontem e hoje A Arqueologia sempre acompanhou as outras disciplinas, que sempre acompanharam aquilo que estava acontecendo no mundo e as mudanças na percepção desse mundo. A Antropologia é uma dessas disciplinas que sempre foi acompanhada de perto pelos arqueólogos e, pelo menos para o contexto dos Estados Unidos, pode-se dizer que na verdade uma acompanhou a outra, numa coevolução que é bastante perceptível na Arqueologia histórico-culturalista que lá se desenvolveu como parte da Antropologia boasiana e, mais tarde, na Arqueologia processualista que se desenvolveu juntamente com a ecologia cultural de Steward. A forma como os arqueólogos do histórico-culturalismo entendiam a mudança está intimamente relacionada com seu entendimento de cultura – partitiva, normativa, fluida e particular (Webster 2008: 12-13). Em sua fluidez, as culturas mudam; em sua normatividade, elas refletem e se materializam no registro arqueológico – a cultura material como objetificação de normas culturais. Fluidamente, mudanças socioculturais acontecem por estímulos externos, como difusão, troca e migração; normativamente, possuem correspondência direta e proporcional no registro arqueológico. Uma preocupação fundamental da Arqueologia histórico-cultural é, portanto, mapear no tempo e no espaço a variabilidade e mudança resultante dessa dispersão cultural, documentando o desenvolvimento de áreas culturais específicas a partir das propriedades formais, temporais e espaciais do registro arqueológico (Phillips e Willey 1953: 617). A definição de unidades taxonômicas espaciais, temporais e formais, dentre as quais se destacam os componentes e as fases, e a preocupação em estabelecer a relação entre essas unidades por meio de unidade integrativas como os horizontes e as tradições (Phillips e Willey 1953; Rouse 1953, 1955) servem, de acordo com Rouse (1953: 71), para o objetivo histórico de determinar como a cultura material passa a apresentar as características que tem e a ocorrer quando e onde ocorre, problema que é resolvido com a invocação daquilo que ele chama de processos histórico-culturais. São eles a difusão e a persistência, a invenção independente, a migração e a dispersão, a participação na cultura 65 (popularidade), a aculturação, a adaptação ecológica, a filogenia, o desenvolvimento paralelo, evolução, entre outros (Rouse 1953: 71-73). Unidades como componentes, fases, horizontes e tradições nada mais são, portanto, do que formas de tornar a variabilidade e a mudança no registro arqueológico mais inteligível e manipulável para o arqueólogo. O conceito de tradição caracteriza muito bem a percepção de mudança que se desenvolveu entre os arqueólogos históricoculturalistas, pressupondo a existência de continuidades em meio às descontinuidades e, assim, enfatizando um elemento que seria deixado de lado pelos processualistas, mas que foi retomado pela crítica pós-processual e foi fundamental na sua percepção de mudança: a longa duração. As coisas, no entanto, mudam. Willey e Phillips (1958) representam uma fase de transição no pensamento arqueológico, já chamando atenção para o potencial de contribuição da Arqueologia na teoria antropológica por meio do estudo de processos. E, ao desenvolver suas ideias de ecologia cultural, Steward (1955) critica a herança relativista no entendimento de cultura e a mudança cultural pelo pensamento histórico-culturalista. Essas críticas foram seguidas pelos arqueólogos da Nova Arqueologia surgida na segunda metade do século XX. Com foco nos artefatos e seus atributos, tipos, agrupamentos, culturas e grupos culturais, porém sem uma teoria geral capaz de sintetizar regularidades e definir inter-relações, o histórico-culturalismo foi entendido como um paradigma de orientação classificatória, ideográfica e histórica, expressado por meio de narrativa literária e descritiva (Binford 1962; Clarke 1968, 1972). Acontece que os próprios histórico-culturalistas estavam fazendo uma apropriação simplista da disciplina histórica – pensando que produzir conhecimento historiográfico era descrever objetos e produzir crônicas de acontecimentos – ironia já há muito observada por Taylor (1948), atento que estava às inovações teóricas na produção historiográfica estadunidense que, sob influência da Escola dos Annales, estava tomando ares de História social e cultural. Esta apropriação simplista da História teve continuidade com a Nova Arqueologia a partir da década de 1960 que, entendendo a História como sendo aquilo que os históricoculturalistas faziam, tomou para si este desentendimento. Esforçando-se ao máximo para 66 escapar da “não-cientificidade” da disciplina histórica, acabaram aproximando-se cada vez mais da Antropologia – “American archaeology is anthropology or it is nothing” (Willey e Phillips 1958: 2) – e criando um preconceito com relação à História que perduraria até o surgimento da crítica posterior, fortalecida pelas primeiras manifestações pós-processuais, com sua perspectiva contextual. Esse distanciamento com relação à História foi fundamental na forma como os processualistas entenderam a mudança e na forma como os pós-processualistas, reaproximando-se da História, entenderiam depois deles. Para que a Arqueologia pudesse contribuir no desenvolvimento da teoria antropológica, Binford (1962: 224) sugere a busca por explanações a partir de um quadro de referência sistêmico, fundamentado na ideia de sistemas culturais compostos por subsistemas interligados. A cultura não é mais entendida como um conjunto de ideias, valores e crenças compartilhadas, mas como o meio extra-somático de adaptação do organismo humano – conceito tomado emprestado de White (Binford 1962: 218) –, numa perspectiva que bebe também da ecologia cultural de Steward (1955). O surgimento da noção de cultura sistêmica não se deu à toa: está relacionado à busca por cientificidade que marcou o paradigma processualista num período em que as ciências ditas “exatas” estavam chamando atenção devido ao desenvolvimento de novos métodos – como o de datação por isótopos – e por todo o deslumbramento em torno da computação e as infinitas possibilidades que ela encerrava. E, nesse ínterim, na passagem da perspectiva normativa para a sistêmica, muda também a percepção de mudança. De acordo com Flannery (1972 [1967]: 103-104), na abordagem normativa as culturas mudam conforme as ideias, valores e crenças compartilhadas mudam, e esta mudança pode ser temporal, uma vez que as ideias mudam no tempo, ou geográfica, tendo em vista que o distanciamento com relação ao centro de uma área cultural leva à diminuição no comprometimento com certas normas. Já para os arqueólogos processualistas, o comportamento humano é o ponto de sobreposição entre um grande número de sistemas, cada um englobando fenômenos culturais e, mais frequentemente, fenômenos não-culturais. Estes sistemas competem pelo tempo e pela energia do indivíduo, cuja manutenção do modo de vida depende do equilíbrio entre sistemas. A mudança cultural, portanto, é causada por pequenas variações em um ou mais sistemas, 67 que com isso podem crescer, deslocar ou reforçar outros sistemas e atingir novamente o equilíbrio num plano diferente. A estratégia da escola processual é isolar cada um desses sistemas e estudá-los como variáveis separadas. A perspectiva sistêmica implica também em mover as decisões sobre as transformações culturais ainda mais para longe do indivíduo, dando continuidade a uma tendência ao determinismo que foi iniciada pelos histórico-culturalistas. A ideia de “pontos de virada”, de decisões cruciais tomadas por “grandes homens” já era considerada inaceitável pela perspectiva normativa, afinal, segundo ela são os conjuntos de normas compartilhadas que determinam o curso da História, e não o indivíduo, que é simplesmente produto dessas normas. De um ponto de vista sistêmico, o indivíduo perde ainda mais força: os sistemas, uma vez colocados em movimento, se auto-regulam, a tal ponto que nem ao menos permitem rejeição ou aceitação de novos traços por uma cultura – o que era possível na visão normativa. A partir do momento em que um sistema se move numa direção específica, a gama de possibilidades de movimentos no próximo “ponto de virada” é automaticamente limitada, sendo a cultura tão impotente para desviar os sistemas quanto o indivíduo o é para mudar sua cultura. Isso não quer dizer que os indivíduos não tomem decisões, mas que as evidências dessas decisões individuais não podem ser recuperadas pelos arqueólogos (Flannery 1972 [1967]: 106). No caso da arqueologia catarinense e da problemática da mudança no registro arqueológico dos sítios conchíferos, as explicações dominantes entre autores de diferentes tempos e linhas teóricas (Beck 2007[1972], Neves 1988, Schmitz et al. 1992, Prous 1992, Lima 1999/2000, Tenório 2004, Fossari 2004, Gaspar 2004, Villagran 2012) são difusionistas e, muitas vezes, vêm acompanhadas por um tom colonialista em que “como água, a alta cultura corre morro abaixo” (Dietler 2005:56). Estão em geral relacionadas à ideia de contato de populações do litoral com populações interioranas da família linguística Jê, devido ao aparecimento de cerâmica das tradições Taquara e Itararé – estabelecida como estando associada a grupos Jê desde que Chmyz (1967, 1968) apontou para a semelhança entre ela e a cerâmica produzida pelos indígenas Kaingáng do Estado do Paraná – nos sítios conchíferos mais tardios. Contato que teria resultado na difusão de ideias, artefatos e recursos acompanhada de trocas gênicas ou não e, ao fim, na 68 hibridização ou aculturação das populações litorâneas. Tal forma de perceber a mudança, contudo, ganha diferentes nuances na narrativa de diferentes autores, que seguem na íntegra de forma a evitar qualquer interpretação enviesada de minha parte: Esse fenômeno [o colapso] parece ter sido decorrente da chegada de bem-sucedidos e aguerridos horticultores interioranos à costa. Economicamente mais poderosos porquanto capazes de produzir seus alimentos, socialmente organizados em estruturas mais sólidas e complexas, tecnologicamente mais avançados e numericamente expressivos, acabaram por determinar a absorção ou extinção dos pescadores-coletores, de tal forma que, à chegada dos europeus no limiar do século XVI, há muito essas populações já tinham desaparecido da costa centro-meridional brasileira (Lima 1999/2000:285). É o contato com outras populações que explica também a desestruturação da sociedade sambaquieira. Os estudos sugerem que inicialmente os sambaquis estabeleceram relações de troca com ceramistas do interior. É esse intercâmbio que explica a presença de cacos de cerâmica nos últimos níveis de ocupação de muitos sítios sem que tenha havido mudanças significativas em outros aspectos da vida social. Em um segundo momento, por volta do início da era cristã, os ceramistas, superiores tecnologicamente e em processo de expansão territorial, passaram a colonizar o litoral e, dessa forma, desestruturaram o sistema social que durante longo tempo havia sido soberano. [...] Considerando as características dos grupos que estavam na costa brasileira quando os europeus chegaram, os sambaquieiros devem ter sido incorporados ou eliminados (Gaspar 2004:67-68). [...] a essa cultura sambaquiana eram constantemente agregados novos costumes trazidos por grupos que alcançavam a costa, oriundos do interior. Apesar deste intenso contato, essa cultura não perdeu sua supremacia até a chegada dos ceramistas [...] (Tenório 2004:176). Uma hipótese é que as populações em foco [ceramistas] passariam o inverno no planalto para aproveitar o período de maturação do pinhão, enquanto ficariam no litoral durante o verão. [...] Outra hipótese é da “invasão” no litoral por populações interioranas, o que explicaria o fim dos sambaquis típicos paralelamente à introdução da cerâmica. [...] No entanto, achamos improvável que uma adaptação tão perfeita ao ambiente marítimo quanto a dos habitantes dos “acampamentos” litorâneos seja atribuída a interioranos recém-chegados. Talvez tenha havido uma progressiva intensificação de intercâmbios materiais entre os grupos marginais (testemunhada pela existência de zoólitos na escarpa do planalto rio-grandense, ao longo do Jacuí, por bifaces de quartzo nos sambaquis de Laguna e peças de xisto nos de Joinville), seguidos por trocas matrimoniais, as mulheres trazendo consigo a tecnologia cerâmica (hipótese esta levantada por A. Bryan, em 1978) (Prous 1992:331-332). 69 [...] acredita-se que não teria havido chegada massiva dos Jê à costa, mas sim uma intensificação no contato e domínio dos ceramistas sobre os pescadores-caçadores-coletores do litoral, evidenciada pela adoção da tecnologia cerâmica e pelo abandono da deposição de conchas. [...] O que parece ter havido no litoral é a introdução de uma tecnologia, sem modificação no sistema de produção característico das comunidades pescadoras, mas com intensificação na violência e com abandono do simbolismo associado à arquitetura em conchas. [...] Não se trataria, portanto, de a invasão do litoral por grupos do planalto meridional ter provocado a desestabilização de uma suposta arquitetura monumental; mas sim de a pressão geográfica, política e, principalmente, ideológica, exercida pelos ceramistas interioranos, ter motivado uma reestruturação da cultura tradicional da costa (Villagran 2012:438-439). As explicações difusionistas, no entanto, por vezes ganham ares mais extremos, entendendo os sítios conchíferos com cerâmica não como fruto de mero contato, hibridização ou aculturação, mas de uma ocupação do litoral por grupos Jê propriamente ditos que, vindos do interior, teriam migrado em massa e, de acordo com Fossari (2004), instaurado um sistema de assentamento no qual se incluiriam os sítios conchíferos com presença de cerâmica, as oficinas líticas e as inscrições rupestres. Nesta tese sugere-se que certas evidências arqueológicas presentes na Ilha de Santa Catarina constituem unidades do sistema de assentamento pré-colonial Jê na Ilha de Santa Catarina, buscando-se dar visibilidade ao que estava subjacente à Arqueologia catarinense. [...] Em escala local a população pré-colonial Jê corresponde à penúltima das diferentes levas populacionais que se estabeleceram na Ilha de Santa Catarina durante o período pré-colonial. [...] Antes desta pesquisa de salvamento [sítio Rio do Meio] não se falava em uma população, mas nos sítios arqueológicos da Ilha que tinham sido pesquisados individualmente - Caiacanga-Mirim (Rohr,1959), Tapera (Rohr, 1966) e Ponta do Lessa ou Rio Lessa (Beck et al., 1969) e cujas publicações registravam as semelhanças observadas entre certas evidências, notadamente a cerâmica, neles encontradas. Foi a partir da pesquisa do sítio Rio do Meio - identificado por Fossari (1996) como de Tradição Itararé - que se passou a refletir sobre a população pré-colonial Jê na Ilha de Santa Catarina (Fossari 2004:12-14). Existem também narrativas que levam em conta todas essas percepções ao mesmo tempo, como a de Neves (1988), que sugere duas hipóteses para a mudança no registro: a) Que os sítios cerâmicos associados à pesca são, na verdade, produto dos mesmos construtores de sambaquis que tiveram que adotar um novo padrão de subsistência, provavelmente em virtude de mudanças 70 ecológicas. A cerâmica teria sido simplesmente incorporada à “cultura sambaquiana”, através de contato com grupos ceramistas do planalto. b) Admitindo-se que a chegada da cerâmica na costa reflete uma difusão dêmica (deslocamento populacional) no sentido interior-litoral, os construtores de sambaquis podem ter abandonado a área em virtude de pressão territorial, ter sido eliminados por contatos belicosos ou ainda absorvidos pela estrutura social, certamente mais complexa, dos recémchegados. Uma fusão dos três fenômenos pode também ter ocorrido (Neves 1988:51-51). Embora as explicações difusionistas sejam – o trocadilho é inevitável – as mais difundidas e bem aceitas, elas não são as únicas. Beck (2007[1972]: 39), por exemplo, ao mesmo tempo em que entende os sítios conchíferos com cerâmica como fruto de difusão a partir do interior, não exclui a possibilidade de que se os construtores dos sambaquis não os habitavam, é provável que tivessem seus utensílios de cerâmica no local do acampamento. Assim, teríamos dois tipos de sítios; os montes de detritos, constituídos pelos sambaquis, e os de habitação constituídos pelos sítios cerâmicos. Certo, também, que em face de suas funções distintas, estes sítios possam, em rápida observação, ser considerados como pertencentes a grupos culturalmente diferentes, não se vendo qualquer correlação (Beck 2007[1972]:39). O que, aliás, é uma interpretação sistêmica dos fatos – se pensarmos nos entendimento processual de “sistêmico” – em que a mudança no registro arqueológico é considerada uma questão de variabilidade funcional em um mesmo sistema cultural (Binford e Binford 1966, Binford 1982). Explicações voltadas para a adaptabilidade das culturas ao meio (Rohr 1977, 1984), e combinações entre explicações ambientais e culturais (Lima 1999/2000, Giannini et al. 2010), são também frequentes, principalmente quando o assunto se trata da mudança na composição dos sítios que, antes formados predominantemente por conchas, passam a ser formados por sedimento escuro com ossos de peixes: os sítios de sepultamentos, possivelmente, foram construídos pelos últimos remanescentes dos sambaquianos, os quais, à falta de moluscos, passaram a dedicar-se mais à caça e à pesca. Esta hipótese é confirmada pelas datações através do carbono radiativo que revelam idade de mil, a mil e quinhentos anos para os sítios de sepultamentos” (Rohr 1984:85). 71 Possíveis causas para o colapso da coleta de moluscos e, por conseguinte, dos sambaquis, têm sido aventadas. Uma delas pode ter sido o esgotamento das suas colônias, provocado pelo sistema altamente predatório e imprevidente de coleta, no qual tanto formas jovens de espécies cobiçadas quanto espécies imprestáveis para consumo eram implacavelmente dizimadas, arrancadas juntamente com animais adultos, como vem demonstrando a zooarqueologia. Essas razias contínuas teriam enfraquecido consideravelmente a capacidade de regeneração dos bancos, provocando seu esgotamento e a consequente necessidade de compensação dessa perda, com o aumento da atividade pesqueira (Lima 1999/2000:284). Na fase 4, o número de sítios em construção diminui, com concentração em áreas de pontões costeiros (Figura 7B). Associada à nítida alteração de padrão construtivo, esta última fase pode refletir seja uma mudança cultural, promovida pela chegada dos grupos Jê do planalto (Gaspar, 1998; Prous, 1992), seja o escasseamento dos bancos de conchas acarretado pela redução de circulação hidrodinâmica e de salinidade, em contexto de progressivo assoreamento lagunar (Amaral, 2008; Fornari et al., 2008; Giannini et al., 2009), seja ainda uma combinação destes dois fatores. [...] No contexto da forte articulação entre evolução sedimentar e ocupação sambaquieira, demonstrada neste trabalho, uma combinação entre estes fatores naturais e culturais parece oferecer a melhor explicação para a marcante mudança da fase 3 para a fase 4 (Giannini et al. 2010:121/124) Estou em total desacordo com a perspectiva postulada por Fossari (2004) – em parte também considerada por Neves (1984) – de que os sítios e horizontes de sítios com cerâmica pertenceriam a grupos Jê chegados do planalto, uma vez que vai contra as evidências de continuidade apresentadas por trabalhos mais recentes (Hansel 2006; Wesolowski 2007; Okumura 2008; Bastos 2009, 2014; Villagran 2012). Também não posso concordar com Beck (2007[1971]), afinal, hoje sabemos que os sítios com cerâmica são cronologicamente posteriores e não poderiam compor um sistema com os sambaquis. Nem com a ideia de que a diminuição da presença de conchas na composição dos sítios se deve a uma maior dedicação à pesca devido à falta de moluscos (Rohr 1984, Lima 1999/2000), pois hoje sabemos que as populações litorâneas sempre tiveram nos peixes sua principal fonte de alimento (Bandeira 1992, Figuti 1993, Klökler 2001, De Masi 2001) e o trabalho de Nishida (2007) nos mostra que, pelo menos no caso do sítio Jabuticabeira II, o tamanho e idade dos moluscos que estavam sendo coletados não diminuem ao longo da 72 estratigrafia – o que aconteceria no caso de uma superexploração dos bancos de moluscos. Não descarto, porém, as demais possibilidades levantadas na bibliografia, tanto de mudança paleogeográfica quanto de difusão cultural, embora me sinta um pouco incomodada com o tom colonialista que acompanha a maior parte dessas ideias, tomando como pressuposto o inevitável e unilateral domínio político, material e ideológico dos grupos horticultores – considerados tecnologicamente superiores e socialmente mais complexos – sobre as populações litorâneas que viviam da pesca, caça e coleta. Essa forma de pensamento, em sua essência, provém de Childe (1975[1936]) – que estabelece a primazia da revolução neolítica e sua estreita relação com a complexidade – e perpetua oposições binárias, como centro-periferia e civilização-barbárie, que remetem ao projeto colonialista greco-romano e, mais recentemente, europeu. Num tempo em que a possibilidade de emergência de complexidade social entre caçadores-coletores é reconhecida em diferentes contextos ao redor do mundo, sobretudo naqueles associados a ambientes costeiros e exploração de recursos aquáticos (Arnold 1996, Sassaman 2004) e, inclusive, vem sendo estendida às sociedades construtoras dos sambaquis do sul do Brasil (DeBlasis et al. 2007, Gaspar et al. 2008), a popularidade dessa lógica materialista/colonialista na literatura sobre os sítios conchíferos se torna ainda mais estranha. Faço minhas, portanto, as palavras de Dietler (2005:49): “what is crucial is the constant questioning of our implicit assumptions and their discursive bases, because these have a great influence in conditioning research goals, interpretation, and evaluation of knowledge claims”. A ideologia e prática colonialista europeia que teve início a partir do século XV foram, em grande medida, fundamentadas pelos discursos e práticas colonialistas grecoromanas. Entendendo-se como herdeiros da civilização greco-romana, os Estados modernos europeus atribuíram a si mesmos o papel de dar continuidade à missão civilizatória, absorvendo a dicotomização hierárquica clássica entre sociedades “civilizadas” e “bárbaras”. Assim, situações de contato entre os dois extremos da dicotomia resultariam num processo unidirecional de inevitável atratividade da cultura “civilizada” perante o 73 “bárbaro”. Por meio desse discurso de superioridade cultural, a Europa pôde se definir como centro hegemônico; como motor cultural e econômico da história do mundo (Dietler 2005). Nesse mesmo sentido, ao acionarem – despercebidamente – o discurso colonialista em conjunto com o modelo de Childe (1975[1936]), os arqueólogos acabam por colocar as populações Jê no centro do mundo pré-colonial, conferindo-lhes hegemonia e um papel de destaque nos processos de mudança pelos quais passaram os pescadores-caçadorescoletores do litoral, em que irradiam cultura e inovação. Estudos realizados a partir de perspectivas descolonizadoras, contudo, têm mostrado que termos como helenização (Dietler 2005) ou romanização (Gosden 2005) dizem respeito muito mais às aspirações e disposições dos pesquisadores e dos próprios “conquistadores” do que às populações nativas envolvidas e às relações de fato empreendidas. Dietler (2005) nos mostra como as evidências apontam não para uma aderência à cultura grega entre os nativos da idade do ferro na França, mas para uma demanda limitada e extremamente seletiva de bens como o vinho e aparelhagem relacionada. Gosden (2005), por sua vez, chama atenção para o modo como a cerâmica Samian, artefato de origem romana, não necessariamente era entendida como “romana” pelos habitantes da Grã-Bretanha durante o processo de “romanização”, tendo, pelo contrário, provavelmente sido assimilada rapidamente como um elemento local; mostra também como os princípios da arquitetura clássica foram violados para acomodar mais unidades familiares nos prédios, ajustando-se à estrutura social local. Da mesma forma, há tempos a influência recíproca e os processos de negociação entre os indígenas do Novo Mundo e os colonizadores europeus são reconhecidos pelos historiadores, antropólogos e arqueólogos, como acontece, por exemplo, no “pensamento mestiço” de Gruzinski (2001). Os estudos mencionados relativizam a ideia de domínio unilateral em situações reais de colonialismo. No caso dos sítios conchíferos, contudo, não há até o momento qualquer evidência material da realidade dessas situações, a não ser que a cerâmica fosse considerada uma evidência por si só; mas, ainda assim, se fosse o caso, não se poderia falar em expansão e influência Jê na costa sem automaticamente falar em influência das populações costeiras sobre os Jê e sem levar em consideração que a mudança no registro 74 não reflete uma transferência direta de aspectos culturais, mas as apropriações locais resultantes desse contato. E, aliás, as populações litorâneas – que se avizinham umas às outras ao longo da costa – raramente são levadas em consideração quando se pensa na possibilidade de mudanças engendradas pelo contato, obscurecidas que ficam face à “revolução neolítica” Jê. Bastos (2009, 2014), contudo, nos mostrou que os indivíduos não locais do Forte Marechal Luz são provavelmente provenientes de outra parte do litoral, e que a grande variação nas razões isotópicas das mulheres da Tapera pode estar representando uma circulação de mulheres – talvez por meio de casamentos – ao longo do litoral central. Ainda, não podemos deixar de lembrar que diferentes locais ao longo da costa catarinense devem ter sido marcados por processos de mudança e situações de contato também distintas, tanto na forma das relações estabelecidas quanto nos atores envolvidos. De qualquer modo, as mudanças paleogeográficas e as relações de contato – sejam de tom colonialista ou não, sejam com o interior ou com o litoral – são apenas dois possíveis fatores que, sozinhos, não dão conta de explicar a multiplicidade de mudanças observadas no registro arqueológico dos sítios conchíferos – sinteticamente arroladas no capítulo 2 – e, muito menos, as diferenças contextuais perceptíveis nas diferentes porções litorâneas, decorrentes das interpretações e desenrolamentos locais dos acontecimentos (Sahlins 2011[1985]). É justamente na forma como os processualistas colocaram a mudança para longe da ação dos indivíduos e ignoraram a importância dos contextos locais de significação, que os pós-processualistas, em meio a um contexto pós-colonial de crítica ao colonialismo e suas implicações econômicas, políticas e sociais, dão início à sua crítica. Um dos primeiros passos da crítica pós-processual foi reaproximar a Arqueologia da História, duas disciplinas que lidam com o passado, mas que foram separadas pela preocupação sistêmica da Nova Arqueologia numa dicotomização entre diacronia e sincronia, História e explanações antropológicas – ou científicas (Hodder 2009[1987]: vii). A reaproximação feita, contudo, não é com qualquer História. É com uma História de longa duração em grande parte inspirada pelos três tempos de Braudel e que vem fortemente acompanhada da teoria social de Bourdieu e Giddens. De acordo com Hodder 75 (2009 [1987]: 5-7), a longa duração é ideal para os estudos arqueológicos, uma vez que a Arqueologia lida com durações muito longas, porém parte do resultado de eventos individuais que é o registro arqueológico. Tal perspectiva pode também ser traduzida como “História cultural”, movimento que faz Morris (2003: 3) ao defender que “archaeology is cultural history or it is nothing”. Seu argumento inicial é de que como a Arqueologia estuda pessoas que viveram no passado, é uma disciplina histórica; e como faz isso por meio da cultura material, é História cultural, esta sendo entendida como um movimento entre práticas e representações, no sentido clássico dado por Chartier (1990) – trata-se de uma História cultural diferente daquela praticada pelos histórico-culturalistas; História cultural no sentido dado pela Escola dos Annales, e não no sentido de Boas. Essa perspectiva implica num exame das relações entre estrutura e indivíduo. Ações cotidianas podem gerar mudança social, reformulando e reproduzindo modos de vida – se a estrutura pode coagir a ação dos indivíduos, a agência humana também pode determinar mudanças na estrutura. Implica, portanto, num novo entendimento de mudança, que é permeado pela ideia de ação social, na qual a cultura material é vista como ativamente e significativamente produzida numa centralização em torno do indivíduo, da cultura e da História (Hodder 1985). Segundo a perspectiva da ação social, as pessoas deixam de ser passivas para tornarem-se ativas. Deixam de reagir a estímulos externos para negociarem ativamente regras sociais, criando e transformando a estrutura social que é por elas construída; seu comportamento não mais reflete as normas de uma cultura ou de um sistema cultural ao qual o indivíduo é subordinado (Hodder 1985: 2). A mudança social é historicamente dependente, no sentido em que está sujeita a particularidades contextuais e que toda ação só possui sentido ao fazer referência a ações do passado – a História configura-se, ao mesmo tempo, como sujeito e objeto, numa “[...] relação de pertença e de posse na qual o corpo apropriado pela História se apropria, de maneira absoluta e imediata, das coisas habitadas por essa História” (Bourdieu 1989: 83). Para entender a mudança social adequadamente, deve-se levar em conta a cognoscibilidade dos atores humanos, ou seja, sua capacidade de monitoração e observação das consequências intencionais ou não intencionais de suas ações, de agir 76 conscientemente para mudar o mundo, gerando inovação no processo de transformação e negociação (Hodder 1985: 3). Dentre as explicações para a mudança no registro dos sítios conchíferos catarinenses que levam em consideração tal cognoscibilidade, posso citar a de Nishida (2007:94), que enfatiza o papel das escolhas culturais ao colocar que a partir dos dados obtidos sobre super exploração de espécies ou sobre a fragilidade dos bancos de moluscos que os fatores ambientais não foram determinantes na mudança do material construtivo. A mudança parece estar mais relacionada a uma escolha cultural do que ambiental. Bem como a de Giannini et al. (2010) que, embora expliquem a mudança no padrão deposicional como fruto de uma associação às mudanças paleogeográficas e o contato com os Jê, nesse outro trecho colocam que ela seria resultado de uma escolha cultural frente a processos sedimentares e geomorfológicos que com certeza não eram ignorados pelas populações litorâneas – percepção que considero mais interessante e de maior utilidade na compreensão das questões aqui colocadas: a ação das populações sambaquieiras na área de estudo é tratada no mesmo nível dos processos sedimentares e geomorfológicos; e seu sistema de assentamento é atribuído à intencionalidade, definida com base em preferências, escolhas e ações significativas que, muitas vezes, levam em consideração a dinâmica daqueles processos (Giannini et al. 2010:107). A Arqueologia surgiu pela mudança, e continuou se ocupando dela – e mudando – até os dias de hoje. Passou de uma cultura normativa que muda fluidamente por estímulos externos causados por contato, migração ou difusão; para uma cultura que muda sistemicamente como forma de adaptar-se ao meio; para uma cultura situacional que muda historicamente na relação entre indivíduo e estrutura. Percepções de mudança que, embora distintas, não excluem umas às outras, da mesma forma que os diferentes paradigmas não são necessariamente excludentes. A mudança, contudo, não para por aí. A Arqueologia é um processo (Hodder 1999), e percebe-se cada vez mais uma ênfase na diversidade que foi engendrada pela crítica pósprocessual. A Arqueologia dos dias de hoje está vivendo o fim das grandes narrativas e dos regionalismos para abrir espaço à multivocalidade tanto dos indivíduos estudados quanto 77 dos arqueólogos que os estudam, numa possibilidade muito maior de escolha e ecletismo na definição de posições teóricas. Tornam-se, assim, cada vez mais frequentes estudos que mesclam percepções de mudança distintas para dar conta da complexa rede de fatores que envolvem as transformações observadas no registro arqueológico ao longo do tempo, agregando ideias de migração e/ou adaptação a explicações contextuais, integrando mecanismos externos de mudança, como as normas e a busca por equilíbrio dos sistemas, com mecanismos internos, encabeçados pelos indivíduos em sua relação com a estrutura. Nesse contexto, que ferramentas podemos utilizar para entender a mudança nos sítios conchíferos catarinenses e, em especial, no sítio Armação do Sul? 3.2 Longa duração, razões práticas e multidimensionalidade Penso que o primeiro passo é estabelecer uma perspectiva de longa duração – herança histórico-cultural resignificada pelo pós-processualismo – conferindo continuidade histórica aos sítios conchíferos em meio às mudanças observadas no registro arqueológico, movimento que já foi realizado no primeiro capítulo desta dissertação. Lembrando que o modelo dos três tempos de Braudel, como qualquer modelo, é uma simplificação da realidade, que de forma alguma esgota as escalas analíticas possíveis – como nos mostra a micro-história do moleiro Menocchio, vivendo em seu próprio cosmos em tempos de inquisição (Ginzburg (2005[1987]). E, tratando-se de uma escala analítica, o tempo em Braudel é algo externo, predefinido pelo observador, não dizendo respeito às temporalidades produzidas emicamente no interior do mundo social. A diacronia dos tempos braudelianos ajuda-nos a perceber a fluidez e o caráter processual da mudança. Fluidez não no sentido histórico-cultural, de uma aproximação com a unidirecionalidade dos rios, mas como, simplesmente, ausência de limites rígidos. Esse modelo, contudo, não se faz mais suficiente para darmos continuidade às interpretações da mudança no registro arqueológico dos sítios conchíferos, por um simples motivo: de acordo com Braudel (2005 [1958]), não há espaço para a sincronia no 78 tempo histórico; e a diacronia sozinha não dá conta de revelar as variações formais resultantes de desenrolamentos locais, nem os mecanismos de mudança. Como as coisas mudam, afinal? Braudel não está preocupado com isso. As atualizações da estrutura, e a forma como essas atualizações se dão – justamente no cruzamento do diacrônico com o sincrônico – não importam. O que de fato lhe importa é medir a duração precisa dos movimentos, matematicamente; “observar o entrecruzamento desses movimentos, sua interação e seus pontos de ruptura” (Braudel 2005[1985]: 73). Estrutura, conjuntura e evento fazem parte de um modelo desenvolvido para a medição do tempo. São categorizações, congelamentos analíticos de uma história movente, pensados como uma forma de observar os processos históricos e torná-los mais facilmente manuseáveis, no intuito de transformar a História numa disciplina mais “científica”; enfim, de organizar a História como disciplina e a história como processo – a Arqueologia também passou e continua passando por isso. Em meio às suas mudanças e permanências, no entanto, a estrutura de Braudel segue aqui como pano de fundo; pano de fundo para a ação, que pode ser encontrada na teoria da prática de Bourdieu (2011[1967], 1989, 2011[1994]) e na discussão de Sahlins (2011[1985]) sobre a relação entre história e estrutura. Bourdieu (2011[1967], 1989, 2011[1994]) desenvolve uma teoria da prática na interface entre o estruturalismo e o materialismo, em que estruturas objetivas e construções subjetivas interagem de forma complexa, numa relação de cumplicidade ontológica intermediada pelo habitus, entidade estruturada e estruturante. Como “princípio gerador e unificador que retraduz as características intrínsecas e relacionais de uma posição em um estilo de vida unívoco, isto é, em um conjunto unívoco de escolhas de pessoas, de bens, de práticas” (Bourdieu 2011[1994]: 21-21), o habitus é diferenciado, assim como a posição da qual é produto dentro de um espaço social6, mas é também diferenciador, operador de distinção. Trata-se de um conjunto de estruturas sociais incorporadas na prática que permitem a relação social, um mundo de senso 6 Espaço social sendo entendido como um conjunto de posições distintas e coexistentes que equivalem a distâncias sociais; uma apreensão relacional do mundo social, em que indivíduos e grupos subsistem na e pela diferença, ocupando posições relativas em um espaço de relações invisíveis, porem reais (Bourdieu 2011[1994]). 79 comum; esquemas de visão e divisão (classificação) que são próprios de indivíduos específicos, de um grupo ou de toda uma sociedade. Tendo em vista seu caráter ontológico, o conceito de habitus pode ser aplicado sem risco de anacronia a qualquer sociedade, porém, cada indivíduo, grupo ou sociedade terá o seu, e é aí que entra o contexto histórico, na conformação do “conteúdo” desses habitus. O habitus faz o indivíduo participar de sua coletividade, de sua época, orientando e dirigindo seus atos aparentemente mais singulares sem que este tenha consciência e sem deixar vestígios que provem sua existência (Bourdieu 2011[1967]). Não se trata, contudo, de um destino ou determinação: embora a prática comumente acabe por reafirmar esse habitus que, sendo vivido objetivamente, legitima-se e pode vir a se tornar doxa – aparentando naturalidade e inevitabilidade – o sistema de disposições é aberto e está sempre em construção, permitindo improviso e transformação. Além disso, há variações singulares que nenhuma doutrinação pode abolir completamente, o que o autor chama de habitus singulares. A inércia presente na estrutura de Bourdieu, ou a tendência à reprodução que se dá pela orquestração do habitus a partir de práticas que inculcam formas e categorias de percepção é, portanto, relativizada pelo conceito de campo social, que encerra justamente a ideia de conflito, sendo um espaço onde os agentes se enfrentam com meios e fins diferenciados, contribuindo para a conservação ou transformação da estrutura. Agentes que produzem e são produzidos. A orientação da mudança, no entanto, depende do estado do sistema de possibilidades que são oferecidas pela história e que determinam o que é possível e impossível de ser feito ou pensado em um dado contexto temporal e espacial, mas, também, depende dos interesses que orientam os agentes (Bourdieu 2011[1967]). E as duas formas de orientação passam, necessariamente, pelo habitus, em suas disposições sociais mais amplas e pessoais; assim como um ato de fala é redutível às regras de gramática, um ato de invenção ou criação é redutível ao habitus. Quanto ao êxito de tal ato inventivo, este só pode ser explicado por meio do encontro de causalidades diversas, onde podem se incluir desde aspectos do contexto histórico, que pode ser propício ou não à mudança, até questões como a legitimidade do indivíduo ou grupo que deu início a ela; 80 “é na história que reside o princípio da liberdade em relação à história” (Bourdieu 2011[1994]: 71). Sahlins (2011[1985]) discute justamente essa relação entre estrutura e história. Por um lado, os indivíduos dão sentido aos objetos partindo das compreensões preexistentes da ordem cultural – habitus –, sendo a cultura reproduzida historicamente na ação; por outro, esses esquemas convencionais são criativamente repensados, sendo a cultura alterada historicamente na ação. Assim, “o que os antropólogos chamam de ‘estrutura’ – as relações simbólicas de ordem cultural – é um objeto histórico” (Sahlins 2011[1985]: 8). A arbitrariedade dos sistemas simbólicos reside exatamente em sua historicidade; mas, como colocado por Bourdieu, é nela também que se encontra a possibilidade de mudança. Sincronia e diacronia coexistem em uma síntese indissolúvel, e a questão da relação entre estrutura e história acaba se desdobrando em duas outras importantes discussões, que são a superação da dicotomia entre estabilidade e mudança e a demonstração da intima relação entre evento e interpretação; ambas permeadas por um alerta aos riscos da prática. Toda mudança prática é também uma reprodução cultural, pois faz referência aos esquemas incorporados; e toda reprodução cultural é uma alteração, uma vez que, por meio da ação, as categorias através das quais o mundo é orquestrado assimilam sempre algum novo conteúdo empírico. Os indivíduos e grupos agem de acordo com suas autoconcepções e seus habituais interesses, tendendo a recriar as distinções existentes de status e reproduzir a cultura da forma como ela está constituída. No mundo e na ação, contudo, as categorias culturais são submetidas a riscos empíricos: os significados culturais são alterados e, se as relações entre as categorias mudam, a estrutura é transformada. “O mundo”, afinal, “não é obrigado a obedecer à lógica pela qual é concebido” (Sahlins 2011[1985]: 171). Frente a esse pragmatismo do simbólico, a cultura aparece como síntese da reprodução e da variação, da estabilidade e da mudança, do passado e do presente. Desse diálogo entre as categorias recebidas e os contextos percebidos, entre o sentido cultural e a referência prática, segue que um acontecimento objetivo qualquer será sempre uma ameaça em potencial às categorias pré-existentes, mas o contrário também é válido: submetido às categorias estruturais do momento, um acontecimento 81 sempre estará sujeito a interpretações diversas, o que Sahlins (2011[1985]) chama de riscos subjetivos. De acordo com ele, “agindo a partir de perspectivas diferentes e com poderes sociais diversos para a objetivação de suas interpretações, as pessoas chegam a diferentes conclusões quanto aos acontecimentos e as sociedades elaboram os consensos, cada qual à sua maneira” (Sahlins (2011[1985]:11); e os efeitos desses riscos subjetivos podem ser inovações radicais. Isso permite, por exemplo, que mudanças culturais induzidas por forças externas – como o confronto com o próprio mundo e com outros povos – sejam orquestradas de modo nativo o que, aliás, consiste em parte do argumento do pensamento pós-colonial. Em meio aos riscos objetivos e subjetivos, Sahlins (2011[1985]) chega à proposição de que o evento é a relação entre um acontecimento e a(s) estrutura(s). Assim, por mais que apresente propriedades “objetivas” enquanto acontecimento, um evento só adquire significância histórica quando apropriado e interpretado por um esquema cultural, dependendo da estrutura tanto por sua existência quanto por seu efeito; é, portanto, um acontecimento de significância, ou a interpretação do acontecimento. E interpretações variam. A perspectiva centrada na prática, quando aplicada a contextos arqueológicos, pode ser considerada triplamente potente, afinal, o registro arqueológico é o que restou das práticas; a materialidade é um meio importante de objetificação de esquemas e estruturação de habitus; e, uma vez relacionais e passíveis de negociação, as mudanças em geral são lentas, podendo ser observadas com clareza no registro de muito longa duração com o qual lida a arqueologia. A meu ver, não são necessários contextos arqueológicos ideais em termos de riqueza de informações para que os indivíduos em suas relações práticas com o mundo se revelem. A prática está igualmente presente nos sítios clássicos greco-romanos, nas cidades neolíticas da Turquia e nos sítios conchíferos catarinenses; basta um olhar mais aproximado, que ela se desvela naturalmente. É verdade que nem sempre seus significados poderão ser apreendidos com precisão, mas a prática estará lá. Os conceitos de habitus e evento promovem a síntese indissolúvel entre indivíduo e estrutura, curta e longa duração, local e regional, sincronia e diacronia, mudança e permanência, emprestando os mecanismos de mudança necessários ao dinamismo da 82 estrutura de conteúdo de Braudel. As três percepções juntas servirão de inspiração para as interpretações apresentadas nos capítulos que seguem – constituindo meu próprio habitus ou esquema incorporado. Com esse quadro teórico em mente, podemos investigar os possíveis fatores envolvidos na mudança nos sítios conchíferos, sejam eles de ordem cultural ou ambiental. Entre eles podem estar questões internas às sociedades como a mudança no padrão de residência pós-marital (Hubbe 2009) ou o aumento dos conflitos (Lessa e Scherer 2008), mas também podem estar alguns dos processos histórico-culturais de Rouse (1953) – onde se inclui o difusionismo que, como vimos, é o fator mais comumente invocado na literatura – ou mesmo algum processo adaptativo binfordiano (1962) frente a mudanças ambientais. Tudo, ou quase tudo é possível, desde, é claro, que seja observável no registro arqueológico. E desde que não seja tomado como determinante, mas como parte de uma rede de causalidades, sendo entendido contextualmente e do ponto de vista da prática, em escala local e regional – o que inclusive nos permite escapar a questões falaciosas como: o que veio antes, a virilocalidade ou os conflitos? A mudança na dieta ou a cerâmica? Sabemos que a dieta mudou antes do aparecimento da cerâmica, como indicam os dados gerados por De Masi (2009), mas isso não quer dizer que uma causou a outra. Até porque, vimos no capítulo anterior que as mudanças e permanências no registro arqueológico multidimensionais, o dos sítios conchíferos que implica também catarinenses uma são multiplicidade múltiplas de e fatores. Multidimensionalidade significa coexistência de mudanças e ritmos de mudança em diferentes escalas espaciais e temporais, que vão desde as mais longas durações, como o tempo evolutivo e o tempo das estruturas sociais, até as durações mais curtas do tempo ritual e das atividades cotidianas. O caráter multidimensional do registro arqueológico já foi abordado por Hubbe (2005), numa contextualização progressiva de aspectos bioculturais do sítio Porto do Rio Vermelho II (Florianópolis/SC) de um ponto de vista espacial e do tipo de dieta. Na literatura internacional, esse tipo de abordagem vem se mostrando útil em estudos sobre mudanças nas práticas mortuárias (Chapman 2000, Fahlander 2008). Bailey (2007) se dedica a demonstrar o potencial da análise de palimpsestos como meio de investigar a 83 longa duração e sua relação com as vidas e percepções individuais, e Lock e Molyneaux (2006) chamam atenção para questões relacionadas à escala na arqueologia, mostrando o papel crucial desse elemento – que geralmente é entendido como dado – na forma como o passado é representado. Multidimensionalidade significa também complexidade, sendo difícil apreendê-la em sua totalidade; mas mesmo não sendo possível conhecer absolutamente uma coisa, como uma pedra, pois o conhecimento sobre ela nunca se conclui, ainda é verdade que a pedra percebida está ali, sendo reconhecida por quem a percebe. Isso quem disse foi Merleau-Ponty (1999:443), ao explicar porque o inacabamento não constitui uma fraqueza na ciência dos fenômenos: “mais elevada do que a realidade está a possibilidade”. Isso foi Heidegger (2008[1927]:78). Frente ao não esgotamento da complexidade do mundo em nenhuma das visões perspectivas dele possíveis, uma abordagem multidimensional não nos pode presentear com um conhecimento total sobre os processos de mudança dos sítios conchíferos catarinenses, mas pode nos auxiliar a reconhecer a complexidade inerente a esses processos e expandir as possibilidades interpretativas. A partir do momento em que a multidimensionalidade é acionada, não se trata mais de uma única mudança, mas de uma rede complexa e entrecortada de mudanças diversas. Virilocalidade, cerâmica, aumento da violência, diminuição do nível do mar, aparecimento da terra preta, alteração na quantidade de sítios, nas práticas mortuárias, na dieta. A mudança é tudo isso e além; tudo isso ao mesmo tempo, e tudo isso em tempos distintos. Para uma abordagem multidimensional, contudo, são necessárias também adequações do ponto de vista analítico, que aqui serão feitas por meio de processamento estatístico igualmente multidimensional, sendo os resultados das análises isotópicas e das práticas mortuárias entendidos na curta, média e longa duração; em escala de sítio, local e regional. Na escala de sítio, isso implica pelo menos três níveis de análise: estabelecimento da tendência geral, comparação entre o primeiro e o segundo momento do sítio e posicionamento diacrônico dos indivíduos. Trata-se de associar as tendências gerais e as comparações entre os diferentes momentos do sítio com uma perspectiva diacrônica mais refinada que permita 84 observarmos pequenas variações ao longo do tempo, apreendendo a mudança numa escala mais aproximada no nível dos indivíduos e dos eventos. Refinamento que só se faz possível aqui devido à comparação, no caso das análises isotópicas, com outros estudos do gênero realizados nos sítios conchíferos catarinenses (Bastos 2009, 2014; Colonese et al. 2014; De Mais 2001, 2009) e, sobretudo, devido à realização de datações individualizadas de diversos sepultamentos do sítio. A multidimensionalidade, associada à cronologia, torna os palimpsestos inteligíveis – e, sobretudo, faz com que sejam reconhecidos como palimpsestos – permitindo que aquilo que seria entendido apenas como variabilidade seja reconhecido como mudança ou distinção de sexo, idade e status. Permite também que aqueles elementos que remetem a tradições de maior duração e aqueles elementos que representam escolhas contingentes para a solução de situações eventuais sejam diferenciados, além de possibilitar a identificação de outliers que jamais se destacariam dos demais se observados somente segundo a tendência geral. Penso que não basta compreendermos por que as coisas mudam, mas também como mudam. A história não vem em blocos de conteúdo que são trocados de tempos em tempos a cada migração, mudança ambiental ou outro acontecimento de grande porte qualquer: a história é processo; a mudança, constante e processual – nisso aqueles momentos que costumamos chamar de “transição”, tornam-se, simplesmente, momentos de maior agitação nos processos de mudança. Não são, afinal, os acontecimentos por si sós que movem a história, mas as interpretações que são feitas deles dentro de contextos específicos, na relação entre indivíduo e estrutura. A mudança, para mim, se faz cotidianamente no engajamento com o mundo e na negociação com os elementos – humanos e não-humanos – que constituem esse mundo. O que me interessa é entender como um suposto contato com outras populações ou uma mudança ambiental ou quaisquer que sejam os acontecimentos invocados podem engendrar mudança no registro arqueológico. Como determinados eventos se desenrolam, repercutem e são interpretados; como a mudança é vivida e percebida contextualmente – no passado e no presente. 85 Parte II: Criando uma textura densa de dados 86 4 Um olhar para o invisível: análises isotópicas na arqueologia Isótopos são átomos de um mesmo elemento que apresentam semelhante número de prótons, mas diferente número de nêutrons. Como os isótopos de um mesmo elemento possuem o mesmo número de prótons em seus núcleos, eles também possuem o mesmo número atômico e, portanto, são idênticos quimicamente e indistinguíveis uns dos outros. O que os diferencia, de fato, são as suas massas. Embora não sejam eletricamente carregados, os nêutrons possuem massa, fazendo com que os isótopos de um elemento possuam massas atômicas diferentes e, logo, propriedades físicas igualmente diferentes (Goffer 2007). Alguns isótopos não alteram seu núcleo ao longo do tempo, sendo conhecidos como “isótopos estáveis”, enquanto outros apresentam uma estrutura mais instável, sendo conhecidos como “isótopos radioativos” ou “radioisótopos”. Estes últimos são assim chamados porque passam por um processo de decaimento radioativo em que o núcleo, por ser instável, altera a sua estrutura até se tornar estável, emitindo diferentes formas de radiação ionizante (Goffer 2007). O estudo de isótopos de variados elementos vem revelando importantes ferramentas para a obtenção de informações em pesquisas arqueológicas. Enquanto isótopos radioativos como 14 C e 40 Ar vêm fornecendo datações absolutas para a Arqueologia, a variação nas razões isotópicas de elementos estáveis como H, C, O, N, S, Sr, e Pb tem auxiliado na resolução de problemas de proveniência, paleoambientes, paleoclimas e paleodietas (Herz e Garrison 1998, Price e Burton 2011). Dentre os isótopos estáveis que vêm sendo utilizados para o estudo de paleodietas, os mais comumente utilizados são 15 Ne 13 C (DeNiro e Epstein 1978, 1981; Schoeninger, 87 DeNiro e Tauber 1983; Walker e DeNiro 1986; Ambrose 1993; Katzenberg e Harrison 1997). Por outro lado, quando se trata de caracterizar mobilidade humana e animal são os isótopos de estrôncio que figuram entre os mais eficazes (Price 2002; Grupe 1997; Montgomery 2003; Bentley, Krause e Price 2003; Bentley 2006; Knudson et al. 2004; Wright 2005). 4.1 Radiocarbono (14C) De acordo com Holdaway (2006), existem duas formas de lidar com estudos sobre datação na Arqueologia. Uma delas é a cronometria, que lida com os princípios físicos e químicos e a prática de medir os processos e os desvios dos processos na qual um método específico é baseado, e a outra é a cronologia, que lida com os resultados dos processos de datação e com a natureza das inferências comportamentais que podem ser feitas a partir desses resultados. Cronometricamente falando, existem diversos métodos de datação – como os métodos siderais, radiogênicos, químicos e biológicos, geomórficos e de correlação – dentre os quais o método isotópico, baseado na mudança de composição isotópica devido ao decaimento radioativo e por meio do qual se realiza a datação radiocarbônica, é apenas mais um (Holdaway 2006), embora seja o mais amplamente utilizado em contextos do Quaternário recente. A técnica da datação radiocarbônica foi desenvolvida por um grupo de cientistas liderado por Willard Libby, na década de 1940 (Arnold e Libby 1949). Trata-se de uma técnica radiométrica, baseada na medição da quantidade relativa de carbono-14 e, embora seja mais útil para a datação de matéria orgânica, pode também ser utilizada para datar sedimentos carbonáticos e outros materiais inorgânicos que contenham carbono (Goffer 2007). O carbono é um componente natural da atmosfera terrestre, estando presente em todos os organismos vivos, e aparece em três formas isotópicas: dois primeiros estáveis e o último, 14 12 C, 13C e 14 C, sendo os C, um isótopo radioativo, também conhecido como radiocarbono. Na atmosfera, o carbono ocorre combinado com o oxigênio na forma de 88 dióxido de carbono; assim, as plantas adquirem o radiocarbono e demais isótopos do carbono por meio da fotossíntese, e os animais o adquirem ao se alimentarem de plantas. Esses isótopos, contudo, sofrem fracionamento ao serem absorvidos e, por isso, a quantidade presente nas plantas e animais não é a mesma quantidade presente na atmosfera. Quando as plantas e animais morrem, a entrada de carbono cessa, e como o radiocarbono passa por decaimento radioativo, essas plantas e animais começam a perder os átomos de radiocarbono que possuíam em vida, perda que se dá numa taxa constante de acordo com a meia-vida do isótopo 14C que é de 5730 ± 40. Isso significa que metade da quantidade original de radiocarbono terá se desintegrado depois de 5730 anos; metade do radiocarbono que restar (ou ¼) terá se desintegrado depois de 11.400 anos, e daí em diante. Após 50.000 anos a quantidade de radiocarbono restante na amostra será tão pequena que esta não poderá mais ser datada com bom grau de confiabilidade. Esse processo de diminuição contínua do número de átomos de radiocarbono se dá por processo de decaimento beta, em que o núcleo emite uma partícula beta e o isótopo 14C é transformado em 14N, o mais comum isótopo de nitrogênio (Goffer 2007). Figura 15: Ilustração do processo de decaimento radioativo beta nos isótopos de carbono-14, de acordo com uma meia-vida de 5730 ± 40. Fonte: Goffer (2007: 274). Para a determinação da idade de uma amostra, portanto, basta que a quantidade de radiocarbono presente nela seja medida e, depois comparada à concentração de carbono na atmosfera – sendo necessário também corrigir os resultados com relação ao fracionamento isotópico. A medição do radiocarbono pode ser feita por meio da contagem de seu decaimento (técnica convencional), em que se detecta e contabiliza a quantidade 89 de radiação beta emitida em unidade de tempo pelo núcleo dos átomos de uma amostra de peso conhecido. E, mais recentemente, pode também ser estimada por meio da contagem, em espectrômetro de massas7, da quantidade relativa de radiocarbono na amostra em comparação à quantidade de isótopos estáveis (espectrometria de massas com aceleradores – EMA, ou AMS em inglês). As idades resultantes de ambas as técnicas de datação, contudo, estão sujeitas a erros estatísticos relacionados à própria medição do radiocarbono e, por essa razão, são expressas juntamente com seu desvio-padrão – índice de variância utilizado para caracterizar a dispersão dos valores. Nesse sentido, há 68,2% de probabilidade de que a idade real estará dentro dos limites indicados pelo desvio-padrão, 95,5% de probabilidade de que estará dentro de duas vezes esses limites, e 99,7% de que estará dentro de três vezes os limites (Goffer 2007). Embora as datações sejam calculadas com base no pressuposto de que a concentração relativa de radiocarbono na atmosfera é sempre constante, sabe-se que, na verdade, tal concentração esteve sujeita a variações no passado. Não há, portanto, relação direta entre as idades radiocarbônicas e as datas do calendário, sendo necessário calibrar os resultados radiocarbônicos, o que comumente se faz por meio da dendrocronologia8, em que são calculadas as datações radiocarbônicas de anéis de árvores e comparadas com as datações dendrocronológicas dos mesmos anéis (Goffer 2007). A diferença entre uma idade radiocarbônica e uma de calendário pode ser muito significativa, indo de centenas a milhares de anos, sendo recomendado, portanto, que se evite realizar comparações levianas entre esses dois tipos de data. Agora, pensando cronologicamente, é importante lembrar que as datações dão uma estimativa da idade no momento da morte do organismo, dependendo do arqueólogo construir uma cronologia do comportamento humano do passado a partir disso. A idade obtida para uma fogueira, por exemplo, está relacionada à morte do organismo que foi queimado, e não, necessariamente, ao momento de sua construção (Holdaway 2006). Da mesma fora, a idade obtida para um esqueleto humano em um sítio arqueológico diz respeito ao momento da morte do indivíduo e, não, necessariamente, ao 7 Espectrômetros de massa são instrumentos que medem proporções de diferentes massas isotópicas, de variados elementos, em amostras muito pequenas (Herz e Garrison 1998: 273). 8 Dendrocronologia é um método de datação que envolve o estudo das séries dos anéis anuais dos troncos das árvores. 90 ritual funerário ou ao momento de deposição final, que em algumas culturas pode ocorrer anos após a morte do indivíduo. A utilização do termo “data”, inclusive, vem sendo criticada, uma vez que “data” implica um momento específico no tempo quando, na verdade, as idades estimadas por métodos radiogênicos dizem respeito a médias e desvios padrões associados: o termo adequado seria “idade” ou “idade estimada” (Holdaway 2006). “As datações radiocarbônicas são, como todas as medidas de radioatividade, enunciados de probabilidade” (Scheel-Ybert 1999), sendo cada idade definida como o ponto médio de uma curva de Poisson com seu desvio padrão. A respeito da realização de datações em sambaquis, Scheel-Ybert (1999) coloca que uma das principais fontes de erro está relacionada à inversão estratigráfica, embora na maior parte das vezes seja a própria datação que denuncia uma possível inversão para o arqueólogo. Elenca também o efeito de rejuvenescimento que pode acontecer devido à contaminação da amostra por matéria orgânica atual – sendo mais frequente em amostras que provém de níveis superficiais, amostras muito pequenas ou quando os sítios apresentam concreções carbonáticas – bem como o efeito reservatório9, que pode envelhecer datações feitas a partir de conchas marinhas. Como as correções para o efeito reservatório no litoral brasileiro são ainda muito imprecisas, a autora sugere que, sempre que possível, seja evitada a datação a partir de conchas. 4.2 Isótopos de nitrogênio (δ15N) e carbono (δ13C) O elemento carbono possui dois isótopos estáveis, 13 C e 12 C, o primeiro com abundância natural de aproximadamente 1,1% e o segundo com abundância de 98,9%. A maior parte do carbono do mundo se encontra no oceano, mas ele está presente também na atmosfera, sob a forma de CO2. Esse carbono oceânico e atmosférico adentra o sistema biológico por meio do processo de fotossíntese das plantas verdes e do processo de 9 O efeito reservatório se deve ao fato de que a taxa de renovação das águas oceânicas é muito mais lenta do que a da atmosfera, resultando no envelhecimento aparente nas idades radiocarbônicas feitas a partir de organismos marinhos (Scheel-Ybert 1999). 91 quimiossíntese de bactérias que vivem em grandes profundidades marinhas (Schoeninger e Moore 1992). O nitrogênio também possui dois isótopos estáveis, 15 N e 14 N, o primeiro com abundância natural de 0,36% e o segundo com abundância de 99,64%. A maior parte do nitrogênio do mundo está na atmosfera, sob a forma de N2, ou dissolvido no oceano. Esse nitrogênio adentra o sistema biológico por meio de organismos fixadores de N2, como algas azuis e verdes de ambientes marinhos ou de água doce e bactérias que formam nódulos nas raízes das leguminosas. E, também, por meio da decomposição bacteriana de moléculas complexas possuidoras de nitrogênio após a morte dos organismos, processo no qual são produzidos nitratos que podem ser utilizados diretamente por plantas vasculares (Schoeninger e Moore 1992). Como a variação na composição isotópica de elementos leves como o nitrogênio e o carbono é extremamente pequena, a medição da abundância de cada isótopo envolve o cálculo da razão entre o isótopo mais pesado e o mais leve com relação à razão isotópica de um material de referência padrão (Ambrose 1993, Allègre 2008). As razões isotópicas 15 N/14N e 13C/12C, portanto, são expressas como valores delta (δ) em partes por mil (‰), de acordo com as seguintes notações: δ15N‰= δ13C‰= O padrão internacionalmente reconhecido para o carbono é o PDB (PeeDee Belemnite Carbonate), um carbonato marinho que contém mais 13 C do que qualquer recurso alimentar e a maioria dos tecidos humanos. Assim, os valores δ13C serão, na maior parte das vezes, números negativos. O padrão internacionalmente utilizado para o nitrogênio é o AIR (ambient inhalable reservoir), que nada mais é do que o N2 atmosférico. Como quase todos os recursos e tipos de tecidos contém mais 15 N que o padrão AIR, os 92 valores δ15N serão, geralmente, números positivos (Schoeninger e Moore 1992, Ambrose 1993). A principal fonte de carbono das plantas terrestres é o CO2 atmosférico, com valor δ13C em torno de -7‰ (Schoeninger e Moore 1992, Ambrose 1993). O valor δ13C das plantas é determinado pela composição isotópica da atmosfera e por seu caminho fotossintético que, sendo diferente em diferentes tipos de plantas, gera variação em seus valores δ13C (Bender 1968, Smith e Epstein 1971). As plantas C3, que contam com três átomos de carbono na molécula formada durante o primeiro estágio da fotossíntese, discriminam mais intensamente o 13 C presente na atmosfera e, assim, possuem valores δ13C entre -20‰ e -34‰, com média em torno de -26‰. São exemplos de plantas C3 e alguns de seus produtos o trigo, o arroz, gramíneas de montanha e áreas alagadas, todos os tubérculos, bulbos e raízes tuberosas, legumes vegetais, nozes, mel e a maior parte das frutas. As plantas C4, que contam com quatro átomos de carbono na molécula formada durante o primeiro estágio da fotossíntese, discriminam menos o 13 C presente na atmosfera e, assim, possuem valores δ13C entre -16‰ e -9‰, com média em torno de -12‰. São exemplos de plantas C4 o sorgo, os milhetes, o milho, a cana-de-açúcar, alguns amarantos e as gramíneas tropicais. As plantas CAM (crassulacean acid metabolism), como as suculentas, utilizam tanto o caminho C3 quanto o caminho C4, dependendo das condições ambientais; em ambientes áridos e quentes as plantas CAM utilizam o caminho C4 e, nesses casos, apresentarão valores δ13C iguais aos das plantas C4 (Bender 1968, Smith e Epstein 1971, Schoeninger e Moore 1992, Ambrose 1993). Em ambientes marinhos, as fontes de carbono são muitas, como os detritos terrestres lavados para o oceano, com valor δ13C igual à média dos valores δ13C das plantas locais; o CO2 dissolvido, com valor igual ao CO2 atmosférico de -7‰; e o bicarbonato dissolvido, com valor δ13C de 0,0‰ (Schoeninger e Moore 1992, Ambrose 1993, Epstein 1971). Como a maior parte das espécies de plânctons que fornecem carbono à cadeia alimentar marinha apresentam valores δ13C intermediários entre as plantas C3 e C4, os animais vertebrados marinhos, em geral, apresentam valores entre -20‰ e -16‰, podendo haver sobreposição dos valores δ13C provenientes de ambientes marinhos com os valores de plantas C4. Quanto aos ecossistemas de água doce, o carbono disponível para 93 consumo dos organismos provém dos detritos terrestres e do CO2 dissolvido, gerando valores δ13C que vão refletir a contribuição relativa dos valores δ13C das plantas locais e do valor do CO2 atmosférico (-7‰) (Schoeninger e Moore 1992). As principais fontes de nitrogênio em ecossistemas terrestres são as plantas que possuem simbiose com bactérias fixadoras de N2 (leguminosas) e, portanto, sintetizam valores δ15N parecidos com o do N2 atmosférico, próximos de 0,0‰; e os nitratos gerados na decomposição da matéria orgânica por bactérias, que possuem mais 15N do que há na atmosfera, tornando os valores δ15N das plantas que os utilizam mais positivos. Embora haja uma grande variabilidade de composições isotópicas nas plantas terrestres, a maioria delas apresenta valores δ15N semelhantes ao do N2 atmosférico (Schoeninger e Moore 1992). Já nos ambientes marinhos, a maior parte do nitrogênio disponível é resultante da ação das bactérias desnitrificantes, que transformam nitratos e outras substâncias em N2 com maior quantidade de 15N do que o N2 atmosférico dissolvido. Assim, embora haja uma grande variabilidade nos valores δ15N marinhos, estes são, em geral, mais positivos do que o δ15N atmosférico (0,0‰) (Schoeninger e Moore 1992), sendo o valor δ15N das plantas marinhas pelo menos 4‰ maiores que os das plantas terrestres (Ambrose 1993). Outro fator que faz com que os valores δ15N em ambientes marinhos sejam mais elevados que os valores terrestres é a existência de um maior número de níveis tróficos nos oceanos. Por meio da alimentação, as diferentes composições isotópicas presentes na base da cadeia alimentar são adquiridas pelos animais e humanos, porém não de forma direta, uma vez que, assim como os isótopos de carbono metabolizados pelas plantas, estão sujeitas a fracionamento. As diferenças entre as massas dos isótopos de elementos leves como o nitrogênio e o carbono resultam em diferenças em suas taxas de reação quando participam de reações químicas, e, ainda, caso o equilíbrio seja estabelecido dividem-se de forma diferente entre os produtos da reação e a substância consumida no processo; por isso, não somos exatamente aquilo que comemos (Schoeller 1999). Os valores δ15N e δ13C aumentam ao longo dos níveis tróficos da cadeia alimentar, com um enriquecimento de aproximadamente 1‰ nos valores δ13C entre cada nível (DeNiro e Epstein 1978) e de 3‰ nos valores δ15N (DeNiro e Epstein 1981). Isso acontece 94 porque durante o processo de metabolismo os laços existentes entre os isótopos 12C e os isótopos 14N se partem mais rapidamente do que os isótopos 13C e 15N e, além disso, mais 14 N do que 15N é excretado na ureia (Schoeninger e Moore 1992). Como o enriquecimento do carbono é muito pequeno, é difícil de ser identificado, a não ser em sistemas muito bem controlados. O enriquecimento do nitrogênio, por outro lado, permite a identificação clara de valores δ15N mais positivos nos animais herbívoros com relação às plantas das quais se alimentam, e nos carnívoros com relação aos herbívoros, e por aí vai (Schoeninger e Moore 1992). Na ilustração abaixo, é possível observar como é pequeno o aumento dos valores δ13C na passagem de um nível trófico para o outro, sendo sua variação determinada mais pelo tipo de planta consumido (se C 3 ou C4) do que pelo enriquecimento trófico; enquanto que a variação dos valores δ15N é mais determinada pelo enriquecimento trófico do que pelo tipo de planta consumido. É visível também que, em geral, tanto os valores δ13C quanto os valores δ15N são maiores no ecossistema marinho. 15 13 Figura 16: Representação da forma como estão distribuídos os valores δ N e δ C na cadeia alimentar. Fonte: Price e Burton (2011: 203). 95 Além do enriquecimento trófico, a composição isotópica de nitrogênio e carbono nos animais e humanos é determinada pelo metabolismo dos diferentes tipos de tecidos (fracionamento secundário). A fração bioquímica mais frequentemente utilizada em estudos arqueológicos é o colágeno, proteína extremamente resistente a alterações diagenéticas, que representa 20% do peso dos ossos e da dentina, sendo seu principal componente orgânico (Lee-Thorp et al. 1989, Ambrose 1993). O aumento nos valores δ13C do colágeno com relação aos valores da dieta foi estimado entre 2,8 e 3,7‰ por DeNiro e Epstein (1978), mas pode ser mais variável, entre 3 e 6‰ (Lee-Thorp et al. 1989, Bocherens e Drucker 2003). O aumento nos valores δ15N para o colágeno foi estimado entre 1,4‰ e 3,4‰ por DeNiro e Epstein (1981) e acabou sendo estabelecido em 3‰ (Schoeninger e Moore 1992), porém diversos estudos vêm mostrando que esse valor é extremamente variável, podendo ser de 1,7 a 6,9‰ (Bocherens e Drucker 2003). Figura 17: Representação da forma como se dá o fracionamento dos isótopos de carbono, desde o momento em que adentram o sistema biológico por meio dos diferentes ciclos fotossintéticos das plantas C 3 e C4, até o 13 momento em que têm seus valores δ C aumentados no colágeno dos animais. Fonte: Price e Burton (2011:93). 96 O carbonato presente na apatita – forma cristalizada de fosfato de cálcio que corresponde à fração inorgânica dos ossos e dentes, compondo 70% dos ossos e dentina e 98% do esmalte dentário – também é utilizado em estudos arqueológicos, porém apenas na análise de isótopos de carbono (Ambrose 1993). Devido à existência de controvérsias em torno da sua suscetibilidade à contaminação pós-deposicional, a apatita é utilizada menos frequentemente que o colágeno, embora atualmente tal suscetibilidade tenha sido relativizada, pelo menos com relação à apatita do esmalte dentário (Lee-Thorp et al. 1989, Ambrose 1993, Katzenberg e Harrison 1997). O aumento do valor δ13C na apatita com relação ao valor da dieta devido ao processo de fracionamento secundário é estimado entre 9,6 e 13‰ (DeNiro e Epstein 1978, Lee-Thorp et al. 1989). Porque os valores δ15N e δ13C variam entre diferentes tipos de plantas (C3, C4, CAM, leguminosas e não leguminosas) e entre diferentes ambientes (terrestre, marinho, água doce), e, ainda, passam por enriquecimento trófico através da cadeia alimentar, com a análise da composição isotópica dos animais e humanos podemos estimar sua dieta, desde que o tecido a ser analisado seja devidamente isolado dos demais (DeNiro e Epstein 1978, 1981; Schoeninger, DeNiro e Tauber 1983; Schoeninger e DeNiro 1984; Walker e DeNiro 1986; Ambrose 1993). Nesse sentido, os valores δ13C obtidos indicarão se a dieta era baseada em plantas C3 ou C4 e, embora os valores das plantas C4 possam se sobrepor aos valores marinhos, podem também auxiliar na diferenciação entre dietas marinhas e terrestres. Os valores δ15N, por sua vez, vão indicar o consumo relativo de leguminosas e não leguminosas, de recursos terrestres e recursos marinhos e, ainda, dar uma estimativa do nível trófico ocupado pelo indivíduo analisado. A análise dos isótopos de nitrogênio, comumente realizada a partir de colágeno em estudos arqueológicos, sempre revelará a dieta proteica. A análise dos isótopos de carbono, se realizada por meio do colágeno, também informará sobre dieta proteica, porém, se realizada a partir do carbonato presente na apatita trará informação sobre a dieta total do indivíduo (DeNiro e Epstein 1978, Lee Thorp et al. 1989, Katzenberg e Harrison 1997). Análises isotópicas de nitrogênio e carbono em sítio conchíferos catarinenses, realizadas tanto a partir de colágeno (De Masi 2001, 2009; Bastos 2014; Colonese et al. 97 2014) quanto a partir do carbonato da apatita (Bastos 2014), têm revelado uma dieta predominantemente marinha para essas populações litorâneas. Dentro dos limites dessa tendência geral, contudo, parece ter havido algumas variações temporais e intrassítio. Os resultados obtidos por De Masi (2001, 2009) revelam uma dieta baseada principalmente em peixe para diversos sítios do litoral catarinense, porém com uma variação intra e intersítio considerável, a exemplo de alguns indivíduos dos sítios Ponta das Almas, Morro do Ouro e Enseada I que despontaram com dietas mais terrestres – valores δ13C e δ15N menores. A partir de 1000 A.P., a dieta se mantém essencialmente marinha tanto em sítio cerâmicos quanto em não cerâmicos, porém, desse momento em diante, alguns grupos baixam sua razões de nitrogênio para em torno de 10‰ (limite inferior de dietas marinhas), mantendo, no entanto, as razões de carbono por volta de 12‰, o que, segundo o autor, poderia estar indicando a entrada de um componente alimentar diferente, como o consumo de plantas C4, que estaria mantendo os valores carbono, porém, baixando os de nitrogênio. Os dados de De Masi (2001, 2009), portanto, indicam que a dieta permaneceu essencialmente marinha ao longo do tempo e, ao mesmo tempo, indicam que dentro dos limites dessa tendência geral houve transformação para uma dieta mais terrestre – ou menos marítima – por volta de 1.000 A.P., independentemente da presença de cerâmica nos sítios ou não. Pequenas variações num todo homogêneo maior. As análises realizadas por Bastos (2014) também indicaram que a pesca teve uma grande importância na dieta dos indivíduos analisados dos sítios Forte Marechal Luz e Tapera, sendo que neste último alguns indivíduos chegaram a apresentar valores de isótopos de nitrogênio compatíveis com grande consumo de animais de alto nível trófico como tubarões, lobo e leão marinho (com δ15N superior a 19‰). Apesar da tendência à dieta marinha, no sítio Tapera quatro indivíduos do sexo feminino apresentaram valores δ13C mais negativos que os demais indivíduos (menores que -12‰), o que poderia estar indicando um consumo maior de alimentos terrestres. O mesmo aconteceu com alguns indivíduos do sítio Forte Marechal, o que, segundo o autor, indica a possibilidade de haver mudanças de hábitos alimentares dos indivíduos sepultados no Forte Marechal Luz em tempos mais tardios. 98 Por fim, Colonese et al. (2014) estimaram que tanto os indivíduos do sítio Jabuticabeira II, sem presença de cerâmica, quanto os indivíduos do sítio Galheta IV, com presença de cerâmica, estariam consumindo proteína proveniente principalmente de peixes (mais de 80%), com também alguma contribuição de aves e mamíferos marinhos. No sítio Jabuticabeira II, contudo, o autor observou uma grande variabilidade que não parece estar relacionada a fatores como sexo e idade, com alguns indivíduos apresentando valores δ15N mais elevados (acima de 20‰) e outros apresentando valores mais baixos (entre 14 e 11‰), assim como indivíduos com valores δ13C muito mais negativos que os demais (menores que -15‰). 15 13 Figuras 18a e 18b: Valores δ N e δ C obtidos a partir do colágeno de grupos humanos históricos e pré-históricos. Os pontos representam os valores dos indivíduos; a amplitude, média e desvio padrão de cada grupo estão indicados. Fonte: Schoeninger, DeNiro e Tauber (1983: 1382). 99 4.3 Isótopos de estrôncio (87Sr/86Sr) O elemento estrôncio (Sr) possui quatro isótopos que ocorrem naturalmente, (0.56%), 86 Sr (9.87%) e 88 Sr (82.53%), sendo o quarto deles, 87 84 Sr Sr (7.04%), um isótopo radiogênico, ou seja, fruto do decaimento radioativo de um radioisótopo mãe, no caso, do rubídio (87Rb), que leva uma meia-vida de 4.88 × 1010 anos para decair em 87Sr. Uma vez que depende do decaimento do 87Rb, a abundância de 87Sr na geologia local é variável e, para que possa ser comparada em diferentes amostras, é determinada em relação a um isótopo de estrôncio não-radiogênico, o 86Sr (Bentley 2006). Esta variação, portanto, é chamada de “razão isotópica de estrôncio” (87Sr/86Sr), a qual depende da abundância de estrôncio, de rubídio – o que pode variar conforme o tipo de rocha – e da idade da rocha. Assim, unidades geológicas mais antigas (mais de 100 milhões de anos) e com alta concentração de rubídio, apresentarão razões isotópicas 87 Sr/86Sr mais elevadas, acima de 0,710; ao passo que formações geológicas mais recentes (menos de 1 a 10 milhões de anos) e com baixa concentração de rubídio, apresentarão razões isotópicas menores, geralmente abaixo de 0,704 (Herz e Garrison 1998; Bentley 2006: 137; Price, Burton e Bentley 2002: 118). Por meio do intemperismo dos materiais geológicos, o estrôncio presente nas rochas atinge o solo e a água subterrânea, caminho que o leva até a cadeia alimentar e, portanto, ao esqueleto humano, onde substitui o cálcio nos minerais do tecido esquelético10 (Bentley 2006: 136). Embora a concentração de estrôncio total nos tecidos das plantas e animais seja controlada por seus níveis tróficos, a composição isotópica de estrôncio não é modificada por processos biológicos – não sofre fracionamento efetivo – fazendo com que a razão isotópica de estrôncio presente nos ossos e dentes corresponda à da dieta do indivíduo e esta, por sua vez, reflita a assinatura isotópica 87 Sr/86Sr da geologia local (Price, Burton e Bentley 2002: 118). Como, porém, os animais se alimentam de uma mistura dos recursos disponíveis na área em que vivem e, ainda, o 87Sr/86Sr de sua dieta é resultado da média do 87 Sr/86Sr consumido ao longo do tempo de formação do 10 Isso acontece porque o estrôncio possui o raio iônico um pouco maior que o do cálcio, possibilitando a substituição deste por aquele em diversos minerais (Bentley 2006: 136). 100 tecido esquelético, a variação de suas razões isotópicas é sempre consideravelmente menor que a variação das razões nas fontes de estrôncio disponíveis, diminuindo quanto maior for o nível trófico (processo de biopurificação) (Bentley 2006). Assim, indivíduos provenientes de uma região de formação geológica variada provavelmente não apresentarão essa mesma variação em suas assinaturas isotópicas, mas uma média do 87 Sr/86Sr consumido. Analisando as razões isotópicas de estrôncio de indivíduos sepultados em sítios arqueológicos, portanto, podemos ter acesso à média das assinaturas 87Sr/86Sr consumidas que, se comparada à assinatura da geologia e outras fontes locais de estrôncio, pode gerar informações sobre migração e mobilidade humana pré-colonial (Price, Burton e Bentley 2002: 118). Ossos e dentes (dentina), no entanto, são muito suscetíveis a contaminações pósdeposicionais, causadas por processos diagenéticos11 que podem modificar a assinatura isotópica outrora presente no esqueleto do indivíduo em vida (Hillson 2005: 152). Por esta razão, muitos estudos de mobilidade humana a partir de 87Sr/86Sr têm focado no esmalte dentário para a realização das análises (Price et al. 1994; Grupe et al. 1997; Bentley et al. 2003; Montgomery, Evans e Neighbour 2003; Knudson et al. 2004; Wright 2005; Evans, Chenery e Fitzpatrick 2006). Figura 19: Localização do esmalte dentário (enamel) na estrutura do dente. Fonte: Hillson (2005: 9). 11 Processos diagenéticos são caracterizados pela destruição dos ossos que, uma vez depositados debaixo da terra, são afetados por diversos agentes físicos e químicos (raízes de plantas, fungos, algas, bactérias, artrópodes e suas larvas, água e cristais) (Ortner 2003: 79). 101 O esmalte dentário é composto em 96% por material inorgânico que se aproxima à hidroxiapatita (uma forma cristalizada do fosfato de cálcio), em menos de 1% por material orgânico e, de resto, por água. Costuma ser, dentre os tecidos duros, aquele que melhor se preserva: sua composição predominantemente mineral faz com que a decomposição da matéria orgânica do indivíduo sepultado tenha mínimos efeitos sobre o esmalte e, ainda, sua natureza cristalina faz dele duro e forte, resistente à erosão mecânica, possibilitando alcançar resultados mais confiáveis. Além disso, diferentemente dos ossos, o esmalte dentário não sofre remodelação de acordo com a dieta, sendo formado na infância e permanecendo igual, com mínima alteração, ao longo da vida (Hillson 2005), o que permite a análise da assinatura isotópica do estrôncio consumido nos primeiros anos de vida do indivíduo. Nesse caso, se a razão isotópica do esmalte se apresentar semelhante à assinatura local, o indivíduo possivelmente será de proveniência local e, se a razão apresentar-se diferente, o indivíduo possivelmente será um imigrante (não-local), tendo vivido em outra região durante a infância. A geologia, contudo, não é a única fonte de estrôncio disponível na biosfera para consumo de um indivíduo e, portanto, não basta a comparação das assinaturas isotópicas dos dentes humanos com aquelas da base rochosa local para inferir proveniência. Há uma diferença entre o estrôncio do substrato geológico e o estrôncio biologicamente disponível. A razão isotópica valores 87 87 Sr/86Sr obtida para um indivíduo é a média de todos os Sr/86Sr que contribuíram para a amostra analisada, provenientes de diferentes fontes, como a própria geologia, o solo, as plantas, os animais, os rios, o oceano, as chuvas, o ar e os processos diagenéticos (Price, Burton e Bentley 2002; Bentley 2006). É de extrema importância, portanto, a determinação da assinatura isotópica disponível localmente (Price, Burton e Bentley 2002), de modo que, juntamente com a caracterização da geologia local, sirva de parâmetro no momento de interpretar os resultados. 102 Figura 20: Diagrama representando os fatores que podem interferir na assinatura isotópica de uma amostra, esta não sendo, portanto, um reflexo direto da geologia local. Fonte: Bentley (2006). A assinatura local pode ser determinada por meio da análise dos ossos dos mesmos indivíduos que forneceram os dentes ou outros indivíduos do sítio (Price et al. 1994; Grupe et al. 1997; Bentley et al. 2003; Evans, Chenery e Fitzpatrick 2006), de ossos e dentes de fauna arqueológica do sítio estudado ou de sítios próximos (Bentley et al. 2003), e, ainda, a partir da análise de fauna moderna proveniente da área de estudo (Knudson et al. 2004, Wright 2005). De fato, se os esqueletos estiverem extraordinariamente bem preservados, as razões do esmalte dentário e dos ossos podem ser comparadas com sucesso; nesse caso, se as assinaturas se mostrarem diferentes, o indivíduo terá passado seus últimos anos em local distinto daquele onde passou a juventude (Price et al. 1994; Grupe et al. 1997; Evans, Chenery e Fitzpatrick 2006). Acontece que, como já vimos, os ossos são muito suscetíveis a contaminações pós-deposicionais e, embora a contaminação se dê justamente por assinaturas locais do solo e da água subterrânea – o que tornaria a amostra útil para comparação – ela também acaba por reduzir os desvios padrões, estreitando a amplitude do 87 Sr/86Sr disponível localmente. Nesse mesmo sentido, o uso de fauna moderna para a determinação da assinatura local está sujeito a possíveis vieses causados pelo consumo de alimentos importados ou, mesmo, de alimentos locais com estrôncio exótico proveniente de fertilizantes ou da poluição do ar (Price, Burton e Bentley 2002; Bentley 2006). 103 Tendo em vista essas dificuldades, Price, Burton e Bentley (2002) e Bentley (2006) sugerem que para a determinação da assinatura isotópica 87 Sr/86Sr local e comparação com a assinatura do esmalte dentário humano, sejam analisados – quando possível – dentes de fauna arqueológica proveniente do sítio estudado, também a partir do esmalte dentário. Desse modo, os problemas relacionados à presença de estrôncio moderno antropogênico, aos processos diagenéticos e à grande variabilidade das assinaturas locais – sendo que o animal adquire uma média das razões 87Sr/86Sr disponíveis – são minimizados. Com relação à aplicação de isótopos de estrôncio em sítios arqueológicos litorâneos, como é o caso dos sítios conchíferos, é importante atentar para a contribuição do oceano nas assinaturas isotópicas dos indivíduos. Como a água do mar recebe constantemente material proveniente da erosão e desgaste da crosta continental, sua razão 87 Sr/86Sr representa a média das razões de todo material recebido ao redor do mundo, além de ter influência também dos basaltos que se formam nas dorsais mesooceânicas. E como o estrôncio permanece na água por milhões de anos, enquanto o tempo de renovação dos oceanos é de apenas milênios, a assinatura 87Sr/86Sr é sempre a mesma em todos os oceanos do mundo num dado momento, sendo atualmente de 0,70917 – embora ao longo do tempo geológico tenha variado entre 0,707 e 0,709 (Allègre 2008, Bentley 2006). As conchas e carbonatos formados em meio à água do mar refletem a assinatura isotópica do oceano no momento de sua formação e, portanto, também apresentam esta razão de 0,70917. Nesse mesmo sentido, por meio de fenômenos como a maresia e as chuvas associadas à evaporação da água do mar, o estrôncio marinho pode dominar as assinaturas isotópicas da biosfera em áreas costeiras, a ponto de plantas e animais provenientes de regiões com formação geológica muito antiga acabarem apresentando razões 87Sr/86Sr menores, próximas à do oceano (Bentley 2006), o que pode levar também a uma homogeneização nos valores isotópicos de regiões ao longo de uma faixa costeira com geologia variada. No contexto dos sítios conchíferos brasileiros, análises de isótopos de estrôncio foram realizadas por Bastos (2009, 2014) e Calippo (2010), porém com enfoques e a partir de materiais diferentes. Bastos (2009, 2014) estudou o sítio do Forte Marechal Luz, em São 104 Francisco do Sul, e o sítio da Tapera, em Florianópolis, com o objetivo de investigar padrões de mobilidade e migração humana a partir da correlação entre as razões isotópicas de estrôncio presentes nos esmaltes dentários e aquelas disponíveis na geologia e biologia local. Suas análises foram feitas a partir do esmalte dentário dos indivíduos sepultados nos sítios analisados, com análise conjunta da fauna arqueológica local para determinação da assinatura biologicamente disponível. Calippo (2010), por sua vez, buscou investigar a relação existente entre diferentes agrupamentos de sambaquis situados no médio vale do Ribeira, baixo vale do Ribeira, litoral central e litoral norte de São Paulo, a partir da comparação entre as razões isotópicas médias dos indivíduos de cada um dos conjuntos de sítios. Suas análises foram feitas tanto a partir de dentes (esmalte, dentina e raiz) quanto a partir de ossos (densos e porosos), e sem determinação da assinatura da fauna local para comparação. Aqui, o enfoque se assemelha àquele de Bastos (2009, 2014). 105 5 Cronologia e práticas rituais 5.1 Datações radiocarbônicas 5.1.1 Materiais e métodos Para a realização das datações radiocarbônicas dos indivíduos sepultados no sítio Armação do Sul foram selecionados pequenos fragmentos ósseos de todos os esqueletos presentes na reserva técnica do Museu do Homem do Sambaqui que possuíam pós-crânio e sobre os quais se tinha as informações arqueológicas necessárias para contextualização, descartando-se aqueles que poderiam ter tido sua posição estratigráfica original alterada por processos pós-deposicionais, bem como aqueles que nesses processos ou na curadoria na instituição de guarda poderiam ter tido seus ossos misturados com os de outros indivíduos12. Foram também selecionados para datação três indivíduos do sítio da Tapera que apresentam lesão associada à violência, de forma que pudéssemos comparar com a datação obtida para o indivíduo do sítio da Armação do Sul que apresenta lesão similar e, assim, compreender melhor e situar cronologicamente o desenvolvimento dessas práticas violentas no litoral central. Houve preferência por fragmentos de costela, mas, na ausência dessas, ou nos casos em que os esqueletos as apresentavam em pouca quantidade, foram coletados pequenos fragmentos de ossos longos, de crânio e de metacarpo. Evitamos a coleta de ossos com presença de patologias e outros marcadores bioarqueológicos que pudessem gerar informações importantes para pesquisas futuras. No total, foram analisadas 32 amostras humanas pertencentes a indivíduos adultos 12 As coletas foram realizadas com o auxílio da bioarqueóloga Me. Luciane Zanenga Scherer. 106 e crianças do sítio da Armação do Sul e três amostras referentes ao sítio da Tapera. O sexo e a idade dos indivíduos foram determinados pelas pesquisadoras Andrea Lessa e Luciane Zanenga Scherer, segundo o protocolo de Buikstra e Ubelaker (1994). Todo o material coletado foi devidamente fotografado e documentado. As amostras foram enviadas para o laboratório Beta Analytic (Miami, Flórida) para a determinação de suas datações radiocarbônicas por espectrometria de massas com aceleradores (EMA), a partir de colágeno. As idades radiocarbônicas convencionais foram corrigidas com relação ao fracionamento isotópico, calculado por meio de δ13C, e representam 1 sigma ou 68% de probabilidade. De acordo com o relatório de análises, as calibrações foram feitas por meio da curva SHCal13, referente ao hemisfério sul e atualizada em Hogg et al. (2013). As idades calibradas representam 2 sigmas ou 95% de probabilidade. Para fins de apresentação na tabela, as idades radiocarbônicas que interceptam a curva de calibração em mais de um ponto tiveram seus intervalos unidos nos casos em que havia proximidade entre eles. 5.1.2 Resultados Dentre as 32 amostras enviadas para datação, duas apresentaram problemas com relação à preservação do colágeno e não puderem ser datadas, ambas referentes a indivíduos do sítio Armação do Sul (sep. 47, três fragmento de crânio e sep. 23, quatro fragmentos de osso longo). No total, portanto, obtivemos 30 datações para este sítio, em vez das 32 que estavam previstas. A idade mais antiga obtida para os indivíduos sepultados na porção escavada do sítio da Armação do Sul foi de 3065-2880 anos cal AP (sep. 37), recuando a datação de 2670 ± 90 AP (Schmitz et al. 1992) obtida a partir de uma amostra de carvão da base que, até então, era a única data disponível para o sítio; e a idade mais recente foi de 1315- 1275 anos cal AP (sep. 31), estendendo o período de ocupação do sítio para até momentos antes do aparecimento dos primeiros sítios conchíferos com presença de cerâmica no litoral central. 107 Os três indivíduos com evidência de violência do sítio Tapera apresentaram as seguintes idades, podendo haver contemporaneidade entre eles ou não: 1280-1115 (sep. 28), 1180-985 (sep. 63) e 1065-935 anos cal AP (sep. 110). As datações obtidas, portanto, estão em conformidade com aquelas disponíveis para este sítio até então, de 1.140 ± 180 e 1.030 ± 180 (Silva et al. 1990). Sítio Sep Sexo Idade Material analisado ID Lab Idade convencional (anos AP) Idade calibrada (anos cal AP) ARM 2 M AJ colágeno, costela Beta 384002 1550 ± 30 1430-1315 ARM 3 M AM colágeno, costela Beta 384003 2270 ± 30 2335-2155 ARM 5 M AJ colágeno, costela Beta 384004 1580 ± 30 1520-1360 ARM 6 F A colágeno, crânio Beta 384005 2430 ± 30 2490-2345 ARM 8 M AM colágeno, costela Beta 384006 2360 ± 30 2355-2315 ARM 14 M AM colágeno, costela Beta 384008 2290 ± 30 2345-2160 ARM 15 F A colágeno, costela Beta 384009 2330 ± 30 2350-2305, 2225-2210 ARM 17 F A colágeno, costela Beta 384010 2180 ± 30 2300-2250, 2180-2020 ARM 22 F A colágeno, costela Beta 384011 1660 ± 30 1575-1425 ARM 27 F A colágeno, osso longo Beta 384012 2380 ± 30 2360-2330 ARM 28 F A colágeno, costela Beta 384013 2700 ± 30 2790-2745 ARM 29 M A colágeno, costela Beta 384014 2480 ± 30 2700-2355 ARM 31 F AM colágeno, costela Beta 384015 1430 ± 30 1315-1275 ARM 32 M A colágeno, osso longo Beta 384016 2530 ± 30 2725-2440 ARM 33 M AM colágeno, costela Beta 384017 2630 ± 30 2755-2720 ARM 36 M A colágeno, costela Beta 384018 2690 ± 30 2785-2745 ARM 37 M AM colágeno, costela Beta 384019 2900 ± 30 3065-2880 ARM 39 I C colágeno, crânio Beta 384032 2750 ± 30 2860-2755 ARM 40 M I colágeno, costela Beta 384020 2780 ± 30 2880-2765 ARM 45 F A colágeno, crânio Beta 384021 2760 ± 30 2865-2760 ARM 51 M AM colágeno, costela Beta 384023 2790 ± 30 2920-2775 ARM 57 F A colágeno, costela Beta 384025 2720 ± 30 2845-2750 ARM 58 I I colágeno, osso longo Beta 384026 2670 ± 30 2775-2740 ARM 59 F* A colágeno, osso longo Beta 384024 2660 ± 30 2765-2735 ARM 61 M A* colágeno, crânio Beta 384033 2380 ± 30 2360-2330 ARM 66 I C colágeno, costela Beta 384027 2410 ± 30 2460-2345 ARM 67 I C colágeno, costela Beta 384029 2190 ± 30 2300-2240, 2180-2055 ARM 69 I C colágeno, costela Beta 384031 2190 ± 30 2300-2240, 2180-2055 ARM 72 F AJ colágeno, costela Beta 384028 2610 ± 30 2750-2710, 2625-2620 ARM 74 M* AM colágeno, osso longo Beta 384007 2830 ± 30 2955-2795 TAP 28 M A colágeno, costela Beta 384034 1150 ± 30 1065-935 TAP 63 M AM colágeno, costela Beta 384035 1220 ± 30 1180-985 TAP 110 M AJ colágeno, costela Beta 384036 1330 ± 30 1280-1115 Tabela 1: Datações radiocarbônicas dos indivíduos sepultados no sítio Armação do Sul. Legenda: I= indeterminado, M= masculino, F= feminino, AM= adulto maduro, A= adulto, AJ= adulto jovem, C= criança, *= possível (há dúvida na determinação, porém será considerado como consta na tabela para fins estatísticos). 108 No histograma abaixo é possível observar que o período em que há possibilidade de ter havido o maior número de indivíduos sepultados no sítio da Armação do Sul é entre 2700 AP e 2800 AP, seguido pelo período que vai de 2300 AP a 2500 AP, sendo consideravelmente menor a quantidade de sepultamentos com possibilidade de apresentar datações anteriores ou posteriores a estes dois períodos. Nota-se que, entre estes dois momentos de pico mencionados, há uma diminuição brusca e momentânea no número de indivíduos sepultados, por volta de 2600 AP. Gráfico 3: Histograma representando a frequência das datações radiocarbônicas (anos cal AP) do sítio Armação do Sul. Nota-se que as idades estão duplicadas (havendo 60 idades do total), tendo sido para este gráfico considerado o limite máximo e mínimo do intervalo de calibração de cada uma das datas. Apesar dos altos e baixos na frequência de sepultamentos, o histograma mostra que a população associada ao sítio Armação do Sul utilizou o local para fins funerários de forma contínua entre aproximadamente 3000 AP e 2000 AP, configurando um período de mais ou menos 1000 anos de continuidade. Este período aparentemente foi seguido por 400 anos de interrupção na utilização do local como área funerária, entre 2000 AP e 1600 AP aproximadamente, e, depois, por mais um período de 400 anos de retorno na utilização do local. 109 É importante lembrar que as datações obtidas dizem respeito somente aos indivíduos sepultados na porção do sítio que foi escavada por Rohr e Andreatta (1969). Grande parte do sítio permanece não escavada e desconhecida, portanto, não é possível dizer que o período de 400 de interrupção nas práticas funerárias no local representa um período de abandono do sítio. E como as datações foram feitas somente a partir dos esqueletos, também não é possível dizer que estes 400 anos representam um abandono total das atividades desenvolvidas no local. O que as idades obtidas para os 30 indivíduos datados nos permitem dizer é que, possivelmente, entre 2000 AP e 1600 AP essa área funerária específica deixou de ser utilizada para esse fim. s ep 2 sep 2 Gráfico 4: Gráfico de dispersão das idades obtidas para o sítio da Armação do Sul e da Tapera, representadas pelos intervalos de calibração. 110 No gráfico de dispersão essa interrupção momentânea fica bastante clara. Fica clara também a ausência de contemporaneidade entre o indivíduo com evidência de violência do sítio Armação do Sul, com idade de 1430-1315 anos cal AP (marcado como “sep 2” no gráfico), e os indivíduos do sítio Tapera que apresentam esse mesmo tipo de lesão. O aumento da violência no litoral central, portanto, não necessariamente está relacionado ao advento da cerâmica, tendo início momentos antes desse acontecimento. Para compreendermos melhor como as mudanças nas práticas mortuárias e no sedimento que forma o sítio se inserem nessa cronologia, foi elaborado um croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos acompanhadoss de suas datações. As ep 2 informações contidas no croqui foram retiradas das fichas de sepultamentos preenchidas por Rohr e Andreatta ao longo da escavação de 1969 (ver anexo I), bem como de Rohr e Andreatta (1969), Rohr (1974) e Schmitz et al. (1992). Os seis sepultamentos referentes à escavação de 1974 não foram incluídos no croqui, uma vez que apresentam descrições imprecisas e menos cuidadosas que as demais. Constam no desenho, portanto, somente os 80 sepultamentos escavados em 1969. No croqui é possível observar que, primeiramente, os indivíduos foram sepultados na areia de cor marrom clara da base do sítio, para depois passarem a ser envolvidos pelo sedimento marrom escuro que forma a segunda camada do sítio. Nesse momento inicial, entre aproximadamente 3000 AP e 2600 AP, é possível que tenha havido duas áreas funerárias distintas, uma com maior concentração de sepultamentos, no canto esquerdo do croqui, e outra com apenas quatro indivíduos, no canto direito. Os indivíduos da camada de areia marrom clara poderiam dividir-se entre estas duas áreas, estar isolados ou mesmo compor uma área distinta. No momento seguinte, entre aproximadamente 2500 AP e 2000 AP, parece que há uma inversão, com a maior parte dos sepultamentos concentrando-se no canto direto e em meio à terra preta, havendo apenas um no canto esquerdo e outro na parte central. Tem início então, possivelmente, um período de interrupção momentânea das atividades nessas áreas funerárias, atividades que voltam a acontecer somente por volta de 1600 AP, quando quatro indivíduos são sepultados também na área correspondente ao canto direito do croqui, em meio à terra preta. 111 Figura 21: Distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul, acompanhados de suas respectivas datações (em anos cal AP). Nota-se que o croqui representa, em um plano vertical bidimensional, um espaço tridimensional de 85 m² e 2 m de profundidade. Tendo em vista as irregularidades na topografia da área escavada, os limites entre as camadas foram estabelecidos com base nos sepultamentos e nas informações sobre o tipo de sedimento em que estavam envolvidos. 112 Com relação às mudanças no sedimento e nas práticas mortuárias, parece que os sepultamentos com datações entre 3000 AP e 2400 AP concentram-se nas camadas de sedimento arenoso marrom claro e escuro, enquanto os sepultamentos entre 2400 AP e 2000 AP e entre 1600 AP e 1200 AP concentram-se na camada de terra preta. É possível, então, que a mudança no sedimento que compõe essa porção do sítio tenha ocorrido em algum momento entre 2400 e 2300 AP. Curiosamente, embora a mudança nas práticas mortuárias representada principalmente pelo abandono no uso do ocre de certa forma acompanhe a mudança no sedimento que forma o sítio, tendo também possivelmente acontecido em algum momento entre 2400 AP e 2300 AP, houve manutenção no uso do ocre em alguns sepultamentos desse período. Isso indica que, talvez, no momento em que se deu a mudança para terra preta as práticas mortuárias ainda estivessem em transição, apresentando um ritmo de mudança mais lento. Há alguns indivíduos que não se encaixam nessa periodização, porém será preciso realizar uma análise mais apurada da distribuição dos sepultamentos, com desenhos da estratigrafia e de plantas baixas em planos cronológicos para que possamos compreender o motivo pelo qual eles destoam dos demais nesse croqui geral. Esse exercício será feito logo mais, juntamente com a análise das práticas mortuárias. 5.1.3 Discussão As datações radiocarbônicas dos indivíduos do sítio Armação do Sul apontam para uma continuidade de pelo menos 1000 anos na utilização da área para atividades funerárias, entre 3000 a 2000 AP. Há, contudo, uma queda brusca e momentânea no número de sepultamentos por volta de 2600, que pode ou não estar relacionada ao evento de transgressão marinha de 2600 AP observado para a Ilha de Santa Catarina (Caruso Júnior 1989, 1995; Caruso Júnior e Awdziej 1993; Horn Filho e Livi 2012) e para o sul do Estado (Suguio et al. 1985 e Caruso Júnior 1989, 1995; Caruso Júnior e Awdziej 1993). Após esse período de 1000 anos de continuidade, parece acontecer uma pausa de 400 113 anos nas atividades funerárias, que seriam retomadas a partir de 1600 AP e estendidas até 1200 anos AP. O hiato de 400 anos nas datações pode ser explicado por fatores naturais e/ou culturais. Em determinado momento e por motivos desconhecidos, o sítio poderia ter sido abandonado e posteriormente reocupado. Como, no entanto, Rohr e Andreatta (1969), Rohr (1974) e Schmitz et al. (1992) não fazem qualquer menção a sinais de abandono ao descreverem a estratigrafia do sítio, teríamos que supor que os processos naturais de sedimentação que deixariam sinais estratigráficos desse abandono foram neutralizados pela dinâmica dos processos erosivos. Ou, então, um processo erosivo forte – talvez uma forte ressaca como as que costumam acometer a praia da Armação – poderia ter retirado a então camada superficial do sítio em que estariam os sepultamentos datados entre 2000 e 1600 AP, sem prejuízo, contudo, das atividades funerárias, que continuariam sendo empreendidas normalmente até 1200 AP. Essa ideia, contudo, é menos provável. Ainda, tendo em vista que as datações foram feitas a partir dos sepultamentos, uma terceira hipótese seria que o hiato representa apenas uma interrupção das atividades funerárias no local; outras atividades que não a sepultar os mortos poderiam estar sendo ali empreendidas entre 2000 e 1600 AP. É importante destacar que a área de 269 m² escavada em 1969 e 1974 não corresponde à totalidade da área estimada por Rohr, de 2000 m², permanecendo a maior parte do sítio e outros possíveis sepultamentos desconhecidos – e mesmo dentre os 86 sepultamentos conhecidos, apenas 35% foram datados. É possível, portanto, que o hiato seja referente somente à área escavada em 1969, da onde provêm os sepultamentos datados; ou mesmo inexistente. Vale lembrar também que existe outro sítio com presença de sepultamentos nas proximidades, o sítio Ponta da Armação, de datação desconhecida, porém possivelmente também mais tardia, uma vez que apresenta cerâmica. Não podemos, portanto, excluir a possibilidade de que o hiato esteja relacionado à criação de um novo espaço para a realização dos rituais funerários. Abandonado temporariamente ou não, as informações sobre as práticas mortuárias associadas às datações apontam para a possibilidade de haver continuidade histórica entre as diferentes populações que utilizaram o sítio para fins funerários ao longo do tempo. As 114 práticas mortuárias mantêm muitos elementos em comum através dos 1400 anos de ocupação e, ao mudarem alguns deles – como o uso do ocre, de adornos e de ponta ósseas – mudam progressivamente, de forma que o hiato nas datações não representa uma ruptura: entre 3000 e 2500 AP quase todos os indivíduos estão envolvidos em pigmentos vermelhos, raros casos estão acompanhados de pontas ósseas e quase todas as crianças estão acompanhadas de adornos; entre 2500 e 2000 AP alguns indivíduos estão envolvidos em ocre e outros não, alguns estão acompanhados de pontas ósseas e algumas crianças estão acompanhadas de adornos; entre 1600 e 1200 AP nenhum indivíduo está envolvido em ocre, mas quase todos apresentam pontas ósseas – quanto à presença de adornos entre as crianças, não é possível saber, pois todos os sepultamentos datados pertencem a indivíduos adultos. E essa progressão parece continuar, a partir de 1200, em sítios cerâmicos como Tapera e Base Aérea, apontando para possibilidade de tal continuidade histórica se estender até esses sítios mais tardios, que apresentam sepultamentos sem ocre, adornos entre algumas crianças e, pelo menos no caso do sítio Tapera, grande frequência de pontas ósseas. Na análise da distribuição dos sepultamentos na estratigrafia do sítio, é possível observar claramente uma mudança de foco na porção do sítio utilizada para as práticas funerárias. Entre 3000 e 2500 AP a maior parte dos indivíduos foram sepultados na porção sudeste da área escavada, porém entre 2500 e 2000, e depois entre 1600 e 1200, os indivíduos passaram a ser sepultados principalmente na porção noroeste. O estabelecimento dessa cronologia a partir dos esqueletos permite-nos também situar no tempo as mudanças observadas nas práticas mortuárias e no sedimento que compõe o sítio. As datações obtidas mostram que, possivelmente, a mudança para terra preta se deu em algum momento entre 2400 e 2300 AP. Há, entretanto, alguns indivíduos – principalmente crianças – que permaneceram sendo sepultados em meio à areia marrom escura nesse período e, talvez em períodos mais recentes, até 2000 AP, o que pode estar relacionado ao interesse em sepultar determinados indivíduos em determinados lugares já preexistentes, como no caso da grande concentração de crianças na quadrícula G. Os primeiros sepultamentos sem presença de ocre datam também do período de 2400 a 2300 AP, porém, assim como ocorre com a mudança no sedimento, há 115 manutenção no uso de ocre em alguns sepultamentos por certo tempo, talvez até 2000 AP, antes da prática se difundir. Manutenção que, tanto em um caso quanto no outro, pode estar associada à negociação dessas mudanças entre os diferentes atores envolvidos em seus respectivos campos de ação, em meio a uma estrutura que tende a se reproduzir (Bourdieu 2011[1967], 2011[1994]). As mudanças nas práticas mortuárias, contudo, serão abordadas com mais detalhe no tópico seguinte, em que será feita também uma análise da variabilidade dos acompanhamentos funerários e da distribuição espacial dos sepultamentos. A datação do indivíduo do sítio Armação do Sul que apresenta trauma agudo causado por ponta óssea (sep. 2) sugere que o aumento da violência no litoral pode ter começado por volta de 1430-1315 anos cal AP; logo, momentos antes do aparecimento da cerâmica na região. Essa tendência continua – e talvez até de forma mais intensa – em tempos posteriores, como no sítio cerâmico Tapera, onde os três indivíduos com lesão associada à violência apresentaram datações de 1280-1115 (sep. 28), 1180-985 (sep. 63) e 1065-935 (sep. 110) anos cal AP. É interessante notar que dentre esses três indivíduos datados do sítio Tapera apenas dois podem ter sofrido num mesmo evento a violência que levou à sua morte: os sepultamentos 28 e 63 ou os sepultamentos 63 e 110. Podemos, portanto, trabalhar com a ideia de que os traumas agudos observados nos quatro indivíduos que apresentam esse tipo de marca no litoral central foram resultantes de, pelo menos, três eventos distintos; um evento que envolveu a morte do indivíduo da Armação do Sul, e outros dois eventos que teriam envolvido a morte dos três indivíduos da Tapera. Isso nos leva a relacionar a intensificação da agressividade no litoral central mais com confrontos menores e eventuais – porém que podem estar inseridos num contexto de rivalidades bem definidas e constantes – do que com um único evento como uma grande guerra. Por fim, a partir do cruzamento entre as datações radiocarbônicas e as informações sobre as práticas mortuárias, a localização espacial e o tipo de sedimento que envolve os indivíduos sepultados, é possível estabelecer uma cronologia para os indivíduos datados. 116 3000 a 2500 anos AP a maior parte dos indivíduos foram sepultados na porção sudeste da área escavada; quase todos estão envolvidos em pigmentos vermelhos, raros casos estão acompanhados de pontas ósseas e quase todas as crianças estão acompanhadas de adornos. Período estabelecido com base em 14 indivíduos. 2500 a 2000 anos AP a maior parte dos indivíduos foram sepultados na porção noroeste da área escavada; alguns estão envolvidos em ocre e outros não, alguns estão acompanhados de pontas ósseas e algumas crianças estão acompanhadas de adornos. Período estabelecido com base em 12 indivíduos. 1600 a 1200 anos AP a maior parte dos indivíduos foram sepultados na porção noroeste da área escavada, nenhum deles está envolvido em ocre, mas quase todos apresentam pontas ósseas. Período estabelecido com base em 4 indivíduos, todos adultos. É possível, também, estabelecer uma cronologia relativa para todos os indivíduos escavados do sítio, que pode ser instrumentalizada na análise estatística dos dados com mais força, uma vez que inclui o número total de indivíduos e não apenas aqueles que foram datados. Embora tudo indique que o sítio Armação do Sul foi marcado por pelo menos três momentos distintos, essa cronologia relativa considera apenas dois, unindo o segundo momento ao terceiro devido à dificuldade em traçar uma linha divisória em meio a uma transição que – em termos de práticas mortuárias – é tão difusa, sem o auxílio de mais datações do último período ou mudanças estratigráficas que pudessem servir de guia. Período 1 indivíduos sepultados na areia marrom clara e areia marrom escura e/ou com idade entre 3000 e 2500 anos AP. A maior parte está localizada na porção sudeste na área escavada e quase todos estão envolvidos em pigmentos vermelhos, raros casos estão acompanhados de pontas ósseas e quase todas as crianças estão acompanhadas de adornos. Período 2 indivíduos sepultados na terra preta e/ou com idade entre 2500 e 1200 anos AP. A maior parte está localizada na porção noroeste da área escavada e poucos estão envolvidos em pigmentos vermelhos, vários estão acompanhados de pontas ósseas e algumas crianças estão acompanhadas de adornos. Quanto à hipótese apresentada no início deste trabalho, de que as mudanças observáveis nas práticas mortuárias e na estratigrafia do sítio Armação do Sul – passagem para terra preta – deveriam ter acontecido entre 1.500 A.P. e 1.000 A.P., ela não foi confirmada. Como vimos, as mudanças são mais antigas do que o imaginado, tendo 117 começado provavelmente entre 2400 e 2300 AP. Isso significa também que o aparecimento da terra preta no sítio Armação do Sul não se encontra em sintonia cronológica com a mudança observada para o contexto do litoral sul ou, pelo menos, para o sítio Jabuticabeira II, onde o uso da terra preta se inicia em 1540-1330 anos cal AP (Nishida 2007) – mesmo a prática anterior a essa, marcada pelo uso de sedimento escuro com ossos de peixes, é mais recente que 2400-2300 AP, datando de 1990-1710 anos cal AP. 5.2 Análise dos contextos funerários Contextos funerários são provavelmente os depósitos mais formais e cuidadosamente preparados com o quais um arqueólogo pode se deparar (Parker Pearson 1999). A morte e suas materialidades vêm recebendo atenção dos pesquisadores desde o início da formação da disciplina no século XIX, porém, a arqueologia das práticas mortuárias como um campo de pesquisa organizado e voltado para a relação entre a morte e o contexto social tomou forma somente com a edição de “Approaches to the social dimensions of mortuary practices”, por James Brown em 1970 (Chapman 2003). A partir daí, durante pelo menos toda a década de 1970, o estudo das práticas mortuárias esteve focado em extrair de contextos funerários informações sobre organização social, com base no pressuposto de que esta última estaria refletida naqueles e que, portanto, as práticas mortuárias observadas no registro arqueológico seriam nada mais nada menos que uma reificação da estrutura social (Binford 1971, Saxe 1970). Nesse sentido, Binford (1971:14-15) coloca explicitamente que a heterogeneidade nas práticas mortuárias de uma unidade sociocultural “would vary directly with the complexity of the status hierarchy, as well as the complexity of the overall organization of the society with regard to membership units and other forms of sodalities”. Assim, ao longo de uma década, buscou-se quantificar a variabilidade nos sepultamentos e estabelecer regras que auxiliassem na categorização dos diferentes indivíduos e suas personas sociais (idade, sexo, posição social, afiliação a subgrupos, causa e local da morte) a partir do modo como foram sepultados (Binford 1971, Saxe 1970). 118 Acontece que inferir identidade e posição social a partir dos elementos que compõem um contexto funerário não é tarefa tão simples: na maior parte das vezes não há relação direta entre uma coisa e outra. Em tempos de crítica pós-processual (Hodder 1985, Shanks e Tilley 1992[1987]), portanto, essa forma de analisar e interpretar as práticas mortuárias passou por revisão à luz de uma crescente preocupação com a questão do significado e da ação social. Constatou-se que as práticas mortuárias dizem respeito não apenas sobre os mortos, mas também sobre os vivos, sendo representações idealizadas do falecido a partir do ponto de vista daqueles que ainda vivem e, ao mesmo tempo, palco de estratégias de poder que visam reproduzir, legitimar ou transformar a ordem social (Shanks e Tilley 2006[1982]; Parker Pearson 2006[1982], 1999). A identidade de um indivíduo é algo bastante complexo, que envolve papéis variados e situacionais entrecruzados no tempo e no espaço, podendo os acompanhamentos funerários estar relacionados a apenas uma ou a diferentes relações sociais ao mesmo tempo, empreendidas pelo falecido com diferentes pessoas e grupos quando era vivo (Fahlander e Oestigaard 2008). Esse fato, sozinho, já demonstra a fragilidade da ideia de que é possível estabelecer regras gerais de categorização dos indivíduos, afinal, de qual identidade estamos falando? Com a morte de um indivíduo, o controle sobre seu corpo passa a ser exercido pelos vivos, que o manipulam de acordo com convenções sociais e culturais de como uma “boa morte” deve ser (Nilsson Stutz 2010). Manipulação que pode também ser feita por indivíduos e grupos particulares, tornando o morto e seu contexto de morte plataformas de propaganda social, o que adiciona uma dimensão ideológica às práticas mortuárias (Parker Pearson 2006[1982], Shanks e Tilley 2006[1982]). Embora o morto seja o ponto focal de qualquer funeral, aqueles que ainda vivem possuem seus próprios interesses e agendas, o que transfere o foco para os vivos, e, nesse sentido, "the only truly individual materialities left in a grave are the deceased’s own bones” (Fahlander e Oestigaard 2008). O espaço social deixado em aberto pelo morto pode trazer à tona mudança social, o que torna as práticas mortuárias verdadeiras arenas – ou campos sociais – onde as forças de transformação e de manutenção se encontram e são negociadas. Assim, na esteira de teorias centradas na prática, como a de Bourdieu (1967, 2011[1994]), as práticas 119 mortuárias, passaram a ser entendidas como partes importantes e ativas na estruturação das sociedades (Shanks e Tilley 2006[1982], Fahlander e Oestigaard 2008, Nilsson Stutz 2010). O funeral atua na redefinição das relações sociais entre os vivos e destes com o falecido, o que pode resultar tanto na afirmação dessas relações e reinstalação da ordem, quanto no uso da morte para desafiar a continuidade dessa ordem pré-existente e promover mudança social. Não se trata, portanto, apenas do que as práticas mortuárias significam, mas do que fazem. A materialidade própria da morte (Fahlander e Oestigaard 2008) e a ritualização das práticas mortuárias (Shanks e Tilley 2006[1982], Nilsson Stutz 2010) fazem delas extremamente eficazes na manutenção da ordem por meio da naturalização do mundo social. Os saberes e a forma como o corpo deve se portar durante um ritual funerário são incorporados na prática, tornando-se habitus (Bourdieu 1967). Este, sem que seja percebido, passa a orientar as próprias ações que o geraram, criando uma sensação de inevitabilidade, como se as coisas sempre tivessem sido da forma como são: qualquer outro tipo de ordem social, assim como qualquer outra forma de empreender as atividades do ritual funerário, é, simplesmente, impensável. O ritual funerário torna-se, por fim, doxa. Só que é justamente aí que mora o poder de subversão presente nas práticas mortuárias: aquele que consegue desafiar a doxa desafia toda a estrutura objetivada. Entendendo ritual como produto da ritualização de atividades específicas, e entendendo ritualização como uma forma estratégica de agir no mundo que, privilegiando aquilo que está sendo feito em detrimento das outras atividades mais cotidianas, diferencia a si própria das outras formas de ação social, Bell (2009[1992]) chama atenção para o poder dos atos ritualizados na internalização de esquemas perceptivos, mas, também, para sua fragilidade. A coerência, a continuidade e a atmosfera que caracterizam as atividades rituais naturalizam os valores expressos nas relações sociais estabelecidas, produzindo esquemas que estruturam o mundo de tal forma que este parece ser a fonte de todos os esquemas e valores. Em meio a essa doxa – logo, em plena inconsciência da arbitrariedade daquilo que parece natural – os agentes ritualizados não pensam estarem projetando esquemas, apenas agindo de acordo com um instinto social de como se deve agir (Bell 2009[1992]). 120 Nesse sentido, a ritualização é de extrema relevância na criação de tradições históricas, pautadas exatamente na invariabilidade, na formalidade e na repetição (Hobsbawm e Ranger 1997). Apesar de estar estreitamente associada à questão do poder, a ritualização não exerce qualquer tipo de controle sobre os indivíduos. As relações de poder constituídas pela ritualização empoderam também aqueles que, à primeira vista, parecem estar sendo controlados (Bell 2009[1992]). Consentimento, resistência e apropriação negociada são inerentes a qualquer processo de objetivação e incorporação e "a participant, as a ritualized agent and social body, naturally brings to such activities a self-constituting history that is a patchwork of compliance, resistance, misunderstanding, and a redemptive personal appropriation of the hegemonic order” (Bell 2009[1992]:207). Além dos habitus incorporados na prática ritual, os indivíduos levam também seus habitus particulares ao campo social aberto pela ritualização, que podem ou não contradizer os esquemas propostos. Em meio a esse pensamento, as práticas mortuárias podem ser entendidas como ritual, ou seja, como fruto da ritualização estratégica dos contextos de morte. De acordo com Nilsson Stutz (2010), essa perspectiva nos permite interpretar as práticas estruturadas, repetidas e reproduzidas como respostas irrefletidas e não negociáveis à questão da morte e, uma vez identificados esses padrões incorporados, podemos traçar também a variação nos elementos rituais, que podem estar relacionadas a discursos de negociação social. Nesse caso, a negociação pode dizer respeito, simplesmente, à forma correta de se sepultar um morto, mas pode também fazer referência a outras questões sociais, externas ao contexto de morte. Assim, enquanto os padrões nos revelam as estruturas profundamente incorporadas, as variações nos revelam as negociações, e a análise conjunta desses dois aspectos pode nos auxiliar a compreender melhor a questão dos processos de mudança. A esse quadro pode ainda ser adicionada uma dimensão diacrônica e, com isso, os padrões reproduzidos ao longo do tempo tornam-se estruturas de longa duração, e as variações tornam-se eventos reveladores das contradições que, embora sejam constantes, nem sempre se manifestam. 121 Esse é outro ponto em que os estudos realizados ao longo da década de 1970 são criticados. A abordagem processual das práticas mortuárias (Binford 1971, Saxe 1970) gerou uma tradição de análise unidimensional, em que o sítio é considerado um todo coerente, assumindo-se contemporaneidade e unidade cultural entre os sepultamentos. Com isso, as relações sincrônicas e diacrônicas existentes entre os sepultamentos são negligenciadas, bem como a possibilidade de o sítio ter sido utilizado simultaneamente por diferentes grupos (Fahlander 2008). A construção de cronologias, mesmo que relativas, assim como a identificação de agrupamentos por meio de análise espacial ou de aproximação com relação a elementos funerários específicos, é fundamental na revelação das variações sincrônicas e diacrônicas e, conforme Fahlander (2008), necessária para que se evite confusão entre variabilidade social e mudança social; permite, por fim, que abordemos com mais sucesso aquilo que Chapman (2000) chama de palimpsesto mortuário. A perspectiva das práticas mortuárias como ações ritualizadas formadoras de habitus e utilizadas estrategicamente tanto na manutenção quanto na subversão da ordem social, aliada à ideia da multidimensionalidade necessária à análise de contextos funerários, não poderiam ser mais coerentes com os pressupostos teóricos deste trabalho e, portanto, serão empregadas na interpretação dos dados gerados para o sítio Armação do Sul. 5.2.1 Materiais e métodos O estudo das práticas mortuárias do sítio Armação do Sul foi realizado com base na análise espacial da distribuição horizontal e vertical dos sepultamentos na área e na estratigrafia do sítio, bem como na análise quantitativa dos acompanhamentos funerários. Ambas as análises foram empreendidas levando-se em consideração as variações sincrônicas e diacrônicas, e tiveram início como um exercício que buscava sanar minha própria curiosidade a respeito das práticas mortuárias do sítio. Conforme os resultados foram aparecendo, e se revelando extremamente interessantes, optei por incluí-los na dissertação. De modo algum, portanto, o conteúdo aqui apresentado esgota as 122 possibilidades que o sítio Armação do Sul encerra quando se trata do estudo de suas práticas mortuárias. A forma de deposição, a posição do corpo, o decúbito, a orientação do corpo, da face, a posição dos braços e das mãos, embora sejam variáveis comumente utilizadas no estudo de práticas mortuárias (Parker Pearson 2006[1982]), não serão abordadas aqui. Essa decisão foi tomada devido à constatação, em análise prévia, da ausência de qualquer tipo de correlação entre esses elementos e a distribuição espacial ou as variáveis de idade, sexo, período, e de quantidade de acompanhamentos. Enquanto alguns desses elementos são extremamente padronizados (forma de deposição, posição do corpo, posição dos braços e das mãos), outros são extremamente variados (decúbito, orientação do corpo e da face). São todas inumações primárias e individuais, com exceção do sepultamento 34 (indivíduo adulto e criança – período 2) e, talvez, do sepultamento 41/42 (indivíduo adulto possivelmente do sexo feminino e criança – período 1), que pode ou não se tratar de um único sepultamento. A posição dos corpos é, em geral, estendida, com exceção apenas do sepultamento 40 (adulto do sexo masculino), do período 1, e dos sepultamentos 15 e 16 (adulto do sexo feminino e criança), do período 2, que se encontram semifletidos. Os braços geralmente se encontram estendidos, com as mãos na altura dos ilíacos, sendo a única exceção o sepultamento 31 (adulto maduro do sexo feminino – período 2), que apresenta os braços flexionados e as mãos abaixo da mandíbula. De todos os indivíduos que fogem do padrão, esse é o único que se destaca também por outros aspectos, apresentando o tórax coberto por um bloco de rocha com marcas de lascamento (65 x 15 x 12 cm), e o corpo inteiro, por cima do bloco de rocha, protegido por um osso de mandíbula de baleia (140 x 35 x 6 cm) (Schmitz et al. 1992). O decúbito varia principalmente entre dorsal e ventral, havendo também dois casos de decúbito lateral direto, o sepultamento 32 (adulto do sexo masculino – período 2) e o sepultamento 64 (criança – período 1). A orientação do corpo é variada, e inclui todos os pontos cardeais (norte, sul, leste, oeste, nordeste, noroeste, sudeste, sudoeste), com maior frequência do sentido leste. Da mesma forma, a direção da face pode ser para a direita, para a esquerda ou para cima. 123 Cabe mencionar que Schmitz el al. (1992:155) sugerem a possibilidade de que os corpos não teriam sido colocados diretamente sobre o chão, mas envolvidos por esteiras, redes ou qualquer outro envoltório de material perecível, o que, segundo ele, se justificaria pelo fato de que mesmo quando em decúbito ventral as mãos permanecem na posição original sobre os ilíacos, mas debaixo do corpo, e os adereços permanecem em posição sobre o peito. Para a análise da distribuição espacial dos sepultamentos do sítio Armação do Sul foram incluídos na amostra todos aqueles indivíduos para os quais foram obtidas idades radiocarbônicas (n=30), de modo a permitir um controle cronológico mais refinado. Essa análise foi feita a partir da elaboração de plantas baixas e croquis da distribuição estratigráfica dos sepultamentos em layers cronológicos. Para a análise dos acompanhamentos funerários, foram incluídos todos os sepultamentos do sítio (n=80), com exclusão daqueles escavados na etapa de 1974, uma vez que estes não foram descritos por Rohr com o mesmo cuidado e minúcia que aqueles escavados em 1969. As fichas destes sepultamentos apresentam muitos campos em branco, além de terem sido preenchidas segundo outros critérios e um vocabulário diferente que impede o cruzamento com os dados provenientes da etapa de 1969. Tampouco há determinação de sexo e idade para eles, com exceção do sepultamento de numero 86. Isso não quer dizer que os sepultamentos escavados em 1974 serão totalmente desconsiderados, apenas que não farão parte da análise estatística dos acompanhamentos funerários. O sexo e a idade dos indivíduos foram determinados pelas pesquisadoras Andrea Lessa e Luciane Zanenga Scherer, segundo o protocolo de Buikstra e Ubelaker (1994). As informações necessárias tanto para a análise espacial quanto para a análise dos acompanhamentos funerários foram coletadas em Rohr e Andreatta (1969), Rohr (1974), Schmitz et al. (1992) e nas fichas de sepultamentos preenchidas por Rohr e Andreatta nas duas etapas de escavação (ver anexo I). Nos casos em que houve discrepância entre a planta baixa geral desenhada por Rohr (anexo II) e as informações contidas na descrição e nas fichas dos sepultamentos – principalmente com relação à localização e orientação – foram respeitadas essas últimas. 124 A representação da distribuição vertical dos sepultamentos foi feita primeiramente no papel milimetrado, tendo a arte final sido realizada no CorelDRAW. As plantas baixas foram elaboradas diretamente no CorelDRAW. Para a determinação dos layers cronológicos foram unidos sepultamentos de idades radiocarbônicas próximas, resultando em 13 lâminas: períodos 3065-2880, 2955-2750, 2790-2720, 2750-2620, 2725-2355, 24902345, 2360-2315, 2350-2210, 2345-2155, 2300-2020, 1575-1360, 1430-1315, 1315-1275 anos cal AP. No caso da planta baixa, foi elaborada ainda uma última lâmina em que constam as idades radiocarbônicas de cada sepultamento. As estruturas de combustão e de argila com ocre, bem como as concentrações de pedras representadas nas plantas nunca foram datadas, tendo o momento de suas construções sido suposto com base na profundidade em que se encontram. Com relação aos acompanhamentos funerários, para a análise das frequências (presença/ausência) de cada um dos tipos de objetos e do uso do ocre a amostra variou conforme o elemento em foco. No caso do uso ocre, foram incluídos os sepultamentos completos, incompletos com ausência dos membros inferiores e, também, aqueles incompletos em que há informação segura sobre a presença ou ausência de ocre (n=66). No caso de objetos que costumam aparecer próximos ao crânio e sobre o tronco, como os adornos e os artefatos fusiformes, foram incluídos os sepultamentos completos, incompletos com ausência dos membros inferiores e, também, aqueles incompletos em que há informação segura sobre a presença ou ausência de adornos (n=39) e fusiformes (n=45). Quanto aos elementos que apresentam posição variada junto ao esqueleto, foram incluídos somente os sepultamentos completos e incompletos com informação segura sobre a presença ou ausência do elemento em questão, caso das pontas ósseas (n=37), dos machados e/ou lâminas (n=37), dos percutores e/ou seixos com marca de uso (n=35), das lascas (n=37), de artefatos raros como ponta em quartzo e bastão de diabásio (n=34), do material malacológico (n=37), do material ósseo faunístico (n=41), dos artefatos não identificados e/ou fragmentos de rocha com alteração antrópica (n=38), e dos seixos e/ou fragmentos de rocha sem marca de uso (n=49). Para a análise da quantidade de acompanhamentos funerários junto a cada indivíduo, a amostra foi reduzida aos sepultamentos completos (n=35), de forma a evitar 125 subestimativas nos dados gerados. Incluem-se aí, no entanto, dois sepultamentos incompletos com presença de grande quantidade de acompanhamentos e que, portanto, não correm o risco de enviesarem as análises. Ainda, dois sepultamentos completos tiveram que ser deixado de fora, uma vez que foram cimentados em campo e não se tem conhecimento total sobre os objetos que os acompanhavam. Nos casos em que os sepultamentos estão contornados por seixos e fragmentos de rocha, essas estruturas foram contabilizadas como apenas 1 acompanhamento funerário, independentemente do número de fragmentos. O mesmo serve para os adornos formados por dezenas ou centenas de contas feitas a partir de conchas, ossos e dentes, bem como para o material malacológico, ossos de fauna e lítico não quantificado (ex. “restos de peixes”, “agrupamento de pedras”). Existem duas categorias de objetos encontrados arqueologicamente que são entendidos como acompanhamentos funerários: os itens presentes no corpo do falecido, como as roupas e outros adereços, e os itens que são deixados pelos vivos, podendo uma categoria se sobrepor à outra (Fahlander e Oestigaard 2008). De acordo com Parker Pearson (1999), devemos estar atentos às diferenças entre a cultura material no corpo, como as roupas e os adereços; a cultura material do corpo, como a postura e as modificações corporais; e a cultura material fora do corpo, que são os objetos deixados pelos vivos. No sitio Armação do Sul, porém, como a única cultura material no corpo observada são os adornos, e como a única cultura material do corpo que será abordada é o envolvimento em ocre, estes elementos foram contabilizados juntamente com os demais acompanhamentos funerários, sem as distinções propostas por Parker Pearson (1999). 126 Tabela 2: Lista das variáveis utilizadas na análise das práticas mortuárias do sítio Armação do Sul. VARIÁVEIS DE IDENTIFICAÇAO E CONTEXTUALIZAÇÃO (descritivas) ID Integridade Idade Sexo Nível Quadra Comprimento Largura Sedimento Idade radiocarbônica Período Número do sepultamento Completo Incompleto com ausência dos membros inferiores Incompleto Criança Adulto Jovem Adulto Adulto Maduro Feminino Masculino Localização do sepultamento no espaço vertical Localização do sepultamento no espaço horizontal Comprimento máximo do sepultamento Largura máxima do sepultamento Areia marrom clara Areia marrom escura Terra preta Idade radiocarbônica calibrada dos sepultamentos, em anos AP. Período 1: sepultamentos situados na areia marrom e/ou datados entre 3100 e 2500 anos AP Período 2: sepultamentos situados na terra preta e/ou datados entre 2500 e 1200 anos AP VARIÁVEIS RELATIVAS AOS ACOMPANHAMENTOS FUNERÁRIOS (descritivas e quantitativas) Ocre Adorno Artefato fusiforme Ponta óssea Machado e/ou lâmina Percutor e/ou seixo com marca de uso Presente Ausente Presente Ausente Presente Ausente Presente Ausente Presente Ausente Presente Ausente 127 Presente Ausente Presente Ausente Presente Ausente Presente Ausente Lasca Artefato raro (ponta em quartzo e bastão de diabásio) Material malacológico Material faunístico Artefato não identificado e/ou fragmento de rocha com alteração antrópica Seixo e/ou fragmento de rocha sem marca de uso Presente Ausente Presente Ausente Tipos de acompanhamentos 1-Ocre 2-Ponta óssea 3-Machado 4-Adorno (4a-De concha 4b-De dente 4c-De osso) 5-Fauna (5a-Mamífero terrestre 5b-Mamífero aquático 5c-Peixe 5dAve 5e-Réptil 5f-Dente de mamífero terrestre 5g-Dente de mamífero aquático 5h-Dente de tubarão) 6-Concha 7-Artefato fusiforme 8-Outro material lítico (8a-Artefato não especificado 8b-Seixo 8cFragmento de rocha (8d-Fragmento de rocha com marca de uso 8eSeixo com marca de uso 8f-Lasca 8g-Ponta em quartzo 8h-Lâmina 8iBastão) 9-Corante 0-Outro artefato em osso (0a-Mamífero aquático) *-Fragmento Número mínimo de tipos de acompanhamentos Quantidade de tipos de acompanhamentos funerários presentes em cada sepultamento Número mínimo de acompanhamentos Quantidade de acompanhamentos funerários presentes em cada sepultamento Categorização do número mínimo de acompanhamentos 0 1a5 6 a 10 11 a 15 16 a 20 21 a 25 26 ou mais 128 5.2.2 Resultados da análise espacial e discussão A análise da distribuição espacial dos sepultamentos ao longo da estratigrafia do sítio, realizada por meio da elaboração de croquis em lâminas cronológicas, corroborou aquilo que já havíamos observado no croqui geral apresentado na primeira parte desse capítulo. De início, entre 3100 e 2500 anos AP, há uma concentração maior de sepultamentos na poção sudeste do perfil e, a partir de 2500, essa situação se inverte, com os sepultamentos se concentrando na porção noroeste. As lâminas cronológicas, no entanto, tornam evidentes alguns aspectos que passaram despercebidos na análise do croqui geral. Permitem uma melhor observação, por exemplo, do crescimento vertical do sítio ao longo do tempo, de baixo para cima, de modo que os sepultamentos mais antigos se situam em maior profundidade que os sepultamentos mais recentes, pelo menos na maior parte dos casos. Esse crescimento pode ou não, em algum momento, ter gerado um aspecto monticular para o sítio, fazendo desse espaço ritual um marco na paisagem, mesmo que de pequenas proporções. Dentre os sepultamentos representados nos croquis, o único que se encontra em profundidade muito maior com relação aos demais do mesmo momento cronológico (1600-1200 anos AP) é o sepultamento 31, que também é um caso à parte no que se refere à posição dos braços e das mãos e aos acompanhamentos funerários, coberto que está por uma mandíbula de baleia, como já mencionado. Nota-se, contudo, que embora este sepultamento esteja em grande profundidade para o seu momento cronológico, não causou perturbação significativa de nenhum outro sepultamento. A análise em lâminas chama atenção também para redundância de sepultamentos em um espaço relativamente pequeno, o que geralmente é interpretado como estando relacionada a uma ênfase na questão do lugar (Nilsson Stutz 2010), a ponto de outras possíveis preocupações serem deixadas de lado, refletindo, talvez, na proximidade excessiva entre alguns sepultamentos. 129 Figura 22: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 3065 a 2880 anos cal AP. 130 Figura 23: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2955 a 2750 anos cal AP. 131 2790-2720 anos cal AP Figura 24: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2790 a 2720 anos cal AP. 132 Figura 25: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2760 a 2720 anos cal AP. 133 Figura 26: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2750 a 2620 anos cal AP. 134 Figura 27: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2725 a 2355 anos cal AP. 135 Figura 28: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2490 a 2345 anos cal AP. 136 Figura 29: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2360 a 2315 anos cal AP. 137 Figura 30: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2350 a 2210 anos cal AP. 138 Figura 31: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2345 a 2155 anos cal AP. 139 Figura 32: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2300 a 2020 anos cal AP. 140 Figura 33: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 1575 a 1360 anos cal AP. 141 Figura 34: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 1430 a 1315 anos cal AP. 142 Figura 35: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 1315 a 1275 anos cal AP. 143 A análise espacial da distribuição horizontal dos sepultamentos na área escavada na etapa de 1969, realizada por meio da elaboração de plantas baixas em lâminas cronológicas, revelou um padrão circular, que pode também ser entendido como “concêntrico” ou “hierárquico” (Parker Pearson 1999), em que o crescimento respeita e se dá a partir de um sepultamento central. Ao que parece, no caso do sítio Armação do Sul essa centralidade seria exercida pelo sepultamento 37 (adulto maduro do sexo masculino), que é também o sepultamento provavelmente mais antigo dentre aqueles que foram datados (3065-2880 anos cal AP), e situado em maior profundidade (170-180 cm). Em um momento mais tardio, talvez o padrão tenha se tornado linear, mas, tendo em vista a pequena quantidade de sepultamentos datados entre 1600 e 1200 AP, isto não está claro. Para que a realidade dessa mudança fosse verificada, teria que ser realizada uma análise espacial em lâminas que levasse em consideração todos os indivíduos sepultados na área escavada em 1969, e não apenas aqueles que foram datados. Tudo indica que o sepultamento 37 teria sido o primeiro sepultamento do sítio e, portanto, é possível que a construção posterior de uma grande fogueira diretamente sobre ele não tenha se dado por acaso, mas sim para marcar a posição desse indivíduo no espaço que, dali em diante, passaria a ser utilizado como cemitério. Independentemente de isso ter acontecido ou não, fato é que ao longo dos mais de 1500 anos de utilização dessa área do sítio para a realização de atividades funerárias houve respeito a esse espaço central que, a não ser pelas duas grandes fogueiras e o sepultamento 37, foi mantido vazio de sepultamentos enquanto a área funerária crescia à sua volta. O mesmo respeito se deu com relação a outros espaços do sítio, marcados pela presença de fogueiras menores, de estruturas de argila com ocre e de concentrações de pedras; e, também, com relação aos sepultamentos pré-existentes no momento de escolher um local para sepultar os novos falecidos ou para a construção dessas estruturas. A exceção talvez seja o sepultamento 31, que se encontra na mesma posição de uma antiga concentração de pedras da quadra F1, porém sem perturbá-la, uma vez que se 144 encontra em profundidade menor. O contrário talvez aconteça na quadra G4, onde uma estrutura de pedras parece ter sido construída na mesma posição de dois sepultamentos mais profundos – o que é observável somente na planta geral (anexo II), pois estes indivíduos não foram datados – mas, novamente, não houve perturbação. 145 Figura 36: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 3065 a 2880 anos cal AP 146 Figura 37: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2955 a 2750 anos cal AP 147 Figura 38: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2790 a 2720 anos cal AP 148 Figura 39: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2750 a 2620 anos cal AP 149 Figura 40: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2725 a 2355 anos cal AP 150 Figura 41: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2490 a 2345 anos cal AP 151 Figura 42: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2360 a 2315 anos cal AP 152 Figura 43: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2350 a 2210 anos cal AP 153 Figura 44: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2345 a 2155 anos cal AP 154 Figura 45: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2330 a 2020 anos cal AP 155 Figura 46: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 1575 a 1360 anos cal AP 156 Figura 47: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 1430 a 1315 anos cal AP 157 Figura 48: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 1315 a 1275 anos cal AP 158 Figura 49: Planta baixa geral dos sepultamentos datados do sítio Armação do Sul, de 3065 a 1275 anos cal AP. 159 Como é possível observar nas plantas baixas, são poucos os casos de ocupação do mesmo espaço por sepultamentos distintos e, na maior parte das vezes, a sobreposição se dá somente entre as extremidades dos esqueletos envolvidos. Dentre os casos de sobreposição, os casos de perturbação são ainda mais raros, pois, em geral, os sepultamentos que se encontram no mesmo espaço horizontal estão em diferentes profundidades, como demonstrado nos croquis da distribuição estratigráfica. As perturbações mais frequentes, na verdade, remetem ao período histórico, tendo sido causadas pela construção da armação baleeira que há sobre o sítio. O respeito ao espaço dos sepultamentos pré-existentes, aliado à manutenção contínua dos espaços “vazios” onde se situam as fogueiras, as estruturas de argila e ocre e as concentrações de pedras, indica que o local de deposição de cada sepultamento estaria sendo escolhido cuidadosamente e com conhecimento da localização dos sepultamentos mais antigos, talvez por meio de tradição oral, por testemunho pessoal (Chapman 2000) ou, ainda, pela marcação das localizações com algum tipo de material perecível, como estacas de madeira – caso do sítio Jabuticabeira II (Bendazzoli 2007). Mesmo após o abandono das duas grandes fogueiras centrais, que vão de 140 a 90 cm e de 200 a 130 cm de profundidade, o espaço que ocupavam permaneceu vazio de sepultamentos, o que reforça a longa duração desse padrão espacial e aponta para existência de algum tipo de continuidade histórica entre as populações que utilizaram essa área funerária. Assim, os rituais funerários empreendidos no sítio Armação do Sul seriam marcados pela produção de memórias sobre os mortos, cujos espaços ocupados após a morte eram lembrados e respeitados (Nilsson Stutz 2010), configurando o sítio como um local de memória, ou um “lembrete concentrado de lembrar” (Nora 1993). Provavelmente haveria algum destaque do local na paisagem, talvez pelas próprias estruturas de combustão e de pedras. Além do respeito aos antepassados, a escolha cuidadosa do local onde sepultar os mortos deveria estar pautada também em questões identitárias. Em seu estudo sobre o neolítico tardio da Hungria, Chapman (2000:177) coloca que o mapeamento dos novos mortos no espaço habitado pelos ancestrais é uma estratégia social deliberada para expressar um cálculo de parentesco; uma categorização sócio-espacial dos indivíduos com 160 suas identidades culturais complexas. Para a identificação dessas categorizações no registro arqueológico, Parker Pearson (1999) sugere que em sítios onde não são visíveis conjuntos claros de sepultamentos sejam procurados agrupamentos com base na posição do corpo ou outros elementos. De fato, é possível agrupar alguns dos sepultamentos representados nas plantas de acordo com a proximidade e elementos mortuários específicos. No período 1, as diferenças observadas entre os diferentes grupos estão nos acompanhamentos funerários, como pode ser observado na lâmina de 2750-2600 anos cal AP abaixo, enquanto nos períodos 2 e 3 parece haver somente diferença na orientação – observar sepultamentos 5 e 17 e sepultamentos 8, 14 e 15 na lâmina 1575-1360 anos cal AP (p. 155) – mas essa diferença dos períodos mais tardios não está muito clara e será desconsiderada por ora. A B D C Figura 50: Representação dos diferentes agrupamentos de sepultamentos do período 1 do sítio Armação do Sul Na lâmina acima, que representa o momento final do período 1, podemos observar quatro agrupamentos: A. Indivíduos do sexo masculino e uma criança, contam com 161 acompanhamentos funerários de tipos bastante variados, mas em quantidades diferentes, apresentando em comum a presença de fragmentos de material corante. Os sepultamentos 51 e 40, contemporâneos, apresentam em comum 2 conchas de Olivancillaria sp., enquanto os sepultamentos 33 e 36 apresentam adornos feitos com duas vértebras de peixe perfuradas. O sepultamento infantil destoa completamente dos demais. B. Dois indivíduos do sexo feminino e um indeterminado, contam com acompanhamentos poucos variados, basicamente líticos e fragmentos de líticos, mas bastante numerosos nos sepultamentos 57 e 58. O sepultamento 58 é incompleto, e não há quantificação precisa dos acompanhamentos. C. Um indivíduo do sexo feminino e outro do sexo masculino, contam com acompanhamentos poucos variados, respectivamente 1 lasca de seixo com 1 fragmento de artefato e 5 longas lâminas de diabásio, parcialmente polidas e envoltas em muito pigmento vermelho. D. Dois indivíduos do sexo feminino, sem qualquer acompanhamento funerário além do ocre. Na segunda lâmina apresentada, de 2955 a 2750 anos cal AP, é possível observar que o sepultamento 45, originalmente, se encontrava mais espaçado dos indivíduos masculinos do grupo A, fechando o espaço do grupo A juntamente com o sepultamento 57, também do sexo feminino, do grupo B. Talvez essas diferenças nos acompanhamentos funerários dos diferentes agrupamentos possam ser entendidas como aquilo que Chapman (2000:192) chamou de microtradições: At any time, the people gathered around the burial site of a newlydeceased member of the community had many choices for the exact form of burial. Two choices in particular weighed on those mourners: the choice of how to bury their kith and kin differently from the last burial in their burial group, and the choice of how to relate the ceremony to other burials within the village. The tension between the household's microtradition and the potential inherent in the new statement shortly to be made about the newly-dead encapsulates the dialectic of structure and agency within an enfolding debate about self-identity at both individual and community levels. A questão é se essas microtradições estariam relacionadas a relações de parentesco, de status ou de poder. Ainda, é importante lembrar que esses agrupamentos se baseiam somente nos indivíduos datados, pouco mais de 30% da amostra total. A inclusão de todos os sepultamentos escavados, distribuídos em lâminas definidas a partir 162 de suas profundidades, poderia tanto reafirmar quanto complexificar ou alterar o que foi observado; não poderia, contudo, garantir proximidade temporal entre os indivíduos e agrupamentos que eventualmente fossem identificados. Quanto ao momento mais tardio do sítio, embora as plantas baixas não revelem agrupamentos claros de sepultamentos, um rápido olhar sobre o croqui geral da distribuição estratigráfica, apresentado no capítulo anterior, é suficiente para notar a grande concentração de sepultamentos infantis existente na porção noroeste do sítio, em geral datados entre 2500 e 2000 anos AP e denunciados pela grande quantidade de ocre – a ponto de o sedimento estar avermelhado – e de sepultamentos com adornos. Não são todos os sepultamentos infantis do período que podem ser encontrados nessa concentração, mas aqueles que ali estão foram deliberadamente reunidos no mesmo espaço. A segregação dos sepultamentos de crianças com relação aos demais é algo bastante comum em diferentes contextos ao redor do mundo, ocorrendo tanto em contextos mesolíticos como Skateholm, em que as crianças, juntamente com os cachorros e indivíduos desviantes, estão localizados nas extremidades da área funerária (Fahlander 2008) quanto em cemitérios judeus da idade média (Parker Pearson 1999). Espacialmente falando, portanto, o sítio Armação do Sul é marcado por continuidade e por mudança: ao mesmo tempo em que há manutenção do padrão de distribuição dos sepultamentos no entorno da área central, que é respeitada como espaço vazio de sepultamentos ao longo de todo o tempo de ocupação do sítio, ocorrem mudanças de foco com relação às porções do sítio mais utilizadas, bem como alterações na forma como são distribuídos diferentes grupos etários e diferentes grupos de parentesco, status e/ou poder na área funerária. Os sepultamentos escavados na etapa de 1974 não estão sendo analisados aqui, mas, ao observarmos a planta que segue podemos ver como talvez eles estivessem situados perifericamente com relação aos demais ou, simplesmente, compusessem outra área funerária, que tanto poderia ser circular como poderia apresentar outro formato. É claro, não sabemos o que há no espaço não escavado, mas tudo indica que pelo menos o sepultamento 86 estava realmente isolado dos demais. Este último é descrito da seguinte forma: “os ossos do esqueleto, afora o osso ilíaco, achavam-se associados a berbigão, 163 ossadas de peixe, de tartaruga e de mamíferos com abundante carvão. Estavam dispersos, sem conexão anatômica e muito desfeitos. Não é excluída a hipótese de tratar-se de restos de um banquete de antropofagia” (Rohr, ficha de registro do sepultamento 86). Área não escavada Figura 51: Croqui da área escavada, com localização dos sepultamentos. Adaptado de Schmitz et al. (1992). Frente a isso, e pensando na concentração de sepultamentos infantis, que também se situa a noroeste da área central, não podemos descartar a possibilidade de pelo menos o sepultamento 86 (este situado a oeste da área em questão) estar propositalmente segregado dos demais. Distinções entre indivíduos normais e desviantes podem ser expressas espacialmente; a partir do século XV, por exemplo, havia tradições na Inglaterra em que os suicidas eram sepultados do outro lado da rua, e as mulheres que perderam a vida durante o parto eram enterradas do lado de fora das paredes das igrejas (Parker Pearson 1999). Vimos também o exemplo de Skateholm, em que crianças, cachorros e corpos “problemáticos” eram sepultados ao redor dos demais, nos quatro pontos cardeais (Fahlander 2008). 164 Por fim, a análise da distribuição espacial dos sepultamentos nos leva a pensar sobre os motivos que podem ter levado à fundação e ao abandono dessa área funerária. De acordo com Parker Pearson (1999), tais motivos devem ir muito além do simples fato de um cemitério estar “lotado” ou de a população em questão ter migrado para outra área – até porque, nesse caso, pode-se continuar voltando, durante muitos anos, para sepultar os mortos no cemitério antigo. A fundação ou o abandono de um cemitério é uma quebra com a tradição, podendo o sepultamento “fundador” marcar a cisão de uma linhagem, na separação de um grupo familiar do grupo de parentesco mais amplo; ou, simplesmente, no caso de migração, representar um desapego com relação à localidade antiga e anseio por criar um novo lugar de memória na nova terra, o que é também uma forma de dominá-la. Sejam lá quais forem as motivações, a fundação de novos cemitérios e o abandono dos antigos sempre será uma escolha, e geralmente estará relacionada à mudança social. Provavelmente, o sítio foi inaugurado como área funerária por volta de 3065-2880 anos cal AP, com o sepultamento 37, que ocupa posição central na área escavada e sobre o qual parece ter sido construída uma fogueira de grandes dimensões e longa duração. A morte deste indivíduo, portanto, poderia estar de alguma forma relacionada à decisão de dar início a um novo espaço ritual. A partir de 2500 anos AP, contudo, a população associada ao sítio Armação do Sul passou por transformações que de alguma forma refletiram nas práticas mortuárias, o que pode ter exigido a criação de um novo espaço para a realização de atividades funerárias, talvez na ponta das Campanhas, onde existe um sítio conchífero provavelmente mais recente e com presença de sepultamentos. Um novo espaço ritual para abrigar novas tensões sociais. 5.2.3 Resultados da análise dos acompanhamentos funerários e discussão A análise dos acompanhamentos funerários do sítio Armação do Sul, tanto por meio do cálculo da frequência de determinados elementos quanto do cálculo do número mínimo de acompanhamentos, revelou diferenças claras entre os sepultamentos de crianças, adultos do sexo feminino e adultos do sexo masculino, bem como alterações nessas diferenças ao longo do tempo. 165 Gráfico 5: Ausência e presença de ocre entre crianças, adultos femininos e adultos maduros dos períodos 1 e 2. Gráfico 6: Ausência e presença de adornos entre crianças, adultos femininos e adultos maduros dos períodos 1 e 2. Gráfico 7: Ausência e presença de pontas ósseas entre crianças, adultos femininos e adultos maduros dos períodos 1 e 2. Gráfico 8: Ausência e presença de artefatos fusiformes entre crianças, adultos femininos e adultos maduros dos períodos 1 e 2. 166 Gráfico 9: Ausência e presença de machados e/ou lâminas entre crianças, adultos femininos e adultos maduros dos períodos 1 e 2. Gráfico 10: Ausência e presença de percutores ou seixos com marca de uso entre crianças, adultos femininos e adultos maduros dos períodos 1 e 2. Gráfico 11: Ausência e presença de lascas entre crianças, adultos femininos e adultos maduros dos períodos 1 e 2. Gráfico 12: Ausência e presença de artefatos não identificados e/ou fragmentos de rocha com alteração antrópica entre crianças, adultos femininos e adultos maduros dos períodos 1 e 2. 167 Gráfico 13: Ausência e presença de artefatos raros (ponta em quartzo e bastão de diabásio) entre crianças, adultos femininos e adultos maduros dos períodos 1 e 2. Gráfico 14: Ausência e presença de conchas entre crianças, adultos femininos e adultos maduros dos períodos 1 e 2. Gráfico 15: Ausência e presença de ossos de fauna entre crianças, adultos femininos e adultos maduros dos períodos 1 e 2. Gráfico 16: Ausência e presença de seixos e/ou fragmentos de rocha entre crianças, adultos femininos e adultos maduros dos períodos 1 e 2. 168 A frequência no uso de cada um dos acompanhamentos demonstra haver padrões bem definidos com relação aos tipos de elementos esperados nos sepultamentos de diferentes grupos, que refletem tanto tradições regionais de longa duração, quanto tradições locais – e, como vimos anteriormente, também microtradições –, além de estarem de acordo com seu momento histórico específico. Começando pelo ocre, o gráfico indica que seu uso é generalizado, sem distinções entre os diferentes sexos e idades. Demonstra também aquilo que já sabíamos e que inclusive serviu para a definição do problema desta pesquisa: o uso do ocre diminui consideravelmente na passagem do período 1 (88,24%) para o período 2 (50%), sendo mantida frequência elevada somente entre os sepultamentos infantis. De acordo com o teste Qui-Quadrado, a frequência no uso do ocre é dependente do período em foco (p=0,001) e se dá independentemente do sexo (p=0,706), porém, enquanto no período 1 há independência também com relação à idade (p=1,00 – teste de Fisher13), no período 2 a frequência no uso de ocre é dependente da idade (p=0,018), uma vez que as crianças mantêm o padrão anterior e os adultos não. Frente a esses dados, podemos entender o envolvimento dos corpos em ocre durante o ritual funerário como uma tradição regional de longa duração – pois é perceptível em diversos sítios do litoral catarinense ao longo de milhares de anos de ocupação – que estava sendo abandonada no sítio Armação do Sul. Nos croquis de distribuição estratigráfica – geral e em lâminas – e nas plantas baixas, contudo, fica evidente que essa mudança se deu de forma gradual, tornando inevitável interpretá-la como resultante de um longo processo de negociação, talvez associado à emergência de um novo campo social em que grupos específicos lutavam por afirmação por meio da distinção com o contexto regional, ou simplesmente a um desprendimento cada vez maior com relação a uma tradição regional que não mais fazia sentido no contexto do litoral central. Parafraseando Hegmon e Kulow (2005), é um longo processo até a anomalia virar inovação. É difícil inferir o motivo, mas a distinção – deliberada ou não – com relação ao 13 Nos casos em que os dados não apresentaram os requisitos necessários para aplicação do teste QuiQuadrado com rigor, foi utilizado o teste de Fisher, mesmo os resíduos sendo menores ou próximos de 2 em valor absoluto. 169 contexto regional é visível nos ossos de cada um dos sepultamentos sem presença de ocre; e a negociação é latente. As práticas mortuárias enquanto práticas ritualizadas (Bell 2009[1992]) são por si só extremamente potentes na formação de habitus; potência que acaba servindo também para a manutenção da doxa (Bourdieu 2011[1994]), ou seja, das coisas como elas são e parecem ser desde tempos imemoriais. Inseridas em um contexto regional de muito longa duração, como no caso do uso do ocre, essas práticas se tornam ainda mais potentes e os habitus ainda mais inculcados, tornando natural, e até mesmo esperado, que qualquer mudança nesse sentido seja acompanhada por resistência e muita negociação. Vale lembrar que o período 2 como aqui utilizado se refere à cronologia relativa estabelecida algumas páginas atrás, englobando, portanto, tanto os sepultamentos de idade radiocarbônica entre 2500 e 2000 anos AP quanto aqueles de idade entre 1600 e 1200 anos AP. Estes últimos, como observado em outro momento, parecem representar o momento em que o uso do ocre foi abandonado completamente, após centenas de anos de negociação, igualando-se a sítios com presença de cerâmica do litoral central como Tapera, Base Aérea e Laranjeiras II. Quanto aos adornos, o gráfico indica que eles são elementos quase que exclusivos dos sepultamos infantis, em ambos os períodos do sítio. A maior ocorrência se dá, definitivamente, entre as crianças, havendo raras ocorrências em indivíduos adultos do sexo masculino e nenhuma ocorrência no grupo feminino. Há, contudo, uma diminuição clara nas frequências entre as crianças na passagem do período 1 (83,33%) para o período 2 (41,67%), e mesmo entre os adultos masculinos (de 31,5 para 12,5%). Essa mudança não é acusada pelo teste Qui-Quadrado (p=0,348), uma vez que a quantidade de crianças na amostra do período 2 (n=12) é duas vezes maior que na amostra do período 1 (n=6), correspondendo a quase metade da amostra total (n=25) e, assim, elevando consideravelmente a frequência de adornos no segundo período e tornando pequena a diferença entre os dois momentos do sítio (40,0% e 26,02%). A diferença entre homens e mulheres, embora existente, também não é apontada pelo teste Fisher (p=0,250). A dependência da frequência de adornos com relação à idade, contudo, não poderia passar despercebida pelo teste e, de fato, se mostrou significativa (p=0,004). 170 Frente a esses dados, fica claro que objetos de adorno não faziam parte do rol de possíveis acompanhamentos em sepultamentos femininos, embora fossem, por vezes, aceitos em sepultamentos masculinos e constituíssem quase que uma norma nos sepultamentos infantis do período 1. No período 2, o costume de sepultar as crianças juntamente com adornos ainda era bastante comum, porém menos frequente; nisso, o que deveria ser impensável e considerado desvio da norma em tempos mais antigos, torna-se possível, sendo a maior parte das crianças sepultadas sem adornos. Um fato interessante é que todos os três indivíduos masculinos do período 1 que apresentam adorno fazem parte do agrupamento espacial A, como definido anteriormente. E quanto ao indivíduo do período 2 (sepultamento 14), ele foi sepultado de forma bastante cuidadosa e com alguns elementos que lembram aqueles que compunham os sepultamentos do grupo A do período 1, além de ser, juntamente com o indivíduo 37, um dos indivíduos com maior robustez óssea do sítio (Scherer 2012). As pontas ósseas são, claramente, um elemento mais frequente no período 2 (43,48%) do que no período 1 (7,14%). Há apenas um sepultamento com ponta óssea no primeiro período do sítio, pertencente a um indivíduo masculino do agrupamento A. No período 2, a frequência é maior entre os indivíduos adultos de sexo masculino (60%), mas há também raras ocorrências entre as mulheres e as crianças. O teste de Fisher confirma a dependência da frequência de pontas ósseas com relação ao período (p=0,027), porém a diferença existente entre os indivíduos do sexo masculino e os indivíduos do sexo feminino, bem como entre os adultos e as crianças, não é apontada como significativa (p=0,189 e p=0,688, respectivamente). Esses dados indicam que as pontas ósseas, embora presentes ao longo de toda a estratigrafia do sítio (Schmitz et al. 1992), foram escolhidas para serem utilizadas como acompanhamentos funerários quase que exclusivamente no período 2, havendo inclusive um indivíduo (sepultamento 29) que conta com 50 pontas em seu mobiliário funerário, além de 2 artefatos fusiformes, 3 lâminas de machado e 1 artefato de ametista, estando ainda protegido em seu lado direito por grandes blocos de rocha e um osso de baleia. Schmitz et al. (1992) sugerem que essa mudança estaria associada a um aumento nos conflitos e consequente valorização de chefes guerreiros. De fato, Lessa e Scherer 171 (2008) encontraram uma ponta cravada na quarta vértebra lombar de um indivíduo do sítio (sepultamento 2, que além disso apresenta ponta óssea como acompanhamento), lesão que provavelmente foi a causa de sua morte. Como não foram observadas lesões ósseas semelhantes nos demais indivíduos que contam com pontas entre seus acompanhamentos, não podemos supor que a presença desse tipo de artefato esteja sempre relacionada à causa da morte dos indivíduos – a não ser que todos eles tivessem sido atingidos somente nos tecidos moles do corpo. Assumindo o aumento nos conflitos como fato – com base também em dados obtidos para outros sítios do litoral catarinense (Lessa 2005, Lessa e Gaspar 2014) – penso que esse novo contexto de uso das pontas ósseas, por se estender às crianças e mulheres, estaria mais relacionado a uma resignificação desses artefatos em tempos nos quais os conflitos teriam atingido um novo patamar, do que à valorização de chefes guerreiros – embora seja possível que isso tenha acontecido também. De objetos utilizados na obtenção de alimentos e recursos em geral, para objetos que tiram a vida de pessoas; de ordinários para extraordinários. Os artefatos fusiformes são um elemento recente nos sepultamentos do sítio Armação do Sul, aparecendo exclusivamente no período 2, sem diferenças claras entre indivíduos adultos masculinos, femininos e crianças. Assim, há dependência significativa da frequência desses objetos com relação ao período do sítio (p=0,014 – teste de Fisher), e independência com relação ao sexo (p=0,626 – teste de Fisher) e a idade (p=1,0 – teste de Fisher). Em geral, os indivíduos que estão acompanhados de artefatos fusiformes apresentam grande quantidade de material em seus sepultamentos (acima de 11 peças), com exceção de um dos sepultamentos infantis (4 peças). Schmitz et al. (1992) levantam a hipótese de que esses artefatos seriam adornos, devido à posição que ocupam junto ao esqueleto, sempre próxima ao crânio e tronco, enquanto Rohr e Andreatta (1969) e Rohr (1974) sugerem que sejam tembetás. Ainda, Comerlato (2004) sugere que poderiam estar sendo utilizados na confecção de inscrições rupestres. É importante mencionar que esses objetos aparecem em quantidade variada nos sepultamentos, em número de 1, 2, 4 ou 8, este último sendo o caso de uma criança (sepultamento 66). 172 Quanto às lâminas de machado e outros objetos aos quais Rohr se referiu como “longas lâminas em diabásio”, ou como “facas de osso de baleia” (Schmitz et al. 1992; Rohr, fichas de registro de sepultamento), é possível que estes objetos sejam acompanhamentos exclusivamente masculinos, tanto no período 1 quanto no período 2. A única diferença observada entre os dois momentos do sítio é com relação às crianças: enquanto estes objetos são ausentes nos sepultamentos infantis do período 1, há duas ocorrências no período 2. Dado, contudo, o pequeno número de crianças consideradas para a análise da presença desse elemento no período 1, essa diferença entre os diferentes momentos de ocupação não é significativa segundo o teste de Fisher (p=1,0), nem a diferença na frequência entre adultos e crianças (p=0,695). A dependência da frequência de machados e lâminas com relação ao sexo, embora existente e bastante visível no gráfico, tampouco foi apontada como significativa (p=0,122). É interessante notar que dentre os sepultamentos que apresentaram machados e/ou lâminas em geral como acompanhamento funerário estão alguns dos indivíduos já conhecidos por nós por se destacarem de alguma forma. Pertencem a esses indivíduos “ilustres” os sepultamentos de número 2, 14, 29 e 37. O primeiro apresenta vértebra perfurada por ponta óssea (Lessa e Scherer 2008); o segundo, juntamente com o 37, é o indivíduo que apresenta maior robustez óssea no sítio (Scherer 2012); o terceiro conta com 50 pontas ósseas como acompanhamento funerário; e, por fim, o quarto é possivelmente o sepultamento mais antigo do sítio e que ocupa posição central na área escavada, além de apresentar grande robustez óssea (Scherer 2012). Todos esses indivíduos contam com sepultamentos suntuosos e extremamente cuidadosos, com enorme variedade e quantidade de materiais. Frente a isso, é inevitável pensar que os machados e lâminas estariam reservados a indivíduos de alguma forma especiais, mesmo que não seja um pensamento acertado. É inevitável também indagar sobre sua presença entre algumas crianças, no sentido de por que motivo esses sepultamentos infantis receberiam objetos de tanto “valor”. De qualquer forma, é certo que a utilização de machados como acompanhamentos funerários entre alguns homens está relacionada a uma tradição de longa duração que remete ao início de 173 formação do sítio, enquanto o uso entre alguns sepultamentos infantis é algo novo que remete ao período 2. Entre as mulheres, os machados nunca estiveram no rol de acompanhamentos possíveis. São poucas as ocorrências de percutores ou seixos com marca de uso entre os sepultamentos do sítio Armação do Sul. Mesmo assim, tudo indica que seriam elementos exclusivos dos sepultamentos de indivíduos adultos, embora não haja dependência estatística entre sua frequência e os diferentes grupos de idade segundo o teste de Fisher (p=0,296). Ocorrendo tanto em indivíduos do sexo masculino quanto em indivíduos do sexo feminino, a presença desses objetos foi apontada como independente com relação ao sexo (p=0,526). Quanto às diferenças entre o período e 1 período 2, o número de ocorrências é tão pequeno em ambos os momentos que não devem ser levadas em consideração, além de não serem significativas segundo o teste Fisher (p=0,631). As lascas também são pouco frequentes nos sepultamentos, apresentando um padrão de uso semelhante ao dos percutores e seixos com marca de uso: somente entre os adultos, tanto do sexo masculino quanto do sexo feminino. Novamente, contudo, essa diferença entre adultos e crianças, embora existente, não é significativa segundo o teste Fisher (p=0,152), e a independência com relação ao sexo é aceita (p=1,0). Quanto às diferenças entre o período e 1 período 2, o número de ocorrências é tão pequeno em ambos os momentos que não devem ser levadas em consideração, além de não serem significativas segundo o teste Fisher (p=0,254). Artefatos não identificados ou descritos por Rohr como sendo fragmentos de rocha com alteração ou marca de uso também parecem ser objetos utilizados somente em sepultamentos de indivíduos adultos, com apenas uma ocorrência em sepultamento infantil. Não há diferença no uso entre homens e mulheres, mas parece haver um aumento em sua frequência na passagem do período 1 (26,67%) para o período 2 (52,17%). De fato, o teste Fisher aponta para dependência com relação à idade (p=0,028) e independência com relação ao sexo (p=0,688). A diferença entre os dois períodos, contudo, não é reconhecida pelo teste Qui-Quadrado (p=0,120). Penso ser possível reunir essas últimas três categorias de acompanhamentos mencionados – os percutores ou seixos com marca de uso, as lascas e os artefatos não 174 identificados ou fragmentos de rocha com alteração – em um único grande grupo de “instrumentos de trabalho”, ou “objetos utilitários”, e entendê-los como fazendo parte quase que exclusivamente do rol de acompanhamentos possíveis entre indivíduos adultos. Às crianças, que não deveriam participar das atividades cotidianas da mesma forma que os adultos, talvez fossem reservados objetos de valor de uso e valor simbólico diferenciado, como os adornos, ou mesmo as pontas ósseas, artefatos fusiformes e lâminas de machado que ocorrem em alguns sepultamentos infantis; além, claro, dos elementos que ocorrem generalizadamente entre diferentes sexos, idades e períodos. Inclusive, a presença de artefatos que podem ser considerados “raros”, tendo em vista sua pequena ocorrência e impossibilidade de enquadramento nas categorias de acompanhamentos aqui empregadas, se dá somente em sepultamentos infantis. É o caso de uma criança do período 1, acompanhada por uma ponta em quartzo – artefato que destoa dentre os demais que compõem a indústria lítica do sítio, tendo provavelmente sido trocado com outras populações ou encontrado fortuitamente –, e de duas crianças do período 2, acompanhadas por bastões em diabásio. A dependência da frequência desses artefatos “raros” com relação à idade é significativa segundo o teste de Fisher (p=0,028). Como elementos que ocorrem generalizadamente entre diferentes sexos, idades e períodos, podemos citar as conchas, os ossos de fauna terrestre ou marinha e os seixos e/ou fragmentos de rocha sem alteração antrópica. As conchas aparecem indistintamente em sepultamentos de adultos do sexo feminino, adultos do sexo masculino e crianças, sendo a sua frequência, portanto, independente com relação à idade (p=1,0 – teste de Fisher) e ao sexo (p=0,678). Podem estar em grande quantidade tanto ao redor do esqueleto, contornando-o, quanto sobre partes específicas deste, como o rosto, mas também aparecem em pares isolados e conjuntos de 3, 4 ou 9. Embora ocorram em ambos os momentos de ocupação do sítio, o gráfico indica um aumento na sua frequência na passagem do período 1 (31,25%) para o período 2 (52,58), dependência que, contudo, não é acusada pelo teste Qui-Quadrado (p=0,199). A presença de ossos e dentes de fauna terrestre e marinha – principalmente de mamíferos marinhos – é ainda mais comum que a de conchas, constituindo quase que um 175 padrão entre os sepultamentos do segundo período do sítio. Embora esse tipo de material não ocorra entre as crianças do período 1, aparece tanto em indivíduos femininos quanto em indivíduos masculinos desse período, e em todas as categorias de sexo e idade do período 2, havendo independência estatística entre as frequências e as categorias mencionadas (p=1,0 em ambos os casos – teste de Fisher). Há, contudo, um aumento significativo na ocorrência de fauna na passagem de um momento de ocupação para o outro (de 43,75 para 80,00%), o que é apontado também pelo teste Qui-Quadrado (p=0,017). Os seixos e fragmentos de rocha sem alteração são, definitivamente, os elementos mais frequentes dentre todos os acompanhamentos funerários, além de ocorrerem igualmente entre indivíduos do sexo feminino e masculino, adultos e crianças. Há independência, portanto, entre a frequência desses objetos e as categorias de idade (p=0,481 – teste de Fisher) e sexo (p=0,669 – teste de Fisher). Embora o teste QuiQuadrado aponte para independência também com relação ao período (p=0,081) – para um nível de confiança de 95% – o gráfico indica que houve um aumento na ocorrência de seixos e fragmentos de rocha na passagem do período 1 (63,64%) para o período 2 (85,19%), de modo que enquanto no primeiro momento de ocupação do sítio esses objetos são apenas bastante comuns, no segundo momento parecem se tornar uma norma. Agora, para complementar os dados relativos aos usos e desusos dos diferentes tipos de acompanhamentos funerários, seguem alguns gráficos representando o número mínimo de acompanhamentos funerários em diferentes indivíduos, grupos de idade, sexo e período. Lembrando que esse cálculo foi realizado com base somente nos sepultamentos completos, de forma a evitar ao máximo subestimativas dos valores. Como veremos, esses resultados corroboram a análise da frequência do uso, mostrando haver diferenças entre indivíduos adultos do sexo masculino, adultos do sexo feminino e crianças, bem como transformações ao longo do tempo. 176 Gráfico 17: Histograma do número mínimo de acompanhamentos funerários entre sepultamentos de indivíduos do sexo masculino, do sexo feminino e crianças. Gráfico 18: Distribuição do número mínimo de acompanhamentos funerários dos indivíduos do sítio Armação do Sul. 177 Tanto no histograma quanto no gráfico de dispersão é possível observar que há um aumento no número de acompanhamentos dos sepultamentos ao longo do tempo, passando de uma média de 7,57 no período 1, para uma média de 15,90 no período 2. Na ausência de normalidade na amostra, mesmo com a exclusão dos outliers, foi aplicado o teste U de Mann-Whitney (não-paramétrico) para verificação da significância dessa diferença e, de fato, a hipótese de semelhança foi rejeitada (p=0,037) para um nível de confiança de 95%. Há também uma mudança na variação desse número que, uma vez excluídos os outliers, apresenta coeficiente de variação de Pearson (CVp) de 71,66% no período 1 e de 79,32% no período 2, indicando um aumento de quase 10% no desvio dos valores com relação à média. Com um olhar mais atento, contudo, percebemos que a diferença está, na verdade, somente nos indivíduos adultos masculinos e nas crianças: enquanto as mulheres mantêm média parecida entre os dois períodos, passando de 7 para 9 acompanhamentos, os homens passam de uma média de 10,50 para 19,56, e as crianças de 2,67 para 11,43, com um aumento também na variação desses números. É interessante observar como no período 1 não há diferença clara entre a maior parte dos indivíduos do sexo masculino e feminino, a distinção maior se dando com relação às crianças. O indivíduo desse momento cronológico que apresenta o número de acompanhamentos mais elevado, contudo, é do sexo masculino, destoando de todos os demais. No período 2, por outro lado, alguns sepultamentos masculinos apresentam números muito maiores que os das mulheres, havendo uma diferença clara entre os diferentes sexos. Quanto às crianças, é possível perceber que enquanto algumas continuam apresentando números baixíssimos de acompanhamentos, outras passam a se igualar aos homens que se destacam por apresentarem números maiores. Nesse segundo período – e apesar da aproximação por parte de algumas crianças – novamente o valor outlier pertence a um indivíduo adulto do sexo masculino. Talvez isso tudo se torne mais evidente em cores, como representado no gráfico abaixo, onde os diferentes números de acompanhamentos funerários se encontram categorizados. 178 Gráfico 19: Representação da distribuição dos diferentes números de acompanhamentos funerários entre indivíduos adultos femininos, indivíduos adultos masculinos e crianças. Fica claro que, durante o período 1, a prática comum era de sepultar as crianças com poucos acompanhamentos, entre 1 e 5, algumas contando apenas com ocre e adorno. Os adultos apresentam uma variação muito maior, com números entre 1-15, 6-10 e 11-15. Não há sepultamentos entre 16-20 e 21-25, somente um indivíduo estimado como adulto maduro do sexo masculino que destoa de todos os demais com mais de 26 acompanhamentos. No período 2, os sepultamentos infantis passam a apresentar maior variação: a maioria ainda conta com apenas 1 a 5 acompanhamentos, porém alguns aparecem com números entre 16-20 e 21-25, sem meio termos. As crianças que contam com muitos acompanhamentos são também as que contam com adorno, enquanto aquelas que 179 apresentam número pequeno, em geral, não estão acompanhadas desse tipo de objeto. Os adultos continuam sendo os que mais variam, mas, nesse momento, há uma grande diferença entre os indivíduos do sexo feminino e do sexo masculino. Enquanto os sepultamentos femininos mantêm a variação anterior, os sepultamentos masculinos passam a contar com todas as categorias de números, aparecendo em combinações de 1-5, 6-10, 11-15, 16-20, 20-25 e mais de 26. Está claro também que a quantidade de acompanhamentos não pode ser considerada aleatória, uma vez que é possível observar padrões bem definidos entre os diferentes sexos e idades em ambos os períodos. Além disso, em ambos os momentos de ocupação do sítio o número mais alto de acompanhamentos pertence a um indivíduo do sexo masculino. Outro aspecto que reforça a não aleatoriedade na escolha da quantidade de objetos a acompanhar um sepultamento reside no fato de que determinados tipos de acompanhamentos como as pontas ósseas, os artefatos fusiformes e as lâminas em geral costumam aparecer justamente naqueles indivíduos que contam com grande número de acompanhamentos, com algumas exceções. O caso das lâminas é o único que não apresenta exceções, e o mais emblemático tendo em vista o que foi anteriormente colocado sobre sua ocorrência se dar entre indivíduos que de alguma forma se destacam. Gráfico 20: Distribuição do número mínimo de acompanhamentos dos indivíduos do período 1 e do período 2, com marcação daqueles que contam com lâminas de machado ou outro tipo de lâmina. 180 Por fim, podemos observar alguns padrões de escolha relativos aos objetos e à quantidade de objetos a serem utilizados em determinados sepultamentos, bem como à deposição e posição dos corpos. Padrões que deveriam ser senso comum entre a população do sítio Armação do Sul no momento de escolher os objetos que iriam compor um sepultamento; disposições estruturadas de como agir frente à questão colocada pelo corpo do falecido, mas também estruturantes e passíveis de desvios, mudando e gerando mudança. De forma a tornar a visualização desses padrões mais clara, segue um quadro resumo dos dados aqui apresentados. Período 1 2 TIPOS DE ACOMPANHAMENTOS Sexo Idade Qtd C F Comum (>50%) Ocasional (50-25%) Raro (<25%) 1-5 Ocre Adorno Lítico não trabalhado Raro (ponta em quartzo) Concha 1-5 6-10 11-15 Ocre Lítico não trabalhado Utilitários Fauna Concha M 1-5 6-10 26 ou mais Ocre Fauna C 1-5 16-20 21-25 Fauna Lítico não trabalhado Concha Ocre F M 1-5 6-10 11-15 1-5 6-10 11-15 16-20 21-25 26 ou mais Utilitários Lítico não trabalhado Adorno Concha Lâmina Fusiforme Lâmina Ponta óssea Adorno Raro (bastão de diabásio) Utilitários Fauna Lítico não trabalhado Utilitários Ocre Concha Ponta óssea Fusiforme Fauna Lítico não trabalhado Utilitários Concha Ponta óssea Ocre Fusiforme Lâmina Adorno Quadro 1: Padrões de uso dos diferentes tipos de acompanhamentos funerários entre e diferentes quantidades entre indivíduos adultos femininos, masculinos e crianças dos períodos 1 e 2. 181 No período 1, o sepultamento infantil ideal incluía somente um elemento: os adornos. Em alguns casos poderia também ser adicionado algum lítico não trabalhado; as exceções são uma ocorrência de ponta em quartzo e uma ocorrência de material malacológico. O número de acompanhamentos era pequeno entre todas as crianças. Quanto aos objetos esperados em sepultamentos femininos, estes eram, basicamente, os seixos e fragmentos de rocha não trabalhados, embora houvesse também a possibilidade de escolha de artefatos utilitários e material ósseo faunístico em alguns casos; em apenas um caso, optou-se pela utilização de conchas. O número de acompanhamento ia de pequeno a mediano. O elemento comum à maior parte dos sepultamentos masculinos era o material ósseo faunístico, mas, fora isso, havia um amplo leque de acompanhamentos que, eventualmente, poderiam também ser utilizados: artefatos utilitários, líticos não trabalhados, adornos, conchas e lâminas de machado ou similares. O número de acompanhamentos ia de pequeno a médio, e a muito grande. O uso do ocre, nesse momento cronológico, poderia ser considerado uma norma em todos os grupos de sexo e idade. No período 2, o acordo consentido de como deveria ser um sepultamento infantil envolvia basicamente a utilização de material ósseo faunístico, lítico não trabalhado e conchas, havendo, contudo, a possibilidade de uso ocasional de um extenso rol de elementos, onde se incluíam os artefatos fusiformes, lâminas, pontas ósseas, bastões de diabásio e adornos. A exceção é uma ocorrência de artefato utilitário, e o número de acompanhamentos poderia ser ou muito pequeno ou grande, sem meio termo. Um sepultamento feminino ideal consistia somente em lítico não trabalhado, ossos de fauna e utilitários, sendo possível, ocasionalmente, adicionar-se material malacológico; as exceções são uma ocorrência de ponta óssea e uma ocorrência de artefato fusiforme. O número de acompanhamentos funerários poderia ser pequeno ou médio. Nota-se uma grande semelhança com o período 2, tanto na quantidade quanto na tipologia dos objetos – que continuam praticamente os mesmos, mudando apenas de frequência. Já nos sepultamentos masculinos, esperava-se a presença de ossos de fauna, lítico não trabalhado, artefatos utilitários, conchas e pontas ósseas, havendo ainda a possibilidade de a diversidade ser aumentada por meio do uso de artefatos fusiformes e lâminas. A exceção 182 é uma ocorrência de adorno, e o número de acompanhamentos era extremamente variado, indo de pequeno a muito grande. O uso do ocre, nesse momento cronológico, era mantido como norma somente entre as crianças, se tornando eventual entre os adultos femininos e masculinos. Em ambos os períodos do sítio, é nos objetos que ocorrem somente ocasionalmente que reside a possibilidade de distinção entre diferentes indivíduos de um mesmo grupo etário ou de sexo, sendo interessante notar como no caso das crianças e das mulheres, essa distinção costuma ocorrer por meio do uso de elementos tipicamente masculinos, como a fauna e as conchas no período 1, ou as pontas ósseas, fusiformes e lâminas – estas somente no caso das crianças – no período 2. Ainda, com base nesse quadro e em informações apresentadas anteriormente, podemos entrever tradições de longa duração em meio aquilo que é de uso circunstancial e, portanto, depende do grupo social em questão ou do momento cronológico. São elas: A opção pela inumação primária e a possibilidade de haver um envoltório feito em material perecível protegendo os indivíduos (Schmitz et al. 1992), prática que, como sugerido por Nilsson Stutz (2010) para sítios do mesolítico da Escandinávia meridional, deveria estar associada a uma preocupação com a integridade do corpo; A posição estendida com decúbito e orientação variados. O padrão espacial com respeito à área central, que é mantida vazia de sepultamentos, bem como o respeito ao espaço ocupado pelos sepultamentos e estruturas mais antigas. O envolvimento dos corpos em ocre, porém apenas até determinado momento – após 1600 anos AP os sepultamentos não apresentam mais esse elemento. O uso generalizado de material lítico não trabalhado, material faunístico e malacológico como acompanhamento funerário. O uso de adornos principalmente em sepultamentos infantis. O uso de artefatos utilitários somente em sepultamentos de indivíduos adultos. O uso de lâminas de machado e outras lâminas ósseas ou líticas principalmente em sepultamentos de adultos do sexo masculino. 183 A quantidade de acompanhamentos funerários entre os sepultamentos de adultos do sexo feminino (entre 1 e 15). O fato de os sepultamentos com 26 ou mais acompanhamentos funerários pertencerem a indivíduos adultos do sexo masculino. Essas tradições que remetem ao início da formação do sítio em 3065-2880 anos cal AP e persistem não apenas em meio às mudanças observadas na passagem do período 1 para o período 2, mas também através do hiato de 400 anos nas datações, apontam para continuidade histórica entre as populações que utilizaram o sítio Armação do Sul como espaço ritual e lugar de memória ao longo de mais de 1500 anos. Demonstram também que, enquanto alguns aspectos relacionados às práticas mortuárias são negociáveis, outros se encontram enraizados tão profundamente que dificilmente são transformados. Algumas dessas tradições devem estar relacionadas a ideias regionais de muito longa duração a respeito da morte e de como lidar com a questão colocada pelo corpo morto, como, por exemplo, o uso do ocre e a inumação primária; outras devem estar relacionadas ao contexto local ou, ainda, ser específicas de acordos internos à população do sítio Armação do Sul sobre como um ritual funerário deve ser. Sem mais estudos semelhantes nos sítios conchíferos do litoral central e do litoral catarinense como um todo, contudo, fica difícil inferir a origem de cada uma dessas práticas. Quanto às mudanças, podemos destacar o abandono gradativo no uso do ocre; a maior distinção interna entre os sepultamentos do grupo masculino e destes com relação aos sepultamentos femininos, por meio do aumento da média geral do número de acompanhamentos e do aumento da variabilidade no número e nas tipologias de acompanhamentos; e a maior distinção interna entre os sepultamentos infantis, por meio do aumento da média geral do número de acompanhamentos e do aumento da variabilidade no número e nas tipologias de acompanhamentos possíveis, que se transformaram no sentido de uma maior aproximação com os sepultamentos masculinos. 184 Afora isso, houve o acréscimo de mais alguns objetos ao rol de acompanhamentos possíveis, como as pontas ósseas e os fusiformes, principalmente entre os indivíduos do sexo masculino; bem como a diminuição no uso de outros, como os adornos, principalmente entre as crianças; e, claro, mudanças diversas na frequência de alguns tipos de acompanhamentos pré-existentes entre os diferentes grupos de sexo e idade. A alteração no padrão de uso do ocre se destaca por ter sido generalizada e por ter apresentado um ritmo lento, diferentemente dos demais acréscimos e abandonos que envolveram somente grupos de idade e sexo específicos e que parecem ter se dado mais rapidamente. Essa alteração, como já mencionado anteriormente, poderia estar relacionada a negociações, por parte da população do sítio Armação do Sul e do conjunto de relações empreendidas localmente, com uma estrutura regional de longa duração, em um momento em que os rituais funerários deixaram de ser praticados irrefletidamente e a doxa foi posta à prova. O aumento da variabilidade no número e nos tipos de acompanhamentos entre o os adultos do sexo masculino, com presença mais frequente de sepultamentos que se destacam pela suntuosidade, permite considerarmos a possibilidade de emergência de uma maior diferenciação social entre os homens do sítio Armação do Sul. E, embora as relações de status em uma sociedade não necessariamente correspondam a relações de poder (Shennan 2006[1982]), enquanto não se prove o contrário podemos, sim, conjecturar que essa diferenciação esteja associada ao desenvolvimento de uma hierarquia social mais complexa ou, pelo menos, mais claramente observável no registro arqueológico. Para o contexto da Idade do Bronze na Europa, Shennan (2006[1982]) demonstrou que o aparecimento de sepultamentos individuais suntuosos se deu para reafirmar as relações de poder pré-existentes, numa ideologia de legitimação da diferenciação social como natural e imutável, contrária à ideologia de coletividade anterior que as mascarava; nesse caso, portanto, o registro arqueológico mudou, mas a organização social permaneceu a mesma. O fato de alguns sepultamentos infantis acompanharem a mudança nas práticas mortuárias relacionadas aos indivíduos masculinos – e justamente na incorporação de elementos tipicamente masculinos – não apenas reforça a possibilidade do 185 estabelecimento de novas relações de status e/ou poder, mas indica que talvez possamos estar lidando também com a passagem de uma sociedade de status adquirido para uma sociedade de status hereditário (Marcus 2008). Em diferentes contextos ao redor do mundo, os sepultamentos infantis raramente se mostram tão elaborados quanto os dos adultos, o que geralmente é interpretado como indicativo de uma identidade ambígua, pertencimento a um “outro” gênero, baixo status ou, ainda, do fato de os pais não quererem se apegar emocionalmente às crianças antes de passarem pelos estágios mais críticos (Fahlander 2008). Sepultamentos bastante ricos em objetos e cuidadosamente organizados, contudo, ocorrem, e, embora possam ser interpretados como fruto de um esforço coletivo em nível de grupo – como o caso do cachorro em Skateholm que apresentou um dos sepultamentos mais ricos do sítio (Fahlander 2008) –, são frequentemente entendidos como evidência de desigualdade hereditária (Marcus 2008): sendo as crianças muito novas para terem adquirido o direito de possuir tantos objetos, deveriam ter herdado tal direito e o status correspondente. Nessa perspectiva, a mudança no registro arqueológico poderia ser explicada, simplesmente, por uma necessidade de atualização, causada por uma incompatibilidade entre as práticas mortuárias tradicionalmente empreendidas e as novas relações em jogo ou as relações já previamente estabelecidas e que, por algum motivo, deveriam ser reafirmadas. Em ambos os casos, a mudança seria fruto de contradição, em que "the demands of ritual to conform to traditional models clash with the ability of those rites to resonate with the real experiences of the social body” (Bell 2009[1992]); fruto da ineficácia do ritual e daquilo que o senso comum entendia como sepultamento ideal em representar o mundo presente. E, em ambos os casos, estaríamos falando de transformações materiais moldadas por interações sociais que, com certeza, não deveriam estar livres de negociação e resistência. Em momentos de crise, as contradições aparecem e a doxa é posta à prova; a adoção de inovações nas práticas mortuárias pode representar uma solução. 186 6 Paleodieta e mobilidade 6.1 Análises isotópicas de nitrogênio (δ15N) e carbono (δ13C) 6.1.1 Materiais e métodos Para determinação dos valores δ15N e δ13C dos indivíduos sepultados no sítio Armação do Sul foram selecionados pequenos fragmentos ósseos de todos os esqueletos presentes na reserva técnica do Museu do Homem do Sambaqui que possuíam pós-crânio e sobre os quais se tinha as informações arqueológicas necessárias para contextualização, descartando-se aqueles que poderiam ter sido misturados em processos pós-deposicionais ou de curadoria na instituição de guarda14. Houve preferência por fragmentos de costela, mas na ausência delas, ou nos casos em que os esqueletos as apresentavam em pouca quantidade, foram coletados pequenos fragmentos de ossos longos e de crânio e, em três casos isolados, uma falange, um metatarso e um fragmento de metacarpo. Evitamos a coleta de ossos com presença de patologias e outros marcadores bioarqueológicos que possam gerar informações importantes a pesquisas futuras. Juntamente com os ossos humanos, foram selecionados ossos de mamíferos terrestres, aquáticos e semiaquáticos, répteis, anfíbios, aves e peixes do sítio Armação do Sul, de modo a determinar os valores δ15N e δ13C biologicamente disponíveis no local e, assim, aumentar o poder interpretativo sobre as assinaturas dos indivíduos humanos. No total, foram selecionadas 42 amostras humanas pertencentes a indivíduos adultos e crianças, e 23 amostras faunísticas para análise do colágeno. Como os valores 14 As coletas foram realizadas com o auxílio da bioarqueóloga Me. Luciane Zanenga Scherer. 187 δ15N e δ13C presentes no colágeno refletem a dieta proteica, e como o colágeno sofre remodelação ao longo do tempo, as informações geradas dirão respeito ao consumo de proteínas nos últimos anos de vida dos indivíduos analisados. O sexo e a idade dos indivíduos humanos foram determinados pelas pesquisadoras Andrea Lessa e Luciane Zanenga Scherer, segundo o protocolo de Buikstra e Ubelaker (1994). Todo o material coletado foi devidamente fotografado e documentado. Os ossos passaram por um processo de limpeza mecânica e tratamento químico de modo a retirar possíveis contaminantes – como lipídios, carbonato da apatita, carbonato pós-deposicional, C e N presentes no sedimento aderido e matéria orgânica – conforme sugerido por diferentes autores (DeNiro e Epstein 1978, 1981; Ambrose 1990; Schoeninger e Moore 1992) e seguindo o protocolo de Tykot (Bastos 2014). Todo esse processo foi realizado no espaço do Laboratório de Paleoparasitologia da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (ENSP/FIOCRUZ)15. Fragmentos com aproximadamente 1g foram higienizados com o uso de água destilada, sendo suas superfícies escovadas com escova de dente e raspadas com sonda exploradora de dentista e bisturi n. 12. Em seguida, foram colocados em frascos de vidro identificados, deixados para secar no forno (50°C) e, uma vez secos, foram pesados. O tratamento químico para extração e purificação do colágeno teve início com a imersão das amostras em NaOH 0,1M por 24 horas, para remoção de ácidos húmicos. Após essa primeira etapa, o NaOH foi descartado e as amostras enxaguadas com água destilada e cortadas em pedaços menores com auxílio de bisturi. Foram então imersas em HCl 2% por outras 24 horas, para remoção da fração mineral do osso (apatita). Essa etapa de desmineralização foi repetida mais duas vezes, havendo sempre descarte do HCl e substituição por ácido novo. Após a terceira vez, o HCl foi descartado e as amostras foram enxaguadas em água destilada, sendo imersas novamente em NaOH, por mais 24 horas, após as quais foram enxaguadas em água destilada. Em seguida foram imersas em uma solução na proporção de 2:1:0,8 de metanol, clorofórmio e água destilada, para remoção de resíduos lipídicos. Por fim, as amostras foram enxaguadas e colocadas no forno para secar a 50°C. 15 A preparação das amostras foi realizada com o auxílio do Dr. Murilo Quintans Bastos e apoio da equipe do Laboratório de Paleoparasitologia (ENSP/FIOCRUZ). 188 No espaço do Laboratório de Ecologia Isotópica do Centro de Energia Nuclear na Agricultura (CENA/USP), as amostras de colágeno resultantes do processo de purificação foram novamente pesadas para cálculo da porcentagem de colágeno presente nos ossos selecionados para análise. Em seguida, foram pesadas alíquotas de aproximadamente 1mg de cada amostra para análise de seus valores δ15N e δ13C. Algumas amostras apresentaram menor quantidade de colágeno, o caso mais extremo chegando a 0,134 mg, porém sem prejuízo na leitura do sinal pelo espectrômetro de massas na maior parte dos casos. A composição isotópica das amostras e as porcentagens de carbono e nitrogênio foram determinadas por um espectrômetro de massas Thermo Finnigan Delta Plus acoplado a um analisador elementar CHNS – EA 1110, no Laboratório de Ecologia Isotópica (CENA/USP). Os valores δ15N e δ13C foram expressos em partes por mil (‰) com relação aos padrões internacionais AIR e PDB, respectivamente. 6.1.2 Resultados Das 42 amostras humanas selecionadas, 6 não apresentaram colágeno após o tratamento químico com NaOH e HCl e, logo, não puderam ter suas composições isotópicas estimadas. Foram analisadas, portanto, 36 amostras humanas. Uma das amostras analisadas, contudo, apresentou problemas na leitura do sinal pelo espectrômetro16, tendo sido obtidos, por fim, resultados para 35 indivíduos. Das 23 amostras de fauna selecionadas, 9 não apresentaram colágeno após o tratamento químico com NaOH e HCl e, logo, não puderam ter suas composições isotópicas estimadas. Foram analisadas, portanto, 14 amostras faunísticas, e obtido igual número de resultados. Infelizmente, dentre os ossos que não apresentaram colágeno a maior parte era de peixes e, com isso, nenhuma amostra de peixe pôde ser analisada. 16 Ao manipular essa amostra específica para pesar suas 0,159 mg na balança antes da análise, percebi que ela se desmanchou, se mostrando bastante friável, talvez simplesmente por estar em pouca quantidade ou por ser uma amostra não colagenosa. 189 ID Osso Idade Sexo δ13C‰ δ15N‰ %C %N C:N % Col 2 3 5 6 8 14 15 17 22 27 28 29 30 31 32 33 36 37 38 39 40 43 45 49 51 52 54 58 61 66 67 69 71 74 78 costela costela costela crânio costela costela costela costela costela crânio costela costela falange costela costela costela costela costela costela crânio costela costela úmero esquerdo costela costela fíbula esquerda osso longo osso longo crânio costela costela costela crânio osso longo crânio AJ AM AJ A AM AM A A A A A A A AM A AM A AM A C A A A AJ AM AM I I A* C C C AM AM* A* M M M F M M F F F F F M M F M M M M F I M M F F M F F* I M I I I M M* M -12,82 -10,59 -12,22 -12,04 -10,54 -10,53 -11,50 -11,33 -12,36 -11,85 -11,62 -10,59 -10,31 -11,86 -10,46 -10,61 -10,88 -10,49 -12,11 -10,89 -10,88 -11,26 -11,37 -12,18 -10,44 -11,94 -12,19 -11,25 -11,41 -11,29 -11,76 -11,79 -11,40 -12,50 -12,07 17,03 17,37 18,66 17,65 17,83 17,92 17,62 17,83 16,35 17,71 17,59 17,08 17,94 17,62 17,81 18,71 19,05 17,00 17,48 20,24 19,48 18,66 17,57 18,02 19,49 16,32 19,40 18,62 17,91 18,23 18,06 20,82 17,87 17,48 17,96 33,12 38,24 42,46 32,25 41,27 41,10 39,45 39,67 38,86 38,34 40,54 39,81 39,06 36,39 38,92 37,66 36,92 37,69 34,16 36,07 37,36 39,23 36,55 36,97 37,49 37,71 36,85 38,28 38,38 39,10 39,07 36,35 37,40 41,79 36,27 12,85 14,89 16,55 12,32 16,34 16,33 15,78 15,22 15,55 15,29 16,25 15,83 15,70 13,65 15,97 15,35 14,52 14,80 13,74 14,19 14,92 15,19 14,90 14,84 15,29 15,28 14,63 15,62 15,39 15,81 15,08 14,46 15,09 16,43 14,24 3,02 3,01 3,00 3,06 2,96 2,95 2,93 3,00 2,93 2,94 2,92 2,94 2,91 3,12 2,85 2,87 2,98 2,98 2,91 2,98 2,93 3,02 2,87 2,92 2,87 2,89 2,90 2,87 2,92 2,90 3,03 2,94 2,90 2,98 2,98 2,67 3,99 5,06 0,43 6,00 5,45 2,03 3,03 7,70 4,69 5,48 4,61 6,47 0,27 4,21 3,47 0,39 1,40 0,60 1,11 1,48 2,11 0,26 2,64 0,15 3,61 0,02 1,16 4,67 6,25 2,61 1,56 0,77 0,02 6,65 15 13 Tabela 3: Resultados da análise dos valores δ N e δ C dos indivíduos analisados do sítio Armação do Sul. Legenda sexo e idade: I= indeterminado, M= masculino, F= feminino, AM= adulto maduro, A= adulto, AJ= adulto jovem, C= criança, *= possível (há dúvida na determinação, porém será considerado como consta na tabela para fins estatísticos). 190 13 15 ID Taxon Osso δ C‰ δ N‰ Ratão do banhado Myocastor coypus rádio -16,19 15,01 38,30 15,22 2,95 6,02 Capivara Hydrochoerus hydrochaeris osso longo -11,53 5,74 36,90 14,60 2,96 0,60 Paca Agouti paca osso longo -21,53 6,22 40,40 15,54 3,04 2,16 Gambá Didelphis sp. osso longo -20,17 11,37 35,93 14,07 2,99 1,22 Jaguatirica Felis pardalis rádio -20,02 11,37 39,26 15,83 2,90 2,83 Anta Tapirus terrestris primeiro metatarso -22,86 5,98 36,12 14,55 2,91 2,17 Porco do mato Tayassu pecari mandíbula -22,51 4,44 35,67 14,19 2,94 2,29 Lontra Lutra longicaudis fêmur direito -16,83 14,57 35,07 13,53 3,03 3,60 Veado Ozotocerus sp. ou Mazama sp. osso longo -21,24 6,94 33,78 12,49 3,17 2,13 Jacaré Crocodylia n. identificado -19,72 7,69 34,74 13,21 3,08 0,48 Tatu Dasypus sp. osso longo -14,61 15,67 39,93 16,01 2,92 13,20 Albatroz Diomedeidae não identificado -13,94 17,55 37,18 14,88 2,93 3,69 Golfinho Pontoporia blainvillei mandíbula -11,26 16,94 31,36 12,29 2,99 0,04 Lobo marinho Arctocephalus australis rádio -12,45 19,31 39,32 15,32 3,01 3,67 15 %C %N C:N % Col 13 Tabela 4: Resultados da análise dos valores δ N e δ C dos indivíduos analisados do sítio Armação do Sul. Todas as amostras humanas e faunísticas analisadas apresentaram concentrações de carbono e nitrogênio superiores a 3% e 1%, respectivamente, bem como razões C:N entre 2,9 e 3,6, situando-se, portanto, dentro dos padrões estabelecidos para medição da qualidade do colágeno com relação à presença de alterações diagenéticas que podem alterar os valores δ15N e δ13C (DeNiro, Schoeninger e Hastorf 1985; Ambrose 1990). Algumas amostras, no entanto, apresentaram concentrações de colágeno abaixo de 1%, ficando fora do padrão relativo a esse indicador. Como houve muita perda de colágeno ao longo do processo de purificação nas constantes substituições do NaOH e HCl e enxagues subsequentes, e como tanto as concentrações de carbono e nitrogênio quanto as razões C:N dessas amostras estão de acordo com os critérios, os resultados obtidos para elas foram mantidos entre os demais. O padrão de 2,9 a 3,6 sugerido para as razões C:N (DeNiro, Schoeninger e Hastorf 1985, Ambrose 1990) é baseado no cálculo da proporção atômica entre carbono e nitrogênio, ou seja, na quantidade de átomos desses elementos presentes na amostra. Análises realizadas em espectrômetros mais modernos, contudo, geram C:N menores, uma vez que o cálculo é realizado com base na proporção entre as concentrações de carbono e 191 nitrogênio, ou seja, entre a massa de cada um desses elementos presente na amostra (Hermenegildo 2009). Para que as razões C:N das amostras do sítio Armação do Sul ficassem dentro da faixa de variação estabelecida, portanto, foi preciso transformá-las em razões atômicas, o que foi feito com a multiplicação dos valores por um fator de 1,17, que corresponde à divisão entre o valor da massa atômica do elemento nitrogênio (14u) pela massa atômica do elemento carbono (12u). Esse fator é diferente daquele utilizado por Hermenegildo (2009) para a correção das razões de suas amostras. Os valores δ15N das amostras de colágeno humano analisadas variaram entre 16,3‰ e 20,8‰ (amplitude de 4,5‰), apresentando média de 18,1‰ com desvio padrão de 0,98‰. O maior valor obtido corresponde ao sepultamento 69, de uma criança, e o menor valor corresponde ao sepultamento 52, de indivíduo adulto maduro do sexo feminino. Os valores δ13C variaram entre -12,8‰ e -10,3‰ (amplitude de 2,5‰), apresentando média de -11,5‰ com desvio padrão de 0,7‰. O maior valor obtido corresponde ao sepultamento 30, de um indivíduo adulto do sexo masculino, e o menor valor corresponde ao sepultamento 2, de indivíduo adulto jovem do sexo masculino. Os valores δ15N das amostras de colágeno da fauna analisada variaram entre 4,4‰ e 19,3‰ (amplitude de 14,9‰), apresentando média de 11,3‰ com desvio padrão de 5,1‰. O maior valor obtido corresponde ao lobo marinho, e o menor valor corresponde ao porco do mato. Os valores δ13C variaram entre -22,9‰ e -11,7‰ (amplitude de 11,6‰), apresentando média de -17,5‰ com desvio padrão de 4,2‰. O maior valor obtido corresponde ao golfinho e o menor valor corresponde ao porco do mato. No gráfico de dispersão abaixo é possível observar a correlação extremamente significativa (r=0,942, r²=0,887, p=0,0) entre os valores δ15N e δ13C das amostras analisadas, o que é esperado numa cadeia alimentar quando envolve recursos C3 e alimentos marinhos, tendo em vista o enriquecimento que ocorre nos valores a cada nível trófico. Assim, a única amostra que se destaca das demais é a capivara, que se alimenta principalmente de plantas C4. Nesse gráfico, foi acrescentado um quadro representando a variação dos valores δ15N e δ13C obtidos por De Masi (2001, 2009) e Colonese et al. (2014) para os peixes que analisaram, bem como os valores obtidos por De Masi para a carne do berbigão (Anomalocardia brasiliana) e a média dos valores das plantas C3 e C4 (Bender 192 1968, Smith e Epstein 1971, Schoeninger e Moore 1992). Peixes x Berbigão x Plantas C3 (média δ13C =-26‰)) 15 Plantas C4 (média) x 13 Gráfico 21: Distribuição dos valores δ N e δ C das amostras humanas e faunísticas analisadas do sítio Armação do Sul, com inserção de dados de outros autores (Bender 1968; Smith e Epstein 1971; Schoeninger e Moore 1992; De Masi 2001, 2009; Colonese et al. 2014). Os indivíduos sepultados no sítio Armação do Sul ocupam o topo dessa cadeia alimentar, juntamente com o golfinho e o lobo marinho, mas também próximos do albatroz, e, assim como esses animais, deveriam estar se alimentando principalmente de peixes. Seus valores δ15N são coerentes com uma dieta predominantemente marinha e de alto nível trófico, assemelhando-se aos valores obtidos para populações pré-coloniais costeiras do sul da Califórnia, de 16 a 18‰ (Walker e DeNiro 1986) e de 14 a 19‰ (Schoeninger, DeNiro e Tauber 1983), mas, principalmente, àqueles de 17 a 20‰ obtidos para esquimós caçadores de baleias modernos (Schoeninger, DeNiro e Tauber 1983). Os valores δ13C dos indivíduos do sítio Armação do Sul, contudo, diferem daqueles obtidos para essas populações: enquanto no sul da Califórnia são de -15 a -14‰ (Walker e DeNiro 193 1986) e de -16 a -13‰ (Schoeninger, DeNiro e Tauber 1983), e entre os esquimós são de -17 a -11‰ (Schoeninger, DeNiro e Tauber 1983), na Armação do Sul são menos negativos, indo de -13 a -10%. É importante lembrar que a sobreposição que ocorre entre os valores δ13C das plantas C4 e dos recursos marinhos – ambos apresentando média em torno de -12% (Schoeninger e Moore 1992, Ambrose 1993) – pode estar mascarando algum consumo de alimentos C4 (como o milho) pelos indivíduos do sítio. Se for o caso, porém, esse consumo representaria uma contribuição proteica proporcionalmente pequena se comparada à dos peixes, e o mesmo serve para outros recursos como as plantas C3 e os animais terrestres. Embora todos os indivíduos apresentem uma dieta com forte influência marinha, podemos observar no histograma abaixo a existência de pequenas variações entre diferentes indivíduos e grupos de indivíduos. A maior parte dos valores δ13C está distribuída entre -12‰ e -10‰, porém, um indivíduo (sepultamento 2) destoa dos demais com valor próximo de -13‰. Os valores δ15N, por sua vez, estão distribuídos principalmente entre 17‰ e 19‰, havendo quatro indivíduos destoantes dos demais, dois deles com valores maiores que 20‰ (sepultamentos 39 e 69) e dois com valores em torno de 16‰ (sepultamentos 22 e 52, do sexo feminino). 13 15 Gráficos 22a e 22b: Histograma dos valores δ C e δ N dos indivíduos analisados do sítio Armação do Sul. Assim, os indivíduos 2, 22 e 52 poderiam estar se alimentando de recursos terrestres em maior quantidade que os demais, enquanto os indivíduos 39 e 69, por se 194 tratarem de crianças, estariam tendo seus valores δ15N determinados pelo consumo de proteína animal proveniente do leite materno (Katzenberg, Herring e Saunders 1996). Os indivíduos mencionados estão identificados no gráfico a seguir. 13 15 Gráfico 23: Dispersão dos valores δ C e δ N entre adultos do sexo feminino, masculino e crianças (sem determinação de sexo) do sítio Armação do Sul, com identificação dos sepultamentos 2, 22, 39, 52 e 69. De fato, a criança que apresenta o maior valor de δ15N do sítio (sepultamento 69) tem idade de 18 meses ± 6 meses, enquanto as outras duas crianças analisadas, que apresentam valores δ15N totalmente integrados ao resto da população, possuem idade de 3 anos ± 12 meses e de 7 anos ± 24 meses. Isso vai ao encontro dos dados que vêm sendo gerados em estudos sobre alimentação e idade de desmame em crianças de populações históricas e pré-históricas (Fogel, Tuross e Owsley 1989; Katzenberg, Herring e Saunders 1996). A criança de número 39, contudo, que também apresenta valor δ15N elevado, possui idade estimada em 6 anos ± 24 meses, o que indica que ela ainda estava em período de amamentação, ou que já havia sido desmamada, porém sua assinatura isotópica ainda 195 apresentava o sinal do leite materno – tendo em vista o lento processo de remodelação do colágeno dos ossos. Embora essas práticas sejam extremamente variáveis entre diferentes indivíduos e sociedades, em geral os dados apontam para um aumento gradativo dos valores de δ15N desde o nascimento das crianças até mais ou menos 1 ou 2 anos de idade, com enriquecimento entre 1 e 3‰; a partir daí, os valores tendem a diminuir na maior parte das sociedades estudadas, dependendo do momento em que ocorre o desmame ou a complementação da dieta com outros alimentos além do leite materno (Fogel, Tuross e Owsley 1989; Katzenberg, Herring e Saunders 1996). Existem, contudo, casos de amamentação prolongada, resultando em valores δ15N elevados até os 4 anos de idade, como demonstrado por White e Schwarcz (1994) em múmias núbias do norte do Sudão e por Hermenegildo (2009) entre populações do Brasil central, o que poderia ser o caso da criança representada pelo sepultamento 39. Tendo em vista o enriquecimento de 3‰ no valor δ15N entre cada nível trófico de uma cadeia alimentar, é de se esperar que uma criança se alimentando exclusivamente de leite materno apresente valor em torno de 3‰ maior que o da mãe (Katzenberg, Herring e Saunders 1996), sendo aproximadamente essa a diferença que se observa entre os indivíduos 69 e 39 (20,8 e 20,2‰) e a maior parte da amostra feminina do sítio (17,6‰). No gráfico de dispersão é possível notar que, além dos sepultamentos femininos 22 e 52, há outra mulher que se diferencia no grupo feminino – embora apresente valores δ15N coerentes com a amostra total – o que é perceptível também no boxplot abaixo. 13 15 Gráficos 24a e 24b: Boxplot dos valores δ C e δ N do grupo feminino e masculino do sítio Armação do Sul. 196 A média dos valores δ15N é parecida entre os indivíduos do sexo feminino (+17,7 ± 0,2‰) e masculino (+18,1 ± 0,8‰), embora entre estes últimos seja um pouco maior. Tendo em vista a diferença entre as variâncias assumida por meio do teste de Levene (F=12,949, p=0,001), contudo, a hipótese da semelhança entre esses dois grupos é rejeitada pelo teste t de Student para um nível de significância de 95% (t=-2,384, df=18,535, p=0,028). Com relação aos valores δ13C, os indivíduos do sexo feminino apresentam uma média de -11,9 ± 0,3‰, enquanto os indivíduos do sexo masculino apresentam média de -11,1 ± 0,8‰, ou seja, quase 1‰ menos negativa que a média do grupo feminino. Na ausência de normalidade entre os valores dos indivíduos masculinos (p=0,005) mesmo com a exclusão do outlier, procedi ao teste não paramétrico U de Mann-Whitney para verificação da semelhança na distribuição dos valores entre os dois grupos, hipótese que foi rejeitada em um nível de confiança de 99% (p=0,009). Dificilmente, portanto, as diferenças entre o grupo feminino e masculino se devem ao acaso, sendo possível que os indivíduos do sexo feminino estivessem se alimentando de animais terrestres e/ou plantas (provavelmente C3 tendo em vista a direção da correlação) em maior quantidade, ou que os indivíduos do sexo masculino estivessem se alimentando de recursos de nível trófico um pouco mais alto em maior quantidade, além de contarem com uma maior variabilidade de fontes de proteína. As três mulheres outliers tinham uma dieta proteica diferente das demais, uma de maior nível trófico e as outras duas de menor nível trófico ou mais terrestre, o que poderia ser explicado por regimes alimentares específicos relacionados a algum momento de suas vidas, posição na sociedade ou, ainda, à passagem da maior parte dos seus últimos anos de vida em meio à outra população – local ou não local – com padrão de dieta diferente do apresentado pelo sítio Armação do Sul. O mesmo serve para o indivíduo masculino outlier, com uma dieta provavelmente mais terrestre ou de menor nível trófico que a dos demais indivíduos. Saindo dessa perspectiva geral relativa à tendência dos valores δ13C e δ15N ao longo dos mais de 1500 anos de ocupação do sítio e nos debruçando sobre diferentes momentos cronológicos, contudo, podemos ver que os valores δ15N dos indivíduos do sexo masculino diminuem consideravelmente na passagem do período 1 para o período 2, apresentando 197 também uma menor variabilidade – sendo o primeiro período referente aos indivíduos datados entre 3100 e 2500 anos AP e/ou sepultados na areia marrom e o segundo período referente aos indivíduos datados entre 2500 e 1200 anos AP e/ou sepultados na terra preta, conforme cronologia relativa proposta do capítulo anterior. 13 15 Gráfico 25: Dispersão dos valores δ C e δ N entre adultos do sexo feminino, adultos do sexo masculino e crianças (sem determinação de sexo) do sítio Armação do Sul, com identificação dos sepultamentos. Há diferença significativa entre os valores δ15N dos dois períodos do sítio (t=2,102, df=20,944, p=0,048), que diminuem de uma média de +18,3‰ para +17,7‰, diferença que está sendo causada principalmente pela diminuição nos valores do grupo masculino, mas também pela presença de duas crianças fora da idade de amamentação no período 2. As mulheres mantêm média semelhante ao longo do tempo, descartando-se as outliers. Quanto aos valores δ13C, embora eles não mudem significativamente de um período para o outro (t=0,174, df=32, p=0,863), se os cruzarmos com as idades 198 radiocarbônicas obtidas para cada um dos indivíduos datados – o que reduz a amostra para n=26 – obtemos correlação alta e significativa entre as duas variáveis para um nível de confiança de 99% (r= 0,580, r²=0,34, p=0,002). Assim, os valores δ13C também mudam ao longo do tempo, tornando-se mais negativos, porém com uma sutileza que fez as diferenças passarem despercebidas pelo teste t de Student, talvez pelo fato de o enriquecimento trófico nesses valores ser de apenas 1‰. Após exclusão do outlier (criança do sepultamento 69), os valores δ15N também apresentam correlação significativa com as datações (r=0,396, r²=0,157, p=0,045) – porém de grau moderado e apenas para um nível de confiança de 95% – corroborando o resultado do teste t com uma diminuição nos valores. 13 15 Gráficos 26a e 26b: Correlação entre os valores δ C e δ N e as idades radiocarbônicas dos indivíduos do sítio Armação do Sul. É interessante observar como, principalmente com relação aos valores δ13C, parece haver uma perfeita continuidade nas mudanças ao longo do tempo, à revelia do hiato de 400 anos sem datações radiocarbônicas para o sítio – da mesma forma que acontece, por exemplo, com o uso do ocre nas práticas mortuárias, como demonstrado no capítulo anterior. É difícil também não perceber que, enquanto os valores δ13C diminuem de forma gradual, os valores δ15N caem abruptamente por volta de 2500 anos AP, ou seja, a diminuição nos valores δ15N não foi acompanhada por diminuição proporcional (3:1‰, conforme o enriquecimento trófico) nos valores δ13C de todos os indivíduos, o que talvez possa ser mais bem observado nos gráficos abaixo. 199 13 15 Gráficos 27a, 27b e 27c: Dispersão dos valores de δ C e de δ N nas diferentes faixas temporais de ocupação do sítio Armação do Sul. Essa manutenção dos valores δ13C entre alguns indivíduos do segundo período, acompanhada de uma queda brusca nos valores e na variação de δ15N, poderia estar indicando introdução ou aumento no consumo de plantas C4. O grupo de indivíduos que apresenta diminuição nos valores δ13C, contudo, poderia tanto ter aumentado seu 200 consumo de plantas C4 – pois ainda se encontram dentro da faixa de variação dessas plantas (-15 a -6‰) – quanto de plantas C3 e animais terrestres que delas se alimentam, ou, ainda, ter simplesmente diminuído o consumo de recursos marinhos de nível trófico muito alto, sem modificação na importância dos recursos terrestres. No terceiro período há uma diminuição um pouco maior nos valores δ13C, o que direcionaria essa mudança mais para um consumo de plantas C3 e animais terrestres, porém, devemos lembrar que os dois valores mais negativos correspondem aos sepultamentos 2 e 22, outliers dentro de seus respectivos grupos de sexo. Proponho, então, duas hipóteses para explicar essa mudança nas assinaturas isotópicas: 1. A partir de 2500 AP, todos os indivíduos analisados do sexo masculino – principais responsáveis pela diminuição nos valores δ15N – estariam se alimentando de recursos marinhos de nível trófico menor e/ou introduzindo ou aumentando o consumo de plantas C4. Isso permitiria a queda brusca no δ15N com diminuição pequena no δ13C e até ausência de diminuição em alguns indivíduos, pois os valores δ13C variam muito pouco entre os recursos marinhos e apresentam sobreposição entre estes e as plantas C4. Lembrando que essa hipótese não exclui o consumo de recursos C3 e animais terrestres em geral, apenas não supõe que a mudança nos valores isotópicos se deva a um aumento nesse consumo. 2. A partir de 2500 AP, uma parte dos indivíduos do sexo masculino teria introduzido ou aumentado o consumo de plantas C4 em sua dieta, o que poderia ou não ter sido acompanhado por uma diminuição no consumo de recursos marinhos de alto nível trófico. Lembrando que isso não exclui o consumo de recursos C3, apenas não supõe que a mudança nos valores isotópicos se deva a um aumento nesse consumo. A outra parte dos indivíduos masculinos teria aumentado seu consumo de plantas C3 e animais terrestres, e/ou de plantas C4, e/ou teria diminuído o consumo de recursos marinhos de nível trófico muito alto, aproximando sua dieta à do grupo feminino. A hipótese 1 e a primeira parte da hipótese 2 se justificam pelo fato de que, caso a alteração estivesse sendo causada por um aumento no consumo de plantas C3 e de animais terrestres que delas se alimentam – associado ou não a uma redução no consumo de recursos marinhos de alto nível trófico – a dispersão dos dados no segundo período 201 deveria ser para a esquerda e para baixo do gráfico (numa correlação positiva entre δ15N e δ13C), que é esperado numa cadeia trófica que envolve recursos marinhos e recursos terrestres C3 devido aos enriquecimentos de 1‰ e de 3‰ para o δ13C e o δ15N respectivamente. Voltando à amostra total do sítio (n=35) e à cronologia relativa, é possível observar nos gráficos abaixo que essa correlação positiva existe no primeiro período de ocupação do sítio (r=0,420, r²=0,176, p=0,106) – embora não seja significativa para um nível de confiança de 95%. No segundo período, tal correlação é quase inexiste (r=0,009, r²=0,034, p=0,970) (gráfico 12a), o que indica a entrada de algum componente diferente na dieta, como sugerido nas hipóteses apresentadas. Com a exclusão dos sepultamentos 2 e 22, contudo, a correlação volta a existir e torna-se negativa (r=-0,368, r²=0,136, p=0,160) (gráfico 12b), reforçando ainda mais as hipóteses, principalmente com relação à possibilidade de consumo de plantas C4. A B 13 mantém δ C 13 15 Gráficos 28a e 28b: Correlação entre os valores δ C e δ N nos diferentes períodos de ocupação do sítio Armação do Sul. Nota-se que no gráfico A os sepultamentos 2 e 22 estão incluídos e a correlação é quase inexiste, enquanto no gráfico B esses indivíduos foram excluídos e a correlação é levemente negativa. 202 Acontece que essa correlação negativa é determinada justamente pelos seis indivíduos masculinos que mantiveram os valores δ13C elevados em meio à diminuição dos valores δ15N, o que, então, reforça a hipótese 2, de mudanças diferentes para diferentes grupos de indivíduos do sexo masculino. Os indivíduos masculinos inseridos no grupo circulado em cor verde poderiam estar modificando suas dietas em qualquer um dos sentidos sugeridos na hipótese – aumento nos recursos terrestres em geral ou redução nos recursos marinhos de alto nível trófico –, sendo inclusive possível acrescentar os sepultamentos 2 e 22 ao grupo e, assim, obter-se uma correlação positiva (r=0,477, r²=0,227, p=0,117), de mesmo grau da correlação do período 1. O grupo circulado em cor vermelha poderia estar consumindo mais recursos C4 e/ou reduzindo a quantidade de recursos marinhos de alto nível trófico. É importante lembrar que, qualquer que tenha sido a mudança, as principais fontes de proteína continuaram sendo os recursos marinhos, principalmente os peixes, pois os valores δ15N mantiveram-se bastante elevados (acima de 16‰). E, claro, tendo em vista o tamanho pequeno da amostra (n=35), reduzida ainda mais quando dividida entre o período 1 (n=16) e o período 2 (n=18, com exclusão do sepultamento infantil 69), qualquer interpretação deve ser tomada com cautela. O fato de haver várias possibilidades de correlações – distintas em grau e direção – ao excluirmos e acrescentarmos indivíduos específicos, já demonstra a fragilidade das inferências. Além disso, as correlações não são significativas, podendo ser devidas ao acaso. Antes de gerar esses gráficos, contudo, fiz uma série de testes em que dividi a amostra analisada em grupos compostos aleatoriamente e, em todos os casos, houve semelhança entre suas correlações, tendo sido observada diferença somente quando a amostra foi divida entre os indivíduos do período 1 e período 2. De todo o modo, o interesse na comparação entre as correlações é apenas de reforçar a possibilidade da entrada de um componente distinto na dieta dos indivíduos – que estaria desordenando a correlação do período anterior – e não de tentar explicar os valores δ15N por meio dos valores δ13C e vice-versa. O que pode ser afirmado é que a dieta proteica dos indivíduos do sexo masculino do sítio Armação do Sul começou a mudar gradualmente a partir de 2500 anos AP, e 203 mudou de forma que assim como no período 1 havia indivíduos que se destacavam por apresentar valores δ15N mais altos, no período 2 alguns deles se destacavam por apresentar valores δ13C mais altos; ou seja, de uma forma ou de outra, alguns homens sempre se diferenciavam dos demais indivíduos dos sexo masculino e da população em geral com relação à dieta. Se inserirmos o sítio Armação do Sul no contexto do litoral central, comparando suas composições isotópicas de nitrogênio e carbono com aquelas obtidas para o sítio Tapera (n=42) (Bastos 2014), Porto do Rio Vermelho I (n=1), Porto do Rio Vermelho II (n=15) e Canto da Lagoa I (n=1) (De Masi 2001), o quadro de uma possível mudança em direção ao consumo de plantas C4 parece ganhar força. Antes de nos voltarmos para o gráfico, contudo, é importante lembrar que as análises empreendidas por Bastos (2014) no sítio Tapera foram realizadas a partir do colágeno da dentina – de dentes permanentes em geral formados após a idade de desmame – e, portanto, dizem respeito à dieta dos indivíduos na infância e na juventude, conforme o dente analisado. ] 13 15 Gráfico 29: Dispersão dos valores δ C e δ N obtidos para os sítios Tapera (Bastos 2014), Porto do Rio Vermelho I, Porto do Rio Vermelho II, Canto da Lagoa I (De Masi 2001) e Armação do Sul. Os sítios estão dispostos em ordem cronológica na legenda, juntamente com suas idades radiocarbônicas mais antigas e mais recentes (não calibradas). 204 No gráfico de dispersão, é possível observar a proximidade entre os valores dos três sítios mais extensamente analisados (Tapera, Porto do Rio Vermelho II e Armação do Sul), sendo o sítio Porto do Rio Vermelho o que mais se diferencia dentre eles. Chama atenção a presença de quatro indivíduos bastante destoantes entre a população desse sítio, três deles com valores δ15N menores que os demais (entre 12 e 14‰), e um com valor δ15N menor e valor δ13C maior (em torno de -9‰). O sítio Tapera também apresenta dois indivíduos com valores δ13C menores que -10‰. Dada a cronologia dos sítios, fica clara a tendência de os valores serem puxados para baixo e para a direita do gráfico ao longo do tempo, numa correlação negativa que se difere daquela esperada se a mudança fosse em direção a um aumento no consumo de recursos C3 e animais terrestres. 13 15 Gráfico 30: Dispersão dos valores δ C e δ N obtidos para os sítios Tapera (Bastos 2014), Porto do Rio Vermelho I, Porto do Rio Vermelho II, Canto da Lagoa I (De Masi 2001) e Armação do Sul, juntamente com suas correlações. Nota-se que a correlação entre os valores do período 2 do sítio Armação do Sul está um pouco diferente das correlações anteriormente apresentadas para esse período, o que se deve à inclusão do sepultamento 69 para comparação entre as amostras totais de cada sítio. 205 Mais uma vez, as correlações apresentadas podem se dever ao acaso, mas não deixa de ser interessante observar como os possíveis acasos de cada um dos sítios configuram um padrão se entendidos em conjunto e cronologicamente; um padrão que não parece ser aleatório. Mais uma vez, também, não se buscou explicar um pelo outro os valores δ15N e δ13C obtidos, apenas observar possibilidades de diferença e semelhança entre as combinações de componentes alimentares empregadas pelas populações dos sítios em questão. A correlação positiva observada entre os valores δ13C e δ15N no período 1 do sítio Armação do Sul se faz inexistente no período 2 desse mesmo sítio – ou levemente negativa, caso excluídos os sepultamentos 2, 22 e 69 – e torna-se negativa nos sítios Porto do Rio Vermelho II e Tapera, reforçando a possibilidade de que a mudança seja em direção a um consumo menor de recursos marinhos de alto nível trófico e/ou à introdução ou aumento no consumo de plantas C4. Esta segunda possibilidade é a mais provável: a redução sozinha no consumo de animais como lobos marinhos, golfinhos, tubarões, baleias e aves marinhas geraria uma tendência mais à manutenção e até diminuição dos valores δ13C do que ao aumento. Ainda, a presença de um indivíduo do Porto do Rio Vermelho II com valor δ15N em torno de 13‰ e valor δ13C próximo de -9‰, corrobora essa ideia. Não pode ser descartada, contudo, a possibilidade de esse aumento nos valores δ13C estar sendo causado por um consumo intenso de animais que se alimentam de gramíneas C4, como as capivaras. Castilhos e Simões-Lopes (2005) observaram grande ocorrência desse animal no sítio Porto do Rio Vermelho II, identificando 37 peças de pelo menos 12 indivíduos, e sugerem que tivessem papel importante na dieta desse grupo. Seria estranho, contudo, que um aumento no consumo desse animal específico não fosse acompanhado também por um aumento no consumo de outros animais terrestres que, no entanto, se alimentam de plantas C3, o que geraria uma tendência de manutenção dos valores δ13C – num balanço entre os dois tipos de recursos – ou de diminuição. É interessante notar a continuidade existente entre os valores isotópicos do segundo período do sítio Armação do Sul e do sítio da Tapera – as colunas desses dois sítios no gráfico poderiam ser unidas como um quebra-cabeça. Embora os valores δ15N do 206 período 2 do sítio da Armação apresentem diferença significativa com relação aos valores do período 1, eles são significativamente semelhantes em sua distribuição aos valores δ15N da Tapera, de acordo com o teste U de Mann-Whitney (p=0,139) – foi utilizado um teste não paramétrico devido à ausência de normalidade nos valores δ15N da amostra da Tapera. E o mesmo serve para os valores δ13C de acordo com o teste t (t=-1,767, df=59, p=0,082) em um nível de confiança de 95%. E tanto Armação do Sul quanto Tapera se diferenciam do Porto do Rio Vermelho II. O primeiro somente com relação aos valores δ15N (t=4,031, df=18,950, p=0,001), que são mais altos, sendo os valores δ13C semelhantes (t=1,289, df=32, p=0,207); e o segundo com relação aos valores δ15N (p=0,001, teste Mann-Whitney), que são mais altos, e com relação aos valores δ13C (t=-3,135, df=55, p=0,003), que são também maiores. Tendo em vista que os sítios Tapera e Armação do Sul se situam no sul da Ilha de Santa Catarina, enquanto o sítio Porto do Rio Vermelho II se encontra no entorno da Lagoa da Conceição, no leste da ilha, essas semelhanças e diferenças tornam-se mais compreensíveis, e apontam para a possibilidade de haver diferenças no modo de vida das populações associadas a diferentes conjuntos de sítios em diferentes partes da ilha. Por fim, o contexto regional. No gráfico que segue foram inseridos os valores δ15N e δ13C dos indivíduos analisados dos sítios do litoral central, juntamente com os valores dos indivíduos do sítio Forte Marechal Luz (litoral norte) (Bastos 2014). Para comparação, segue também outro gráfico, menor, em que é possível observar esses mesmos sítios juntamente com os valores isotópicos de indivíduos das terras altas (Alfredo Wagner, Ribeirão da Herta, Urubici e São Joaquim) analisados por De Masi (2001). Mais uma vez, é importante lembrar que as análises realizadas por Bastos (2014) nos sítios Tapera e Forte Marechal Luz foram realizadas a partir do colágeno da dentina, dizendo respeito à dieta na infância ou na juventude; as demais (De Masi 2001) foram feitas a partir do colágeno dos ossos, indicando a dieta proteica dos últimos anos de vida dos indivíduos. 207 13 15 Gráfico 31: Dispersão dos valores δ C e δ N obtidos para os indivíduos analisados dos sítios do litoral central [Tapera (Bastos 2014), Porto do Rio Vermelho I, Porto do Rio Vermelho II, Canto da Lagoa I (De Masi 2001) e Armação do Sul] e do litoral norte [Forte Marechal Luz (Bastos 2014)]. Na legenda constam, entre parênteses, as porções litorâneas onde se situam os sítios, sendo LC=Litoral Central e LN=Litoral Norte. No gráfico menor, além dos sítios mencionados, estão presentes os valores dos indivíduos das terras altas analisados por De Masi (2001). Há bastante sobreposição nos valores δ15N e δ13C dos sítios das diferentes porções litorâneas. Destacam-se, novamente, os quatro indivíduos do sítio Porto do Rio Vermelho II (litoral central), mais para baixo e para a direita do gráfico, mas também dois indivíduos do Forte Marechal Luz para baixo e para a esquerda, com valores δ15N e δ13C menores. De acordo com Bastos (2014), esses dois indivíduos provavelmente estariam se alimentando de plantas C3, animais terrestres e/ou animais aquáticos de água doce em maior quantidade que os demais. Os indivíduos das terras altas, como esperado, apresentam valores coerentes com uma dieta terrestre, sete deles com foco maior em plantas C 3 e um com foco em plantas C4. Os outliers do Forte Marechal Luz se situam, justamente, na transição entre uma dieta marinha e a dieta dos indivíduos das terras altas consumidores 208 de plantas C3, enquanto os outliers do Porto do Rio Vermelho II se situam na transição entre uma dieta marinha e a dieta do indivíduo das terras altas consumidor de plantas C4. Os sítios Tapera e Armação do Sul (litoral central) apresentam diferença significativa com relação ao sítio Forte Marechal Luz (litoral norte), contando com valores mais elevados tanto de δ15N (p=0,0 no teste U e no teste T, respectivamente) quanto de δ13C (p=0,004 e p=0,016, respectivamente, segundo teste T). O sítio Porto do Rio Vermelho II (litoral central), por outro lado, apresenta semelhança significativa com esse sítio do litoral norte tanto nos valores δ15N (p=0,797, teste T), quanto nos valores δ13C (p=0,120, teste T). Segue tabela com as médias dos valores δ15N e δ13C de cada um dos sítios com n>1 e gráfico com a direção das mudanças que ocorrem nesses valores ao longo do tempo. Nesse exercício, foram acrescentados os valores dos sítios Jabuticabeira II e Galheta IV (litoral sul) (Colonese et al. 2014), alcançados a partir da análise do colágeno dos ossos e aos quais tive acesso somente por meio das médias. As amostras dos sítios Forte Marechal Luz e Armação do Sul foram divididas com relação à presença ou ausência de cerâmica e com relação à cronologia relativa, respectivamente. Sítio Período média δ15N‰ média δ13C‰ N Referência Forte Marechal Luz (s/ cerâmica) Forte Marechal Luz (c/ cerâmica) Armação do Sul (período 1) Armação do Sul (período 2) Porto do Rio Vermelho II Tapera Jabuticabeira II Galheta IV Antigo Tardio Antigo Tardio Tardio Tardio Antigo Tardio 15,5 ± 0,7 15,9 ± 1,0 18,3 ± 1,1 17,7 ± 0,5 15,8 ± 1,8 17,7 ± 1,3 17,4 ± 1,6 17,4 ± 0,6 -12,0 ± 1,2 -13,4 ± 1,3 -11,4 ± 0,7 -11,4 ± 0,8 -11,8 ± 1,0 -11,1 ± 0,7 -11,5 ± 1,5 -11,4 ± 1,2 7 5 16 19 15 42 47 7 Bastos (2014) Bastos (2014) Esta dissertação Esta dissertação De Masi (2001) Bastos (2014) Colonese et al. (2014) Colonese et al. (2014) Porção litorânea Litoral Norte Litoral Central Litoral Sul 13 15 Tabela 5: Média dos valores δ C e δ N obtidos para os sítios Tapera (Bastos 2014), Porto do Rio Vermelho II (De Masi 2001) e Armação do Sul, do litoral central; Forte Marechal Luz (Bastos 2014), do litoral norte; e Jabuticabeira II e Galheta IV (Colonese et al. 2014), do litoral sul. 209 Gráfico 32: Dispersão das médias e representação da direção da mudança ao longo do tempo nos valores 13 15 δ C e δ N dos sítios do litoral central [Tapera (Bastos 2014), Porto do Rio Vermelho II (De Masi 2001) e Armação do Sul], do litoral norte [Forte Marechal Luz (Bastos 2014)] e do litoral sul [Jabuticabeira II e Galheta IV (Colonese et al. 2014)]. Os círculos representam os sítios ou períodos mais antigos (>2500-2000 anos AP) e os triângulos representam os sítios mais tardios (<2500-2000 anos AP). Com certeza a quantidade de sítios que foram estudados do ponto de vista dos isótopos de nitrogênio e carbono é ainda muita pequena no litoral catarinense. Como, entretanto, temos pelo menos um representante de momento mais antigo e um representante de momento mais tardio em cada uma das porções litorâneas, podemos dar início à reflexão sobre a forma como a dieta estava mudando – ou não – nesses diferentes locais, mesmo que mais à frente, com a produção de novos dados, tudo venha a mudar. Embora todos os sítios se aproximem com relação ao principal componente e fonte de proteínas de suas dietas, os peixes, apresentando – exceções à parte – valores δ13C e δ15N coerentes com uma dieta predominantemente marinha, parece que a mudança tomou direções distintas nas diferentes porções litorâneas. Enquanto no litoral central, como já vimos, a combinação de valores δ15N menores e valores δ13C maiores levou a um 210 deslocamento para baixo e para a direita do gráfico, indicando talvez um aumento no consumo de plantas C4 e/ou diminuição no consumo de recursos de alto nível trófico, no litoral norte, representado pelo sítio Forte Marechal Luz, a mudança se deu para cima e para a esquerda do gráfico, com valores δ15N maiores e valores δ13C menores que apontam para um aumento no consumo de recursos terrestres e plantas C 3. A amostra para cada um dos períodos do Forte Marechal Luz (sem cerâmica e com cerâmica) é pequena, porém, os resultados da análise realizada por Bastos (2014) a partir do carbonato da apatita em uma amostra maior dos indivíduos desse sítio – n=13 para o período sem cerâmica e n=8 para o período com cerâmica – confirmam essa queda nos valores δ13C. Não bastassem as diferenças já bem marcadas entre as porções litorâneas norte e central, no litoral sul temos ainda um terceiro quadro: aparente ausência de mudança. 6.1.3 Discussão Com base nos dados isotópicos de nitrogênio (δ15N) e carbono (δ13C) gerados, é possível afirmar que os indivíduos analisados do sítio Armação do Sul apresentavam uma dieta predominantemente marinha e de alto nível trófico ao longo dos últimos anos de suas vidas, baseada principalmente em peixes. Esses resultados são coerentes com valores δ15N obtidos para populações costeiras pré-coloniais do sul da Califórnia (Walker e DeNiro 1986) e para esquimós caçadores de baleias modernos (Schoeninger, DeNiro e Tauber 1983), embora não o sejam com relação aos valores δ13C, em torno de 3‰ mais elevados no sítio Armação do Sul – possivelmente por motivos ambientais. São coerentes também com os dados provenientes de estudos zooarqueológicos (Bandeira 1992, Figuti 1993, Klökler 2001) e isotópicos (De Masi 2001, Bastos 2014, Colonese et al. 2014) nos sítios conchíferos catarinenses. Os vestígios faunísticos presentes no sítio Armação do Sul e nos demais sítios conchíferos do litoral catarinense, contudo, sugerem que essas populações litorâneas estavam também se alimentando de animais terrestres de pequeno e grande porte como pacas, tatus, capivaras, antas, veados, porcos de mato, jaguatiricas, porém em menor 211 quantidade e, como indicam os valores δ15N e δ13C, com contribuição proporcionalmente pequena na dieta proteica dos indivíduos se comparada à contribuição dos peixes. Da mesma forma, a presença constante de tubérculos carbonizados – tanto do tipo C3 (carás) quanto do tipo C4 (gramíneas) – ao longo da estratigrafia dos sítios (Scheel-Ybert 2001, Scheel-Ybert et al. 2003), aliada à ocorrência de possíveis grânulos de amido de milho, batata doce e carás em cálculos dentários, bem como fitólitos de gramíneas, palmeiras e de pinhão (Wesolowski 2007), indicam que os vegetais estavam presentes na dieta dessas populações litorâneas, e talvez em quantidades significativas. Embora os peixes fossem a principal fonte de proteínas, os vegetais deveriam ter papel importante como fonte de carboidratos – ou seja, como fonte energética. Nesse sentido, a análise da composição isotópica de carbono dos indivíduos por meio da apatita poderia dar resultados diferentes, uma vez que informaria sobre a dieta total, e não apenas a dieta proteica sinalizada no colágeno. De fato, os valores δ13C da apatita do esmalte dentário dos indivíduos do sítio Forte Marechal Luz levaram Bastos (2014) a sugerir que o consumo de vegetais teria desempenhado papel importante na dieta energética dessa população. No sítio Tapera, por outro lado, os resultados da análise da apatita corroboraram os resultados do colágeno (Bastos 2014). Em meio a essa tendência marinha na dieta, alguns indivíduos se destacaram como outliers por combinarem valores δ13C e δ15N menores que os demais, o que poderia estar indicando um consumo maior de plantas C3 e animais terrestres. As razões para esses indivíduos apresentarem uma dieta distinta, contudo, são difíceis de serem inferidas, podendo estar relacionadas a tabus e restrições em momentos específicos de suas vidas, às suas posições sociais ou, ainda, à passagem de parte de seus últimos anos de vida em meio a uma população com dieta distinta daquela apresentada pelo sítio Armação do Sul. Em geral, como veremos em seguida, esses indivíduos estão totalmente integrados aos demais com relação às suas assinaturas de 87Sr/86Sr, e, mesmo se não estivessem – como é o caso do sepultamento 2 – o fato de as análises isotópicas de estrôncio terem sido realizadas a partir do esmalte dentário formado na infância inviabiliza a busca por correlações, a não ser que pautadas por uma boa dose de suposição. Duas crianças apresentaram os valores δ15N mais altos do sítio, uma pertencente 212 ao período 1 e outra pertencente ao período 2, o que provavelmente se deve ao consumo de leite materno (Katzenberg, Herring e Saunders 1996). A criança do período 1 (sepultamento 39), com idade de 6 anos ± 24 meses e com valor 2,6‰ acima dos valores do grupo feminino, não se encontra dentro da faixa de idade esperada para a amamentação segundo a maior parte dos estudos (Fogel, Tuross e Owsley 1989; Katzenberg, Herring e Saunders 1996), sendo talvez um caso de amamentação prolongada até em torno dos 5 anos (White e Schwarcz 1994, Hermenegildo 2009). Esse prolongamento poderia ser prática comum no período 1; poderia ter acontecido somente com essa criança por algum motivo especial; ou poderia nem ter acontecido, sendo o valor δ15N mais elevado porque a criança ainda estaria carregando um pouco do sinal isotópico do tempo em que mamava – tendo em vista a lentidão do processo de remodelação do colágeno dos ossos – ou, simplesmente, porque teria uma dieta de maior nível trófico. Havendo apenas uma criança analisada desse período, fica difícil fazer qualquer afirmação. No período 2, por outro lado, a criança em questão (sepultamento 69) possui 18 meses ± 6 meses e apresenta valor δ15N que é 3,3‰ maior que a média do grupo feminino, enquanto as outras duas crianças analisadas possuem 3 anos ± 12 meses e 7 anos ± 24 meses, e apresentam valores δ15N semelhantes àqueles do resto do grupo. Esse quadro está de acordo com a maior parte dos casos apresentados em Katzenberg, Herring e Saunders (1996), indicando que, possivelmente, a idade de desmame no segundo período de ocupação do sítio seria entre 1 e 2 anos de idade. Se pudéssemos comprovar um tempo de amamentação mais longo no período 1, estaríamos frente a uma mudança de comportamento extremamente relevante, intimamente relacionada com o papel da mulher na sociedade e com os índices de crescimento populacional. Como observado por Lee (1980) entre os !Kung, por exemplo, a amamentação prolongada pode servir como um controle de natalidade – tendo em vista a inibição da ovulação durante a lactação – aumentando o intervalo entre os nascimentos e, assim, permitindo que as mulheres continuem suas atividades de busca por recursos em locais mais distantes da base habitacional, pois quando nasce uma nova criança, aquela nascida anteriormente já pode caminhar sozinha. Com a introdução da agricultura, mesmo que de forma parcial, ou qualquer alteração no padrão de subsistência ou no papel da 213 mulher que gere menores deslocamentos diários, a tendência é que o tempo de amamentação se torne mais curto, assim como a média dos intervalos entre os nascimentos, aumentando as taxas de crescimento populacional; pelo menos é isso que vem acontecendo com os !Kung (Lee 1980). Não é possível dizer que essa mudança na idade de desmame aconteceu na população associada ao sítio Armação do Sul, até porque para a realização de qualquer inferência desse tipo se faria necessário um estudo sistemático com foco somente nas crianças, mas, é possível afirmar, com tranquilidade, que a dieta dessa população mudou, pelo menos com relação ao grupo masculino, que passou a apresentar valores δ15N menores com manutenção dos valores δ13C a partir de 2500 anos AP. As mudanças observadas nas práticas mortuárias e no sedimento que compõe o sítio, portanto, foram acompanhadas por mudanças na dieta. Fica, contudo, a dúvida: o que teria causado essa mudança nos valores isotópicos? A diminuição no consumo de recursos marinhos de alto nível trófico; a introdução ou aumento no consumo de plantas C4, como o milho; ou, ainda, as duas coisas ao mesmo tempo? Nada é possível afirmar, ainda mais tendo em vista a quase ausência de evidência do consumo de milho no registro arqueológico dos sítios conchíferos – com exceção talvez de Wesolowski (2007). Seja lá qual tenha sido o motivo da mudança nos valores isotópicos do sítio Armação do Sul, ela parece continuar em sítios mais recentes do litoral central, como Tapera (Bastos 2014) e Porto do Rio Vermelho II (De Masi 2001), havendo inclusive alguns indivíduos do sítio Porto do Rio Vermelho com valores isotópicos muito parecidos com aqueles obtidos em sítios costeiros da Flórida [Pillsbury, 600-900 AD (δ13C= -10,1 ± 1,3‰ e δ15N=13,0 ± 1,0‰) e Bay Pines (δ13C= -8,9 ± 1,7‰ e δ15N=13,2 ± 0,8‰)], que foram interpretados como possível evidência de componente C4 na dieta, mesmo que em pequena quantidade (Kelly, Tykot e Milanich 2006). Ainda com relação ao contexto local, a semelhança observada entre os valores δ15N e δ13C dos sítios Armação do Sul e Tapera é extremamente interessante, apontando para a existência de continuidade histórica entre esses sítios, um com presença de cerâmica e outro não. Igualmente interessantes são as diferenças observadas nos valores desses dois 214 sítios do sul da Ilha de Santa Catarina com relação ao sítio Porto do Rio Vermelho II, situado no leste da ilha. Acredito que essas diferenças não se dão à toa, estando associadas a diferentes formas de viver, de se alimentar, e de construir sítios em diferentes partes da Ilha de Santa Catarina. Mesmo havendo pouca chance de serem contemporâneos – sendo a datação mais recente da Armação do Sul de 1315-1275 anos cal AP e a data mais antiga da Tapera de 1280-1115 anos cal AP – os dois sítios da porção sul da Ilha de Santa Catarina se aproximam mais entre si do que com o sítio do leste da Ilha (entorno da Lagoa da Conceição) que é provavelmente contemporâneo dos dois, datado entre 1735 e 1067 anos AP (De Masi 2001). E essas diferenças não se dão apenas com relação aos valores isotópicos δ15N e δ13C, mas também com relação às suas morfologia e estratigrafias, sendo Tapera e Armação sítios rasos com pouca presença de conchas e Porto do Rio Vermelho II um sítio de estratigrafia complexa e matriz conchífera. Ao mesmo tempo, contudo, as populações dos três sítios parecem estar modificando suas dietas numa mesma direção, além, claro, de apresentarem inúmeros aspectos em comum – como a cultura material em geral, aspectos gerais das práticas mortuárias e tendência marinha na dieta – que permitem sua inserção na perspectiva de longa duração pautada na ideia de “sítios conchíferos”, proposta no início deste trabalho. E, como conjunto de sítios do litoral central, apresentam diferenças com relação aos sítios de outras porções do litoral catarinense, como Forte Marechal Luz (Bastos 2014), Jabuticabeira II e Galheta IV (Colonese et al. 2014). Diferenças não tanto na composição da dieta em si, que é predominantemente marinha em todos os sítios analisados, mas na forma como ela muda – ou não muda – ao longo do tempo. Nesse sentido, foi observada diminuição nos valores δ15N e aumento nos valores δ13C no litoral central (alteração em direção ao consumo de plantas C4 ou diminuição no consumo de recursos marinhos de alto nível trófico); aumento nos valores δ15N e diminuição nos valores δ13C no litoral norte (alteração em direção ao consumo de recursos terrestres e plantas C3); e aparente ausência de mudança no litoral sul. Quando consumimos ou servimos um alimento não estamos apenas manipulando um objeto, mas transmitindo uma situação (Barthes 1979, Douglas 1972); a alimentação 215 não se trata apenas de necessidade, mas de uma necessidade estruturada e, como diria Bourdieu (1967), estruturante. A comida, assim, pode ser considerada duplamente corpórea, uma vez que participa tanto na criação da pessoa física quando da pessoa social (Atalay e Hastorf 2006). Não existem distinções naturais, todas as formas de categorização precisam ser construídas e objetivadas (Bourdieu 1989) e, em sua trivialidade e pretensão à naturalidade, a dieta e tudo o mais que é relativo à alimentação – como as técnicas de preparo e modos de servir – aparecem como meios potentes de produção e reprodução de distinções sociais. Norbert Elias (1994[1939]), por exemplo, nos mostra como em tempos de transição entre a idade média e a idade moderna a etiqueta e os modos à mesa foram fundamentais na internalização e modulação da nova estrutura de relações interpessoais – cada vez mais contidas – que estava em formação, servindo também na diferenciação da aristocracia absolutista emergente com relação à nobreza feudal decadente e às classes inferiores. Assim como a utilização de peças de vestuário, cores e modelos específicos por homens e mulheres reproduz a distinção entre feminilidade e masculinidade como conhecida na nossa sociedade, o consumo de determinados alimentos por determinados grupos cotidianamente e os tabus que permeiam isso tudo – como o filé pelas classes superiores e as vísceras pelas classes inferiores, ou o tabu de nossa sociedade com relação aos cachorros – são importantes meios de veiculação de identidades (Sahlins 2003[1976]). No sítio Armação do Sul, os valores δ15N do primeiro período revelaram uma dieta de maior nível trófico para os indivíduos do sexo masculino. O quê exatamente o consumo de recursos de nível trófico mais elevado ou menos elevado poderia significar para essas populações, não sabemos, mas temos aí uma diferença clara na dieta de homens e mulheres que com certeza não se deu naturalmente, sendo resultante de estruturas de relações pré-estabelecidas e reprodutora dessas relações. Vale dizer que essa diferenciação com relação ao nível trófico da dieta, com os homens apresentando valores δ15N e δ13C mais elevados e mais heterogêneos – o que também é observado no sítio Armação do Sul – é bastante corrente em diferentes contextos ao redor do mundo, sendo sempre interpretada como indicação de acesso 216 diferenciado aos recursos, nesse caso, de maior acesso a fontes de proteínas ricas em δ15N por parte dos indivíduos masculinos (Larsen 2015[1997]). E além da distinção sexual, no caso do sítio Armação do Sul os resultados apontam também para distinção entre grupos de indivíduos do sexo masculino, distinção esta que encontra correspondência na distribuição espacial dos sepultamentos. No período 1, a maior parte dos indivíduos masculinos apresentam valores δ15N e δ13C mais elevados e estão concentrados na porção sul da área escavada. As exceções são os sepultamentos 71 e 74, com valores δ15N e δ13C menores – como os do grupo feminino – e situados em espaço diametralmente oposto aos demais, na porção norte; e o sepultamento 37, que está situado na porção sul, porém com valores δ15N mais elevados, valores δ13C menores e com datação mais antiga que os demais, provavelmente sendo o primeiro sepultamento do sítio. No período 2, a maior parte dos indivíduos apresentam valores δ15N semelhantes aos das mulheres ou menores, porém valores δ13C mais elevados, e se dividem de forma que os indivíduos de datação mais antiga se situam na porção sudeste da área escavada e os sepultamentos mais recentes na porção norte. As exceções são os sepultamentos 61 e 78, com valores δ15N e δ13C semelhantes aos das mulheres e situados na porção noroeste, o sepultamento 2, com valores δ15N e δ13C menores e o sepultamento 5, com valor δ15N maior e valor δ13C menor, estes dois últimos estando situados na porção norte e apresentando datações mais recentes que os demais. Tanto no período 1 quanto no período 2, portanto, há um grupo de indivíduos do sexo masculino que se assemelha às mulheres com relação à dieta e, ao mesmo tempo, um grupo que se diferencia, ora consumindo recursos de maior nível trófico (período 1), ora consumindo – talvez – maior quantidade de plantas C4 ou de animais que delas se alimentam, como a capivara (período 2). Coincidentemente ou não, os indivíduos com dieta semelhante à das mulheres estão sepultados sempre na porção norte-noroeste da área escavada, no mesmo local onde há uma grande concentração de sepultamentos de crianças do período 2 (canto direito inferior da planta baixa de sepultamentos apresentada no capítulo anterior). As diferenças observadas podem estar associadas tanto à posição desses indivíduos na sociedade e questões de status, quanto ao seu pertencimento a grupos de parentesco 217 distintos. Mais uma vez, contudo, é difícil inferir o que uma dieta de maior ou menor nível trófico e o consumo maior ou menor de recursos C4 – se de fato for o caso – pode significar no contexto dessas relações de status e parentesco, para além, claro, do fato de estarem refletindo e produzindo distinções sociais. Estudos em sítios da América do Sul e América Central mostram, por exemplo, que o significado que o milho toma em diferentes sociedades é extremamente variável, podendo seu consumo em maior quantidade ser característica tanto de grupos de maior quanto de menor status (Larsen 1997). Embora entre os indivíduos consumidores de recursos de nível trófico mais elevado (período 1) e de – possivelmente – maior quantidade de recursos C4 (período 2) estejam alguns daqueles que apresentaram maior número de acompanhamentos funerários na análise realizada no capítulo anterior, enquanto aqueles indivíduos com dieta semelhante à do grupo feminino apresentaram número menor de acompanhamentos, não é possível estabelecer correlações seguras entre essas variáveis, uma vez que os sepultamentos desses últimos são todos incompletos. Poderíamos, por outro caminho, talvez arriscar a sugestão de um status menor para os indivíduos de dieta próxima à das mulheres devido ao espaço que ocupam na área escavada do sítio, junto às crianças da extremidade nortenoroeste, mas para isso precisaríamos de mais dados. Curiosamente, não há diferenciação interna no grupo feminino, este apresentando valores constantes e bastante homogêneos tanto do ponto de vista sincrônico quanto do ponto de vista diacrônico. Isso não deve significar ausência de distinções entre os indivíduos do sexo feminino, apenas que essas distinções não estavam refletindo em suas dietas proteicas, pelo menos não de forma perceptível nos valores isotópicos de nitrogênio e carbono do colágeno. A atuação da dieta na produção e reprodução de distinções sociais entre os indivíduos do sítio Armação do Sul, distinções tanto de ordem sexual quanto de status ou parentesco, é inegável, e mostra como a análise de isótopos de nitrogênio e carbono, se associada a uma cronologia fina – mesmo que relativa – pode revelar não somente a forma como as coisas mudam ao longo do tempo, mas também aspectos dessa dimensão sutil das relações humanas que é a criação de distinções e identidades entre práticas e representações (Chartier 1990). 218 Uma vez reconhecida essa potência com relação à evidenciação de distinções internas às sociedades, a análise pode também ser estendida para a observação do papel da dieta no estabelecimento de fronteiras e na formação de identidades entre sítios que pertencem a um mesmo contexto local, como o litoral central, ou entre diferentes localidades de um contexto regional maior como o litoral catarinense. Os dados apresentados indicam a existência de diferenças no contexto do litoral central e entre diferentes porções do litoral catarinense, porém é necessário um maior número de sítios analisados para o aprofundamento dessas questões. Por fim, vale mencionar que embora os resultados apontem para acesso diferenciado às fontes de proteínas entre homens e mulheres, e homens de diferentes status ou grupos de parentesco, isso não implica necessariamente status de saúde diferenciado entre esses indivíduos (Lillie 2003). Quanto à hipótese proposta no início deste trabalho, de que a dieta dos indivíduos do sítio Armação do Sul seria predominantemente marinha, porém, com uma sutil mudança em direção a uma dieta menos marinha ou mais terrestre de um ponto de vista diacrônico, ela foi confirmada. Resta esclarecer se essa alteração aconteceu em toda a população ou só nos indivíduos do sexo masculino, e se tomou uma mesma direção em todo o grupo masculino – rumo ao consumo de recursos C4 e/ou diminuição no consumo de recursos de alto nível trófico, porém com diferenças de quantidade entre diferentes indivíduos – ou se este se dividiu em direções distintas. A confirmação dessa hipótese significa também que, pelo menos no litoral central, a dieta começou a mudar por volta de 2500 anos AP, muito tempo antes do aparecimento da cerâmica no local – que se deu por volta de 1280-1115 anos cal AP no sítio Tapera. Como a cerâmica foi utilizada principalmente no processamento de peixes (Hansel 2006, Colonese et al. 2014), ela deve ter tido um importante papel não na alteração daquilo que estava sendo consumido, mas na forma como estava sendo consumido, aparecendo como moduladora de novas formas de processar, cozinhar, servir, estocar alimentos e gerenciar o tempo (Atalay e Hastorf 2006), e, assim, interferindo ativamente no comportamento humano e nas relações interpessoais (Gosden 2005). 219 6.2 Análise de isótopos de estrôncio (87Sr/86Sr) 6.2.1 Materiais e métodos Para a análise da razão isotópica de estrôncio presente no esmalte dentário dos indivíduos sepultados no sítio conchífero Armação do Sul foram selecionados todos os indivíduos presentes na reserva técnica do Museu do Homem do Sambaqui que possuíam mandíbula e/ou maxila, que apresentavam esmalte dentário e sobre os quais se tinha as informações arqueológicas necessárias para contextualização. Ou seja, o critério de seleção foi o mais amplo possível, pautando-se somente nos requisitos indispensáveis ao pleno desenvolvimento das análises. Alguns casos isolados, mesmo atendendo a este critério, foram excluídos por apresentarem sedimento concrecionado no entorno do crânio, o que impediu a coleta do dente17. Houve preferência pelos dentes pré-molares, que sofrem mineralização entre 2 e 7 anos de idade (Hillson 2005), mas, na ausência dos dentes visados, ou nos casos em que estes não apresentavam esmalte suficiente para a análise, foram coletados segundos ou terceiros molares, que mineralizam na idade de 3 a 8 anos e 9 a 14 anos, respectivamente. Evitamos a coleta de dentes com presença de patologias ou desgaste diferenciado, uma vez que poderão vir a gerar informações importantes a outras pesquisas. Juntamente com os dentes humanos, foram selecionados dentes de fauna terrestre, semiaquática e marinha do sítio da Armação do Sul, de modo a determinar a assinatura isotópica 87Sr/86Sr biologicamente disponível no local e compará-la à assinatura do esmalte dentário humano (Price, Burton e Bentley 2002; Bentley 2006). Foram também selecionadas conchas de ambiente estuarino e de mar aberto, de forma a verificar se há diferença entre assinatura de estrôncio desses dois ambientes. 17 As coletas foram realizadas com o auxílio da bioarqueóloga Me. Luciane Zanenga Scherer. 220 Figura 52: Desenvolvimento dentário humano, em estágios de um ano. Fonte: Hillson (2005[1986]: 224). No total, foram selecionados 38 dentes humanos para a análise, pertencentes a indivíduos adultos e crianças, nove dentes de fauna terrestre, um dente de fauna marinha, uma concha de ambiente estuarino e uma concha de mar aberto. O sexo e a idade dos indivíduos foram determinados pelas pesquisadoras Andrea Lessa e Luciane Zanenga Scherer, segundo o protocolo de Buikstra e Ubelaker (1994). Todo o material coletado foi devidamente fotografado e documentado. Os dentes passaram por um processo de limpeza mecânica e química de modo a retirar possíveis contaminantes pós-deposicionais – como carbonatos – aderidas aos dentes, conforme sugerido por diversos autores (Bentley et al. 2003, Knudson et al. 2004, Wright 2005) e seguindo o protocolo de Bastos (2009). Os dentes foram higienizados com o uso de água deionizada, sendo a superfície do esmalte escovada com escova de dente, raspada com sonda exploradora de dentista e, também, com bisturi n. 12 nos casos de incrustações mais difíceis de retirar. Em seguida, no espaço do laboratório limpo do Centro de Pesquisas Geocronológicas da Universidade de São Paulo (CPGeo/USP), os dentes foram 221 imersos em ácido acético 0,5M e colocados em ultrassom por 20 min, para depois serem enxaguados com água deionizada e deixados a secar18. Foram retiradas em torno de 20 mg de esmalte de uma das superfícies laterais de cada dente com broca diamantada esférica PM6 e PM7 (marcas Fava a KG Sorensen), etapa que foi realizada no Laboratório de Sistemas Cársticos do Instituto de Geociências da Universidade de São Paulo (IGc/USP). Dos dentes que apresentavam quantidade menor de esmalte foram retiradas amostras também menores, tendo o caso mais extremo chegado a somente 3,9 mg, sem causar problemas posteriores na leitura do sinal pelo espectrômetro de massas. Para as conchas seguimos o mesmo procedimento dos dentes, porém ignoramos a primeira raspada com a broca, uma vez que elas não foram previamente limpas. De volta ao laboratório limpo do CPGeo/USP, as amostras pulverizadas foram pesadas e transferidas para bequers Savillex, onde sofreram um tratamento químico que consistiu na adição de 2 ml de HNO3 concentrado, em meio ao qual foram digeridas por 1h19. Em seguida foram colocadas para secar sobre a chapa quente. As amostras relativas às conchas, receberam um tratamento diferente, sendo atacadas com 1 ml de HCl e colocadas para secar logo depois. Uma vez secas, todas as amostras foram dissolvidas em 1 ml de HNO3 2M para passagem na coluna de troca iônica preenchida com 80 mg de resina Sr-Spec, onde foram purificadas segundo o protocolo do CPGeo/USP. A composição isotópica das amostras foi determinada por meio de Espectrômetro de Massas por Termoionização (TIMS), um TRITON da marca Thermo Scientific. O controle de branco de Sr durante as análises variou entre 108 e 166 pg. Para efeito de fracionamento, as razões isotópicas 87Sr/86Sr foram normalizadas para o valor de 86Sr/88Sr = 0,1194. Ao longo do ano em que foram realizadas as análises, de janeiro de 2014 a janeiro de 2015, o valor médio para a razão 87Sr/86Sr do padrão NBS-987 variou entre 0.710233 ± 18 As etapas de limpeza e retirada do esmalte foram realizadas com o auxílio do Dr. Murilo Quintans Bastos e apoio técnico da equipe do CPGeo. 19 O primeiro lote de amostras foi centrifugado (3.500 RPM) por 10 min após a digestão pelo HNO3 concentrado, no entanto, como não houve precipitação e como esta etapa multiplica as possibilidades de contaminação pela transferência das amostras para os microtubos da centrífuga, optamos por eliminá-la nos demais lotes. 222 0.000022 e 0.710251 ± 0.000038. Os erros das análises foram reportados em 2 e forneceram um valor médio de 0,000049. 6.2.2 A formação geológica local O litoral central de Santa Catarina apresenta a geologia mais variada da costa catarinense, com formações que vão desde o Arqueano até os depósitos quaternários do Fanerozóico (Silva e Bortoluzzi 1987). A Ilha de Santa Catarina, onde se situa o sítio Armação do Sul, é caracterizada pela presença de rochas que constituem o embasamento cristalino do domínio geomorfológico Serras do Leste Catarinense e pelos depósitos quaternários que constituem o domínio Planície Costeira (Horn Filho e Livi 2012). As principais unidades litoestratigráficas que compõem o embasamento cristalino da Ilha de Santa Catarina são o Granitóide Foliado Paulo Lopes, que remete ao Proterozóico Inferior; o Granito São Pedro de Alcântara, pertencente à Suíte Intrusiva Maruim do Proterozóico Médio; o Granito Ilha, pertencente à Suíte Intrusiva Pedras Grandes do Eo-Paleozóico; o Granito Itacorubi e o Riolito Cambirela, pertencentes à Suíte Intrusiva Plutono-Vulcânica Cambirela, também do Eo-Paleozóico; e a Formação Serra Geral, do Mesozóico, representada por diques de diabásio correlacionados ao evento vulcânico Serra Geral (Silva e Bortoluzzi 1987, Zanini et al. 1997, Horn Filho e Livi 2012). Espera-se, portanto, tanto a ocorrência de valores isotópicos mais altos e variados da ordem de 0,705 a 0,850, relacionados aos granitos que compõem a crosta terrestre, quanto de valores mais baixos e homogêneos entre 0,7020 e 0,7070, relacionados às rochas vulcânicas que atuam como “mensageiras” isotópicas do manto (Allègre 2008). Apesar dessa variação, a assinatura disponível na biosfera para consumo das populações pré-coloniais deve ter sido mais homogênea, tendo em vista tanto o processo de biopurificação (Bentley 2006) quanto a influência do estrôncio marinho (0,70917) por meio da maresia e das chuvas, principalmente em contextos insulares como a ilha de Santa Catarina. Com o consumo frequente de frutos do mar, essa homogeneidade deve ser exacerbada nas populações humanas litorâneas, aproximando ainda mais os valores 86 Sr/88Sr ao estrôncio marinho. 223 Basei (1985) obteve valores entre 0,7198 e 0,7339 para o granito Armação, formação presente no entorno imediato do sítio Armação do Sul. Tendo em vista os fatores de homogeneização mencionados, porém, devemos esperar razões menores para a assinatura biológica local e ainda menores para os indivíduos locais sepultados no sítio. Figura 53: Mapa geológico de Santa Catarina. Litoral central demarcado. Fonte: Silva e Bortoluzzi (1987). A relação de valores isotópicos 86Sr/88Sr obtidos para diferentes pontos ao longo do Cinturão Dom Feliciano em Santa Catarina, pode ser acessada em Basei (1985), dados que não esgotam as assinaturas geologicamente disponíveis nas localidades em questão, mas que podem nos dar uma noção de pelos menos algumas das assinaturas existentes. 6.2.3 Resultados Os valores da razão isotópica 87 Sr/86Sr das amostras de esmalte dentário humano analisadas variaram entre 0,709509 e 0,710969 (amplitude de 0,00146), apresentando média de 0,71000216 com desvio padrão de 0,000332390. O maior valor obtido corresponde ao sepultamento 2, de indivíduo adulto jovem do sexo masculino, e o menor valor corresponde ao sepultamento 46, de indivíduo adulto também do sexo masculino. 224 ID Sexo Idade Dente analisado ⁸⁷Sr/⁸⁶Sr d.p. (2σ) 2 5 6 7 8 9 14 15 16 21 22 27 28 29 30 31 32 33 36 37 38 39 42 43 45 46 47 49 52 57 60 61 66 71 72 74 78 87 M M F M M M M F M M F F F M M F M M M M F I I M F M M* F F F M M I M F M* M M AJ AJ A AM AM AM AM A A AM A A A A A AM A AM A AM A C C A A A AJ AJ AM A A* AM C AM AJ AM A A* PM2IE PM1SD PM1SE PM1ID PM1IE PM1IE M2SE PM1SE ? M2SD PM1IE PM2IE PM1IE PM1ID PM1IE PM1SD M3IE PM1ID M3SD PM1ID PM1ID PM1ID PM2SD ? PM1SE PM1SD M2IE PM1IE PM1ID PM1ID M2IE PM1IE PM1ID PM1SD PM1IE M2SE ? PM1IE M2ID M2SD PM2ID 0,710969 0,709771 0,710195 0,709657 0,710246 0,710222 0,709881 0,710294 0,710383 0,710462 0,710042 0,709723 0,710098 0,710057 0,709732 0,710612 0,710238 0,709771 0,709601 0,709603 0,709752 0,709732 0,709614 0,710166 0,709725 0,709509 0,709893 0,710810 0,709955 0,709901 0,709949 0,709810 0,709945 0,709938 0,709884 0,710139 0,709941 0,709862 0,000064 0,000059 0,000049 0,000038 0,000054 0,000043 0,000040 0,000049 0,000037 0,000050 0,000061 0,000053 0,000047 0,000045 0,000046 0,000064 0,000052 0,000041 0,000074 0,000075 0,000058 0,000043 0,000077 0,000040 0,000071 0,000043 0,000050 0,000036 0,000067 0,000057 0,000035 0,000045 0,000036 0,000041 0,000051 0,000050 0,000038 0,000056 Tabela 6: Resultados da análise das razões isotópicas ⁸⁷Sr/⁸⁶Sr dos indivíduos analisados do sítio Armação do Sul. Legenda dente: PM= pré-molar, M= molar, I= inferior, S= superior, D= direito, E= esquerdo. Legenda sexo e idade: I= indeterminado, M= masculino, F= feminino, AM= adulto maduro, A= adulto, AJ= adulto jovem, C= criança, *= possível (há dúvida na determinação, porém será considerado como consta na tabela para fins estatísticos). 225 Como é possível observar no histograma, a maior parte dos valores 87Sr/86Sr estão distribuídos entre 0,7095 e 0,7102, e as frequências diminuem conforme os valores aumentam, havendo apenas dois casos que apresentam valores em torno de 0,7104, um caso com razão de 0,7106 (sepultamento 31), outro com razão de 0,7108 (sepultamento 49) e, por fim, um com 0,7110 (sepultamento 2). Gráfico 33: Histograma das razões isotópicas ⁸⁷Sr/⁸⁶Sr presentes no esmalte dentário dos indivíduos analisados do sítio Armação do Sul. Dentre os três casos que apresentaram valores mais altos, contudo, somente aquele referente ao sepultamento 2 aparece como outlier, e, logo, como potencialmente não local. Curiosamente, este é justamente o indivíduo que apresenta uma ponta óssea cravada em sua quarta vértebra lombar (Lessa e Scherer 2008). 226 Gráfico 34: Boxplot representando as razões isotópicas ⁸⁷Sr/⁸⁶Sr presentes no esmalte dentário dos indivíduos analisados do sítio da Armação do Sul. Em seu estudo sobre a presença de imigrantes em Tikal, Guatemala, Wright (2005) sugere a comparação dos resultados com a distribuição normal para a identificação de indivíduos não locais, partindo do pressuposto de que populações em que a maioria dos indivíduos são locais e se alimentam de recursos de proveniência semelhante devem estar normalmente distribuídas. Chama atenção também para a possibilidade de indivíduos não locais apresentarem razões situadas nas extremidades da distribuição normal e passarem despercebidos estatisticamente por não serem outliers – situação apresentada por alguns indivíduos de Tikal em que as evidências culturais apontavam para a não localidade. De fato, o teste Shapiro-Wilk rejeita a hipótese de normalidade para a amostra do sítio Armação do Sul em um intervalo de confiança de 95%, sendo p=0,013. Se excluirmos o valor referente ao sepultamento 2, contudo, a normalidade é atingida com p=0,088, o que reforça a possibilidade deste indivíduo ser não local. 227 Gráfico 35: Gráfico de probabilidade normal dos valores isotópicos ⁸⁷Sr/⁸⁶Sr obtidos para a população do sítio Armação do Sul, com exclusão do sepultamento 2. Os círculos preenchidos representam os sepultamentos 31 e 49. Acontece que, mesmo com a exclusão do sepultamento 2, ainda é possível observar um pequeno desvio da probabilidade normal, causado pelos indivíduos 31 e 49. Para que a normalidade alcance maior significância (p=0,341), é preciso excluir também, pelo menos, o sepultamento 49, mas como esse indivíduo não representa um outlier, não há justificativa estatística para tal exclusão. Os valores da razão 87 Sr/86Sr da fauna analisada variaram entre 0,709181 e 0,719588 (amplitude de 0,010407), apresentando média de 0,71269664 com desvio padrão de 0,00402015. O maior valor obtido corresponde ao porco do mato 1 e o menor valor corresponde à ostra. 228 ID Taxon ⁸⁷Sr/⁸⁶Sr d.p. (2σ) Ratão do banhado Capivara Paca Jaguatirica Anta Porco do mato 1 Porco do mato 2 Lontra Veado Ostra Donax Golfinho Myocastor coypus Hydrochoerus hydrochaeris Agouti paca Felis pardalis Tapirus terrestris Tayassu pecari Tayassu pecari Lutra longicaudis Ozotocerus sp. ou Mazama sp. Crassostrea rhizophorae Donax hanleyanus Tursiops truncatus 0,716039 0,710327 0,732710 0,711864 0,715207 0,719588 0,718993 0,709722 0,710053 0,709181 0,709225 0,709464 0,000048 0,000038 0,000039 0,000040 0,000038 0,000045 0,000042 0,000041 0,000043 0,000042 0,000040 0,000041 Tabela 7: Resultado da análise das razões isotópicas ⁸⁷Sr/⁸⁶Sr da fauna analisada do sítio Armação do Sul. O valor de 0,732710 obtido para a amostra referente à paca é muito mais elevado que os demais e, embora possa estar correto, foi excluído das análises estatísticas. A decisão foi tomada devido à impossibilidade de replicação da análise dessa amostra e à ausência de outros casos semelhantes na bibliografia – as amostras de paca dos sítios Forte Marechal Luz (Bastos 2009) e Tapera (Bastos 2014) apresentaram razões mais próximas do estrôncio marinho, respectivamente de 0,71114 e 0,71234. Mesmo com a exclusão da paca, a possibilidade de que a população associada ao sítio Armação do Sul estivesse se alimentando de animais provenientes de regiões com geologia mais antiga ou de região com geologia semelhante, porém, mais distante da influência do estrôncio marinho, é mantida pelos altos valores obtidos para as duas amostras de porco do mato (0,719588 e 0,718993) e, talvez, pelos valores obtidos para o ratão do banhado (0,716039) e a anta (0,715207). Bastos (2014) encontrou valores igualmente elevados paras os três porcos do mato do sítio Tapera (0.71786, 0.72173 e 0.72490). Esses valores são coerentes com as razões 87Sr/86Sr de 0,7198 a 0,7339 obtidas por Basei (1985) para o granito Armação, porém, em um contexto insular como o da Ilha de Santa Catarina, esperaríamos uma maior proximidade com o estrôncio marinho, como aquela apresentada pelas amostras da capivara, do veado e da jaguatirica. Para a determinação da assinatura local biologicamente disponível foram excluídas essas amostras faunísticas potencialmente – não necessariamente – não locais e utilizadas 229 somente aquelas referentes às conchas, ao golfinho, à lontra, à capivara, ao veado e à jaguatirica. Seguindo a recomendação de diversos autores (Grupe 1997, Price el al. 2002, Bentley et al. 2003), os limites dessa assinatura foram estabelecidos a partir da média dos valores 87 Sr/86Sr da fauna considerada local, acrescida de ± 2 desvios padrões, no caso, 0,70997657 ± 0,001864824 (2 x 0,000932412). Isso gera uma assinatura local com alcance de 0,7081 a 0,7118, o que nos leva a interpretar os resultados obtidos para todos os indivíduos analisados como sendo locais, inclusive aquele referente ao sepultamento 2. 87 86 Gráfico 36: Gráfico de dispersão dos valores isotópicos Sr/ Sr obtidos para a fauna e os indivíduos analisados do sítio Armação do Sul. O quadro cinza representa o alcance da assinatura local biologicamente disponível (0,7081 a 0,7118). Dentre as amostras faunísticas utilizadas para a determinação da assinatura local, a amostra referente à jaguatirica é a que mais destoa das demais, com razão em torno de 0,712 – resultado também obtido por Bastos (2014) para a amostra de jaguatirica do sítio 230 Tapera. Esse valor um pouco mais elevado, de certa forma, é esperado, uma vez que a tendência é de que um animal com dieta mais carnívora apresente razões 87Sr/86Sr maiores e, de fato, enquanto a capivara e o veado deveriam estar se alimentando de vegetais, e o golfinho e a lontra principalmente de peixes e crustáceos, a jaguatirica deveria estar se alimentando de pequenos roedores, répteis, aves e peixes. Como, no entanto, no caso da Tapera as amostras de paca, cotia e capivara apresentaram valores semelhantes aos da jaguatirica (Bastos 2014), permaneço em dúvida quanto ao caráter local dessa amostra. É possível que a dieta não esteja interferindo no valor da jaguatirica e que ela, assim como a paca, a cotia e a capivara analisadas por Bastos (2014), seja proveniente do continente próximo; mas, também, é possível que a dieta esteja interferindo no valor da jaguatirica e que ela realmente tenha origem insular, enquanto a paca, a cotia e a capivara analisadas por Bastos (2014) teriam origem continental e, por isso, valores mais altos do que os esperados. Vale lembrar que o sítio Tapera encontra-se na baía sul, voltado para o continente, o que deve ter facilitado o acesso aos recursos continentais em ambos os casos. Como um exercício, portanto, calculei também a assinatura isotópica local sem a inclusão da jaguatirica. O resultado foi uma assinatura de 0,70966200 ± 0,000920974 (2 x 0,000460487), com alcance de 0,7087 a 0,7106. Assim, as amostras dos sepultamentos 2, 48 e 31 ficariam de fora da faixa de variação da assinatura local – estando o sepultamento 31 situado no limite entre a localidade e não localidade. Na incerteza quanto ao caráter não local da amostra de jaguatirica, porém, devemos ter cautela e optar pela inclusão em vez da exclusão, tomando como base a assinatura local mais ampla calculada anteriormente. Até porque essa assinatura mais ampla já foi determinada a partir de exclusões que, embora mais bem embasadas, são também incertas – caso das amostras de ratão do banhado e anta. Embora a disponibilidade biológica indique que todos os indivíduos analisados são locais, tal localidade é relativa, dizendo respeito somente a ausência de indivíduos provenientes de regiões isotópicas muito diferentes – como o planalto ou porções litorâneas distantes. É possível que indivíduos provenientes de outras partes do litoral catarinense que apresentam disponibilidade isotópica parecida com a da Ilha de Santa 231 Catarina estejam misturados àqueles que são de fato locais, como é apontado pelo valor outlier do sepultamento 2 e suspeitado nos sepultamentos 49 e 31. Essa hipótese foi levantada por Bastos (2014) para as mulheres do sítio Tapera, uma vez que elas apresentaram uma maior variação em seus valores do que os homens. Se as variações observadas nas razões isotópicas 87 Sr/86Sr da população do sítio Armação do Sul podem estar associadas à presença de indivíduos não-locais provenientes de porções litorâneas próximas, então a forma como essa presença se dá mudou ao longo do tempo; pelo menos é o que nos indica a correlação significativa (p=0,006) existente entre os dados de 87Sr/86Sr e as datações radiocarbônicas. 87 86 Gráfico 37: Gráfico representando a correlação entre a razões Sr/ Sr e as datações radiocarbônicas. 232 87 86 Gráfico 38: Representação da dispersão dos valores Sr/ Sr nos diferentes momentos de ocupação do sítio. As assinaturas de estrôncio dos indivíduos aumentaram de forma sutil e gradual ao longo do tempo, com coeficiente de correlação de Pearson (r) de 0,568 e coeficiente de determinação (r²) de 0,323, indicando que 32% dos valores isotópicos podem ser explicados pelas datações. Há também uma tendência à maior variação nas razões 87Sr/86Sr entre os indivíduos mais tardios. Ao considerarmos todos os indivíduos analisados – e não apenas os 22 que foram analisados para 87 Sr/86Sr e também datados – comparando aqueles pertencentes ao período 1 com aqueles pertencentes ao período 2, segundo a cronologia relativa estabelecida para o sítio no capítulo anterior, o progressivo aumento dos valores e da variação das razões isotópicas se faz ainda mais evidente. 233 87 86 Gráfico 39: Boxplot das razões isotópicas Sr/ Sr obtidas para os indivíduos pertencentes ao período 1 (sepultados na areia marrom e/ou datado entre 3100 e 2500 AP) e ao período 2 (sepultados na terra preta e/ou datado entre 2500 e 1200 AP). Há diferença significativa para um nível de confiança de 95% entre a média dos valores do primeiro período (0,70982) e a média dos valores do segundo período (0,71013), com p=0,002 (teste t de Student). Com relação à variação dos valores, os coeficientes de variação de Pearson (CVp) nos mostram que enquanto as assinaturas 87 Sr/86Sr dos indivíduos do período 1 desviam 0,028% da média, as assinaturas do período 2 apresentam desvio de 0,046% e, portanto, maior dispersão. É interessante observar como a amostra referente ao sepultamento 49, integrada aos demais valores quando entendida em meio ao conjunto geral das razões 87Sr/86Sr do sítio, torna-se outlier quando inserida no conjunto de razões de seu momento cronológico específico. Como já mencionado, os indivíduos do sexo feminino do sítio Tapera apresentaram uma maior variação nas razões isotópicas que os indivíduos do sexo masculino (Bastos 2014), o que vai ao encontro da ideia de mudança para um padrão de residência virilocal em tempos mais tardios, conforme sugerido por Hubbe (2009). No sítio Armação do Sul, os 234 resultados apontam para a ausência de diferença significativa entre as médias dos indivíduos do sexo masculino e feminino em um nível de confiança de 95%, com p=0,454 (teste t de Student). Não há também diferença relevante entre os coeficientes de variação (CVp), sendo de 0,047% e 0,049% para o sexo masculino e feminino respectivamente. 87 86 Gráfico 40: Gráfico de dispersão dos valores Sr/ Sr dos indivíduos do sexo feminino e masculino. Se aproximarmos a escala, deixando de lado a tendência geral de longa duração e adentrando contextos temporais específicos, as diferenças entre as médias das razões dos homens e das mulheres permanecem não significativas, mas os coeficientes de variação (CVp) se diferenciam e tendem a aumentar na passagem de um período para o outro. No período 1, os indivíduos do sexo feminino e masculino apresentam, respectivamente, CVp de 0,019% e 0,034%; no período 2, os coeficientes aumentam para 0,046% e 0,049%, respectivamente. Além disso, ambos os sexos apresentam um aumento em suas médias no período 2, embora somente entre os homens esse aumento seja significativo em um nível de confiança de 95% (p=0,027). 235 87 86 Gráfico 41: Gráfico de dispersão dos valores Sr/ Sr dos indivíduos do sexo feminino e masculino pertencentes ao período 1 (sepultados na areia marrom e/ou datado entre 3100 e 2500 AP) e ao período 2 (sepultados na terra preta e/ou datado entre 2500 e 1200 AP). Além de não apresentarem o mesmo padrão observado por Bastos (2014) na Tapera, portanto, os dados do sítio Armação do Sul parecem apontar na direção contrária, pelo menos no caso do período 1, em que são os indivíduos do sexo masculino que apresentam maior CVp. Podemos então considerar a possibilidade de que este período mais antigo tenha sido marcado por um padrão de residência matrilocal, o que é sugerido por Hubbe (2009) para os sítios conchíferos sem presença de cerâmica. No período 2, por outro lado, os coeficientes aumentam e o grupo feminino se aproxima do masculino, indicando talvez um momento de transição no padrão de residência pós-marital, principalmente se tomarmos como pressuposto a existência de continuidade histórica entre as populações associadas aos sítios Armação do Sul e Tapera. Entre as diferentes idades dos indivíduos do sítio não foram observadas diferenças relevantes, a não ser pela menor variação nas razões 87Sr/86Sr das crianças (CVp=0,024%) e maior variação entre os adultos jovens (CVp=0,081%). Apesar de ser interessante o fato de 236 duas, dentre as três razões mais desviantes do valor central, pertencerem a adultos jovens, o pequeno número de crianças e adultos jovens na amostra total enfraquece qualquer tentativa de interpretação da distribuição etária das razões isotópicas. 87 86 Gráfico 42: Gráfico de dispersão dos valores Sr/ Sr das crianças, adultos jovens, adultos e adultos maduros do sítio Armação do Sul. Levando agora a análise dos dados para o contexto local do litoral central, podemos entender as mudanças observadas nas razões isotópicas 87Sr/86Sr do sítio Armação do Sul na passagem de um período para o outro como representando o início de um processo que teria continuidade em sítios cerâmicos como o Tapera (Bastos 2014). Esse processo de mudança é observável nos boxplots abaixo. 237 87 86 Gráfico 43: Boxplot das razões isotópicas Sr/ Sr obtidas para os indivíduos dos sexo feminino e masculino analisados dos sítios Tapera (Bastos 2014) e Armação do Sul. As médias dos valores 87 Sr/86Sr dos sítios Armação do Sul e Tapera apresentam diferença significativa para um nível de confiança de 95%, com p=0 (teste t de Student), sendo possível observar valores mais elevados no sítio Tapera. Há também um visível aumento na variação das razões, confirmado pelo cálculo dos coeficientes de variação (CVp), com os valores de Armação do Sul desviando 0,042% da média e os de Tapera desviando 0,078%. Essas diferenças provavelmente não são explicadas pela geologia, uma vez que ambos os sítios estão assentados sobre depósitos quaternários com proximidade de granitos alcalinos das suítes intrusivas Pedras Grandes e Pultono Vulcânica Cambirela, a não ser que as populações em questão estivessem caçando, coletando recursos e utilizando fontes de água de áreas diferentes, com geologia muito distinta daquela que caracteriza seu entorno. Como esses dois sítios representam momentos diferentes da ocupação do litoral central – Armação do Sul é datado entre 2900 ± 30 e 1430 ± 30 AP (ou 3065-2880 e 1315238 1275 anos cal AP) e Tapera possui idade de 1.140 ± 180 AP – é possível dizer então que houve uma mudança significativa na assinatura isotópica média dessas populações do litoral central por volta de 1.000 A.P, bem como na variação dessa assinatura. Mudança que possivelmente já vinha se prenunciando desde 2500 AP, momento a partir do qual as razões isotópicas 87 Sr/86Sr dos indivíduos do sítio Armação do Sul passam a apresentar alterações. 87 86 Gráfico 44: Gráfico de dispersão dos valores Sr/ Sr dos indivíduos analisados do sítio Armação do Sul, Tapera (Bastos 2014) e Forte Marechal Luz (Bastos 2009). Na legenda constam as faixas temporais ocupadas por cada sítio, definidas a partir de suas idades radiocarbônicas convencionais. Adentrando o contexto regional do litoral catarinense, o diagrama de dispersão acima evidencia não apenas a diferença entre Armação do Sul e Tapera, mas também a diferença significativa existente entre as médias das razões isotópicas apresentadas pelo sítio do litoral norte (Forte Marechal Luz) e os sítios do litoral central, sendo a hipótese de semelhança rejeitada com p=0 tanto para Tapera quanto para Armação do Sul. Os valores 239 isotópicos dos indivíduos do Forte Marechal Luz são em geral menores que os valores dos outros dois sítios, o que talvez se explique pela formação geológica que caracteriza o litoral norte – onde predominam os depósitos quaternários –, o que já havia sido observado por Bastos (2014) para explicar as diferenças entre Forte Marechal Luz e Tapera, sítios por ele estudados. 87 86 Gráfico 45: Boxplot dos valores Sr/ Sr dos indivíduos analisados do sítio Armação do Sul, Tapera (Bastos 2014) e Forte Marechal Luz (Bastos 2009). A formação geológica, contudo, não explica a maior variação das razões obtidas para os sítios Tapera e Armação do Sul – com coeficientes de variação de Pearson (CVp) de 0,078% e 0,042% respectivamente – frente à estreita variação do Forte Marechal Luz – com CVp de 0,033%. Também não explica a maior variação do sítio Tapera frente ao sítio Armação do Sul. Embora o litoral central apresente uma geologia mais variada que o litoral norte, a tendência é de que o processo de biopurificação e a influência marinha tornem as assinaturas isotópicas mais homogêneas (Bentley 2006, Price et al. 2002). Além disso, o fato de os indivíduos do sítio Armação do Sul e Tapera estarem inseridos nesse mesmo 240 contexto de variação geológica e, ainda assim, apresentarem CVp tão diferentes, indica que outros fatores que não a geologia local estão influenciando nos valores isotópicos 87 Sr/86Sr. 6.2.4 Discussão Frente aos dados apresentados, está claro que possivelmente nenhum dos indivíduos analisados passou seus primeiros anos de vida (entre 2 e 7 anos) em regiões de disponibilidade isotópica muito distinta daquela encontrada no litoral do Estado de Santa Catarina, como o interior do continente, a encosta da serra ou o planalto – e as análises de δ15N e δ13C nos permitem afirmar também que todos eles passaram seus últimos anos de vida no litoral, alimentando-se sobretudo de recursos marinhos. Isso significa que as mudanças observadas ao longo da estratigrafia do sítio provavelmente não estão relacionadas à incorporação de indivíduos não locais provenientes do interior, mesmo resultado obtido por Bastos (2014) com relação à presença de cerâmica no sítio Tapera. É possível, no entanto, que tais mudanças estejam relacionadas à incorporação de indivíduos provenientes de regiões litorâneas próximas. Os valores das assinaturas isotópicas 87 Sr/86Sr dos indivíduos analisados do sítio Armação do Sul aumentaram progressivamente – e significativamente – desde o início da ocupação do sítio, com um aumento também na variação desses valores ao longo do tempo. O aumento progressivo dos valores poderia ser explicado por uma mudança gradual da dieta que estaria se tornando mais terrestre ao longo do tempo, como indicado pelas análises isotópicas de carbono e nitrogênio. Acontece que essas análises foram realizadas a partir do colágeno dos ossos, dizendo respeito à dieta dos últimos anos de vida dos indivíduos, enquanto as análises de 87Sr/86Sr foram realizadas a partir do esmalte dentário, dizendo respeito à assinatura isotópica dos indivíduos na infância, o que inviabiliza o estabelecimento de correlações. O aumento na variação dos valores, por sua vez, seria mais bem explicado por uma expansão nas relações entre populações de regiões litorâneas próximas, com a incorporação de indivíduos provenientes dessas regiões pela população do sítio da Armação do Sul. 241 De fato, é possível que alguns indivíduos sepultados no sítio sejam provenientes de localidades litorâneas próximas e, em algum momento de suas vidas tenham migrado para o sul da Ilha de Santa Catarina. Embora todos os valores 87 Sr/86Sr obtidos para o esmalte dentário humano estejam de acordo com a assinatura local biologicamente disponível indicada pela fauna analisada, a presença de outliers e valores desviantes da tendência normal aponta para essa possibilidade. Quando os resultados são abordados a partir de uma perspectiva geral de longa duração – que lida com a tendência isotópica do sítio ao longo de seus mais de 1500 anos de ocupação – apenas o sepultamento 2 aparece como outlier. Coincidentemente ou não, esse é justamente o indivíduo que apresenta lesão óssea causada por comportamento violento, com uma ponta cravada em sua quarta vértebra lombar (Lessa e Scherer 2008). Caso realmente seja não local, esse indivíduo estimado como adulto jovem do sexo masculino deve ter migrado em algum momento entre seus 8 e 30 anos de idade, tendo aparentemente sido incorporado pela população do sítio, pois recebeu o mesmo tratamento funerário que os demais na ocasião da sua morte em 1430-1315 anos cal AP – até mesmo dividindo suntuosidade com alguns outros sepultamentos masculinos. Ao aproximarmos o olhar para conjunturas específicas, numa perspectiva de média duração, percebemos que o sepultamento 49 também desponta como outlier, porém somente dentro do conjunto de valores do primeiro período de ocupação do sítio. Caso realmente seja não local, esse indivíduo estimado como adulto maduro do sexo feminino deve ter migrado em algum momento de sua vida após os 8 anos de idade, tendo provavelmente sido incorporado como igual pela população do sítio, uma vez que recebeu o mesmo tratamento funerário apresentado pelos demais sepultamentos do período 1. Na união entre os dados isotópicos de estrôncio com os dados isotópicos de nitrogênio e carbono, poderíamos presumir que, por exemplo, o indivíduo referente ao sepultamento 2, teria recentemente migrado para a área onde se situa o sítio Armação do Sul quando foi possivelmente morto em decorrência de golpe por arma com ponta óssea. Assim, no momento de sua morte ele ainda guardaria a assinatura isotópica da alimentação que tinha no local de onde veio. No mesmo sentido, poderíamos “imaginar” que a mulher referente ao sepultamento 59 teria migrado há mais tempo e, assim, a 242 remodelação óssea já teria dado conta de substituir a assinatura de δ15N e δ13C antiga pela nova. É muita suposição. De toda forma, o indivíduo 2 é um indivíduo extremo, o que se revela nos valores 87 Sr/86Sr, nos valores δ15N e δ13C e na ponta óssea cravada em sua quarta vértebra lombar. O fato de o sepultamento 49 ser considerado outlier somente em seu momento cronológico específico chama atenção para a questão colocada por Wright (2005) quanto à possibilidade de indivíduos não locais estarem incluídos nas extremidades da distribuição normal. Reforça também a ideia de que indivíduos não locais provenientes de regiões geológicas parecidas podem estar inseridos dentro da faixa de distribuição da assinatura biológica local, passando despercebidos; ou, então, a ideia de que a jaguatirica, limite superior da assinatura local, seria proveniente do continente próximo à Ilha de Santa Catarina, o que diminuiria a faixa de variação biológica e tornaria os indivíduos dos sepultamentos 2, 49 e talvez 31 indiscutivelmente não locais. Como os valores 87Sr/86Sr que desviam da tendência central se destacam por serem mais elevados que os demais, somos levados a supor que os indivíduos potencialmente não locais teriam origem no próprio litoral central, em localidades onde a presença de formações geológicas mais antigas do Proterozóico e Arqueano – como ocorre em alguns pontos entre Porto Belo e Balneário Camboriú, mais ao norte; e no município de São José, no continente próximo à Ilha de Santa Catarina – poderia estar elevando as assinaturas isotópicas. Inserindo os resultados obtidos para o sitio Armação do Sul no contexto do litoral central, é possível observar diferença significativa entre a média das razões 87Sr/86Sr desse sítio, que é menor, e a média dos indivíduos analisados por Bastos (2014) no sítio Tapera, que é mais elevada. No sítio Tapera, é também mais elevada a variação dos valores, principalmente entre os indivíduos do sexo feminino, o que levou Bastos (2014) a levantar a hipótese da virilocalidade, como foi sugerido por Hubbe (2009) para os sítios conchíferos mais tardios com presença de cerâmica. O sítio Armação do Sul, por sua vez, parece apresentar uma maior variação entre os indivíduos do sexo masculino no período 1 – embora o único outlier seja estimado para o sexo feminino – e uma equiparação no 243 período 2, causada por um aumento grande na variação das mulheres e aumento menor na variação dos homens. Para interpretar esse quadro, podemos também seguir a deixa de Hubbe (2009) e considerar a possibilidade de que o período 1 teria sido marcado pela matrilocalidade e o período 2 por uma transição de um padrão matrilocal para um padrão virilocal; ou então, de que ambos os períodos representariam essa transição, uma vez que a distribuição dos dados não deixa nada muito claro. Em sua análise dos marcadores de estresse músculo-esquelético, Scherer (2012) observou que a parcela feminina do sítio Armação do Sul não parece ter realizado qualquer atividade que envolvesse deslocamentos para longe de seu núcleo habitacional, enquanto que o grupo feminino do sítio Tapera apresentou graus de robusticidade bem variados, inclusive com presença de casos compatíveis com maiores deslocamentos, mesmo que mais frequentemente realizados em áreas planas do que íngremes. Esses resultados podem estar simplesmente apontando para padrões de mobilidade e/ou realização de atividades distintas pelas mulheres dos sítios em questão, mas podem também ser entendidos como uma evidência da passagem de um padrão de residência matrilocal para um padrão virilocal em tempos mais tardios. Frente a esses dados relativos às diferenças entre Armação do Sul e Tapera e partindo da ideia de continuidade histórica entre os sítios conchíferos com e sem cerâmica, podemos pensar então que o aumento dos valores isotópicos 87 Sr/86Sr observado desde o início da formação do sítio Armação do Sul faz parte de um processo que continua no sítio da Tapera (Bastos 2014), pois este sítio apresenta razões que ora se sobrepõem aos daquele e ora são ainda mais altas. E o mesmo serve para o aumento na variação dos valores no sítio Armação do Sul, que parece prenunciar a variação ainda maior que teria lugar no momento seguinte, em sítios cerâmicos como Tapera. A diferença entre a média dos valores 87Sr/86Sr dos dois sítios poderia ser explicada por diferenças na dieta, por diferenças geológicas nas principais áreas de captação de recursos – como um aumento na utilização de recursos continentais ou a utilização de fontes de água distintas – e, claro, a presença de indivíduos provenientes de regiões com formação geológica mais antiga poderia também estar contribuindo para essa diferença. 244 Sabemos que animais de regiões com disponibilidade isotópica diferente faziam parte da dieta tanto dos indivíduos do sítio Armação do Sul quanto Tapera, a exemplo dos porcos do mato com razões 87 Sr/86Sr muito acima da média e outras amostras de fauna que se mostraram potencialmente não locais. Como o sítio Tapera está situado na baía sul, voltado para o continente, o acesso a esse tipo de recurso deveria ser facilitado. Além disso, Scherer (2012) observou lesão na área de origem do músculo gastrocnêmio entre os indivíduos do sexo masculino desse sítio cerâmico, o que sugere a transposição de terrenos íngremes e acidentados e leva a autora a considerar que a caça foi uma atividade mais intensa no grupo Tapera se comparado ao grupo Armação do Sul. Nesse sentido, talvez os indivíduos da Tapera estivessem caçando tanto na mata atlântica – onde os terrenos são mais irregulares, demandando mais dos membros inferiores – quanto em áreas de baixadas, enquanto os indivíduos da Armação do Sul estivessem caçando principalmente nas áreas de baixadas (Scherer 2012:148). Um foco maior nos recursos da mata atlântica – que, na Ilha de Santa Catarina, se situa sobre granitos alcalinos do Eopaleozóico – poderia ser responsável pelo aumento nas razões isotópicas 87Sr/86Sr, ainda mais se tais recursos fossem buscados também na mata atlântica continental, como na região da serra do Tabuleiro, vizinha de frente da praia da Tapera, onde embora a geologia também seja marcada por granitos alcalinos do Eopaleozóico, a influência do estrôncio marinho sobre a assinatura biologicamente disponível é menor do que nas terras insulares. Ou, ainda, nos arredores dos municípios de Biguaçu, São José e Palhoça, onde há presença de granitóides calcialcalinos do Proterozóico e de formações do Complexo Águas Mornas, que remetem ao Arqueano. A grande diferença nos coeficientes de variação (CVp), entretanto, é mais difícil de ser explicada para além da ideia de que no sítio Tapera a presença de indivíduos não locais provenientes de localidades litorâneas próximas teria sido mais expressiva. Como ambos os sítios estão inseridos em um mesmo contexto geológico, e como mesmo em regiões com grande heterogeneidade isotópica 87 Sr/86Sr – a exemplo do litoral central – a tendência é de que grupos humanos e outros animais apresentem notável homogeneidade em suas assinaturas isotópicas (Price el al. 2002) – ainda mais em ambientes litorâneos 245 com forte influência do estrôncio marinho (Bentley 2006) – os valores 87 Sr/86Sr dos indivíduos dos sítios Armação do Sul e Tapera deveriam apresentar variação mais parecida. Apesar da tendência à homogeneidade, existem fatores que podem introduzir variação nas razões 87 Sr/86Sr de uma população, como a dieta. Para isso acontecer, contudo, precisa haver diferença na dieta de indivíduos ou grupos de indivíduos específicos (Price et al. 2002). Embora Bastos (2014) tenha observado que algumas mulheres da Tapera possivelmente estavam se alimentando de recursos com valores de δ13C mais negativos, não encontrou esse tipo de variabilidade na dieta da população da Tapera, nem qualquer correspondência entre a variação nas razões 87 Sr/86Sr e os valores de δ15N e δ13C. No sítio Armação do Sul, embora não seja possível fazer correlações entre os valores δ15N e δ13C do colágeno dos ossos e as assinaturas 87Sr/86Sr do esmalte dentário, pode-se dizer que não há tamanha variabilidade na dieta: enquanto entre os indivíduos do sexo masculino foram, de fato, observadas diferenças, no grupo feminino a dieta é bastante homogênea e semelhante à das crianças fora da idade de amamentação. Ficamos então com a hipótese de que a diferença na variação dos valores isotópicos 87 Sr/86Sr entre os sítios Armação do Sul e Tapera esteja relacionada à uma expansão nas relações com populações litorâneas próximas por parte dos indivíduos da Tapera. Expansão tanto em termos quantitativos, com um aumento na frequência e intensidade dessas relações, quanto em termos qualitativos, com a incorporação de outras regiões isotópicas que em tempos anteriores talvez não estivessem incluídas na rede de relações. Em um momento anterior, representado pelo período 1 do sítio da Armação, as interações talvez fossem menos frequentes e/ou restritas a localidades específicas de disponibilidade isotópica mais parecida com a da ilha de Santa Catarina, como a maior parte do continente próximo à ilha; no momento seguinte, representado pelo período 2, o processo expansivo teria se iniciado timidamente para, mais tarde, atingir seu auge em sítios como Tapera. Se a hipótese estiver correta, essa expansão estaria se fazendo visível no registro arqueológico do sítio Tapera devido às trocas resultantes de um padrão virilocal de residência pós-marital, que aparecem no registro sob a forma de patrimônios genéticos (Hubbe 2009), assinaturas isotópicas (Bastos 2014) e, talvez, graus de robusticidade 246 (Scherer 2012) mais variados. Provavelmente estaria também se manifestando por meio da presença de objetos, alimentos e costumes intercambiados, ainda por serem identificados em pesquisas futuras – como quem sabe a própria cerâmica. Pensando agora no contexto regional e nas diferenças observadas entre os valores 87 Sr/86Sr obtidos para as populações do litoral central e do litoral norte, enquanto os sítios Armação do Sul e Tapera apontam para um aumento da média e da variação das razões isotópicas em tempos mais tardios, no sítio Forte Marechal Luz, do litoral norte, a média e a variação das razões isotópicas permaneceram iguais ao longo dos mais de 3000 anos em que foi ocupado, embora três indivíduos tenham despontado como outliers no período final do sítio (Bastos 2009). Esses dados contribuem para uma melhor compreensão dos processos de mudança pelos quais passaram os sítios conchíferos catarinenses a partir de 2000 anos AP, chamando atenção para a forma como contextos locais diferentes respondem diferentemente a pressões estruturais possivelmente semelhantes (Sahlins 2011[1985]). Nisso, colocam também em pauta a importância da relação entre indivíduo e estrutura nos processos de mudança social. A ação se dá por meio das disposições de indivíduos e grupos inseridos em contextos de significado específicos (Bourdieu 2011[1967]); interpretações diferentes, ocasionadas por habitus distintos, podem levar a desenrolamentos inimaginados que fogem às pressões estruturais, tal como a morte do capitão Cook quando estava indo embora no Havaí (Sahlins 2011[1985]). Daí, a necessidade de se entender os processos de mudança contextualmente. As razões isotópicas 87 Sr/86Sr indicam que acontecimentos possivelmente semelhantes de ordem cultural e/ou ambiental – como a diminuição do nível do mar, o aumento da umidade, o contato intercultural ou qualquer outro evento que tenha se dado em escala regional – se desenrolaram diferentemente no litoral norte e no litoral central do Estado. A população do sítio Forte Marechal Luz (Bastos 2009) manteve o mesmo padrão de mobilidade após o aparecimento da cerâmica, com manutenção da média dos valores isotópicos e incorporação eventual de indivíduos de outras regiões litorâneas; a única possível mudança foi em direção a um aumento na frequência dessa eventualidade – de um indivíduo não local para três. A população do sítio Tapera (Bastos 2014), de certa 247 forma, também manteve o padrão de mobilidade observado no sítio Armação do Sul, caracterizado por uma pequena – porém crescente – variação nos valores isotópicos, no entanto, apresentou valores ainda mais altos, elevando tanto a média dos valores quanto o seu coeficiente de variação. O que parece é que na interpretação local de acontecimentos regionais, a população associada ao sítio Forte Marechal Luz manteve-se circunscrita em torno dela mesma, embora não possa ser descartada a possibilidade da presença de indivíduos provenientes de outras partes do entorno da baía da Babitonga que, tendo em vista a homogeneidade geológica da área, se fariam imperceptíveis no registro isotópico 87Sr/86Sr. Enquanto isso, as populações do sítio Armação do Sul e da Tapera tornaram-se ainda mais abertas do que eram, expandindo suas fronteiras – pelo menos no sentido de trocas culturais e/ou pessoas – para regiões litorâneas próximas com presença de formações geológicas mais antigas, como ocorre em alguns pontos entre Porto Belo e Balneário Camboriú, mais ao norte, e no município de São José, no continente próximo. Ademais, a constatação da existência de diferença significativa entre as médias das assinaturas de 87Sr/86Sr dos sítios em questão nos dá um maior poder interpretativo frente aos dados, mostrando que indivíduos provenientes do litoral norte podem vir a ser identificados quando estiverem sepultados em sítios do litoral central e vice-versa. Mesmo que as variações nas assinaturas isotópicas disponíveis ao longo do litoral catarinense sejam pequenas – mais por causa da influência do estrôncio marinho do que da geologia – o fato dos espectrômetros de massa modernos apresentarem precisão mínima de 10-5 (Allègre 2008) torna variações na quarta casa decimal extremamente significativas, podendo ser utilizadas para identificar indivíduos não locais (Grupe 1997). Com um aprofundamento dos estudos e mapeamento das pequenas variações ao longo do litoral, portanto, os isótopos de estrôncio poderão passar a informar não apenas sobre as relações estabelecidas com populações do interior e outras regiões litorâneas mais distantes, mas também sobre as relações estabelecidas – fluxos de ideias, objetos e pessoas – entre as populações das diferentes porções do litoral catarinense, colocando-se como um caminho possível para a melhor compreensão das redes de inter-relações na paisagem pré-colonial do litoral de Santa Catarina e dessa paisagem enquanto sistema. 248 Antes de finalizar, é importante ressaltar que as análises isotópicas de estrôncio geram resultados que sempre subestimam a presença de indivíduos não locais. Além de dizerem respeito somente às migrações realizadas após o período de formação dos dentes analisados, existe a possibilidade de indivíduos provenientes de locais com disponibilidade isotópica idêntica à da ilha de Santa Catarina estarem totalmente integrados à amostra considerada local, bem como de indivíduos provenientes de regiões com formação geológica mais recente estarem camuflados na extremidade inferior da distribuição normal. Ainda, devo alertar que embora as proveniências inferidas – tanto para os indivíduos humanos quanto para a fauna que apresentou valores 87 Sr/86Sr desviantes – sejam baseadas em informações geológicas seguras (figura 53) e, por vezes, até mesmo em dados isotópicos da assinatura 87 Sr/86Sr presente na geologia (Basei 1985), as interpretações aqui apresentadas devem ser encaradas com cautela enquanto não forem realizados mais estudos no sentido de promover um melhor entendimento das pequenas variações isotópicas entre porções distintas do litoral catarinense. Com relação à hipótese colocada no início deste trabalho, de que haveria presença de indivíduos não locais no sítio Armação do Sul, ela foi confirmada em parte: rejeitada quanto à presença de indivíduos provenientes do interior e de regiões litorâneas mais distantes, porém confirmada quanto à presença de indivíduos de localidades litorâneas próximas – claro, levando-se em consideração as ressalvas feitas acima. 249 7 Finalizando: tudo ao mesmo tempo agora Deixo aos vários futuros (não a todos) meu jardim de veredas que se bifurcam. Jorge Luis Borges, Ficções, 1941 Infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos divergentes, convergentes e paralelos; essa trama de tempos que se aproximam, se bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram abrange todas as possibilidades. Assim, Borges (1941:113) descreveu o labirinto deixado aos futuros por Ts’sui Pen. Aqueles indivíduos associados ao espaço ritual que hoje chamamos de sítio Armação do Sul nos deixaram seu próprio labirinto, expresso de forma tão pragmática como somente a materialidade consegue ser: as veredas que se bifurcam estão ali, visíveis – e invisíveis! – em sua estratigrafia. Alegoria do encontro entre o local e o regional, entre as longas e curtas durações, entre a mudança e a estabilidade, o sítio Armação do Sul mostra como processos complexos de mudança se manifestam no registro arqueológico, desafiando a percepção dos arqueólogos, geralmente distanciada e unifocal, a tomar novos pontos de vista e pluridirecionar-se. A textura densa de dados apresentada ao longo da segunda parte desta dissertação, gerada por meio das determinações radiocarbônicas, da análise das práticas mortuárias e das análises isotópicas 87Sr/86Sr, δ13C e δ15N, passa a integrar o conjunto das coisas que mudam apresentado na primeira parte. Agora, em vez de suscitar infrutíferas elucubrações aferindo papel de causa ou efeito aos diferentes elementos em jogo, sigo a deixa de Bourdieu (2011[1967]) ao ponderar o surgimento do estilo gótico e me limito a esboçar um quadro de séries causais independentes na ordem da causalidade, cuja combinação ou encontro engendrou mudanças significativas na vivência de mundo da 250 população associada ao sítio Armação do Sul e, de quebra, no registro arqueológico. O que, na verdade, nada tem de limitante, e eu diria que é até libertador; como já mencionado há alguns capítulos atrás, “mais elevada que a realidade está a possibilidade” (Heidegger 2008[1927]). Nesse quadro possível de acontecimentos inter-relacionados, está presente a fundação de um novo espaço ritual para o empreendimento de atividades funerárias, ato que por si só representa uma quebra com a tradição; o desapego com relação às ideias por detrás da monumentalidade dimensionalmente exacerbada dos sítios conchíferos, perceptível no contexto do litoral central desde tempos mais antigos (Oppitz 2011), porém ainda mais evidente com a formação de sítios “rasos” como Armação do Sul em tempos mais tardios; a menor presença de conchas que caracteriza o sítio desde o início de sua formação e, depois, o aparecimento da terra preta; o adensamento populacional ou maior quantidade de indivíduos sendo sepultados no mesmo local; a mudança na dieta de alguns indivíduos adultos do sexo masculino, em direção provável à introdução ou ao aumento no consumo de recursos C4 (como o milho) e/ou à diminuição no consumo de recursos marinhos de alto nível trófico; o aumento na diferenciação social entre os indivíduos do sexo masculino que pode ou não estar associado ao estabelecimento de uma hierarquia social mais complexa, expressa na maior variabilidade dos acompanhamentos funerários de diferentes indivíduos – o que pode também, simplesmente, significar uma atualização nas práticas mortuárias de relações de status e/ou poder que já estavam em voga anteriormente; o possível estabelecimento de relações de status e/ou poder hereditárias, expressas na maior variabilidade dos acompanhamentos funerários nos sepultamentos infantis, alguns casos apresentando muitos elementos e outros apresentando poucos; a introdução das pontas ósseas e artefatos fusiformes ao rol de acompanhamentos funerários passíveis de serem escolhidos para compor, principalmente, sepultamentos masculinos e infantis; o abandono parcial do uso de ocre, seguido por abandono total; a expansão da rede de relações com populações de outras localidades do litoral central e, quiçá, do litoral catarinense; o início da mudança para um padrão de residência virilocal; o aumento da violência; e, por fim, o abandono de um espaço ritual – pelo menos com relação ao empreendimento de atividades funerárias – que vinha sendo utilizado há mais 251 de 1500 anos. Logo em seguida, ocorre o aparecimento da cerâmica, a maior robustez óssea entre os indivíduos do sexo masculino e maior variabilidade na robustez entre os indivíduos do sexo feminino (Scherer 2012), e o estabelecimento claro de um padrão de residência virilocal (Hubbe 2005, Bastos 2014), mas esses são acontecimentos que não mais estão materializados no sítio Armação do Sul, sendo preciso buscá-los em sítios formados posteriormente. Penso ainda que o início da prática de confeccionar inscrições rupestres possa ser adicionado a esse quadro, afinal, esse tipo de sítio arqueológico é uma particularidade do litoral central, e parece ser justamente nesse momento representado pelo sítio Armação do Sul que o litoral central mais se diferencia das porções litorâneas adjacentes. Para Comerlato (2005), as inscrições rupestres operavam como um código visual, uma unidade estrutural compartilhada e articuladora de espaços ao longo de todo o litoral central, espaços também interconectados visualmente. Essa articulação de toda uma faixa litorânea por meio de um sistema de representações comum parece fazer sentido com o contexto de expansão na rede de relações locais ou, pelo menos, de formalização de relações talvez pré-existentes. Vejo as inscrições rupestres como uma alternativa desenvolvida localmente e criativamente frente à decadência dos esquemas perceptivos então em voga, desafiados por razões práticas diversas. Em tempos de progressivo fechamento de alguns dos corpos d’água que centralizavam as relações sociais e deveriam atuar na comunhão de recursos e ideias, uma prática voltada para o oceano; uma reconfiguração das antigas formas de viver e entender o mundo; uma hipótese que dificilmente será testada – tendo em vista as limitações nos métodos de datação hoje conhecidos. A ilha do Campeche, local onde está a maior concentração de inscrições rupestres do litoral central, situa-se logo em frente ao sítio Armação do Sul, além de haver também registro de uma inscrição na ponta das Campanhas, local de onde saem os barcos para visitação da ilha e onde há um sítio conchífero que provavelmente é imediatamente posterior ao sítio Armação do Sul. Reforça minha intuição a possibilidade levantada por Comerlato (2005), de que os artefatos fusiformes poderiam estar sendo utilizados para polir as superfícies e regularizar os traços incisos ou martelados das inscrições, tendo sido 252 encontrados vários objetos desse tipo no terraço marinho eólico da ilha do Campeche. Os artefatos fusiformes, que passam a ser utilizados como acompanhamentos funerários distintivos somente após 2500 anos AP, ocorrendo em alguns sepultamentos masculinos e infantis mais suntuosos; justamente eles. É provável também que o contato ou a intensificação das relações com populações interioranas tenha integrado esse cenário, porém, até o momento, não há evidências materiais contundentes desse contato possível para além do aparecimento da cerâmica a partir de 1500 anos AP que, a meu ver, em sua exclusividade não constitui uma evidência suficientemente decisiva. Ao mesmo tempo em que esses tantos acontecimentos eram submetidos aos riscos da interpretação e transformados em eventos, desenrolando-se conforme as prédisposições individuais e do contexto local, a paisagem enquanto conjunto de feições relacionadas aparentemente congeladas também se transformava. O local onde está assentado o sítio Armação do Sul, um terraço marinho holocênico coberto por areias eólicas, formou-se por volta de 5000 AP, situando-se à beira de uma paleolaguna que existiu até mais ou menos 3600 AP e, a partir daí, começou a fechar para, mais tarde, deixar de existir – tornando-se então a lagoa do Peri. Ainda, em meio à progressiva diminuição do nível do mar que marcou todo o período de ocupação do sítio, é possível que por volta de 2600 AP tenha havido um rápido aumento seguido de retorno à diminuição, o que foi sugerido para a Ilha de Santa Catarina (Caruso Junior 1989, 1993, 1995; Horn Filho e Livi 2012) e para o sul do estado (Caruso Junior 1989, 1993, 1995; Suguio et al 1985). O conjunto de atividades relacionadas (taskscape) arroladas e esse conjunto de feições relacionadas (landscape) que acaba de ser parcialmente descrito, juntos, conformam uma paisagem temporalizada (Ingold 2002[2000]), gerada e mantida por meio das relações organismo-meio ambiente num processo de incorporação; uma paisagem temporalizada em transformação. O mundo passava também por alterações climáticas importantes com impactos distintos em diferentes regiões do globo e influência também sobre o clima dessas paragens meridionais do litoral brasileiro. Durante o período em que o espaço do sítio 253 Armação do Sul foi utilizado para a realização de rituais funerários, dois eventos globais de alteração climática se destacam. O primeiro deles teria se dado entre aproximadamente 2800 e 2600 AP e pode estar relacionado a um período de baixa atividade solar (forte mínimo solar), com impacto climático mais intenso no hemisfério sul e indicativo de aumento de chuvas em registros paleoclimáticos de regiões do Brasil (Stríkis et al. 2011, Novello et al. 2012) que apresentam padrão de chuva relacionado ao Sistema de Monção Sul-Americana (Marengo et al. 2012). Há registro também de aumento da umidade e diminuição das temperaturas em diferentes localidades da Europa, na América do Norte, na Nova Zelândia e no Japão, sendo que na Holanda essa alteração climática teria sido acompanhada pelo abandono de assentamentos da Idade do Bronze tardia devido ao alagamento das áreas habitadas e subsequente colonização de áreas costeiras (Van Geel et al. 1996), e, no sul da Sibéria e Ásia central, pela aceleração no desenvolvimento cultural, adensamento populacional e expansão territorial dos citas (Van Geel et al. 2004). O segundo evento, conhecido como Anomalia Climática Medieval, teria se dado entre aproximadamente 1200 e 800 anos AP e, portanto, no final do período de ocupação do sítio Armação do Sul ou mesmo em período posterior ao seu abandono, estando possivelmente associado a um aumento na atividade solar e vulcânica (Novello 2012). Esse evento anômalo foi marcado por alterações distintas e, por vezes, antagônicas em diferentes partes do mundo (Bradley et al. 2003), com elevação da temperatura na Europa. Para a América do Sul, registros paleoclimáticos da região do Sistema de Monção Sul-Americana que se estendem do Peru até o estado de São Paulo, mostram condições significativamente áridas para esse período (Vuille et al. 2012, Novello et al. 2012). Arqueologicamente, esse período foi marcado tanto por florescimento e expansão quanto por colapso de diferentes culturas, conforme a região do globo enfocada e a alteração climática observada. Enquanto os Vikings se expandiam através do Atlântico Norte em meio a um clima favorável e estações de crescimento mais longas (Dansgaard 1975, Price e Burton 2011) e a Europa medieval passava por um crescimento material e demográfico extraordinário, os Maias lidavam com transformações sociais e políticas em meio a secas prolongadas que culminaram no seu colapso (Yaeger e Hodell 2008, Kennett e Beach 254 2013); os centros urbanos e campos elevados da cultura Tiwanaku eram abandonados (DeMenocal 2001); a cultura Mimbres passava por mudanças sociais e reconfiguração dos assentamentos e as regiões de Mesa Verde e Hohokam eram depopuladas (Hegmon et al. 2008); na Amazônia central ocorria adensamento populacional, maior interação étnica e aumento dos conflitos, estes evidenciados pela construção de estruturas defensivas, como valas e paliçadas (Moraes e Neves 2012). Cabe destacar que não estou sugerindo que esses florescimentos e colapsos, ou as mudanças observadas no registro arqueológico do sítio Armação do Sul, possam ser atribuídos às alterações paleoclimáticas, apenas chamo atenção para a forma como esses acontecimentos coincidem no tempo, compondo cada um à sua maneira os contextos de mudança. Embora possamos presumir similaridade com os registros obtidos para qualquer região da América do Sul que seja afetada pelo Sistema de Monção Sul-Americana (Marengo et al. 2012), não sabemos ao certo em que intensidade se revelaram os eventos paleoclimáticos mencionados na Ilha de Santa Catarina. Qualquer alteração climática prolongada, contudo, interfere na disponibilidade de recursos. No caso dos ecossistemas marinhos, variações na temperatura da água podem levar à reorganização das comunidades de plânctons, o que gera impacto sobre a ictiofauna, uma vez que todos os peixes em fase larval – e alguns também em fase adulta – consomem plânctons e a concomitância entre o pico de abundância desses organismos e a chegada das larvas é crucial para a sobrevivência dessas últimas (Hays, Richardson e Robinson 2005). Ainda, variações na salinidade da água, ocasionadas por alterações no regime de chuvas, podem impactar diretamente a reprodução e abundância das comunidades ictiológicas e malacológicas. A desestruturação de uma sociedade pode se dar por diversos motivos. Basta, por exemplo, uma alteração pequena na disponibilidade dos recursos para que as relações estabelecidas sejam abaladas, revelando as contradições e gerando necessidade de improviso e inovação, para a manutenção ou para a transformação. Tal inovação pode se dar, por exemplo, pela escolha de novos elementos de distinção social, como talvez tenha acontecido entre os indivíduos masculinos do sítio Armação do Sul. 255 Deparamo-nos, então, com uma rede de causalidades locais, regionais e globais sincrônica e diacronicamente inter-relacionadas, na qual se incluem desde acontecimentos mais prosaicos como a inovação no contexto de uso das pontas ósseas e artefatos fusiformes até a atividade solar e o vulcanismo do mundo. A convergência dessas diferentes trajetórias resultou naquilo que hoje observamos no registro arqueológico do sítio Armação do Sul, nessa pequena ilha do litoral meridional brasileiro. Apesar dos tantos cuidados na interpretação dos dados gerados, em uma redação por vezes hesitante e um texto repleto de possíveis, ao fim, as inferências hesitantemente feitas configuram-se em um cenário bastante coerente, ainda mais se entendidas em conjunto com os outros dados culturais e paleoambientais apresentados. Ou seja, talvez estejamos no caminho certo. O cenário é de intensificação nos processos de mudança, de transição; e, resguardadas as idiossincrasias locais, envolve uma associação de acontecimentos possíveis que é recorrente em diferentes contextos de mudança ao redor do mundo, como a expansão nas relações com outras populações, o desenvolvimento de uma hierarquia social mais claramente observável no registro arqueológico, o aumento da violência, o adensamento populacional, a mudança na dieta, a quebra de tradições, as inovações materiais/ideológicas, e as alterações ambientais. Esse conjunto de acontecimentos, por vezes, está relacionado a contextos de transição para a agricultura (Larsen 2006), mas, no caso do sítio Armação do Sul, a dieta permaneceu essencialmente marinha, mesmo com a possibilidade de um consumo pequeno de milho – que, fosse o caso, provavelmente teria sido utilizado como forma de distinção entre alguns indivíduos do sexo masculino. A população associada ao sítio Armação do Sul viveu, em seus próprios termos, seus próprios tempos de mudança. Analisando as práticas mortuárias em diferentes contextos de transição, Childe (1945) tem um insight interessante, retomado posteriormente por Parker Pearson (2006[1982]), e que nesse momento me parece muito conveniente, indo diretamente ao encontro daquilo que estou tentando expor. Em linhas gerais, a ideia é de que em sociedades que passam por períodos de pouca mudança relativa, os acompanhamentos funerários tendem a aparecer em quantidade e variedade cada vez menor, porém, quando 256 essa “estabilidade” é abalada por eventos diversos, os acompanhamentos aparecem em maior quantidade e variedade, atuando mais enfaticamente na produção e reprodução das novas relações e posições sociais em formação, ou na legitimação de relações préexistentes colocadas à prova. É claro, Childe não faz sua colocação exatamente nesses termos, sendo os “eventos diversos”, para ele, a invasão, imigração ou o contato entre sociedades bárbaras e civilizadas, de forma que "for instance, trade introduces new sorts of wealth, new opportunities for acquiring wealth and new classes (traders) who do not fit in at once into the kinship organization of a tribe” (Childe 1945: 17). De fato, em rápida e superficial análise das práticas mortuárias em sítios conchíferos anteriores e posteriores ao sítio Armação do Sul, não pude perceber tamanha quantidade e variedade nos acompanhamentos funerários. É como se o sítio Armação do Sul representasse um momento de maior agitação nos processos de mudança, enquanto os sítios cerâmicos posteriores, como Tapera, Base Aérea e Laranjeiras II, representassem uma nova “estabilidade”; a calmaria depois da tempestade. Pois bem, esse seria o cenário no litoral central, mas as coisas não mudaram da mesma forma em todas as porções litorâneas catarinenses. Embora as populações associadas aos sítios conchíferos dessa faixa costeira compartilhassem inúmeras tradições e vivências de mundo que deveriam conferir-lhes uma identidade coletiva, estruturando e sendo estruturadas por suas práticas, como a dieta, a tecnologia, a íntima relação com ambientes estuarinos, a distribuição dos sítios no entorno de formações lagunares, a resposta à crise biológica e social da morte e a monumentalização das áreas funerárias pela deposição de material faunístico e sedimento; e, embora haja sintonia cronológica entre muitos dos acontecimentos observados, os habitus e contextos locais – ou paisagens temporalizadas – geraram um efeito de refração, condicionando a apreensão de tais acontecimentos enquanto eventos e, assim, seus desenrolares. Processos de mudança que se interseccionaram em determinados pontos no tempo e no espaço, porém novamente se bifurcaram em direções, intensidades e atores distintos. Isso é denunciado pelas particularidades nos panoramas arqueológicos de cada uma das porções litorâneas, e foi indicado pelos resultados das análises isotópicas. As análises de estrôncio (87Sr/86Sr) revelaram padrões de mobilidade distintos para as 257 populações do litoral norte e do litoral central após 1500 AP, o primeiro mais fechado, porém com eventuais inclusões de indivíduos de porções litorâneas mais distantes, como da Cananéia, e o segundo mais aberto, com inclusão frequente de indivíduos provenientes de localidades litorâneas próximas. E as análises de nitrogênio (δ15N) e carbono (δ13C), demonstraram haver diferenças nas direções tomadas pela dieta nas porções litorâneas norte, central e sul em tempos mais tardios, a primeira apresentando um aumento no consumo de recursos C3, a segunda apresentando a introdução ou aumento no consumo de recursos C4 e/ou a diminuição do consumo de recursos marinhos de alto nível trófico, e a terceira não apresentando qualquer mudança perceptível. É claro, ainda são poucos os sítios analisados e para uma confirmação dessas diferenças serão necessários mais estudos. O caráter recortado e multifacetado do litoral central, marcado por formações cristalinas que esbarram diretamente sobre o mar e diversas ilhas, enseadas e pequenas baías de fundo lodoso ou de mangue (Lago 1968) que, no caso da ilha de Santa Catarina, contrastam com as praias de mar aberto e costões rochosos situados no lado leste, deve ter desempenhado papel importante no desenrolar dos acontecimentos, inspirando determinadas práticas e contribuindo para a formação de modos genuinamente locais de viver o mundo. Outra característica importante do contexto de relações vividas pelas populações do litoral central, e que também deve ter atuado na formação de habitus e direcionado os processos de mudança, é indicada pela aparente descentralização do sistema local de sítios conchíferos. Enquanto no litoral norte e sul os sítios estavam dispostos no entorno de grandes corpos d’água – respectivamente a baía da Babitonga (Vieira 2008) e a paleolaguna de Santa Marta (Kneip 2004, Giannini et al. 2010) – que interligavam indivíduos e grupos dispersos em uma vasta área e centralizavam as relações, no litoral central, ou pelo menos na ilha de Santa Catarina, os sítios estavam dispostos no entorno de corpos d’água menores, como a laguna da Conceição no leste da ilha (Jockyman 2015), a paleolaguna da bacia do rio Ratones, no norte (Duarte 1981, Comerlato 2007), a paleolaguna da planície costeira da Armação do Sul, na porção sudoeste (Castilhos 1995) e, 258 possivelmente, na bacia do rio Tavares, situada na porção sudeste da ilha (Horn Filho e Livi 2012). Com uma distribuição espacial mais dispersa, o sistema de sítios conchíferos do litoral central seria, na verdade, composto por subsistemas menores, centralizados em si mesmos. Da mesma forma, as populações associadas a esses sítios estariam organizadas em agrupamentos menores independentes, porém interconectados por redes de relações diversas e vivências de mundo compartilhadas. Como indivíduos e grupos distintos respondem diferentemente aos desafios, oportunidades e riscos colocados pela prática, essa descentralização deve ter permitido uma maior diversidade de respostas frente aos acontecimentos, contribuindo para a resiliência do sistema vivido no litoral central (Leslie e McCabe 2013). Resiliência sendo entendida como a capacidade de um sistema em absorver perturbações e ainda assim persistir, mantendo as relações entre os diferentes elementos (Holling 1973), ou, de uma perspectiva mais flexível, reorganizando-se em meio à mudança de forma que seja possível a manutenção de aspectos essenciais de sua estrutura e composição (Walker e Salt 2012). Essa relação entre heterogeneidade de respostas e resiliência pode ser entendida também em termos de rigidez (Hegmon et al. 2008). Há uma associação entre o grau de rigidez dos sistemas e sua habilidade para a superação de perturbações, em que situações que causam limitação à flexibilidade, supressão das inovações e resistência à mudança acabam impedindo sociedades por vez bastante afluentes de realizar modificações necessárias para a sua manutenção. A coesão extrema pode ser um problema, e ignorar ou resistir a uma mudança é aumentar sua própria vulnerabilidade. Essas situações – ou armadilhas de rigidez – geralmente advêm de práticas repetitivas que reproduzem ou ampliam as estruturas e, conscientemente ou não, reprimem a diversidade e determinam o modo como os diferentes elementos devem relacionar-se; passam, portanto pelo habitus. No litoral central, a possível descentralização da rede de relações, somada a outros aspectos como o ambiente recortado e multifacetado e o menor tamanho da população – suposto a partir da pouca quantidade de sepultamentos por sítio, o que se inverte em tempos mais tardios – devem ter engendrado uma maior flexibilidade, abertura para a 259 mudança e, logo, um menor grau de rigidez. Nas porções litorâneas norte e sul, por outro lado, a coesão promovida pelos grandes corpos d’água que interconectavam toda a localidade, a maior monotonia das paisagens e a maior demografia devem ter resultado em maior rigidez. Podemos apreender esses conceitos provenientes da teoria de sistemas adaptativos complexos a partir da perspectiva dos regimes de historicidade, ou “uma das condições de possibilidade da produção de histórias” em que “de acordo com as relações respectivas do presente, do passado e do futuro, determinados tipos de história são possíveis e outros não” (Hartog 2013[2003]:39). Todas as sociedades são igualmente históricas, mas se diferem na forma como experimentam essa historicidade inerente. Sahlins faz uma distinção entre estruturas performativas e estruturas prescritivas, cada uma delas estando diferentemente aberta para a história, o que talvez possa ser aplicado às populações do litoral catarinense. As ordens performativas, segundo ele, “tendem a assimilar-se às circunstâncias contingentes”, enquanto as ordens prescritivas “tendem a assimilar as circunstâncias a elas mesmas, por um tipo de negação de seu caráter contingente e eventual” (Sahlins 2011[1985]:14). Inspirado pelo caso havaiano, ele acrescenta que em uma sociedade performativa, os acontecimentos circunstanciais são valorizados por seu afastamento com relação aos arranjos existentes no momento, podendo ser manipulados pelos agentes para a reconstrução das condições sociais; ao passo que em uma sociedade prescritiva nada é novo, sendo os acontecimentos valorizados por sua similaridade com o sistema constituído, o qual é projetado sobre eles, mesmo quando o que acontece é sem precedentes. Trata-se de experienciar a história como um meio interessante de ação sobre o presente e sobre o futuro ou, então, como desordem e ameaça às coisas como elas estão. O que está estreitamente relacionado à forma como se percebe a mudança enquanto fenômeno: como algo inevitável e bem-vindo, talvez até almejado, ou como algo evitável e indesejado por seu potencial para a revelação de contradições? Sahlins (2011[1985]) alerta, contudo, para o fato de que esses são apenas tipos ideais; modelos que podem, inclusive, ser encontrados em uma mesma sociedade – e em geral de fato o são, embora 260 um regime possa se sobressair ao outro – onde existem pontos estratégicos de ação histórica e outros pontos mais fechados. Não me surpreenderia se as populações do litoral norte e sul, sob a monumentalidade soberana dos sambaquis gigantescos, tivessem permanecido mais fiéis às coisas como elas eram. A forma como a população associada ao sítio Forte Marechal Luz (Bastos 2009) se manteve circunscrita em torno dela mesma ao longo do tempo, com pequena variação nos valores 87 Sr/86Sr, bem como a ausência de diferença na dieta dos indivíduos sepultados no sítio Jabuticabeira II (mais antigo) e Galheta IV (mais tardio) (Colonese et al. 2014), que apresentaram média semelhantes para os valores δ15N e δ13C, parecem apontar nesse sentido. Ainda, a continuidade na prática de acrescentar volume aos sítios mesmo após a alteração no material construtivo (Bendazzoli 2007, Nishida 2007, Villagran 2012) pode estar relacionada a um desejo de manutenção do mundo como lhes era conhecido: a tradição deveria continuar, e os gigantescos sambaquis, que outrora haviam desempenhado papel relevante no desenvolvimento dessas sociedades, podem, ao fim, ter sido suas próprias armadilhas de rigidez. Lembro aqui das contradições observadas por Shanks e Tilley (2006 [1982]) e Shennan (2006 [1982]) entre os princípios estruturais de coletividade e a estratificação social em sociedades do neolítico e da Idade do bronze europeia. Entendendo os sítios conchíferos como fruto de um esforço coletivo que deveria estar intimamente relacionado com o princípio de comunhão de recursos promovido pela centralidade espacial dos corpos lagunares, poderíamos supor que as sociedades relacionadas aos sítios conchíferos do litoral norte e sul, como integrantes de sistemas mais coesos e rigidamente centralizados nos grandes corpos d’água, tenham sofrido mais com a diminuição do nível do mar. O fechamento das paleolagunas deve ter desafiado a forma como essas sociedades se organizavam e a ideologia de coletividade então em voga que, mesmo em crise, continuou sendo alimentada pelas práticas de deposição de sedimento sobre os sítios, insistentemente, até que em dado momento deve ter se tornado insustentável; mas aí talvez fosse tarde demais para alterar o direcionamento dos desenrolares. Tudo isso, contudo, talvez faça mais sentido no contexto do litoral sul. Na porção litorânea norte a situação me parece mais nebulosa, sendo possível que lá a insistência na 261 continuidade tenha sido mais bem sucedida, ou pelo menos não tão drástica quanto no litoral sul, onde além da diminuição na quantidade de sítios houve redução assustadora no número de sepultamentos por sítio – lembrando que essa redução pode também significar que apenas indivíduos de determinadas posições sociais continuaram sendo sepultados de acordo com a tradição. A curva do crescimento negativo no número de sítios concomitantemente ativos no litoral norte e no litoral sul a partir de 2000 AP, observável nos gráficos apresentados no capítulo 2, em muito lembra a curva de diminuição na construção de novos monumentos que caracterizou o colapso dos Maias (Price e Burton 2011:196). Em ambos os casos, embora as frequências diminuam, a formação de novos sítios ou de novos horizontes sobre os sítios antigos não cessa, revelando uma presença humana provavelmente menor na área, porém, continuada. Tal similaridade é, no mínimo, interessante. Enquanto isso, no litoral central, a diminuição na presença de conchas e a passagem para sedimento mais escuro frequentemente se deu diretamente sobre o chão, com a formação de novos sítios libertos da ideia de monumentalidade. Esses novos sítios foram assentados em praias de águas tranquilas e ilhas, e em geral próximos aos sítios mais antigos; voltados para o mar, e não mais para os pequenos corpos d’água que deixaram de existir – com exceção da laguna da Conceição, que existe até os dias de hoje. A rede de relações se expandiu. A dieta mudou. As práticas mortuárias mudaram. Essas informações, no entanto, dizem respeito somente aos sítios do sul da ilha de Santa Catarina escavados por Rohr (1959, 1966, 1974; Rohr e Andreatta 1969) e aos sítios Laranjeiras II (Schmitz et al. 1993), Cabeçudas (Schmitz e Verardi 1996) e Porto do Rio Vermelho II (De Masi 2001), que são os únicos sítios tardios e com presença de sepultamentos que passaram por pesquisas sistemáticas. É de se esperar a existência de variações entre os processos de mudança dos diferentes subsistemas de sítios que compõem a paisagem do litoral central, mas, por enquanto, nada pode ser conjecturado nesse sentido, a não ser a possibilidade de que no entorno da laguna da Conceição os efeitos sociais da mudança paleogeográfica tenham sido menos drásticos, uma vez que o corpo d’água em questão continuou existindo. 262 Por fim, em uma tentativa de esclarecer como se deu a diferenciação do contexto arqueológico do litoral central com relação àqueles das porções litorâneas que lhe são adjacentes – como um desdobramento natural de toda a investigação e reflexão sobre a mudança no sítio Armação do Sul e nos demais sítios conchíferos catarinenses – eu diria que, possivelmente, no litoral central se instaurou um conjunto distinto de relações entre as populações litorâneas e os demais elementos humanos e não humanos constituintes de seu meio circundante. Um conjunto de relações que conferiu maior resiliência ao sistema, favorecido por fatores diversos e inter-relacionados como a organização social mais descentralizada que se configurou na região; a menor, porém crescente, demografia; o meio ambiente recortado e multifacetado. Assim, no desenrolamento contextual de acontecimentos locais, regionais e mesmo globais, o sistema local vivido no litoral central se reconfigurou em uma nova paisagem, ao passo que os sistemas vividos no litoral sul e, talvez, também no litoral norte, se desmantelaram. E isso é tudo o que o labirinto e suas veredas entrecortadas, por ora, nos revelam. Tudo ao mesmo tempo para eles e tudo ao mesmo tempo para nós; uma realidadepossibilidade tão simples, e ao mesmo tempo tão complexa. Presentes futuros e passados fantásticos se confundem num inacabamento fenomenológico que certamente não se encerra por aqui. 263 Referências bibliográficas AB’SÁBER, A. (2006). Brasil: paisagens de exceção. Cotia, Ateliê Editorial. 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Acervo documental do Museu do Homem do Sambaqui “João Alfredo Rohr”. 281 Anexo II: Planta baixa geral dos sepultamentos da área I Na primeira planta estão os sepultamentos que Schmitz et al. (1992) consideram como antigos. Na segunda estão aqueles que os autores citados consideram como novos. Desenho de Rohr. Fonte: Schmitz et al. (1992). 282