Coisas que mudam

Transcrição

Coisas que mudam
coisas que mudam
os processos de mudança nos sítios conchíferos catarinenses e um olhar isotópico
sobre o caso do sítio Armação do Sul, Florianópolis/SC
gabriela oppitz
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
MUSEU DE ARQUEOLOGIA E ETNOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ARQUEOLOGIA
Gabriela Oppitz
Coisas que mudam:
os processos de mudança nos sítios conchíferos catarinenses e um olhar isotópico
sobre o caso do sítio Armação do Sul, Florianópolis/SC
Dissertação apresentada ao Programa de
Pós-Graduação em Arqueologia do Museu
de
Arqueologia
e
Etnologia
da
Universidade de São Paulo para obtenção
do título de Mestre em Arqueologia.
Orientador: Prof. Dr. Paulo DeBlasis
Linha de pesquisa: Arqueologia e Identidade
* Versão revisada. A original se encontra na Biblioteca do MAE/USP.
São Paulo
2015
Agradecimentos
Nada como um mestrado para se descobrir cercada de pessoas incríveis. Não é que
eu já não soubesse, mas a passagem pelo mestrado torna tudo mais evidente, pois se
percebe que, sem essas pessoas incríveis, simplesmente não haveria mestrado,
dissertação, ou qualquer outra coisa similar que justificasse estes agradecimentos. O que
me resta, então, é agradecer! Agradecer por terem possibilitado que eu chegasse a esse
momento retrospectivo final de reconhecimento e gratidão.
Começo pelo meu orientador, Paulé, agradecendo pela confiança depositada em
mim, pelas conversas inspiradoras e insights que vinham sempre no momento certo.
Também pela agilidade na resposta de e-mails e eficiência na resolução de dúvidas e
angústias, pelas sugestões que foram fundamentais para que a dissertação tomasse a
forma que tomou e por todo o apoio na submissão, envio das amostras para o Beta,
pagamentos e prestação de contas do projeto Fapesp – fica aqui, também, meu
agradecimento ao Tiago, por ter contribuído com a sua mágica para que tudo isso
acontecesse! Enfim, Paulé, obrigada por toda atenção e carinho que, aliás, vêm desde os
tempos do TCC.
Aí passo para duas pessoas muito especiais que são também autoras desta
dissertação, Murilo e Lú. Afora a amizade e apoio moral, ambas tiveram participação
enorme tanto na concepção do projeto quanto na sua concretização. Murilo, obrigada por
ter me introduzido ao mundo dos isótopos, pelos muitos ensinamentos e pela disposição
em me acompanhar pessoalmente em todo o processo de preparação das amostras, em
São Paulo e no Rio. Lú, obrigada pela ajuda na escolha do sítio Armação do Sul como
estudo de caso, pelos ensinamentos e por ter realizado a coleta das amostras comigo
naquelas semanas em que o sótão do colégio escaldava sob o sol do verão e tu deverias
estar na praia de férias. Só vocês sabem a importância que tiveram para que tudo fosse
possível. Espero um dia poder retribuir. Valeu demais.
i
Agradeço à professora Veridiana por ter topado integrar o projeto Fapesp e por ter
aberto as portas do Centro de Pesquisas Geocronológicas (CPGeo/IGc/USP) para mim,
onde realizei as análises isotópicas de estrôncio. Obrigada pelo interesse demonstrado
desde o nosso primeiro contato, por ter estado sempre pronta para ajudar no que fosse
preciso e pelas sugestões valiosas feitas para o texto final da dissertação.
Agradeço também à professora Andrea por ter aceitado prontamente o convite
para me co-orientar e integrar o projeto Fapesp, bem como pela leitura do texto,
sugestões e conversas às vésperas da atribulada entrega da dissertação.
Aproveito para deixar registrada minha enorme gratidão a toda equipe do
CPGeo/IGc/USP, em especial à Lili, Ivone, Helen e Rodrigo, pela recepção maravilhosa, pelo
apoio na realização das análises, pelos aprendizados diversos e por todo o carinho. Lili,
obrigada por ser sempre tão querida e atenciosa! Um grande abraço a todos! Ah, obrigada
também ao Gustavo pelo drill.
Ainda com relação às análises isotópicas de estrôncio, agradeço à equipe do
Laboratório de Sistemas Cársticos (IGc/USP) pelo espaço que me foi cedido para a
preparação das amostras, em especial ao Christian e ao Valdir por toda a atenção. Valdir,
obrigada também pelas trocas de ideias paleoclimáticas, bem como pela ajuda na
elaboração e posterior revisão do trecho da dissertação em que falo sobre paleoclima.
Com relação às análises isotópicas de nitrogênio e carbono, agradeço à equipe do
Laboratório de Ecologia Isotópica (CENA/USP) pelo apoio técnico e pela recepção, em especial
ao professor Plínio, à Roberta, à Fabiana, à Maria Antônia e ao professor Marcelo.
Professor Plínio, obrigada por possibilitar que as análises fossem realizadas no CENA, pela
recepção em Piracicaba, pelas caronas e por ter me livrado de ter que pagar por um hotel.
Roberta, obrigada por abrir as portas do teu lar para mim e me permitir conhecer a Letícia e o
Nick! Foi um prazer passar aquela semana com vocês. Fabiana, obrigada por toda a ajuda e
pela paciência quando cometi todos aqueles erros de principiante! Valeu também pelo apoio
pós-análises via whatsapp que, bem, tu sabes, foi minha salvação! Por fim, agradeço ao
professor Marcelo pela pronta ajuda na interpretação dos dados e por ter descoberto o fator
de correção dos dados que resolveu o problema das razões C:N que estavam fora da faixa de
variação esperada.
ii
Nesse ensejo, ficam também aqui meus sinceros agradecimentos à equipe do
Laboratório de Paleoparasitologia (ENSP/FIOCRUZ) por ter aceitado esta intrusa
destruidora de placas de petri em seu espaço durante duas semanas, para preparação das
amostras. Em especial, agradeço ao querido professor Adauto, sempre muito atencioso, e
às meninas Isabel, Xênia, Morgana, Mônica e Bruna pela simpatia e recepção maravilhosa,
bem como pela ajuda nas trocas de ácidos e tudo o mais nos dias em que o tempo ficou
curto!
Não posso deixar de mencionar a Vânia, que dedicou uma tarde a me ajudar com
seus conhecimentos zooarqueológicos na seleção das amostras de fauna marinha a serem
analisadas; tampouco o Anderson, colega do MAE, que ajudou na identificação de algumas
espécies. Valeu!
E, por falar em MAE, fica aqui minha lembrança aos colegas e aos professores do
programa de pós-graduação em Arqueologia, bem como aos demais funcionários do
Museu, em especial o Helio, pela simpatia de sempre e boas conversas, ao Cleber, à
Regina, à Aline e à Karen, pela ajuda e eficiência em todos os momentos decisivos. Aliás,
peço desculpas pelas correrias e confusões de última hora!
Agradeço ainda à FAPESP pelo deferimento do projeto “Armação do Sul: velhas
questões, novas abordagens” e auxílio concedido, bem como à CAPES pela bolsa de
mestrado.
E, claro, minha vida em São Paulo não teria sido a mesma coisa sem ti, Mari!
Obrigada pela amizade, pela hospitalidade em tantas ocasiões, pela ajuda na busca por um
apartamento, por me ensinar a viver a metrópole paulistana e a USP, pelos passeios
agradabilíssimos, filminhos, showzinhos e chocolates quentes – e isso tudo serve para a
Aglaê também! Nesse sentido, agradeço ainda à Rejane pela amizade e longas conversas
de um ano e meio dividindo apartamento. Passou rápido demais.
Quanto aos amigos da UFSC, Bia, Kal, Lucas, Isa, Angela, Fê, Bruno, Garganta e
Letícia – que obviamente não estão em ordem de importância porque seria simplesmente
impossível ranqueá-los assim – acho que nem preciso dizer o quanto sou grata pela
amizade, incansável apoio moral e pensamentos positivos. Vocês são incríveis, e isso é
tudo o que eu posso dizer.
iii
Enquanto isso, no meu mundo florianopolitano não arqueológico, outras pessoas
incríveis estavam tornando esta dissertação possível.
Entre elas estão meus pais, Rossana e Rodrigo, responsáveis pela minha disciplina e
dedicação aos estudos. Agradeço por terem sempre apoiado as decisões que tomei,
torcendo para que eu fosse bem sucedida mesmo quando isso acabaria me levando
embora para outra cidade. Mamis, obrigada por viver as coisas junto comigo por meio da
constante preocupação e interesse, mesmo à distância! Obrigada também pelos almoços
expressos congelados, nos momentos finais de loucura e enclausuramento.
Estão ainda a minha irmã, Rafaela – gracias, sis – e as amigas Letícia e Tati. Nossos
encontros frequentes foram fundamentais para que eu espairecesse de tempos em
tempos, mudando o foco dos pensamentos. Letícia, obrigada demais por toda a ajuda com
a bibliografia às vésperas da entrega da dissertação. Eu não sei se tu consegues sacar o
quão importante foi a tua participação, então eu vou enfatizar: sério mesmo, teria sido
impossível sem ti!
Finalizo agradecendo ao Lucas, meu bem, que inevitavelmente foi o mais afetado
por esses três anos de mestrado. Entendo que os períodos mais críticos tenham sido
minha estada em São Paulo e os últimos seis meses que antecederam a defesa, logo,
agradeço imensamente por teres conseguido encontrar forças para me apoiar mesmo em
situações que para ti também foram tão – e quiçá mais – adversas. Posso dizer que foram
as pausas para seriados e lanchinhos, as porcarias de supermercado, as isenções de lavar
louça e, claro, a Frida, que mantiveram minha sanidade mental quando, nesses últimos
meses, a sanidade física já havia ido para o saco. Obrigada ainda por ler e revisar todas as
muitas páginas desta dissertação nos instantes finais, além de ajudar pacientemente na
preparação da apresentação, para que chegasse aos 15 minutos permitidos. Obrigada do
início ao fim.
iv
Resumo
O registro arqueológico associado aos sítios conchíferos do litoral catarinense
aponta para uma intensificação nos processos de mudança a partir de 2000 anos AP,
marcada por acontecimentos diversos como a diminuição no número de sítios, a
diminuição no uso de conchas em sua formação, o aparecimento da cerâmica, o aumento
da violência e a alteração do padrão de residência pós-marital. Com o objetivo de
compreender melhor esses processos de mudança e entendendo o sítio Armação do Sul
(Florianópolis/SC) como elemento chave para essa compreensão, foram realizadas análises
isotópicas de estrôncio (87Sr/86Sr), carbono (δ13C) e nitrogênio (δ15N) nos indivíduos que
nele se encontram sepultados, juntamente com a análise das práticas mortuárias
associadas a esses sepultamentos e o estabelecimento de uma cronologia que associa
informação estratigráfica com datações radiocarbônicas obtidas para diversos esqueletos.
A partir de uma perspectiva de longa duração centrada na prática e do reconhecimento da
multidimensionalidade inerente aos processos de mudança, os dados gerados foram
entendidos contextualmente na curta, média e longa duração, e em escala de sítio
(Armação do Sul), local (litoral central) e regional (litoral catarinense), em busca de uma
tensão positiva entre indivíduo e estrutura, mudança e estabilidade, sincronia e diacronia.
Ao fim, concluiu-se que os processos de mudança se desenrolaram diferentemente em
porções litorâneas distintas do litoral catarinense e que, no caso do sítio Armação do Sul,
as mudanças observadas estão relacionadas a um quadro de acontecimentos interrelacionados que envolveu: maior circulação e incorporação de indivíduos de diferentes
partes do litoral central; mudança na dieta dos indivíduos do sexo masculino em direção ao
consumo de recursos C4 ou à diminuição no consumo de recursos marinhos de alto nível
trófico; desenvolvimento de uma hierarquia social mais claramente observável no registro
arqueológico e, possivelmente, hereditária; aumento da violência; inovações em alguns
elementos que compõem as práticas mortuárias; mudança no sedimento que compõe o
sítio; adensamento populacional ou maior quantidade de indivíduos sendo sepultados no
mesmo local; transição para um padrão de residência virilocal; e alterações paleoclimáticas
e paleogeográficas. Foram ainda feitas algumas breves contribuições para um melhor
entendimento das peculiaridades do panorama arqueológico do litoral central, com o
auxílio de conceitos oriundos da teoria de sistemas adaptativos complexos e sob a
perspectiva dos regimes de historicidade.
Palavras-chave:
Isótopos estáveis. Práticas mortuárias. Mudança. Sítios conchíferos. Litoral catarinense.
v
Abstract
The archaeological record associated with shell mounds in the Santa Catarina coast
points to an intensification in the processes of change starting at 2000 years BP, marked by
various events such as the decrease in the number of sites, the reduction in the use of
shells in their formation, the appearance of ceramics, increased violence and alterations of
the pattern of post-marital residence. In order to better comprehend these processes of
change and understanding the Armação do Sul site (Florianópolis/SC) as a key element to
said comprehension, we have performed isotopic analyses based on strontium (87Sr/86Sr),
carbon (δ13C) and nitrogen (δ15N) in the individuals that are buried there, along with the
analysis of the mortuary practices associated with those burials, and the establishment of a
chronology that associates stratigraphic information with radiocarbon dating obtained for
several skeletons. From a long-term perspective focused on practice and recognition of the
multidimensionality inherent to change processes, the resulting data were observed
contextually in short, medium and long terms, and in site (Armação do Sul), local (central
coast) and regional (Santa Catarina coast) scales, in search for a positive tension between
individual and structure, change and stability, synchrony and diachrony. Finally, we have
concluded that the change processes unfolded differently in distinct coastal portions in the
Santa Catarina coast and that, in the case of the Armação do Sul site, observed changes are
related to a setting of interrelated events which involved: increased circulation and
incorporation of individuals from different parts of the central coast; change in the diet of
male individuals towards consumption of C4 resources or the decrease in the consumption
of marine resources of high trophic level; development of a social hierarchy more clearly
observable in the archaeological records and, possibly, hereditary; increased violence;
innovations in some elements which compose the mortuary practices; change in the
depositional pattern; increase in the population density or in the number of individuals
buried in the same place; transition to a pattern of virilocal residence; and climate and
geographic alterations. We have also made some briefs contributions towards a better
understanding of the peculiarities of the archaeological panorama in the central coast,
with the aid of concepts from the theory of complex adaptive systems and within a
perspective of the regimes of historicity.
Keywords:
Stable isotopes. Mortuary practices. Change. Shell mounds. Santa Catarina coast.
vi
Sumário
Agradecimentos
I
Resumo
V
Abstract
VI
Introdução, objetivos e hipóteses
1
PARTE I:
Entre arqueólogos e culturas mutantes
9
1
PARA COMEÇAR
10
1.1
O litoral central
10
1.2
O sítio Armação do Sul
15
1.3
Sítios conchíferos: uma perspectiva de longa duração
31
2
COISAS QUE MUDAM: mudanças regionais e mudanças locais
nos sítios conchíferos catarinenses
36
2.1
Tecnologia
37
2.2
Padrão deposicional
40
2.3
Contato e mobilidade
43
2.4
Quantidade de sítios e cronologia
46
2.5
Violência
52
2.6
Paleogenética
53
2.7
Padrão de residência pós-marital
56
2.8
Paleodieta
57
3
INTERPRETANDO A MUDANÇA
63
3.1
Percepções de mudança ontem e hoje
65
3.2
Longa duração, razões práticas e multidimensionalidade
78
PARTE II:
Criando uma textura densa de dados
86
4
UM OLHAR PARA O INVISÍVEL: análises isotópicas na arqueologia
87
4.1
Radiocarbono ( C)
4.2
Isótopos de nitrogênio (δ N) e carbono (δ C)
4.3
Isótopos de estrôncio ( Sr/ Sr)
5
CRONOLOGIA E PRÁTICAS RITUAIS
5.1
Datações radiocarbônicas
14
88
15
87
13
91
86
100
106
106
5.1.1
Materiais e métodos
106
5.1.2
Resultados
107
5.1.3
Discussão
113
5.2
Análise dos contextos funerários
118
5.2.1
Materiais e métodos
122
5.2.2
Resultados da análise espacial e discussão
129
5.2.3
Resultados da análise dos acompanhamentos funerários e discussão
165
6
PALEODIETA E MOBILIDADE
187
6.1
Análises isotópicas de nitrogênio (δ N) e carbono (δ C)
15
13
187
6.1.1
Materiais e métodos
187
6.1.2
Resultados
189
6.1.3
Discussão
211
6.2
87
86
Análise de isótopos de estrôncio ( Sr/ Sr)
220
7
6.2.1
Materiais e métodos
220
6.2.2
A formação geológica local
223
6.2.3
Resultados
224
6.2.4
Discussão
241
FINALIZANDO: TUDO AO MESMO TEMPO AGORA
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
250
264
ANEXO I: Exemplo de uma das fichas de registro de sepultamentos
preenchidas por Rohr e Andreatta
ANEXO II: Planta baixa geral dos sepultamentos da área I
281
282
Índice de figuras
Figura 1: Delimitação do litoral central com detalhe da Ilha de Santa Catarina, da barra do
rio Itapocu até o município de Garopaba........................................................................... 10
Figura 2: Localização do sítio Armação do Sul na Ilha de Santa Catarina e detalhe da planície
costeira da praia da Armação, onde ele se situa. .............................................................. 15
Figura 3: Vista da área do sítio Armação do Sul a partir da ponta das Campanhas (sentido
leste-oeste) .......................................................................................................................... 16
Figura 4: O entorno do sítio Armação do Sul. ......................................................................... 17
Figura 10: Sítio de inscrição rupestre situado no costão entre a praia de Matadeiro e a
Lagoinha do Leste. Foto de Rodrigo Dalmolin. .................................................................. 19
Figura 5: Vista geral da área onde se situa o sítio conchífero Ponta da Armação, na ponta
das Campanhas. Foto da autora. ........................................................................................ 19
Figura 6: Bloco de rocha com inscrição rupestre, retirado da ponta das Campanhas. ........ 19
Figura 7: Seixos e blocos de rocha ao longo da ponta das Campanhas, onde há uma enorme
variedade de amoladores-polidores fixos. ......................................................................... 19
Figura 8: Detalhe de dois suportes situados no terreno da pousada Maré de Lua .............. 19
Figura 9: Estruturas remanescentes da armação baleeira. Nota-se a presença de um bloco
com amolador-polidor fixo côncavo-convexo. Foto de Bueno et al. (2015). ................... 19
Figura 11: Evolução paleogeográfica da planície costeira da praia da Armação. Adaptado de
Castilhos (1995). .................................................................................................................. 20
Figura 12: Croqui da área escavada do sítio Armação do Sul. Fonte: Schmitz et al. (1992). 21
Figura 13: Perfil estratigráfico do sítio da Armação do Sul. ................................................... 23
Figura 14: A escavação do sítio Armação do Sul ..................................................................... 30
Figura 15: Ilustração do processo de decaimento radioativo beta nos isótopos de carbono14, de acordo com uma meia-vida de 5730 ± 40. Fonte: Goffer (2007: 274). ................. 89
Figura 16: Representação da forma como estão distribuídos os valores δ15N e δ13C na
cadeia alimentar. Fonte: Price e Burton (2011: 203). ....................................................... 95
Figura 17: Representação da forma como se dá o fracionamento dos isótopos de carbono
.............................................................................................................................................. 96
Figuras 18a e 18b: Valores δ15N e δ13C obtidos a partir do colágeno de grupos humanos
históricos e pré-históricos. .................................................................................................. 99
Figura 19: Localização do esmalte dentário (enamel) na estrutura do dente. Fonte: Hillson
(2005: 9). ............................................................................................................................ 101
Figura 20: Diagrama representando os fatores que podem interferir na assinatura isotópica
de uma amostra. Fonte: Bentley (2006). ......................................................................... 103
Figura 21: Distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul,
acompanhados de suas respectivas datações (em anos cal AP)..................................... 112
Figura 22: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul.
Layer de 3065 a 2880 anos cal AP. ................................................................................... 130
Figura 23: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul.
Layer de 2955 a 2750 anos cal AP. ................................................................................... 131
Figura 24: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul.
Layer de 2790 a 2720 anos cal AP. ................................................................................... 132
Figura 25: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul.
Layer de 2760 a 2720 anos cal AP. ................................................................................... 133
Figura 26: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul.
Layer de 2750 a 2620 anos cal AP. ................................................................................... 134
Figura 27: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul.
Layer de 2725 a 2355 anos cal AP. ................................................................................... 135
Figura 28: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul.
Layer de 2490 a 2345 anos cal AP. ................................................................................... 136
Figura 29: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul.
Layer de 2360 a 2315 anos cal AP. ................................................................................... 137
Figura 30: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul.
Layer de 2350 a 2210 anos cal AP. ................................................................................... 138
Figura 31: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul.
Layer de 2345 a 2155 anos cal AP. ................................................................................... 139
Figura 32: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul.
Layer de 2300 a 2020 anos cal AP. ................................................................................... 140
Figura 33: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul.
Layer de 1575 a 1360 anos cal AP. ................................................................................... 141
Figura 34: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul.
Layer de 1430 a 1315 anos cal AP. ................................................................................... 142
Figura 35: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul.
Layer de 1315 a 1275 anos cal AP. ................................................................................... 143
Figura 36: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 3065 a 2880
anos cal AP ......................................................................................................................... 146
Figura 37: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2955 a 2750
anos cal AP ......................................................................................................................... 147
Figura 38: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2790 a 2720
anos cal AP ......................................................................................................................... 148
Figura 39: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2750 a 2620
anos cal AP ......................................................................................................................... 149
Figura 40: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2725 a 2355
anos cal AP ......................................................................................................................... 150
Figura 41: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2490 a 2345
anos cal AP ......................................................................................................................... 151
Figura 42: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2360 a 2315
anos cal AP ......................................................................................................................... 152
Figura 43: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2350 a 2210
anos cal AP ......................................................................................................................... 153
Figura 44: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2345 a 2155
anos cal AP ......................................................................................................................... 154
Figura 45: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2330 a 2020
anos cal AP ......................................................................................................................... 155
Figura 46: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 1575 a 1360
anos cal AP ......................................................................................................................... 156
Figura 47: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 1430 a 1315
anos cal AP ......................................................................................................................... 157
Figura 48: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 1315 a 1275
anos cal AP ......................................................................................................................... 158
Figura 49: Planta baixa geral dos sepultamentos datados do sítio Armação do Sul, de 3065
a 1275 anos cal AP. ............................................................................................................ 159
Figura 50: Representação dos diferentes agrupamentos de sepultamentos do período 1 do
sítio Armação do Sul .......................................................................................................... 161
Figura 51: Croqui da área escavada, com localização dos sepultamentos. Adaptado de
Schmitz et al. (1992). ......................................................................................................... 164
Figura 52: Desenvolvimento dentário humano, em estágios de um ano. Fonte: Hillson
(2005[1986]: 224). ............................................................................................................. 221
Figura 53: Mapa geológico de Santa Catarina. Litoral central demarcado. Fonte: Silva e
Bortoluzzi (1987). .............................................................................................................. 224
Índice de gráficos
Gráfico 1: Histograma das datações disponíveis para os sítios conchíferos catarinenses. .. 47
Gráficos 2a e 2b: Representações das flutuações no número de sítios conchíferos ativos nas
diferentes porções litorâneas de Santa Catarina ao longo do tempo. ............................. 49
Gráfico 3: Histograma representando a frequência das datações radiocarbônicas (anos cal
AP) do sítio Armação do Sul. ............................................................................................. 109
Gráfico 4: Gráfico de dispersão das idades obtidas para o sítio da Armação do Sul e da
Tapera, representadas pelos intervalos de calibração. ................................................... 110
Gráfico 5: Ausência e presença de ocre entre crianças, adultos femininos e adultos
maduros dos períodos 1 e 2.............................................................................................. 166
Gráfico 6: Ausência e presença de adornos entre crianças, adultos femininos e adultos
maduros dos períodos 1 e 2.............................................................................................. 166
Gráfico 7: Ausência e presença de pontas ósseas entre crianças, adultos femininos e
adultos maduros dos períodos 1 e 2. ............................................................................... 166
Gráfico 8: Ausência e presença de artefatos fusiformes entre crianças, adultos femininos e
adultos maduros dos períodos 1 e 2. ............................................................................... 166
Gráfico 9: Ausência e presença de machados e/ou lâminas entre crianças, adultos
femininos e adultos maduros dos períodos 1 e 2. ........................................................... 167
Gráfico 10: Ausência e presença de percutores ou seixos com marca de uso entre crianças,
adultos femininos e adultos maduros dos períodos 1 e 2. ............................................. 167
Gráfico 11: Ausência e presença de lascas entre crianças, adultos femininos e adultos
maduros dos períodos 1 e 2.............................................................................................. 167
Gráfico 12: Ausência e presença de artefatos não identificados e/ou fragmentos de rocha
com alteração antrópica entre crianças, adultos femininos e adultos maduros dos
períodos 1 e 2. ................................................................................................................... 167
Gráfico 13: Ausência e presença de artefatos raros (ponta em quartzo e bastão de
diabásio) entre crianças, adultos femininos e adultos maduros dos períodos 1 e 2. .... 168
Gráfico 14: Ausência e presença de conchas entre crianças, adultos femininos e adultos
maduros dos períodos 1 e 2.............................................................................................. 168
Gráfico 15: Ausência e presença de ossos de fauna entre crianças, adultos femininos e
adultos maduros dos períodos 1 e 2. ............................................................................... 168
Gráfico 16: Ausência e presença de seixos e/ou fragmentos de rocha entre crianças,
adultos femininos e adultos maduros dos períodos 1 e 2. ............................................. 168
Gráfico 17: Histograma do número mínimo de acompanhamentos funerários entre
sepultamentos de indivíduos do sexo masculino, do sexo feminino e crianças. ........... 177
Gráfico 18: Distribuição do número mínimo de acompanhamentos funerários dos
indivíduos do sítio Armação do Sul. .................................................................................. 177
Gráfico 19: Representação da distribuição dos diferentes números de acompanhamentos
funerários entre indivíduos adultos femininos, adultos masculinos e crianças. ............ 179
Gráfico 20: Distribuição do número mínimo de acompanhamentos dos indivíduos do
período 1 e do período 2, com marcação daqueles que contam com lâminas de
machado ou outro tipo de lâmina. ................................................................................... 180
Gráfico 21: Distribuição dos valores δ15N e δ13C das amostras humanas e faunísticas
analisadas do sítio Armação do Sul, com inserção de dados de outros autores (Bender
1968; Smith e Epstein 1971; Schoeninger e Moore 1992; De Masi 2001, 2009; Colonese
et al. 2014). ........................................................................................................................ 193
Gráficos 22a e 22b: Histograma dos valores δ13C e δ15N dos indivíduos analisados do sítio
Armação do Sul. ................................................................................................................. 194
Gráfico 23: Dispersão dos valores δ13C e δ15N entre adultos do sexo feminino, masculino e
crianças (sem determinação de sexo) do sítio Armação do Sul, com identificação dos
sepultamentos 2, 22, 39, 52 e 69. .................................................................................... 195
Gráficos 24a e 24b: Boxplot dos valores δ13C e δ15N do grupo feminino e masculino do sítio
Armação do Sul. ................................................................................................................. 196
Gráfico 25: Dispersão dos valores δ13C e δ15N entre adultos do sexo feminino, adultos do
sexo masculino e crianças (sem determinação de sexo) do sítio Armação do Sul, com
identificação dos sepultamentos. ..................................................................................... 198
Gráficos 26a e 26b: Correlação entre os valores δ13C e δ15N e as idades radiocarbônicas dos
indivíduos do sítio Armação do Sul. .................................................................................. 199
Gráficos 27a, 27b e 27c: Dispersão dos valores de δ13C e de δ15N nas diferentes faixas
temporais de ocupação do sítio Armação do Sul............................................................. 200
Gráficos 28a e 28b: Correlação entre os valores δ13C e δ15N nos diferentes períodos de
ocupação do sítio Armação do Sul.................................................................................... 202
Gráfico 29: Dispersão dos valores δ13C e δ15N obtidos para os sítios Tapera (Bastos 2014),
Porto do Rio Vermelho I, Porto do Rio Vermelho II, Canto da Lagoa I (De Masi 2001) e
Armação do Sul. ................................................................................................................. 204
Gráfico 30: Dispersão dos valores δ13C e δ15N obtidos para os sítios Tapera (Bastos 2014),
Porto do Rio Vermelho I, Porto do Rio Vermelho II, Canto da Lagoa I (De Masi 2001) e
Armação do Sul, juntamente com suas correlações. ....................................................... 205
Gráfico 31: Dispersão dos valores δ13C e δ15N obtidos para os indivíduos analisados dos
sítios do litoral central [Tapera (Bastos 2014), Porto do Rio Vermelho I, Porto do Rio
Vermelho II, Canto da Lagoa I (De Masi 2001) e Armação do Sul] e do litoral norte [Forte
Marechal Luz (Bastos 2014)]. ............................................................................................ 208
Gráfico 32: Dispersão das médias e representação da direção da mudança ao longo do
tempo nos valores δ13C e δ15N dos sítios do litoral central [Tapera (Bastos 2014), Porto
do Rio Vermelho II (De Masi 2001) e Armação do Sul], do litoral norte [Forte Marechal
Luz (Bastos 2014)] e do litoral sul [Jabuticabeira II e Galheta IV (Colonese et al. 2014)].
............................................................................................................................................ 210
Gráfico 33: Histograma das razões isotópicas ⁸⁷Sr/⁸⁶Sr presentes no esmalte dentário dos
indivíduos analisados do sítio Armação do Sul. ............................................................... 226
Gráfico 34: Boxplot representando as razões isotópicas ⁸⁷Sr/⁸⁶Sr presentes no esmalte
dentário dos indivíduos analisados do sítio da Armação do Sul. .................................... 227
Gráfico 35: Gráfico de probabilidade normal dos valores isotópicos ⁸⁷Sr/⁸⁶Sr obtidos para a
população do sítio Armação do Sul, com exclusão do sepultamento 2.. ....................... 228
Gráfico 36: Gráfico de dispersão dos valores isotópicos 87Sr/86Sr obtidos para a fauna e os
indivíduos analisados do sítio Armação do Sul.. .............................................................. 230
Gráfico 37: Gráfico representando a correlação entre a razões
87
Sr/86Sr e as datações
radiocarbônicas. ................................................................................................................ 232
Gráfico 38: Representação da dispersão dos valores 87Sr/86Sr nos diferentes momentos de
ocupação do sítio. .............................................................................................................. 233
Gráfico 39: Boxplot das razões isotópicas 87Sr/86Sr obtidas para os indivíduos pertencentes
ao período 1 e ao período 2. ............................................................................................. 234
87
Gráfico 40: Gráfico de dispersão dos valores
Sr/86Sr dos indivíduos do sexo feminino e
masculino. .......................................................................................................................... 235
87
Gráfico 41: Gráfico de dispersão dos valores
Sr/86Sr dos indivíduos do sexo feminino e
masculino pertencentes ao período 1 (sepultados na areia marrom e/ou datado entre
3100 e 2500 AP) e ao período 2 (sepultados na terra preta e/ou datado entre 2500 e
1200 AP). ............................................................................................................................ 236
Gráfico 42: Gráfico de dispersão dos valores 87Sr/86Sr das crianças, adultos jovens, adultos e
adultos maduros do sítio Armação do Sul. ....................................................................... 237
Gráfico 43: Boxplot das razões isotópicas
87
Sr/86Sr obtidas para os indivíduos dos sexo
feminino e masculino analisados dos sítios Tapera (Bastos 2014) e Armação do Sul. .. 238
Gráfico 44: Gráfico de dispersão dos valores
87
Sr/86Sr dos indivíduos analisados do sítio
Armação do Sul, Tapera (Bastos 2014) e Forte Marechal Luz (Bastos 2009)................. 239
Gráfico 45: Boxplot dos valores 87Sr/86Sr dos indivíduos analisados do sítio Armação do Sul,
Tapera (Bastos 2014) e Forte Marechal Luz (Bastos 2009). ............................................ 240
Índice de Tabelas
Tabela 1: Datações radiocarbônicas dos indivíduos sepultados no sítio Armação do Sul .. 108
Tabela 2: Lista das variáveis utilizadas na análise das práticas mortuárias do sítio Armação
do Sul. ................................................................................................................................. 127
Tabela 3: Resultados da análise dos valores δ15N e δ13C dos indivíduos analisados do sítio
Armação do Sul. ................................................................................................................. 190
Tabela 4: Resultados da análise dos valores δ15N e δ13C dos indivíduos analisados do sítio
Armação do Sul. ................................................................................................................. 191
Tabela 5: Média dos valores δ13C e δ15N obtidos para os sítios Tapera (Bastos 2014), Porto
do Rio Vermelho II (De Masi 2001) e Armação do Sul, do litoral central; Forte Marechal
Luz (Bastos 2014), do litoral norte; e Jabuticabeira II e Galheta IV (Colonese et al. 2014),
do litoral sul. ...................................................................................................................... 209
Tabela 6: Resultados da análise das razões isotópicas ⁸⁷Sr/⁸⁶Sr dos indivíduos analisados do
sítio Armação do Sul. ......................................................................................................... 225
Tabela 7: Resultado da análise das razões isotópicas ⁸⁷Sr/⁸⁶Sr da fauna analisada do sítio
Armação do Sul. ................................................................................................................. 229
Índice de Quadros
Quadro 1: Padrões de uso dos diferentes tipos de acompanhamentos funerários e
diferentes quantidades entre indivíduos adultos femininos, masculinos e crianças dos
períodos 1 e 2. ................................................................................................................... 181
Introdução, objetivos e hipóteses
Se pensado em termos cronológicos, o processo de ocupação pré-colonial do litoral
de Santa Catarina é bastante semelhante para as porções litorâneas norte (entendida aqui
como a região da baía da Babitonga), central (Ilha de Santa Catarina, ilhas adjacentes e
continente próximo) e sul (entendida aqui como a região de Laguna, Tubarão e Jaguaruna);
e esta semelhança cronológica vem acompanhada por alguns fenômenos que são
recorrentes ao longo da costa catarinense.
Por volta de 2.000 e 1.500 A.P., ocorre uma mudança aparentemente repentina
nos padrões deposicionais de diversos sambaquis, período em que passam a ser formados
por um sedimento escuro com grande quantidade de matéria orgânica como carvão e
ossos de peixes. No caso do sítio Jabuticabeira II – que até o momento foi o mais
detalhadamente estudado – apesar da variação composicional, nesta camada escura
mantêm-se os processos construtivos associados às estruturas funerárias, bem como as
características das indústrias lítica e óssea (DeBlasis et al. 2007, Nishida 2007, Bendazzoli
2007, Villagran 2008, DeBlasis e Gaspar 2008/2009). No momento seguinte, a partir de
1.500 A.P., começa a aparecer cerâmica nos horizontes superficiais de alguns sambaquis e
em sítios conchíferos rasos, cerâmica esta que costuma ser atribuída a grupos da família
linguística Jê e que vem acompanhada por algumas mudanças em conteúdo e estratigrafia
que, contudo, não parecem constituir uma ruptura ou mudança estrutural absoluta.
Embora tal sintonia cronológica aponte para um único e grande processo de
ocupação para o litoral catarinense inteiro, um olhar mais atento sobre os contextos
arqueológicos das três porções litorâneas permite entrever diferenças e particularidades
que levam à ideia de processos de ocupação distintos, porém condicionados pelos mesmos
eventos primordiais. Processos de ocupação que se interseccionam em determinados
1
pontos – ou nós – no tempo e no espaço, porém que se desenrolam de forma desigual
quanto à direção, intensidade, atores envolvidos e outros elementos, diferenciando-se
para, em longo prazo, diferenciar também cada um dos contextos e suas texturas.
Este processo de diferenciação, no entanto, parece ter decorrido de forma mais
intensa no litoral central, onde o panorama arqueológico pré-colonial atualmente
conhecido apresenta-se mais acentuadamente peculiar se comparado àquele conhecido
para as porções litorâneas que lhe são adjacentes ao norte e ao sul. Tal peculiaridade é
denunciada por aspectos como as menores dimensões dos sambaquis (Oppitz 2011); a
maior ocorrência de sítios conchíferos com presença de cerâmica (Bandeira 2004, Fossari
2004, Farias e Kneip 2010); a maior ocorrência de oficinas líticas (CNSA/IPHAN); e,
sobretudo, a ocorrência de inscrições rupestres, especificidade do litoral central de Santa
Catarina no contexto litorâneo nacional (Comerlato 2005).
O sítio Armação do Sul (Florianópolis/SC), que é estudado nesta dissertação, não
apresenta cerâmica, mas conta com pouca quantidade de conchas em sua composição e
apresenta uma descontinuidade em sua estratigrafia que lembra – não necessariamente
corresponde – esta mudança no padrão deposicional dos sambaquis catarinenses, com
passagem para terra preta e manutenção das características das indústrias lítica e óssea. O
mesmo não acontece, porém, com as práticas mortuárias, que mudam ao longo do tempo,
passando de sepultamentos envoltos em ocre para sepultamentos sem ocre e alterações
em outros elementos de acompanhamento, como será demonstrado aqui. Esta
descontinuidade nas práticas mortuárias confere peculiaridade ao sítio tanto num
contexto regional quanto local, peculiaridade que se intensifica ainda mais se atentarmos
às suas outras características: até o momento ele é o único sítio sem cerâmica com
evidência de violência (Lessa e Scherer 2008); trata-se de um sítio ambíguo, de difícil
classificação segundo as categorias comumente utilizadas, uma vez que não pode ser
considerado um sambaqui e tampouco um sítio raso com cerâmica como Tapera e Base
Aérea; foi um sítio fundamental para o estudo de Neves (1988), no qual ele desenvolveu a
ideia de que o litoral central teria sido ocupado por uma população biologicamente
distinta.
2
Assim, o sítio Armação do Sul parece incorporar algumas das continuidades e
descontinuidades dos sítios do litoral catarinense, mostrando-se sintonizado com aquilo
que estava acontecendo a nível regional, e, ao mesmo tempo, apresenta características
particulares que remetem ao caráter peculiar do panorama arqueológico do litoral central
e àquelas relações que estavam sendo empreendidas a nível local: incorpora o contexto
macro no micro. E, por esse motivo, está sendo tomado como elemento chave para
entender tanto as particularidades do processo de ocupação que diferenciou o litoral
central das demais porções litorâneas catarinenses, quanto as mudanças que se deram em
nível regional a partir de 2.000 A.P., culminando no aparecimento da cerâmica e no
posterior fim das práticas associadas à formação de sítios conchíferos.
A ideia é, portanto, compreender melhor os processos de mudança que se deram
nesse momento mais tardio da formação de sítios conchíferos no litoral de Santa Catarina,
como foco no litoral central e a partir de um estudo de caso, que é o sítio Armação do Sul.
De quebra, espero também contribuir para um melhor entendimento do processo de
ocupação responsável pela maior diferenciação da porção central do litoral catarinense
com relação aos territórios vizinhos.
De forma a atingir esse objetivo maior, foram estabelecidos – e alcançados ao
longo da pesquisa – os seguintes objetivos específicos:

Realizar a datação de alguns indivíduos sepultados, estabelecendo uma cronologia
estratigraficamente referenciada com base na distribuição dos sepultamentos e situando
diacronicamente as mudanças que ocorrem no sítio. Estas mudanças apresentam sintonia
cronológica entre si e com as mudanças que ocorrem no contexto maior do litoral
catarinense?

Realizar análise de isótopos de estrôncio (87Sr/86Sr) provenientes do esmalte
dentário dos indivíduos sepultados, em busca de informações sobre migração e
mobilidade humana. As mudanças que ocorrem no sítio podem estar associadas à
migração e incorporação de indivíduos não locais por sua população?

Analisar a paleodieta dos indivíduos sepultados a partir de isótopos de carbono
(δ13C) e nitrogênio (δ15N). A paleodieta apresenta descontinuidades que acompanham a
3
mudança na estratigrafia e práticas mortuárias? É possível observar diferenças entre as
paleodietas de diferentes grupos de indivíduos?

Analisar os contextos funerários. É possível identificar elementos das práticas
mortuárias do sítio Armação do Sul como pertencentes a uma tradição regional de longa
duração que permanece – ou não – em meio a elementos que aparecem como
manifestações locais? É possível observar diferenças entre os acompanhamentos
funerários de diferentes grupos de indivíduos?
A partir desse conjunto de dados, busco dimensionar – em termos eventuais,
conjunturais e estruturais; locais e regionais – a mudança que ocorre na estratigrafia do
sítio e nas práticas mortuárias nele cristalizadas, e, entendendo o sítio Armação do Sul
como elemento chave para a compreensão do processo de ocupação do litoral central
catarinense, “extrapolar” à realidade arqueológica regional os resultados obtidos. São,
ainda, verificadas três hipóteses principais:
Hipótese 1: Há indivíduos não locais no sítio Armação do Sul. O sítio Armação do
Sul teve sua série de esqueletos apontada por Neves (1988) como biologicamente
distanciada das demais séries provenientes de sítios conchíferos sem cerâmica do litoral
central catarinense e, quando reanalisado por Okumura (2008), teve sua série feminina
apontada como “outlier” em relação aos outros sítios do litoral central, logo, é possível
que haja indivíduos não-locais incorporados à população do sítio, tanto homens quanto
mulheres, mas, principalmente mulheres.
Hipótese 2: A paleodieta dos indivíduos do sítio Armação do Sul é
predominantemente marinha. De um ponto de vista diacrônico, no entanto, há uma sutil
mudança em direção a uma dieta menos marinha ou mais terrestre; pequena variação
dentro de uma tendência mais geral. Estudos isotópicos apontam para dietas
predominantemente marinhas entre as populações associadas a sítios conchíferos do
litoral catarinense (De Masi 2001, 2009; Bastos 2014; Colonese et al. 2014), o que é
indicado também por estudos zooarqueológicos (Bandeira 1992, Figuti 1993, Klökler
2001). As análises realizadas por De Masi (2009:72), no entanto, mostram que dentro dos
4
limites dessa tendência geral houve transformação para uma dieta mais terrestre – ou
menos marítima – por volta de 1.000 A.P., independentemente da presença de cerâmica
nos sítios ou não. Bastos (2014) também observa mudança em direção a uma dieta mais
terrestre, porém em tempos posteriores ao aparecimento da cerâmica.
Hipótese 3: As mudanças observáveis nas práticas mortuárias do sítio Armação do
Sul e no sedimento que o compõe – passagem para terra preta – se deram entre 1.500
A.P. e 1.000 A.P. O sítio Armação do Sul foi datado em 2.670 +-90 A.P. (I-9212) a partir de
uma amostra de carvão coletada da camada mais profunda do sítio na etapa de 1969
(Schmitz et al. 1992:27). O momento da mudança é mais recente estratigraficamente, o
que possivelmente implicará numa datação também mais recente. Além disso, Nishida
(2007) encontrou a datação de 1.930 +- 50 A.P. (Beta 228507) para a camada de
sedimento escuro e ossos de peixe do sítio Jabuticabeira II, e de 1.550 +- 60 A.P. (Beta
228506) para a camada de terra preta: é possível, então, que as camadas de areia escura e
de terra preta do sítio Armação do Sul apresentem datações próximas a estas, caso
estejam de alguma forma relacionadas às transformações que tiveram lugar no litoral sul.
Trata-se de uma biografia do sítio Armação do Sul, pautada numa cronologia fina e
numa textura densa de dados isotópicos 87Sr/86Sr, δ13C e δ15N e dados relativos às práticas
mortuárias, o que vai ao encontro daquilo que Morris (2000: 24) entende como sendo
História Cultural: “taking cultural history seriously means thinking on all three temporal
levels described by Braudel and Giddens. And this requires a shift away from grand theory,
toward more prosaic concerns – creating the densest possible texture of data and the
tightest chronology”.
Vai, também, no sentido da arqueologia como história de longa duração de Hodder
(2009 [1987]) que, em outro lugar, coloca que
since action in the world partly depends on concepts, and since concepts
are learnt through experience in the world, in which one is brought up
and lives, it is feasible that long-term continuities in cultural traditions
exist, continually being renegotiated and transformed, but nevertheless
generated from within. Part of the aim of archaeology may be to identify
whether such long-term continuities exist, and how they are transformed
and changed (Hodder e Hutson 2003: 30).
5
Esta aproximação com uma história cultural, ou história de longa duração, é aqui
acompanhada por um quadro teórico que promove a associação entre os três tempos de
Braudel (1984, 2005[1992]), a teoria da prática de Bourdieu (2011[1967], 1989,
2011[1994]) e o pensamento de Sahlins (2011 [1985]) sobre a relação entre estrutura e
história, numa tensão positiva entre indivíduo e estrutura, curta e longa duração, local e
regional, mudança e estabilidade.
A superação dessas dicotomias envolve também uma relação de cumplicidade
ontológica com o mundo, no sentido do ser-no-mundo de Heidegger (2008[1927]) e da
noção de incorporação de Merleau-Ponty (1999[1945]: 273), em que “o corpo próprio está
no mundo assim como o coração no organismo; ele mantém o espetáculo visível
continuamente em vida, anima-o e alimenta-o interiormente, forma com ele um sistema”.
Além do reconhecimento da multidimensionalidade inerente aos processos de mudança.
Ao final, e entendidos também sob a perspectiva da prática, são empregados
brevemente alguns conceitos oriundos da teoria de sistemas adaptativos complexos –
resiliência (Holling 1973, Leslie e McCabe 2013) e rigidez (Hegmon et al. 2008) – e da
perspectiva dos regimes de historicidade (Hartog 2013[2003], Sahlins 2011[1985]), na
tentativa de entender as variações existentes nos processos de mudança que se
desenrolaram nas diferentes porções litorâneas e a maior diferenciação que se deu na
porção litorânea central com relações às demais, resultando em um panorama
arqueológico mais acentuadamente peculiar.
O sítio Armação do Sul foi bastante estudado pela equipe do Instituto Anchietano
de Pesquisas na década de 1990, com análise da indústria lítica e óssea, dos
sepultamentos, da fauna, das estruturas de combustão e de aspectos da distribuição
espacial intrassítio – os dados e interpretações estão publicados em Schmitz et al. (1992).
Nesta dissertação, esse importante sítio do litoral catarinense é revisitado a partir de uma
problemática distinta, e desta vez com foco na coleção esquelética, sua práticas
mortuárias e propriedades “invisíveis” – idades e razões isotópicas
87
Sr/86Sr, δ13C e δ15N.
Com o auxílio de novos métodos e técnicas, o sítio da Armação do Sul é estudado sob um
novo olhar.
6
Esta pesquisa foi concretizada por meio do projeto “Armação do Sul: velhas
questões, novas abordagens. Os sítios conchíferos do litoral central de Santa Catarina na
longa duração” (FAPESP 2013/11193-4), coordenado pelo Prof. Dr. Paulo DeBlasis e
integrado por mim, pela prof. Dra. Andrea Lessa (Museu Nacional/UFRJ) e pela prof. Dra.
Veridiana de Souza Martins (Instituto de Geociências/USP).
A dissertação se inicia com a apresentação do sítio Armação do Sul, em que faço
uma breve contextualização espacial e arqueológica do sítio para, depois, discorrer sobre a
pesquisa nele empreendida por João Alfredo Rohr e Margarida Andreatta em fins da
década de 1960 e meados da década de 1970, bem como sobre o estudo posterior do
material gerado na escavação, realizado pela equipe do Instituto Anchietano de Pesquisas
(IAP/UNISINOS). Em seguida, apresento a perspectiva de longa duração que serve de pano
de fundo para todas as reflexões aqui realizadas, no reconhecimento de uma continuidade
histórica entre os sítios conchíferos sem e com presença de cerâmica. Assim se constitui o
capítulo 1.
O assunto do capítulo 2 são as diversas mudanças e permanências observáveis no
registro arqueológico dos sítios conchíferos catarinenses ao longo do tempo,
principalmente a partir de 2000 anos AP; mudanças que se dão em escala regional e
mudanças que são específicas de determinadas localidades. Ao fim desse capítulo, é
possível perceber que a alteração no padrão deposicional e o aparecimento da cerâmica
são apenas duas dentre uma multiplicidade de mudanças e permanências que se dão
multidimensionalmente.
No capítulo 3, a mudança ainda é o tema central, no entanto, o foco se desloca da
mudança no registro arqueológico para mudança como objeto de estudo e como
constituinte do arqueólogo enquanto sujeito. Primeiramente, faço uma breve revisão de
como a questão da mudança vem sido percebida pelos diferentes paradigmas que
marcaram o desenvolvimento da disciplina arqueológica, ao mesmo tempo em que
apresento as percepções existentes na literatura sobre a mudança nos sítios conchíferos
catarinenses. Em seguida, tento demonstrar o modo como a mudança é entendida por
mim, apresentando as ferramentas teóricas a serem utilizadas na interpretação dos dados
gerados pela análise das práticas mortuárias e pelas análises isotópicas.
7
Esse conjunto formado pelos capítulos 1, 2 e 3 compõe a primeira parte da
dissertação, “Entre arqueólogos e culturas mutantes”, a qual idealizei justamente como
um momento de contextualizações e reflexões diversas sobre o sítio Armação do Sul, a
mudança e as percepções de mudança; um prelúdio a tudo o que será apresentado e
discutido na segunda parte, em que nos veremos “Criando uma textura densa de dados”.
Começo a segunda parte discorrendo sobre a aplicação de análises isotópicas na
arqueologia, com foco no radiocarbono (14C) e nos isótopos estáveis de nitrogênio (δ15N),
carbono (δ13C) e estrôncio (87Sr/86Sr), o que compõe o capítulo 4. A partir daí, passo a
apresentar os dados gerados ao longo desta pesquisa.
O capítulo 5 é dividido em dois momentos. No primeiro deles, constam os dados
relativos às datações radiocarbônicas realizadas em 30 indivíduos do sítio Armação do Sul
e 3 indivíduos do sítio Tapera que apresentam lesões causadas por pontas ósseas, bem
como a descrição da amostra, dos métodos e a discussão dos resultados. No segundo
momento, após uma breve introdução ao estudo de práticas mortuárias na arqueologia,
constam os resultados da análise dos contextos funerários do sítio Armação do Sul, bem
como a sua discussão e a descrição dos materiais e métodos empregados.
O capítulo 6 também está dividido em duas partes. A primeira é reservada às
análises isotópicas de nitrogênio (δ15N) e carbono (δ13C), e começa com a descrição dos
materiais e métodos, seguida pela apresentação dos resultados e da discussão. A segunda
é reservada às análises de estrôncio (87Sr/86Sr) e apresenta estrutura idêntica à anterior,
com o acréscimo de um item sobre a caracterização da geologia da Ilha de Santa Catarina.
No capítulo 7, todos os dados apresentados são colocados para conversar, na
conformação de um quadro de acontecimentos locais, regionais e globais interrelacionados sincrônica e diacronicamente. Estava tudo acontecendo ao mesmo tempo, e,
nessa convergência de espaços e tempos, se encerra a dissertação.
8
Parte I:
Entre arqueólogos e culturas mutantes
9
1 Para começar
1.1 O litoral central
Quando falo em litoral central de Santa Catarina, me refiro à faixa que se estende
da barra do rio Itapocu, no município de Barra Velha – que corresponde ao limite norte da
porção central na divisão que Lago (1968) e Ab’Sáber (2006) fazem do litoral catarinense –
até o município de Garopaba, ultrapassando o limite sul da divisão destes autores para um
pouco além do término da Ilha de Santa Catarina.
Figura 1: Delimitação do litoral central com detalhe da Ilha de Santa Catarina, da barra do rio Itapocu até o
município de Garopaba.
10
Essa delimitação do litoral central está baseada em critérios geográficos, geológicos
e arqueológicos, embora em algumas situações um critério tenha se sobreposto ao outro.
O trecho entre os municípios de Navegantes e Barra Velha, por exemplo, é pouco
conhecido arqueologicamente, porém está incluído no setor central por ainda fazer parte
da porção recortada da costa. O trecho correspondente aos municípios de Paulo Lopes e
Garopaba, por outro lado, não apresenta motivos geográficos ou geológicos para fazer
parte do litoral central, tendo sido incluído na delimitação por apresentar elementos que
remetem ao panorama arqueológico dessa porção litorânea.
No litoral central, as formações cristalinas com mata ombrófila densa esbarram
mais frequentemente no mar, resultando numa planície litorânea mais estreita e em
numerosos costões, enseadas, baías e ilhas que fazem dessa porção a mais recortada do
litoral catarinense (Lago 1968). Além disso, é nessa porção que se encontra a maior
variedade de unidades litoestratigráficas do litoral catarinense (Silva e Bortoluzzi 1987).
O caráter recortado dessa faixa litorânea permite a visualização entre pontos
distantes no espaço, conectando visualmente sítios arqueológicos às vezes separados por
quilômetros de distância. Ao ultrapassarmos os limites do litoral central, esse contexto
muda: a intervisualização é possibilitada pelos grandes corpos d’água como a baía da
Babitonga e a região da paleolaguna de Santa Marta, que centralizam essa unidade visual
conectando diferentes pontos no espaço. No litoral central, corpos d’água menores
também exercem uma centralidade importante, como a lagoa da Conceição ou a área da
paleolaguna da bacia do rio Ratones, mas, ao que parece, essa forma de visualidade
coexistia ou foi sucedida por outras percepções mais relacionadas ao ambiente marinho.
Arqueologicamente, o litoral central se diferencia das demais porções litorâneas de
Santa Catarina pela ocorrência de sítios de inscrições rupestres e sambaquis de menores
dimensões, bem como pela maior ocorrência de sítios de amoladores-polidores fixos e de
sítios conchíferos com presença de cerâmica da tradição Itararé, esta aparecendo tanto
nos níveis superficiais de sambaquis quanto em sítios conchíferos rasos.
Os sítios de inscrição rupestre se situam, na maior parte dos casos, em costões
rochosos voltados para o oceano, tanto em ilhas quanto em terras continentais – mas
11
principalmente em ilhas – entre os municípios de Porto Belo e Garopaba. Em sua pesquisa
de doutorado, Comerlato (2005) percebeu a existência de uma gramática plástica comum
nas representações rupestres de toda essa faixa litorânea, o que permite pensarmos no
litoral central como um espaço integrado por uma percepção de mundo intimamente
relacionada com o ambiente marinho, que teria sido vivenciada por determinados grupos
humanos, em determinado momento; ou, ao menos, na possibilidade de uma integração
promovida por um código visual compartilhado.
Ainda, os limites norte e sul da área de ocorrência de inscrições rupestres, Porto
Belo e Garopaba, equivalem ao alcance máximo que os olhos de um observador situado na
Ilha de Santa Catarina e ilhas adjacentes têm das terras continentais; da mesma forma,
aquele que ultrapassa os limites dessa área logo perde de vista as terras insulares. A
unidade promovida pela gramática plástica comum sugerida por Comerlato (2005),
portanto, está estreitamente relacionada a um campo visual que permite avistamentos
recíprocos entre diferentes pontos no espaço e que parece estar centrado na Ilha de Santa
Catarina.
Quanto aos sambaquis, embora os sítios de Santa Catarina sejam conhecidos como
os “maiores do mundo”, chegando alguns deles a atingir dimensões gigantescas, com mais
de 30 m de altura, esses sítios de grandes dimensões têm ocorrência restrita às porções
norte e sul do litoral catarinense, não sendo encontrados na porção central (Oppitz 2011),
onde possuem, em média, de 1 m a 2 m de altura, com alguns poucos atingindo dimensões
intermediárias entre 3 m e 7 m e excepcionais casos apresentando por volta de 10 m de
altura – Rio Tavares III, 6-11 m (Wiener 1876); Ponta das Canas I, 10-15 m; e Lagoinha da
Ponta das Canas I, mais de 10 m (Bigarella 1949).
Os sítios de amoladores-polidores fixos (Amaral 1995, Sophiati 2010) são presença
constante no litoral central, com 33 casos registrados no Cadastro Nacional de Sítios
Arqueológicos (IPHAN), podendo ser vistos – algumas vezes em grande quantidade, com
centenas de marcas diferentes no mesmo sítio – em quase toda a praia onde houver um
dique de diabásio intrometendo-se entre a rocha granítica, mas, também, no próprio
granito e em suportes riolíticos.
12
Os sítios conchíferos com presença de cerâmica Itararé também são ocorrência
frequente, com 17 sítios só na Ilha de Santa Catarina (Fossari 2004), enquanto que no
litoral norte existem 10 ocorrências conhecidas (Bandeira 2004) e, no litoral sul, apenas
cinco (Farias e Kneip 2010). Devido à presença de cerâmica, esses sítios vêm comumente
sendo associados pela literatura arqueológica a grupos provenientes do interior,
pertencentes à família linguística Jê, embora até o momento não haja qualquer evidência
material que aponte nesse sentido; pelo contrário, os dados vêm indicando que esses
sítios possivelmente teriam sido formados por populações litorâneas (Bastos 2009, 2014).
No litoral central, a cerâmica mencionada ocorre tanto nos horizontes superficiais
de alguns sambaquis quanto em um tipo de sítio que Rohr (1984) costumava chamar de
“sítio raso de sepultamento”:
o sítio de sepultamentos apresenta uma camada arqueológica, que oscila
de trinta centímetros a um metro de espessura. É composta de restos de
cozinha: húmus, carvão vegetal, conchas, ossadas de peixes e de outros
animais e o mais variado material arqueológico, análogo ao encontrado
nos sambaquis. O sítio de sepultamento distingue-se dos sambaquis,
apenas, por encerrar pequeno teor de conchas, enquanto o sambaqui é
essencialmente composto de conchas (Rohr 1984: 84).
E que Villagran (2012:82) – ver também Giannini (2010:111) – mais recentemente,
chamou de “montículos ictiológicos”, sítios ou camadas sobre sítios “formados por
misturas maciças ou mal estratificadas de areia com ossos de peixe, carvão, conchas
ocasionais e, em alguns casos, fragmentos cerâmicos”.
O sítio Armação do Sul, embora não necessariamente apresente aspecto
monticular1, parece se enquadrar nessas categorias definidas por Rohr e Villagran quanto à
sua composição e estratigrafia. Outros possíveis exemplos são os sítios Tapera e Base
Aérea, estes com presença de cerâmica e também situados em Florianópolis. Apesar de
ocorrerem ao longo de todo o litoral catarinense, esses sítios tornam-se mais raros
conforme são ultrapassados os limites estabelecidos para esta pesquisa e adentrados os
domínios dos grandes sambaquis, ao norte da barra do Itapocu e ao sul de Garopaba, o
que significa também que nas porções norte e sul a cerâmica aparece mais comumente
1
Somente com base nas informações constantes na bibliografia sobre o sítio Armação do Sul não é possível
afirmar ou refutar essa possibilidade. Para isso, se fariam necessárias novas intervenções no sítio.
13
nos horizontes superficiais dos sambaquis. Interessante é que a composição desses
horizontes superficiais em termos de sedimento, fauna e cultura material parece ser
semelhante à composição dos sítios rasos de sepultamento, com a diferença de que
aqueles contribuem para o volume das formações monticulares, enquanto estes se situam
diretamente sobre o chão.
Há ainda dados resultantes dos estudos de paleogenética de Neves (1988), Hubbe
(2005) e Okumura (2008) que, apesar das limitações amostrais2, devem ser levados em
consideração quando se pensa numa caracterização para o contexto de sítios conchíferos
do litoral central.
Analisando marcadores osteológicos não-métricos de esqueletos provenientes de
sítios arqueológicos do litoral paranaense e catarinense, Neves (1988: 138) sugere que o
litoral central de Santa Catarina teria sido ocupado por um grupo biológico distinto, uma
vez que a série dos sambaquis do litoral central é a que mais se distancia biologicamente
dentro do conjunto das séries de sítios sem presença de cerâmica da faixa litorânea por ele
estudada. Hubbe (2005), em um estudo multiescalar a partir de dados inéditos e dados já
existentes na bibliografia, não corrobora essa ideia, limitando-se a constatar a tendência
das séries agruparem-se de acordo com sua posição geográfica. Nesse sentido, coloca que
as séries do litoral norte catarinense associam-se mais intimamente às séries do Paraná, e
que este agrupamento difere das séries do litoral sul de Santa Catarina e de São Paulo. A
Ilha de Santa Catarina, neste contexto, ora se aproxima do litoral sul, ora se aproxima do
litoral norte, o que pode significar que a biologia dos grupos que viveram na Ilha teria
recebido contribuição genética de ambas as porções litorâneas. Assim, segundo o autor, o
litoral central não se apresenta claramente associado a nenhum dos três conjuntos,
demonstrando, quem sabe, se tratar de um universo microevolutivo em si. Okumura
(2008), por sua vez, em estudo posterior a partir de marcadores osteológicos métricos e
não-métricos, conclui que não é possível confirmar nem tampouco refutar o resultado
2
Os autores elencam como limitação à confiabilidade de seus dados a utilização de séries mistas, compostas
por indivíduos oriundos de sítios diversos; o reduzido tamanho amostral de algumas séries; a possibilidade de
enterramentos relacionados a níveis diferentes de ocupação de um mesmo sítio terem sido englobados
numa mesma série; o fato de várias gerações superpostas estarem representadas numa amostra de
enterramentos; a incerteza sobre o grau de determinação genética dos marcadores antropológicos utilizados
(Neves 1988:146); além do grande intervalo cronológico abarcado pelas séries e a total ausência de datações
para muitas delas (Okumura 2008:278).
14
obtido por Neves (1988), mas levanta uma nova possibilidade ao demonstrar como a
maior parte de suas análises indicou proximidade morfológica entre as séries de sítios com
cerâmica e sem cerâmica da Ilha de Santa Catarina, sugerindo a existência de afinidade
biológica entre os grupos associados a estes tipos distintos de sítios.
Tais possibilidades paleogenéticas, aliadas aos demais elementos acima arrolados
que caracterizam o panorama arqueológico do litoral central, diferenciam essa porção do
litoral de suas porções litorâneas vizinhas, convidando a uma investigação em torno do
processo de ocupação e das relações empreendidas com o meio e demais elementos
constituintes do mundo vivido responsáveis por essa diferenciação.
1.2 O sítio Armação do Sul
Localizado na planície costeira de praia com o mesmo nome na porção sul da Ilha
de Santa Catarina, o sítio Armação do Sul se encontra delimitado, de um lado, pelo oceano
Atlântico e, do outro, pelo rio Quinca Antônio, que dá vazão à lagoa do Peri (Rohr
1969:135).
Figura 2: Localização do sítio Armação do Sul na Ilha de Santa Catarina e detalhe da planície
costeira da praia da Armação, onde ele se situa.
15
A área de aproximadamente 2000 m² que, de acordo com estimativa de Rohr
(1974), deveria compor o sítio, hoje se apresenta totalmente urbanizada e
descaracterizada, estando o sítio sob as casas, restaurantes, pousadas e estacionamentos
que se estendem ao longo da faixa de areia da praia.
Figura 3: Vista da área do sítio Armação do Sul a partir da ponta das Campanhas (sentido leste-oeste). O
sítio de situa ao fundo, sob as casas do balneário. À esquerda da foto, o rio Quinca Antônio; à direta, o
mar da praia da Armação. É possível observar os morros do maciço do Ribeirão da Ilha ao fundo. Foto da
autora.
O entorno do sítio corresponde, em sua porção norte, à extensão da praia da
Armação, Morro das Pedras e Campeche; na porção noroeste, à lagoa do Peri, separada da
praia da Armação por uma estreita faixa de depósitos holocênicos; na porção oeste, ao
maciço montanhoso do Ribeirão da Ilha; na porção sudoeste, à estreita planície que
conecta a praia da Armação com a praia do Pântano do Sul; na porção sul, ao rio Quinca
Antônio e ao maciço da Lagoinha do Leste; na porção sudeste, à praia do Matadeiro; na
porção leste, à ponta das Campanhas; e; na porção nordeste, ao oceano Atlântico.
16
Figura 4: O entorno do sítio Armação do Sul, sendo 1) a área do sítio vista a partir de um dos locais escavados
por Rohr, hoje correspondente à pousada Maré de Lua, sentido sul-norte; 2) a área do sítio vista a partir da
estrada que passa sobre ele, sentido norte-sul; 3) vista da extensão da praia da Armação; 4) vista da lagoa do
Peri; 5) imagem de satélite dos morros do maciço do Ribeirão da Ilha; 6) imagem de satélite da planície que
conecta a praia da Armação com a praia do Pântano do Sul; 7) vista do rio Quinca Antônio; 8) vista da praia
de Matadeiro a partir da ponta das Campanhas; 9) vista da ponta das Campanhas com detalhes; 10) vista do
mar da praia da Armação, com a ilha do Campeche ao fundo. Fotos da autora.
17
Há também no seu entorno uma grande variedade de sítios arqueológicos, tanto do
período pré-colonial, representado por sítios conchíferos, amoladores-polidores fixos,
inscrições rupestres e sítios líticos sobre dunas, quanto do período de ocupação histórica
da área, a exemplo da armação baleeira que deu nome à praia e que se situa diretamente
sobre o sítio Armação do Sul.
Focando nos registros que remetem ao período pré-colonial, na ponta das
Campanhas está o sítio conchífero mais próximo, com presença de cerâmica e
sepultamentos – sítio Ponta da Armação (Fossari 1987). Segundo relato de Rohr (1974),
em 1944 foi retirado da ponta das Campanhas um bloco de rocha com inscrições
rupestres, junto ao qual havia um grande número de amoladores-polidores de forma
arredondada. Alguns desses amoladores-polidores e, também, o bloco com inscrição
rupestre, atualmente se encontram expostos no Museu do Homem do Sambaqui “Pe. João
Alfredo Rohr”. Afora esses exemplares, é possível observar inúmeros amoladores-polidores
de forma arredondada e de sulco ao longo da ponta das Campanhas, no terreno da
pousada Maré de Lua – que se situa diretamente sobre uma das áreas escavadas do sítio –
e na barreira de pedras que protege a orla do bairro da Armação do avanço do mar,
embora, em sua maioria, os suportes onde se encontram as evidências não estejam mais
em seus locais originais. Há, inclusive, alguns suportes que foram utilizados na construção
da antiga armação baleeira, e que podem ser observados nas estruturas que restam desse
sítio histórico, à beira mar. Ainda no entorno imediato, existem dois sítios de amoladorespolidores fixos e uma inscrição rupestre na praia do Matadeiro (Bueno et al 2015), além do
conjunto de sítios de inscrições rupestres, amoladores-polidores fixos e sítio conchífero
que compõe a ilha do Campeche.
Um pouco mais distante, na praia da Lagoinha do Leste, há outro sítio de amoladorpolidor fixo; na praia do Pântano do Sul, há dois sítios conchíferos, uma inscrição rupestre,
dois sítios de amolador-polidor fixo, dois sítios com vestígios líticos sobre dunas e outros
dois que, além dos vestígios líticos, apresentam cerâmica Guarani; e, na praia dos Açores,
há um sítio de amolador-polidor fixo (Bueno et al. 2015).
18
Figura 5: Vista geral da área onde se situa o sítio
conchífero Ponta da Armação, na ponta das
Campanhas. Foto da autora.
Figura 6: Bloco de rocha com inscrição rupestre, retirado
da ponta das Campanhas. Os sulcos se encontram
“reavivados” com giz. Acervo do Museu do Homem do
Sambaqui “João Alfredo Rohr”. Foto da autora.
Figura 7: Seixos e blocos de rocha ao longo da ponta
das Campanhas, onde há uma enorme variedade de
amoladores-polidores fixos. Ao fundo, o sítio
Armação do Sul. Foto da autora.
Figura 8: Detalhe de dois pequenos suportes situados
no terreno da pousada Maré de Lua, um com marcas
em forma de sulco (à esquerda) e outro com marcas
arredondadas (à direita). Foto da autora.
Figura 9: Estruturas remanescentes da armação baleeira.
Nota-se a presença de um bloco com amolador-polidor
fixo côncavo-convexo. Foto de Bueno et al. (2015).
Figura 10: Sítio de inscrição rupestre situado no costão
entre a praia de Matadeiro e a Lagoinha do Leste. Foto
de Rodrigo Dalmolin.
19
O entorno do sítio Armação do Sul, contudo, nem sempre foi marcado pela mesma
paisagem. Castilhos (1995) mostra que a área que hoje corresponde à planície costeira da
praia da Armação passou por transformações ao longo do tempo, sendo inicialmente
caracterizada pela presença de uma baía, que virou laguna, que virou lagoa. O local onde
foi assentado o sítio – um terraço marinho holocênico coberto por areias eólicas – formouse por volta de 5.000 A.P., situando-se à beira da paleolaguna que existiu até mais ou
menos 3.600 A.P. e, a partir daí, começou a fechar para, mais tarde, deixar de existir,
tornando-se a lagoa do Peri.
Figura 11: Evolução paleogeográfica da planície costeira da praia da Armação. Adaptado de Castilhos (1995).
20
O sítio Armação do Sul foi escavado por João Alfredo Rohr em duas etapas, uma em
1969, com a participação de Margarida Andreatta e publicação de nota prévia (Rohr e
Andreatta 1969), e outra em 1974, cujos resultados foram publicados no jornal Correio do
Povo, de Porto Alegre (Rohr 1974). Com base no diário de campo de Rohr, perfis, plantas e
fotografias geradas ao longo da pesquisa, a equipe do Instituto Anchietano de Pesquisas
realizou a curadoria e o estudo posterior do material referente ao sítio – situado no Museu
do Homem do Sambaqui “Pe. João Alfredo Rohr, S.J.”, no Colégio Catarinense –, com
análise da indústria lítica e óssea, dos sepultamentos, da fauna, das estruturas de
combustão e de aspectos da distribuição espacial intrassítio. Os dados das escavações, o
resultado das análises e demais interpretações desenvolvidas podem ser encontradas na
dissertação de mestrado de De Masi (1990) e em Schmitz et al. (1992). O material
referente à armação baleeira que há sobre o sítio conchífero, estudada por Comerlato
(1998) em sua pesquisa sobre as armações baleeiras da Ilha de Santa Catarina, também se
encontra no Museu do Homem do Sambaqui.
Figura 12: Croqui da área escavada do sítio Armação do Sul. Fonte: Schmitz et al. (1992).
21
A partir de uma amostra de carvão coletada da camada mais profunda na etapa de
1969, o sítio conchífero Armação do Sul foi primeiramente datado em 2.670 +-90 A.P. (I9212) (Schmitz et al. 1992:27). Hoje, com a realização da datação de 30 indivíduos
sepultados no sítio para esta pesquisa, sabemos que ele é um pouco mais antigo, tendo
sua formação provavelmente sido iniciada por volta de 3065-2880 anos cal AP, e sido
interrompida por volta de 1315-1275 anos cal AP.
Com uma área total estimada em 2000m², o sítio teve 269m² escavados – 85m² na
primeira etapa e 184m² na segunda, com 10m de distância entre as duas áreas – sendo
atingidos 2m de profundidade e revelada estratigrafia semelhante para as áreas escavadas
nas diferentes etapas: 1) Camada de húmus e raízes; 2) Camada de ocorrência de caliça,
pedras e entulho da antiga estrutura da armação para caça de baleias; 3) Camada de
húmus e fragmentos de material sub-recente; 4) Camada entre 50 e 80 cm, descrita como
de terra preta com areia, compacta, com conchas e grandes lentes de conchas, nas
profundidades em que não mais ocorrem pedras da estrutura da Armação – esta camada é
menos espessa na área escavada da segunda etapa; 5) Camada entre 80 e 110 cm,
composta por areias de cor marrom escura com terra; 6) Camada entre 110 e 190 cm,
composta por areias de cor marrom clara; 7) Camada a partir de 190 cm, de areias de cor
marrom clara, que formam a base do sítio (Rohr 1969:136, Schmitz et al. 1992:25-27).
A impressão de descontinuidade que a estratigrafia do sítio pode evocar, passando
de areia marrom para terra preta, é acompanhada por uma descontinuidade nas práticas
mortuárias relacionadas aos 86 sepultamentos escavados – embora, de acordo com
Schmitz et al. (1992: 169), o mesmo não aconteça com relação à tecnologia lítica e óssea3
– tornando possível vislumbrar dois momentos diferentes na ocupação pré-colonial do
sítio da Armação do Sul.
O primeiro deles está associado aos horizontes de areia marrom escura e areia
marrom clara, com sepultamentos envoltos em pigmentos vermelhos e, por vezes,
acompanhados de adornos (crianças), além de outros artefatos e fragmentos de artefatos,
fragmentos de rocha e seixos, material ósseo e malacológico. O segundo momento está
3
“Buscamos saber, através de alguns indicadores, como os artefatos fusiformes e as pontas de projétil em
osso, se existe continuidade tecnológica no sítio. Através desses indicadores, que nos pareceram os
melhores, não percebemos nenhuma descontinuidade” (Schmitz et al. 1992: 169).
22
associado ao horizonte de terra preta, com sepultamentos que, em geral, não apresentam
pigmentos vermelhos e raramente estão acompanhados de adornos (crianças), porém
costumam vir acompanhados por abundantes pontas ósseas. Há, no entanto, indivíduos de
datação mais recente que continuam apresentando ocre e alguns que, em vez de estarem
na camada de terra preta, se encontram sepultados em meio à areia marrom escura.
Artefatos líticos e fragmentos de artefatos, fragmentos de rocha e seixos, material ósseo e
malacológico são também ocorrências frequentes junto aos sepultamentos desse segundo
momento.
Figura 13: Perfil estratigráfico do sítio da Armação do Sul. Fonte: Schmitz et al. (1992:29).
A mudança nas práticas mortuárias do sítio será abordada com detalhe mais à
frente, mas cabe mencionar que Schmitz et al. (1992: 155) a interpretam como estando
relacionada a um possível aumento dos conflitos e consequente valorização de chefes
guerreiros, o que poderia estar atrelado à movimentação de populações ao longo do litoral
ou do planalto para o litoral, sendo bastante representativo o caso de um indivíduo
acompanhado de 50 pontas ósseas junto à cabeça, situado na transição entre os diferentes
momentos do sítio. Esta ideia é reforçada por Lessa e Scherer (2008: 91-92) que, em
23
análise da série esquelética do sítio em questão, identificaram um indivíduo masculino
adulto cuja quarta vértebra lombar apresentava uma ponta óssea dentro do corpo
vertebral, sem sinais de cicatrização ao redor da lesão. Até o momento, este é o único
dado disponível sobre violência em sítios conchíferos sem cerâmica, ocorrência antes
conhecida somente para sítios com cerâmica: Tapera e Base Aérea, no litoral central;
Itacoara e Enseada I, no litoral norte (Lessa e Scherer 2008: 93-94).
Resta ainda compreendermos melhor a passagem da areia marrom clara para a
areia marrom escura, e desta para a terra preta, de um ponto de vista sedimentológico
(Nishida 2007, Villagran 2008, 2012). Está claro que a camada de areia marrom clara
representa a areia da praia da Armação, mas qual é a origem da areia marrom escura e da
terra preta? Seriam solos formados localmente na interação entre as atividades
empreendidas no sítio e a areia da praia, ou sedimentos depositados intencionalmente por
agente antrópico? Infelizmente, isso não será respondido aqui, mas é uma questão
interessante para trabalhos futuros.
A indústria lítica do sítio foi analisada por De Masi (1990), tendo sido identificadas
as seguintes matérias-primas: granitoides, basaltoides, metapelitos, xistos, quartzo
leitosos, cristal de quartzo, sílica microcristalina e madeira silicificada. Os granitoides e
basaltoides aparecem principalmente sob a forma de seixos e, no caso dos diabásios, na
forma de prismas ou plaquetas. O quartzo leitoso, o cristal de quartzo, a sílica
microcristalina e a madeira silicificada aparecem como fragmentos. A maior parte dessas
matérias-primas pode ser encontrada na ponta das Campanhas, situada no entorno
imediato do sítio, com exceção dos xistos, que afloram um pouco mais ao sul, nas
proximidades do Pântano do Sul; e da madeira silicificada, proveniente do continente
próximo à Ilha de Santa Catarina.
É importante mencionar que o material lítico estudado não corresponde à amostra
total, tendo em vista que uma grande quantidade de material, em geral seixos
considerados como naturais por Rohr, não foi coletada do sítio.
O material analisado foi classificado em grupos, estes aglutinados a partir da
morfologia da matéria-prima utilizada. Os seixos constituem 70,27% do total, sendo
representados por grupos de seixos inteiros, quebrados e lascas (35,18%); seixos oxidados
24
(11,79%); restos de percussão bipolar (núcleos bipolares 9,21%, fragmentos bipolares
7,45%, lascas bipolares com ou sem uso 10,81%); seixos usados com nenhuma ou pouca
modificação intencional (percutores 13,64%, bigornas 4,75%, seixos com entalhes – pesos
de rede – 1,69%); seixos lascados para formar artefatos, geralmente cortantes e muitas
vezes com entalhes laterais para encabamento, inteiros, quebrados e fragmentos (4,23%);
seixos polidos para formar artefatos, geralmente cortantes e muitas vezes com entalhes
laterais para encabamento, inteiros, quebrados e fragmentos (1,20%). Os prismas,
juntamente com os blocos – estes mais raros – constituem 23,64% do total, sendo
representados por grupos de prismas naturais quebrados (17,81%); lascas de prismas
(23,94%); refugos naturais (41,75%); artefatos reconhecíveis inteiros, quebrados,
fragmentos, refugos de produção (polidores 9,70%, artefatos fusiformes 9,63%,
instrumentos produzidos por lascamento 8,83%, prismas polidos 0,94%, artefatos
fusiformes ou prismas polidos 4,16%, instrumentos produzidos a partir de prismas, com
gume numa extremidade e muitas vezes entalhes laterais 23,79%). Afora esses
agrupamentos, há um artefato polido produzido sobre cristal de quartzo e um fragmento
de biface em sílica microcristalina.
Dentre o total de artefatos reconhecíveis coletados do sítio, os mais frequentes são
aqueles utilizados para cortar ou raspar (44,67%), produzidos tanto por lascamento
(14,14%), quanto por polimento – e lascamento – (30,53%), e aqueles utilizados para
quebrar, esmagar ou polir (percutores 27,50%, bigornas 9,57%, polidores 8,26%). Os
artefatos fusiformes correspondem a 8,19% dos vestígios, e os seixos com entalhes (pesos
de rede) a 3,41%. Há ainda uma grande quantidade de seixos oxidados (8,28%),
possivelmente utilizados na produção de pigmentos vermelhos. Para descrição mais
detalhada e desenhos da indústria lítica, ver De Masi (1990) e Schmitz et al. (1992).
A indústria de artefatos em osso, dente e concha foi analisada por Maria Heloisa
Maciel de Almeida, Mônica Lacroix Wacker e Pedro Ignácio Schmitz, estando descrita em
Schmitz et al. (1992). As pontas são os artefatos em osso mais comuns, geralmente
produzidas a partir de ossos longos de pequenos, médios e grandes mamíferos e aves,
bem como de esporões e acúleos de peixes. Elas foram classificadas em diferentes grupos
relacionados aos seus modos de preensão: pontas com preensão paralela à linha da haste,
25
incluindo o grupo de pontas que envolvem a ponta da haste (1 exemplar) e o grupo de
pontas embutidas na haste ou presas externamente, mas sem a envolver completamente
(45 exemplares); e pontas com preensão oblíqua à linha da haste (13 exemplares). Nestes
números não estão incluídas as 50 pontas associadas ao sepultamento 29.
Afora as pontas, existem alguns ossos longos de mamíferos terrestres e aves com
marcas de cortes que parecem decorrentes da produção de artefatos como as pontas;
fragmentos de ossos de cetáceos entre 4,5 e 21 cm com alteração antrópica (dois
artefatos que se parecem com facas junto ao sepultamento 36, dois casos com marcas de
corte ou percussão, um fragmento com um dos lados polido como base para moer ou
esmagar, e alguns casos que apresentam as extremidades seccionadas por corte); e ossos
perfurados, estes mais raros (uma vértebra de peixe junto ao crânio do sepultamento 53,
duas vértebras de peixe junto ao braço direito do sepultamento 36, um disco
intervertebral de mamífero marinho com perfuração perto da borda e outro com
perfuração central, um fragmento de costela perfurado em uma das extremidades).
Quanto aos dentes perfurados, há dois dentes de capivara polidos em ambas as
extremidades e perfurados perto da extremidade distal; dois dentes de cação mangona
com a placa basilar desgastada, um deles com depressão na mesma; e quatro dentes de
porco-do-mato dos quais pelo menos dois apresentam pequenos pontos de desgaste
artificial na face interna distal, estando um deles associado ao sepultamento 18.
As conchas foram utilizadas principalmente na produção de adornos, sendo as
bivalves recortadas em pequenas rodelas com bordas polidas e perfuração central,
combinadas em adornos que contém de 11 a 738 contas; e os gastrópodes perfurados no
ápice, formando adornos independentes ou parte dos adornos de bivalves, variando entre
1 e 30 contas por peça. Há apenas um caso de molusco com perfuração no alto de uma
voluta, associado ao sepultamento 27. Para mais detalhes e imagens da indústria em
ossos, dentes e conchas, ver Schmitz et al. (1992).
Os restos faunísticos foram identificados por André Luis Jacobus e Marta Gazzaneo,
estando especificados e quantificados em Schmitz et al. (1992). De acordo com esses
autores, contudo, o material analisado não corresponde à totalidade de material da área
escavada, nem mesmo à quantidade presente em uma única quadra do sítio, uma vez que
26
não passou por coleta sistemática. Dentre o material coletado e analisado, foram
identificadas 13 espécies de mamíferos, 8 de aves, 2 de répteis, 14 de peixes, 13 de
moluscos bivalves, 10 moluscos gastrópodes e, também, equinodermos.
O sítio também conta com diferentes tipos de estruturas, descritas em Rohr e
Andreatta (1969), Rohr (1974) e Schmitz el al. (1992). As fogueiras são as mais frequentes,
sendo que duas delas possuem em torno de 2 m de diâmetro, estão localizadas na porção
central da área escavada em 1969 e apresentam longa duração, começando nos níveis
mais profundos e persistindo até níveis mais recentes – de 200 cm a 130 cm e de 140 cm a
90 cm. As demais fogueiras, menores, possuem em torno de 50 cm de diâmetro, e estão
distribuídas ao longo de toda a área escavada em 1969. Em geral, as fogueiras parecem ter
sido iniciadas como buracos no solo revestidos de argila e ocre, e são repletas de carvão,
material lítico, ósseo e restos faunísticos em seu interior.
É mencionada também a presença de cinco estruturas às quais Rohr e Andreatta
(1969) e Rohr (1974) se referem como “núcleos de ocre”, que seriam blocos compactos de
hematita com presença de fragmentos de limonita, bolotas de argila, carvão, cinzas, restos
faunísticos calcinados e fragmentos de rocha. Para Rohr (1974), poderiam se tratar de
“fornos polinésicos”; já Schmitz et al. (1992) pensam que são vestígios de fogueiras que
podem ter sido parcialmente removidas por sepultamentos posteriores, inclusive para
utilização do material corante.
Ocorrem ainda agrupamentos de seixos e pedras, para os quais os autores
mencionados não aventam uma função, mas que parecem estar associadas aos
sepultamentos. Aliás, em geral, todas as estruturas mencionadas se situam próximas aos
sepultamentos, parecendo estar associadas aos contextos funerários, e, embora em
muitos casos estejam em área de grande concentração de sepultamentos, raramente se
sobrepõem ou são sobrepostas por eles.
O sítio Armação do Sul vem sendo entendido por De Masi (1990) e Schmitz et al.
(1992) como um sítio de habitação com choupanas que estariam dispostas no entorno das
duas grandes fogueiras centrais, estando os sepultamentos no interior ou ao redor dessas
habitações. Não há, contudo, qualquer evidência arqueológica que remeta à existência
dessas choupanas, pelo contrário: penso que a forma como se distribuem espacial e
27
estratigraficamente as diferentes estruturas do sítio, bem como o material ósseo, lítico e
faunístico, dá margem para considerarmos o sítio Armação do Sul – ou pelo menos sua
porção escavada em 1969 e parte da área de 1974, onde estão os sepultamentos – como
um sítio funerário, assim como se vem entendendo alguns dos sítios conchíferos
catarinenses (DeBlasis et al. 2007; Bendazzoli 2007; Klökler 2008; Villagran 2010; DeBlasis,
Farias e Kneip 2014 – no prelo).
As estruturas de combustão e de pedras e a quase totalidade do material faunístico
e da indústria sobre ossos, dentes e conchas aparecem em estreita relação espacial com os
sepultamentos. E embora o material lítico se distribua em toda a área do sítio – com
diferenças conforme o tipo de material – as maiores concentrações estão nas áreas de
sepultamentos.
Antes de finalizar essa breve apresentação do sítio Armação do Sul, devo lembrar
que ele é um sítio com características especiais dentro do quadro arqueológico conhecido
para o litoral central, características estas que lhe conferem um caráter ambíguo e,
portanto, dificultam sua classificação dentro das categorias de sítios litorâneos que
habitualmente são utilizadas.
Ele não é o que costumeiramente se denomina sambaqui, devido a pouca
quantidade de conchas e pequena espessura da camada arqueológica e, embora se
assemelhe a sítios como Tapera e Base Aérea – tendo sido considerado um “sítio raso de
sepultamentos” por Rohr (1984) e, talvez, podendo ser em alguns aspectos entendido
como um dos “montículos ictiológicos” de Villagran (2012) – tampouco se enquadra junto
a eles, uma vez que possui datação mais recuada e não apresenta cerâmica. Devo ainda
mencionar que Rohr, segundo informação pessoal concedida a Walter Neves (1988:45),
não descarta a possibilidade de o sítio se tratar de um sambaqui em fase inicial de
formação.
No estado atual do nosso conhecimento sobre os sítios litorâneos de Santa
Catarina, os únicos outros casos desse tipo são o sítio Rua do Papagaio, em Bombinhas,
que se assemelha ao sítio Armação do Sul, porém possui datação muito mais recuada
(informação pessoal de Andrea Lessa); o sítio Içara, no litoral sul, com datação de 1.160 ±
50 AP (Schmitz et al. 1999) e entendido como um cemitério litorâneo de uma população
28
interiorana (Izidro 2001); e o sítio Pântano do Sul (Rohr 1977), situado em Florianópolis, de
caráter misto: em uma das extremidades, configura-se como sambaqui, porém, por baixo
deste, continua uma camada arqueológica de 2 m de espessura datada em 4515 anos A.P.
e que vai até as dunas, configurando-se como sítio raso.
Em seu estudo de paleogenética, Neves (1988) sugere que a população associada
ao sítio Armação do Sul seria biologicamente diferenciada das demais séries provenientes
de sítios conchíferos sem cerâmica do litoral central. Assim como em sua pesquisa a série
do litoral central mostrou-se biologicamente distanciada das demais num contexto
litorâneo regional sul brasileiro, a série do sítio Armação do Sul mostrou-se biologicamente
distanciada num contexto litorâneo local centro catarinense, sugerindo a presença de dois
grupos distintos em termos de morfologia craniana nessa porção litorânea em tempos
anteriores ao aparecimento da cerâmica. Okumura (2008), no entanto, não observou essa
diferença: a série feminina – assim como a série feminina do sambaqui Praia Grande –
realmente aparece como outlier dentre os outros sítios do litoral central; a série masculina,
contudo, apresenta-se totalmente integrada às dos demais sítios.
29
Figura 14: A escavação do sítio Armação do Sul, sendo A) Sepultamentos 55 e 56, na areia marrom escura, e
sepultamento 57, na areia marrom clara; B) Sepultamentos 8, 9, 14, 15 e 18, na transição entre a camada de areia
marrom e escura e a de terra preta; C) Sepultamentos 38 e 40, junto a grande agrupamento de pedras; D)
Sepultamento 28, com “núcleo de ocre” de um lado e fogueira do outro; E) Vista parcial da área escavada em 1969;
F) Vista parcial da área escavada em 1974; G) Perfil da área escavada em 1974; H) Vista parcial da área onde se situa
o sítio – à esquerda da foto está o local escavado em 1969, no centro, terreno no qual não foi permitido escavar, e, à
direita, está o local da escavação de 1974. Fotos de João Alfredo Rohr. Acervo do Museu do Homem do Sambaqui.
.João
30
1.3 Sítios conchíferos: uma perspectiva de longa duração
A Arqueologia dos sítios litorâneos pré-coloniais de Santa Catarina vem
tradicionalmente envolvendo o estudo de três grupos considerados culturalmente
distintos, comumente associados a três categorias de sítios distanciadas cronologicamente
e consideradas igualmente distintas: grupos associados aos sambaquis, com datações
entre aproximadamente 6.500 AP e 1.300 AP; grupos da família linguística Jê, associados a
sítios conchíferos rasos ou horizontes superficiais em sambaquis com presença de
cerâmica da tradição pronapiana Taquara ou Itararé, com datações em torno de 1.300 AP
e 600 AP 4; e grupos da família linguística Tupi-Guarani, associados a sítios com presença
de cerâmica da tradição Guarani, apresentando datações que vão, aproximadamente, de
600 AP até o período colonial (Silva et al. 1990, De Masi 2001, Bandeira 2004, Fossari
2004, DeBlasis et al. 2007, Giannini et al. 2010, Milheira 2010).
Transitando com suas características cambiantes entre as fronteiras conceituais dos
sambaquis e dos sítios conchíferos com cerâmica, o sítio da Armação do Sul desafia as
categorizações dos arqueólogos. Sua ambiguidade confere fluidez a um quadro engessado,
e evidencia a continuidade num momento de mudança no registro arqueológico litorâneo
que geralmente é entendido somente em termos de descontinuidade ou de blocos
estruturais que se sucedem no tempo.
O reconhecimento da existência de continuidade em meio às descontinuidades
insere o sítio numa perspectiva de longa duração (Braudel 2005), perspectiva esta que
entende sambaquis e sítios conchíferos com cerâmica como pertencentes a uma mesma e
única categoria, “sítios conchíferos”, aglutinadora de todos os sítios litorâneos com
presença não negligenciável de conchas.
Eu poderia aqui utilizar-me das categorias desenvolvidas por Gianinni et al. (2010) e
Villagran (2012) para os sítios litorâneos do sul do Estado com base no padrão
4
Desde que Chmyz (1967, 1968) estabeleceu a tradição Itararé e apontou para a semelhança entre a
cerâmica desta tradição e aquela produzida pelos indígenas Kaingáng aldeados em Palmas, no Estado do
Paraná.
31
estratigráfico – padrão conchífero, núcleo quartzo-arenoso e montículos ictiológicos5 – e
assumir continuidade entre elas. Uma vez, no entanto, que o contexto dos sítios do litoral
sul se difere do contexto do litoral central em diversos aspectos, e que os sítios do litoral
central nunca passaram por estudos aprofundados do ponto de vista da estratigrafia que
permitissem estabelecermos comparações, penso não ser possível estender essa
categorização à porção central.
Pensar em “sítios conchíferos” não implica dizer que uma mesma e única
população ocupou o litoral catarinense ao longo desses 6.000 de história, nem
desconsiderar as diferenças sincrônicas e diacrônicas que, de fato, existem na morfologia,
na estratigrafia, textura e aspectos da cultura material em geral, mas evitar que tais
diferenças sejam transformadas em barreiras culturais intransponíveis. Pensar em “sítios
conchíferos” é desvelar as continuidades existentes em meio às descontinuidades e fazêlas prevalecer. É aproximar os diferentes sítios numa intersecção de conchas – em maior
ou menor quantidade –, peixes como principal fonte de subsistência, implantação em
ambientes estuarinos e, ainda, semelhanças na indústria lítica, óssea e práticas mortuárias;
intersecção esta que, aparentemente, vem a findar somente com o predomínio de sítios
associados a grupos Guarani.
Cabe mencionar, também, que a ideia de “sítios conchíferos” não encerra qualquer
pretensão de se tornar um modelo. Trata-se de uma ferramenta, desenvolvida no âmbito
desta dissertação, para que o pressuposto de continuidade entre os sítios conchíferos sem
e com presença de cerâmica possa ser trabalhado sem a interferência do pressuposto da
diferença que se faz constante na literatura e que acaba sendo veiculado pelos termos
mais comumente utilizados como “sambaqui”, “sítio raso”, “assentamento” ou
“acampamento” – sendo estes dois últimos ainda mais problemáticos por carregarem
também atribuição de funções que nunca foram de fato comprovadas para os ditos sítios
5
Padrão conchífero: caracteriza-se pela presença de interestratificação entre lâminas conchíferas
centimétricas a decimétricas e lâminas mais delgadas de sedimentos pretos; pode eventualmente estar
coberto por camada arenolamosa preta, de espessura decimétrica a métrica (ex. Jabuticabeira II). Núcleo
quartzo-arenoso: caracteriza-se por estratigrafia aparentemente simples, formada por núcleo quartzoarenoso monticular, maciço, e capa decimétrica de areia com conchas, muitas vezes lamosa e rica em
matéria orgânica (ex. Encantada III e Carniça III). Montículo ictiológico: caracteriza-se por misturas maciças
ou mal estratificadas de areia com conchas e ossos em grande parte queimados, fragmentos líticos – e às
vezes cerâmicos – e carvão (ex. Galheta IV e Costão do Ilhote) (Giannini et al. 2010:111, Villagran 2012:82).
32
rasos. Nota-se que tanto a ideia de diferença quanto a ideia de continuidade são, apenas,
pressupostos, com a diferença de que aquela se encontra mais consagrada na literatura do
que esta última.
A ideia de continuidade entre os diferentes tipos de sítios conchíferos, contudo,
nada tem de novidade. Determinismo ecológico à parte, Rohr (1977: 89) já havia colocado
que todos os sítios rasos de sepultamento até então estudados por ele no litoral
catarinense, como Armação do Sul, Itacoara, Balneário das Cabeçudas, Base Aérea e
Tapera, “apesar de não serem sambaquis, pertencem à cultura sambaquiana. Os homens
construtores dos sambaquis, vindo a faltar-lhes as conchas, devido a mudanças ecológicas,
dedicavam-se, predominantemente, à pesca e à caça”.
Mais do que mera especulação, essa ideia possui dados em seu favor, apresentados
em estudos diversos e, inclusive, aqui nesta dissertação. A partir de análises estratigráficas,
composicionais e micromorfológicas, Villagran (2012) constatou que há permanência no
processo de formação dos dois montículos ictiológicos por ela analisados – ambos com
presença de cerâmica – em relação ao processo de formação dos sambaquis conchíferos.
A única e maior diferença está no material utilizado para a formação desses sítios, conchas
no caso dos sambaquis conchífero e ossos de peixe no caso dos montículos ictiológicos, o
que faz a autora concluir que ambos os tipos de sítios teriam sido formados por uma
mesma população – transformada pela intensificação no contato com grupos Jê (Villagran
2012:406).
Estudos de paleogenética sugerem afinidade biológica entre populações de sítios
com e sem cerâmica do litoral norte e, principalmente, do litoral central de Santa Catarina
(Okumura 2008:193), enquanto análises isotópicas de estrôncio mostram que os
indivíduos sepultados nos sítios conchíferos Tapera e Forte Marechal Luz – ambos com
presença de cerâmica – são, em sua maioria, locais, embora na Tapera haja uma variação
maior entre as assinaturas de estrôncio das mulheres (Bastos 2014) e no Forte Marechal
Luz tenham despontado três indivíduos não-locais, dois deles no horizonte cerâmico do
sítio e um no horizonte sem cerâmica (Bastos 2009).
Algumas pesquisas vêm, inclusive, mostrando haver continuidade na paleodieta das
populações litorâneas, que teriam mantido uma dieta predominantemente marinha após o
33
aparecimento da cerâmica (Bandeira 1992; Figuti 1993; Klökler 2001; De Masi 2001, 2009),
sem modificação também no consumo de alimentos amiláceos em termos de presença e
quantidade (Wesolowski 2007). A própria cerâmica, ao que parece, estava sendo utilizada
principalmente no processamento de alimentos marinhos (Hansel 2006, Colonese et al.
2014) e, não, como se vinha pensando, na implantação da “revolução neolítica”.
E não se trata apenas de continuidade e mudança: como veremos mais à frente, os
dados apontam para fluidez e complexidade; para diferentes ritmos de permanência e
mudança que são desvelados conforme o olhar empregado, a escala temporal e espacial
escolhida e o material analisado.
A longa duração pode ser a perspectiva privilegiada do arqueólogo, como bem
colocou Hodder (2009 [1987]), mas, é claro, está longe de esgotar a multiplicidade de
escalas analíticas possíveis – e, menos ainda, os regimes de temporalidade vividos pelas
sociedades estudadas, difíceis de serem acessados a partir do registro arqueológico.
A própria noção braudeliana de longa duração está atrelada a uma ideia de
temporalidade baseada em tempos múltiplos, expressos em três elementos que coexistem
entre continuidades e descontinuidades: o evento, a conjuntura e a estrutura. Segundo
Braudel (2005[1992]:45-49), o evento (curta duração), é explosivo e “com sua fumaça
excessiva enche a consciência dos contemporâneos, mas não dura, vê-se apenas sua
chama”; a conjuntura (média duração) é uma medida mais ampla, que envolve os eventos
em ciclos ou interciclos; e a estrutura (a longa duração) é uma realidade que o tempo
veicula longamente, uma coerência que, em alguns casos, pode atingir inúmeras gerações.
A estrutura braudeliana corresponde a uma realidade que o tempo tende a
preservar, e não a modificar. Essa superação do indivíduo e do evento, contudo, não
significa sua negação. A despeito da limitação à ação, imposta pela tendência estrutural, o
indivíduo possui uma liberdade relativa: dentro dos limites estruturais ele pode exercer
sua autonomia e fazer a história, da mesma forma que a história o faz (Reis 1994). A noção
de tempo de Braudel constitui-se de durações solidárias umas às outras, de tempos
múltiplos, pluridirecionados, onde sobre as permanências ocorrem mudanças mais e
menos lentas (Braudel 2005[1992]:72).
34
No âmbito desta pesquisa, a escolha pela longa duração é uma escolha de ponto de
vista e é uma escolha contingente; uma opção por uma escala temporal feita a partir de
uma problemática específica. E um ponto de vista que é tomado apenas como ponto de
partida, como porta de acesso a outras possíveis escalas temporais.
Como ponto de vista, a longa duração converte diferença em transformação. O
reconhecimento de alguma continuidade histórica em meio às descontinuidades – que não
necessariamente representa continuidade genética, podendo também se dar por meio de
tradições e percepções de mundo compartilhadas – altera completamente a maneira de
tratar os dados e interpretá-los, e aquilo que era diferença estatisticamente significativa
vira mudança significativa, aquilo que era incomparável torna-se comparável.
Antes de refletir sobre a relação entre os diferentes sítios conchíferos e investigar a
mudança no registro arqueológico do litoral catarinense, é preciso reconhecer que tal
relação existe. É preciso assumir uma continuidade histórica para, então, poder pensar a
mudança como um processo que se dá multidimensional e contextualmente, na
articulação local de inúmeros fatores internos e externos. A longa duração pressupõe uma
sociedade que se transforma no tempo, e não a chegada massiva de uma população
distinta à costa que a substitui por completo. Com essa perspectiva inicial, é possível dar
um novo tom à forma como se pensa a mudança no registro arqueológico da costa
catarinense e, a partir daí, expandir as possibilidades interpretativas.
Outros autores trabalham com a ideia de estruturas duradouras que se mantêm ao
mesmo tempo em que mudam, como Bourdieu (2011[1967]) e Sahlins (2011[1985]), mas a
perspectiva exclusivamente diacrônica de Braudel me parece mais adequada nesse
momento inicial de estabelecer a continuidade histórica entre os sítios conchíferos. Mais à
frente, quando chegar o momento de pensarmos os mecanismos de mudança, aí a
estrutura Braudel se fará insuficiente e Bourdieu e Sahlins ganharão voz. É com a longa
duração braudeliana em mente, então, que vamos dar sequência a esse começo de
dissertação.
35
2 Coisas que mudam:
mudanças regionais e mudanças locais
nos sítios conchíferos catarinenses
.
Por volta de 2.000 A.P., ocorre uma mudança aparentemente repentina nos
padrões deposicionais de diversos sítios conchíferos, período em que passam a ser
formados por um sedimento escuro com enorme quantidade de carvão e outros materiais
orgânicos. No momento seguinte, a partir de 1.500 A.P., começa a aparecer cerâmica nos
horizontes superficiais de alguns sambaquis e em sítios conchíferos rasos, cerâmica esta
que costuma ser atribuída a grupos da família linguística Jê.
Em um olhar retrospectivo que tenta englobar 5 mil anos de história num único e
distanciado instante de apreciação, essas são as mudanças mais perceptíveis no contexto
de sítios conchíferos do litoral catarinense. São as mudanças que costumam ser tomadas
como ponto de virada, encerrando um longo período de aparente “estabilidade” nas
características dos sítios conchíferos e dando início a um novo momento, mais curto, que
ninguém ainda sabe ao certo o que significou.
Essa, contudo, é apenas uma das várias formas de ver as coisas, na qual a mudança
é inferida a partir de elementos facilmente visíveis no registro arqueológico, a partir de um
olhar nu e distante que evidencia; é a percepção de apenas uma dentre as várias
dimensões através das quais a mudança pode se manifestar. Imagino que a apreensão
deste mesmo registro arqueológico sob outros olhares – em geral mais aproximados –
pode gerar outras percepções de mudança, e que se essa apreensão for feita a partir de
mais de um olhar ao mesmo tempo poderá revelar o caráter multidimensional e complexo
das mudanças e permanências pelas quais passaram as populações associadas aos sítios
conchíferos catarinenses.
36
2.1 Tecnologia
Afora o aparecimento da cerâmica, a tecnologia associada aos sítios conchíferos –
em termos de indústria lítica e óssea – apresenta uma aparente continuidade ao longo do
tempo, permeada por algumas variações muito sutis que só se fazem perceptíveis a partir
de um olhar mais aproximado. Embora combinem elementos diferentes em sítios distintos,
essas variações estão geralmente relacionadas a um aumento na diversidade da indústria
óssea que, com o tempo, ganha também um aspecto mais “elaborado”.
Nishida (2007:84), por exemplo, observou que a camada de terra preta do sítio
Jabuticabeira II, situado no litoral sul, apresenta artefatos em osso mais rebuscados com
relação ao resto do sítio, como uma placa polida possivelmente em osso de tartaruga,
argolas e pontas.
No sítio Forte Marechal Luz, no litoral norte, as bipontas que aparecem no fim da
camada conchífera (zona IV), pouco antes da mudança para o sedimento escuro (zona V),
tornam-se mais frequentes nas camadas ainda mais recentes (zonas VI e VII), que
apresentam cerâmica. Já os anzóis e dentes de tubarão – trabalhados com perfurações e
raízes alisadas ou não –, aparecem pela primeira vez somente na camada da mudança para
o sedimento orgânico escuro (zona V), e se tornam mais frequentes nas camadas com
presença de cerâmica (zonas VI e VII) (Bryan 1993 apud Wesolowski 2007:53).
Ainda no litoral norte, o sítio Enseada I conta com uma indústria óssea mais
diversificada e elaborada no horizonte cerâmico, no qual se destaca a ocorrência de
anzóis, exclusivos dessa camada. Pontas, bipontas, adornos, dentes e vértebras perfuradas
ocorrem nas duas camadas, porém com um aumento de frequência no horizonte cerâmico
– com exceção das pontas, que passam a aparecer em menor quantidade (Beck
2001[1972], Fossari 1985).
No litoral central, após revisitar as coleções referentes às escavações de Rohr nos
sítios conchíferos sem cerâmica do Pântano do Sul, Laranjeiras I e Armação do Sul, e nos
sítios conchíferos com cerâmica da Tapera, Laranjeiras II e Cabeçudas, Schmitz (1996:185)
concluiu que eles partilham uma mesma indústria lítica, com continuidade “[...] no uso da
matéria-prima, na tecnologia de produção, na morfologia e no uso inferido”, embora isso
37
não queira dizer “que não existem diferenças de um sítio para o outro, decorrentes,
possivelmente, da duração destes e da história de cada um”. A indústria óssea também se
apresenta semelhante em todos os sítios, formada principalmente por pontas ósseas e
dentes de seláquios e mamíferos, porém a frequência desse material parece aumentar nos
sítios cerâmicos, que guardam também algumas especificidades de tipo e técnica, como a
ocorrência de anzóis (com exceção da Tapera), pontas pedunculadas com aletas e dentes
de seláquios com duas perfurações.
Uma mudança interessante com relação às indústrias líticas e ósseas dos sítios
conchíferos é o surgimento de esculturas zoomórficas (zoólitos e zoósteos) em sítios que,
por suas datações situadas principalmente em torno de 4.500 A.P. e 3.000 A.P.,
representam o momento de expansão demográfica e geográfica das populações
associadas aos sítios conchíferos. A partir de 3.000 A.P. esse tipo de artefato se torna raro,
com ocorrência somente em um sítio de 2.750 ± 250 A.P. (Matinhos/PR), e aí desaparece
de vez do registro arqueológico (Gomes 2012).
Quanto à cerâmica, sua primeira ocorrência no registro arqueológico litorâneo se
dá em 1390 ± 40 A.P., no sítio Enseada I (litoral norte), continuando a aparecer até mais ou
menos 600 A.P., momentos antes de surgirem os primeiros sítios Guarani na costa. O
litoral central conta com mais de 17 sítios conchíferos com presença de cerâmica –
número estimado para a Ilha de Santa Catarina (Fossari 2004), e que, portanto, aumenta
ao serem consideradas as ilhas adjacentes e o continente – 10 no litoral norte (Bandeira
2004) e 5 no litoral sul (Farias e Kneip 2010). Essa cerâmica, no litoral central, ocorre tanto
em sítios conchíferos rasos quanto nos horizontes mais superficiais de alguns sambaquis,
porém no litoral norte e sul aparece mais frequentemente nos horizontes superficiais dos
sambaquis.
O aparecimento da cerâmica é uma dessas mudanças facilmente visíveis, e que
tende a ser considerada com ponto de virada fundamental, em parte por sua evidenciação
clara no registro arqueológico, mas, também, pela possibilidade de estar relacionada a
assuntos que nos são caros, e caros à Arqueologia desde seu surgimento, e que sempre
serviram como referência para as classificações e periodizações feitas – desde os períodos
paleolítico e neolítico até as tradições Umbu e Humaitá. São eles: o surgimento da
38
agricultura e da complexidade social, que costumam aparecer atrelados um ao outro
(Childe 1975[1936]) e que, claro, têm a ver com aquilo que julgamos importante para o
florescimento de nosso muito estimado mundo moderno ocidental, segundo uma tradição
irrecuperavelmente narcisista.
No caso do litoral de Santa Catarina, a ideia de que a cerâmica estaria associada ao
início de práticas de cultivo na costa ganha força com sua frequente associação a grupos
Jê, o que vem sendo feito desde que Chmyz (1967, 1968), ao final da década de 1960,
estabeleceu a tradição Itararé e apontou para a semelhança entre a cerâmica desta
tradição e aquela produzida pelos indígenas Kaingáng aldeados em Palmas, no Estado do
Paraná – até então, essa cerâmica litorânea permanecia sem qualquer filiação cultural,
sendo considerada, simplesmente, como não pertencente à cultura Guarani (Schmitz
1959). Esses grupos Jê, vindos do interior, teriam entrado em contato com as populações
litorâneas e, quiçá, se estabelecido no litoral, difundindo a cerâmica e, com ela, a
“revolução neolítica” – ou pelo menos parte dela. Mesmo quando não é associado ao
início de práticas de cultivo pela literatura, o aparecimento da cerâmica acaba por ser
associado a outras mudanças diversas no modo de vida das populações litorâneas,
geralmente relativas ao contato com estes grupos do planalto e/ou à sua fixação na costa.
Os dados apresentados nesse capítulo e que serão apresentados nos próximos,
contudo, mostram que a cerâmica talvez não tenha sido uma grande condicionadora de
mudanças, e que – no caso da dieta – parece ter sido utilizada mais na manutenção do que
na mudança da dieta dessas populações litorâneas, embora possivelmente tenha levado a
mudanças em elementos gerais da alimentação como o preparo, o processamento e o
transporte de alimentos. Por esse motivo, tento aqui desprovê-la da importância que
costuma assumir, conferindo o mesmo peso e lugar de destaque a todas as mudanças
observáveis do registro arqueológico dos sítios conchíferos catarinenses.
39
2.2 Padrão deposicional
Eis a outra grande mudança facilmente visível nos sítios conchíferos que, antes
formados principalmente por conchas, passam a ser formados, entre 2.000 e 1.500 A.P.,
por um sedimento escuro com muita matéria orgânica e ossos de peixe, chamado também
de terra preta. Tal mudança no regime deposicional é perceptível nas camadas superficiais
que recobrem os sambaquis, mas, também, diretamente sobre o chão, com o
aparecimento de sítios conchíferos rasos com e sem presença de cerâmica compostos
predominantemente por esse sedimento escurecido.
Por vezes, essas camadas de terra preta e sítios rasos foram entendidos como um
momento em que a falta de moluscos, causada por mudanças ambientais ou pelo
esgotamento devido à exploração antrópica, teria levado as populações litorâneas a
dedicarem-se mais à pesca do que à coleta de moluscos – embora hoje saibamos que a
pesca sempre foi a principal atividade dessas populações litorâneas em termos de dieta
(Bandeira 1992, Figuti 1993, Klökler 2001). E até recentemente, foi entendida também
como resultante de atividades domésticas, relacionadas às tão procuradas áreas de
habitação dos sambaquis.
Olhares zooarqueológicos (Nishida 2007), arqueoestratigráficos (Bendazzoli 2007) e
sedimentológicos (Villagran 2008) sobre a camada de terra preta do sítio Jabuticabeira II,
contudo, mostraram que aquilo que num olhar distanciado e segundo uma descrição física
parecia uma grande mudança, num olhar mais aproximado, por vezes em escala
microscópica, significava também continuidade: o padrão construtivo de formação de
montículos associados aos sepultamentos, observável na camada conchífera, permanece
ao longo da camada de terra preta, com manutenção também no uso de restos faunísticos
como material construtivo. A diferença principal está na troca das conchas pelos ossos, em
geral de peixes.
No sítio Jabuticabeira II, a camada de terra preta propriamente dita possui datação
de 1.540-1.330 anos cal AP (Beta 228506), e é precedida por uma camada marrom com
sedimento escuro e ossos de peixes, de datação 1.990-1.710 anos cal AP (Beta 228507).
Enquanto na terra preta os componentes faunísticos e vegetais estão completamente
40
carbonizados, na camada marrom esses vestígios não foram queimados, conservando sua
cor natural com apenas uma leve alteração (Nishida 2007).
De acordo com Villagran (2008), o aspecto enegrecido da camada de terra preta
teria resultado da combinação de componentes naturais e culturais, representados em
mais de 50% pelas areias terrígenas quartzosas oriundas de depósitos paleolagunares e, de
resto, pelos vestígios faunísticos e carvões. Estes últimos, os carvões, seriam fruto da
queima intencional dos resíduos alimentares – que em muitos casos alcançaram o estado
de carbonização e calcinação – e, também, de madeira e outros materiais vegetais
indicados pela análise de fitólitos, possivelmente utilizados como combustível para as
fogueiras. Todos estes componentes, naturais e culturais, após serem preparados
conjuntamente em outro local, teriam sido depositados sobre o sítio por um agente
antrópico, o que é indicado por sua presença conjunta e misturada no depósito
arqueológico.
O lançamento de novos olhares sobre a terra preta do sítio Jabuticabeira II mostrou
que essa camada representa uma continuidade no simbolismo e na dinâmica ritual que
caracterizou o sítio Jabuticabeira II desde o início de sua formação, numa ritualização dos
componentes da vida doméstica em torno do ritual funerário (Villagran 2008); não se
tratando, como um dia se pensou, de uma área de habitação.
Em busca pelos motivos da mudança no material utilizado na formação do sítio,
Nishida (2007) verificou que o tamanho e idade dos moluscos que estavam sendo
coletados pela população associada ao sítio Jabuticabeira II não diminuíram ao longo da
estratigrafia – o que aconteceria no caso de uma superexploração dos bancos de moluscos
–, e que a mudança se deu de forma excessivamente brusca para que estivesse
acompanhando uma mudança ambiental, concluindo que a alteração no padrão
deposicional estaria muito mais relacionada a fatores culturais do que ambientais.
Recentemente, Villagran (2012) constatou a ocorrência desse mesmo padrão em
sítios conchíferos com presença de cerâmica, chamados por ela de “montículos
ictiológicos”. Análises estratigráficas, composicionais e micromorfológicas nos sítios Santa
Marta VIII e Galheta IV revelaram evidências de continuidade no processo de formação
desses sítios com relação ao processo de formação observado nos sambaquis, embora as
41
conchas, antes principal material construtivo, tenham sido substituídas por ossos de peixe.
A cerâmica, em meio a essa manutenção ritual, torna-se uma pequena descontinuidade
em meio ao que parece ser uma continuidade estrutural.
Cabe lembrar que os estudos citados foram realizados em sítios do litoral sul de
Santa Catarina e, portanto, os resultados obtidos não necessariamente podem ser
estendidos às demais porções litorâneas, embora tudo indique que isso se trate, sim, de
algo que se deu em escala regional: diversos sítios do litoral norte e central, numa
observação superficial, também apresentam camadas superficais formadas por terra preta
nesse mesmo momento cronológico.
Quanto aos sítios conchíferos rasos com e sem cerâmica do litoral central, por
serem rasos e apresentarem sedimento mais escuro, com muita matéria orgânica e ossos
de peixe, eles às vezes são entendidos como áreas de habitação associadas a populações
focadas na pesca, e não, na coleta de moluscos. Aldeias em que os mortos seriam
enterrados no interior do espaço domiciliar ou em cemitérios contíguos às moradias (Rohr
1977, Silva et al. 1990, De Masi 1991, Schmitz et al. 1992).
Essas interpretações são semelhantes àquilo que se costumava pensar da camada
de terra preta do sítio Jabuticabeira II antes de ela ser estudada mais detalhadamente por
Nishida (2007), Bendazzoli (2007) e Villagran (2008), o que se explica pela semelhança que,
numa descrição visual, esses sítios rasos guardam com as camadas mais escuras, marrons e
de terra preta, dos sambaquis: segundo Rohr, eles seriam compostos de “restos de
cozinha: húmus, carvão vegetal, conchas, ossadas de peixes e de outros animais e o mais
variado material arqueológico, análogo ao encontrado nos sambaquis”. Não é possível,
contudo, extrapolar com convicção os resultados encontrados para a terra preta – com
relação à composição do sedimento e à continuidade na dinâmica ritual associada aos
montículos – aos sítios conchíferos rasos, uma vez que eles não foram alvo de estudos
detalhados que permitam esse tipo de inferência.
Alguns dados, no entanto, permitem que pensemos na possibilidade de uma
correlação, pelo menos com relação à dinâmica de rituais funerários intimamente
associados aos restos faunísticos que caracteriza a formação das camadas escuras dos
sambaquis. São eles: as datações mais tardias que os sítios rasos apresentam, sendo em
42
muitos casos contemporâneos às camadas de terra preta dos sambaquis e aos montículos
ictiológicos do litoral sul; o fato de apresentarem sempre uma grande quantidade de
sepultamentos; e a forma como, no caso do sítio da Armação do Sul, as maiores
concentrações de material arqueológico aparecem sempre acompanhando os
sepultamentos – o que já foi demonstrado no primeiro capítulo.
2.3 Contato e mobilidade
É verdade que objetos podem se deslocar sozinhos, mas dificilmente serão capazes
de, sozinhos, cobrirem grandes distâncias e atravessarem os contrafortes serranos em
direção ao litoral e, muito menos, em direção ao planalto. Para que artefatos como
esculturas zoomórficas, ou alimentos como pinhão se desloquem do litoral para a serra e
da serra para o litoral, algum indivíduo dotado de pernas, intenção e muita disposição deve
tê-los carregado consigo. Mesmo que adquiridos por troca, alguém deve ter migrado.
As evidências de contato interétnico e mobilidade no registro arqueológico podem
facilmente se misturar, uma vez que tanto um fator quanto o outro podem ser
responsáveis pelo deslocamento de objetos para longe de suas áreas de ocorrência
costumeiras. A partir do momento em que há contato entre populações de áreas distintas,
tem-se também possivelmente algum tipo de mobilidade, embora a ocorrência de
mobilidade para além das áreas de ocupação tradicionais não signifique necessariamente
que tenha havido contato.
É claro, também, que nem todo contato resulta em trocas de cultura material, o
que faz com que esse tipo de acontecimento por vezes se torne invisível no registro
arqueológico e, portanto, aos olhos do pesquisador.
A literatura arqueológica relacionada aos sítios conchíferos está repleta de
evidências – em geral fortuitas – de contato e/ou mobilidade caracterizada por grandes
deslocamentos no espaço mostrando que, embora as populações do planalto e do litoral
permanecessem em suas regiões de origem ao longo do ano (De Masi 2001), artefatos,
matérias-primas, alimentos e pessoas estavam em movimento, atravessando serras e
43
fronteiras entre o litoral e o interior, encosta e planalto, e também entre diferentes partes
do litoral.
Essas evidências não se fazem suficientes para indicar variações na forma como as
migrações e relações de contato – em termos de atores envolvidos, intensidade e tipo de
relação – foram empreendidas ao longo do tempo; indicam-nos, contudo, que a migração
e/ou o contato sempre aconteceram, pelo menos desde os tempos em que ainda eram
produzidos zoólitos até os momentos mais tardios.
Comecemos pela cerâmica. Possivelmente surgida na costa por volta de 1.300 A.P.,
é tradicionalmente atribuída a grupos da família linguística Jê (Chmyz 1967, 1968),
sugerindo contato das populações litorâneas com esses grupos do interior.
Pontas líticas que se enquadram na tradição Umbu aparecem aqui e acolá por toda
a faixa litorânea como ocorrências isoladas em sítios conchíferos, a exemplo das
encontradas no sítio da Armação do Sul, litoral central, e da Caiera, litoral sul (Schmitz et
al. 1992). Alguns sítios caracterizados pela presença de pontas e outros materiais líticos
lascados também aparecem ao longo da costa catarinense (Rohr 1984), porém não
sabemos se são contemporâneos aos sítios conchíferos, uma vez que ainda não foram alvo
de estudos sistemáticos.
No sítio conchífero Itacoara, no litoral norte, Bandeira (2004) encontrou artefatos
feitos em matéria-prima proveniente de outras regiões: um peso de rede em riolito
alterado, rocha que ocorre na região serrana de Campo Alegre, e um polidor em arenito,
rocha que ocorre nas proximidades do planalto lageano. Nesse mesmo sítio, foram
encontradas lascas em ágata, matéria-prima possivelmente proveniente do planalto, e dois
virotes – na camada inferior sem cerâmica –, artefato que até então só havia aparecido em
sítios do planalto (Tiburtius, Bigarellla & Bigarella 2011 [1951]).
Existem, ainda, algumas ocorrências de zoólitos no planalto do Rio Grande do Sul
(Gomes 2012) e, em Alfredo Wagner, último município antes do início do planalto serrano
catarinense, foi encontrado um zoólito em forma de baleia, que hoje está exposto no
Museu de Arqueologia de Lomba Alta. Achados inusitados, tendo em vista se tratar de um
artefato que costuma ser encontrado somente em sítios conchíferos litorâneos.
44
No litoral norte, as análises que Wesolowski (2007) fez nos dentes dos indivíduos
sepultados na camada com cerâmica do sítio Itacoara revelaram possíveis fitólitos de
pinhão em seus cálculos dentários, indicando que ou esses indivíduos foram até o pinhão,
ou o pinhão veio até eles.
E se os objetos estão se movendo, as pessoas também estão. No litoral norte,
Bastos (2009) evidenciou, a partir da análise de isótopos de estrôncio, a presença de três
indivíduos não-locais no sítio Forte Marechal Luz, um situado em horizonte sem cerâmica e
dois situados em horizonte cerâmico. Em estudo posterior, e por meio do cruzamento
desses resultados com dados sobre a paleodieta dessa população, Bastos (2014) sugeriu
que possivelmente esses indivíduos não-locais seriam provenientes da região da Cananéia,
no litoral sul de São Paulo, ou então de alguma outra região litorânea mais próxima. Esses
dados, contudo, dizem respeito somente ao sítio Forte Marechal Luz, no litoral norte. As
mesmas análises foram realizadas no sítio Tapera (Bastos 2014), sítio com cerâmica do
litoral central, porém não indicaram a presença de indivíduos não-locais, embora as
mulheres tenham apresentado uma maior variação nas razões isotópicas que pode ser
interpretada como resultante da circulação de indivíduos do sexo feminino ao longo do
litoral catarinense, talvez por meio de casamentos. Os sítios do litoral sul até o momento
não foram alvo de pesquisas desse tipo. Tal possibilidade levantada por Bastos (2014) para
o sítio Tapera foi também observada por Hubbe et al. (2009) entre as séries cerâmicas de
seu estudo de paleogenética.
Essas são as evidências mais contundentes de contato disponível até o momento e
se fazem extremamente significativas por confirmarem aquilo que as outras evidências já
vinham indicando: o contato com populações de diferentes localidades sempre aconteceu,
mesmo em tempos anteriores ao aparecimento da cerâmica na costa. E aconteceu tanto
com o interior quanto com o litoral, tomando formas diferentes em diferentes locais.
A cerâmica poderia, então, estar relacionada a um momento de intensificação
nesse contato que sempre existiu? É o que se costuma pensar, mas isso não é indicado por
qualquer dado disponível, nem tampouco por esses dados de Bastos (2009). O único
argumento em favor de um papel de destaque para a cerâmica nas questões relacionadas
ao contato – e à mudança em geral – é ela mesma.
45
Com isso, o contato também perde um pouco de sua grandeza. Se ele sempre
aconteceu, não pode ser tomado, por si só, como um fator decisivo para as mudanças que
tiveram início na costa a partir de 2.000 A.P., embora venha sendo entendido exatamente
assim pela literatura pertinente.
2.4 Quantidade de sítios e cronologia
Como bem nos demonstra Mendonça de Souza (2014), a paleodemografia dos
sítios conchíferos é um tema bastante complexo e ainda incipiente no Brasil. Quando se
trata de inferi-la de um ponto de vista bioarqueológico, a partir dos ossos, as dificuldades
são muitas, a começar pelos vieses causados pelas escolhas relacionadas às práticas
funerárias em si, pelos processos pós-deposicionais e pelos fatores bioculturais, que
reduzem ou distorcem a representatividade das séries.
Estimativas paleodemográficas indiretas, no entanto, são possíveis, e vêm
tradicionalmente sendo realizadas por meio da composição das habitações, do número de
assentamentos, da área dos sítios e outros dados culturais provenientes do registro
arqueológico (Mendonça de Souza 2014). A esses elementos, pode também ser
acrescentado o tamanho das habitações, o potencial da área para captação de recursos, a
produção e consumo desses recursos por meio da quantidade de vestígios no sítio e a
distribuição cronológica (Chamberlain 2006). A frequência das datas disponíveis para os
materiais e depósitos arqueológicos, de acordo com Chamberlain (2006: 132), pode ser
utilizada no lugar da frequência de vestígios, e as descontinuidades nas distribuições das
datas podem ser interpretadas como decorrentes de mudanças na distribuição e
densidade das populações ao longo do tempo.
Frente às dificuldades apontadas por Mendonça de Souza (2014), atenho-me aqui a
fazer uma análise superficial da frequência das datas disponíveis para os sítios conchíferos
catarinenses e das flutuações na quantidade de sítios ativos ao longo do tempo. Levarei
também em consideração o número de sepultamentos presentes em cada sítio, aspecto
que será mais detalhadamente analisado para o litoral central. Trata-se, na verdade, de um
exercício. Parto do pressuposto de que a frequência de datas, o número de sítios
46
concomitantemente ativos, bem como o número de sepultamentos encontrados ou
estimados para cada um deles, deve estar, de alguma forma, relacionado à
paleodemografia local, mesmo que não direta e proporcionalmente.
Gráfico 1: Histograma das datações disponíveis para os sítios conchíferos catarinenses. Para a maior parte dos
sítios existe somente uma datação, geralmente da base, e foram essas as datas utilizadas. Nos casos de sítios
com mais de uma datação disponível, foram consideradas a mais antiga e a mais recente. Dados provenientes
de Farias (2011), De Masi (2001), Duarte (1981), Rohr (1977), Hurt (1974), Fossari (2004), Bandeira (2004),
Giannini (2010), DeBlasis et al. (2007) e desta pesquisa.
É complicado, entretanto, fazer estimativas paleodemográficas a partir das
frequências das datações no caso dos sítios conchíferos, uma vez que eles costumavam ser
formados ao longo de centenas e às vezes milhares de anos, em ritmo episódico e/ou
contínuo, rápido e/ou lento. A utilização de uma data por sítio – duas, no caso de existirem
mais datas disponíveis – como foi feito aqui, não nos deixa entrever a quantidade de sítios
ativos em cada momento. Tampouco isso seria possível com a utilização de todas as datas
47
disponíveis, uma vez que enorme quantidade de datas existentes para alguns sítios poderia
distorcer o gráfico.
É importante lembrar também que o litoral sul conta com 48 sítios datados,
enquanto que para o litoral norte temos disponíveis apenas 19 datações e, para o litoral
central, apenas 14. Essa situação de forma alguma reflete diferenças na quantidade de
sítios em cada uma dessas porções litorâneas, somente a maior intensidade na realização
de pesquisas no litoral sul, e com certeza enviesa qualquer tentativa de comparação entre
as cronologias do litoral sul, norte e central.
De qualquer forma, a análise das flutuações na quantidade de sítios ativos ao longo
do tempo – dividido em períodos de 1000 anos – apresentou resultados interessantes, e
me pareceu bem mais proveitosa e fiel à realidade do que a análise da frequência das
datas.
É perceptível nos gráficos que o número de sítios mudou ao longo do tempo, mas
parece que não mudou da mesma forma nas diferentes porções do litoral catarinense. No
litoral sul, a quantidade de sítios ativos aumenta paulatinamente entre 8000 e 6000 AP até
chegar a um momento de aparente estabilidade entre 6000 e 4000 AP, com a manutenção
de uma dezena de sítios ativos. No período entre 4000 e 3000 AP ocorre um rápido
aumento nesse número, que passa de 10 para 20, sendo este o momento com maior
número de sítios ativos. A partir de 3000 AP, contudo, tem início uma queda vertiginosa.
Com o maior fechamento da paleolaguna de Santa Marta a partir de 1.700 A.P. o número
de sambaquis concomitantemente ativos diminui consideravelmente (ver Kneip 2004 e
Giannini et al. 2010) e, no momento seguinte, a partir de 1.300 A.P., permanecem ativos
e/ou surgem somente três sítios, passando para quatro entre 1000 e 500 AP.
A forma como se dá o crescimento no número de sítios ativos no litoral norte é
bastante similar àquela observada para o litoral sul. Tendo em vista que o litoral norte
conta com menos da metade da quantidade de datações disponíveis para o litoral sul, essa
similaridade é, no mínimo, curiosa. A maior diferença parece estar no rápido crescimento
após o período de estabilidade que, no litoral norte, não é tão rápido assim e aumenta o
número de sítios em apenas cinco, o que faz também com que a queda posterior – que
chega a sete entre 2000 e 1000 AP e a dois entre 1000 e 500 AP – não seja tão impactante.
48
No litoral central, o crescimento é diferente. Os números aumentam em ritmo bem
mais lento, até chegar a sete sítios ativos entre 3000 e 2000 AP. No momento seguinte,
entre 2000 e 1000 AP, a quantidade cai para quatro sítios e, depois, para três entre 1000 e
500 AP. Parece haver, portanto, maior continuidade na quantidade de sítios ao longo do
tempo, sem as subidas e quedas abruptas que observamos no litoral norte e sul.
N. de sítios ativos
25
20
15
Litoral Sul
10
Litoral Norte
Litoral Central
5
0
Anos AP
25
N. de sítios ativos
20
15
Litoral Sul
10
Litoral Norte
Litoral Central
5
0
Anos AP
Gráficos 2a e 2b: Representações das flutuações no número de sítios conchíferos ativos nas diferentes
porções litorâneas de Santa Catarina ao longo do tempo. Dados provenientes de Farias (2011), De Masi
(2001), Duarte (1981), Rohr (1977), Hurt (1974), Fossari (2004), Bandeira (2004), Giannini (2010), DeBlasis et
al. (2007) e desta pesquisa.
49
Os dados apresentados indicam que o período de 4000 a 3000 AP, no litoral sul, e o
período de 3000 a 2000 AP, no litoral norte e central, podem sido marcados por um maior
adensamento populacional, ocasionando maior frequência de rituais funerários e,
portanto, a necessidade de manutenção de sítios antigos e formação de novos espaços
para as práticas rituais. Indicam também que após esse momento de pico deve ter havido
rápida dispersão e/ou diminuição das populações nas diferentes porções litorâneas,
embora no litoral central essa queda não tome contornos tão drásticos. A outra
possibilidade é de que os rituais funerários nos sítios conchíferos tenham passado a ser
reservados a somente alguns indivíduos do grupo, ideia que, contudo, não faria sentido
para o litoral central, como veremos em seguida.
Tendo em vista as discrepâncias no número de datações disponíveis para cada
porção litorânea, somente com base nos gráficos não é possível dizer que o inferido
adensamento populacional tenha sido maior no litoral sul, a não ser que acrescentemos a
eles informações sobre tamanho dos sítios e a quantidade de sepultamentos encontrados
ou estimados para cada um deles.
Em geral, os sítios do litoral sul apresentam grandes dimensões e grande
quantidade de sepultamentos. Uma estimativa feita para o sítio Jabuticabeira II, por
exemplo, levando em consideração uma cifra de 0,137 sepultamentos por metro cúbico,
chegou ao número de 43000 indivíduos, que teriam sido sepultados no sítio ao longo de
1000 anos (DeBlasis et al. 2007). De acordo com Mendonça de Souza (2014), esse número
poderia estar representando uma população estável, com cerca de 70 mortes por ano, e,
assumindo-se um intervalo de 4 anos entre os nascimentos, essa população deveria ter um
número médio de 280 mulheres em idade de engravidar, um número equivalente de
homens adultos e em torno de 840 indivíduos imaturos. Com isso, a autora conclui que o
tamanho médio da população relacionada ao sítio Jabuticabeira II, por ano, seria de 1050
pessoas, o que é um número elevado para sociedades caçadoras-coletoras. De acordo com
DeBlasis et al. (2007:49), se este tipo de cálculo for estendido aos demais sambaquis do
litoral sul, “as cifras expandem-se de maneira quase assustadora”, porém, os parâmetros
demográficos são bastante frágeis ainda e, portanto, assim também o são as inferências
feitas com base neles.
50
Se considerarmos a possibilidade de um maior adensamento populacional no litoral
sul do que nas demais porções litorâneas, podemos falar da aparente diminuição no
tamanho da população a partir de 2000 anos AP em termos mais drásticos. Galheta IV, por
exemplo, um sítio com cerâmica que surge no período mais tardio da ocupação costeira
por essas populações, conta com um número muito pequeno de sepultamentos (DeBlasis,
Farias e Kneip 2014) perto da enorme quantidade de esqueletos exumados em sítios de
períodos anteriores. A diminuição no número de sepultamentos, aliada ao pequeno
número de sítios concomitantemente ativos nesse período, reforça a ideia de que ou
apenas uma minoria privilegiada passou a ser sepultada nos sítios conchíferos, ou a
sociedade em questão vivenciou um verdadeiro colapso.
No litoral norte, os sítios não apresentam dimensões tão monumentais e nem
possuem tantos sepultamentos quanto os sítios do litoral sul, porém são ainda grandes e
contam com mais sepultamentos do que aqueles do litoral central. Com base nisso,
imagino que nessa porção litorânea tal adensamento populacional também tenha se dado
em grandes proporções, porém não na mesma escala do litoral sul. Em rápida busca na
bibliografia referente a algumas pesquisas empreendidas em sítios do litoral norte
(Tiburtius, Bigarella e Bigarella 2011[1941]; Beck 2007[1971]; Bandeira 2004; Wesolowski
2007), não observei mudanças relevantes na quantidade de sepultamentos a partir de
2000 AP. Como já vimos que o número de sítios concomitantemente ativos diminui
bastante, não podemos associar uma aparente manutenção na quantidade de
sepultamentos com a ideia de manutenção no tamanho da população, mas podemos
entender que, no litoral norte, essa suposta diminuição do contingente populacional não
se deu de forma tão “implosiva” quanto no litoral sul.
O litoral central, por sua vez, apresenta sítios de menores dimensões e com menor
quantidade de sepultamentos. Esse período mais tardio de diminuição no número de sítios
ativos, contudo, é marcado pela rápida proliferação de sítios conchíferos rasos com e sem
cerâmica que, em comparação com aqueles do período anterior, apresentam um aumento
significativo na quantidade de sepultamentos. Estes passam de uma média de 19 em sítios
como Pântano do Sul (Rohr 1977), Ponta das Almas (Piazza 1966, Beck 2007[1973], Hurt
1974), Porto do Rio Vermelho II (De Masi 2001), Praia Grande (Rohr 1959) e Laranjeiras I
51
(Schmitz e Bitencourt 1996), para uma média de 106 sepultamentos em sítios como
Armação do Sul (Rohr e Andreatta 1969), Tapera (Rohr 1966), Base Aérea (Rohr 1959),
Cabeçudas (Schmitz e Verardi 1996) e Laranjeiras II (Schmitz et al. 1993). Isso aponta para
a possibilidade de manutenção do tamanho da população, ou até mesmo de aumento
desta, mas é possível também que represente, simplesmente, uma maior concentração de
rituais funerários em sítios específicos, o que poderia estar relacionado a um maior
adensamento da população – que antes estaria mais dispersa – em determinados locais da
porção litorânea central.
É claro que para uma análise mais cuidadosa seria necessário maior número de
dados, bem como considerar os volumes das áreas escavadas e estimar a quantidade de
sepultamentos para o volume total ou original dos sítios. Uma vez que essas questões
paleodemográficas não estão entre os objetivos deste trabalho, paramos por aqui.
2.5 Violência
Considerando as ocorrências de lesões associadas à violência – como perfurações
por pontas ósseas, fraturas nas epífises distais das ulnas e fraturas em depressão nos
crânios – em indivíduos de diferentes sítios do litoral catarinense, Lessa e Scherer (2008)
sugerem um aumento significativo do comportamento agressivo ao longo do tempo.
Enquanto a prevalência de lesões entre os sítios mais antigos é de apenas 3,1%
(Lessa e Gaspar 2012), esse número chega a 13,2% no conjunto de sítios formado por
Tapera e Base Aérea (litoral central), Itacoara e Enseada I (litoral norte) (Lessa e Scherer
2008), todos eles pertencentes ao período mais tardio de ocupação da costa e com
presença de cerâmica, situados nas porções litorâneas norte e central. Há ainda uma
ocorrência no sítio Armação do Sul, também mais tardio, porém sem presença de
cerâmica, mostrando que o aumento da violência não necessariamente está relacionado
ao aparecimento dessa tecnologia.
Não podemos deixar de atentar para o fato de que esse tipo de evidência, até o
momento, não foi observada para o litoral sul. Além disso, enquanto no litoral central a
maior parte das lesões observadas são de perfurações por pontas ósseas, que é o tipo de
52
evidência mais decisiva quando se trata da identificação de comportamento violento, no
litoral norte esse tipo de lesão foi observado somente no sítio Itacoara, o que talvez esteja
indicando que no litoral central esse aumento da violência foi mais significativo.
É importante ainda lembrar que as lesões ósseas observadas no registro
arqueológico podem subestimar quantitativamente a ocorrência dos confrontos, uma vez
que apenas uma minoria dos ferimentos de causa violenta atinge o esqueleto e aqueles
ferimentos ocorridos nos tecidos moles ou os casos em que houve remodelação perfeita
do tecido ósseo não ficam registrados. Os percentuais estimados para traumas agudos
violentos em sítios arqueológicos, portanto, representam apenas o número mínimo de
lesões (Lessa e Gaspar 2014).
Quanto às explicações para essa alteração no comportamento agressivo, Lessa e
Scherer (2008) levantam duas possibilidades: 1. Com o fim da prática de acumulação de
conchas para a formação dos sambaquis e da ideologia subjacente a essas práticas, aliado
à introdução de uma nova tecnologia como a cerâmica, é possível que a agressividade
tenha ganhado uma nova dimensão e importância num contexto que antes contava com
outros mecanismos para a resolução de conflitos e, assim, mantinha os níveis de
agressividade mais baixos. 2. Uma diminuição na oferta de alimentos marinhos – que seria
observável na maior quantidade de vestígios de fauna terrestre apresentada pelos sítios
mais tardios –, decorrente das oscilações no nível do mar, poderia ter gerado novas
tensões sociais no litoral, levando a comportamentos mais violentos.
As autoras chamam atenção, ainda, para a Anomalia Climática Ambiental, evento
climático que ocorreu entre aproximadamente 900 A.D. e 1.350 A.D, e que teria tido
repercussões ambientais e culturais em diferentes partes do mundo, dentre elas o
aumento da violência em função de desequilíbrios nos modos de subsistência tradicionais.
2.6 Paleogenética
Embora existam diferenças entre as séries pertencentes às diferentes porções
litorâneas (norte, sul e central) – possivelmente devidas a variações ao acaso (deriva
genética) do patrimônio genético ou fluxo gênico de outras populações (Neves 1988) – os
53
tempos anteriores ao aparecimento de cerâmica na costa são marcados por continuidade
biológica, dos sítios mais antigos aos mais recentes. Essa continuidade parece persistir
após o aparecimento da cerâmica, uma vez que a maior parte das séries cerâmicas
apresentam afinidades morfológicas com séries sem cerâmica; algumas séries, no entanto,
mostram-se distanciadas das demais, indicando que em alguns casos a cerâmica pode
estar relacionada à chegada de um novo patrimônio genético (Neves 1988, Okumura
2008). O caso do sítio da Armação do Sul, por sua vez, mostra que patrimônios genéticos
distintos já poderiam estar presentes na costa antes do aparecimento da cerâmica
(Okumura 2008).
Ao analisar marcadores osteológicos não-métricos de esqueletos provenientes de
sítios arqueológicos do litoral paranaense e catarinense, Neves (1988) conclui que as séries
cerâmicas Tapera, Base Aérea, Cabeçudas (litoral central) e Itacoara (litoral norte) se
aproximam das séries sem cerâmica setentrionais. As séries cerâmicas Laranjeiras II (litoral
central) e Enseada I (litoral norte), no entanto, distanciam-se de todas as demais séries,
cerâmicas e não cerâmicas. Da mesma forma, Armação do Sul, um sítio sem cerâmica,
distancia-se de todos os grupos cerâmicos e não cerâmicos do litoral central.
Não obstante a variação entre as séries, ao avaliar as distâncias biológicas
(M.M.D.s), Neves (1988:129) coloca que:
das 66 distâncias calculadas, 27 apresentaram-se significativas ao nível de
0.025, ou seja, cerca de 40%. Se levarmos em consideração que os
grupos pré-históricos envolvidos inserem-se numa faixa cronológica de
aproximadamente 4.000 anos, somos forçados a admitir uma
continuidade biológica considerável durante este vasto período.
Hubbe (2005) chega à conclusão semelhante. Embora de início coloque que há uma
tendência das séries cerâmicas do litoral catarinense separarem-se das não-cerâmicas, ao
inseri-las em um contexto mais amplo – com inclusão de séries litorâneas geograficamente
mais distantes – percebe que essa diferença deixa de existir de forma clara. Além disso, ao
incluir séries provenientes do interior no contexto de análise, o autor não observa
associações entre elas e as séries cerâmicas do litoral, enfraquecendo ainda mais a ideia da
chegada de um grupo biologicamente distinto à costa.
54
Assim, apesar de ter partido das seguintes hipóteses quanto à ocupação do litoral
catarinense:
I – Entrou de fato uma nova morfologia no litoral com a chegada da
cerâmica (difusão dêmica), e o novo grupo passou a trocar genes
extensivamente com as populações costeiras, de modo que as
semelhanças ou diferenças observadas entre as séries cerâmicas e entre
elas e as séries não-cerâmicas devem-se ao grau de mistura genética
entre ceramistas e não-ceramistas.
II – A cerâmica não veio acompanhada por uma nova leva biológica
(difusão cultural) e as diferenças morfológicas observadas se devem a
modificações nos hábitos de vida entre os grupos ceramistas. Esta
hipótese explica porque as diferenças entre ceramistas e não ceramistas
são tão instáveis.
III – A cerâmica veio acompanhada por uma nova leva biológica (difusão
dêmica), mas foi por vezes apenas assimilada por alguns grupos
litorâneos, de modo que apenas em alguns sítios cerâmicos se observa a
presença de uma nova leva biológica. Esta hipótese previamente
levantada por Neves (1988a) se encaixa em uma posição intermediária
entre as hipóteses anteriores (Hubbe 2005:147-148).
Ao fim, Hubbe (2005) coloca que os resultados obtidos favorecem a ideia de que o
aparecimento da cerâmica no litoral não foi acompanhado pelo aparecimento de uma
biologia distinta, apontando mais para a possibilidade de uma difusão cultural da cerâmica,
sem difusão dêmica expressiva – embora essa possa sim ter acontecido em determinados
locais.
Quanto às análises morfológicas realizadas por Okumura (2008), embora em alguns
momentos as séries com cerâmica do litoral norte e central do Estado tenham se mostrado
biologicamente mais próximas às séries sem cerâmica de suas respectivas regiões, as
análises apontaram preferencialmente para uma afinidade entre as séries ceramistas –
com exceções: Morro do Ouro, sítio sem cerâmica, aproxima-se dos sítios cerâmicos do
litoral norte; Praia do Embrulho, sítio com cerâmica, apresenta-se distanciado dos demais
sítios cerâmicos do Litoral Central. Na Ilha de Santa Catarina, por outro lado, a maioria das
análises indicou proximidade morfológica entre as séries de sítios com cerâmica e sem
cerâmica da Ilha, sugerindo a existência de afinidade biológica entre os grupos associados
a estes tipos distintos de sítios (Okumura 2008: 193). Tal proximidade foi também
observada por Hubbe (2005).
55
Vale lembrar que os autores citados alertam para a fragilidade dos dados que
apresentam, principalmente por questões de caráter amostral, mas também devido à
incerteza sobre o grau de determinação genética dos marcadores antropológicos utilizados
(Neves 1988, Hubbe 2005, Okumura 2008:144).
2.7 Padrão de residência pós-marital
Buscando verificar se o aparecimento da cerâmica e a mudança no padrão
deposicional dos sítios conchíferos foram acompanhadas por mudanças na estrutura social
dessas populações litorâneas, Hubbe et al. (2009) analisaram as práticas de residência pósmarital de sítios conchíferos com e sem cerâmica do Paraná e Santa Catarina, a partir da
variabilidade craniométrica intragrupo entre homens e mulheres e das correlações entre
distâncias Mahalanobis e distâncias geográficas de diferentes grupos. Os autores partiram
do pressuposto de que regras de residência refletem elementos sociais, econômicos e
simbólicos, e que, portanto, uma mudança em qualquer um desses elementos poderia
acarretar mudanças nas regras de residência.
De fato, os resultados alcançados apontaram nesse sentido: enquanto as séries
sem cerâmica apresentaram um padrão de variabilidade esperado em sistemas
matrilocais, as séries com cerâmica apresentaram um padrão esperado em sistemas
patrilocais, mostrando que as mudanças comumente observadas no registro arqueológico
em tempos mais tardios foram possivelmente acompanhadas por mudanças em
importantes aspectos da organização sociopolítica dessas populações. Assim, a cerâmica
não seria uma assimilação tecnológica simples e direta, mas estaria relacionada a tal
mudança no padrão de residência pós-marital:
by showing that pottery arrived in association with a new postmarital
residential practice by local groups, we undermine the idea of a simple
and straightforward technological assimilation. Important shifts in social
organization also characterized the transition from the pre-ceramic to the
ceramic periods. In this context, the adoption of pottery could have been
a consequence of the change in postmarital residential pattern per se.
[…] Although there are no current archaeological or ethnohistorical data
to support it, we suggest that the changes observed resulted from the
56
assimilation of the social model imposed by pottery-using people coming
from the interior plateau who settled on the coastal plains around 1200
years BP (Hubbe et al. 2009:10).
Hubbe et al. (2009:9) sugerem que mesmo não havendo qualquer evidência
arqueológica ou bioantropológica que permita pensarmos que todas as séries com
cerâmica apresentavam a mesma organização social, as correlações encontradas para elas,
mais extremadas se comparadas às das séries sem cerâmica – sexo imóvel com maior
correlação geográfica e sexo móvel com menor correlação geográfica – indicam que a
patrilocalidade foi, sim, adotada por todos os grupos associados a sítios cerâmicos.
2.8 Paleodieta
Hoje sabemos que a despeito da grande quantidade de valvas de moluscos que
caracteriza a estratigrafia dos sambaquis, os grupos humanos a eles associados tinham
provavelmente nos peixes sua principal fonte de alimento, sendo os moluscos utilizados
para outros fins e consumidos em quantidade muito menor do que um dia se supôs.
Sabemos também que, embora baseada principalmente nos peixes, a dieta dessas
populações era bastante variada, contando também, em menor quantidade, com
moluscos, crustáceos, aves, mamíferos marinhos, mamíferos terrestres e, ainda, com
alimentos vegetais oriundos de tubérculos, gramíneas e palmeiras em quantidades
provavelmente significativas, o que, inclusive, abre caminho para especulações em torno
do desenvolvimento de práticas de manejo e cultivo entre essas populações (Bandeira
1992; Figuti 1993; Klökler 2001; De Masi 2001, 2009; Scheel-Ybert 2001; Sheel-Ybert et al.
2003; Wesolowski 2000, 2007; Hansel e Schmitz 2006). Mas não foi sempre assim.
Os estudos sobre a paleodieta das populações associadas aos sambaquis da costa
sul e sudeste brasileira passaram por duas relevantes viradas teórico-metodológicas nas
últimas décadas. A primeira delas se deu na década de 1990, e está relacionada ao
reconhecimento da relevância dos peixes na dieta desses grupos litorâneos; a segunda,
nos anos 2000, diz respeito ao uso de novos métodos provenientes das mais diversas
57
relações
interdisciplinares
que,
entre
outras
contribuições,
possibilitaram
o
reconhecimento da importância dos vegetais.
A primeira virada – a dos peixes – teve início com estudos de zooarqueologia que a
partir de cálculos do Número de Peças Identificadas (NPI) e Número Mínimo de Indivíduos
(NMI) estimaram a proporção de massa comestível entre restos de peixes e moluscos
presentes nos sítios, mostrando que os pescados correspondem à maior parte da massa
comestível estimada (Bandeira 1992, Figuti 1993, Klökler 2001) e, portanto, à principal
fonte proteica na dieta desses grupos. Até então, a impressionante quantidade de restos
de conchas nos sítios, a desatenção à forma como os processos tafonômicos afetam
diferentemente conchas e ossos de peixes, e a inadequação dos métodos de análise levava
os
pesquisadores
a
pensarem
que
a
dieta
dessas
populações
baseava-se
predominantemente em moluscos (Beck 2007 [1972]).
Por volta dos anos 2000, métodos provenientes de relações interdisciplinares
diversas – como as estabelecidas pela antracologia, paleopatologia, paleobotânica,
arqueologia biomolecular e arqueologia isotópica – mudaram novamente o rumo das
pesquisas no Brasil, acrescentando novos olhares possíveis à investigação da paleodieta
dos grupos litorâneos, antes baseada, sobretudo, na zooarqueologia e em alguns estudos
pontuais de paleopatologia. Foi a “virada dos vegetais”.
Como colocam Scheel-Ybert et al. (2003:110) e Wesolowski (2007:6), a escassez de
evidências diretas preservadas – o que em parte se deve a um contexto nacional de solo e
clima desfavoráveis à preservação – fez com que por muito tempo o papel dos vegetais
entre as populações litorâneas fosse subestimado. Sua presença vinha sendo inferida
somente a partir de sementes e coquinhos queimados encontrados fortuitamente ou,
então, por evidências indiretas como artefatos líticos aos quais são atribuídas funções de
preparação de alimentos vegetais (almofarizes, socadores e moedores) (Tenório 1991), e
observações de frequências e prevalências excepcionalmente altas de cárie em alguns
sítios (Wesolowski 2000).
Esforços metodológicos no sentido de revelar a presença vegetal para além de
achados fortuitos e evidências indiretas, tiveram início somente com estudos de
antracologia (Sheel-Ybert 2001, Scheel-Ybert et al. 2003), que chamaram atenção para a
58
presença constante de macro-restos de tubérculos carbonizados – tanto do tipo C3 (carás)
quanto do tipo C4 (gramíneas) – ao longo da estratigrafia dos sítios. Mais tarde, o estudo
de microfósseis como fitólitos e grãos de amido a partir dos cálculos dentários de
sepultamentos do litoral norte de Santa Catarina (Morro do Ouro, Enseada I, Forte
Marechal Luz e Itacoara) (Wesolowski 2007), realizado na interface entre paleopatologia
oral e paleobotânica, veio corroborar e acrescentar novas informações aos resultados
antracológicos, identificando nos cálculos dentários das séries analisadas possíveis
grânulos de milho, batata doce/Araceae e carás/Dioscorea SP (apenas no sítio Morro do
Ouro), bem como possíveis fitólitos de gramíneas/Poaceae, palmeiras/Arecaceae e –
inusitadamente – de pinhão (nos sítios Itacoara e Enseada I).
Olhares antracológicos, paleopatológicos e paleobotânicos permitiram que as
plantas fossem finalmente “vistas” no registro arqueológico, e associados aos achados
fortuitos e evidências indiretas – tecnológicas e paleopatológicas – sugerem que as plantas
contribuíram significativamente para a dieta dos grupos associados aos sambaquis e
demais sítios conchíferos litorâneos, levando-nos até mesmo a pensar na possibilidade da
prática de manejo e cultivo de vegetais por essas populações (Sheel-Ybert 2003,
Wesolowski 2007) o que, apontam DeBlasis et al. (2007:52), poderia ter tido um papel
importante no sedentarismo e na notável expansão demográfica observável entre as
sociedades litorâneas em meados do Holoceno.
Seguindo por caminho diferente, olhares isotópicos e biomoleculares sintonizados
com as dimensões invisíveis do registro arqueológico – no nível do átomo e das moléculas
– também sugeriram o consumo de vegetais por populações litorâneas, além de
confirmarem a preponderância dos peixes na dieta, já demonstrada na década de 1990
por Bandeira (1992) e Figuti (1993).
Análises de isótopos estáveis de carbono (δ13C) e nitrogênio (δ15N) – indicadores do
uso relativo de plantas C3 e C4 e uso relativo de recursos marinhos e terrestres,
respectivamente – a partir do colágeno de ossos e dentes humanos (De Masi 2001, 2009;
Bastos 2014; Colonese et al. 2014) e da apatita do esmalte dentário (Bastos 2014)
revelaram uma dieta predominantemente marinha, baseada principalmente em peixe,
59
para diversos sítios do litoral catarinense, porém com uma variação intra e intersítio
considerável.
Resíduos de lipídios preservados em fragmentos cerâmicos de sítios do litoral
catarinense (Enseada I, Ponta do Lessa, Rio do Meio e Tapera), analisados por
cromatografia gasosa e cromatografia gasosa-espectrometria de massa (Hansel e Schmitz
2006) apontaram nesse mesmo sentido. Os lipídios de origem animal – e, em geral,
animais de origem marinha – predominaram entre os extratos orgânicos totais, mas
compostos lipídicos de origem vegetal como triterpenos (resinas) e ésteres (ceras
epicuticulares), estes provavelmente relacionadas à fervura de folhas para consumo e a
produção de fibras, também foram detectados, porém em menor quantidade e com
exceção do sítio Ponta do Lessa.
Os resultados obtidos por Hansel e Schmitz (2006) mostraram que produtos de
origem animal eram processados em maior quantidade nos vasilhames cerâmicos
analisados do que produtos de origem vegetal, o que é bastante interessante, tendo em
vista a forma como a presença ou ausência de cerâmica nos arqueológicos costuma ser
interpretada em termos de paleodieta, sendo a introdução da cerâmica geralmente
associada ao consumo de produtos vegetais cultivados – e, logo, ao início de práticas
horticultoras. Ao sugerirem que os vasilhames estavam sendo utilizados principalmente
para o processamento de produtos de origem animal e marinha, os dados gerados
apontam para a manutenção, entre grupos portadores de cerâmica, de uma dieta que
tinha sua matriz nos peixes. Apontam para continuidade, e não para descontinuidade.
Outras percepções de mudança e continuidade, contudo, podem ser acessadas a
partir de outras abordagens. Bandeira (1992), por exemplo, ao estudar a mudança no meio
de subsistência dos grupos associados ao sítio Enseada I (São Francisco do Sul) a partir de
análises zooarqueológicas, mostra que há diferenças e semelhanças tanto quantitativas
quanto qualitativas entre os recursos utilizados na passagem do horizonte sem cerâmica
para o horizonte com cerâmica do sítio. Do ponto de vista zooarqueológico, portanto, a
cerâmica não representou uma ruptura na dieta da população associada ao sítio Enseada I,
nem tampouco uma permanência. A dieta dos dois momentos da ocupação, com e sem
cerâmica, segue uma tendência geral encabeçada pelos peixes – que se mantém inclusive
60
com relação às espécies de peixe mais consumidas – e, na sequência, pelos mamíferos e
crustáceos, apontando para uma continuidade em termos de principais recursos
alimentares. Ao mesmo tempo, contudo, o segundo momento da ocupação apresenta
diferenças quantitativas e qualitativas em termos de número de fragmentos e variedade
de recursos, apontando para descontinuidade.
No estudo de paleopatologia oral desenvolvido por Wesolowski (2007) nos sítios
Morro do Ouro, Forte Marechal Luz (séries sem cerâmica), Enseada I e Itacoara (séries com
cerâmica), em geral as séries apresentaram poucas cáries, desgaste intenso, pouca perda
dentária em vida e presença significativa de cálculo com tamanho de depósito tendendo a
moderado, resultado comumente esperado para séries esqueléticas provenientes de
sambaquis e que teve como exceção somente as séries do Morro do Ouro, com
frequências e prevalências altas de cáries, do Forte Marechal Luz e Enseada I, com
frequências e prevalências altas de perda dentária. A análise de micro-resíduos (fitólitos e
grãos de amido) nos cálculos dentários indicou consumo de alimentos amiláceos por todas
as séries, sem diferenças significativas entre as concentrações médias observadas.
Esses resultados apontam para a inexistência de correlação entre presença de
cerâmica e cáries, ou presença de cerâmica e consumo de vegetais. Tanto séries com
cerâmica quanto séries sem cerâmica apresentaram frequências e prevalências baixas de
cárie, e séries com e sem cerâmica apresentaram aporte semelhante de alimentos
amiláceos, o que nos leva a atentar mais uma vez para continuidade, dessa vez no
consumo de vegetais e nas escolhas, técnicas de processamento e padrões de ingestão dos
alimentos que, como coloca a autora (Wesolowski 2007:155), poderiam, entre outros
fatores, ter atuado na modulação do – baixo – desenvolvimento de cárie dessas séries. O
consumo de alimentos altamente proteicos como os peixes, por exemplo, é levantado pela
autora como um possível fator cariostático que estaria impedindo o desenvolvimento de
cáries entre as séries estudadas, mesmo sob uma dieta que conta com quantidades
significativas de amido. De um ponto de vista qualitativo, no entanto, Wesolowski (2007:
157) observou variações entre as séries analisadas com relação aos tipos de alimentos
amiláceos consumidos, sugerindo que a escolha e apropriação dos vegetais disponíveis
para uso alimentar variou segundo fatores locais, temporais e possivelmente culturais.
61
Por fim, o olhar isotópico. As análises de isótopos estáveis de δ15N e δ13C realizadas
por De Masi (2001, 2009), Bastos (2014) e Colonese et al. (2014) em indivíduos de diversos
sítios do litoral catarinense, com e sem presença de cerâmica, revelaram – como já
mencionado – uma dieta essencialmente marinha, havendo, no entanto, alguns indivíduos
com dietas mais terrestres e/ou essencialmente terrestre nos sítios Morro do Ouro,
Enseada I, Ponta das Almas, Ponta do Lessa, Forte Marechal Luz, Tapera, Jabuticabeira II e
Galheta IV. Em tempos mais tardios, a dieta se mantém essencialmente marinha tanto em
sítio cerâmicos quanto em não cerâmicos, porém, nesse período, alguns grupos baixam
seus valores δ15N ao mesmo tempo em que mantêm, diminuem ou aumentam os valores
δ13C, o que poderia estar indicando a entrada de um componente alimentar diferente,
como a introdução ou o consumo maior de plantas C3 ou C4.
Os dados isotópicos, portanto, indicam que a dieta permaneceu essencialmente
marinha ao longo do tempo e, ao mesmo tempo, indicam que dentro dos limites dessa
tendência geral houve transformação para uma dieta mais terrestre – ou menos marítima
– em tempos mais tardios, independentemente da presença de cerâmica nos sítios ou não.
Pequenas variações num todo homogêneo maior.
A partir das pesquisas apresentadas, é possível perceber como as noções de
mudança e permanência são dependentes das escalas e dos métodos de análise
empregados. Diferentes olhares revelam diferentes dimensões dos fenômenos de
mudança e continuidade: temos continuidade no consumo de peixes a partir de um olhar
biomolecular; continuidade no consumo das mesmas espécies de peixes e
descontinuidade em termos de quantidade de fragmentos e diversidade de espécies a
partir de um olhar zooarqueológico; continuidade com relação ao consumo de alimentos
amiláceos e um conjunto de fatores mantenedores de baixos índices de cárie escolhas, a
partir de um olhar paleopatológico/paleobotânico, porém descontinuidade nos tipos de
alimentos amiláceos consumidos; e, por fim, a partir de um olhar isotópico, novamente
continuidade e descontinuidade, dessa vez, respectivamente, em termos de uma dieta
com tendência marinha – numa escala menor, mais distante – e em termos das pequenas
variações dentro da tendência geral – numa escala maior, mais aproximada –, que
apontam para dietas mais terrestres ou menos marinhas.
62
3 Interpretando a mudança
A crença na coisa e no mundo só pode significar a
presunção de uma síntese acabada, e todavia
este acabamento é tornado impossível pela
própria natureza das perspectivas a ligar, já que
cada uma delas reenvia indefinidamente, por
seus horizontes, a outras perspectivas.
Maurice Merleau-Ponty,
Fenomenologia da percepção, 1945
As coisas mudam. É impossível adentrar o mesmo rio duas vezes; o rio muda, nós
mudamos. As ideias, as representações, os objetos, a vegetação, o clima, a alimentação, as
leis, os governantes, a tecnologia, a língua, a arte, a moral, as crenças, os deuses, a crosta
terrestre. Tudo muda. Coisas que mudam em ritmos e escalas que lhes são próprias; coisas
que mudam segundo pontos de vista específicos; coisas que mudam para mudar, coisas
que mudam para manter e coisas mantidas para mudar.
Ao lançarmos o olhar sobre o passado, toda essa mudança se manifesta
claramente. Em retrospecto, as transformações se fazem mais perceptíveis – é evidente
que as coisas mudaram – e, por isso, entender a mudança sempre foi uma questão central
na Arqueologia.
E se é verdade ser impossível adentrar o mesmo rio duas vezes, é também verdade
que um arqueólogo não estuda o mesmo sítio duas vezes. A mudança, assim, não se faz
apenas objeto de estudo do arqueólogo, ela constitui o arqueólogo enquanto sujeito. O
sítio muda, o arqueólogo muda. E nesse mudar, muda também a forma como se percebe e
se entende a mudança.
O tal olhar retrospectivo, portanto, permite vislumbrar a mudança nas ideias, nas
representações, nos objetos, na vegetação, no clima, na alimentação, nas leis, nos
governantes, na tecnologia, na língua, na arte, na moral, nas crenças, nos deuses, na crosta
63
terrestre, no registro arqueológico e nos arqueólogos. Permite vislumbrar, por exemplo,
como a própria constituição da Arqueologia como disciplina científica e sistemática está
intimamente relacionada à mudança na percepção de mudança entre filósofos e
naturalistas do século XIX, engendrada pela aceitação das ideias evolucionistas e pela
passagem do catastrofismo de Georges Cuvier – até então paradigma dominante na
Geologia – para o uniformitarismo de Charles Lyell que levou à aceitação dos trabalhos de
Boucher de Perthes e ao reconhecimento da antiguidade do ser humano.
Voltando um pouco mais no tempo, permite vislumbrar como até mesmo o
antiquarismo, que floresceu em meio à Renascença europeia e daria origem à disciplina,
tomou força justamente por uma mudança na percepção de mudança; ou melhor, pela
própria aceitação da mudança. Ao buscarem inspiração nos atos e pensamentos grecoromanos, os humanistas do renascimento deram início à crítica filológica: os textos e a
linguagem dos antigos passaram a ser estudados minuciosamente e, para atingir plenitude
de compreensão, era necessário considerar as circunstâncias e os períodos em que foram
escritos os textos, como também estudar as características das sociedades e civilizações
antigas. Surgiu, assim, a crítica histórica, que criou na mente renascentista a percepção de
mudanças, de transformações nos costumes, línguas e civilizações ao longo do tempo. A
noção de modificação sobrepôs-se aquela de permanência e continuidade, tão presente
em períodos anteriores (Sevcenko 1984: 14-15).
Aqui, a mudança e os arqueólogos são entendidos contextualmente. De que forma
mudam as culturas? Como arqueólogos que mudaram e mudam entendem a mudança?
Como mudanças teórico-metodológicas nos paradigmas que marcaram o desenvolvimento
da Arqueologia – histórico-culturalismo, processualismo e pós-processualismo – levaram a
compreensões diferenciadas da mudança no registro arqueológico que dizem respeito não
apenas ao registro em si, mas à própria Arqueologia em sua relação pendular entre a
Antropologia e a História, e aos próprios arqueólogos e suas compreensões de mundo?
Como vêm sendo entendidas as transformações nos sítios conchíferos catarinenses e que
ferramentas teóricas posso utilizar para interpretar a mudança no sítio Armação do Sul?
64
3.1 Percepções de mudança ontem e hoje
A Arqueologia sempre acompanhou as outras disciplinas, que sempre
acompanharam aquilo que estava acontecendo no mundo e as mudanças na percepção
desse mundo. A Antropologia é uma dessas disciplinas que sempre foi acompanhada de
perto pelos arqueólogos e, pelo menos para o contexto dos Estados Unidos, pode-se dizer
que na verdade uma acompanhou a outra, numa coevolução que é bastante perceptível na
Arqueologia histórico-culturalista que lá se desenvolveu como parte da Antropologia
boasiana e, mais tarde, na Arqueologia processualista que se desenvolveu juntamente com
a ecologia cultural de Steward.
A forma como os arqueólogos do histórico-culturalismo entendiam a mudança está
intimamente relacionada com seu entendimento de cultura – partitiva, normativa, fluida e
particular (Webster 2008: 12-13). Em sua fluidez, as culturas mudam; em sua
normatividade, elas refletem e se materializam no registro arqueológico – a cultura
material como objetificação de normas culturais. Fluidamente, mudanças socioculturais
acontecem por estímulos externos, como difusão, troca e migração; normativamente,
possuem correspondência direta e proporcional no registro arqueológico. Uma
preocupação fundamental da Arqueologia histórico-cultural é, portanto, mapear no tempo
e no espaço a variabilidade e mudança resultante dessa dispersão cultural, documentando
o desenvolvimento de áreas culturais específicas a partir das propriedades formais,
temporais e espaciais do registro arqueológico (Phillips e Willey 1953: 617).
A definição de unidades taxonômicas espaciais, temporais e formais, dentre as
quais se destacam os componentes e as fases, e a preocupação em estabelecer a relação
entre essas unidades por meio de unidade integrativas como os horizontes e as tradições
(Phillips e Willey 1953; Rouse 1953, 1955) servem, de acordo com Rouse (1953: 71), para o
objetivo histórico de determinar como a cultura material passa a apresentar as
características que tem e a ocorrer quando e onde ocorre, problema que é resolvido com a
invocação daquilo que ele chama de processos histórico-culturais. São eles a difusão e a
persistência, a invenção independente, a migração e a dispersão, a participação na cultura
65
(popularidade), a aculturação, a adaptação ecológica, a filogenia, o desenvolvimento
paralelo, evolução, entre outros (Rouse 1953: 71-73).
Unidades como componentes, fases, horizontes e tradições nada mais são,
portanto, do que formas de tornar a variabilidade e a mudança no registro arqueológico
mais inteligível e manipulável para o arqueólogo. O conceito de tradição caracteriza muito
bem a percepção de mudança que se desenvolveu entre os arqueólogos históricoculturalistas, pressupondo a existência de continuidades em meio às descontinuidades e,
assim, enfatizando um elemento que seria deixado de lado pelos processualistas, mas que
foi retomado pela crítica pós-processual e foi fundamental na sua percepção de mudança:
a longa duração.
As coisas, no entanto, mudam. Willey e Phillips (1958) representam uma fase de
transição no pensamento arqueológico, já chamando atenção para o potencial de
contribuição da Arqueologia na teoria antropológica por meio do estudo de processos. E,
ao desenvolver suas ideias de ecologia cultural, Steward (1955) critica a herança relativista
no entendimento de cultura e a mudança cultural pelo pensamento histórico-culturalista.
Essas críticas foram seguidas pelos arqueólogos da Nova Arqueologia surgida na
segunda metade do século XX. Com foco nos artefatos e seus atributos, tipos,
agrupamentos, culturas e grupos culturais, porém sem uma teoria geral capaz de sintetizar
regularidades e definir inter-relações, o histórico-culturalismo foi entendido como um
paradigma de orientação classificatória, ideográfica e histórica, expressado por meio de
narrativa literária e descritiva (Binford 1962; Clarke 1968, 1972).
Acontece que os próprios histórico-culturalistas estavam fazendo uma apropriação
simplista da disciplina histórica – pensando que produzir conhecimento historiográfico era
descrever objetos e produzir crônicas de acontecimentos – ironia já há muito observada
por Taylor (1948), atento que estava às inovações teóricas na produção historiográfica
estadunidense que, sob influência da Escola dos Annales, estava tomando ares de História
social e cultural.
Esta apropriação simplista da História teve continuidade com a Nova Arqueologia a
partir da década de 1960 que, entendendo a História como sendo aquilo que os históricoculturalistas faziam, tomou para si este desentendimento. Esforçando-se ao máximo para
66
escapar da “não-cientificidade” da disciplina histórica, acabaram aproximando-se cada vez
mais da Antropologia – “American archaeology is anthropology or it is nothing” (Willey e
Phillips 1958: 2) – e criando um preconceito com relação à História que perduraria até o
surgimento da crítica posterior, fortalecida pelas primeiras manifestações pós-processuais,
com sua perspectiva contextual. Esse distanciamento com relação à História foi
fundamental na forma como os processualistas entenderam a mudança e na forma como
os pós-processualistas, reaproximando-se da História, entenderiam depois deles.
Para que a Arqueologia pudesse contribuir no desenvolvimento da teoria
antropológica, Binford (1962: 224) sugere a busca por explanações a partir de um quadro
de referência sistêmico, fundamentado na ideia de sistemas culturais compostos por
subsistemas interligados. A cultura não é mais entendida como um conjunto de ideias,
valores e crenças compartilhadas, mas como o meio extra-somático de adaptação do
organismo humano – conceito tomado emprestado de White (Binford 1962: 218) –, numa
perspectiva que bebe também da ecologia cultural de Steward (1955).
O surgimento da noção de cultura sistêmica não se deu à toa: está relacionado à
busca por cientificidade que marcou o paradigma processualista num período em que as
ciências ditas “exatas” estavam chamando atenção devido ao desenvolvimento de novos
métodos – como o de datação por isótopos – e por todo o deslumbramento em torno da
computação e as infinitas possibilidades que ela encerrava. E, nesse ínterim, na passagem
da perspectiva normativa para a sistêmica, muda também a percepção de mudança.
De acordo com Flannery (1972 [1967]: 103-104), na abordagem normativa as
culturas mudam conforme as ideias, valores e crenças compartilhadas mudam, e esta
mudança pode ser temporal, uma vez que as ideias mudam no tempo, ou geográfica,
tendo em vista que o distanciamento com relação ao centro de uma área cultural leva à
diminuição no comprometimento com certas normas. Já para os arqueólogos
processualistas, o comportamento humano é o ponto de sobreposição entre um grande
número de sistemas, cada um englobando fenômenos culturais e, mais frequentemente,
fenômenos não-culturais. Estes sistemas competem pelo tempo e pela energia do
indivíduo, cuja manutenção do modo de vida depende do equilíbrio entre sistemas. A
mudança cultural, portanto, é causada por pequenas variações em um ou mais sistemas,
67
que com isso podem crescer, deslocar ou reforçar outros sistemas e atingir novamente o
equilíbrio num plano diferente. A estratégia da escola processual é isolar cada um desses
sistemas e estudá-los como variáveis separadas.
A perspectiva sistêmica implica também em mover as decisões sobre as
transformações culturais ainda mais para longe do indivíduo, dando continuidade a uma
tendência ao determinismo que foi iniciada pelos histórico-culturalistas. A ideia de “pontos
de virada”, de decisões cruciais tomadas por “grandes homens” já era considerada
inaceitável pela perspectiva normativa, afinal, segundo ela são os conjuntos de normas
compartilhadas que determinam o curso da História, e não o indivíduo, que é
simplesmente produto dessas normas. De um ponto de vista sistêmico, o indivíduo perde
ainda mais força: os sistemas, uma vez colocados em movimento, se auto-regulam, a tal
ponto que nem ao menos permitem rejeição ou aceitação de novos traços por uma cultura
– o que era possível na visão normativa. A partir do momento em que um sistema se move
numa direção específica, a gama de possibilidades de movimentos no próximo “ponto de
virada” é automaticamente limitada, sendo a cultura tão impotente para desviar os
sistemas quanto o indivíduo o é para mudar sua cultura. Isso não quer dizer que os
indivíduos não tomem decisões, mas que as evidências dessas decisões individuais não
podem ser recuperadas pelos arqueólogos (Flannery 1972 [1967]: 106).
No caso da arqueologia catarinense e da problemática da mudança no registro
arqueológico dos sítios conchíferos, as explicações dominantes entre autores de diferentes
tempos e linhas teóricas (Beck 2007[1972], Neves 1988, Schmitz et al. 1992, Prous 1992,
Lima 1999/2000, Tenório 2004, Fossari 2004, Gaspar 2004, Villagran 2012) são
difusionistas e, muitas vezes, vêm acompanhadas por um tom colonialista em que “como
água, a alta cultura corre morro abaixo” (Dietler 2005:56). Estão em geral relacionadas à
ideia de contato de populações do litoral com populações interioranas da família
linguística Jê, devido ao aparecimento de cerâmica das tradições Taquara e Itararé –
estabelecida como estando associada a grupos Jê desde que Chmyz (1967, 1968) apontou
para a semelhança entre ela e a cerâmica produzida pelos indígenas Kaingáng do Estado
do Paraná – nos sítios conchíferos mais tardios. Contato que teria resultado na difusão de
ideias, artefatos e recursos acompanhada de trocas gênicas ou não e, ao fim, na
68
hibridização ou aculturação das populações litorâneas. Tal forma de perceber a mudança,
contudo, ganha diferentes nuances na narrativa de diferentes autores, que seguem na
íntegra de forma a evitar qualquer interpretação enviesada de minha parte:
Esse fenômeno [o colapso] parece ter sido decorrente da chegada de
bem-sucedidos e aguerridos horticultores interioranos à costa.
Economicamente mais poderosos porquanto capazes de produzir seus
alimentos, socialmente organizados em estruturas mais sólidas e
complexas, tecnologicamente mais avançados e numericamente
expressivos, acabaram por determinar a absorção ou extinção dos
pescadores-coletores, de tal forma que, à chegada dos europeus no
limiar do século XVI, há muito essas populações já tinham desaparecido
da costa centro-meridional brasileira (Lima 1999/2000:285).
É o contato com outras populações que explica também a
desestruturação da sociedade sambaquieira. Os estudos sugerem que
inicialmente os sambaquis estabeleceram relações de troca com
ceramistas do interior. É esse intercâmbio que explica a presença de
cacos de cerâmica nos últimos níveis de ocupação de muitos sítios sem
que tenha havido mudanças significativas em outros aspectos da vida
social. Em um segundo momento, por volta do início da era cristã, os
ceramistas, superiores tecnologicamente e em processo de expansão
territorial, passaram a colonizar o litoral e, dessa forma, desestruturaram
o sistema social que durante longo tempo havia sido soberano. [...]
Considerando as características dos grupos que estavam na costa
brasileira quando os europeus chegaram, os sambaquieiros devem ter
sido incorporados ou eliminados (Gaspar 2004:67-68).
[...] a essa cultura sambaquiana eram constantemente agregados novos
costumes trazidos por grupos que alcançavam a costa, oriundos do
interior. Apesar deste intenso contato, essa cultura não perdeu sua
supremacia até a chegada dos ceramistas [...] (Tenório 2004:176).
Uma hipótese é que as populações em foco [ceramistas] passariam o
inverno no planalto para aproveitar o período de maturação do pinhão,
enquanto ficariam no litoral durante o verão. [...] Outra hipótese é da
“invasão” no litoral por populações interioranas, o que explicaria o fim
dos sambaquis típicos paralelamente à introdução da cerâmica. [...] No
entanto, achamos improvável que uma adaptação tão perfeita ao
ambiente marítimo quanto a dos habitantes dos “acampamentos”
litorâneos seja atribuída a interioranos recém-chegados. Talvez tenha
havido uma progressiva intensificação de intercâmbios materiais entre os
grupos marginais (testemunhada pela existência de zoólitos na escarpa
do planalto rio-grandense, ao longo do Jacuí, por bifaces de quartzo nos
sambaquis de Laguna e peças de xisto nos de Joinville), seguidos por
trocas matrimoniais, as mulheres trazendo consigo a tecnologia cerâmica
(hipótese esta levantada por A. Bryan, em 1978) (Prous 1992:331-332).
69
[...] acredita-se que não teria havido chegada massiva dos Jê à costa, mas
sim uma intensificação no contato e domínio dos ceramistas sobre os
pescadores-caçadores-coletores do litoral, evidenciada pela adoção da
tecnologia cerâmica e pelo abandono da deposição de conchas. [...] O
que parece ter havido no litoral é a introdução de uma tecnologia, sem
modificação no sistema de produção característico das comunidades
pescadoras, mas com intensificação na violência e com abandono do
simbolismo associado à arquitetura em conchas. [...] Não se trataria,
portanto, de a invasão do litoral por grupos do planalto meridional ter
provocado a desestabilização de uma suposta arquitetura monumental;
mas sim de a pressão geográfica, política e, principalmente, ideológica,
exercida pelos ceramistas interioranos, ter motivado uma reestruturação
da cultura tradicional da costa (Villagran 2012:438-439).
As explicações difusionistas, no entanto, por vezes ganham ares mais extremos,
entendendo os sítios conchíferos com cerâmica não como fruto de mero contato,
hibridização ou aculturação, mas de uma ocupação do litoral por grupos Jê propriamente
ditos que, vindos do interior, teriam migrado em massa e, de acordo com Fossari (2004),
instaurado um sistema de assentamento no qual se incluiriam os sítios conchíferos com
presença de cerâmica, as oficinas líticas e as inscrições rupestres.
Nesta tese sugere-se que certas evidências arqueológicas presentes na
Ilha de Santa Catarina constituem unidades do sistema de assentamento
pré-colonial Jê na Ilha de Santa Catarina, buscando-se dar visibilidade ao
que estava subjacente à Arqueologia catarinense. [...] Em escala local a
população pré-colonial Jê corresponde à penúltima das diferentes levas
populacionais que se estabeleceram na Ilha de Santa Catarina durante o
período pré-colonial. [...] Antes desta pesquisa de salvamento [sítio Rio
do Meio] não se falava em uma população, mas nos sítios arqueológicos
da Ilha que tinham sido pesquisados individualmente - Caiacanga-Mirim
(Rohr,1959), Tapera (Rohr, 1966) e Ponta do Lessa ou Rio Lessa (Beck et
al., 1969) e cujas publicações registravam as semelhanças observadas
entre certas evidências, notadamente a cerâmica, neles encontradas. Foi
a partir da pesquisa do sítio Rio do Meio - identificado por Fossari (1996)
como de Tradição Itararé - que se passou a refletir sobre a população
pré-colonial Jê na Ilha de Santa Catarina (Fossari 2004:12-14).
Existem também narrativas que levam em conta todas essas percepções ao mesmo
tempo, como a de Neves (1988), que sugere duas hipóteses para a mudança no registro:
a) Que os sítios cerâmicos associados à pesca são, na verdade, produto
dos mesmos construtores de sambaquis que tiveram que adotar um novo
padrão de subsistência, provavelmente em virtude de mudanças
70
ecológicas. A cerâmica teria sido simplesmente incorporada à “cultura
sambaquiana”, através de contato com grupos ceramistas do planalto.
b) Admitindo-se que a chegada da cerâmica na costa reflete uma difusão
dêmica (deslocamento populacional) no sentido interior-litoral, os
construtores de sambaquis podem ter abandonado a área em virtude de
pressão territorial, ter sido eliminados por contatos belicosos ou ainda
absorvidos pela estrutura social, certamente mais complexa, dos recémchegados. Uma fusão dos três fenômenos pode também ter ocorrido
(Neves 1988:51-51).
Embora as explicações difusionistas sejam – o trocadilho é inevitável – as mais
difundidas e bem aceitas, elas não são as únicas. Beck (2007[1972]: 39), por exemplo, ao
mesmo tempo em que entende os sítios conchíferos com cerâmica como fruto de difusão
a partir do interior, não exclui a possibilidade de que
se os construtores dos sambaquis não os habitavam, é provável que
tivessem seus utensílios de cerâmica no local do acampamento. Assim,
teríamos dois tipos de sítios; os montes de detritos, constituídos pelos
sambaquis, e os de habitação constituídos pelos sítios cerâmicos. Certo,
também, que em face de suas funções distintas, estes sítios possam, em
rápida observação, ser considerados como pertencentes a grupos
culturalmente diferentes, não se vendo qualquer correlação (Beck
2007[1972]:39).
O que, aliás, é uma interpretação sistêmica dos fatos – se pensarmos nos
entendimento processual de “sistêmico” – em que a mudança no registro arqueológico é
considerada uma questão de variabilidade funcional em um mesmo sistema cultural
(Binford e Binford 1966, Binford 1982).
Explicações voltadas para a adaptabilidade das culturas ao meio (Rohr 1977, 1984),
e combinações entre explicações ambientais e culturais (Lima 1999/2000, Giannini et al.
2010), são também frequentes, principalmente quando o assunto se trata da mudança na
composição dos sítios que, antes formados predominantemente por conchas, passam a ser
formados por sedimento escuro com ossos de peixes:
os sítios de sepultamentos, possivelmente, foram construídos pelos
últimos remanescentes dos sambaquianos, os quais, à falta de moluscos,
passaram a dedicar-se mais à caça e à pesca. Esta hipótese é confirmada
pelas datações através do carbono radiativo que revelam idade de mil, a
mil e quinhentos anos para os sítios de sepultamentos” (Rohr 1984:85).
71
Possíveis causas para o colapso da coleta de moluscos e, por conseguinte,
dos sambaquis, têm sido aventadas. Uma delas pode ter sido o
esgotamento das suas colônias, provocado pelo sistema altamente
predatório e imprevidente de coleta, no qual tanto formas jovens de
espécies cobiçadas quanto espécies imprestáveis para consumo eram
implacavelmente dizimadas, arrancadas juntamente com animais
adultos, como vem demonstrando a zooarqueologia. Essas razias
contínuas teriam enfraquecido consideravelmente a capacidade de
regeneração dos bancos, provocando seu esgotamento e a consequente
necessidade de compensação dessa perda, com o aumento da atividade
pesqueira (Lima 1999/2000:284).
Na fase 4, o número de sítios em construção diminui, com concentração
em áreas de pontões costeiros (Figura 7B). Associada à nítida alteração
de padrão construtivo, esta última fase pode refletir seja uma mudança
cultural, promovida pela chegada dos grupos Jê do planalto (Gaspar,
1998; Prous, 1992), seja o escasseamento dos bancos de conchas
acarretado pela redução de circulação hidrodinâmica e de salinidade, em
contexto de progressivo assoreamento lagunar (Amaral, 2008; Fornari et
al., 2008; Giannini et al., 2009), seja ainda uma combinação destes dois
fatores. [...] No contexto da forte articulação entre evolução sedimentar
e ocupação sambaquieira, demonstrada neste trabalho, uma combinação
entre estes fatores naturais e culturais parece oferecer a melhor
explicação para a marcante mudança da fase 3 para a fase 4 (Giannini et
al. 2010:121/124)
Estou em total desacordo com a perspectiva postulada por Fossari (2004) – em
parte também considerada por Neves (1984) – de que os sítios e horizontes de sítios com
cerâmica pertenceriam a grupos Jê chegados do planalto, uma vez que vai contra as
evidências de continuidade apresentadas por trabalhos mais recentes (Hansel 2006;
Wesolowski 2007; Okumura 2008; Bastos 2009, 2014; Villagran 2012). Também não posso
concordar com Beck (2007[1971]), afinal, hoje sabemos que os sítios com cerâmica são
cronologicamente posteriores e não poderiam compor um sistema com os sambaquis.
Nem com a ideia de que a diminuição da presença de conchas na composição dos sítios se
deve a uma maior dedicação à pesca devido à falta de moluscos (Rohr 1984, Lima
1999/2000), pois hoje sabemos que as populações litorâneas sempre tiveram nos peixes
sua principal fonte de alimento (Bandeira 1992, Figuti 1993, Klökler 2001, De Masi 2001) e
o trabalho de Nishida (2007) nos mostra que, pelo menos no caso do sítio Jabuticabeira II,
o tamanho e idade dos moluscos que estavam sendo coletados não diminuem ao longo da
72
estratigrafia – o que aconteceria no caso de uma superexploração dos bancos de
moluscos.
Não descarto, porém, as demais possibilidades levantadas na bibliografia, tanto de
mudança paleogeográfica quanto de difusão cultural, embora me sinta um pouco
incomodada com o tom colonialista que acompanha a maior parte dessas ideias, tomando
como pressuposto o inevitável e unilateral domínio político, material e ideológico dos
grupos horticultores – considerados tecnologicamente superiores e socialmente mais
complexos – sobre as populações litorâneas que viviam da pesca, caça e coleta. Essa forma
de pensamento, em sua essência, provém de Childe (1975[1936]) – que estabelece a
primazia da revolução neolítica e sua estreita relação com a complexidade – e perpetua
oposições binárias, como centro-periferia e civilização-barbárie, que remetem ao projeto
colonialista greco-romano e, mais recentemente, europeu.
Num tempo em que a possibilidade de emergência de complexidade social entre
caçadores-coletores é reconhecida em diferentes contextos ao redor do mundo,
sobretudo naqueles associados a ambientes costeiros e exploração de recursos aquáticos
(Arnold 1996, Sassaman 2004) e, inclusive, vem sendo estendida às sociedades
construtoras dos sambaquis do sul do Brasil (DeBlasis et al. 2007, Gaspar et al. 2008), a
popularidade dessa lógica materialista/colonialista na literatura sobre os sítios conchíferos
se torna ainda mais estranha.
Faço minhas, portanto, as palavras de Dietler (2005:49): “what is crucial is the
constant questioning of our implicit assumptions and their discursive bases, because these
have a great influence in conditioning research goals, interpretation, and evaluation of
knowledge claims”.
A ideologia e prática colonialista europeia que teve início a partir do século XV
foram, em grande medida, fundamentadas pelos discursos e práticas colonialistas grecoromanas. Entendendo-se como herdeiros da civilização greco-romana, os Estados
modernos europeus atribuíram a si mesmos o papel de dar continuidade à missão
civilizatória, absorvendo a dicotomização hierárquica clássica entre sociedades “civilizadas”
e “bárbaras”. Assim, situações de contato entre os dois extremos da dicotomia resultariam
num processo unidirecional de inevitável atratividade da cultura “civilizada” perante o
73
“bárbaro”. Por meio desse discurso de superioridade cultural, a Europa pôde se definir
como centro hegemônico; como motor cultural e econômico da história do mundo (Dietler
2005).
Nesse mesmo sentido, ao acionarem – despercebidamente – o discurso colonialista
em conjunto com o modelo de Childe (1975[1936]), os arqueólogos acabam por colocar as
populações Jê no centro do mundo pré-colonial, conferindo-lhes hegemonia e um papel de
destaque nos processos de mudança pelos quais passaram os pescadores-caçadorescoletores do litoral, em que irradiam cultura e inovação.
Estudos realizados a partir de perspectivas descolonizadoras, contudo, têm
mostrado que termos como helenização (Dietler 2005) ou romanização (Gosden 2005)
dizem respeito muito mais às aspirações e disposições dos pesquisadores e dos próprios
“conquistadores” do que às populações nativas envolvidas e às relações de fato
empreendidas. Dietler (2005) nos mostra como as evidências apontam não para uma
aderência à cultura grega entre os nativos da idade do ferro na França, mas para uma
demanda limitada e extremamente seletiva de bens como o vinho e aparelhagem
relacionada. Gosden (2005), por sua vez, chama atenção para o modo como a cerâmica
Samian, artefato de origem romana, não necessariamente era entendida como “romana”
pelos habitantes da Grã-Bretanha durante o processo de “romanização”, tendo, pelo
contrário, provavelmente sido assimilada rapidamente como um elemento local; mostra
também como os princípios da arquitetura clássica foram violados para acomodar mais
unidades familiares nos prédios, ajustando-se à estrutura social local. Da mesma forma, há
tempos a influência recíproca e os processos de negociação entre os indígenas do Novo
Mundo e os colonizadores europeus são reconhecidos pelos historiadores, antropólogos e
arqueólogos, como acontece, por exemplo, no “pensamento mestiço” de Gruzinski (2001).
Os estudos mencionados relativizam a ideia de domínio unilateral em situações
reais de colonialismo. No caso dos sítios conchíferos, contudo, não há até o momento
qualquer evidência material da realidade dessas situações, a não ser que a cerâmica fosse
considerada uma evidência por si só; mas, ainda assim, se fosse o caso, não se poderia
falar em expansão e influência Jê na costa sem automaticamente falar em influência das
populações costeiras sobre os Jê e sem levar em consideração que a mudança no registro
74
não reflete uma transferência direta de aspectos culturais, mas as apropriações locais
resultantes desse contato.
E, aliás, as populações litorâneas – que se avizinham umas às outras ao longo da
costa – raramente são levadas em consideração quando se pensa na possibilidade de
mudanças engendradas pelo contato, obscurecidas que ficam face à “revolução neolítica”
Jê. Bastos (2009, 2014), contudo, nos mostrou que os indivíduos não locais do Forte
Marechal Luz são provavelmente provenientes de outra parte do litoral, e que a grande
variação nas razões isotópicas das mulheres da Tapera pode estar representando uma
circulação de mulheres – talvez por meio de casamentos – ao longo do litoral central.
Ainda, não podemos deixar de lembrar que diferentes locais ao longo da costa catarinense
devem ter sido marcados por processos de mudança e situações de contato também
distintas, tanto na forma das relações estabelecidas quanto nos atores envolvidos.
De qualquer modo, as mudanças paleogeográficas e as relações de contato – sejam
de tom colonialista ou não, sejam com o interior ou com o litoral – são apenas dois
possíveis fatores que, sozinhos, não dão conta de explicar a multiplicidade de mudanças
observadas no registro arqueológico dos sítios conchíferos – sinteticamente arroladas no
capítulo 2 – e, muito menos, as diferenças contextuais perceptíveis nas diferentes porções
litorâneas, decorrentes das interpretações e desenrolamentos locais dos acontecimentos
(Sahlins 2011[1985]).
É justamente na forma como os processualistas colocaram a mudança para longe
da ação dos indivíduos e ignoraram a importância dos contextos locais de significação, que
os pós-processualistas, em meio a um contexto pós-colonial de crítica ao colonialismo e
suas implicações econômicas, políticas e sociais, dão início à sua crítica.
Um dos primeiros passos da crítica pós-processual foi reaproximar a Arqueologia da
História, duas disciplinas que lidam com o passado, mas que foram separadas pela
preocupação sistêmica da Nova Arqueologia numa dicotomização entre diacronia e
sincronia, História e explanações antropológicas – ou científicas (Hodder 2009[1987]: vii).
A reaproximação feita, contudo, não é com qualquer História. É com uma História
de longa duração em grande parte inspirada pelos três tempos de Braudel e que vem
fortemente acompanhada da teoria social de Bourdieu e Giddens. De acordo com Hodder
75
(2009 [1987]: 5-7), a longa duração é ideal para os estudos arqueológicos, uma vez que a
Arqueologia lida com durações muito longas, porém parte do resultado de eventos
individuais que é o registro arqueológico. Tal perspectiva pode também ser traduzida
como “História cultural”, movimento que faz Morris (2003: 3) ao defender que
“archaeology is cultural history or it is nothing”. Seu argumento inicial é de que como a
Arqueologia estuda pessoas que viveram no passado, é uma disciplina histórica; e como faz
isso por meio da cultura material, é História cultural, esta sendo entendida como um
movimento entre práticas e representações, no sentido clássico dado por Chartier (1990) –
trata-se de uma História cultural diferente daquela praticada pelos histórico-culturalistas;
História cultural no sentido dado pela Escola dos Annales, e não no sentido de Boas.
Essa perspectiva implica num exame das relações entre estrutura e indivíduo.
Ações cotidianas podem gerar mudança social, reformulando e reproduzindo modos de
vida – se a estrutura pode coagir a ação dos indivíduos, a agência humana também pode
determinar mudanças na estrutura. Implica, portanto, num novo entendimento de
mudança, que é permeado pela ideia de ação social, na qual a cultura material é vista
como ativamente e significativamente produzida numa centralização em torno do
indivíduo, da cultura e da História (Hodder 1985).
Segundo a perspectiva da ação social, as pessoas deixam de ser passivas para
tornarem-se ativas. Deixam de reagir a estímulos externos para negociarem ativamente
regras sociais, criando e transformando a estrutura social que é por elas construída; seu
comportamento não mais reflete as normas de uma cultura ou de um sistema cultural ao
qual o indivíduo é subordinado (Hodder 1985: 2). A mudança social é historicamente
dependente, no sentido em que está sujeita a particularidades contextuais e que toda ação
só possui sentido ao fazer referência a ações do passado – a História configura-se, ao
mesmo tempo, como sujeito e objeto, numa “[...] relação de pertença e de posse na qual o
corpo apropriado pela História se apropria, de maneira absoluta e imediata, das coisas
habitadas por essa História” (Bourdieu 1989: 83).
Para entender a mudança social adequadamente, deve-se levar em conta a
cognoscibilidade dos atores humanos, ou seja, sua capacidade de monitoração e
observação das consequências intencionais ou não intencionais de suas ações, de agir
76
conscientemente para mudar o mundo, gerando inovação no processo de transformação e
negociação (Hodder 1985: 3).
Dentre as explicações para a mudança no registro dos sítios conchíferos
catarinenses que levam em consideração tal cognoscibilidade, posso citar a de Nishida
(2007:94), que enfatiza o papel das escolhas culturais ao colocar que
a partir dos dados obtidos sobre super exploração de espécies ou sobre a
fragilidade dos bancos de moluscos que os fatores ambientais não foram
determinantes na mudança do material construtivo. A mudança parece
estar mais relacionada a uma escolha cultural do que ambiental.
Bem como a de Giannini et al. (2010) que, embora expliquem a mudança no padrão
deposicional como fruto de uma associação às mudanças paleogeográficas e o contato
com os Jê, nesse outro trecho colocam que ela seria resultado de uma escolha cultural
frente a processos sedimentares e geomorfológicos que com certeza não eram ignorados
pelas populações litorâneas – percepção que considero mais interessante e de maior
utilidade na compreensão das questões aqui colocadas:
a ação das populações sambaquieiras na área de estudo é tratada no
mesmo nível dos processos sedimentares e geomorfológicos; e seu
sistema de assentamento é atribuído à intencionalidade, definida com
base em preferências, escolhas e ações significativas que, muitas vezes,
levam em consideração a dinâmica daqueles processos (Giannini et al.
2010:107).
A Arqueologia surgiu pela mudança, e continuou se ocupando dela – e mudando –
até os dias de hoje. Passou de uma cultura normativa que muda fluidamente por estímulos
externos causados por contato, migração ou difusão; para uma cultura que muda
sistemicamente como forma de adaptar-se ao meio; para uma cultura situacional que
muda historicamente na relação entre indivíduo e estrutura. Percepções de mudança que,
embora distintas, não excluem umas às outras, da mesma forma que os diferentes
paradigmas não são necessariamente excludentes.
A mudança, contudo, não para por aí. A Arqueologia é um processo (Hodder 1999),
e percebe-se cada vez mais uma ênfase na diversidade que foi engendrada pela crítica pósprocessual. A Arqueologia dos dias de hoje está vivendo o fim das grandes narrativas e dos
regionalismos para abrir espaço à multivocalidade tanto dos indivíduos estudados quanto
77
dos arqueólogos que os estudam, numa possibilidade muito maior de escolha e ecletismo
na definição de posições teóricas.
Tornam-se, assim, cada vez mais frequentes estudos que mesclam percepções de
mudança distintas para dar conta da complexa rede de fatores que envolvem as
transformações observadas no registro arqueológico ao longo do tempo, agregando ideias
de migração e/ou adaptação a explicações contextuais, integrando mecanismos externos
de mudança, como as normas e a busca por equilíbrio dos sistemas, com mecanismos
internos, encabeçados pelos indivíduos em sua relação com a estrutura. Nesse contexto,
que ferramentas podemos utilizar para entender a mudança nos sítios conchíferos
catarinenses e, em especial, no sítio Armação do Sul?
3.2 Longa duração, razões práticas e multidimensionalidade
Penso que o primeiro passo é estabelecer uma perspectiva de longa duração –
herança histórico-cultural resignificada pelo pós-processualismo – conferindo continuidade
histórica aos sítios conchíferos em meio às mudanças observadas no registro arqueológico,
movimento que já foi realizado no primeiro capítulo desta dissertação. Lembrando que o
modelo dos três tempos de Braudel, como qualquer modelo, é uma simplificação da
realidade, que de forma alguma esgota as escalas analíticas possíveis – como nos mostra a
micro-história do moleiro Menocchio, vivendo em seu próprio cosmos em tempos de
inquisição (Ginzburg (2005[1987]). E, tratando-se de uma escala analítica, o tempo em
Braudel é algo externo, predefinido pelo observador, não dizendo respeito às
temporalidades produzidas emicamente no interior do mundo social.
A diacronia dos tempos braudelianos ajuda-nos a perceber a fluidez e o caráter
processual da mudança. Fluidez não no sentido histórico-cultural, de uma aproximação
com a unidirecionalidade dos rios, mas como, simplesmente, ausência de limites rígidos.
Esse modelo, contudo, não se faz mais suficiente para darmos continuidade às
interpretações da mudança no registro arqueológico dos sítios conchíferos, por um
simples motivo: de acordo com Braudel (2005 [1958]), não há espaço para a sincronia no
78
tempo histórico; e a diacronia sozinha não dá conta de revelar as variações formais
resultantes de desenrolamentos locais, nem os mecanismos de mudança.
Como as coisas mudam, afinal? Braudel não está preocupado com isso. As
atualizações da estrutura, e a forma como essas atualizações se dão – justamente no
cruzamento do diacrônico com o sincrônico – não importam. O que de fato lhe importa é
medir
a
duração
precisa
dos
movimentos,
matematicamente;
“observar
o
entrecruzamento desses movimentos, sua interação e seus pontos de ruptura” (Braudel
2005[1985]: 73). Estrutura, conjuntura e evento fazem parte de um modelo desenvolvido
para a medição do tempo. São categorizações, congelamentos analíticos de uma história
movente, pensados como uma forma de observar os processos históricos e torná-los mais
facilmente manuseáveis, no intuito de transformar a História numa disciplina mais
“científica”; enfim, de organizar a História como disciplina e a história como processo – a
Arqueologia também passou e continua passando por isso.
Em meio às suas mudanças e permanências, no entanto, a estrutura de Braudel
segue aqui como pano de fundo; pano de fundo para a ação, que pode ser encontrada na
teoria da prática de Bourdieu (2011[1967], 1989, 2011[1994]) e na discussão de Sahlins
(2011[1985]) sobre a relação entre história e estrutura.
Bourdieu (2011[1967], 1989, 2011[1994]) desenvolve uma teoria da prática na
interface entre o estruturalismo e o materialismo, em que estruturas objetivas e
construções subjetivas interagem de forma complexa, numa relação de cumplicidade
ontológica intermediada pelo habitus, entidade estruturada e estruturante.
Como “princípio gerador e unificador que retraduz as características intrínsecas e
relacionais de uma posição em um estilo de vida unívoco, isto é, em um conjunto unívoco
de escolhas de pessoas, de bens, de práticas” (Bourdieu 2011[1994]: 21-21), o habitus é
diferenciado, assim como a posição da qual é produto dentro de um espaço social6, mas é
também diferenciador, operador de distinção. Trata-se de um conjunto de estruturas
sociais incorporadas na prática que permitem a relação social, um mundo de senso
6
Espaço social sendo entendido como um conjunto de posições distintas e coexistentes que equivalem a
distâncias sociais; uma apreensão relacional do mundo social, em que indivíduos e grupos subsistem na e
pela diferença, ocupando posições relativas em um espaço de relações invisíveis, porem reais (Bourdieu
2011[1994]).
79
comum; esquemas de visão e divisão (classificação) que são próprios de indivíduos
específicos, de um grupo ou de toda uma sociedade. Tendo em vista seu caráter
ontológico, o conceito de habitus pode ser aplicado sem risco de anacronia a qualquer
sociedade, porém, cada indivíduo, grupo ou sociedade terá o seu, e é aí que entra o
contexto histórico, na conformação do “conteúdo” desses habitus.
O habitus faz o indivíduo participar de sua coletividade, de sua época, orientando e
dirigindo seus atos aparentemente mais singulares sem que este tenha consciência e sem
deixar vestígios que provem sua existência (Bourdieu 2011[1967]). Não se trata, contudo,
de um destino ou determinação: embora a prática comumente acabe por reafirmar esse
habitus que, sendo vivido objetivamente, legitima-se e pode vir a se tornar doxa –
aparentando naturalidade e inevitabilidade – o sistema de disposições é aberto e está
sempre em construção, permitindo improviso e transformação. Além disso, há variações
singulares que nenhuma doutrinação pode abolir completamente, o que o autor chama de
habitus singulares.
A inércia presente na estrutura de Bourdieu, ou a tendência à reprodução que se
dá pela orquestração do habitus a partir de práticas que inculcam formas e categorias de
percepção é, portanto, relativizada pelo conceito de campo social, que encerra justamente
a ideia de conflito, sendo um espaço onde os agentes se enfrentam com meios e fins
diferenciados, contribuindo para a conservação ou transformação da estrutura. Agentes
que produzem e são produzidos.
A orientação da mudança, no entanto, depende do estado do sistema de
possibilidades que são oferecidas pela história e que determinam o que é possível e
impossível de ser feito ou pensado em um dado contexto temporal e espacial, mas,
também, depende dos interesses que orientam os agentes (Bourdieu 2011[1967]). E as
duas formas de orientação passam, necessariamente, pelo habitus, em suas disposições
sociais mais amplas e pessoais; assim como um ato de fala é redutível às regras de
gramática, um ato de invenção ou criação é redutível ao habitus. Quanto ao êxito de tal
ato inventivo, este só pode ser explicado por meio do encontro de causalidades diversas,
onde podem se incluir desde aspectos do contexto histórico, que pode ser propício ou não
à mudança, até questões como a legitimidade do indivíduo ou grupo que deu início a ela;
80
“é na história que reside o princípio da liberdade em relação à história” (Bourdieu
2011[1994]: 71).
Sahlins (2011[1985]) discute justamente essa relação entre estrutura e história. Por
um lado, os indivíduos dão sentido aos objetos partindo das compreensões preexistentes
da ordem cultural – habitus –, sendo a cultura reproduzida historicamente na ação; por
outro, esses esquemas convencionais são criativamente repensados, sendo a cultura
alterada historicamente na ação. Assim, “o que os antropólogos chamam de ‘estrutura’ –
as relações simbólicas de ordem cultural – é um objeto histórico” (Sahlins 2011[1985]: 8).
A arbitrariedade dos sistemas simbólicos reside exatamente em sua historicidade; mas,
como colocado por Bourdieu, é nela também que se encontra a possibilidade de mudança.
Sincronia e diacronia coexistem em uma síntese indissolúvel, e a questão da relação
entre estrutura e história acaba se desdobrando em duas outras importantes discussões,
que são a superação da dicotomia entre estabilidade e mudança e a demonstração da
intima relação entre evento e interpretação; ambas permeadas por um alerta aos riscos da
prática.
Toda mudança prática é também uma reprodução cultural, pois faz referência aos
esquemas incorporados; e toda reprodução cultural é uma alteração, uma vez que, por
meio da ação, as categorias através das quais o mundo é orquestrado assimilam sempre
algum novo conteúdo empírico. Os indivíduos e grupos agem de acordo com suas
autoconcepções e seus habituais interesses, tendendo a recriar as distinções existentes de
status e reproduzir a cultura da forma como ela está constituída. No mundo e na ação,
contudo, as categorias culturais são submetidas a riscos empíricos: os significados culturais
são alterados e, se as relações entre as categorias mudam, a estrutura é transformada. “O
mundo”, afinal, “não é obrigado a obedecer à lógica pela qual é concebido” (Sahlins
2011[1985]: 171). Frente a esse pragmatismo do simbólico, a cultura aparece como síntese
da reprodução e da variação, da estabilidade e da mudança, do passado e do presente.
Desse diálogo entre as categorias recebidas e os contextos percebidos, entre o
sentido cultural e a referência prática, segue que um acontecimento objetivo qualquer
será sempre uma ameaça em potencial às categorias pré-existentes, mas o contrário
também é válido: submetido às categorias estruturais do momento, um acontecimento
81
sempre estará sujeito a interpretações diversas, o que Sahlins (2011[1985]) chama de
riscos subjetivos. De acordo com ele, “agindo a partir de perspectivas diferentes e com
poderes sociais diversos para a objetivação de suas interpretações, as pessoas chegam a
diferentes conclusões quanto aos acontecimentos e as sociedades elaboram os consensos,
cada qual à sua maneira” (Sahlins (2011[1985]:11); e os efeitos desses riscos subjetivos
podem ser inovações radicais. Isso permite, por exemplo, que mudanças culturais
induzidas por forças externas – como o confronto com o próprio mundo e com outros
povos – sejam orquestradas de modo nativo o que, aliás, consiste em parte do argumento
do pensamento pós-colonial.
Em meio aos riscos objetivos e subjetivos, Sahlins (2011[1985]) chega à proposição
de que o evento é a relação entre um acontecimento e a(s) estrutura(s). Assim, por mais
que apresente propriedades “objetivas” enquanto acontecimento, um evento só adquire
significância histórica quando apropriado e interpretado por um esquema cultural,
dependendo da estrutura tanto por sua existência quanto por seu efeito; é, portanto, um
acontecimento de significância, ou a interpretação do acontecimento. E interpretações
variam.
A perspectiva centrada na prática, quando aplicada a contextos arqueológicos,
pode ser considerada triplamente potente, afinal, o registro arqueológico é o que restou
das práticas; a materialidade é um meio importante de objetificação de esquemas e
estruturação de habitus; e, uma vez relacionais e passíveis de negociação, as mudanças em
geral são lentas, podendo ser observadas com clareza no registro de muito longa duração
com o qual lida a arqueologia. A meu ver, não são necessários contextos arqueológicos
ideais em termos de riqueza de informações para que os indivíduos em suas relações
práticas com o mundo se revelem. A prática está igualmente presente nos sítios clássicos
greco-romanos, nas cidades neolíticas da Turquia e nos sítios conchíferos catarinenses;
basta um olhar mais aproximado, que ela se desvela naturalmente. É verdade que nem
sempre seus significados poderão ser apreendidos com precisão, mas a prática estará lá.
Os conceitos de habitus e evento promovem a síntese indissolúvel entre indivíduo e
estrutura, curta e longa duração, local e regional, sincronia e diacronia, mudança e
permanência, emprestando os mecanismos de mudança necessários ao dinamismo da
82
estrutura de conteúdo de Braudel. As três percepções juntas servirão de inspiração para as
interpretações apresentadas nos capítulos que seguem – constituindo meu próprio habitus
ou esquema incorporado.
Com esse quadro teórico em mente, podemos investigar os possíveis fatores
envolvidos na mudança nos sítios conchíferos, sejam eles de ordem cultural ou ambiental.
Entre eles podem estar questões internas às sociedades como a mudança no padrão de
residência pós-marital (Hubbe 2009) ou o aumento dos conflitos (Lessa e Scherer 2008),
mas também podem estar alguns dos processos histórico-culturais de Rouse (1953) – onde
se inclui o difusionismo que, como vimos, é o fator mais comumente invocado na literatura
– ou mesmo algum processo adaptativo binfordiano (1962) frente a mudanças ambientais.
Tudo, ou quase tudo é possível, desde, é claro, que seja observável no registro
arqueológico. E desde que não seja tomado como determinante, mas como parte de uma
rede de causalidades, sendo entendido contextualmente e do ponto de vista da prática,
em escala local e regional – o que inclusive nos permite escapar a questões falaciosas
como: o que veio antes, a virilocalidade ou os conflitos? A mudança na dieta ou a
cerâmica? Sabemos que a dieta mudou antes do aparecimento da cerâmica, como indicam
os dados gerados por De Masi (2009), mas isso não quer dizer que uma causou a outra.
Até porque, vimos no capítulo anterior que as mudanças e permanências no
registro
arqueológico
multidimensionais,
o
dos
sítios
conchíferos
que
implica
também
catarinenses
uma
são
multiplicidade
múltiplas
de
e
fatores.
Multidimensionalidade significa coexistência de mudanças e ritmos de mudança em
diferentes escalas espaciais e temporais, que vão desde as mais longas durações, como o
tempo evolutivo e o tempo das estruturas sociais, até as durações mais curtas do tempo
ritual e das atividades cotidianas.
O caráter multidimensional do registro arqueológico já foi abordado por Hubbe
(2005), numa contextualização progressiva de aspectos bioculturais do sítio Porto do Rio
Vermelho II (Florianópolis/SC) de um ponto de vista espacial e do tipo de dieta. Na
literatura internacional, esse tipo de abordagem vem se mostrando útil em estudos sobre
mudanças nas práticas mortuárias (Chapman 2000, Fahlander 2008). Bailey (2007) se
dedica a demonstrar o potencial da análise de palimpsestos como meio de investigar a
83
longa duração e sua relação com as vidas e percepções individuais, e Lock e Molyneaux
(2006) chamam atenção para questões relacionadas à escala na arqueologia, mostrando o
papel crucial desse elemento – que geralmente é entendido como dado – na forma como
o passado é representado.
Multidimensionalidade significa também complexidade, sendo difícil apreendê-la
em sua totalidade; mas mesmo não sendo possível conhecer absolutamente uma coisa,
como uma pedra, pois o conhecimento sobre ela nunca se conclui, ainda é verdade que a
pedra percebida está ali, sendo reconhecida por quem a percebe. Isso quem disse foi
Merleau-Ponty (1999:443), ao explicar porque o inacabamento não constitui uma fraqueza
na ciência dos fenômenos: “mais elevada do que a realidade está a possibilidade”. Isso foi
Heidegger (2008[1927]:78).
Frente ao não esgotamento da complexidade do mundo em nenhuma das visões
perspectivas dele possíveis, uma abordagem multidimensional não nos pode presentear
com um conhecimento total sobre os processos de mudança dos sítios conchíferos
catarinenses, mas pode nos auxiliar a reconhecer a complexidade inerente a esses
processos e expandir as possibilidades interpretativas. A partir do momento em que a
multidimensionalidade é acionada, não se trata mais de uma única mudança, mas de uma
rede complexa e entrecortada de mudanças diversas. Virilocalidade, cerâmica, aumento da
violência, diminuição do nível do mar, aparecimento da terra preta, alteração na
quantidade de sítios, nas práticas mortuárias, na dieta. A mudança é tudo isso e além; tudo
isso ao mesmo tempo, e tudo isso em tempos distintos.
Para uma abordagem multidimensional, contudo, são necessárias também
adequações do ponto de vista analítico, que aqui serão feitas por meio de processamento
estatístico igualmente multidimensional, sendo os resultados das análises isotópicas e das
práticas mortuárias entendidos na curta, média e longa duração; em escala de sítio, local e
regional. Na escala de sítio, isso implica pelo menos três níveis de análise: estabelecimento
da tendência geral, comparação entre o primeiro e o segundo momento do sítio e
posicionamento diacrônico dos indivíduos.
Trata-se de associar as tendências gerais e as comparações entre os diferentes
momentos do sítio com uma perspectiva diacrônica mais refinada que permita
84
observarmos pequenas variações ao longo do tempo, apreendendo a mudança numa
escala mais aproximada no nível dos indivíduos e dos eventos. Refinamento que só se faz
possível aqui devido à comparação, no caso das análises isotópicas, com outros estudos do
gênero realizados nos sítios conchíferos catarinenses (Bastos 2009, 2014; Colonese et al.
2014; De Mais 2001, 2009) e, sobretudo, devido à realização de datações individualizadas
de diversos sepultamentos do sítio.
A multidimensionalidade, associada à cronologia, torna os palimpsestos inteligíveis
– e, sobretudo, faz com que sejam reconhecidos como palimpsestos – permitindo que
aquilo que seria entendido apenas como variabilidade seja reconhecido como mudança ou
distinção de sexo, idade e status. Permite também que aqueles elementos que remetem a
tradições de maior duração e aqueles elementos que representam escolhas contingentes
para a solução de situações eventuais sejam diferenciados, além de possibilitar a
identificação de outliers que jamais se destacariam dos demais se observados somente
segundo a tendência geral.
Penso que não basta compreendermos por que as coisas mudam, mas também
como mudam. A história não vem em blocos de conteúdo que são trocados de tempos em
tempos a cada migração, mudança ambiental ou outro acontecimento de grande porte
qualquer: a história é processo; a mudança, constante e processual – nisso aqueles
momentos que costumamos chamar de “transição”, tornam-se, simplesmente, momentos
de maior agitação nos processos de mudança. Não são, afinal, os acontecimentos por si
sós que movem a história, mas as interpretações que são feitas deles dentro de contextos
específicos, na relação entre indivíduo e estrutura.
A mudança, para mim, se faz cotidianamente no engajamento com o mundo e na
negociação com os elementos – humanos e não-humanos – que constituem esse mundo.
O que me interessa é entender como um suposto contato com outras populações ou uma
mudança ambiental ou quaisquer que sejam os acontecimentos invocados podem
engendrar mudança no registro arqueológico. Como determinados eventos se
desenrolam, repercutem e são interpretados; como a mudança é vivida e percebida
contextualmente – no passado e no presente.
85
Parte II:
Criando uma textura densa de dados
86
4 Um olhar para o invisível:
análises isotópicas na arqueologia
Isótopos são átomos de um mesmo elemento que apresentam semelhante número
de prótons, mas diferente número de nêutrons. Como os isótopos de um mesmo
elemento possuem o mesmo número de prótons em seus núcleos, eles também possuem
o mesmo número atômico e, portanto, são idênticos quimicamente e indistinguíveis uns
dos outros. O que os diferencia, de fato, são as suas massas. Embora não sejam
eletricamente carregados, os nêutrons possuem massa, fazendo com que os isótopos de
um elemento possuam massas atômicas diferentes e, logo, propriedades físicas
igualmente diferentes (Goffer 2007).
Alguns isótopos não alteram seu núcleo ao longo do tempo, sendo conhecidos
como “isótopos estáveis”, enquanto outros apresentam uma estrutura mais instável,
sendo conhecidos como “isótopos radioativos” ou “radioisótopos”. Estes últimos são assim
chamados porque passam por um processo de decaimento radioativo em que o núcleo,
por ser instável, altera a sua estrutura até se tornar estável, emitindo diferentes formas de
radiação ionizante (Goffer 2007).
O estudo de isótopos de variados elementos vem revelando importantes
ferramentas para a obtenção de informações em pesquisas arqueológicas. Enquanto
isótopos radioativos como
14
C e
40
Ar vêm fornecendo datações absolutas para a
Arqueologia, a variação nas razões isotópicas de elementos estáveis como H, C, O, N, S, Sr,
e Pb tem auxiliado na resolução de problemas de proveniência, paleoambientes,
paleoclimas e paleodietas (Herz e Garrison 1998, Price e Burton 2011).
Dentre os isótopos estáveis que vêm sendo utilizados para o estudo de paleodietas,
os mais comumente utilizados são
15
Ne
13
C (DeNiro e Epstein 1978, 1981; Schoeninger,
87
DeNiro e Tauber 1983; Walker e DeNiro 1986; Ambrose 1993; Katzenberg e Harrison
1997). Por outro lado, quando se trata de caracterizar mobilidade humana e animal são os
isótopos de estrôncio que figuram entre os mais eficazes (Price 2002; Grupe 1997;
Montgomery 2003; Bentley, Krause e Price 2003; Bentley 2006; Knudson et al. 2004;
Wright 2005).
4.1 Radiocarbono (14C)
De acordo com Holdaway (2006), existem duas formas de lidar com estudos sobre
datação na Arqueologia. Uma delas é a cronometria, que lida com os princípios físicos e
químicos e a prática de medir os processos e os desvios dos processos na qual um método
específico é baseado, e a outra é a cronologia, que lida com os resultados dos processos de
datação e com a natureza das inferências comportamentais que podem ser feitas a partir
desses resultados.
Cronometricamente falando, existem diversos métodos de datação – como os
métodos siderais, radiogênicos, químicos e biológicos, geomórficos e de correlação –
dentre os quais o método isotópico, baseado na mudança de composição isotópica devido
ao decaimento radioativo e por meio do qual se realiza a datação radiocarbônica, é apenas
mais um (Holdaway 2006), embora seja o mais amplamente utilizado em contextos do
Quaternário recente.
A técnica da datação radiocarbônica foi desenvolvida por um grupo de cientistas
liderado por Willard Libby, na década de 1940 (Arnold e Libby 1949). Trata-se de uma
técnica radiométrica, baseada na medição da quantidade relativa de carbono-14 e,
embora seja mais útil para a datação de matéria orgânica, pode também ser utilizada para
datar sedimentos carbonáticos e outros materiais inorgânicos que contenham carbono
(Goffer 2007).
O carbono é um componente natural da atmosfera terrestre, estando presente em
todos os organismos vivos, e aparece em três formas isotópicas:
dois primeiros estáveis e o último,
14
12
C, 13C e
14
C, sendo os
C, um isótopo radioativo, também conhecido como
radiocarbono. Na atmosfera, o carbono ocorre combinado com o oxigênio na forma de
88
dióxido de carbono; assim, as plantas adquirem o radiocarbono e demais isótopos do
carbono por meio da fotossíntese, e os animais o adquirem ao se alimentarem de plantas.
Esses isótopos, contudo, sofrem fracionamento ao serem absorvidos e, por isso, a
quantidade presente nas plantas e animais não é a mesma quantidade presente na
atmosfera. Quando as plantas e animais morrem, a entrada de carbono cessa, e como o
radiocarbono passa por decaimento radioativo, essas plantas e animais começam a perder
os átomos de radiocarbono que possuíam em vida, perda que se dá numa taxa constante
de acordo com a meia-vida do isótopo 14C que é de 5730 ± 40. Isso significa que metade da
quantidade original de radiocarbono terá se desintegrado depois de 5730 anos; metade do
radiocarbono que restar (ou ¼) terá se desintegrado depois de 11.400 anos, e daí em
diante. Após 50.000 anos a quantidade de radiocarbono restante na amostra será tão
pequena que esta não poderá mais ser datada com bom grau de confiabilidade. Esse
processo de diminuição contínua do número de átomos de radiocarbono se dá por
processo de decaimento beta, em que o núcleo emite uma partícula beta e o isótopo 14C é
transformado em 14N, o mais comum isótopo de nitrogênio (Goffer 2007).
Figura 15: Ilustração do processo de decaimento radioativo beta nos isótopos de carbono-14, de acordo com
uma meia-vida de 5730 ± 40. Fonte: Goffer (2007: 274).
Para a determinação da idade de uma amostra, portanto, basta que a quantidade
de radiocarbono presente nela seja medida e, depois comparada à concentração de
carbono na atmosfera – sendo necessário também corrigir os resultados com relação ao
fracionamento isotópico. A medição do radiocarbono pode ser feita por meio da contagem
de seu decaimento (técnica convencional), em que se detecta e contabiliza a quantidade
89
de radiação beta emitida em unidade de tempo pelo núcleo dos átomos de uma amostra
de peso conhecido. E, mais recentemente, pode também ser estimada por meio da
contagem, em espectrômetro de massas7, da quantidade relativa de radiocarbono na
amostra em comparação à quantidade de isótopos estáveis (espectrometria de massas
com aceleradores – EMA, ou AMS em inglês). As idades resultantes de ambas as técnicas
de datação, contudo, estão sujeitas a erros estatísticos relacionados à própria medição do
radiocarbono e, por essa razão, são expressas juntamente com seu desvio-padrão – índice
de variância utilizado para caracterizar a dispersão dos valores. Nesse sentido, há 68,2% de
probabilidade de que a idade real estará dentro dos limites indicados pelo desvio-padrão,
95,5% de probabilidade de que estará dentro de duas vezes esses limites, e 99,7% de que
estará dentro de três vezes os limites (Goffer 2007).
Embora as datações sejam calculadas com base no pressuposto de que a
concentração relativa de radiocarbono na atmosfera é sempre constante, sabe-se que, na
verdade, tal concentração esteve sujeita a variações no passado. Não há, portanto, relação
direta entre as idades radiocarbônicas e as datas do calendário, sendo necessário calibrar
os resultados radiocarbônicos, o que comumente se faz por meio da dendrocronologia8,
em que são calculadas as datações radiocarbônicas de anéis de árvores e comparadas com
as datações dendrocronológicas dos mesmos anéis (Goffer 2007). A diferença entre uma
idade radiocarbônica e uma de calendário pode ser muito significativa, indo de centenas a
milhares de anos, sendo recomendado, portanto, que se evite realizar comparações
levianas entre esses dois tipos de data.
Agora, pensando cronologicamente, é importante lembrar que as datações dão
uma estimativa da idade no momento da morte do organismo, dependendo do
arqueólogo construir uma cronologia do comportamento humano do passado a partir
disso. A idade obtida para uma fogueira, por exemplo, está relacionada à morte do
organismo que foi queimado, e não, necessariamente, ao momento de sua construção
(Holdaway 2006). Da mesma fora, a idade obtida para um esqueleto humano em um sítio
arqueológico diz respeito ao momento da morte do indivíduo e, não, necessariamente, ao
7
Espectrômetros de massa são instrumentos que medem proporções de diferentes massas isotópicas, de
variados elementos, em amostras muito pequenas (Herz e Garrison 1998: 273).
8
Dendrocronologia é um método de datação que envolve o estudo das séries dos anéis anuais dos troncos
das árvores.
90
ritual funerário ou ao momento de deposição final, que em algumas culturas pode ocorrer
anos após a morte do indivíduo.
A utilização do termo “data”, inclusive, vem sendo criticada, uma vez que “data”
implica um momento específico no tempo quando, na verdade, as idades estimadas por
métodos radiogênicos dizem respeito a médias e desvios padrões associados: o termo
adequado seria “idade” ou “idade estimada” (Holdaway 2006). “As datações
radiocarbônicas são, como todas as medidas de radioatividade, enunciados de
probabilidade” (Scheel-Ybert 1999), sendo cada idade definida como o ponto médio de
uma curva de Poisson com seu desvio padrão.
A respeito da realização de datações em sambaquis, Scheel-Ybert (1999) coloca que
uma das principais fontes de erro está relacionada à inversão estratigráfica, embora na
maior parte das vezes seja a própria datação que denuncia uma possível inversão para o
arqueólogo. Elenca também o efeito de rejuvenescimento que pode acontecer devido à
contaminação da amostra por matéria orgânica atual – sendo mais frequente em amostras
que provém de níveis superficiais, amostras muito pequenas ou quando os sítios
apresentam concreções carbonáticas – bem como o efeito reservatório9, que pode
envelhecer datações feitas a partir de conchas marinhas. Como as correções para o efeito
reservatório no litoral brasileiro são ainda muito imprecisas, a autora sugere que, sempre
que possível, seja evitada a datação a partir de conchas.
4.2 Isótopos de nitrogênio (δ15N) e carbono (δ13C)
O elemento carbono possui dois isótopos estáveis,
13
C e
12
C, o primeiro com
abundância natural de aproximadamente 1,1% e o segundo com abundância de 98,9%. A
maior parte do carbono do mundo se encontra no oceano, mas ele está presente também
na atmosfera, sob a forma de CO2. Esse carbono oceânico e atmosférico adentra o sistema
biológico por meio do processo de fotossíntese das plantas verdes e do processo de
9
O efeito reservatório se deve ao fato de que a taxa de renovação das águas oceânicas é muito mais lenta do
que a da atmosfera, resultando no envelhecimento aparente nas idades radiocarbônicas feitas a partir de
organismos marinhos (Scheel-Ybert 1999).
91
quimiossíntese de bactérias que vivem em grandes profundidades marinhas (Schoeninger
e Moore 1992).
O nitrogênio também possui dois isótopos estáveis,
15
N e
14
N, o primeiro com
abundância natural de 0,36% e o segundo com abundância de 99,64%. A maior parte do
nitrogênio do mundo está na atmosfera, sob a forma de N2, ou dissolvido no oceano. Esse
nitrogênio adentra o sistema biológico por meio de organismos fixadores de N2, como algas
azuis e verdes de ambientes marinhos ou de água doce e bactérias que formam nódulos
nas raízes das leguminosas. E, também, por meio da decomposição bacteriana de
moléculas complexas possuidoras de nitrogênio após a morte dos organismos, processo no
qual são produzidos nitratos que podem ser utilizados diretamente por plantas vasculares
(Schoeninger e Moore 1992).
Como a variação na composição isotópica de elementos leves como o nitrogênio e
o carbono é extremamente pequena, a medição da abundância de cada isótopo envolve o
cálculo da razão entre o isótopo mais pesado e o mais leve com relação à razão isotópica
de um material de referência padrão (Ambrose 1993, Allègre 2008). As razões isotópicas
15
N/14N e 13C/12C, portanto, são expressas como valores delta (δ) em partes por mil (‰), de
acordo com as seguintes notações:
δ15N‰=
δ13C‰=
O padrão internacionalmente reconhecido para o carbono é o PDB (PeeDee
Belemnite Carbonate), um carbonato marinho que contém mais
13
C do que qualquer
recurso alimentar e a maioria dos tecidos humanos. Assim, os valores δ13C serão, na maior
parte das vezes, números negativos. O padrão internacionalmente utilizado para o
nitrogênio é o AIR (ambient inhalable reservoir), que nada mais é do que o N2 atmosférico.
Como quase todos os recursos e tipos de tecidos contém mais
15
N que o padrão AIR, os
92
valores δ15N serão, geralmente, números positivos (Schoeninger e Moore 1992, Ambrose
1993).
A principal fonte de carbono das plantas terrestres é o CO2 atmosférico, com valor
δ13C em torno de -7‰ (Schoeninger e Moore 1992, Ambrose 1993). O valor δ13C das
plantas é determinado pela composição isotópica da atmosfera e por seu caminho
fotossintético que, sendo diferente em diferentes tipos de plantas, gera variação em seus
valores δ13C (Bender 1968, Smith e Epstein 1971). As plantas C3, que contam com três
átomos de carbono na molécula formada durante o primeiro estágio da fotossíntese,
discriminam mais intensamente o
13
C presente na atmosfera e, assim, possuem valores
δ13C entre -20‰ e -34‰, com média em torno de -26‰. São exemplos de plantas C3 e
alguns de seus produtos o trigo, o arroz, gramíneas de montanha e áreas alagadas, todos
os tubérculos, bulbos e raízes tuberosas, legumes vegetais, nozes, mel e a maior parte das
frutas. As plantas C4, que contam com quatro átomos de carbono na molécula formada
durante o primeiro estágio da fotossíntese, discriminam menos o
13
C presente na
atmosfera e, assim, possuem valores δ13C entre -16‰ e -9‰, com média em torno de
-12‰. São exemplos de plantas C4 o sorgo, os milhetes, o milho, a cana-de-açúcar, alguns
amarantos e as gramíneas tropicais. As plantas CAM (crassulacean acid metabolism), como
as suculentas, utilizam tanto o caminho C3 quanto o caminho C4, dependendo das
condições ambientais; em ambientes áridos e quentes as plantas CAM utilizam o caminho
C4 e, nesses casos, apresentarão valores δ13C iguais aos das plantas C4 (Bender 1968, Smith
e Epstein 1971, Schoeninger e Moore 1992, Ambrose 1993).
Em ambientes marinhos, as fontes de carbono são muitas, como os detritos
terrestres lavados para o oceano, com valor δ13C igual à média dos valores δ13C das plantas
locais; o CO2 dissolvido, com valor igual ao CO2 atmosférico de -7‰; e o bicarbonato
dissolvido, com valor δ13C de 0,0‰ (Schoeninger e Moore 1992, Ambrose 1993, Epstein
1971). Como a maior parte das espécies de plânctons que fornecem carbono à cadeia
alimentar marinha apresentam valores δ13C intermediários entre as plantas C3 e C4, os
animais vertebrados marinhos, em geral, apresentam valores entre -20‰ e -16‰,
podendo haver sobreposição dos valores δ13C provenientes de ambientes marinhos com
os valores de plantas C4. Quanto aos ecossistemas de água doce, o carbono disponível para
93
consumo dos organismos provém dos detritos terrestres e do CO2 dissolvido, gerando
valores δ13C que vão refletir a contribuição relativa dos valores δ13C das plantas locais e do
valor do CO2 atmosférico (-7‰) (Schoeninger e Moore 1992).
As principais fontes de nitrogênio em ecossistemas terrestres são as plantas que
possuem simbiose com bactérias fixadoras de N2 (leguminosas) e, portanto, sintetizam
valores δ15N parecidos com o do N2 atmosférico, próximos de 0,0‰; e os nitratos gerados
na decomposição da matéria orgânica por bactérias, que possuem mais 15N do que há na
atmosfera, tornando os valores δ15N das plantas que os utilizam mais positivos. Embora
haja uma grande variabilidade de composições isotópicas nas plantas terrestres, a maioria
delas apresenta valores δ15N semelhantes ao do N2 atmosférico (Schoeninger e Moore
1992).
Já nos ambientes marinhos, a maior parte do nitrogênio disponível é resultante da
ação das bactérias desnitrificantes, que transformam nitratos e outras substâncias em N2
com maior quantidade de 15N do que o N2 atmosférico dissolvido. Assim, embora haja uma
grande variabilidade nos valores δ15N marinhos, estes são, em geral, mais positivos do que
o δ15N atmosférico (0,0‰) (Schoeninger e Moore 1992), sendo o valor δ15N das plantas
marinhas pelo menos 4‰ maiores que os das plantas terrestres (Ambrose 1993). Outro
fator que faz com que os valores δ15N em ambientes marinhos sejam mais elevados que os
valores terrestres é a existência de um maior número de níveis tróficos nos oceanos.
Por meio da alimentação, as diferentes composições isotópicas presentes na base
da cadeia alimentar são adquiridas pelos animais e humanos, porém não de forma direta,
uma vez que, assim como os isótopos de carbono metabolizados pelas plantas, estão
sujeitas a fracionamento. As diferenças entre as massas dos isótopos de elementos leves
como o nitrogênio e o carbono resultam em diferenças em suas taxas de reação quando
participam de reações químicas, e, ainda, caso o equilíbrio seja estabelecido dividem-se de
forma diferente entre os produtos da reação e a substância consumida no processo; por
isso, não somos exatamente aquilo que comemos (Schoeller 1999).
Os valores δ15N e δ13C aumentam ao longo dos níveis tróficos da cadeia alimentar,
com um enriquecimento de aproximadamente 1‰ nos valores δ13C entre cada nível
(DeNiro e Epstein 1978) e de 3‰ nos valores δ15N (DeNiro e Epstein 1981). Isso acontece
94
porque durante o processo de metabolismo os laços existentes entre os isótopos 12C e os
isótopos 14N se partem mais rapidamente do que os isótopos 13C e 15N e, além disso, mais
14
N do que 15N é excretado na ureia (Schoeninger e Moore 1992).
Como o enriquecimento do carbono é muito pequeno, é difícil de ser identificado, a
não ser em sistemas muito bem controlados. O enriquecimento do nitrogênio, por outro
lado, permite a identificação clara de valores δ15N mais positivos nos animais herbívoros
com relação às plantas das quais se alimentam, e nos carnívoros com relação aos
herbívoros, e por aí vai (Schoeninger e Moore 1992). Na ilustração abaixo, é possível
observar como é pequeno o aumento dos valores δ13C na passagem de um nível trófico
para o outro, sendo sua variação determinada mais pelo tipo de planta consumido (se C 3
ou C4) do que pelo enriquecimento trófico; enquanto que a variação dos valores δ15N é
mais determinada pelo enriquecimento trófico do que pelo tipo de planta consumido. É
visível também que, em geral, tanto os valores δ13C quanto os valores δ15N são maiores no
ecossistema marinho.
15
13
Figura 16: Representação da forma como estão distribuídos os valores δ N e δ C na cadeia alimentar. Fonte:
Price e Burton (2011: 203).
95
Além do enriquecimento trófico, a composição isotópica de nitrogênio e carbono
nos animais e humanos é determinada pelo metabolismo dos diferentes tipos de tecidos
(fracionamento secundário). A fração bioquímica mais frequentemente utilizada em
estudos arqueológicos é o colágeno, proteína extremamente resistente a alterações
diagenéticas, que representa 20% do peso dos ossos e da dentina, sendo seu principal
componente orgânico (Lee-Thorp et al. 1989, Ambrose 1993). O aumento nos valores δ13C
do colágeno com relação aos valores da dieta foi estimado entre 2,8 e 3,7‰ por DeNiro e
Epstein (1978), mas pode ser mais variável, entre 3 e 6‰ (Lee-Thorp et al. 1989,
Bocherens e Drucker 2003). O aumento nos valores δ15N para o colágeno foi estimado
entre 1,4‰ e 3,4‰ por DeNiro e Epstein (1981) e acabou sendo estabelecido em 3‰
(Schoeninger e Moore 1992), porém diversos estudos vêm mostrando que esse valor é
extremamente variável, podendo ser de 1,7 a 6,9‰ (Bocherens e Drucker 2003).
Figura 17: Representação da forma como se dá o fracionamento dos isótopos de carbono, desde o momento
em que adentram o sistema biológico por meio dos diferentes ciclos fotossintéticos das plantas C 3 e C4, até o
13
momento em que têm seus valores δ C aumentados no colágeno dos animais. Fonte: Price e Burton (2011:93).
96
O carbonato presente na apatita – forma cristalizada de fosfato de cálcio que
corresponde à fração inorgânica dos ossos e dentes, compondo 70% dos ossos e dentina e
98% do esmalte dentário – também é utilizado em estudos arqueológicos, porém apenas
na análise de isótopos de carbono (Ambrose 1993). Devido à existência de controvérsias
em torno da sua suscetibilidade à contaminação pós-deposicional, a apatita é utilizada
menos frequentemente que o colágeno, embora atualmente tal suscetibilidade tenha sido
relativizada, pelo menos com relação à apatita do esmalte dentário (Lee-Thorp et al. 1989,
Ambrose 1993, Katzenberg e Harrison 1997). O aumento do valor δ13C na apatita com
relação ao valor da dieta devido ao processo de fracionamento secundário é estimado
entre 9,6 e 13‰ (DeNiro e Epstein 1978, Lee-Thorp et al. 1989).
Porque os valores δ15N e δ13C variam entre diferentes tipos de plantas (C3, C4, CAM,
leguminosas e não leguminosas) e entre diferentes ambientes (terrestre, marinho, água
doce), e, ainda, passam por enriquecimento trófico através da cadeia alimentar, com a
análise da composição isotópica dos animais e humanos podemos estimar sua dieta, desde
que o tecido a ser analisado seja devidamente isolado dos demais (DeNiro e Epstein 1978,
1981; Schoeninger, DeNiro e Tauber 1983; Schoeninger e DeNiro 1984; Walker e DeNiro
1986; Ambrose 1993).
Nesse sentido, os valores δ13C obtidos indicarão se a dieta era baseada em plantas
C3 ou C4 e, embora os valores das plantas C4 possam se sobrepor aos valores marinhos,
podem também auxiliar na diferenciação entre dietas marinhas e terrestres. Os valores
δ15N, por sua vez, vão indicar o consumo relativo de leguminosas e não leguminosas, de
recursos terrestres e recursos marinhos e, ainda, dar uma estimativa do nível trófico
ocupado pelo indivíduo analisado. A análise dos isótopos de nitrogênio, comumente
realizada a partir de colágeno em estudos arqueológicos, sempre revelará a dieta proteica.
A análise dos isótopos de carbono, se realizada por meio do colágeno, também informará
sobre dieta proteica, porém, se realizada a partir do carbonato presente na apatita trará
informação sobre a dieta total do indivíduo (DeNiro e Epstein 1978, Lee Thorp et al. 1989,
Katzenberg e Harrison 1997).
Análises isotópicas de nitrogênio e carbono em sítio conchíferos catarinenses,
realizadas tanto a partir de colágeno (De Masi 2001, 2009; Bastos 2014; Colonese et al.
97
2014) quanto a partir do carbonato da apatita (Bastos 2014), têm revelado uma dieta
predominantemente marinha para essas populações litorâneas. Dentro dos limites dessa
tendência geral, contudo, parece ter havido algumas variações temporais e intrassítio.
Os resultados obtidos por De Masi (2001, 2009) revelam uma dieta baseada
principalmente em peixe para diversos sítios do litoral catarinense, porém com uma
variação intra e intersítio considerável, a exemplo de alguns indivíduos dos sítios Ponta das
Almas, Morro do Ouro e Enseada I que despontaram com dietas mais terrestres – valores
δ13C e δ15N menores. A partir de 1000 A.P., a dieta se mantém essencialmente marinha
tanto em sítio cerâmicos quanto em não cerâmicos, porém, desse momento em diante,
alguns grupos baixam sua razões de nitrogênio para em torno de 10‰ (limite inferior de
dietas marinhas), mantendo, no entanto, as razões de carbono por volta de 12‰, o que,
segundo o autor, poderia estar indicando a entrada de um componente alimentar
diferente, como o consumo de plantas C4, que estaria mantendo os valores carbono,
porém, baixando os de nitrogênio. Os dados de De Masi (2001, 2009), portanto, indicam
que a dieta permaneceu essencialmente marinha ao longo do tempo e, ao mesmo tempo,
indicam que dentro dos limites dessa tendência geral houve transformação para uma dieta
mais terrestre – ou menos marítima – por volta de 1.000 A.P., independentemente da
presença de cerâmica nos sítios ou não. Pequenas variações num todo homogêneo maior.
As análises realizadas por Bastos (2014) também indicaram que a pesca teve uma
grande importância na dieta dos indivíduos analisados dos sítios Forte Marechal Luz e
Tapera, sendo que neste último alguns indivíduos chegaram a apresentar valores de
isótopos de nitrogênio compatíveis com grande consumo de animais de alto nível trófico
como tubarões, lobo e leão marinho (com δ15N superior a 19‰). Apesar da tendência à
dieta marinha, no sítio Tapera quatro indivíduos do sexo feminino apresentaram valores
δ13C mais negativos que os demais indivíduos (menores que -12‰), o que poderia estar
indicando um consumo maior de alimentos terrestres. O mesmo aconteceu com alguns
indivíduos do sítio Forte Marechal, o que, segundo o autor, indica a possibilidade de haver
mudanças de hábitos alimentares dos indivíduos sepultados no Forte Marechal Luz em
tempos mais tardios.
98
Por fim, Colonese et al. (2014) estimaram que tanto os indivíduos do sítio
Jabuticabeira II, sem presença de cerâmica, quanto os indivíduos do sítio Galheta IV, com
presença de cerâmica, estariam consumindo proteína proveniente principalmente de
peixes (mais de 80%), com também alguma contribuição de aves e mamíferos marinhos.
No sítio Jabuticabeira II, contudo, o autor observou uma grande variabilidade que não
parece estar relacionada a fatores como sexo e idade, com alguns indivíduos apresentando
valores δ15N mais elevados (acima de 20‰) e outros apresentando valores mais baixos
(entre 14 e 11‰), assim como indivíduos com valores δ13C muito mais negativos que os
demais (menores que -15‰).
15
13
Figuras 18a e 18b: Valores δ N e δ C obtidos a partir do colágeno de grupos humanos históricos e
pré-históricos. Os pontos representam os valores dos indivíduos; a amplitude, média e desvio padrão de
cada grupo estão indicados. Fonte: Schoeninger, DeNiro e Tauber (1983: 1382).
99
4.3 Isótopos de estrôncio (87Sr/86Sr)
O elemento estrôncio (Sr) possui quatro isótopos que ocorrem naturalmente,
(0.56%),
86
Sr (9.87%) e
88
Sr (82.53%), sendo o quarto deles,
87
84
Sr
Sr (7.04%), um isótopo
radiogênico, ou seja, fruto do decaimento radioativo de um radioisótopo mãe, no caso, do
rubídio (87Rb), que leva uma meia-vida de 4.88 × 1010 anos para decair em 87Sr. Uma vez
que depende do decaimento do 87Rb, a abundância de 87Sr na geologia local é variável e,
para que possa ser comparada em diferentes amostras, é determinada em relação a um
isótopo de estrôncio não-radiogênico, o 86Sr (Bentley 2006).
Esta variação, portanto, é chamada de “razão isotópica de estrôncio” (87Sr/86Sr), a
qual depende da abundância de estrôncio, de rubídio – o que pode variar conforme o tipo
de rocha – e da idade da rocha. Assim, unidades geológicas mais antigas (mais de 100
milhões de anos) e com alta concentração de rubídio, apresentarão razões isotópicas
87
Sr/86Sr mais elevadas, acima de 0,710; ao passo que formações geológicas mais recentes
(menos de 1 a 10 milhões de anos) e com baixa concentração de rubídio, apresentarão
razões isotópicas menores, geralmente abaixo de 0,704 (Herz e Garrison 1998; Bentley
2006: 137; Price, Burton e Bentley 2002: 118).
Por meio do intemperismo dos materiais geológicos, o estrôncio presente nas
rochas atinge o solo e a água subterrânea, caminho que o leva até a cadeia alimentar e,
portanto, ao esqueleto humano, onde substitui o cálcio nos minerais do tecido
esquelético10 (Bentley 2006: 136). Embora a concentração de estrôncio total nos tecidos
das plantas e animais seja controlada por seus níveis tróficos, a composição isotópica de
estrôncio não é modificada por processos biológicos – não sofre fracionamento efetivo –
fazendo com que a razão isotópica de estrôncio presente nos ossos e dentes corresponda
à da dieta do indivíduo e esta, por sua vez, reflita a assinatura isotópica
87
Sr/86Sr da
geologia local (Price, Burton e Bentley 2002: 118). Como, porém, os animais se alimentam
de uma mistura dos recursos disponíveis na área em que vivem e, ainda, o 87Sr/86Sr de sua
dieta é resultado da média do
87
Sr/86Sr consumido ao longo do tempo de formação do
10
Isso acontece porque o estrôncio possui o raio iônico um pouco maior que o do cálcio, possibilitando a
substituição deste por aquele em diversos minerais (Bentley 2006: 136).
100
tecido esquelético, a variação de suas razões isotópicas é sempre consideravelmente
menor que a variação das razões nas fontes de estrôncio disponíveis, diminuindo quanto
maior for o nível trófico (processo de biopurificação) (Bentley 2006). Assim, indivíduos
provenientes de uma região de formação geológica variada provavelmente não
apresentarão essa mesma variação em suas assinaturas isotópicas, mas uma média do
87
Sr/86Sr consumido.
Analisando as razões isotópicas de estrôncio de indivíduos sepultados em sítios
arqueológicos, portanto, podemos ter acesso à média das assinaturas 87Sr/86Sr consumidas
que, se comparada à assinatura da geologia e outras fontes locais de estrôncio, pode gerar
informações sobre migração e mobilidade humana pré-colonial (Price, Burton e Bentley
2002: 118).
Ossos e dentes (dentina), no entanto, são muito suscetíveis a contaminações pósdeposicionais, causadas por processos diagenéticos11 que podem modificar a assinatura
isotópica outrora presente no esqueleto do indivíduo em vida (Hillson 2005: 152). Por esta
razão, muitos estudos de mobilidade humana a partir de 87Sr/86Sr têm focado no esmalte
dentário para a realização das análises (Price et al. 1994; Grupe et al. 1997; Bentley et al.
2003; Montgomery, Evans e Neighbour 2003; Knudson et al. 2004; Wright 2005; Evans,
Chenery e Fitzpatrick 2006).
Figura 19: Localização do esmalte dentário (enamel) na estrutura do dente. Fonte: Hillson (2005: 9).
11
Processos diagenéticos são caracterizados pela destruição dos ossos que, uma vez depositados debaixo da
terra, são afetados por diversos agentes físicos e químicos (raízes de plantas, fungos, algas, bactérias,
artrópodes e suas larvas, água e cristais) (Ortner 2003: 79).
101
O esmalte dentário é composto em 96% por material inorgânico que se aproxima à
hidroxiapatita (uma forma cristalizada do fosfato de cálcio), em menos de 1% por material
orgânico e, de resto, por água. Costuma ser, dentre os tecidos duros, aquele que melhor se
preserva: sua composição predominantemente mineral faz com que a decomposição da
matéria orgânica do indivíduo sepultado tenha mínimos efeitos sobre o esmalte e, ainda,
sua natureza cristalina faz dele duro e forte, resistente à erosão mecânica, possibilitando
alcançar resultados mais confiáveis. Além disso, diferentemente dos ossos, o esmalte
dentário não sofre remodelação de acordo com a dieta, sendo formado na infância e
permanecendo igual, com mínima alteração, ao longo da vida (Hillson 2005), o que
permite a análise da assinatura isotópica do estrôncio consumido nos primeiros anos de
vida do indivíduo. Nesse caso, se a razão isotópica do esmalte se apresentar semelhante à
assinatura local, o indivíduo possivelmente será de proveniência local e, se a razão
apresentar-se diferente, o indivíduo possivelmente será um imigrante (não-local), tendo
vivido em outra região durante a infância.
A geologia, contudo, não é a única fonte de estrôncio disponível na biosfera para
consumo de um indivíduo e, portanto, não basta a comparação das assinaturas isotópicas
dos dentes humanos com aquelas da base rochosa local para inferir proveniência. Há uma
diferença entre o estrôncio do substrato geológico e o estrôncio biologicamente
disponível. A razão isotópica
valores
87
87
Sr/86Sr obtida para um indivíduo é a média de todos os
Sr/86Sr que contribuíram para a amostra analisada, provenientes de diferentes
fontes, como a própria geologia, o solo, as plantas, os animais, os rios, o oceano, as chuvas,
o ar e os processos diagenéticos (Price, Burton e Bentley 2002; Bentley 2006). É de
extrema importância, portanto, a determinação da assinatura isotópica disponível
localmente (Price, Burton e Bentley 2002), de modo que, juntamente com a caracterização
da geologia local, sirva de parâmetro no momento de interpretar os resultados.
102
Figura 20: Diagrama representando os fatores que podem interferir na assinatura isotópica de uma amostra,
esta não sendo, portanto, um reflexo direto da geologia local. Fonte: Bentley (2006).
A assinatura local pode ser determinada por meio da análise dos ossos dos mesmos
indivíduos que forneceram os dentes ou outros indivíduos do sítio (Price et al. 1994; Grupe
et al. 1997; Bentley et al. 2003; Evans, Chenery e Fitzpatrick 2006), de ossos e dentes de
fauna arqueológica do sítio estudado ou de sítios próximos (Bentley et al. 2003), e, ainda, a
partir da análise de fauna moderna proveniente da área de estudo (Knudson et al. 2004,
Wright 2005). De fato, se os esqueletos estiverem extraordinariamente bem preservados,
as razões do esmalte dentário e dos ossos podem ser comparadas com sucesso; nesse
caso, se as assinaturas se mostrarem diferentes, o indivíduo terá passado seus últimos
anos em local distinto daquele onde passou a juventude (Price et al. 1994; Grupe et al.
1997; Evans, Chenery e Fitzpatrick 2006). Acontece que, como já vimos, os ossos são muito
suscetíveis a contaminações pós-deposicionais e, embora a contaminação se dê
justamente por assinaturas locais do solo e da água subterrânea – o que tornaria a
amostra útil para comparação – ela também acaba por reduzir os desvios padrões,
estreitando a amplitude do
87
Sr/86Sr disponível localmente. Nesse mesmo sentido, o uso
de fauna moderna para a determinação da assinatura local está sujeito a possíveis vieses
causados pelo consumo de alimentos importados ou, mesmo, de alimentos locais com
estrôncio exótico proveniente de fertilizantes ou da poluição do ar (Price, Burton e Bentley
2002; Bentley 2006).
103
Tendo em vista essas dificuldades, Price, Burton e Bentley (2002) e Bentley (2006)
sugerem que para a determinação da assinatura isotópica
87
Sr/86Sr local e comparação
com a assinatura do esmalte dentário humano, sejam analisados – quando possível –
dentes de fauna arqueológica proveniente do sítio estudado, também a partir do esmalte
dentário. Desse modo, os problemas relacionados à presença de estrôncio moderno
antropogênico, aos processos diagenéticos e à grande variabilidade das assinaturas locais –
sendo que o animal adquire uma média das razões 87Sr/86Sr disponíveis – são minimizados.
Com relação à aplicação de isótopos de estrôncio em sítios arqueológicos
litorâneos, como é o caso dos sítios conchíferos, é importante atentar para a contribuição
do oceano nas assinaturas isotópicas dos indivíduos. Como a água do mar recebe
constantemente material proveniente da erosão e desgaste da crosta continental, sua
razão
87
Sr/86Sr representa a média das razões de todo material recebido ao redor do
mundo, além de ter influência também dos basaltos que se formam nas dorsais mesooceânicas. E como o estrôncio permanece na água por milhões de anos, enquanto o
tempo de renovação dos oceanos é de apenas milênios, a assinatura 87Sr/86Sr é sempre a
mesma em todos os oceanos do mundo num dado momento, sendo atualmente de
0,70917 – embora ao longo do tempo geológico tenha variado entre 0,707 e 0,709 (Allègre
2008, Bentley 2006).
As conchas e carbonatos formados em meio à água do mar refletem a assinatura
isotópica do oceano no momento de sua formação e, portanto, também apresentam esta
razão de 0,70917. Nesse mesmo sentido, por meio de fenômenos como a maresia e as
chuvas associadas à evaporação da água do mar, o estrôncio marinho pode dominar as
assinaturas isotópicas da biosfera em áreas costeiras, a ponto de plantas e animais
provenientes de regiões com formação geológica muito antiga acabarem apresentando
razões 87Sr/86Sr menores, próximas à do oceano (Bentley 2006), o que pode levar também
a uma homogeneização nos valores isotópicos de regiões ao longo de uma faixa costeira
com geologia variada.
No contexto dos sítios conchíferos brasileiros, análises de isótopos de estrôncio
foram realizadas por Bastos (2009, 2014) e Calippo (2010), porém com enfoques e a partir
de materiais diferentes. Bastos (2009, 2014) estudou o sítio do Forte Marechal Luz, em São
104
Francisco do Sul, e o sítio da Tapera, em Florianópolis, com o objetivo de investigar
padrões de mobilidade e migração humana a partir da correlação entre as razões
isotópicas de estrôncio presentes nos esmaltes dentários e aquelas disponíveis na geologia
e biologia local. Suas análises foram feitas a partir do esmalte dentário dos indivíduos
sepultados nos sítios analisados, com análise conjunta da fauna arqueológica local para
determinação da assinatura biologicamente disponível. Calippo (2010), por sua vez, buscou
investigar a relação existente entre diferentes agrupamentos de sambaquis situados no
médio vale do Ribeira, baixo vale do Ribeira, litoral central e litoral norte de São Paulo, a
partir da comparação entre as razões isotópicas médias dos indivíduos de cada um dos
conjuntos de sítios. Suas análises foram feitas tanto a partir de dentes (esmalte, dentina e
raiz) quanto a partir de ossos (densos e porosos), e sem determinação da assinatura da
fauna local para comparação. Aqui, o enfoque se assemelha àquele de Bastos (2009,
2014).
105
5 Cronologia e práticas rituais
5.1 Datações radiocarbônicas
5.1.1 Materiais e métodos
Para a realização das datações radiocarbônicas dos indivíduos sepultados no sítio
Armação do Sul foram selecionados pequenos fragmentos ósseos de todos os esqueletos
presentes na reserva técnica do Museu do Homem do Sambaqui que possuíam pós-crânio
e sobre os quais se tinha as informações arqueológicas necessárias para contextualização,
descartando-se aqueles que poderiam ter tido sua posição estratigráfica original alterada
por processos pós-deposicionais, bem como aqueles que nesses processos ou na curadoria
na instituição de guarda poderiam ter tido seus ossos misturados com os de outros
indivíduos12. Foram também selecionados para datação três indivíduos do sítio da Tapera
que apresentam lesão associada à violência, de forma que pudéssemos comparar com a
datação obtida para o indivíduo do sítio da Armação do Sul que apresenta lesão similar e,
assim, compreender melhor e situar cronologicamente o desenvolvimento dessas práticas
violentas no litoral central.
Houve preferência por fragmentos de costela, mas, na ausência dessas, ou nos
casos em que os esqueletos as apresentavam em pouca quantidade, foram coletados
pequenos fragmentos de ossos longos, de crânio e de metacarpo. Evitamos a coleta de
ossos com presença de patologias e outros marcadores bioarqueológicos que pudessem
gerar informações importantes para pesquisas futuras.
No total, foram analisadas 32 amostras humanas pertencentes a indivíduos adultos
12
As coletas foram realizadas com o auxílio da bioarqueóloga Me. Luciane Zanenga Scherer.
106
e crianças do sítio da Armação do Sul e três amostras referentes ao sítio da Tapera. O sexo
e a idade dos indivíduos foram determinados pelas pesquisadoras Andrea Lessa e Luciane
Zanenga Scherer, segundo o protocolo de Buikstra e Ubelaker (1994). Todo o material
coletado foi devidamente fotografado e documentado.
As amostras foram enviadas para o laboratório Beta Analytic (Miami, Flórida) para a
determinação de suas datações radiocarbônicas por espectrometria de massas com
aceleradores (EMA), a partir de colágeno. As idades radiocarbônicas convencionais foram
corrigidas com relação ao fracionamento isotópico, calculado por meio de δ13C, e
representam 1 sigma ou 68% de probabilidade.
De acordo com o relatório de análises, as calibrações foram feitas por meio da
curva SHCal13, referente ao hemisfério sul e atualizada em Hogg et al. (2013). As idades
calibradas representam 2 sigmas ou 95% de probabilidade. Para fins de apresentação na
tabela, as idades radiocarbônicas que interceptam a curva de calibração em mais de um
ponto tiveram seus intervalos unidos nos casos em que havia proximidade entre eles.
5.1.2 Resultados
Dentre as 32 amostras enviadas para datação, duas apresentaram problemas com
relação à preservação do colágeno e não puderem ser datadas, ambas referentes a
indivíduos do sítio Armação do Sul (sep. 47, três fragmento de crânio e sep. 23, quatro
fragmentos de osso longo). No total, portanto, obtivemos 30 datações para este sítio, em
vez das 32 que estavam previstas.
A idade mais antiga obtida para os indivíduos sepultados na porção escavada do
sítio da Armação do Sul foi de 3065-2880 anos cal AP (sep. 37), recuando a datação de
2670 ± 90 AP (Schmitz et al. 1992) obtida a partir de uma amostra de carvão da base que,
até então, era a única data disponível para o sítio; e a idade mais recente foi de 1315- 1275
anos cal AP (sep. 31), estendendo o período de ocupação do sítio para até momentos
antes do aparecimento dos primeiros sítios conchíferos com presença de cerâmica no
litoral central.
107
Os três indivíduos com evidência de violência do sítio Tapera apresentaram as
seguintes idades, podendo haver contemporaneidade entre eles ou não: 1280-1115 (sep.
28), 1180-985 (sep. 63) e 1065-935 anos cal AP (sep. 110). As datações obtidas, portanto,
estão em conformidade com aquelas disponíveis para este sítio até então, de 1.140 ± 180
e 1.030 ± 180 (Silva et al. 1990).
Sítio Sep Sexo Idade
Material analisado
ID Lab
Idade convencional
(anos AP)
Idade calibrada
(anos cal AP)
ARM
2
M
AJ
colágeno, costela
Beta 384002
1550 ± 30
1430-1315
ARM
3
M
AM
colágeno, costela
Beta 384003
2270 ± 30
2335-2155
ARM
5
M
AJ
colágeno, costela
Beta 384004
1580 ± 30
1520-1360
ARM
6
F
A
colágeno, crânio
Beta 384005
2430 ± 30
2490-2345
ARM
8
M
AM
colágeno, costela
Beta 384006
2360 ± 30
2355-2315
ARM 14
M
AM
colágeno, costela
Beta 384008
2290 ± 30
2345-2160
ARM 15
F
A
colágeno, costela
Beta 384009
2330 ± 30
2350-2305, 2225-2210
ARM 17
F
A
colágeno, costela
Beta 384010
2180 ± 30
2300-2250, 2180-2020
ARM 22
F
A
colágeno, costela
Beta 384011
1660 ± 30
1575-1425
ARM 27
F
A
colágeno, osso longo
Beta 384012
2380 ± 30
2360-2330
ARM 28
F
A
colágeno, costela
Beta 384013
2700 ± 30
2790-2745
ARM 29
M
A
colágeno, costela
Beta 384014
2480 ± 30
2700-2355
ARM 31
F
AM
colágeno, costela
Beta 384015
1430 ± 30
1315-1275
ARM 32
M
A
colágeno, osso longo
Beta 384016
2530 ± 30
2725-2440
ARM 33
M
AM
colágeno, costela
Beta 384017
2630 ± 30
2755-2720
ARM 36
M
A
colágeno, costela
Beta 384018
2690 ± 30
2785-2745
ARM 37
M
AM
colágeno, costela
Beta 384019
2900 ± 30
3065-2880
ARM 39
I
C
colágeno, crânio
Beta 384032
2750 ± 30
2860-2755
ARM 40
M
I
colágeno, costela
Beta 384020
2780 ± 30
2880-2765
ARM 45
F
A
colágeno, crânio
Beta 384021
2760 ± 30
2865-2760
ARM 51
M
AM
colágeno, costela
Beta 384023
2790 ± 30
2920-2775
ARM 57
F
A
colágeno, costela
Beta 384025
2720 ± 30
2845-2750
ARM 58
I
I
colágeno, osso longo
Beta 384026
2670 ± 30
2775-2740
ARM 59
F*
A
colágeno, osso longo
Beta 384024
2660 ± 30
2765-2735
ARM 61
M
A*
colágeno, crânio
Beta 384033
2380 ± 30
2360-2330
ARM 66
I
C
colágeno, costela
Beta 384027
2410 ± 30
2460-2345
ARM 67
I
C
colágeno, costela
Beta 384029
2190 ± 30
2300-2240, 2180-2055
ARM 69
I
C
colágeno, costela
Beta 384031
2190 ± 30
2300-2240, 2180-2055
ARM 72
F
AJ
colágeno, costela
Beta 384028
2610 ± 30
2750-2710, 2625-2620
ARM 74
M*
AM
colágeno, osso longo
Beta 384007
2830 ± 30
2955-2795
TAP
28
M
A
colágeno, costela
Beta 384034
1150 ± 30
1065-935
TAP
63
M
AM
colágeno, costela
Beta 384035
1220 ± 30
1180-985
TAP 110
M
AJ
colágeno, costela
Beta 384036
1330 ± 30
1280-1115
Tabela 1: Datações radiocarbônicas dos indivíduos sepultados no sítio Armação do Sul. Legenda: I= indeterminado,
M= masculino, F= feminino, AM= adulto maduro, A= adulto, AJ= adulto jovem, C= criança, *= possível (há dúvida
na determinação, porém será considerado como consta na tabela para fins estatísticos).
108
No histograma abaixo é possível observar que o período em que há possibilidade
de ter havido o maior número de indivíduos sepultados no sítio da Armação do Sul é entre
2700 AP e 2800 AP, seguido pelo período que vai de 2300 AP a 2500 AP, sendo
consideravelmente menor a quantidade de sepultamentos com possibilidade de
apresentar datações anteriores ou posteriores a estes dois períodos. Nota-se que, entre
estes dois momentos de pico mencionados, há uma diminuição brusca e momentânea no
número de indivíduos sepultados, por volta de 2600 AP.
Gráfico 3: Histograma representando a frequência das datações radiocarbônicas (anos cal AP) do sítio
Armação do Sul. Nota-se que as idades estão duplicadas (havendo 60 idades do total), tendo sido para
este gráfico considerado o limite máximo e mínimo do intervalo de calibração de cada uma das datas.
Apesar dos altos e baixos na frequência de sepultamentos, o histograma mostra
que a população associada ao sítio Armação do Sul utilizou o local para fins funerários de
forma contínua entre aproximadamente 3000 AP e 2000 AP, configurando um período de
mais ou menos 1000 anos de continuidade. Este período aparentemente foi seguido por
400 anos de interrupção na utilização do local como área funerária, entre 2000 AP e 1600
AP aproximadamente, e, depois, por mais um período de 400 anos de retorno na utilização
do local.
109
É importante lembrar que as datações obtidas dizem respeito somente aos
indivíduos sepultados na porção do sítio que foi escavada por Rohr e Andreatta (1969).
Grande parte do sítio permanece não escavada e desconhecida, portanto, não é possível
dizer que o período de 400 de interrupção nas práticas funerárias no local representa um
período de abandono do sítio. E como as datações foram feitas somente a partir dos
esqueletos, também não é possível dizer que estes 400 anos representam um abandono
total das atividades desenvolvidas no local. O que as idades obtidas para os 30 indivíduos
datados nos permitem dizer é que, possivelmente, entre 2000 AP e 1600 AP essa área
funerária específica deixou de ser utilizada para esse fim.
s
ep 2
sep 2
Gráfico 4: Gráfico de dispersão das idades obtidas para o sítio da Armação do Sul e da Tapera, representadas
pelos intervalos de calibração.
110
No gráfico de dispersão essa interrupção momentânea fica bastante clara. Fica
clara também a ausência de contemporaneidade entre o indivíduo com evidência de
violência do sítio Armação do Sul, com idade de 1430-1315 anos cal AP (marcado como
“sep 2” no gráfico), e os indivíduos do sítio Tapera que apresentam esse mesmo tipo de
lesão. O aumento da violência no litoral central, portanto, não necessariamente está
relacionado ao advento da cerâmica, tendo início momentos antes desse acontecimento.
Para compreendermos melhor como as mudanças nas práticas mortuárias e no
sedimento que forma o sítio se inserem nessa cronologia, foi elaborado um croqui da
distribuição estratigráfica dos sepultamentos acompanhadoss de suas datações. As
ep 2
informações contidas no croqui foram retiradas das fichas de sepultamentos preenchidas
por Rohr e Andreatta ao longo da escavação de 1969 (ver anexo I), bem como de Rohr e
Andreatta (1969), Rohr (1974) e Schmitz et al. (1992). Os seis sepultamentos referentes à
escavação de 1974 não foram incluídos no croqui, uma vez que apresentam descrições
imprecisas e menos cuidadosas que as demais. Constam no desenho, portanto, somente
os 80 sepultamentos escavados em 1969.
No croqui é possível observar que, primeiramente, os indivíduos foram sepultados
na areia de cor marrom clara da base do sítio, para depois passarem a ser envolvidos pelo
sedimento marrom escuro que forma a segunda camada do sítio. Nesse momento inicial,
entre aproximadamente 3000 AP e 2600 AP, é possível que tenha havido duas áreas
funerárias distintas, uma com maior concentração de sepultamentos, no canto esquerdo
do croqui, e outra com apenas quatro indivíduos, no canto direito. Os indivíduos da
camada de areia marrom clara poderiam dividir-se entre estas duas áreas, estar isolados
ou mesmo compor uma área distinta. No momento seguinte, entre aproximadamente
2500 AP e 2000 AP, parece que há uma inversão, com a maior parte dos sepultamentos
concentrando-se no canto direto e em meio à terra preta, havendo apenas um no canto
esquerdo e outro na parte central. Tem início então, possivelmente, um período de
interrupção momentânea das atividades nessas áreas funerárias, atividades que voltam a
acontecer somente por volta de 1600 AP, quando quatro indivíduos são sepultados
também na área correspondente ao canto direito do croqui, em meio à terra preta.
111
Figura 21: Distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul, acompanhados de suas respectivas datações (em anos cal AP). Nota-se que o croqui representa, em um
plano vertical bidimensional, um espaço tridimensional de 85 m² e 2 m de profundidade. Tendo em vista as irregularidades na topografia da área escavada, os limites entre as camadas
foram estabelecidos com base nos sepultamentos e nas informações sobre o tipo de sedimento em que estavam envolvidos.
112
Com relação às mudanças no sedimento e nas práticas mortuárias, parece que os
sepultamentos com datações entre 3000 AP e 2400 AP concentram-se nas camadas de
sedimento arenoso marrom claro e escuro, enquanto os sepultamentos entre 2400 AP e
2000 AP e entre 1600 AP e 1200 AP concentram-se na camada de terra preta. É possível,
então, que a mudança no sedimento que compõe essa porção do sítio tenha ocorrido em
algum momento entre 2400 e 2300 AP.
Curiosamente, embora a mudança nas práticas mortuárias representada
principalmente pelo abandono no uso do ocre de certa forma acompanhe a mudança no
sedimento que forma o sítio, tendo também possivelmente acontecido em algum
momento entre 2400 AP e 2300 AP, houve manutenção no uso do ocre em alguns
sepultamentos desse período. Isso indica que, talvez, no momento em que se deu a
mudança para terra preta as práticas mortuárias ainda estivessem em transição,
apresentando um ritmo de mudança mais lento.
Há alguns indivíduos que não se encaixam nessa periodização, porém será preciso
realizar uma análise mais apurada da distribuição dos sepultamentos, com desenhos da
estratigrafia e de plantas baixas em planos cronológicos para que possamos compreender
o motivo pelo qual eles destoam dos demais nesse croqui geral. Esse exercício será feito
logo mais, juntamente com a análise das práticas mortuárias.
5.1.3 Discussão
As datações radiocarbônicas dos indivíduos do sítio Armação do Sul apontam para
uma continuidade de pelo menos 1000 anos na utilização da área para atividades
funerárias, entre 3000 a 2000 AP. Há, contudo, uma queda brusca e momentânea no
número de sepultamentos por volta de 2600, que pode ou não estar relacionada ao
evento de transgressão marinha de 2600 AP observado para a Ilha de Santa Catarina
(Caruso Júnior 1989, 1995; Caruso Júnior e Awdziej 1993; Horn Filho e Livi 2012) e para o sul
do Estado (Suguio et al. 1985 e Caruso Júnior 1989, 1995; Caruso Júnior e Awdziej 1993).
Após esse período de 1000 anos de continuidade, parece acontecer uma pausa de 400
113
anos nas atividades funerárias, que seriam retomadas a partir de 1600 AP e estendidas até
1200 anos AP.
O hiato de 400 anos nas datações pode ser explicado por fatores naturais e/ou
culturais. Em determinado momento e por motivos desconhecidos, o sítio poderia ter sido
abandonado e posteriormente reocupado. Como, no entanto, Rohr e Andreatta (1969),
Rohr (1974) e Schmitz et al. (1992) não fazem qualquer menção a sinais de abandono ao
descreverem a estratigrafia do sítio, teríamos que supor que os processos naturais de
sedimentação que deixariam sinais estratigráficos desse abandono foram neutralizados
pela dinâmica dos processos erosivos. Ou, então, um processo erosivo forte – talvez uma
forte ressaca como as que costumam acometer a praia da Armação – poderia ter retirado
a então camada superficial do sítio em que estariam os sepultamentos datados entre 2000
e 1600 AP, sem prejuízo, contudo, das atividades funerárias, que continuariam sendo
empreendidas normalmente até 1200 AP. Essa ideia, contudo, é menos provável. Ainda,
tendo em vista que as datações foram feitas a partir dos sepultamentos, uma terceira
hipótese seria que o hiato representa apenas uma interrupção das atividades funerárias no
local; outras atividades que não a sepultar os mortos poderiam estar sendo ali
empreendidas entre 2000 e 1600 AP.
É importante destacar que a área de 269 m² escavada em 1969 e 1974 não
corresponde à totalidade da área estimada por Rohr, de 2000 m², permanecendo a maior
parte do sítio e outros possíveis sepultamentos desconhecidos – e mesmo dentre os 86
sepultamentos conhecidos, apenas 35% foram datados. É possível, portanto, que o hiato
seja referente somente à área escavada em 1969, da onde provêm os sepultamentos
datados; ou mesmo inexistente. Vale lembrar também que existe outro sítio com presença
de sepultamentos nas proximidades, o sítio Ponta da Armação, de datação desconhecida,
porém possivelmente também mais tardia, uma vez que apresenta cerâmica. Não
podemos, portanto, excluir a possibilidade de que o hiato esteja relacionado à criação de
um novo espaço para a realização dos rituais funerários.
Abandonado temporariamente ou não, as informações sobre as práticas mortuárias
associadas às datações apontam para a possibilidade de haver continuidade histórica entre
as diferentes populações que utilizaram o sítio para fins funerários ao longo do tempo. As
114
práticas mortuárias mantêm muitos elementos em comum através dos 1400 anos de
ocupação e, ao mudarem alguns deles – como o uso do ocre, de adornos e de ponta
ósseas – mudam progressivamente, de forma que o hiato nas datações não representa
uma ruptura: entre 3000 e 2500 AP quase todos os indivíduos estão envolvidos em
pigmentos vermelhos, raros casos estão acompanhados de pontas ósseas e quase todas as
crianças estão acompanhadas de adornos; entre 2500 e 2000 AP alguns indivíduos estão
envolvidos em ocre e outros não, alguns estão acompanhados de pontas ósseas e algumas
crianças estão acompanhadas de adornos; entre 1600 e 1200 AP nenhum indivíduo está
envolvido em ocre, mas quase todos apresentam pontas ósseas – quanto à presença de
adornos entre as crianças, não é possível saber, pois todos os sepultamentos datados
pertencem a indivíduos adultos. E essa progressão parece continuar, a partir de 1200, em
sítios cerâmicos como Tapera e Base Aérea, apontando para possibilidade de tal
continuidade histórica se estender até esses sítios mais tardios, que apresentam
sepultamentos sem ocre, adornos entre algumas crianças e, pelo menos no caso do sítio
Tapera, grande frequência de pontas ósseas.
Na análise da distribuição dos sepultamentos na estratigrafia do sítio, é possível
observar claramente uma mudança de foco na porção do sítio utilizada para as práticas
funerárias. Entre 3000 e 2500 AP a maior parte dos indivíduos foram sepultados na porção
sudeste da área escavada, porém entre 2500 e 2000, e depois entre 1600 e 1200, os
indivíduos passaram a ser sepultados principalmente na porção noroeste.
O estabelecimento dessa cronologia a partir dos esqueletos permite-nos também
situar no tempo as mudanças observadas nas práticas mortuárias e no sedimento que
compõe o sítio. As datações obtidas mostram que, possivelmente, a mudança para terra
preta se deu em algum momento entre 2400 e 2300 AP. Há, entretanto, alguns indivíduos
– principalmente crianças – que permaneceram sendo sepultados em meio à areia marrom
escura nesse período e, talvez em períodos mais recentes, até 2000 AP, o que pode estar
relacionado ao interesse em sepultar determinados indivíduos em determinados lugares já
preexistentes, como no caso da grande concentração de crianças na quadrícula G.
Os primeiros sepultamentos sem presença de ocre datam também do período de
2400 a 2300 AP, porém, assim como ocorre com a mudança no sedimento, há
115
manutenção no uso de ocre em alguns sepultamentos por certo tempo, talvez até 2000
AP, antes da prática se difundir. Manutenção que, tanto em um caso quanto no outro,
pode estar associada à negociação dessas mudanças entre os diferentes atores envolvidos
em seus respectivos campos de ação, em meio a uma estrutura que tende a se reproduzir
(Bourdieu 2011[1967], 2011[1994]). As mudanças nas práticas mortuárias, contudo, serão
abordadas com mais detalhe no tópico seguinte, em que será feita também uma análise da
variabilidade dos acompanhamentos funerários e da distribuição espacial dos
sepultamentos.
A datação do indivíduo do sítio Armação do Sul que apresenta trauma agudo
causado por ponta óssea (sep. 2) sugere que o aumento da violência no litoral pode ter
começado por volta de 1430-1315 anos cal AP; logo, momentos antes do aparecimento da
cerâmica na região. Essa tendência continua – e talvez até de forma mais intensa – em
tempos posteriores, como no sítio cerâmico Tapera, onde os três indivíduos com lesão
associada à violência apresentaram datações de 1280-1115 (sep. 28), 1180-985 (sep. 63) e
1065-935 (sep. 110) anos cal AP.
É interessante notar que dentre esses três indivíduos datados do sítio Tapera
apenas dois podem ter sofrido num mesmo evento a violência que levou à sua morte: os
sepultamentos 28 e 63 ou os sepultamentos 63 e 110. Podemos, portanto, trabalhar com a
ideia de que os traumas agudos observados nos quatro indivíduos que apresentam esse
tipo de marca no litoral central foram resultantes de, pelo menos, três eventos distintos;
um evento que envolveu a morte do indivíduo da Armação do Sul, e outros dois eventos
que teriam envolvido a morte dos três indivíduos da Tapera. Isso nos leva a relacionar a
intensificação da agressividade no litoral central mais com confrontos menores e eventuais
– porém que podem estar inseridos num contexto de rivalidades bem definidas e
constantes – do que com um único evento como uma grande guerra.
Por fim, a partir do cruzamento entre as datações radiocarbônicas e as informações
sobre as práticas mortuárias, a localização espacial e o tipo de sedimento que envolve os
indivíduos sepultados, é possível estabelecer uma cronologia para os indivíduos datados.
116
3000 a 2500 anos AP a maior parte dos indivíduos foram sepultados na porção sudeste da área
escavada; quase todos estão envolvidos em pigmentos vermelhos, raros casos estão
acompanhados de pontas ósseas e quase todas as crianças estão acompanhadas de adornos.
Período estabelecido com base em 14 indivíduos.
2500 a 2000 anos AP a maior parte dos indivíduos foram sepultados na porção noroeste da
área escavada; alguns estão envolvidos em ocre e outros não, alguns estão acompanhados de
pontas ósseas e algumas crianças estão acompanhadas de adornos. Período estabelecido com
base em 12 indivíduos.
1600 a 1200 anos AP a maior parte dos indivíduos foram sepultados na porção noroeste da
área escavada, nenhum deles está envolvido em ocre, mas quase todos apresentam pontas
ósseas. Período estabelecido com base em 4 indivíduos, todos adultos.
É possível, também, estabelecer uma cronologia relativa para todos os indivíduos
escavados do sítio, que pode ser instrumentalizada na análise estatística dos dados com
mais força, uma vez que inclui o número total de indivíduos e não apenas aqueles que
foram datados.
Embora tudo indique que o sítio Armação do Sul foi marcado por pelo menos três
momentos distintos, essa cronologia relativa considera apenas dois, unindo o segundo
momento ao terceiro devido à dificuldade em traçar uma linha divisória em meio a uma
transição que – em termos de práticas mortuárias – é tão difusa, sem o auxílio de mais
datações do último período ou mudanças estratigráficas que pudessem servir de guia.
Período 1 indivíduos sepultados na areia marrom clara e areia marrom escura e/ou com
idade entre 3000 e 2500 anos AP. A maior parte está localizada na porção sudeste na área
escavada e quase todos estão envolvidos em pigmentos vermelhos, raros casos estão
acompanhados de pontas ósseas e quase todas as crianças estão acompanhadas de adornos.
Período 2 indivíduos sepultados na terra preta e/ou com idade entre 2500 e 1200 anos AP. A
maior parte está localizada na porção noroeste da área escavada e poucos estão envolvidos em
pigmentos vermelhos, vários estão acompanhados de pontas ósseas e algumas crianças estão
acompanhadas de adornos.
Quanto à hipótese apresentada no início deste trabalho, de que as mudanças
observáveis nas práticas mortuárias e na estratigrafia do sítio Armação do Sul – passagem
para terra preta – deveriam ter acontecido entre 1.500 A.P. e 1.000 A.P., ela não foi
confirmada. Como vimos, as mudanças são mais antigas do que o imaginado, tendo
117
começado provavelmente entre 2400 e 2300 AP. Isso significa também que o
aparecimento da terra preta no sítio Armação do Sul não se encontra em sintonia
cronológica com a mudança observada para o contexto do litoral sul ou, pelo menos, para
o sítio Jabuticabeira II, onde o uso da terra preta se inicia em 1540-1330 anos cal AP
(Nishida 2007) – mesmo a prática anterior a essa, marcada pelo uso de sedimento escuro
com ossos de peixes, é mais recente que 2400-2300 AP, datando de 1990-1710 anos cal
AP.
5.2 Análise dos contextos funerários
Contextos funerários são provavelmente os depósitos mais formais e
cuidadosamente preparados com o quais um arqueólogo pode se deparar (Parker Pearson
1999). A morte e suas materialidades vêm recebendo atenção dos pesquisadores desde o
início da formação da disciplina no século XIX, porém, a arqueologia das práticas
mortuárias como um campo de pesquisa organizado e voltado para a relação entre a
morte e o contexto social tomou forma somente com a edição de “Approaches to the
social dimensions of mortuary practices”, por James Brown em 1970 (Chapman 2003).
A partir daí, durante pelo menos toda a década de 1970, o estudo das práticas
mortuárias esteve focado em extrair de contextos funerários informações sobre
organização social, com base no pressuposto de que esta última estaria refletida naqueles
e que, portanto, as práticas mortuárias observadas no registro arqueológico seriam nada
mais nada menos que uma reificação da estrutura social (Binford 1971, Saxe 1970). Nesse
sentido, Binford (1971:14-15) coloca explicitamente que a heterogeneidade nas práticas
mortuárias de uma unidade sociocultural “would vary directly with the complexity of the
status hierarchy, as well as the complexity of the overall organization of the society with
regard to membership units and other forms of sodalities”. Assim, ao longo de uma
década, buscou-se quantificar a variabilidade nos sepultamentos e estabelecer regras que
auxiliassem na categorização dos diferentes indivíduos e suas personas sociais (idade, sexo,
posição social, afiliação a subgrupos, causa e local da morte) a partir do modo como foram
sepultados (Binford 1971, Saxe 1970).
118
Acontece que inferir identidade e posição social a partir dos elementos que
compõem um contexto funerário não é tarefa tão simples: na maior parte das vezes não
há relação direta entre uma coisa e outra. Em tempos de crítica pós-processual (Hodder
1985, Shanks e Tilley 1992[1987]), portanto, essa forma de analisar e interpretar as
práticas mortuárias passou por revisão à luz de uma crescente preocupação com a questão
do significado e da ação social. Constatou-se que as práticas mortuárias dizem respeito
não apenas sobre os mortos, mas também sobre os vivos, sendo representações
idealizadas do falecido a partir do ponto de vista daqueles que ainda vivem e, ao mesmo
tempo, palco de estratégias de poder que visam reproduzir, legitimar ou transformar a
ordem social (Shanks e Tilley 2006[1982]; Parker Pearson 2006[1982], 1999).
A identidade de um indivíduo é algo bastante complexo, que envolve papéis
variados e situacionais entrecruzados no tempo e no espaço, podendo os
acompanhamentos funerários estar relacionados a apenas uma ou a diferentes relações
sociais ao mesmo tempo, empreendidas pelo falecido com diferentes pessoas e grupos
quando era vivo (Fahlander e Oestigaard 2008). Esse fato, sozinho, já demonstra a
fragilidade da ideia de que é possível estabelecer regras gerais de categorização dos
indivíduos, afinal, de qual identidade estamos falando?
Com a morte de um indivíduo, o controle sobre seu corpo passa a ser exercido
pelos vivos, que o manipulam de acordo com convenções sociais e culturais de como uma
“boa morte” deve ser (Nilsson Stutz 2010). Manipulação que pode também ser feita por
indivíduos e grupos particulares, tornando o morto e seu contexto de morte plataformas
de propaganda social, o que adiciona uma dimensão ideológica às práticas mortuárias
(Parker Pearson 2006[1982], Shanks e Tilley 2006[1982]). Embora o morto seja o ponto
focal de qualquer funeral, aqueles que ainda vivem possuem seus próprios interesses e
agendas, o que transfere o foco para os vivos, e, nesse sentido, "the only truly individual
materialities left in a grave are the deceased’s own bones” (Fahlander e Oestigaard 2008).
O espaço social deixado em aberto pelo morto pode trazer à tona mudança social,
o que torna as práticas mortuárias verdadeiras arenas – ou campos sociais – onde as forças
de transformação e de manutenção se encontram e são negociadas. Assim, na esteira de
teorias centradas na prática, como a de Bourdieu (1967, 2011[1994]), as práticas
119
mortuárias, passaram a ser entendidas como partes importantes e ativas na estruturação
das sociedades (Shanks e Tilley 2006[1982], Fahlander e Oestigaard 2008, Nilsson Stutz
2010). O funeral atua na redefinição das relações sociais entre os vivos e destes com o
falecido, o que pode resultar tanto na afirmação dessas relações e reinstalação da ordem,
quanto no uso da morte para desafiar a continuidade dessa ordem pré-existente e
promover mudança social. Não se trata, portanto, apenas do que as práticas mortuárias
significam, mas do que fazem.
A materialidade própria da morte (Fahlander e Oestigaard 2008) e a ritualização
das práticas mortuárias (Shanks e Tilley 2006[1982], Nilsson Stutz 2010) fazem delas
extremamente eficazes na manutenção da ordem por meio da naturalização do mundo
social. Os saberes e a forma como o corpo deve se portar durante um ritual funerário são
incorporados na prática, tornando-se habitus (Bourdieu 1967). Este, sem que seja
percebido, passa a orientar as próprias ações que o geraram, criando uma sensação de
inevitabilidade, como se as coisas sempre tivessem sido da forma como são: qualquer
outro tipo de ordem social, assim como qualquer outra forma de empreender as
atividades do ritual funerário, é, simplesmente, impensável. O ritual funerário torna-se, por
fim, doxa. Só que é justamente aí que mora o poder de subversão presente nas práticas
mortuárias: aquele que consegue desafiar a doxa desafia toda a estrutura objetivada.
Entendendo ritual como produto da ritualização de atividades específicas, e
entendendo ritualização como uma forma estratégica de agir no mundo que, privilegiando
aquilo que está sendo feito em detrimento das outras atividades mais cotidianas,
diferencia a si própria das outras formas de ação social, Bell (2009[1992]) chama atenção
para o poder dos atos ritualizados na internalização de esquemas perceptivos, mas,
também, para sua fragilidade.
A coerência, a continuidade e a atmosfera que caracterizam as atividades rituais
naturalizam os valores expressos nas relações sociais estabelecidas, produzindo esquemas
que estruturam o mundo de tal forma que este parece ser a fonte de todos os esquemas e
valores. Em meio a essa doxa – logo, em plena inconsciência da arbitrariedade daquilo que
parece natural – os agentes ritualizados não pensam estarem projetando esquemas,
apenas agindo de acordo com um instinto social de como se deve agir (Bell 2009[1992]).
120
Nesse sentido, a ritualização é de extrema relevância na criação de tradições históricas,
pautadas exatamente na invariabilidade, na formalidade e na repetição (Hobsbawm e
Ranger 1997).
Apesar de estar estreitamente associada à questão do poder, a ritualização não
exerce qualquer tipo de controle sobre os indivíduos. As relações de poder constituídas
pela ritualização empoderam também aqueles que, à primeira vista, parecem estar sendo
controlados (Bell 2009[1992]). Consentimento, resistência e apropriação negociada são
inerentes a qualquer processo de objetivação e incorporação e "a participant, as a
ritualized agent and social body, naturally brings to such activities a self-constituting
history that is a patchwork of compliance, resistance, misunderstanding, and a redemptive
personal appropriation of the hegemonic order” (Bell 2009[1992]:207). Além dos habitus
incorporados na prática ritual, os indivíduos levam também seus habitus particulares ao
campo social aberto pela ritualização, que podem ou não contradizer os esquemas
propostos.
Em meio a esse pensamento, as práticas mortuárias podem ser entendidas como
ritual, ou seja, como fruto da ritualização estratégica dos contextos de morte. De acordo
com Nilsson Stutz (2010), essa perspectiva nos permite interpretar as práticas
estruturadas, repetidas e reproduzidas como respostas irrefletidas e não negociáveis à
questão da morte e, uma vez identificados esses padrões incorporados, podemos traçar
também a variação nos elementos rituais, que podem estar relacionadas a discursos de
negociação social. Nesse caso, a negociação pode dizer respeito, simplesmente, à forma
correta de se sepultar um morto, mas pode também fazer referência a outras questões
sociais, externas ao contexto de morte.
Assim, enquanto os padrões nos revelam as estruturas profundamente
incorporadas, as variações nos revelam as negociações, e a análise conjunta desses dois
aspectos pode nos auxiliar a compreender melhor a questão dos processos de mudança. A
esse quadro pode ainda ser adicionada uma dimensão diacrônica e, com isso, os padrões
reproduzidos ao longo do tempo tornam-se estruturas de longa duração, e as variações
tornam-se eventos reveladores das contradições que, embora sejam constantes, nem
sempre se manifestam.
121
Esse é outro ponto em que os estudos realizados ao longo da década de 1970 são
criticados. A abordagem processual das práticas mortuárias (Binford 1971, Saxe 1970)
gerou uma tradição de análise unidimensional, em que o sítio é considerado um todo
coerente, assumindo-se contemporaneidade e unidade cultural entre os sepultamentos.
Com isso, as relações sincrônicas e diacrônicas existentes entre os sepultamentos são
negligenciadas, bem como a possibilidade de o sítio ter sido utilizado simultaneamente por
diferentes grupos (Fahlander 2008). A construção de cronologias, mesmo que relativas,
assim como a identificação de agrupamentos por meio de análise espacial ou de
aproximação com relação a elementos funerários específicos, é fundamental na revelação
das variações sincrônicas e diacrônicas e, conforme Fahlander (2008), necessária para que
se evite confusão entre variabilidade social e mudança social; permite, por fim, que
abordemos com mais sucesso aquilo que Chapman (2000) chama de palimpsesto
mortuário.
A perspectiva das práticas mortuárias como ações ritualizadas formadoras de
habitus e utilizadas estrategicamente tanto na manutenção quanto na subversão da ordem
social, aliada à ideia da multidimensionalidade necessária à análise de contextos
funerários, não poderiam ser mais coerentes com os pressupostos teóricos deste trabalho
e, portanto, serão empregadas na interpretação dos dados gerados para o sítio Armação
do Sul.
5.2.1 Materiais e métodos
O estudo das práticas mortuárias do sítio Armação do Sul foi realizado com base na
análise espacial da distribuição horizontal e vertical dos sepultamentos na área e na
estratigrafia do sítio, bem como na análise quantitativa dos acompanhamentos funerários.
Ambas as análises foram empreendidas levando-se em consideração as variações
sincrônicas e diacrônicas, e tiveram início como um exercício que buscava sanar minha
própria curiosidade a respeito das práticas mortuárias do sítio. Conforme os resultados
foram aparecendo, e se revelando extremamente interessantes, optei por incluí-los na
dissertação. De modo algum, portanto, o conteúdo aqui apresentado esgota as
122
possibilidades que o sítio Armação do Sul encerra quando se trata do estudo de suas
práticas mortuárias.
A forma de deposição, a posição do corpo, o decúbito, a orientação do corpo, da
face, a posição dos braços e das mãos, embora sejam variáveis comumente utilizadas no
estudo de práticas mortuárias (Parker Pearson 2006[1982]), não serão abordadas aqui.
Essa decisão foi tomada devido à constatação, em análise prévia, da ausência de qualquer
tipo de correlação entre esses elementos e a distribuição espacial ou as variáveis de idade,
sexo, período, e de quantidade de acompanhamentos. Enquanto alguns desses elementos
são extremamente padronizados (forma de deposição, posição do corpo, posição dos
braços e das mãos), outros são extremamente variados (decúbito, orientação do corpo e
da face).
São todas inumações primárias e individuais, com exceção do sepultamento 34
(indivíduo adulto e criança – período 2) e, talvez, do sepultamento 41/42 (indivíduo adulto
possivelmente do sexo feminino e criança – período 1), que pode ou não se tratar de um
único sepultamento. A posição dos corpos é, em geral, estendida, com exceção apenas do
sepultamento 40 (adulto do sexo masculino), do período 1, e dos sepultamentos 15 e 16
(adulto do sexo feminino e criança), do período 2, que se encontram semifletidos. Os
braços geralmente se encontram estendidos, com as mãos na altura dos ilíacos, sendo a
única exceção o sepultamento 31 (adulto maduro do sexo feminino – período 2), que
apresenta os braços flexionados e as mãos abaixo da mandíbula. De todos os indivíduos
que fogem do padrão, esse é o único que se destaca também por outros aspectos,
apresentando o tórax coberto por um bloco de rocha com marcas de lascamento (65 x 15 x
12 cm), e o corpo inteiro, por cima do bloco de rocha, protegido por um osso de
mandíbula de baleia (140 x 35 x 6 cm) (Schmitz et al. 1992). O decúbito varia
principalmente entre dorsal e ventral, havendo também dois casos de decúbito lateral
direto, o sepultamento 32 (adulto do sexo masculino – período 2) e o sepultamento 64
(criança – período 1). A orientação do corpo é variada, e inclui todos os pontos cardeais
(norte, sul, leste, oeste, nordeste, noroeste, sudeste, sudoeste), com maior frequência do
sentido leste. Da mesma forma, a direção da face pode ser para a direita, para a esquerda
ou para cima.
123
Cabe mencionar que Schmitz el al. (1992:155) sugerem a possibilidade de que os
corpos não teriam sido colocados diretamente sobre o chão, mas envolvidos por esteiras,
redes ou qualquer outro envoltório de material perecível, o que, segundo ele, se
justificaria pelo fato de que mesmo quando em decúbito ventral as mãos permanecem na
posição original sobre os ilíacos, mas debaixo do corpo, e os adereços permanecem em
posição sobre o peito.
Para a análise da distribuição espacial dos sepultamentos do sítio Armação do Sul
foram incluídos na amostra todos aqueles indivíduos para os quais foram obtidas idades
radiocarbônicas (n=30), de modo a permitir um controle cronológico mais refinado. Essa
análise foi feita a partir da elaboração de plantas baixas e croquis da distribuição
estratigráfica dos sepultamentos em layers cronológicos.
Para a análise dos acompanhamentos funerários, foram incluídos todos os
sepultamentos do sítio (n=80), com exclusão daqueles escavados na etapa de 1974, uma
vez que estes não foram descritos por Rohr com o mesmo cuidado e minúcia que aqueles
escavados em 1969. As fichas destes sepultamentos apresentam muitos campos em
branco, além de terem sido preenchidas segundo outros critérios e um vocabulário
diferente que impede o cruzamento com os dados provenientes da etapa de 1969.
Tampouco há determinação de sexo e idade para eles, com exceção do sepultamento de
numero 86. Isso não quer dizer que os sepultamentos escavados em 1974 serão
totalmente desconsiderados, apenas que não farão parte da análise estatística dos
acompanhamentos funerários.
O sexo e a idade dos indivíduos foram determinados pelas pesquisadoras Andrea
Lessa e Luciane Zanenga Scherer, segundo o protocolo de Buikstra e Ubelaker (1994). As
informações necessárias tanto para a análise espacial quanto para a análise dos
acompanhamentos funerários foram coletadas em Rohr e Andreatta (1969), Rohr (1974),
Schmitz et al. (1992) e nas fichas de sepultamentos preenchidas por Rohr e Andreatta nas
duas etapas de escavação (ver anexo I). Nos casos em que houve discrepância entre a
planta baixa geral desenhada por Rohr (anexo II) e as informações contidas na descrição e
nas fichas dos sepultamentos – principalmente com relação à localização e orientação –
foram respeitadas essas últimas.
124
A representação da distribuição vertical dos sepultamentos foi feita primeiramente
no papel milimetrado, tendo a arte final sido realizada no CorelDRAW. As plantas baixas
foram elaboradas diretamente no CorelDRAW. Para a determinação dos layers
cronológicos foram unidos sepultamentos de idades radiocarbônicas próximas, resultando
em 13 lâminas: períodos 3065-2880, 2955-2750, 2790-2720, 2750-2620, 2725-2355, 24902345, 2360-2315, 2350-2210, 2345-2155, 2300-2020, 1575-1360, 1430-1315, 1315-1275
anos cal AP. No caso da planta baixa, foi elaborada ainda uma última lâmina em que
constam as idades radiocarbônicas de cada sepultamento. As estruturas de combustão e
de argila com ocre, bem como as concentrações de pedras representadas nas plantas
nunca foram datadas, tendo o momento de suas construções sido suposto com base na
profundidade em que se encontram.
Com relação aos acompanhamentos funerários, para a análise das frequências
(presença/ausência) de cada um dos tipos de objetos e do uso do ocre a amostra variou
conforme o elemento em foco. No caso do uso ocre, foram incluídos os sepultamentos
completos, incompletos com ausência dos membros inferiores e, também, aqueles
incompletos em que há informação segura sobre a presença ou ausência de ocre (n=66).
No caso de objetos que costumam aparecer próximos ao crânio e sobre o tronco, como os
adornos e os artefatos fusiformes, foram incluídos os sepultamentos completos,
incompletos com ausência dos membros inferiores e, também, aqueles incompletos em
que há informação segura sobre a presença ou ausência de adornos (n=39) e fusiformes
(n=45). Quanto aos elementos que apresentam posição variada junto ao esqueleto, foram
incluídos somente os sepultamentos completos e incompletos com informação segura
sobre a presença ou ausência do elemento em questão, caso das pontas ósseas (n=37),
dos machados e/ou lâminas (n=37), dos percutores e/ou seixos com marca de uso (n=35),
das lascas (n=37), de artefatos raros como ponta em quartzo e bastão de diabásio (n=34),
do material malacológico (n=37), do material ósseo faunístico (n=41), dos artefatos não
identificados e/ou fragmentos de rocha com alteração antrópica (n=38), e dos seixos e/ou
fragmentos de rocha sem marca de uso (n=49).
Para a análise da quantidade de acompanhamentos funerários junto a cada
indivíduo, a amostra foi reduzida aos sepultamentos completos (n=35), de forma a evitar
125
subestimativas nos dados gerados. Incluem-se aí, no entanto, dois sepultamentos
incompletos com presença de grande quantidade de acompanhamentos e que, portanto,
não correm o risco de enviesarem as análises. Ainda, dois sepultamentos completos
tiveram que ser deixado de fora, uma vez que foram cimentados em campo e não se tem
conhecimento total sobre os objetos que os acompanhavam.
Nos casos em que os sepultamentos estão contornados por seixos e fragmentos de
rocha, essas estruturas foram contabilizadas como apenas 1 acompanhamento funerário,
independentemente do número de fragmentos. O mesmo serve para os adornos formados
por dezenas ou centenas de contas feitas a partir de conchas, ossos e dentes, bem como
para o material malacológico, ossos de fauna e lítico não quantificado (ex. “restos de
peixes”, “agrupamento de pedras”).
Existem duas categorias de objetos encontrados arqueologicamente que são
entendidos como acompanhamentos funerários: os itens presentes no corpo do falecido,
como as roupas e outros adereços, e os itens que são deixados pelos vivos, podendo uma
categoria se sobrepor à outra (Fahlander e Oestigaard 2008).
De acordo com Parker Pearson (1999), devemos estar atentos às diferenças entre a
cultura material no corpo, como as roupas e os adereços; a cultura material do corpo,
como a postura e as modificações corporais; e a cultura material fora do corpo, que são os
objetos deixados pelos vivos. No sitio Armação do Sul, porém, como a única cultura
material no corpo observada são os adornos, e como a única cultura material do corpo que
será abordada é o envolvimento em ocre, estes elementos foram contabilizados
juntamente com os demais acompanhamentos funerários, sem as distinções propostas por
Parker Pearson (1999).
126
Tabela 2: Lista das variáveis utilizadas na análise das práticas mortuárias do sítio Armação do Sul.
VARIÁVEIS DE IDENTIFICAÇAO E CONTEXTUALIZAÇÃO (descritivas)
ID
Integridade
Idade
Sexo
Nível
Quadra
Comprimento
Largura
Sedimento
Idade radiocarbônica
Período
Número do sepultamento
Completo
Incompleto com ausência dos membros inferiores
Incompleto
Criança
Adulto Jovem
Adulto
Adulto Maduro
Feminino
Masculino
Localização do sepultamento no espaço vertical
Localização do sepultamento no espaço horizontal
Comprimento máximo do sepultamento
Largura máxima do sepultamento
Areia marrom clara
Areia marrom escura
Terra preta
Idade radiocarbônica calibrada dos sepultamentos, em anos AP.
Período 1: sepultamentos situados na areia marrom e/ou
datados entre 3100 e 2500 anos AP
Período 2: sepultamentos situados na terra preta e/ou datados
entre 2500 e 1200 anos AP
VARIÁVEIS RELATIVAS AOS ACOMPANHAMENTOS FUNERÁRIOS (descritivas e quantitativas)
Ocre
Adorno
Artefato fusiforme
Ponta óssea
Machado e/ou lâmina
Percutor e/ou seixo com marca
de uso
Presente
Ausente
Presente
Ausente
Presente
Ausente
Presente
Ausente
Presente
Ausente
Presente
Ausente
127
Presente
Ausente
Presente
Ausente
Presente
Ausente
Presente
Ausente
Lasca
Artefato raro (ponta em quartzo
e bastão de diabásio)
Material malacológico
Material faunístico
Artefato não identificado e/ou
fragmento de rocha com
alteração antrópica
Seixo e/ou fragmento de rocha
sem marca de uso
Presente
Ausente
Presente
Ausente
Tipos de acompanhamentos
1-Ocre
2-Ponta óssea
3-Machado
4-Adorno (4a-De concha 4b-De dente 4c-De osso)
5-Fauna (5a-Mamífero terrestre 5b-Mamífero aquático 5c-Peixe 5dAve 5e-Réptil 5f-Dente de mamífero terrestre 5g-Dente de mamífero
aquático 5h-Dente de tubarão)
6-Concha
7-Artefato fusiforme
8-Outro material lítico (8a-Artefato não especificado 8b-Seixo 8cFragmento de rocha (8d-Fragmento de rocha com marca de uso 8eSeixo com marca de uso 8f-Lasca 8g-Ponta em quartzo 8h-Lâmina 8iBastão)
9-Corante
0-Outro artefato em osso (0a-Mamífero aquático)
*-Fragmento
Número mínimo de tipos de
acompanhamentos
Quantidade de tipos de acompanhamentos funerários
presentes em cada sepultamento
Número mínimo de
acompanhamentos
Quantidade de acompanhamentos funerários presentes em
cada sepultamento
Categorização do número
mínimo de acompanhamentos
0
1a5
6 a 10
11 a 15
16 a 20
21 a 25
26 ou mais
128
5.2.2 Resultados da análise espacial e discussão
A análise da distribuição espacial dos sepultamentos ao longo da estratigrafia do
sítio, realizada por meio da elaboração de croquis em lâminas cronológicas, corroborou
aquilo que já havíamos observado no croqui geral apresentado na primeira parte desse
capítulo. De início, entre 3100 e 2500 anos AP, há uma concentração maior de
sepultamentos na poção sudeste do perfil e, a partir de 2500, essa situação se inverte, com
os sepultamentos se concentrando na porção noroeste.
As lâminas cronológicas, no entanto, tornam evidentes alguns aspectos que
passaram despercebidos na análise do croqui geral. Permitem uma melhor observação,
por exemplo, do crescimento vertical do sítio ao longo do tempo, de baixo para cima, de
modo que os sepultamentos mais antigos se situam em maior profundidade que os
sepultamentos mais recentes, pelo menos na maior parte dos casos. Esse crescimento
pode ou não, em algum momento, ter gerado um aspecto monticular para o sítio, fazendo
desse espaço ritual um marco na paisagem, mesmo que de pequenas proporções.
Dentre os sepultamentos representados nos croquis, o único que se encontra em
profundidade muito maior com relação aos demais do mesmo momento cronológico
(1600-1200 anos AP) é o sepultamento 31, que também é um caso à parte no que se
refere à posição dos braços e das mãos e aos acompanhamentos funerários, coberto que
está por uma mandíbula de baleia, como já mencionado. Nota-se, contudo, que embora
este sepultamento esteja em grande profundidade para o seu momento cronológico, não
causou perturbação significativa de nenhum outro sepultamento.
A análise em lâminas chama atenção também para redundância de sepultamentos
em um espaço relativamente pequeno, o que geralmente é interpretado como estando
relacionada a uma ênfase na questão do lugar (Nilsson Stutz 2010), a ponto de outras
possíveis preocupações serem deixadas de lado, refletindo, talvez, na proximidade
excessiva entre alguns sepultamentos.
129
Figura 22: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 3065 a 2880 anos cal AP.
130
Figura 23: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2955 a 2750 anos cal AP.
131
2790-2720 anos cal AP
Figura 24: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2790 a 2720 anos cal AP.
132
Figura 25: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2760 a 2720 anos cal AP.
133
Figura 26: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2750 a 2620 anos cal AP.
134
Figura 27: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2725 a 2355 anos cal AP.
135
Figura 28: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2490 a 2345 anos cal AP.
136
Figura 29: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2360 a 2315 anos cal AP.
137
Figura 30: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2350 a 2210 anos cal AP.
138
Figura 31: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2345 a 2155 anos cal AP.
139
Figura 32: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2300 a 2020 anos cal AP.
140
Figura 33: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 1575 a 1360 anos cal AP.
141
Figura 34: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 1430 a 1315 anos cal AP.
142
Figura 35: Croqui da distribuição estratigráfica dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 1315 a 1275 anos cal AP.
143
A análise espacial da distribuição horizontal dos sepultamentos na área escavada na
etapa de 1969, realizada por meio da elaboração de plantas baixas em lâminas
cronológicas, revelou um padrão circular, que pode também ser entendido como
“concêntrico” ou “hierárquico” (Parker Pearson 1999), em que o crescimento respeita e se
dá a partir de um sepultamento central. Ao que parece, no caso do sítio Armação do Sul
essa centralidade seria exercida pelo sepultamento 37 (adulto maduro do sexo masculino),
que é também o sepultamento provavelmente mais antigo dentre aqueles que foram
datados (3065-2880 anos cal AP), e situado em maior profundidade (170-180 cm).
Em um momento mais tardio, talvez o padrão tenha se tornado linear, mas, tendo
em vista a pequena quantidade de sepultamentos datados entre 1600 e 1200 AP, isto não
está claro. Para que a realidade dessa mudança fosse verificada, teria que ser realizada
uma análise espacial em lâminas que levasse em consideração todos os indivíduos
sepultados na área escavada em 1969, e não apenas aqueles que foram datados.
Tudo indica que o sepultamento 37 teria sido o primeiro sepultamento do sítio e,
portanto, é possível que a construção posterior de uma grande fogueira diretamente sobre
ele não tenha se dado por acaso, mas sim para marcar a posição desse indivíduo no espaço
que, dali em diante, passaria a ser utilizado como cemitério. Independentemente de isso
ter acontecido ou não, fato é que ao longo dos mais de 1500 anos de utilização dessa área
do sítio para a realização de atividades funerárias houve respeito a esse espaço central
que, a não ser pelas duas grandes fogueiras e o sepultamento 37, foi mantido vazio de
sepultamentos enquanto a área funerária crescia à sua volta.
O mesmo respeito se deu com relação a outros espaços do sítio, marcados pela
presença de fogueiras menores, de estruturas de argila com ocre e de concentrações de
pedras; e, também, com relação aos sepultamentos pré-existentes no momento de
escolher um local para sepultar os novos falecidos ou para a construção dessas estruturas.
A exceção talvez seja o sepultamento 31, que se encontra na mesma posição de uma
antiga concentração de pedras da quadra F1, porém sem perturbá-la, uma vez que se
144
encontra em profundidade menor. O contrário talvez aconteça na quadra G4, onde uma
estrutura de pedras parece ter sido construída na mesma posição de dois sepultamentos
mais profundos – o que é observável somente na planta geral (anexo II), pois estes
indivíduos não foram datados – mas, novamente, não houve perturbação.
145
Figura 36: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 3065 a 2880 anos cal AP
146
Figura 37: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2955 a 2750 anos cal AP
147
Figura 38: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2790 a 2720 anos cal AP
148
Figura 39: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2750 a 2620 anos cal AP
149
Figura 40: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2725 a 2355 anos cal AP
150
Figura 41: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2490 a 2345 anos cal AP
151
Figura 42: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2360 a 2315 anos cal AP
152
Figura 43: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2350 a 2210 anos cal AP
153
Figura 44: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2345 a 2155 anos cal AP
154
Figura 45: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 2330 a 2020 anos cal AP
155
Figura 46: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 1575 a 1360 anos cal AP
156
Figura 47: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 1430 a 1315 anos cal AP
157
Figura 48: Planta baixa dos sepultamentos do sítio Armação do Sul. Layer de 1315 a 1275 anos cal AP
158
Figura 49: Planta baixa geral dos sepultamentos datados do sítio Armação do Sul, de 3065 a 1275 anos cal AP.
159
Como é possível observar nas plantas baixas, são poucos os casos de ocupação do
mesmo espaço por sepultamentos distintos e, na maior parte das vezes, a sobreposição se
dá somente entre as extremidades dos esqueletos envolvidos. Dentre os casos de
sobreposição, os casos de perturbação são ainda mais raros, pois, em geral, os
sepultamentos que se encontram no mesmo espaço horizontal estão em diferentes
profundidades, como demonstrado nos croquis da distribuição estratigráfica. As
perturbações mais frequentes, na verdade, remetem ao período histórico, tendo sido
causadas pela construção da armação baleeira que há sobre o sítio.
O respeito ao espaço dos sepultamentos pré-existentes, aliado à manutenção
contínua dos espaços “vazios” onde se situam as fogueiras, as estruturas de argila e ocre e
as concentrações de pedras, indica que o local de deposição de cada sepultamento estaria
sendo escolhido cuidadosamente e com conhecimento da localização dos sepultamentos
mais antigos, talvez por meio de tradição oral, por testemunho pessoal (Chapman 2000)
ou, ainda, pela marcação das localizações com algum tipo de material perecível, como
estacas de madeira – caso do sítio Jabuticabeira II (Bendazzoli 2007). Mesmo após o
abandono das duas grandes fogueiras centrais, que vão de 140 a 90 cm e de 200 a 130 cm
de profundidade, o espaço que ocupavam permaneceu vazio de sepultamentos, o que
reforça a longa duração desse padrão espacial e aponta para existência de algum tipo de
continuidade histórica entre as populações que utilizaram essa área funerária.
Assim, os rituais funerários empreendidos no sítio Armação do Sul seriam marcados
pela produção de memórias sobre os mortos, cujos espaços ocupados após a morte eram
lembrados e respeitados (Nilsson Stutz 2010), configurando o sítio como um local de
memória, ou um “lembrete concentrado de lembrar” (Nora 1993). Provavelmente haveria
algum destaque do local na paisagem, talvez pelas próprias estruturas de combustão e de
pedras.
Além do respeito aos antepassados, a escolha cuidadosa do local onde sepultar os
mortos deveria estar pautada também em questões identitárias. Em seu estudo sobre o
neolítico tardio da Hungria, Chapman (2000:177) coloca que o mapeamento dos novos
mortos no espaço habitado pelos ancestrais é uma estratégia social deliberada para
expressar um cálculo de parentesco; uma categorização sócio-espacial dos indivíduos com
160
suas identidades culturais complexas. Para a identificação dessas categorizações no
registro arqueológico, Parker Pearson (1999) sugere que em sítios onde não são visíveis
conjuntos claros de sepultamentos sejam procurados agrupamentos com base na posição
do corpo ou outros elementos.
De fato, é possível agrupar alguns dos sepultamentos representados nas plantas de
acordo com a proximidade e elementos mortuários específicos. No período 1, as
diferenças observadas entre os diferentes grupos estão nos acompanhamentos funerários,
como pode ser observado na lâmina de 2750-2600 anos cal AP abaixo, enquanto nos
períodos 2 e 3 parece haver somente diferença na orientação – observar sepultamentos 5
e 17 e sepultamentos 8, 14 e 15 na lâmina 1575-1360 anos cal AP (p. 155) – mas essa
diferença dos períodos mais tardios não está muito clara e será desconsiderada por ora.
A
B
D
C
Figura 50: Representação dos diferentes agrupamentos de sepultamentos do período 1 do sítio
Armação do Sul
Na lâmina acima, que representa o momento final do período 1, podemos observar
quatro agrupamentos: A. Indivíduos do sexo masculino e uma criança, contam com
161
acompanhamentos funerários de tipos bastante variados, mas em quantidades diferentes,
apresentando em comum a presença de fragmentos de material corante. Os
sepultamentos 51 e 40, contemporâneos, apresentam em comum 2 conchas de
Olivancillaria sp., enquanto os sepultamentos 33 e 36 apresentam adornos feitos com duas
vértebras de peixe perfuradas. O sepultamento infantil destoa completamente dos demais.
B. Dois indivíduos do sexo feminino e um indeterminado, contam com acompanhamentos
poucos variados, basicamente líticos e fragmentos de líticos, mas bastante numerosos nos
sepultamentos 57 e 58. O sepultamento 58 é incompleto, e não há quantificação precisa
dos acompanhamentos. C. Um indivíduo do sexo feminino e outro do sexo masculino,
contam com acompanhamentos poucos variados, respectivamente 1 lasca de seixo com 1
fragmento de artefato e 5 longas lâminas de diabásio, parcialmente polidas e envoltas em
muito pigmento vermelho. D. Dois indivíduos do sexo feminino, sem qualquer
acompanhamento funerário além do ocre. Na segunda lâmina apresentada, de 2955 a
2750 anos cal AP, é possível observar que o sepultamento 45, originalmente, se
encontrava mais espaçado dos indivíduos masculinos do grupo A, fechando o espaço do
grupo A juntamente com o sepultamento 57, também do sexo feminino, do grupo B.
Talvez essas diferenças nos acompanhamentos funerários dos diferentes
agrupamentos possam ser entendidas como aquilo que Chapman (2000:192) chamou de
microtradições:
At any time, the people gathered around the burial site of a newlydeceased member of the community had many choices for the exact
form of burial. Two choices in particular weighed on those mourners: the
choice of how to bury their kith and kin differently from the last burial in
their burial group, and the choice of how to relate the ceremony to other
burials within the village. The tension between the household's microtradition and the potential inherent in the new statement shortly to be
made about the newly-dead encapsulates the dialectic of structure and
agency within an enfolding debate about self-identity at both individual
and community levels.
A questão é se essas microtradições estariam relacionadas a relações de
parentesco, de status ou de poder. Ainda, é importante lembrar que esses agrupamentos
se baseiam somente nos indivíduos datados, pouco mais de 30% da amostra total. A
inclusão de todos os sepultamentos escavados, distribuídos em lâminas definidas a partir
162
de suas profundidades, poderia tanto reafirmar quanto complexificar ou alterar o que foi
observado; não poderia, contudo, garantir proximidade temporal entre os indivíduos e
agrupamentos que eventualmente fossem identificados.
Quanto ao momento mais tardio do sítio, embora as plantas baixas não revelem
agrupamentos claros de sepultamentos, um rápido olhar sobre o croqui geral da
distribuição estratigráfica, apresentado no capítulo anterior, é suficiente para notar a
grande concentração de sepultamentos infantis existente na porção noroeste do sítio, em
geral datados entre 2500 e 2000 anos AP e denunciados pela grande quantidade de ocre –
a ponto de o sedimento estar avermelhado – e de sepultamentos com adornos. Não são
todos os sepultamentos infantis do período que podem ser encontrados nessa
concentração, mas aqueles que ali estão foram deliberadamente reunidos no mesmo
espaço. A segregação dos sepultamentos de crianças com relação aos demais é algo
bastante comum em diferentes contextos ao redor do mundo, ocorrendo tanto em
contextos mesolíticos como Skateholm, em que as crianças, juntamente com os cachorros
e indivíduos desviantes, estão localizados nas extremidades da área funerária (Fahlander
2008) quanto em cemitérios judeus da idade média (Parker Pearson 1999).
Espacialmente falando, portanto, o sítio Armação do Sul é marcado por
continuidade e por mudança: ao mesmo tempo em que há manutenção do padrão de
distribuição dos sepultamentos no entorno da área central, que é respeitada como espaço
vazio de sepultamentos ao longo de todo o tempo de ocupação do sítio, ocorrem
mudanças de foco com relação às porções do sítio mais utilizadas, bem como alterações na
forma como são distribuídos diferentes grupos etários e diferentes grupos de parentesco,
status e/ou poder na área funerária.
Os sepultamentos escavados na etapa de 1974 não estão sendo analisados aqui,
mas, ao observarmos a planta que segue podemos ver como talvez eles estivessem
situados perifericamente com relação aos demais ou, simplesmente, compusessem outra
área funerária, que tanto poderia ser circular como poderia apresentar outro formato. É
claro, não sabemos o que há no espaço não escavado, mas tudo indica que pelo menos o
sepultamento 86 estava realmente isolado dos demais. Este último é descrito da seguinte
forma: “os ossos do esqueleto, afora o osso ilíaco, achavam-se associados a berbigão,
163
ossadas de peixe, de tartaruga e de mamíferos com abundante carvão. Estavam dispersos,
sem conexão anatômica e muito desfeitos. Não é excluída a hipótese de tratar-se de restos
de um banquete de antropofagia” (Rohr, ficha de registro do sepultamento 86).
Área não
escavada
Figura 51: Croqui da área escavada, com localização dos sepultamentos. Adaptado de Schmitz et al. (1992).
Frente a isso, e pensando na concentração de sepultamentos infantis, que também
se situa a noroeste da área central, não podemos descartar a possibilidade de pelo menos
o sepultamento 86 (este situado a oeste da área em questão) estar propositalmente
segregado dos demais. Distinções entre indivíduos normais e desviantes podem ser
expressas espacialmente; a partir do século XV, por exemplo, havia tradições na Inglaterra
em que os suicidas eram sepultados do outro lado da rua, e as mulheres que perderam a
vida durante o parto eram enterradas do lado de fora das paredes das igrejas (Parker
Pearson 1999). Vimos também o exemplo de Skateholm, em que crianças, cachorros e
corpos “problemáticos” eram sepultados ao redor dos demais, nos quatro pontos cardeais
(Fahlander 2008).
164
Por fim, a análise da distribuição espacial dos sepultamentos nos leva a pensar
sobre os motivos que podem ter levado à fundação e ao abandono dessa área funerária.
De acordo com Parker Pearson (1999), tais motivos devem ir muito além do simples fato
de um cemitério estar “lotado” ou de a população em questão ter migrado para outra área
– até porque, nesse caso, pode-se continuar voltando, durante muitos anos, para sepultar
os mortos no cemitério antigo. A fundação ou o abandono de um cemitério é uma quebra
com a tradição, podendo o sepultamento “fundador” marcar a cisão de uma linhagem, na
separação de um grupo familiar do grupo de parentesco mais amplo; ou, simplesmente, no
caso de migração, representar um desapego com relação à localidade antiga e anseio por
criar um novo lugar de memória na nova terra, o que é também uma forma de dominá-la.
Sejam lá quais forem as motivações, a fundação de novos cemitérios e o abandono dos
antigos sempre será uma escolha, e geralmente estará relacionada à mudança social.
Provavelmente, o sítio foi inaugurado como área funerária por volta de 3065-2880
anos cal AP, com o sepultamento 37, que ocupa posição central na área escavada e sobre
o qual parece ter sido construída uma fogueira de grandes dimensões e longa duração. A
morte deste indivíduo, portanto, poderia estar de alguma forma relacionada à decisão de
dar início a um novo espaço ritual. A partir de 2500 anos AP, contudo, a população
associada ao sítio Armação do Sul passou por transformações que de alguma forma
refletiram nas práticas mortuárias, o que pode ter exigido a criação de um novo espaço
para a realização de atividades funerárias, talvez na ponta das Campanhas, onde existe um
sítio conchífero provavelmente mais recente e com presença de sepultamentos. Um novo
espaço ritual para abrigar novas tensões sociais.
5.2.3 Resultados da análise dos acompanhamentos funerários e discussão
A análise dos acompanhamentos funerários do sítio Armação do Sul, tanto por
meio do cálculo da frequência de determinados elementos quanto do cálculo do número
mínimo de acompanhamentos, revelou diferenças claras entre os sepultamentos de
crianças, adultos do sexo feminino e adultos do sexo masculino, bem como alterações
nessas diferenças ao longo do tempo.
165
Gráfico 5: Ausência e presença de ocre entre crianças, adultos
femininos e adultos maduros dos períodos 1 e 2.
Gráfico 6: Ausência e presença de adornos entre crianças, adultos
femininos e adultos maduros dos períodos 1 e 2.
Gráfico 7: Ausência e presença de pontas ósseas entre crianças,
adultos femininos e adultos maduros dos períodos 1 e 2.
Gráfico 8: Ausência e presença de artefatos fusiformes entre
crianças, adultos femininos e adultos maduros dos períodos 1 e 2.
166
Gráfico 9: Ausência e presença de machados e/ou lâminas entre
crianças, adultos femininos e adultos maduros dos períodos 1 e 2.
Gráfico 10: Ausência e presença de percutores ou seixos com
marca de uso entre crianças, adultos femininos e adultos
maduros dos períodos 1 e 2.
Gráfico 11: Ausência e presença de lascas entre crianças, adultos
femininos e adultos maduros dos períodos 1 e 2.
Gráfico 12: Ausência e presença de artefatos não identificados
e/ou fragmentos de rocha com alteração antrópica entre crianças,
adultos femininos e adultos maduros dos períodos 1 e 2.
167
Gráfico 13: Ausência e presença de artefatos raros (ponta em
quartzo e bastão de diabásio) entre crianças, adultos femininos e
adultos maduros dos períodos 1 e 2.
Gráfico 14: Ausência e presença de conchas entre crianças,
adultos femininos e adultos maduros dos períodos 1 e 2.
Gráfico 15: Ausência e presença de ossos de fauna entre crianças,
adultos femininos e adultos maduros dos períodos 1 e 2.
Gráfico 16: Ausência e presença de seixos e/ou fragmentos de
rocha entre crianças, adultos femininos e adultos maduros dos
períodos 1 e 2.
168
A frequência no uso de cada um dos acompanhamentos demonstra haver padrões
bem definidos com relação aos tipos de elementos esperados nos sepultamentos de
diferentes grupos, que refletem tanto tradições regionais de longa duração, quanto
tradições locais – e, como vimos anteriormente, também microtradições –, além de
estarem de acordo com seu momento histórico específico.
Começando pelo ocre, o gráfico indica que seu uso é generalizado, sem distinções
entre os diferentes sexos e idades. Demonstra também aquilo que já sabíamos e que
inclusive serviu para a definição do problema desta pesquisa: o uso do ocre diminui
consideravelmente na passagem do período 1 (88,24%) para o período 2 (50%), sendo
mantida frequência elevada somente entre os sepultamentos infantis.
De acordo com o teste Qui-Quadrado, a frequência no uso do ocre é dependente
do período em foco (p=0,001) e se dá independentemente do sexo (p=0,706), porém,
enquanto no período 1 há independência também com relação à idade (p=1,00 – teste de
Fisher13), no período 2 a frequência no uso de ocre é dependente da idade (p=0,018), uma
vez que as crianças mantêm o padrão anterior e os adultos não.
Frente a esses dados, podemos entender o envolvimento dos corpos em ocre
durante o ritual funerário como uma tradição regional de longa duração – pois é
perceptível em diversos sítios do litoral catarinense ao longo de milhares de anos de
ocupação – que estava sendo abandonada no sítio Armação do Sul. Nos croquis de
distribuição estratigráfica – geral e em lâminas – e nas plantas baixas, contudo, fica
evidente que essa mudança se deu de forma gradual, tornando inevitável interpretá-la
como resultante de um longo processo de negociação, talvez associado à emergência de
um novo campo social em que grupos específicos lutavam por afirmação por meio da
distinção com o contexto regional, ou simplesmente a um desprendimento cada vez maior
com relação a uma tradição regional que não mais fazia sentido no contexto do litoral
central. Parafraseando Hegmon e Kulow (2005), é um longo processo até a anomalia virar
inovação. É difícil inferir o motivo, mas a distinção – deliberada ou não – com relação ao
13
Nos casos em que os dados não apresentaram os requisitos necessários para aplicação do teste QuiQuadrado com rigor, foi utilizado o teste de Fisher, mesmo os resíduos sendo menores ou próximos de 2 em
valor absoluto.
169
contexto regional é visível nos ossos de cada um dos sepultamentos sem presença de ocre;
e a negociação é latente.
As práticas mortuárias enquanto práticas ritualizadas (Bell 2009[1992]) são por si só
extremamente potentes na formação de habitus; potência que acaba servindo também
para a manutenção da doxa (Bourdieu 2011[1994]), ou seja, das coisas como elas são e
parecem ser desde tempos imemoriais. Inseridas em um contexto regional de muito longa
duração, como no caso do uso do ocre, essas práticas se tornam ainda mais potentes e os
habitus ainda mais inculcados, tornando natural, e até mesmo esperado, que qualquer
mudança nesse sentido seja acompanhada por resistência e muita negociação.
Vale lembrar que o período 2 como aqui utilizado se refere à cronologia relativa
estabelecida algumas páginas atrás, englobando, portanto, tanto os sepultamentos de
idade radiocarbônica entre 2500 e 2000 anos AP quanto aqueles de idade entre 1600 e
1200 anos AP. Estes últimos, como observado em outro momento, parecem representar o
momento em que o uso do ocre foi abandonado completamente, após centenas de anos
de negociação, igualando-se a sítios com presença de cerâmica do litoral central como
Tapera, Base Aérea e Laranjeiras II.
Quanto aos adornos, o gráfico indica que eles são elementos quase que exclusivos
dos sepultamos infantis, em ambos os períodos do sítio. A maior ocorrência se dá,
definitivamente, entre as crianças, havendo raras ocorrências em indivíduos adultos do
sexo masculino e nenhuma ocorrência no grupo feminino. Há, contudo, uma diminuição
clara nas frequências entre as crianças na passagem do período 1 (83,33%) para o período
2 (41,67%), e mesmo entre os adultos masculinos (de 31,5 para 12,5%).
Essa mudança não é acusada pelo teste Qui-Quadrado (p=0,348), uma vez que a
quantidade de crianças na amostra do período 2 (n=12) é duas vezes maior que na
amostra do período 1 (n=6), correspondendo a quase metade da amostra total (n=25) e,
assim, elevando consideravelmente a frequência de adornos no segundo período e
tornando pequena a diferença entre os dois momentos do sítio (40,0% e 26,02%). A
diferença entre homens e mulheres, embora existente, também não é apontada pelo teste
Fisher (p=0,250). A dependência da frequência de adornos com relação à idade, contudo,
não poderia passar despercebida pelo teste e, de fato, se mostrou significativa (p=0,004).
170
Frente a esses dados, fica claro que objetos de adorno não faziam parte do rol de
possíveis acompanhamentos em sepultamentos femininos, embora fossem, por vezes,
aceitos em sepultamentos masculinos e constituíssem quase que uma norma nos
sepultamentos infantis do período 1. No período 2, o costume de sepultar as crianças
juntamente com adornos ainda era bastante comum, porém menos frequente; nisso, o
que deveria ser impensável e considerado desvio da norma em tempos mais antigos,
torna-se possível, sendo a maior parte das crianças sepultadas sem adornos.
Um fato interessante é que todos os três indivíduos masculinos do período 1 que
apresentam adorno fazem parte do agrupamento espacial A, como definido
anteriormente. E quanto ao indivíduo do período 2 (sepultamento 14), ele foi sepultado de
forma bastante cuidadosa e com alguns elementos que lembram aqueles que compunham
os sepultamentos do grupo A do período 1, além de ser, juntamente com o indivíduo 37,
um dos indivíduos com maior robustez óssea do sítio (Scherer 2012).
As pontas ósseas são, claramente, um elemento mais frequente no período 2
(43,48%) do que no período 1 (7,14%). Há apenas um sepultamento com ponta óssea no
primeiro período do sítio, pertencente a um indivíduo masculino do agrupamento A. No
período 2, a frequência é maior entre os indivíduos adultos de sexo masculino (60%), mas
há também raras ocorrências entre as mulheres e as crianças.
O teste de Fisher confirma a dependência da frequência de pontas ósseas com
relação ao período (p=0,027), porém a diferença existente entre os indivíduos do sexo
masculino e os indivíduos do sexo feminino, bem como entre os adultos e as crianças, não
é apontada como significativa (p=0,189 e p=0,688, respectivamente).
Esses dados indicam que as pontas ósseas, embora presentes ao longo de toda a
estratigrafia do sítio (Schmitz et al. 1992), foram escolhidas para serem utilizadas como
acompanhamentos funerários quase que exclusivamente no período 2, havendo inclusive
um indivíduo (sepultamento 29) que conta com 50 pontas em seu mobiliário funerário,
além de 2 artefatos fusiformes, 3 lâminas de machado e 1 artefato de ametista, estando
ainda protegido em seu lado direito por grandes blocos de rocha e um osso de baleia.
Schmitz et al. (1992) sugerem que essa mudança estaria associada a um aumento
nos conflitos e consequente valorização de chefes guerreiros. De fato, Lessa e Scherer
171
(2008) encontraram uma ponta cravada na quarta vértebra lombar de um indivíduo do
sítio (sepultamento 2, que além disso apresenta ponta óssea como acompanhamento),
lesão que provavelmente foi a causa de sua morte. Como não foram observadas lesões
ósseas semelhantes nos demais indivíduos que contam com pontas entre seus
acompanhamentos, não podemos supor que a presença desse tipo de artefato esteja
sempre relacionada à causa da morte dos indivíduos – a não ser que todos eles tivessem
sido atingidos somente nos tecidos moles do corpo.
Assumindo o aumento nos conflitos como fato – com base também em dados
obtidos para outros sítios do litoral catarinense (Lessa 2005, Lessa e Gaspar 2014) – penso
que esse novo contexto de uso das pontas ósseas, por se estender às crianças e mulheres,
estaria mais relacionado a uma resignificação desses artefatos em tempos nos quais os
conflitos teriam atingido um novo patamar, do que à valorização de chefes guerreiros –
embora seja possível que isso tenha acontecido também. De objetos utilizados na
obtenção de alimentos e recursos em geral, para objetos que tiram a vida de pessoas; de
ordinários para extraordinários.
Os artefatos fusiformes são um elemento recente nos sepultamentos do sítio
Armação do Sul, aparecendo exclusivamente no período 2, sem diferenças claras entre
indivíduos adultos masculinos, femininos e crianças. Assim, há dependência significativa da
frequência desses objetos com relação ao período do sítio (p=0,014 – teste de Fisher), e
independência com relação ao sexo (p=0,626 – teste de Fisher) e a idade (p=1,0 – teste de
Fisher).
Em geral, os indivíduos que estão acompanhados de artefatos fusiformes
apresentam grande quantidade de material em seus sepultamentos (acima de 11 peças),
com exceção de um dos sepultamentos infantis (4 peças). Schmitz et al. (1992) levantam a
hipótese de que esses artefatos seriam adornos, devido à posição que ocupam junto ao
esqueleto, sempre próxima ao crânio e tronco, enquanto Rohr e Andreatta (1969) e Rohr
(1974) sugerem que sejam tembetás. Ainda, Comerlato (2004) sugere que poderiam estar
sendo utilizados na confecção de inscrições rupestres. É importante mencionar que esses
objetos aparecem em quantidade variada nos sepultamentos, em número de 1, 2, 4 ou 8,
este último sendo o caso de uma criança (sepultamento 66).
172
Quanto às lâminas de machado e outros objetos aos quais Rohr se referiu como
“longas lâminas em diabásio”, ou como “facas de osso de baleia” (Schmitz et al. 1992;
Rohr, fichas de registro de sepultamento), é possível que estes objetos sejam
acompanhamentos exclusivamente masculinos, tanto no período 1 quanto no período 2. A
única diferença observada entre os dois momentos do sítio é com relação às crianças:
enquanto estes objetos são ausentes nos sepultamentos infantis do período 1, há duas
ocorrências no período 2.
Dado, contudo, o pequeno número de crianças consideradas para a análise da
presença desse elemento no período 1, essa diferença entre os diferentes momentos de
ocupação não é significativa segundo o teste de Fisher (p=1,0), nem a diferença na
frequência entre adultos e crianças (p=0,695). A dependência da frequência de machados
e lâminas com relação ao sexo, embora existente e bastante visível no gráfico, tampouco
foi apontada como significativa (p=0,122).
É interessante notar que dentre os sepultamentos que apresentaram machados
e/ou lâminas em geral como acompanhamento funerário estão alguns dos indivíduos já
conhecidos por nós por se destacarem de alguma forma. Pertencem a esses indivíduos
“ilustres” os sepultamentos de número 2, 14, 29 e 37. O primeiro apresenta vértebra
perfurada por ponta óssea (Lessa e Scherer 2008); o segundo, juntamente com o 37, é o
indivíduo que apresenta maior robustez óssea no sítio (Scherer 2012); o terceiro conta
com 50 pontas ósseas como acompanhamento funerário; e, por fim, o quarto é
possivelmente o sepultamento mais antigo do sítio e que ocupa posição central na área
escavada, além de apresentar grande robustez óssea (Scherer 2012). Todos esses
indivíduos contam com sepultamentos suntuosos e extremamente cuidadosos, com
enorme variedade e quantidade de materiais.
Frente a isso, é inevitável pensar que os machados e lâminas estariam reservados a
indivíduos de alguma forma especiais, mesmo que não seja um pensamento acertado. É
inevitável também indagar sobre sua presença entre algumas crianças, no sentido de por
que motivo esses sepultamentos infantis receberiam objetos de tanto “valor”. De qualquer
forma, é certo que a utilização de machados como acompanhamentos funerários entre
alguns homens está relacionada a uma tradição de longa duração que remete ao início de
173
formação do sítio, enquanto o uso entre alguns sepultamentos infantis é algo novo que
remete ao período 2. Entre as mulheres, os machados nunca estiveram no rol de
acompanhamentos possíveis.
São poucas as ocorrências de percutores ou seixos com marca de uso entre os
sepultamentos do sítio Armação do Sul. Mesmo assim, tudo indica que seriam elementos
exclusivos dos sepultamentos de indivíduos adultos, embora não haja dependência
estatística entre sua frequência e os diferentes grupos de idade segundo o teste de Fisher
(p=0,296). Ocorrendo tanto em indivíduos do sexo masculino quanto em indivíduos do
sexo feminino, a presença desses objetos foi apontada como independente com relação ao
sexo (p=0,526). Quanto às diferenças entre o período e 1 período 2, o número de
ocorrências é tão pequeno em ambos os momentos que não devem ser levadas em
consideração, além de não serem significativas segundo o teste Fisher (p=0,631).
As lascas também são pouco frequentes nos sepultamentos, apresentando um
padrão de uso semelhante ao dos percutores e seixos com marca de uso: somente entre
os adultos, tanto do sexo masculino quanto do sexo feminino. Novamente, contudo, essa
diferença entre adultos e crianças, embora existente, não é significativa segundo o teste
Fisher (p=0,152), e a independência com relação ao sexo é aceita (p=1,0). Quanto às
diferenças entre o período e 1 período 2, o número de ocorrências é tão pequeno em
ambos os momentos que não devem ser levadas em consideração, além de não serem
significativas segundo o teste Fisher (p=0,254).
Artefatos não identificados ou descritos por Rohr como sendo fragmentos de rocha
com alteração ou marca de uso também parecem ser objetos utilizados somente em
sepultamentos de indivíduos adultos, com apenas uma ocorrência em sepultamento
infantil. Não há diferença no uso entre homens e mulheres, mas parece haver um
aumento em sua frequência na passagem do período 1 (26,67%) para o período 2
(52,17%). De fato, o teste Fisher aponta para dependência com relação à idade (p=0,028) e
independência com relação ao sexo (p=0,688). A diferença entre os dois períodos,
contudo, não é reconhecida pelo teste Qui-Quadrado (p=0,120).
Penso ser possível reunir essas últimas três categorias de acompanhamentos
mencionados – os percutores ou seixos com marca de uso, as lascas e os artefatos não
174
identificados ou fragmentos de rocha com alteração – em um único grande grupo de
“instrumentos de trabalho”, ou “objetos utilitários”, e entendê-los como fazendo parte
quase que exclusivamente do rol de acompanhamentos possíveis entre indivíduos adultos.
Às crianças, que não deveriam participar das atividades cotidianas da mesma forma que os
adultos, talvez fossem reservados objetos de valor de uso e valor simbólico diferenciado,
como os adornos, ou mesmo as pontas ósseas, artefatos fusiformes e lâminas de machado
que ocorrem em alguns sepultamentos infantis; além, claro, dos elementos que ocorrem
generalizadamente entre diferentes sexos, idades e períodos.
Inclusive, a presença de artefatos que podem ser considerados “raros”, tendo em
vista sua pequena ocorrência e impossibilidade de enquadramento nas categorias de
acompanhamentos aqui empregadas, se dá somente em sepultamentos infantis. É o caso
de uma criança do período 1, acompanhada por uma ponta em quartzo – artefato que
destoa dentre os demais que compõem a indústria lítica do sítio, tendo provavelmente
sido trocado com outras populações ou encontrado fortuitamente –, e de duas crianças do
período 2, acompanhadas por bastões em diabásio. A dependência da frequência desses
artefatos “raros” com relação à idade é significativa segundo o teste de Fisher (p=0,028).
Como elementos que ocorrem generalizadamente entre diferentes sexos, idades e
períodos, podemos citar as conchas, os ossos de fauna terrestre ou marinha e os seixos
e/ou fragmentos de rocha sem alteração antrópica.
As conchas aparecem indistintamente em sepultamentos de adultos do sexo
feminino, adultos do sexo masculino e crianças, sendo a sua frequência, portanto,
independente com relação à idade (p=1,0 – teste de Fisher) e ao sexo (p=0,678). Podem
estar em grande quantidade tanto ao redor do esqueleto, contornando-o, quanto sobre
partes específicas deste, como o rosto, mas também aparecem em pares isolados e
conjuntos de 3, 4 ou 9. Embora ocorram em ambos os momentos de ocupação do sítio, o
gráfico indica um aumento na sua frequência na passagem do período 1 (31,25%) para o
período 2 (52,58), dependência que, contudo, não é acusada pelo teste Qui-Quadrado
(p=0,199).
A presença de ossos e dentes de fauna terrestre e marinha – principalmente de
mamíferos marinhos – é ainda mais comum que a de conchas, constituindo quase que um
175
padrão entre os sepultamentos do segundo período do sítio. Embora esse tipo de material
não ocorra entre as crianças do período 1, aparece tanto em indivíduos femininos quanto
em indivíduos masculinos desse período, e em todas as categorias de sexo e idade do
período 2, havendo independência estatística entre as frequências e as categorias
mencionadas (p=1,0 em ambos os casos – teste de Fisher). Há, contudo, um aumento
significativo na ocorrência de fauna na passagem de um momento de ocupação para o
outro (de 43,75 para 80,00%), o que é apontado também pelo teste Qui-Quadrado
(p=0,017).
Os seixos e fragmentos de rocha sem alteração são, definitivamente, os elementos
mais frequentes dentre todos os acompanhamentos funerários, além de ocorrerem
igualmente entre indivíduos do sexo feminino e masculino, adultos e crianças. Há
independência, portanto, entre a frequência desses objetos e as categorias de idade
(p=0,481 – teste de Fisher) e sexo (p=0,669 – teste de Fisher). Embora o teste QuiQuadrado aponte para independência também com relação ao período (p=0,081) – para
um nível de confiança de 95% – o gráfico indica que houve um aumento na ocorrência de
seixos e fragmentos de rocha na passagem do período 1 (63,64%) para o período 2
(85,19%), de modo que enquanto no primeiro momento de ocupação do sítio esses
objetos são apenas bastante comuns, no segundo momento parecem se tornar uma
norma.
Agora, para complementar os dados relativos aos usos e desusos dos diferentes
tipos de acompanhamentos funerários, seguem alguns gráficos representando o número
mínimo de acompanhamentos funerários em diferentes indivíduos, grupos de idade, sexo
e período. Lembrando que esse cálculo foi realizado com base somente nos sepultamentos
completos, de forma a evitar ao máximo subestimativas dos valores.
Como veremos, esses resultados corroboram a análise da frequência do uso,
mostrando haver diferenças entre indivíduos adultos do sexo masculino, adultos do sexo
feminino e crianças, bem como transformações ao longo do tempo.
176
Gráfico 17: Histograma do número mínimo de acompanhamentos funerários entre sepultamentos de
indivíduos do sexo masculino, do sexo feminino e crianças.
Gráfico 18: Distribuição do número mínimo de acompanhamentos funerários dos indivíduos do sítio
Armação do Sul.
177
Tanto no histograma quanto no gráfico de dispersão é possível observar que há um
aumento no número de acompanhamentos dos sepultamentos ao longo do tempo,
passando de uma média de 7,57 no período 1, para uma média de 15,90 no período 2. Na
ausência de normalidade na amostra, mesmo com a exclusão dos outliers, foi aplicado o
teste U de Mann-Whitney (não-paramétrico) para verificação da significância dessa
diferença e, de fato, a hipótese de semelhança foi rejeitada (p=0,037) para um nível de
confiança de 95%. Há também uma mudança na variação desse número que, uma vez
excluídos os outliers, apresenta coeficiente de variação de Pearson (CVp) de 71,66% no
período 1 e de 79,32% no período 2, indicando um aumento de quase 10% no desvio dos
valores com relação à média.
Com um olhar mais atento, contudo, percebemos que a diferença está, na verdade,
somente nos indivíduos adultos masculinos e nas crianças: enquanto as mulheres mantêm
média parecida entre os dois períodos, passando de 7 para 9 acompanhamentos, os
homens passam de uma média de 10,50 para 19,56, e as crianças de 2,67 para 11,43, com
um aumento também na variação desses números.
É interessante observar como no período 1 não há diferença clara entre a maior
parte dos indivíduos do sexo masculino e feminino, a distinção maior se dando com
relação às crianças. O indivíduo desse momento cronológico que apresenta o número de
acompanhamentos mais elevado, contudo, é do sexo masculino, destoando de todos os
demais. No período 2, por outro lado, alguns sepultamentos masculinos apresentam
números muito maiores que os das mulheres, havendo uma diferença clara entre os
diferentes sexos. Quanto às crianças, é possível perceber que enquanto algumas
continuam apresentando números baixíssimos de acompanhamentos, outras passam a se
igualar aos homens que se destacam por apresentarem números maiores. Nesse segundo
período – e apesar da aproximação por parte de algumas crianças – novamente o valor
outlier pertence a um indivíduo adulto do sexo masculino.
Talvez isso tudo se torne mais evidente em cores, como representado no gráfico
abaixo, onde os diferentes números de acompanhamentos funerários se encontram
categorizados.
178
Gráfico 19: Representação da distribuição dos diferentes números de acompanhamentos funerários entre
indivíduos adultos femininos, indivíduos adultos masculinos e crianças.
Fica claro que, durante o período 1, a prática comum era de sepultar as crianças
com poucos acompanhamentos, entre 1 e 5, algumas contando apenas com ocre e
adorno. Os adultos apresentam uma variação muito maior, com números entre 1-15, 6-10
e 11-15. Não há sepultamentos entre 16-20 e 21-25, somente um indivíduo estimado
como adulto maduro do sexo masculino que destoa de todos os demais com mais de 26
acompanhamentos.
No período 2, os sepultamentos infantis passam a apresentar maior variação: a
maioria ainda conta com apenas 1 a 5 acompanhamentos, porém alguns aparecem com
números entre 16-20 e 21-25, sem meio termos. As crianças que contam com muitos
acompanhamentos são também as que contam com adorno, enquanto aquelas que
179
apresentam número pequeno, em geral, não estão acompanhadas desse tipo de objeto.
Os adultos continuam sendo os que mais variam, mas, nesse momento, há uma grande
diferença entre os indivíduos do sexo feminino e do sexo masculino. Enquanto os
sepultamentos femininos mantêm a variação anterior, os sepultamentos masculinos
passam a contar com todas as categorias de números, aparecendo em combinações de
1-5, 6-10, 11-15, 16-20, 20-25 e mais de 26.
Está claro também que a quantidade de acompanhamentos não pode ser
considerada aleatória, uma vez que é possível observar padrões bem definidos entre os
diferentes sexos e idades em ambos os períodos. Além disso, em ambos os momentos de
ocupação do sítio o número mais alto de acompanhamentos pertence a um indivíduo do
sexo masculino. Outro aspecto que reforça a não aleatoriedade na escolha da quantidade
de objetos a acompanhar um sepultamento reside no fato de que determinados tipos de
acompanhamentos como as pontas ósseas, os artefatos fusiformes e as lâminas em geral
costumam aparecer justamente naqueles indivíduos que contam com grande número de
acompanhamentos, com algumas exceções. O caso das lâminas é o único que não
apresenta exceções, e o mais emblemático tendo em vista o que foi anteriormente
colocado sobre sua ocorrência se dar entre indivíduos que de alguma forma se destacam.
Gráfico 20: Distribuição do número mínimo de acompanhamentos dos indivíduos do período 1 e do período
2, com marcação daqueles que contam com lâminas de machado ou outro tipo de lâmina.
180
Por fim, podemos observar alguns padrões de escolha relativos aos objetos e à
quantidade de objetos a serem utilizados em determinados sepultamentos, bem como à
deposição e posição dos corpos. Padrões que deveriam ser senso comum entre a
população do sítio Armação do Sul no momento de escolher os objetos que iriam compor
um sepultamento; disposições estruturadas de como agir frente à questão colocada pelo
corpo do falecido, mas também estruturantes e passíveis de desvios, mudando e gerando
mudança. De forma a tornar a visualização desses padrões mais clara, segue um quadro
resumo dos dados aqui apresentados.
Período
1
2
TIPOS DE ACOMPANHAMENTOS
Sexo
Idade
Qtd
C
F
Comum (>50%)
Ocasional (50-25%)
Raro (<25%)
1-5
Ocre
Adorno
Lítico não trabalhado
Raro (ponta em quartzo)
Concha
1-5
6-10
11-15
Ocre
Lítico não trabalhado
Utilitários
Fauna
Concha
M
1-5
6-10
26 ou mais
Ocre
Fauna
C
1-5
16-20
21-25
Fauna
Lítico não trabalhado
Concha
Ocre
F
M
1-5
6-10
11-15
1-5
6-10
11-15
16-20
21-25
26 ou mais
Utilitários
Lítico não trabalhado
Adorno
Concha
Lâmina
Fusiforme
Lâmina
Ponta óssea
Adorno
Raro (bastão de diabásio)
Utilitários
Fauna
Lítico não trabalhado
Utilitários
Ocre
Concha
Ponta óssea
Fusiforme
Fauna
Lítico não trabalhado
Utilitários
Concha
Ponta óssea
Ocre
Fusiforme
Lâmina
Adorno
Quadro 1: Padrões de uso dos diferentes tipos de acompanhamentos funerários entre e diferentes
quantidades entre indivíduos adultos femininos, masculinos e crianças dos períodos 1 e 2.
181
No período 1, o sepultamento infantil ideal incluía somente um elemento: os
adornos. Em alguns casos poderia também ser adicionado algum lítico não trabalhado; as
exceções são uma ocorrência de ponta em quartzo e uma ocorrência de material
malacológico. O número de acompanhamentos era pequeno entre todas as crianças.
Quanto aos objetos esperados em sepultamentos femininos, estes eram, basicamente, os
seixos e fragmentos de rocha não trabalhados, embora houvesse também a possibilidade
de escolha de artefatos utilitários e material ósseo faunístico em alguns casos; em apenas
um caso, optou-se pela utilização de conchas. O número de acompanhamento ia de
pequeno a mediano. O elemento comum à maior parte dos sepultamentos masculinos era
o material ósseo faunístico, mas, fora isso, havia um amplo leque de acompanhamentos
que, eventualmente, poderiam também ser utilizados: artefatos utilitários, líticos não
trabalhados, adornos, conchas e lâminas de machado ou similares. O número de
acompanhamentos ia de pequeno a médio, e a muito grande. O uso do ocre, nesse
momento cronológico, poderia ser considerado uma norma em todos os grupos de sexo e
idade.
No período 2, o acordo consentido de como deveria ser um sepultamento infantil
envolvia basicamente a utilização de material ósseo faunístico, lítico não trabalhado e
conchas, havendo, contudo, a possibilidade de uso ocasional de um extenso rol de
elementos, onde se incluíam os artefatos fusiformes, lâminas, pontas ósseas, bastões de
diabásio e adornos. A exceção é uma ocorrência de artefato utilitário, e o número de
acompanhamentos poderia ser ou muito pequeno ou grande, sem meio termo. Um
sepultamento feminino ideal consistia somente em lítico não trabalhado, ossos de fauna e
utilitários, sendo possível, ocasionalmente, adicionar-se material malacológico; as
exceções são uma ocorrência de ponta óssea e uma ocorrência de artefato fusiforme. O
número de acompanhamentos funerários poderia ser pequeno ou médio. Nota-se uma
grande semelhança com o período 2, tanto na quantidade quanto na tipologia dos objetos
– que continuam praticamente os mesmos, mudando apenas de frequência. Já nos
sepultamentos masculinos, esperava-se a presença de ossos de fauna, lítico não
trabalhado, artefatos utilitários, conchas e pontas ósseas, havendo ainda a possibilidade de
a diversidade ser aumentada por meio do uso de artefatos fusiformes e lâminas. A exceção
182
é uma ocorrência de adorno, e o número de acompanhamentos era extremamente
variado, indo de pequeno a muito grande. O uso do ocre, nesse momento cronológico, era
mantido como norma somente entre as crianças, se tornando eventual entre os adultos
femininos e masculinos.
Em ambos os períodos do sítio, é nos objetos que ocorrem somente
ocasionalmente que reside a possibilidade de distinção entre diferentes indivíduos de um
mesmo grupo etário ou de sexo, sendo interessante notar como no caso das crianças e das
mulheres, essa distinção costuma ocorrer por meio do uso de elementos tipicamente
masculinos, como a fauna e as conchas no período 1, ou as pontas ósseas, fusiformes e
lâminas – estas somente no caso das crianças – no período 2.
Ainda, com base nesse quadro e em informações apresentadas anteriormente,
podemos entrever tradições de longa duração em meio aquilo que é de uso circunstancial
e, portanto, depende do grupo social em questão ou do momento cronológico. São elas:
 A opção pela inumação primária e a possibilidade de haver um envoltório feito em
material perecível protegendo os indivíduos (Schmitz et al. 1992), prática que, como
sugerido por Nilsson Stutz (2010) para sítios do mesolítico da Escandinávia meridional,
deveria estar associada a uma preocupação com a integridade do corpo;
 A posição estendida com decúbito e orientação variados.
 O padrão espacial com respeito à área central, que é mantida vazia de
sepultamentos, bem como o respeito ao espaço ocupado pelos sepultamentos e
estruturas mais antigas.
 O envolvimento dos corpos em ocre, porém apenas até determinado momento –
após 1600 anos AP os sepultamentos não apresentam mais esse elemento.
 O uso generalizado de material lítico não trabalhado, material faunístico e
malacológico como acompanhamento funerário.
 O uso de adornos principalmente em sepultamentos infantis.
 O uso de artefatos utilitários somente em sepultamentos de indivíduos adultos.
 O uso de lâminas de machado e outras lâminas ósseas ou líticas principalmente em
sepultamentos de adultos do sexo masculino.
183
 A quantidade de acompanhamentos funerários entre os sepultamentos de adultos
do sexo feminino (entre 1 e 15).
 O fato de os sepultamentos com 26 ou mais acompanhamentos funerários
pertencerem a indivíduos adultos do sexo masculino.
Essas tradições que remetem ao início da formação do sítio em 3065-2880 anos cal
AP e persistem não apenas em meio às mudanças observadas na passagem do período 1
para o período 2, mas também através do hiato de 400 anos nas datações, apontam para
continuidade histórica entre as populações que utilizaram o sítio Armação do Sul como
espaço ritual e lugar de memória ao longo de mais de 1500 anos. Demonstram também
que, enquanto alguns aspectos relacionados às práticas mortuárias são negociáveis, outros
se encontram enraizados tão profundamente que dificilmente são transformados.
Algumas dessas tradições devem estar relacionadas a ideias regionais de muito
longa duração a respeito da morte e de como lidar com a questão colocada pelo corpo
morto, como, por exemplo, o uso do ocre e a inumação primária; outras devem estar
relacionadas ao contexto local ou, ainda, ser específicas de acordos internos à população
do sítio Armação do Sul sobre como um ritual funerário deve ser. Sem mais estudos
semelhantes nos sítios conchíferos do litoral central e do litoral catarinense como um
todo, contudo, fica difícil inferir a origem de cada uma dessas práticas.
Quanto às mudanças, podemos destacar o abandono gradativo no uso do ocre; a
maior distinção interna entre os sepultamentos do grupo masculino e destes com relação
aos sepultamentos femininos, por meio do aumento da média geral do número de
acompanhamentos e do aumento da variabilidade no número e nas tipologias de
acompanhamentos; e a maior distinção interna entre os sepultamentos infantis, por meio
do aumento da média geral do número de acompanhamentos e do aumento da
variabilidade no número e nas tipologias de acompanhamentos possíveis, que se
transformaram no sentido de uma maior aproximação com os sepultamentos masculinos.
184
Afora isso, houve o acréscimo de mais alguns objetos ao rol de acompanhamentos
possíveis, como as pontas ósseas e os fusiformes, principalmente entre os indivíduos do
sexo masculino; bem como a diminuição no uso de outros, como os adornos,
principalmente entre as crianças; e, claro, mudanças diversas na frequência de alguns tipos
de acompanhamentos pré-existentes entre os diferentes grupos de sexo e idade.
A alteração no padrão de uso do ocre se destaca por ter sido generalizada e por ter
apresentado um ritmo lento, diferentemente dos demais acréscimos e abandonos que
envolveram somente grupos de idade e sexo específicos e que parecem ter se dado mais
rapidamente. Essa alteração, como já mencionado anteriormente, poderia estar
relacionada a negociações, por parte da população do sítio Armação do Sul e do conjunto
de relações empreendidas localmente, com uma estrutura regional de longa duração, em
um momento em que os rituais funerários deixaram de ser praticados irrefletidamente e a
doxa foi posta à prova.
O aumento da variabilidade no número e nos tipos de acompanhamentos entre o
os adultos do sexo masculino, com presença mais frequente de sepultamentos que se
destacam pela suntuosidade, permite considerarmos a possibilidade de emergência de
uma maior diferenciação social entre os homens do sítio Armação do Sul. E, embora as
relações de status em uma sociedade não necessariamente correspondam a relações de
poder (Shennan 2006[1982]), enquanto não se prove o contrário podemos, sim,
conjecturar que essa diferenciação esteja associada ao desenvolvimento de uma
hierarquia social mais complexa ou, pelo menos, mais claramente observável no registro
arqueológico. Para o contexto da Idade do Bronze na Europa, Shennan (2006[1982])
demonstrou que o aparecimento de sepultamentos individuais suntuosos se deu para
reafirmar as relações de poder pré-existentes, numa ideologia de legitimação da
diferenciação social como natural e imutável, contrária à ideologia de coletividade anterior
que as mascarava; nesse caso, portanto, o registro arqueológico mudou, mas a
organização social permaneceu a mesma.
O fato de alguns sepultamentos infantis acompanharem a mudança nas práticas
mortuárias relacionadas aos indivíduos masculinos – e justamente na incorporação de
elementos tipicamente masculinos – não apenas reforça a possibilidade do
185
estabelecimento de novas relações de status e/ou poder, mas indica que talvez possamos
estar lidando também com a passagem de uma sociedade de status adquirido para uma
sociedade de status hereditário (Marcus 2008).
Em diferentes contextos ao redor do mundo, os sepultamentos infantis raramente
se mostram tão elaborados quanto os dos adultos, o que geralmente é interpretado como
indicativo de uma identidade ambígua, pertencimento a um “outro” gênero, baixo status
ou, ainda, do fato de os pais não quererem se apegar emocionalmente às crianças antes
de passarem pelos estágios mais críticos (Fahlander 2008). Sepultamentos bastante ricos
em objetos e cuidadosamente organizados, contudo, ocorrem, e, embora possam ser
interpretados como fruto de um esforço coletivo em nível de grupo – como o caso do
cachorro em Skateholm que apresentou um dos sepultamentos mais ricos do sítio
(Fahlander 2008) –, são frequentemente entendidos como evidência de desigualdade
hereditária (Marcus 2008): sendo as crianças muito novas para terem adquirido o direito
de possuir tantos objetos, deveriam ter herdado tal direito e o status correspondente.
Nessa perspectiva, a mudança no registro arqueológico poderia ser explicada,
simplesmente, por uma necessidade de atualização, causada por uma incompatibilidade
entre as práticas mortuárias tradicionalmente empreendidas e as novas relações em jogo
ou as relações já previamente estabelecidas e que, por algum motivo, deveriam ser
reafirmadas. Em ambos os casos, a mudança seria fruto de contradição, em que "the
demands of ritual to conform to traditional models clash with the ability of those rites to
resonate with the real experiences of the social body” (Bell 2009[1992]); fruto da ineficácia
do ritual e daquilo que o senso comum entendia como sepultamento ideal em representar
o mundo presente. E, em ambos os casos, estaríamos falando de transformações materiais
moldadas por interações sociais que, com certeza, não deveriam estar livres de negociação
e resistência. Em momentos de crise, as contradições aparecem e a doxa é posta à prova; a
adoção de inovações nas práticas mortuárias pode representar uma solução.
186
6 Paleodieta e mobilidade
6.1 Análises isotópicas de nitrogênio (δ15N) e carbono (δ13C)
6.1.1 Materiais e métodos
Para determinação dos valores δ15N e δ13C dos indivíduos sepultados no sítio
Armação do Sul foram selecionados pequenos fragmentos ósseos de todos os esqueletos
presentes na reserva técnica do Museu do Homem do Sambaqui que possuíam pós-crânio
e sobre os quais se tinha as informações arqueológicas necessárias para contextualização,
descartando-se aqueles que poderiam ter sido misturados em processos pós-deposicionais
ou de curadoria na instituição de guarda14.
Houve preferência por fragmentos de costela, mas na ausência delas, ou nos casos
em que os esqueletos as apresentavam em pouca quantidade, foram coletados pequenos
fragmentos de ossos longos e de crânio e, em três casos isolados, uma falange, um
metatarso e um fragmento de metacarpo. Evitamos a coleta de ossos com presença de
patologias e outros marcadores bioarqueológicos que possam gerar informações
importantes a pesquisas futuras.
Juntamente com os ossos humanos, foram selecionados ossos de mamíferos
terrestres, aquáticos e semiaquáticos, répteis, anfíbios, aves e peixes do sítio Armação do
Sul, de modo a determinar os valores δ15N e δ13C biologicamente disponíveis no local e,
assim, aumentar o poder interpretativo sobre as assinaturas dos indivíduos humanos.
No total, foram selecionadas 42 amostras humanas pertencentes a indivíduos
adultos e crianças, e 23 amostras faunísticas para análise do colágeno. Como os valores
14
As coletas foram realizadas com o auxílio da bioarqueóloga Me. Luciane Zanenga Scherer.
187
δ15N e δ13C presentes no colágeno refletem a dieta proteica, e como o colágeno sofre
remodelação ao longo do tempo, as informações geradas dirão respeito ao consumo de
proteínas nos últimos anos de vida dos indivíduos analisados.
O sexo e a idade dos indivíduos humanos foram determinados pelas pesquisadoras
Andrea Lessa e Luciane Zanenga Scherer, segundo o protocolo de Buikstra e Ubelaker
(1994). Todo o material coletado foi devidamente fotografado e documentado.
Os ossos passaram por um processo de limpeza mecânica e tratamento químico de
modo a retirar possíveis contaminantes – como lipídios, carbonato da apatita, carbonato
pós-deposicional, C e N presentes no sedimento aderido e matéria orgânica – conforme
sugerido por diferentes autores (DeNiro e Epstein 1978, 1981; Ambrose 1990; Schoeninger
e Moore 1992) e seguindo o protocolo de Tykot (Bastos 2014). Todo esse processo foi
realizado no espaço do Laboratório de Paleoparasitologia da Escola Nacional de Saúde
Pública Sérgio Arouca (ENSP/FIOCRUZ)15.
Fragmentos com aproximadamente 1g foram higienizados com o uso de água
destilada, sendo suas superfícies escovadas com escova de dente e raspadas com sonda
exploradora de dentista e bisturi n. 12. Em seguida, foram colocados em frascos de vidro
identificados, deixados para secar no forno (50°C) e, uma vez secos, foram pesados. O
tratamento químico para extração e purificação do colágeno teve início com a imersão das
amostras em NaOH 0,1M por 24 horas, para remoção de ácidos húmicos. Após essa
primeira etapa, o NaOH foi descartado e as amostras enxaguadas com água destilada e
cortadas em pedaços menores com auxílio de bisturi. Foram então imersas em HCl 2% por
outras 24 horas, para remoção da fração mineral do osso (apatita). Essa etapa de
desmineralização foi repetida mais duas vezes, havendo sempre descarte do HCl e
substituição por ácido novo. Após a terceira vez, o HCl foi descartado e as amostras foram
enxaguadas em água destilada, sendo imersas novamente em NaOH, por mais 24 horas,
após as quais foram enxaguadas em água destilada. Em seguida foram imersas em uma
solução na proporção de 2:1:0,8 de metanol, clorofórmio e água destilada, para remoção
de resíduos lipídicos. Por fim, as amostras foram enxaguadas e colocadas no forno para
secar a 50°C.
15
A preparação das amostras foi realizada com o auxílio do Dr. Murilo Quintans Bastos e apoio da equipe do
Laboratório de Paleoparasitologia (ENSP/FIOCRUZ).
188
No espaço do Laboratório de Ecologia Isotópica do Centro de Energia Nuclear na
Agricultura (CENA/USP), as amostras de colágeno resultantes do processo de purificação
foram novamente pesadas para cálculo da porcentagem de colágeno presente nos ossos
selecionados para análise. Em seguida, foram pesadas alíquotas de aproximadamente 1mg
de cada amostra para análise de seus valores δ15N e δ13C. Algumas amostras apresentaram
menor quantidade de colágeno, o caso mais extremo chegando a 0,134 mg, porém sem
prejuízo na leitura do sinal pelo espectrômetro de massas na maior parte dos casos.
A composição isotópica das amostras e as porcentagens de carbono e nitrogênio
foram determinadas por um espectrômetro de massas Thermo Finnigan Delta Plus
acoplado a um analisador elementar CHNS – EA 1110, no Laboratório de Ecologia Isotópica
(CENA/USP). Os valores δ15N e δ13C foram expressos em partes por mil (‰) com relação
aos padrões internacionais AIR e PDB, respectivamente.
6.1.2 Resultados
Das 42 amostras humanas selecionadas, 6 não apresentaram colágeno após o
tratamento químico com NaOH e HCl e, logo, não puderam ter suas composições
isotópicas estimadas. Foram analisadas, portanto, 36 amostras humanas. Uma das
amostras analisadas, contudo, apresentou problemas na leitura do sinal pelo
espectrômetro16, tendo sido obtidos, por fim, resultados para 35 indivíduos.
Das 23 amostras de fauna selecionadas, 9 não apresentaram colágeno após o
tratamento químico com NaOH e HCl e, logo, não puderam ter suas composições
isotópicas estimadas. Foram analisadas, portanto, 14 amostras faunísticas, e obtido igual
número de resultados. Infelizmente, dentre os ossos que não apresentaram colágeno a
maior parte era de peixes e, com isso, nenhuma amostra de peixe pôde ser analisada.
16
Ao manipular essa amostra específica para pesar suas 0,159 mg na balança antes da análise, percebi que
ela se desmanchou, se mostrando bastante friável, talvez simplesmente por estar em pouca quantidade ou
por ser uma amostra não colagenosa.
189
ID
Osso
Idade
Sexo
δ13C‰
δ15N‰
%C
%N
C:N
% Col
2
3
5
6
8
14
15
17
22
27
28
29
30
31
32
33
36
37
38
39
40
43
45
49
51
52
54
58
61
66
67
69
71
74
78
costela
costela
costela
crânio
costela
costela
costela
costela
costela
crânio
costela
costela
falange
costela
costela
costela
costela
costela
costela
crânio
costela
costela
úmero esquerdo
costela
costela
fíbula esquerda
osso longo
osso longo
crânio
costela
costela
costela
crânio
osso longo
crânio
AJ
AM
AJ
A
AM
AM
A
A
A
A
A
A
A
AM
A
AM
A
AM
A
C
A
A
A
AJ
AM
AM
I
I
A*
C
C
C
AM
AM*
A*
M
M
M
F
M
M
F
F
F
F
F
M
M
F
M
M
M
M
F
I
M
M
F
F
M
F
F*
I
M
I
I
I
M
M*
M
-12,82
-10,59
-12,22
-12,04
-10,54
-10,53
-11,50
-11,33
-12,36
-11,85
-11,62
-10,59
-10,31
-11,86
-10,46
-10,61
-10,88
-10,49
-12,11
-10,89
-10,88
-11,26
-11,37
-12,18
-10,44
-11,94
-12,19
-11,25
-11,41
-11,29
-11,76
-11,79
-11,40
-12,50
-12,07
17,03
17,37
18,66
17,65
17,83
17,92
17,62
17,83
16,35
17,71
17,59
17,08
17,94
17,62
17,81
18,71
19,05
17,00
17,48
20,24
19,48
18,66
17,57
18,02
19,49
16,32
19,40
18,62
17,91
18,23
18,06
20,82
17,87
17,48
17,96
33,12
38,24
42,46
32,25
41,27
41,10
39,45
39,67
38,86
38,34
40,54
39,81
39,06
36,39
38,92
37,66
36,92
37,69
34,16
36,07
37,36
39,23
36,55
36,97
37,49
37,71
36,85
38,28
38,38
39,10
39,07
36,35
37,40
41,79
36,27
12,85
14,89
16,55
12,32
16,34
16,33
15,78
15,22
15,55
15,29
16,25
15,83
15,70
13,65
15,97
15,35
14,52
14,80
13,74
14,19
14,92
15,19
14,90
14,84
15,29
15,28
14,63
15,62
15,39
15,81
15,08
14,46
15,09
16,43
14,24
3,02
3,01
3,00
3,06
2,96
2,95
2,93
3,00
2,93
2,94
2,92
2,94
2,91
3,12
2,85
2,87
2,98
2,98
2,91
2,98
2,93
3,02
2,87
2,92
2,87
2,89
2,90
2,87
2,92
2,90
3,03
2,94
2,90
2,98
2,98
2,67
3,99
5,06
0,43
6,00
5,45
2,03
3,03
7,70
4,69
5,48
4,61
6,47
0,27
4,21
3,47
0,39
1,40
0,60
1,11
1,48
2,11
0,26
2,64
0,15
3,61
0,02
1,16
4,67
6,25
2,61
1,56
0,77
0,02
6,65
15
13
Tabela 3: Resultados da análise dos valores δ N e δ C dos indivíduos analisados do sítio Armação do Sul.
Legenda sexo e idade: I= indeterminado, M= masculino, F= feminino, AM= adulto maduro, A= adulto, AJ=
adulto jovem, C= criança, *= possível (há dúvida na determinação, porém será considerado como consta na
tabela para fins estatísticos).
190
13
15
ID
Taxon
Osso
δ C‰ δ N‰
Ratão do banhado
Myocastor coypus
rádio
-16,19
15,01
38,30 15,22 2,95 6,02
Capivara
Hydrochoerus hydrochaeris
osso longo
-11,53
5,74
36,90 14,60 2,96 0,60
Paca
Agouti paca
osso longo
-21,53
6,22
40,40 15,54 3,04 2,16
Gambá
Didelphis sp.
osso longo
-20,17
11,37
35,93 14,07 2,99 1,22
Jaguatirica
Felis pardalis
rádio
-20,02
11,37
39,26 15,83 2,90 2,83
Anta
Tapirus terrestris
primeiro metatarso
-22,86
5,98
36,12 14,55 2,91 2,17
Porco do mato
Tayassu pecari
mandíbula
-22,51
4,44
35,67 14,19 2,94 2,29
Lontra
Lutra longicaudis
fêmur direito
-16,83
14,57
35,07 13,53 3,03 3,60
Veado
Ozotocerus sp. ou Mazama sp.
osso longo
-21,24
6,94
33,78 12,49 3,17 2,13
Jacaré
Crocodylia
n. identificado
-19,72
7,69
34,74 13,21 3,08 0,48
Tatu
Dasypus sp.
osso longo
-14,61
15,67
39,93 16,01 2,92 13,20
Albatroz
Diomedeidae
não identificado
-13,94
17,55
37,18 14,88 2,93 3,69
Golfinho
Pontoporia blainvillei
mandíbula
-11,26
16,94
31,36 12,29 2,99 0,04
Lobo marinho
Arctocephalus australis
rádio
-12,45
19,31
39,32 15,32 3,01 3,67
15
%C
%N
C:N % Col
13
Tabela 4: Resultados da análise dos valores δ N e δ C dos indivíduos analisados do sítio Armação do Sul.
Todas as amostras humanas e faunísticas analisadas apresentaram concentrações
de carbono e nitrogênio superiores a 3% e 1%, respectivamente, bem como razões C:N
entre 2,9 e 3,6, situando-se, portanto, dentro dos padrões estabelecidos para medição da
qualidade do colágeno com relação à presença de alterações diagenéticas que podem
alterar os valores δ15N e δ13C (DeNiro, Schoeninger e Hastorf 1985; Ambrose 1990).
Algumas amostras, no entanto, apresentaram concentrações de colágeno abaixo de 1%,
ficando fora do padrão relativo a esse indicador. Como houve muita perda de colágeno ao
longo do processo de purificação nas constantes substituições do NaOH e HCl e enxagues
subsequentes, e como tanto as concentrações de carbono e nitrogênio quanto as razões
C:N dessas amostras estão de acordo com os critérios, os resultados obtidos para elas
foram mantidos entre os demais.
O padrão de 2,9 a 3,6 sugerido para as razões C:N (DeNiro, Schoeninger e Hastorf
1985, Ambrose 1990) é baseado no cálculo da proporção atômica entre carbono e
nitrogênio, ou seja, na quantidade de átomos desses elementos presentes na amostra.
Análises realizadas em espectrômetros mais modernos, contudo, geram C:N menores, uma
vez que o cálculo é realizado com base na proporção entre as concentrações de carbono e
191
nitrogênio, ou seja, entre a massa de cada um desses elementos presente na amostra
(Hermenegildo 2009). Para que as razões C:N das amostras do sítio Armação do Sul
ficassem dentro da faixa de variação estabelecida, portanto, foi preciso transformá-las em
razões atômicas, o que foi feito com a multiplicação dos valores por um fator de 1,17, que
corresponde à divisão entre o valor da massa atômica do elemento nitrogênio (14u) pela
massa atômica do elemento carbono (12u). Esse fator é diferente daquele utilizado por
Hermenegildo (2009) para a correção das razões de suas amostras.
Os valores δ15N das amostras de colágeno humano analisadas variaram entre
16,3‰ e 20,8‰ (amplitude de 4,5‰), apresentando média de 18,1‰ com desvio padrão
de 0,98‰. O maior valor obtido corresponde ao sepultamento 69, de uma criança, e o
menor valor corresponde ao sepultamento 52, de indivíduo adulto maduro do sexo
feminino. Os valores δ13C variaram entre -12,8‰ e -10,3‰ (amplitude de 2,5‰),
apresentando média de -11,5‰ com desvio padrão de 0,7‰. O maior valor obtido
corresponde ao sepultamento 30, de um indivíduo adulto do sexo masculino, e o menor
valor corresponde ao sepultamento 2, de indivíduo adulto jovem do sexo masculino.
Os valores δ15N das amostras de colágeno da fauna analisada variaram entre 4,4‰
e 19,3‰ (amplitude de 14,9‰), apresentando média de 11,3‰ com desvio padrão de
5,1‰. O maior valor obtido corresponde ao lobo marinho, e o menor valor corresponde ao
porco do mato. Os valores δ13C variaram entre -22,9‰ e -11,7‰ (amplitude de 11,6‰),
apresentando média de -17,5‰ com desvio padrão de 4,2‰. O maior valor obtido
corresponde ao golfinho e o menor valor corresponde ao porco do mato.
No gráfico de dispersão abaixo é possível observar a correlação extremamente
significativa (r=0,942, r²=0,887, p=0,0) entre os valores δ15N e δ13C das amostras
analisadas, o que é esperado numa cadeia alimentar quando envolve recursos C3 e
alimentos marinhos, tendo em vista o enriquecimento que ocorre nos valores a cada nível
trófico. Assim, a única amostra que se destaca das demais é a capivara, que se alimenta
principalmente de plantas C4. Nesse gráfico, foi acrescentado um quadro representando a
variação dos valores δ15N e δ13C obtidos por De Masi (2001, 2009) e Colonese et al. (2014)
para os peixes que analisaram, bem como os valores obtidos por De Masi para a carne do
berbigão (Anomalocardia brasiliana) e a média dos valores das plantas C3 e C4 (Bender
192
1968, Smith e Epstein 1971, Schoeninger e Moore 1992).
Peixes
x Berbigão
x Plantas C3 (média δ13C =-26‰))
15
Plantas C4 (média) x
13
Gráfico 21: Distribuição dos valores δ N e δ C das amostras humanas e faunísticas analisadas do sítio
Armação do Sul, com inserção de dados de outros autores (Bender 1968; Smith e Epstein 1971; Schoeninger
e Moore 1992; De Masi 2001, 2009; Colonese et al. 2014).
Os indivíduos sepultados no sítio Armação do Sul ocupam o topo dessa cadeia
alimentar, juntamente com o golfinho e o lobo marinho, mas também próximos do
albatroz, e, assim como esses animais, deveriam estar se alimentando principalmente de
peixes. Seus valores δ15N são coerentes com uma dieta predominantemente marinha e de
alto nível trófico, assemelhando-se aos valores obtidos para populações pré-coloniais
costeiras do sul da Califórnia, de 16 a 18‰ (Walker e DeNiro 1986) e de 14 a 19‰
(Schoeninger, DeNiro e Tauber 1983), mas, principalmente, àqueles de 17 a 20‰ obtidos
para esquimós caçadores de baleias modernos (Schoeninger, DeNiro e Tauber 1983). Os
valores δ13C dos indivíduos do sítio Armação do Sul, contudo, diferem daqueles obtidos
para essas populações: enquanto no sul da Califórnia são de -15 a -14‰ (Walker e DeNiro
193
1986) e de -16 a -13‰ (Schoeninger, DeNiro e Tauber 1983), e entre os esquimós são de
-17 a -11‰ (Schoeninger, DeNiro e Tauber 1983), na Armação do Sul são menos negativos,
indo de -13 a -10%.
É importante lembrar que a sobreposição que ocorre entre os valores δ13C das
plantas C4 e dos recursos marinhos – ambos apresentando média em torno de -12%
(Schoeninger e Moore 1992, Ambrose 1993) – pode estar mascarando algum consumo de
alimentos C4 (como o milho) pelos indivíduos do sítio. Se for o caso, porém, esse consumo
representaria uma contribuição proteica proporcionalmente pequena se comparada à dos
peixes, e o mesmo serve para outros recursos como as plantas C3 e os animais terrestres.
Embora todos os indivíduos apresentem uma dieta com forte influência marinha,
podemos observar no histograma abaixo a existência de pequenas variações entre
diferentes indivíduos e grupos de indivíduos. A maior parte dos valores δ13C está
distribuída entre -12‰ e -10‰, porém, um indivíduo (sepultamento 2) destoa dos demais
com valor próximo de -13‰. Os valores δ15N, por sua vez, estão distribuídos
principalmente entre 17‰ e 19‰, havendo quatro indivíduos destoantes dos demais, dois
deles com valores maiores que 20‰ (sepultamentos 39 e 69) e dois com valores em torno
de 16‰ (sepultamentos 22 e 52, do sexo feminino).
13
15
Gráficos 22a e 22b: Histograma dos valores δ C e δ N dos indivíduos analisados do sítio Armação do Sul.
Assim, os indivíduos 2, 22 e 52 poderiam estar se alimentando de recursos
terrestres em maior quantidade que os demais, enquanto os indivíduos 39 e 69, por se
194
tratarem de crianças, estariam tendo seus valores δ15N determinados pelo consumo de
proteína animal proveniente do leite materno (Katzenberg, Herring e Saunders 1996). Os
indivíduos mencionados estão identificados no gráfico a seguir.
13
15
Gráfico 23: Dispersão dos valores δ C e δ N entre adultos do sexo feminino, masculino e crianças (sem
determinação de sexo) do sítio Armação do Sul, com identificação dos sepultamentos 2, 22, 39, 52 e 69.
De fato, a criança que apresenta o maior valor de δ15N do sítio (sepultamento 69)
tem idade de 18 meses ± 6 meses, enquanto as outras duas crianças analisadas, que
apresentam valores δ15N totalmente integrados ao resto da população, possuem idade de
3 anos ± 12 meses e de 7 anos ± 24 meses. Isso vai ao encontro dos dados que vêm sendo
gerados em estudos sobre alimentação e idade de desmame em crianças de populações
históricas e pré-históricas (Fogel, Tuross e Owsley 1989; Katzenberg, Herring e Saunders
1996). A criança de número 39, contudo, que também apresenta valor δ15N elevado,
possui idade estimada em 6 anos ± 24 meses, o que indica que ela ainda estava em período
de amamentação, ou que já havia sido desmamada, porém sua assinatura isotópica ainda
195
apresentava o sinal do leite materno – tendo em vista o lento processo de remodelação do
colágeno dos ossos.
Embora essas práticas sejam extremamente variáveis entre diferentes indivíduos e
sociedades, em geral os dados apontam para um aumento gradativo dos valores de δ15N
desde o nascimento das crianças até mais ou menos 1 ou 2 anos de idade, com
enriquecimento entre 1 e 3‰; a partir daí, os valores tendem a diminuir na maior parte
das sociedades estudadas, dependendo do momento em que ocorre o desmame ou a
complementação da dieta com outros alimentos além do leite materno (Fogel, Tuross e
Owsley 1989; Katzenberg, Herring e Saunders 1996). Existem, contudo, casos de
amamentação prolongada, resultando em valores δ15N elevados até os 4 anos de idade,
como demonstrado por White e Schwarcz (1994) em múmias núbias do norte do Sudão e
por Hermenegildo (2009) entre populações do Brasil central, o que poderia ser o caso da
criança representada pelo sepultamento 39.
Tendo em vista o enriquecimento de 3‰ no valor δ15N entre cada nível trófico de
uma cadeia alimentar, é de se esperar que uma criança se alimentando exclusivamente de
leite materno apresente valor em torno de 3‰ maior que o da mãe (Katzenberg, Herring e
Saunders 1996), sendo aproximadamente essa a diferença que se observa entre os
indivíduos 69 e 39 (20,8 e 20,2‰) e a maior parte da amostra feminina do sítio (17,6‰).
No gráfico de dispersão é possível notar que, além dos sepultamentos femininos 22
e 52, há outra mulher que se diferencia no grupo feminino – embora apresente valores
δ15N coerentes com a amostra total – o que é perceptível também no boxplot abaixo.
13
15
Gráficos 24a e 24b: Boxplot dos valores δ C e δ N do grupo feminino e masculino do sítio Armação do Sul.
196
A média dos valores δ15N é parecida entre os indivíduos do sexo feminino (+17,7 ±
0,2‰) e masculino (+18,1 ± 0,8‰), embora entre estes últimos seja um pouco maior.
Tendo em vista a diferença entre as variâncias assumida por meio do teste de Levene
(F=12,949, p=0,001), contudo, a hipótese da semelhança entre esses dois grupos é
rejeitada pelo teste t de Student para um nível de significância de 95% (t=-2,384,
df=18,535, p=0,028).
Com relação aos valores δ13C, os indivíduos do sexo feminino apresentam uma
média de -11,9 ± 0,3‰, enquanto os indivíduos do sexo masculino apresentam média de
-11,1 ± 0,8‰, ou seja, quase 1‰ menos negativa que a média do grupo feminino. Na
ausência de normalidade entre os valores dos indivíduos masculinos (p=0,005) mesmo
com a exclusão do outlier, procedi ao teste não paramétrico U de Mann-Whitney para
verificação da semelhança na distribuição dos valores entre os dois grupos, hipótese que
foi rejeitada em um nível de confiança de 99% (p=0,009).
Dificilmente, portanto, as diferenças entre o grupo feminino e masculino se devem
ao acaso, sendo possível que os indivíduos do sexo feminino estivessem se alimentando de
animais terrestres e/ou plantas (provavelmente C3 tendo em vista a direção da correlação)
em maior quantidade, ou que os indivíduos do sexo masculino estivessem se alimentando
de recursos de nível trófico um pouco mais alto em maior quantidade, além de contarem
com uma maior variabilidade de fontes de proteína. As três mulheres outliers tinham uma
dieta proteica diferente das demais, uma de maior nível trófico e as outras duas de menor
nível trófico ou mais terrestre, o que poderia ser explicado por regimes alimentares
específicos relacionados a algum momento de suas vidas, posição na sociedade ou, ainda,
à passagem da maior parte dos seus últimos anos de vida em meio à outra população –
local ou não local – com padrão de dieta diferente do apresentado pelo sítio Armação do
Sul. O mesmo serve para o indivíduo masculino outlier, com uma dieta provavelmente
mais terrestre ou de menor nível trófico que a dos demais indivíduos.
Saindo dessa perspectiva geral relativa à tendência dos valores δ13C e δ15N ao longo
dos mais de 1500 anos de ocupação do sítio e nos debruçando sobre diferentes momentos
cronológicos, contudo, podemos ver que os valores δ15N dos indivíduos do sexo masculino
diminuem consideravelmente na passagem do período 1 para o período 2, apresentando
197
também uma menor variabilidade – sendo o primeiro período referente aos indivíduos
datados entre 3100 e 2500 anos AP e/ou sepultados na areia marrom e o segundo período
referente aos indivíduos datados entre 2500 e 1200 anos AP e/ou sepultados na terra
preta, conforme cronologia relativa proposta do capítulo anterior.
13
15
Gráfico 25: Dispersão dos valores δ C e δ N entre adultos do sexo feminino, adultos do sexo masculino e
crianças (sem determinação de sexo) do sítio Armação do Sul, com identificação dos sepultamentos.
Há diferença significativa entre os valores δ15N dos dois períodos do sítio (t=2,102,
df=20,944, p=0,048), que diminuem de uma média de +18,3‰ para +17,7‰, diferença
que está sendo causada principalmente pela diminuição nos valores do grupo masculino,
mas também pela presença de duas crianças fora da idade de amamentação no período 2.
As mulheres mantêm média semelhante ao longo do tempo, descartando-se as outliers.
Quanto aos valores δ13C, embora eles não mudem significativamente de um
período para o outro (t=0,174, df=32, p=0,863), se os cruzarmos com as idades
198
radiocarbônicas obtidas para cada um dos indivíduos datados – o que reduz a amostra
para n=26 – obtemos correlação alta e significativa entre as duas variáveis para um nível
de confiança de 99% (r= 0,580, r²=0,34, p=0,002). Assim, os valores δ13C também mudam
ao longo do tempo, tornando-se mais negativos, porém com uma sutileza que fez as
diferenças passarem despercebidas pelo teste t de Student, talvez pelo fato de o
enriquecimento trófico nesses valores ser de apenas 1‰. Após exclusão do outlier (criança
do sepultamento 69), os valores δ15N também apresentam correlação significativa com as
datações (r=0,396, r²=0,157, p=0,045) – porém de grau moderado e apenas para um nível
de confiança de 95% – corroborando o resultado do teste t com uma diminuição nos
valores.
13
15
Gráficos 26a e 26b: Correlação entre os valores δ C e δ N e as idades radiocarbônicas dos indivíduos do sítio
Armação do Sul.
É interessante observar como, principalmente com relação aos valores δ13C, parece
haver uma perfeita continuidade nas mudanças ao longo do tempo, à revelia do hiato de
400 anos sem datações radiocarbônicas para o sítio – da mesma forma que acontece, por
exemplo, com o uso do ocre nas práticas mortuárias, como demonstrado no capítulo
anterior. É difícil também não perceber que, enquanto os valores δ13C diminuem de forma
gradual, os valores δ15N caem abruptamente por volta de 2500 anos AP, ou seja, a
diminuição nos valores δ15N não foi acompanhada por diminuição proporcional (3:1‰,
conforme o enriquecimento trófico) nos valores δ13C de todos os indivíduos, o que talvez
possa ser mais bem observado nos gráficos abaixo.
199
13
15
Gráficos 27a, 27b e 27c: Dispersão dos valores de δ C e de δ N nas diferentes faixas temporais de ocupação
do sítio Armação do Sul.
Essa manutenção dos valores δ13C entre alguns indivíduos do segundo período,
acompanhada de uma queda brusca nos valores e na variação de δ15N, poderia estar
indicando introdução ou aumento no consumo de plantas C4. O grupo de indivíduos que
apresenta diminuição nos valores δ13C, contudo, poderia tanto ter aumentado seu
200
consumo de plantas C4 – pois ainda se encontram dentro da faixa de variação dessas
plantas (-15 a -6‰) – quanto de plantas C3 e animais terrestres que delas se alimentam,
ou, ainda, ter simplesmente diminuído o consumo de recursos marinhos de nível trófico
muito alto, sem modificação na importância dos recursos terrestres. No terceiro período
há uma diminuição um pouco maior nos valores δ13C, o que direcionaria essa mudança
mais para um consumo de plantas C3 e animais terrestres, porém, devemos lembrar que os
dois valores mais negativos correspondem aos sepultamentos 2 e 22, outliers dentro de
seus respectivos grupos de sexo. Proponho, então, duas hipóteses para explicar essa
mudança nas assinaturas isotópicas:
1. A partir de 2500 AP, todos os indivíduos analisados do sexo masculino –
principais responsáveis pela diminuição nos valores δ15N – estariam se alimentando de
recursos marinhos de nível trófico menor e/ou introduzindo ou aumentando o consumo
de plantas C4. Isso permitiria a queda brusca no δ15N com diminuição pequena no δ13C e
até ausência de diminuição em alguns indivíduos, pois os valores δ13C variam muito pouco
entre os recursos marinhos e apresentam sobreposição entre estes e as plantas C4.
Lembrando que essa hipótese não exclui o consumo de recursos C3 e animais terrestres
em geral, apenas não supõe que a mudança nos valores isotópicos se deva a um aumento
nesse consumo.
2. A partir de 2500 AP, uma parte dos indivíduos do sexo masculino teria
introduzido ou aumentado o consumo de plantas C4 em sua dieta, o que poderia ou não
ter sido acompanhado por uma diminuição no consumo de recursos marinhos de alto nível
trófico. Lembrando que isso não exclui o consumo de recursos C3, apenas não supõe que a
mudança nos valores isotópicos se deva a um aumento nesse consumo. A outra parte dos
indivíduos masculinos teria aumentado seu consumo de plantas C3 e animais terrestres,
e/ou de plantas C4, e/ou teria diminuído o consumo de recursos marinhos de nível trófico
muito alto, aproximando sua dieta à do grupo feminino.
A hipótese 1 e a primeira parte da hipótese 2 se justificam pelo fato de que, caso a
alteração estivesse sendo causada por um aumento no consumo de plantas C3 e de
animais terrestres que delas se alimentam – associado ou não a uma redução no consumo
de recursos marinhos de alto nível trófico – a dispersão dos dados no segundo período
201
deveria ser para a esquerda e para baixo do gráfico (numa correlação positiva entre δ15N e
δ13C), que é esperado numa cadeia trófica que envolve recursos marinhos e recursos
terrestres C3 devido aos enriquecimentos de 1‰ e de 3‰ para o δ13C e o δ15N
respectivamente.
Voltando à amostra total do sítio (n=35) e à cronologia relativa, é possível observar
nos gráficos abaixo que essa correlação positiva existe no primeiro período de ocupação
do sítio (r=0,420, r²=0,176, p=0,106) – embora não seja significativa para um nível de
confiança de 95%. No segundo período, tal correlação é quase inexiste (r=0,009, r²=0,034,
p=0,970) (gráfico 12a), o que indica a entrada de algum componente diferente na dieta,
como sugerido nas hipóteses apresentadas. Com a exclusão dos sepultamentos 2 e 22,
contudo, a correlação volta a existir e torna-se negativa (r=-0,368, r²=0,136, p=0,160)
(gráfico 12b), reforçando ainda mais as hipóteses, principalmente com relação à
possibilidade de consumo de plantas C4.
A
B
13
mantém δ C
13
15
Gráficos 28a e 28b: Correlação entre os valores δ C e δ N nos diferentes períodos de ocupação
do sítio Armação do Sul. Nota-se que no gráfico A os sepultamentos 2 e 22 estão incluídos e a
correlação é quase inexiste, enquanto no gráfico B esses indivíduos foram excluídos e a
correlação é levemente negativa.
202
Acontece que essa correlação negativa é determinada justamente pelos seis
indivíduos masculinos que mantiveram os valores δ13C elevados em meio à diminuição dos
valores δ15N, o que, então, reforça a hipótese 2, de mudanças diferentes para diferentes
grupos de indivíduos do sexo masculino. Os indivíduos masculinos inseridos no grupo
circulado em cor verde poderiam estar modificando suas dietas em qualquer um dos
sentidos sugeridos na hipótese – aumento nos recursos terrestres em geral ou redução nos
recursos marinhos de alto nível trófico –, sendo inclusive possível acrescentar os
sepultamentos 2 e 22 ao grupo e, assim, obter-se uma correlação positiva (r=0,477,
r²=0,227, p=0,117), de mesmo grau da correlação do período 1. O grupo circulado em cor
vermelha poderia estar consumindo mais recursos C4 e/ou reduzindo a quantidade de
recursos marinhos de alto nível trófico.
É importante lembrar que, qualquer que tenha sido a mudança, as principais fontes
de proteína continuaram sendo os recursos marinhos, principalmente os peixes, pois os
valores δ15N mantiveram-se bastante elevados (acima de 16‰).
E, claro, tendo em vista o tamanho pequeno da amostra (n=35), reduzida ainda
mais quando dividida entre o período 1 (n=16) e o período 2 (n=18, com exclusão do
sepultamento infantil 69), qualquer interpretação deve ser tomada com cautela. O fato de
haver várias possibilidades de correlações – distintas em grau e direção – ao excluirmos e
acrescentarmos indivíduos específicos, já demonstra a fragilidade das inferências. Além
disso, as correlações não são significativas, podendo ser devidas ao acaso.
Antes de gerar esses gráficos, contudo, fiz uma série de testes em que dividi a
amostra analisada em grupos compostos aleatoriamente e, em todos os casos, houve
semelhança entre suas correlações, tendo sido observada diferença somente quando a
amostra foi divida entre os indivíduos do período 1 e período 2. De todo o modo, o
interesse na comparação entre as correlações é apenas de reforçar a possibilidade da
entrada de um componente distinto na dieta dos indivíduos – que estaria desordenando a
correlação do período anterior – e não de tentar explicar os valores δ15N por meio dos
valores δ13C e vice-versa.
O que pode ser afirmado é que a dieta proteica dos indivíduos do sexo masculino
do sítio Armação do Sul começou a mudar gradualmente a partir de 2500 anos AP, e
203
mudou de forma que assim como no período 1 havia indivíduos que se destacavam por
apresentar valores δ15N mais altos, no período 2 alguns deles se destacavam por
apresentar valores δ13C mais altos; ou seja, de uma forma ou de outra, alguns homens
sempre se diferenciavam dos demais indivíduos dos sexo masculino e da população em
geral com relação à dieta.
Se inserirmos o sítio Armação do Sul no contexto do litoral central, comparando
suas composições isotópicas de nitrogênio e carbono com aquelas obtidas para o sítio
Tapera (n=42) (Bastos 2014), Porto do Rio Vermelho I (n=1), Porto do Rio Vermelho II
(n=15) e Canto da Lagoa I (n=1) (De Masi 2001), o quadro de uma possível mudança em
direção ao consumo de plantas C4 parece ganhar força. Antes de nos voltarmos para o
gráfico, contudo, é importante lembrar que as análises empreendidas por Bastos (2014) no
sítio Tapera foram realizadas a partir do colágeno da dentina – de dentes permanentes em
geral formados após a idade de desmame – e, portanto, dizem respeito à dieta dos
indivíduos na infância e na juventude, conforme o dente analisado.
]
13
15
Gráfico 29: Dispersão dos valores δ C e δ N obtidos para os sítios Tapera (Bastos 2014), Porto do Rio
Vermelho I, Porto do Rio Vermelho II, Canto da Lagoa I (De Masi 2001) e Armação do Sul. Os sítios estão
dispostos em ordem cronológica na legenda, juntamente com suas idades radiocarbônicas mais antigas e
mais recentes (não calibradas).
204
No gráfico de dispersão, é possível observar a proximidade entre os valores dos três
sítios mais extensamente analisados (Tapera, Porto do Rio Vermelho II e Armação do Sul),
sendo o sítio Porto do Rio Vermelho o que mais se diferencia dentre eles. Chama atenção a
presença de quatro indivíduos bastante destoantes entre a população desse sítio, três
deles com valores δ15N menores que os demais (entre 12 e 14‰), e um com valor δ15N
menor e valor δ13C maior (em torno de -9‰). O sítio Tapera também apresenta dois
indivíduos com valores δ13C menores que -10‰. Dada a cronologia dos sítios, fica clara a
tendência de os valores serem puxados para baixo e para a direita do gráfico ao longo do
tempo, numa correlação negativa que se difere daquela esperada se a mudança fosse em
direção a um aumento no consumo de recursos C3 e animais terrestres.
13
15
Gráfico 30: Dispersão dos valores δ C e δ N obtidos para os sítios Tapera (Bastos 2014), Porto do Rio
Vermelho I, Porto do Rio Vermelho II, Canto da Lagoa I (De Masi 2001) e Armação do Sul, juntamente com suas
correlações. Nota-se que a correlação entre os valores do período 2 do sítio Armação do Sul está um pouco
diferente das correlações anteriormente apresentadas para esse período, o que se deve à inclusão do
sepultamento 69 para comparação entre as amostras totais de cada sítio.
205
Mais uma vez, as correlações apresentadas podem se dever ao acaso, mas não
deixa de ser interessante observar como os possíveis acasos de cada um dos sítios
configuram um padrão se entendidos em conjunto e cronologicamente; um padrão que
não parece ser aleatório. Mais uma vez, também, não se buscou explicar um pelo outro os
valores δ15N e δ13C obtidos, apenas observar possibilidades de diferença e semelhança
entre as combinações de componentes alimentares empregadas pelas populações dos
sítios em questão.
A correlação positiva observada entre os valores δ13C e δ15N no período 1 do sítio
Armação do Sul se faz inexistente no período 2 desse mesmo sítio – ou levemente
negativa, caso excluídos os sepultamentos 2, 22 e 69 – e torna-se negativa nos sítios Porto
do Rio Vermelho II e Tapera, reforçando a possibilidade de que a mudança seja em direção
a um consumo menor de recursos marinhos de alto nível trófico e/ou à introdução ou
aumento no consumo de plantas C4. Esta segunda possibilidade é a mais provável: a
redução sozinha no consumo de animais como lobos marinhos, golfinhos, tubarões,
baleias e aves marinhas geraria uma tendência mais à manutenção e até diminuição dos
valores δ13C do que ao aumento. Ainda, a presença de um indivíduo do Porto do Rio
Vermelho II com valor δ15N em torno de 13‰ e valor δ13C próximo de -9‰, corrobora essa
ideia.
Não pode ser descartada, contudo, a possibilidade de esse aumento nos valores
δ13C estar sendo causado por um consumo intenso de animais que se alimentam de
gramíneas C4, como as capivaras. Castilhos e Simões-Lopes (2005) observaram grande
ocorrência desse animal no sítio Porto do Rio Vermelho II, identificando 37 peças de pelo
menos 12 indivíduos, e sugerem que tivessem papel importante na dieta desse grupo.
Seria estranho, contudo, que um aumento no consumo desse animal específico não fosse
acompanhado também por um aumento no consumo de outros animais terrestres que, no
entanto, se alimentam de plantas C3, o que geraria uma tendência de manutenção dos
valores δ13C – num balanço entre os dois tipos de recursos – ou de diminuição.
É interessante notar a continuidade existente entre os valores isotópicos do
segundo período do sítio Armação do Sul e do sítio da Tapera – as colunas desses dois
sítios no gráfico poderiam ser unidas como um quebra-cabeça. Embora os valores δ15N do
206
período 2 do sítio da Armação apresentem diferença significativa com relação aos valores
do período 1, eles são significativamente semelhantes em sua distribuição aos valores δ15N
da Tapera, de acordo com o teste U de Mann-Whitney (p=0,139) – foi utilizado um teste
não paramétrico devido à ausência de normalidade nos valores δ15N da amostra da
Tapera. E o mesmo serve para os valores δ13C de acordo com o teste t (t=-1,767, df=59,
p=0,082) em um nível de confiança de 95%.
E tanto Armação do Sul quanto Tapera se diferenciam do Porto do Rio Vermelho II.
O primeiro somente com relação aos valores δ15N (t=4,031, df=18,950, p=0,001), que são
mais altos, sendo os valores δ13C semelhantes (t=1,289, df=32, p=0,207); e o segundo com
relação aos valores δ15N (p=0,001, teste Mann-Whitney), que são mais altos, e com relação
aos valores δ13C (t=-3,135, df=55, p=0,003), que são também maiores.
Tendo em vista que os sítios Tapera e Armação do Sul se situam no sul da Ilha de
Santa Catarina, enquanto o sítio Porto do Rio Vermelho II se encontra no entorno da Lagoa
da Conceição, no leste da ilha, essas semelhanças e diferenças tornam-se mais
compreensíveis, e apontam para a possibilidade de haver diferenças no modo de vida das
populações associadas a diferentes conjuntos de sítios em diferentes partes da ilha.
Por fim, o contexto regional. No gráfico que segue foram inseridos os valores δ15N e
δ13C dos indivíduos analisados dos sítios do litoral central, juntamente com os valores dos
indivíduos do sítio Forte Marechal Luz (litoral norte) (Bastos 2014). Para comparação,
segue também outro gráfico, menor, em que é possível observar esses mesmos sítios
juntamente com os valores isotópicos de indivíduos das terras altas (Alfredo Wagner,
Ribeirão da Herta, Urubici e São Joaquim) analisados por De Masi (2001). Mais uma vez, é
importante lembrar que as análises realizadas por Bastos (2014) nos sítios Tapera e Forte
Marechal Luz foram realizadas a partir do colágeno da dentina, dizendo respeito à dieta na
infância ou na juventude; as demais (De Masi 2001) foram feitas a partir do colágeno dos
ossos, indicando a dieta proteica dos últimos anos de vida dos indivíduos.
207
13
15
Gráfico 31: Dispersão dos valores δ C e δ N obtidos para os indivíduos analisados dos sítios do litoral central [Tapera
(Bastos 2014), Porto do Rio Vermelho I, Porto do Rio Vermelho II, Canto da Lagoa I (De Masi 2001) e Armação do Sul] e
do litoral norte [Forte Marechal Luz (Bastos 2014)]. Na legenda constam, entre parênteses, as porções litorâneas onde
se situam os sítios, sendo LC=Litoral Central e LN=Litoral Norte. No gráfico menor, além dos sítios mencionados, estão
presentes os valores dos indivíduos das terras altas analisados por De Masi (2001).
Há bastante sobreposição nos valores δ15N e δ13C dos sítios das diferentes porções
litorâneas. Destacam-se, novamente, os quatro indivíduos do sítio Porto do Rio Vermelho II
(litoral central), mais para baixo e para a direita do gráfico, mas também dois indivíduos do
Forte Marechal Luz para baixo e para a esquerda, com valores δ15N e δ13C menores. De
acordo com Bastos (2014), esses dois indivíduos provavelmente estariam se alimentando
de plantas C3, animais terrestres e/ou animais aquáticos de água doce em maior
quantidade que os demais. Os indivíduos das terras altas, como esperado, apresentam
valores coerentes com uma dieta terrestre, sete deles com foco maior em plantas C 3 e um
com foco em plantas C4. Os outliers do Forte Marechal Luz se situam, justamente, na
transição entre uma dieta marinha e a dieta dos indivíduos das terras altas consumidores
208
de plantas C3, enquanto os outliers do Porto do Rio Vermelho II se situam na transição
entre uma dieta marinha e a dieta do indivíduo das terras altas consumidor de plantas C4.
Os sítios Tapera e Armação do Sul (litoral central) apresentam diferença
significativa com relação ao sítio Forte Marechal Luz (litoral norte), contando com valores
mais elevados tanto de δ15N (p=0,0 no teste U e no teste T, respectivamente) quanto de
δ13C (p=0,004 e p=0,016, respectivamente, segundo teste T). O sítio Porto do Rio Vermelho
II (litoral central), por outro lado, apresenta semelhança significativa com esse sítio do
litoral norte tanto nos valores δ15N (p=0,797, teste T), quanto nos valores δ13C (p=0,120,
teste T).
Segue tabela com as médias dos valores δ15N e δ13C de cada um dos sítios com n>1
e gráfico com a direção das mudanças que ocorrem nesses valores ao longo do tempo.
Nesse exercício, foram acrescentados os valores dos sítios Jabuticabeira II e Galheta IV
(litoral sul) (Colonese et al. 2014), alcançados a partir da análise do colágeno dos ossos e
aos quais tive acesso somente por meio das médias. As amostras dos sítios Forte Marechal
Luz e Armação do Sul foram divididas com relação à presença ou ausência de cerâmica e
com relação à cronologia relativa, respectivamente.
Sítio
Período
média
δ15N‰
média
δ13C‰
N
Referência
Forte Marechal Luz (s/ cerâmica)
Forte Marechal Luz (c/ cerâmica)
Armação do Sul (período 1)
Armação do Sul (período 2)
Porto do Rio Vermelho II
Tapera
Jabuticabeira II
Galheta IV
Antigo
Tardio
Antigo
Tardio
Tardio
Tardio
Antigo
Tardio
15,5 ± 0,7
15,9 ± 1,0
18,3 ± 1,1
17,7 ± 0,5
15,8 ± 1,8
17,7 ± 1,3
17,4 ± 1,6
17,4 ± 0,6
-12,0 ± 1,2
-13,4 ± 1,3
-11,4 ± 0,7
-11,4 ± 0,8
-11,8 ± 1,0
-11,1 ± 0,7
-11,5 ± 1,5
-11,4 ± 1,2
7
5
16
19
15
42
47
7
Bastos (2014)
Bastos (2014)
Esta dissertação
Esta dissertação
De Masi (2001)
Bastos (2014)
Colonese et al. (2014)
Colonese et al. (2014)
Porção litorânea
Litoral Norte
Litoral Central
Litoral Sul
13
15
Tabela 5: Média dos valores δ C e δ N obtidos para os sítios Tapera (Bastos 2014), Porto do Rio Vermelho II (De Masi 2001)
e Armação do Sul, do litoral central; Forte Marechal Luz (Bastos 2014), do litoral norte; e Jabuticabeira II e Galheta IV
(Colonese et al. 2014), do litoral sul.
209
Gráfico 32: Dispersão das médias e representação da direção da mudança ao longo do tempo nos valores
13
15
δ C e δ N dos sítios do litoral central [Tapera (Bastos 2014), Porto do Rio Vermelho II (De Masi 2001) e
Armação do Sul], do litoral norte [Forte Marechal Luz (Bastos 2014)] e do litoral sul [Jabuticabeira II e
Galheta IV (Colonese et al. 2014)]. Os círculos representam os sítios ou períodos mais antigos (>2500-2000
anos AP) e os triângulos representam os sítios mais tardios (<2500-2000 anos AP).
Com certeza a quantidade de sítios que foram estudados do ponto de vista dos
isótopos de nitrogênio e carbono é ainda muita pequena no litoral catarinense. Como,
entretanto, temos pelo menos um representante de momento mais antigo e um
representante de momento mais tardio em cada uma das porções litorâneas, podemos dar
início à reflexão sobre a forma como a dieta estava mudando – ou não – nesses diferentes
locais, mesmo que mais à frente, com a produção de novos dados, tudo venha a mudar.
Embora todos os sítios se aproximem com relação ao principal componente e fonte
de proteínas de suas dietas, os peixes, apresentando – exceções à parte – valores δ13C e
δ15N coerentes com uma dieta predominantemente marinha, parece que a mudança
tomou direções distintas nas diferentes porções litorâneas. Enquanto no litoral central,
como já vimos, a combinação de valores δ15N menores e valores δ13C maiores levou a um
210
deslocamento para baixo e para a direita do gráfico, indicando talvez um aumento no
consumo de plantas C4 e/ou diminuição no consumo de recursos de alto nível trófico, no
litoral norte, representado pelo sítio Forte Marechal Luz, a mudança se deu para cima e
para a esquerda do gráfico, com valores δ15N maiores e valores δ13C menores que
apontam para um aumento no consumo de recursos terrestres e plantas C 3. A amostra
para cada um dos períodos do Forte Marechal Luz (sem cerâmica e com cerâmica) é
pequena, porém, os resultados da análise realizada por Bastos (2014) a partir do
carbonato da apatita em uma amostra maior dos indivíduos desse sítio – n=13 para o
período sem cerâmica e n=8 para o período com cerâmica – confirmam essa queda nos
valores δ13C. Não bastassem as diferenças já bem marcadas entre as porções litorâneas
norte e central, no litoral sul temos ainda um terceiro quadro: aparente ausência de
mudança.
6.1.3 Discussão
Com base nos dados isotópicos de nitrogênio (δ15N) e carbono (δ13C) gerados, é
possível afirmar que os indivíduos analisados do sítio Armação do Sul apresentavam uma
dieta predominantemente marinha e de alto nível trófico ao longo dos últimos anos de
suas vidas, baseada principalmente em peixes. Esses resultados são coerentes com valores
δ15N obtidos para populações costeiras pré-coloniais do sul da Califórnia (Walker e DeNiro
1986) e para esquimós caçadores de baleias modernos (Schoeninger, DeNiro e Tauber
1983), embora não o sejam com relação aos valores δ13C, em torno de 3‰ mais elevados
no sítio Armação do Sul – possivelmente por motivos ambientais. São coerentes também
com os dados provenientes de estudos zooarqueológicos (Bandeira 1992, Figuti 1993,
Klökler 2001) e isotópicos (De Masi 2001, Bastos 2014, Colonese et al. 2014) nos sítios
conchíferos catarinenses.
Os vestígios faunísticos presentes no sítio Armação do Sul e nos demais sítios
conchíferos do litoral catarinense, contudo, sugerem que essas populações litorâneas
estavam também se alimentando de animais terrestres de pequeno e grande porte como
pacas, tatus, capivaras, antas, veados, porcos de mato, jaguatiricas, porém em menor
211
quantidade e, como indicam os valores δ15N e δ13C, com contribuição proporcionalmente
pequena na dieta proteica dos indivíduos se comparada à contribuição dos peixes.
Da mesma forma, a presença constante de tubérculos carbonizados – tanto do tipo
C3 (carás) quanto do tipo C4 (gramíneas) – ao longo da estratigrafia dos sítios (Scheel-Ybert
2001, Scheel-Ybert et al. 2003), aliada à ocorrência de possíveis grânulos de amido de
milho, batata doce e carás em cálculos dentários, bem como fitólitos de gramíneas,
palmeiras e de pinhão (Wesolowski 2007), indicam que os vegetais estavam presentes na
dieta dessas populações litorâneas, e talvez em quantidades significativas. Embora os
peixes fossem a principal fonte de proteínas, os vegetais deveriam ter papel importante
como fonte de carboidratos – ou seja, como fonte energética.
Nesse sentido, a análise da composição isotópica de carbono dos indivíduos por
meio da apatita poderia dar resultados diferentes, uma vez que informaria sobre a dieta
total, e não apenas a dieta proteica sinalizada no colágeno. De fato, os valores δ13C da
apatita do esmalte dentário dos indivíduos do sítio Forte Marechal Luz levaram Bastos
(2014) a sugerir que o consumo de vegetais teria desempenhado papel importante na
dieta energética dessa população. No sítio Tapera, por outro lado, os resultados da análise
da apatita corroboraram os resultados do colágeno (Bastos 2014).
Em meio a essa tendência marinha na dieta, alguns indivíduos se destacaram como
outliers por combinarem valores δ13C e δ15N menores que os demais, o que poderia estar
indicando um consumo maior de plantas C3 e animais terrestres. As razões para esses
indivíduos apresentarem uma dieta distinta, contudo, são difíceis de serem inferidas,
podendo estar relacionadas a tabus e restrições em momentos específicos de suas vidas,
às suas posições sociais ou, ainda, à passagem de parte de seus últimos anos de vida em
meio a uma população com dieta distinta daquela apresentada pelo sítio Armação do Sul.
Em geral, como veremos em seguida, esses indivíduos estão totalmente integrados aos
demais com relação às suas assinaturas de 87Sr/86Sr, e, mesmo se não estivessem – como é
o caso do sepultamento 2 – o fato de as análises isotópicas de estrôncio terem sido
realizadas a partir do esmalte dentário formado na infância inviabiliza a busca por
correlações, a não ser que pautadas por uma boa dose de suposição.
Duas crianças apresentaram os valores δ15N mais altos do sítio, uma pertencente
212
ao período 1 e outra pertencente ao período 2, o que provavelmente se deve ao consumo
de leite materno (Katzenberg, Herring e Saunders 1996). A criança do período 1
(sepultamento 39), com idade de 6 anos ± 24 meses e com valor 2,6‰ acima dos valores
do grupo feminino, não se encontra dentro da faixa de idade esperada para a
amamentação segundo a maior parte dos estudos (Fogel, Tuross e Owsley 1989;
Katzenberg, Herring e Saunders 1996), sendo talvez um caso de amamentação prolongada
até em torno dos 5 anos (White e Schwarcz 1994, Hermenegildo 2009). Esse
prolongamento poderia ser prática comum no período 1; poderia ter acontecido somente
com essa criança por algum motivo especial; ou poderia nem ter acontecido, sendo o valor
δ15N mais elevado porque a criança ainda estaria carregando um pouco do sinal isotópico
do tempo em que mamava – tendo em vista a lentidão do processo de remodelação do
colágeno dos ossos – ou, simplesmente, porque teria uma dieta de maior nível trófico.
Havendo apenas uma criança analisada desse período, fica difícil fazer qualquer afirmação.
No período 2, por outro lado, a criança em questão (sepultamento 69) possui 18 meses ± 6
meses e apresenta valor δ15N que é 3,3‰ maior que a média do grupo feminino, enquanto
as outras duas crianças analisadas possuem 3 anos ± 12 meses e 7 anos ± 24 meses, e
apresentam valores δ15N semelhantes àqueles do resto do grupo. Esse quadro está de
acordo com a maior parte dos casos apresentados em Katzenberg, Herring e Saunders
(1996), indicando que, possivelmente, a idade de desmame no segundo período de
ocupação do sítio seria entre 1 e 2 anos de idade.
Se pudéssemos comprovar um tempo de amamentação mais longo no período 1,
estaríamos frente a uma mudança de comportamento extremamente relevante,
intimamente relacionada com o papel da mulher na sociedade e com os índices de
crescimento populacional. Como observado por Lee (1980) entre os !Kung, por exemplo, a
amamentação prolongada pode servir como um controle de natalidade – tendo em vista a
inibição da ovulação durante a lactação – aumentando o intervalo entre os nascimentos e,
assim, permitindo que as mulheres continuem suas atividades de busca por recursos em
locais mais distantes da base habitacional, pois quando nasce uma nova criança, aquela
nascida anteriormente já pode caminhar sozinha. Com a introdução da agricultura, mesmo
que de forma parcial, ou qualquer alteração no padrão de subsistência ou no papel da
213
mulher que gere menores deslocamentos diários, a tendência é que o tempo de
amamentação se torne mais curto, assim como a média dos intervalos entre os
nascimentos, aumentando as taxas de crescimento populacional; pelo menos é isso que
vem acontecendo com os !Kung (Lee 1980).
Não é possível dizer que essa mudança na idade de desmame aconteceu na
população associada ao sítio Armação do Sul, até porque para a realização de qualquer
inferência desse tipo se faria necessário um estudo sistemático com foco somente nas
crianças, mas, é possível afirmar, com tranquilidade, que a dieta dessa população mudou,
pelo menos com relação ao grupo masculino, que passou a apresentar valores δ15N
menores com manutenção dos valores δ13C a partir de 2500 anos AP. As mudanças
observadas nas práticas mortuárias e no sedimento que compõe o sítio, portanto, foram
acompanhadas por mudanças na dieta.
Fica, contudo, a dúvida: o que teria causado essa mudança nos valores isotópicos?
A diminuição no consumo de recursos marinhos de alto nível trófico; a introdução ou
aumento no consumo de plantas C4, como o milho; ou, ainda, as duas coisas ao mesmo
tempo? Nada é possível afirmar, ainda mais tendo em vista a quase ausência de evidência
do consumo de milho no registro arqueológico dos sítios conchíferos – com exceção talvez
de Wesolowski (2007).
Seja lá qual tenha sido o motivo da mudança nos valores isotópicos do sítio
Armação do Sul, ela parece continuar em sítios mais recentes do litoral central, como
Tapera (Bastos 2014) e Porto do Rio Vermelho II (De Masi 2001), havendo inclusive alguns
indivíduos do sítio Porto do Rio Vermelho com valores isotópicos muito parecidos com
aqueles obtidos em sítios costeiros da Flórida [Pillsbury, 600-900 AD (δ13C= -10,1 ± 1,3‰ e
δ15N=13,0 ± 1,0‰) e Bay Pines (δ13C= -8,9 ± 1,7‰ e δ15N=13,2 ± 0,8‰)], que foram
interpretados como possível evidência de componente C4 na dieta, mesmo que em
pequena quantidade (Kelly, Tykot e Milanich 2006).
Ainda com relação ao contexto local, a semelhança observada entre os valores δ15N
e δ13C dos sítios Armação do Sul e Tapera é extremamente interessante, apontando para a
existência de continuidade histórica entre esses sítios, um com presença de cerâmica e
outro não. Igualmente interessantes são as diferenças observadas nos valores desses dois
214
sítios do sul da Ilha de Santa Catarina com relação ao sítio Porto do Rio Vermelho II,
situado no leste da ilha.
Acredito que essas diferenças não se dão à toa, estando associadas a diferentes
formas de viver, de se alimentar, e de construir sítios em diferentes partes da Ilha de Santa
Catarina. Mesmo havendo pouca chance de serem contemporâneos – sendo a datação
mais recente da Armação do Sul de 1315-1275 anos cal AP e a data mais antiga da Tapera
de 1280-1115 anos cal AP – os dois sítios da porção sul da Ilha de Santa Catarina se
aproximam mais entre si do que com o sítio do leste da Ilha (entorno da Lagoa da
Conceição) que é provavelmente contemporâneo dos dois, datado entre 1735 e 1067 anos
AP (De Masi 2001). E essas diferenças não se dão apenas com relação aos valores
isotópicos δ15N e δ13C, mas também com relação às suas morfologia e estratigrafias, sendo
Tapera e Armação sítios rasos com pouca presença de conchas e Porto do Rio Vermelho II
um sítio de estratigrafia complexa e matriz conchífera.
Ao mesmo tempo, contudo, as populações dos três sítios parecem estar
modificando suas dietas numa mesma direção, além, claro, de apresentarem inúmeros
aspectos em comum – como a cultura material em geral, aspectos gerais das práticas
mortuárias e tendência marinha na dieta – que permitem sua inserção na perspectiva de
longa duração pautada na ideia de “sítios conchíferos”, proposta no início deste trabalho.
E, como conjunto de sítios do litoral central, apresentam diferenças com relação
aos sítios de outras porções do litoral catarinense, como Forte Marechal Luz (Bastos 2014),
Jabuticabeira II e Galheta IV (Colonese et al. 2014). Diferenças não tanto na composição da
dieta em si, que é predominantemente marinha em todos os sítios analisados, mas na
forma como ela muda – ou não muda – ao longo do tempo. Nesse sentido, foi observada
diminuição nos valores δ15N e aumento nos valores δ13C no litoral central (alteração em
direção ao consumo de plantas C4 ou diminuição no consumo de recursos marinhos de alto
nível trófico); aumento nos valores δ15N e diminuição nos valores δ13C no litoral norte
(alteração em direção ao consumo de recursos terrestres e plantas C3); e aparente
ausência de mudança no litoral sul.
Quando consumimos ou servimos um alimento não estamos apenas manipulando
um objeto, mas transmitindo uma situação (Barthes 1979, Douglas 1972); a alimentação
215
não se trata apenas de necessidade, mas de uma necessidade estruturada e, como diria
Bourdieu (1967), estruturante. A comida, assim, pode ser considerada duplamente
corpórea, uma vez que participa tanto na criação da pessoa física quando da pessoa social
(Atalay e Hastorf 2006).
Não existem distinções naturais, todas as formas de categorização precisam ser
construídas e objetivadas (Bourdieu 1989) e, em sua trivialidade e pretensão à
naturalidade, a dieta e tudo o mais que é relativo à alimentação – como as técnicas de
preparo e modos de servir – aparecem como meios potentes de produção e reprodução
de distinções sociais. Norbert Elias (1994[1939]), por exemplo, nos mostra como em
tempos de transição entre a idade média e a idade moderna a etiqueta e os modos à mesa
foram fundamentais na internalização e modulação da nova estrutura de relações
interpessoais – cada vez mais contidas – que estava em formação, servindo também na
diferenciação da aristocracia absolutista emergente com relação à nobreza feudal
decadente e às classes inferiores.
Assim como a utilização de peças de vestuário, cores e modelos específicos por
homens e mulheres reproduz a distinção entre feminilidade e masculinidade como
conhecida na nossa sociedade, o consumo de determinados alimentos por determinados
grupos cotidianamente e os tabus que permeiam isso tudo – como o filé pelas classes
superiores e as vísceras pelas classes inferiores, ou o tabu de nossa sociedade com relação
aos cachorros – são importantes meios de veiculação de identidades (Sahlins 2003[1976]).
No sítio Armação do Sul, os valores δ15N do primeiro período revelaram uma dieta
de maior nível trófico para os indivíduos do sexo masculino. O quê exatamente o consumo
de recursos de nível trófico mais elevado ou menos elevado poderia significar para essas
populações, não sabemos, mas temos aí uma diferença clara na dieta de homens e
mulheres que com certeza não se deu naturalmente, sendo resultante de estruturas de
relações pré-estabelecidas e reprodutora dessas relações.
Vale dizer que essa diferenciação com relação ao nível trófico da dieta, com os
homens apresentando valores δ15N e δ13C mais elevados e mais heterogêneos – o que
também é observado no sítio Armação do Sul – é bastante corrente em diferentes
contextos ao redor do mundo, sendo sempre interpretada como indicação de acesso
216
diferenciado aos recursos, nesse caso, de maior acesso a fontes de proteínas ricas em δ15N
por parte dos indivíduos masculinos (Larsen 2015[1997]).
E além da distinção sexual, no caso do sítio Armação do Sul os resultados apontam
também para distinção entre grupos de indivíduos do sexo masculino, distinção esta que
encontra correspondência na distribuição espacial dos sepultamentos. No período 1, a
maior parte dos indivíduos masculinos apresentam valores δ15N e δ13C mais elevados e
estão concentrados na porção sul da área escavada. As exceções são os sepultamentos 71
e 74, com valores δ15N e δ13C menores – como os do grupo feminino – e situados em
espaço diametralmente oposto aos demais, na porção norte; e o sepultamento 37, que
está situado na porção sul, porém com valores δ15N mais elevados, valores δ13C menores e
com datação mais antiga que os demais, provavelmente sendo o primeiro sepultamento
do sítio. No período 2, a maior parte dos indivíduos apresentam valores δ15N semelhantes
aos das mulheres ou menores, porém valores δ13C mais elevados, e se dividem de forma
que os indivíduos de datação mais antiga se situam na porção sudeste da área escavada e
os sepultamentos mais recentes na porção norte. As exceções são os sepultamentos 61 e
78, com valores δ15N e δ13C semelhantes aos das mulheres e situados na porção noroeste,
o sepultamento 2, com valores δ15N e δ13C menores e o sepultamento 5, com valor δ15N
maior e valor δ13C menor, estes dois últimos estando situados na porção norte e
apresentando datações mais recentes que os demais.
Tanto no período 1 quanto no período 2, portanto, há um grupo de indivíduos do
sexo masculino que se assemelha às mulheres com relação à dieta e, ao mesmo tempo,
um grupo que se diferencia, ora consumindo recursos de maior nível trófico (período 1),
ora consumindo – talvez – maior quantidade de plantas C4 ou de animais que delas se
alimentam, como a capivara (período 2). Coincidentemente ou não, os indivíduos com
dieta semelhante à das mulheres estão sepultados sempre na porção norte-noroeste da
área escavada, no mesmo local onde há uma grande concentração de sepultamentos de
crianças do período 2 (canto direito inferior da planta baixa de sepultamentos apresentada
no capítulo anterior).
As diferenças observadas podem estar associadas tanto à posição desses indivíduos
na sociedade e questões de status, quanto ao seu pertencimento a grupos de parentesco
217
distintos. Mais uma vez, contudo, é difícil inferir o que uma dieta de maior ou menor nível
trófico e o consumo maior ou menor de recursos C4 – se de fato for o caso – pode
significar no contexto dessas relações de status e parentesco, para além, claro, do fato de
estarem refletindo e produzindo distinções sociais. Estudos em sítios da América do Sul e
América Central mostram, por exemplo, que o significado que o milho toma em diferentes
sociedades é extremamente variável, podendo seu consumo em maior quantidade ser
característica tanto de grupos de maior quanto de menor status (Larsen 1997).
Embora entre os indivíduos consumidores de recursos de nível trófico mais elevado
(período 1) e de – possivelmente – maior quantidade de recursos C4 (período 2) estejam
alguns daqueles que apresentaram maior número de acompanhamentos funerários na
análise realizada no capítulo anterior, enquanto aqueles indivíduos com dieta semelhante
à do grupo feminino apresentaram número menor de acompanhamentos, não é possível
estabelecer correlações seguras entre essas variáveis, uma vez que os sepultamentos
desses últimos são todos incompletos. Poderíamos, por outro caminho, talvez arriscar a
sugestão de um status menor para os indivíduos de dieta próxima à das mulheres devido
ao espaço que ocupam na área escavada do sítio, junto às crianças da extremidade nortenoroeste, mas para isso precisaríamos de mais dados.
Curiosamente, não há diferenciação interna no grupo feminino, este apresentando
valores constantes e bastante homogêneos tanto do ponto de vista sincrônico quanto do
ponto de vista diacrônico. Isso não deve significar ausência de distinções entre os
indivíduos do sexo feminino, apenas que essas distinções não estavam refletindo em suas
dietas proteicas, pelo menos não de forma perceptível nos valores isotópicos de nitrogênio
e carbono do colágeno.
A atuação da dieta na produção e reprodução de distinções sociais entre os
indivíduos do sítio Armação do Sul, distinções tanto de ordem sexual quanto de status ou
parentesco, é inegável, e mostra como a análise de isótopos de nitrogênio e carbono, se
associada a uma cronologia fina – mesmo que relativa – pode revelar não somente a forma
como as coisas mudam ao longo do tempo, mas também aspectos dessa dimensão sutil
das relações humanas que é a criação de distinções e identidades entre práticas e
representações (Chartier 1990).
218
Uma vez reconhecida essa potência com relação à evidenciação de distinções
internas às sociedades, a análise pode também ser estendida para a observação do papel
da dieta no estabelecimento de fronteiras e na formação de identidades entre sítios que
pertencem a um mesmo contexto local, como o litoral central, ou entre diferentes
localidades de um contexto regional maior como o litoral catarinense. Os dados
apresentados indicam a existência de diferenças no contexto do litoral central e entre
diferentes porções do litoral catarinense, porém é necessário um maior número de sítios
analisados para o aprofundamento dessas questões.
Por fim, vale mencionar que embora os resultados apontem para acesso
diferenciado às fontes de proteínas entre homens e mulheres, e homens de diferentes
status ou grupos de parentesco, isso não implica necessariamente status de saúde
diferenciado entre esses indivíduos (Lillie 2003).
Quanto à hipótese proposta no início deste trabalho, de que a dieta dos indivíduos
do sítio Armação do Sul seria predominantemente marinha, porém, com uma sutil
mudança em direção a uma dieta menos marinha ou mais terrestre de um ponto de vista
diacrônico, ela foi confirmada. Resta esclarecer se essa alteração aconteceu em toda a
população ou só nos indivíduos do sexo masculino, e se tomou uma mesma direção em
todo o grupo masculino – rumo ao consumo de recursos C4 e/ou diminuição no consumo
de recursos de alto nível trófico, porém com diferenças de quantidade entre diferentes
indivíduos – ou se este se dividiu em direções distintas.
A confirmação dessa hipótese significa também que, pelo menos no litoral central,
a dieta começou a mudar por volta de 2500 anos AP, muito tempo antes do aparecimento
da cerâmica no local – que se deu por volta de 1280-1115 anos cal AP no sítio Tapera.
Como a cerâmica foi utilizada principalmente no processamento de peixes (Hansel 2006,
Colonese et al. 2014), ela deve ter tido um importante papel não na alteração daquilo que
estava sendo consumido, mas na forma como estava sendo consumido, aparecendo como
moduladora de novas formas de processar, cozinhar, servir, estocar alimentos e gerenciar
o tempo (Atalay e Hastorf 2006), e, assim, interferindo ativamente no comportamento
humano e nas relações interpessoais (Gosden 2005).
219
6.2 Análise de isótopos de estrôncio (87Sr/86Sr)
6.2.1 Materiais e métodos
Para a análise da razão isotópica de estrôncio presente no esmalte dentário dos
indivíduos sepultados no sítio conchífero Armação do Sul foram selecionados todos os
indivíduos presentes na reserva técnica do Museu do Homem do Sambaqui que possuíam
mandíbula e/ou maxila, que apresentavam esmalte dentário e sobre os quais se tinha as
informações arqueológicas necessárias para contextualização. Ou seja, o critério de
seleção foi o mais amplo possível, pautando-se somente nos requisitos indispensáveis ao
pleno desenvolvimento das análises. Alguns casos isolados, mesmo atendendo a este
critério, foram excluídos por apresentarem sedimento concrecionado no entorno do
crânio, o que impediu a coleta do dente17.
Houve preferência pelos dentes pré-molares, que sofrem mineralização entre 2 e 7
anos de idade (Hillson 2005), mas, na ausência dos dentes visados, ou nos casos em que
estes não apresentavam esmalte suficiente para a análise, foram coletados segundos ou
terceiros molares, que mineralizam na idade de 3 a 8 anos e 9 a 14 anos, respectivamente.
Evitamos a coleta de dentes com presença de patologias ou desgaste diferenciado, uma
vez que poderão vir a gerar informações importantes a outras pesquisas.
Juntamente com os dentes humanos, foram selecionados dentes de fauna
terrestre, semiaquática e marinha do sítio da Armação do Sul, de modo a determinar a
assinatura isotópica 87Sr/86Sr biologicamente disponível no local e compará-la à assinatura
do esmalte dentário humano (Price, Burton e Bentley 2002; Bentley 2006). Foram também
selecionadas conchas de ambiente estuarino e de mar aberto, de forma a verificar se há
diferença entre assinatura de estrôncio desses dois ambientes.
17
As coletas foram realizadas com o auxílio da bioarqueóloga Me. Luciane Zanenga Scherer.
220
Figura 52: Desenvolvimento dentário humano, em estágios de um ano. Fonte: Hillson (2005[1986]: 224).
No total, foram selecionados 38 dentes humanos para a análise, pertencentes a
indivíduos adultos e crianças, nove dentes de fauna terrestre, um dente de fauna marinha,
uma concha de ambiente estuarino e uma concha de mar aberto. O sexo e a idade dos
indivíduos foram determinados pelas pesquisadoras Andrea Lessa e Luciane Zanenga
Scherer, segundo o protocolo de Buikstra e Ubelaker (1994). Todo o material coletado foi
devidamente fotografado e documentado.
Os dentes passaram por um processo de limpeza mecânica e química de modo a
retirar possíveis contaminantes pós-deposicionais – como carbonatos – aderidas aos
dentes, conforme sugerido por diversos autores (Bentley et al. 2003, Knudson et al. 2004,
Wright 2005) e seguindo o protocolo de Bastos (2009). Os dentes foram higienizados com
o uso de água deionizada, sendo a superfície do esmalte escovada com escova de dente,
raspada com sonda exploradora de dentista e, também, com bisturi n. 12 nos casos de
incrustações mais difíceis de retirar. Em seguida, no espaço do laboratório limpo do Centro
de Pesquisas Geocronológicas da Universidade de São Paulo (CPGeo/USP), os dentes foram
221
imersos em ácido acético 0,5M e colocados em ultrassom por 20 min, para depois serem
enxaguados com água deionizada e deixados a secar18.
Foram retiradas em torno de 20 mg de esmalte de uma das superfícies laterais de
cada dente com broca diamantada esférica PM6 e PM7 (marcas Fava a KG Sorensen),
etapa que foi realizada no Laboratório de Sistemas Cársticos do Instituto de Geociências da
Universidade de São Paulo (IGc/USP). Dos dentes que apresentavam quantidade menor de
esmalte foram retiradas amostras também menores, tendo o caso mais extremo chegado
a somente 3,9 mg, sem causar problemas posteriores na leitura do sinal pelo
espectrômetro de massas. Para as conchas seguimos o mesmo procedimento dos dentes,
porém ignoramos a primeira raspada com a broca, uma vez que elas não foram
previamente limpas.
De volta ao laboratório limpo do CPGeo/USP, as amostras pulverizadas foram
pesadas e transferidas para bequers Savillex, onde sofreram um tratamento químico que
consistiu na adição de 2 ml de HNO3 concentrado, em meio ao qual foram digeridas por
1h19. Em seguida foram colocadas para secar sobre a chapa quente. As amostras relativas
às conchas, receberam um tratamento diferente, sendo atacadas com 1 ml de HCl e
colocadas para secar logo depois. Uma vez secas, todas as amostras foram dissolvidas em
1 ml de HNO3 2M para passagem na coluna de troca iônica preenchida com 80 mg de
resina Sr-Spec, onde foram purificadas segundo o protocolo do CPGeo/USP.
A composição isotópica das amostras foi determinada por meio de Espectrômetro
de Massas por Termoionização (TIMS), um TRITON da marca Thermo Scientific. O controle
de branco de Sr durante as análises variou entre 108 e 166 pg. Para efeito de
fracionamento, as razões isotópicas 87Sr/86Sr foram normalizadas para o valor de 86Sr/88Sr =
0,1194. Ao longo do ano em que foram realizadas as análises, de janeiro de 2014 a janeiro
de 2015, o valor médio para a razão 87Sr/86Sr do padrão NBS-987 variou entre 0.710233 ±
18
As etapas de limpeza e retirada do esmalte foram realizadas com o auxílio do Dr. Murilo Quintans Bastos e
apoio técnico da equipe do CPGeo.
19
O primeiro lote de amostras foi centrifugado (3.500 RPM) por 10 min após a digestão pelo HNO3
concentrado, no entanto, como não houve precipitação e como esta etapa multiplica as possibilidades de
contaminação pela transferência das amostras para os microtubos da centrífuga, optamos por eliminá-la nos
demais lotes.
222
0.000022 e 0.710251 ± 0.000038. Os erros das análises foram reportados em 2 e
forneceram um valor médio de 0,000049.
6.2.2 A formação geológica local
O litoral central de Santa Catarina apresenta a geologia mais variada da costa
catarinense, com formações que vão desde o Arqueano até os depósitos quaternários do
Fanerozóico (Silva e Bortoluzzi 1987). A Ilha de Santa Catarina, onde se situa o sítio
Armação do Sul, é caracterizada pela presença de rochas que constituem o embasamento
cristalino do domínio geomorfológico Serras do Leste Catarinense e pelos depósitos
quaternários que constituem o domínio Planície Costeira (Horn Filho e Livi 2012).
As principais unidades litoestratigráficas que compõem o embasamento cristalino
da Ilha de Santa Catarina são o Granitóide Foliado Paulo Lopes, que remete ao
Proterozóico Inferior; o Granito São Pedro de Alcântara, pertencente à Suíte Intrusiva
Maruim do Proterozóico Médio; o Granito Ilha, pertencente à Suíte Intrusiva Pedras
Grandes do Eo-Paleozóico; o Granito Itacorubi e o Riolito Cambirela, pertencentes à Suíte
Intrusiva Plutono-Vulcânica Cambirela, também do Eo-Paleozóico; e a Formação Serra
Geral, do Mesozóico, representada por diques de diabásio correlacionados ao evento
vulcânico Serra Geral (Silva e Bortoluzzi 1987, Zanini et al. 1997, Horn Filho e Livi 2012).
Espera-se, portanto, tanto a ocorrência de valores isotópicos mais altos e variados
da ordem de 0,705 a 0,850, relacionados aos granitos que compõem a crosta terrestre,
quanto de valores mais baixos e homogêneos entre 0,7020 e 0,7070, relacionados às
rochas vulcânicas que atuam como “mensageiras” isotópicas do manto (Allègre 2008).
Apesar dessa variação, a assinatura disponível na biosfera para consumo das populações
pré-coloniais deve ter sido mais homogênea, tendo em vista tanto o processo de
biopurificação (Bentley 2006) quanto a influência do estrôncio marinho (0,70917) por meio
da maresia e das chuvas, principalmente em contextos insulares como a ilha de Santa
Catarina. Com o consumo frequente de frutos do mar, essa homogeneidade deve ser
exacerbada nas populações humanas litorâneas, aproximando ainda mais os valores
86
Sr/88Sr ao estrôncio marinho.
223
Basei (1985) obteve valores entre 0,7198 e 0,7339 para o granito Armação,
formação presente no entorno imediato do sítio Armação do Sul. Tendo em vista os
fatores de homogeneização mencionados, porém, devemos esperar razões menores para
a assinatura biológica local e ainda menores para os indivíduos locais sepultados no sítio.
Figura 53: Mapa geológico de Santa Catarina. Litoral central demarcado. Fonte: Silva e Bortoluzzi (1987).
A relação de valores isotópicos 86Sr/88Sr obtidos para diferentes pontos ao longo do
Cinturão Dom Feliciano em Santa Catarina, pode ser acessada em Basei (1985), dados que
não esgotam as assinaturas geologicamente disponíveis nas localidades em questão, mas
que podem nos dar uma noção de pelos menos algumas das assinaturas existentes.
6.2.3 Resultados
Os valores da razão isotópica
87
Sr/86Sr das amostras de esmalte dentário humano
analisadas variaram entre 0,709509 e 0,710969 (amplitude de 0,00146), apresentando
média de 0,71000216 com desvio padrão de 0,000332390. O maior valor obtido
corresponde ao sepultamento 2, de indivíduo adulto jovem do sexo masculino, e o menor
valor corresponde ao sepultamento 46, de indivíduo adulto também do sexo masculino.
224
ID
Sexo
Idade
Dente analisado
⁸⁷Sr/⁸⁶Sr
d.p. (2σ)
2
5
6
7
8
9
14
15
16
21
22
27
28
29
30
31
32
33
36
37
38
39
42
43
45
46
47
49
52
57
60
61
66
71
72
74
78
87
M
M
F
M
M
M
M
F
M
M
F
F
F
M
M
F
M
M
M
M
F
I
I
M
F
M
M*
F
F
F
M
M
I
M
F
M*
M
M
AJ
AJ
A
AM
AM
AM
AM
A
A
AM
A
A
A
A
A
AM
A
AM
A
AM
A
C
C
A
A
A
AJ
AJ
AM
A
A*
AM
C
AM
AJ
AM
A
A*
PM2IE
PM1SD
PM1SE
PM1ID
PM1IE
PM1IE
M2SE
PM1SE ?
M2SD
PM1IE
PM2IE
PM1IE
PM1ID
PM1IE
PM1SD
M3IE
PM1ID
M3SD
PM1ID
PM1ID
PM1ID
PM2SD ?
PM1SE
PM1SD
M2IE
PM1IE
PM1ID
PM1ID
M2IE
PM1IE
PM1ID
PM1SD
PM1IE
M2SE ?
PM1IE
M2ID
M2SD
PM2ID
0,710969
0,709771
0,710195
0,709657
0,710246
0,710222
0,709881
0,710294
0,710383
0,710462
0,710042
0,709723
0,710098
0,710057
0,709732
0,710612
0,710238
0,709771
0,709601
0,709603
0,709752
0,709732
0,709614
0,710166
0,709725
0,709509
0,709893
0,710810
0,709955
0,709901
0,709949
0,709810
0,709945
0,709938
0,709884
0,710139
0,709941
0,709862
0,000064
0,000059
0,000049
0,000038
0,000054
0,000043
0,000040
0,000049
0,000037
0,000050
0,000061
0,000053
0,000047
0,000045
0,000046
0,000064
0,000052
0,000041
0,000074
0,000075
0,000058
0,000043
0,000077
0,000040
0,000071
0,000043
0,000050
0,000036
0,000067
0,000057
0,000035
0,000045
0,000036
0,000041
0,000051
0,000050
0,000038
0,000056
Tabela 6: Resultados da análise das razões isotópicas ⁸⁷Sr/⁸⁶Sr dos indivíduos analisados do sítio Armação do Sul.
Legenda dente: PM= pré-molar, M= molar, I= inferior, S= superior, D= direito, E= esquerdo. Legenda sexo e idade:
I= indeterminado, M= masculino, F= feminino, AM= adulto maduro, A= adulto, AJ= adulto jovem, C= criança,
*= possível (há dúvida na determinação, porém será considerado como consta na tabela para fins estatísticos).
225
Como é possível observar no histograma, a maior parte dos valores 87Sr/86Sr estão
distribuídos entre 0,7095 e 0,7102, e as frequências diminuem conforme os valores
aumentam, havendo apenas dois casos que apresentam valores em torno de 0,7104, um
caso com razão de 0,7106 (sepultamento 31), outro com razão de 0,7108 (sepultamento
49) e, por fim, um com 0,7110 (sepultamento 2).
Gráfico 33: Histograma das razões isotópicas ⁸⁷Sr/⁸⁶Sr presentes no esmalte dentário dos indivíduos
analisados do sítio Armação do Sul.
Dentre os três casos que apresentaram valores mais altos, contudo, somente
aquele referente ao sepultamento 2 aparece como outlier, e, logo, como potencialmente
não local. Curiosamente, este é justamente o indivíduo que apresenta uma ponta óssea
cravada em sua quarta vértebra lombar (Lessa e Scherer 2008).
226
Gráfico 34: Boxplot representando as razões isotópicas ⁸⁷Sr/⁸⁶Sr presentes no esmalte dentário dos
indivíduos analisados do sítio da Armação do Sul.
Em seu estudo sobre a presença de imigrantes em Tikal, Guatemala, Wright (2005)
sugere a comparação dos resultados com a distribuição normal para a identificação de
indivíduos não locais, partindo do pressuposto de que populações em que a maioria dos
indivíduos são locais e se alimentam de recursos de proveniência semelhante devem estar
normalmente distribuídas. Chama atenção também para a possibilidade de indivíduos não
locais apresentarem razões situadas nas extremidades da distribuição normal e passarem
despercebidos estatisticamente por não serem outliers – situação apresentada por alguns
indivíduos de Tikal em que as evidências culturais apontavam para a não localidade.
De fato, o teste Shapiro-Wilk rejeita a hipótese de normalidade para a amostra do
sítio Armação do Sul em um intervalo de confiança de 95%, sendo p=0,013. Se excluirmos
o valor referente ao sepultamento 2, contudo, a normalidade é atingida com p=0,088, o
que reforça a possibilidade deste indivíduo ser não local.
227
Gráfico 35: Gráfico de probabilidade normal dos valores isotópicos ⁸⁷Sr/⁸⁶Sr obtidos para a população do
sítio Armação do Sul, com exclusão do sepultamento 2. Os círculos preenchidos representam os
sepultamentos 31 e 49.
Acontece que, mesmo com a exclusão do sepultamento 2, ainda é possível
observar um pequeno desvio da probabilidade normal, causado pelos indivíduos 31 e 49.
Para que a normalidade alcance maior significância (p=0,341), é preciso excluir também,
pelo menos, o sepultamento 49, mas como esse indivíduo não representa um outlier, não
há justificativa estatística para tal exclusão.
Os valores da razão
87
Sr/86Sr da fauna analisada variaram entre 0,709181 e
0,719588 (amplitude de 0,010407), apresentando média de 0,71269664 com desvio
padrão de 0,00402015. O maior valor obtido corresponde ao porco do mato 1 e o menor
valor corresponde à ostra.
228
ID
Taxon
⁸⁷Sr/⁸⁶Sr
d.p. (2σ)
Ratão do banhado
Capivara
Paca
Jaguatirica
Anta
Porco do mato 1
Porco do mato 2
Lontra
Veado
Ostra
Donax
Golfinho
Myocastor coypus
Hydrochoerus hydrochaeris
Agouti paca
Felis pardalis
Tapirus terrestris
Tayassu pecari
Tayassu pecari
Lutra longicaudis
Ozotocerus sp. ou Mazama sp.
Crassostrea rhizophorae
Donax hanleyanus
Tursiops truncatus
0,716039
0,710327
0,732710
0,711864
0,715207
0,719588
0,718993
0,709722
0,710053
0,709181
0,709225
0,709464
0,000048
0,000038
0,000039
0,000040
0,000038
0,000045
0,000042
0,000041
0,000043
0,000042
0,000040
0,000041
Tabela 7: Resultado da análise das razões isotópicas ⁸⁷Sr/⁸⁶Sr da fauna analisada do sítio Armação do Sul.
O valor de 0,732710 obtido para a amostra referente à paca é muito mais elevado
que os demais e, embora possa estar correto, foi excluído das análises estatísticas. A
decisão foi tomada devido à impossibilidade de replicação da análise dessa amostra e à
ausência de outros casos semelhantes na bibliografia – as amostras de paca dos sítios
Forte Marechal Luz (Bastos 2009) e Tapera (Bastos 2014) apresentaram razões mais
próximas do estrôncio marinho, respectivamente de 0,71114 e 0,71234.
Mesmo com a exclusão da paca, a possibilidade de que a população associada ao
sítio Armação do Sul estivesse se alimentando de animais provenientes de regiões com
geologia mais antiga ou de região com geologia semelhante, porém, mais distante da
influência do estrôncio marinho, é mantida pelos altos valores obtidos para as duas
amostras de porco do mato (0,719588 e 0,718993) e, talvez, pelos valores obtidos para o
ratão do banhado (0,716039) e a anta (0,715207). Bastos (2014) encontrou valores
igualmente elevados paras os três porcos do mato do sítio Tapera (0.71786, 0.72173 e
0.72490). Esses valores são coerentes com as razões 87Sr/86Sr de 0,7198 a 0,7339 obtidas
por Basei (1985) para o granito Armação, porém, em um contexto insular como o da Ilha
de Santa Catarina, esperaríamos uma maior proximidade com o estrôncio marinho, como
aquela apresentada pelas amostras da capivara, do veado e da jaguatirica.
Para a determinação da assinatura local biologicamente disponível foram excluídas
essas amostras faunísticas potencialmente – não necessariamente – não locais e utilizadas
229
somente aquelas referentes às conchas, ao golfinho, à lontra, à capivara, ao veado e à
jaguatirica. Seguindo a recomendação de diversos autores (Grupe 1997, Price el al. 2002,
Bentley et al. 2003), os limites dessa assinatura foram estabelecidos a partir da média dos
valores
87
Sr/86Sr da fauna considerada local, acrescida de ± 2 desvios padrões, no caso,
0,70997657 ± 0,001864824 (2 x 0,000932412). Isso gera uma assinatura local com alcance
de 0,7081 a 0,7118, o que nos leva a interpretar os resultados obtidos para todos os
indivíduos analisados como sendo locais, inclusive aquele referente ao sepultamento 2.
87
86
Gráfico 36: Gráfico de dispersão dos valores isotópicos Sr/ Sr obtidos para a fauna e os indivíduos
analisados do sítio Armação do Sul. O quadro cinza representa o alcance da assinatura local biologicamente
disponível (0,7081 a 0,7118).
Dentre as amostras faunísticas utilizadas para a determinação da assinatura local, a
amostra referente à jaguatirica é a que mais destoa das demais, com razão em torno de
0,712 – resultado também obtido por Bastos (2014) para a amostra de jaguatirica do sítio
230
Tapera. Esse valor um pouco mais elevado, de certa forma, é esperado, uma vez que a
tendência é de que um animal com dieta mais carnívora apresente razões 87Sr/86Sr maiores
e, de fato, enquanto a capivara e o veado deveriam estar se alimentando de vegetais, e o
golfinho e a lontra principalmente de peixes e crustáceos, a jaguatirica deveria estar se
alimentando de pequenos roedores, répteis, aves e peixes.
Como, no entanto, no caso da Tapera as amostras de paca, cotia e capivara
apresentaram valores semelhantes aos da jaguatirica (Bastos 2014), permaneço em dúvida
quanto ao caráter local dessa amostra. É possível que a dieta não esteja interferindo no
valor da jaguatirica e que ela, assim como a paca, a cotia e a capivara analisadas por Bastos
(2014), seja proveniente do continente próximo; mas, também, é possível que a dieta
esteja interferindo no valor da jaguatirica e que ela realmente tenha origem insular,
enquanto a paca, a cotia e a capivara analisadas por Bastos (2014) teriam origem
continental e, por isso, valores mais altos do que os esperados. Vale lembrar que o sítio
Tapera encontra-se na baía sul, voltado para o continente, o que deve ter facilitado o
acesso aos recursos continentais em ambos os casos.
Como um exercício, portanto, calculei também a assinatura isotópica local sem a
inclusão da jaguatirica. O resultado foi uma assinatura de 0,70966200 ± 0,000920974 (2 x
0,000460487), com alcance de 0,7087 a 0,7106. Assim, as amostras dos sepultamentos 2,
48 e 31 ficariam de fora da faixa de variação da assinatura local – estando o sepultamento
31 situado no limite entre a localidade e não localidade. Na incerteza quanto ao caráter
não local da amostra de jaguatirica, porém, devemos ter cautela e optar pela inclusão em
vez da exclusão, tomando como base a assinatura local mais ampla calculada
anteriormente. Até porque essa assinatura mais ampla já foi determinada a partir de
exclusões que, embora mais bem embasadas, são também incertas – caso das amostras de
ratão do banhado e anta.
Embora a disponibilidade biológica indique que todos os indivíduos analisados são
locais, tal localidade é relativa, dizendo respeito somente a ausência de indivíduos
provenientes de regiões isotópicas muito diferentes – como o planalto ou porções
litorâneas distantes. É possível que indivíduos provenientes de outras partes do litoral
catarinense que apresentam disponibilidade isotópica parecida com a da Ilha de Santa
231
Catarina estejam misturados àqueles que são de fato locais, como é apontado pelo valor
outlier do sepultamento 2 e suspeitado nos sepultamentos 49 e 31. Essa hipótese foi
levantada por Bastos (2014) para as mulheres do sítio Tapera, uma vez que elas
apresentaram uma maior variação em seus valores do que os homens.
Se as variações observadas nas razões isotópicas
87
Sr/86Sr da população do sítio
Armação do Sul podem estar associadas à presença de indivíduos não-locais provenientes
de porções litorâneas próximas, então a forma como essa presença se dá mudou ao longo
do tempo; pelo menos é o que nos indica a correlação significativa (p=0,006) existente
entre os dados de 87Sr/86Sr e as datações radiocarbônicas.
87
86
Gráfico 37: Gráfico representando a correlação entre a razões Sr/ Sr e as datações radiocarbônicas.
232
87
86
Gráfico 38: Representação da dispersão dos valores Sr/ Sr nos diferentes momentos de ocupação do sítio.
As assinaturas de estrôncio dos indivíduos aumentaram de forma sutil e gradual ao
longo do tempo, com coeficiente de correlação de Pearson (r) de 0,568 e coeficiente de
determinação (r²) de 0,323, indicando que 32% dos valores isotópicos podem ser
explicados pelas datações. Há também uma tendência à maior variação nas razões 87Sr/86Sr
entre os indivíduos mais tardios.
Ao considerarmos todos os indivíduos analisados – e não apenas os 22 que foram
analisados para
87
Sr/86Sr e também datados – comparando aqueles pertencentes ao
período 1 com aqueles pertencentes ao período 2, segundo a cronologia relativa
estabelecida para o sítio no capítulo anterior, o progressivo aumento dos valores e da
variação das razões isotópicas se faz ainda mais evidente.
233
87
86
Gráfico 39: Boxplot das razões isotópicas Sr/ Sr obtidas para os indivíduos pertencentes ao período 1
(sepultados na areia marrom e/ou datado entre 3100 e 2500 AP) e ao período 2 (sepultados na terra preta
e/ou datado entre 2500 e 1200 AP).
Há diferença significativa para um nível de confiança de 95% entre a média dos
valores do primeiro período (0,70982) e a média dos valores do segundo período
(0,71013), com p=0,002 (teste t de Student). Com relação à variação dos valores, os
coeficientes de variação de Pearson (CVp) nos mostram que enquanto as assinaturas
87
Sr/86Sr dos indivíduos do período 1 desviam 0,028% da média, as assinaturas do período
2 apresentam desvio de 0,046% e, portanto, maior dispersão.
É interessante observar como a amostra referente ao sepultamento 49, integrada
aos demais valores quando entendida em meio ao conjunto geral das razões 87Sr/86Sr do
sítio, torna-se outlier quando inserida no conjunto de razões de seu momento cronológico
específico.
Como já mencionado, os indivíduos do sexo feminino do sítio Tapera apresentaram
uma maior variação nas razões isotópicas que os indivíduos do sexo masculino (Bastos
2014), o que vai ao encontro da ideia de mudança para um padrão de residência virilocal
em tempos mais tardios, conforme sugerido por Hubbe (2009). No sítio Armação do Sul, os
234
resultados apontam para a ausência de diferença significativa entre as médias dos
indivíduos do sexo masculino e feminino em um nível de confiança de 95%, com p=0,454
(teste t de Student). Não há também diferença relevante entre os coeficientes de variação
(CVp), sendo de 0,047% e 0,049% para o sexo masculino e feminino respectivamente.
87
86
Gráfico 40: Gráfico de dispersão dos valores Sr/ Sr dos indivíduos do sexo feminino e masculino.
Se aproximarmos a escala, deixando de lado a tendência geral de longa duração e
adentrando contextos temporais específicos, as diferenças entre as médias das razões dos
homens e das mulheres permanecem não significativas, mas os coeficientes de variação
(CVp) se diferenciam e tendem a aumentar na passagem de um período para o outro. No
período 1, os indivíduos do sexo feminino e masculino apresentam, respectivamente, CVp
de 0,019% e 0,034%; no período 2, os coeficientes aumentam para 0,046% e 0,049%,
respectivamente. Além disso, ambos os sexos apresentam um aumento em suas médias no
período 2, embora somente entre os homens esse aumento seja significativo em um nível
de confiança de 95% (p=0,027).
235
87
86
Gráfico 41: Gráfico de dispersão dos valores Sr/ Sr dos indivíduos do sexo feminino e masculino
pertencentes ao período 1 (sepultados na areia marrom e/ou datado entre 3100 e 2500 AP) e ao período 2
(sepultados na terra preta e/ou datado entre 2500 e 1200 AP).
Além de não apresentarem o mesmo padrão observado por Bastos (2014) na
Tapera, portanto, os dados do sítio Armação do Sul parecem apontar na direção contrária,
pelo menos no caso do período 1, em que são os indivíduos do sexo masculino que
apresentam maior CVp. Podemos então considerar a possibilidade de que este período
mais antigo tenha sido marcado por um padrão de residência matrilocal, o que é sugerido
por Hubbe (2009) para os sítios conchíferos sem presença de cerâmica. No período 2, por
outro lado, os coeficientes aumentam e o grupo feminino se aproxima do masculino,
indicando talvez um momento de transição no padrão de residência pós-marital,
principalmente se tomarmos como pressuposto a existência de continuidade histórica
entre as populações associadas aos sítios Armação do Sul e Tapera.
Entre as diferentes idades dos indivíduos do sítio não foram observadas diferenças
relevantes, a não ser pela menor variação nas razões 87Sr/86Sr das crianças (CVp=0,024%) e
maior variação entre os adultos jovens (CVp=0,081%). Apesar de ser interessante o fato de
236
duas, dentre as três razões mais desviantes do valor central, pertencerem a adultos jovens,
o pequeno número de crianças e adultos jovens na amostra total enfraquece qualquer
tentativa de interpretação da distribuição etária das razões isotópicas.
87
86
Gráfico 42: Gráfico de dispersão dos valores Sr/ Sr das crianças, adultos jovens, adultos e adultos maduros
do sítio Armação do Sul.
Levando agora a análise dos dados para o contexto local do litoral central, podemos
entender as mudanças observadas nas razões isotópicas 87Sr/86Sr do sítio Armação do Sul
na passagem de um período para o outro como representando o início de um processo
que teria continuidade em sítios cerâmicos como o Tapera (Bastos 2014). Esse processo de
mudança é observável nos boxplots abaixo.
237
87
86
Gráfico 43: Boxplot das razões isotópicas Sr/ Sr obtidas para os indivíduos dos sexo feminino e masculino
analisados dos sítios Tapera (Bastos 2014) e Armação do Sul.
As médias dos valores
87
Sr/86Sr dos sítios Armação do Sul e Tapera apresentam
diferença significativa para um nível de confiança de 95%, com p=0 (teste t de Student),
sendo possível observar valores mais elevados no sítio Tapera. Há também um visível
aumento na variação das razões, confirmado pelo cálculo dos coeficientes de variação
(CVp), com os valores de Armação do Sul desviando 0,042% da média e os de Tapera
desviando 0,078%. Essas diferenças provavelmente não são explicadas pela geologia, uma
vez que ambos os sítios estão assentados sobre depósitos quaternários com proximidade
de granitos alcalinos das suítes intrusivas Pedras Grandes e Pultono Vulcânica Cambirela, a
não ser que as populações em questão estivessem caçando, coletando recursos e
utilizando fontes de água de áreas diferentes, com geologia muito distinta daquela que
caracteriza seu entorno.
Como esses dois sítios representam momentos diferentes da ocupação do litoral
central – Armação do Sul é datado entre 2900 ± 30 e 1430 ± 30 AP (ou 3065-2880 e 1315238
1275 anos cal AP) e Tapera possui idade de 1.140 ± 180 AP – é possível dizer então que
houve uma mudança significativa na assinatura isotópica média dessas populações do
litoral central por volta de 1.000 A.P, bem como na variação dessa assinatura. Mudança
que possivelmente já vinha se prenunciando desde 2500 AP, momento a partir do qual as
razões isotópicas
87
Sr/86Sr dos indivíduos do sítio Armação do Sul passam a apresentar
alterações.
87
86
Gráfico 44: Gráfico de dispersão dos valores Sr/ Sr dos indivíduos analisados do sítio Armação do Sul,
Tapera (Bastos 2014) e Forte Marechal Luz (Bastos 2009). Na legenda constam as faixas temporais ocupadas
por cada sítio, definidas a partir de suas idades radiocarbônicas convencionais.
Adentrando o contexto regional do litoral catarinense, o diagrama de dispersão
acima evidencia não apenas a diferença entre Armação do Sul e Tapera, mas também a
diferença significativa existente entre as médias das razões isotópicas apresentadas pelo
sítio do litoral norte (Forte Marechal Luz) e os sítios do litoral central, sendo a hipótese de
semelhança rejeitada com p=0 tanto para Tapera quanto para Armação do Sul. Os valores
239
isotópicos dos indivíduos do Forte Marechal Luz são em geral menores que os valores dos
outros dois sítios, o que talvez se explique pela formação geológica que caracteriza o litoral
norte – onde predominam os depósitos quaternários –, o que já havia sido observado por
Bastos (2014) para explicar as diferenças entre Forte Marechal Luz e Tapera, sítios por ele
estudados.
87
86
Gráfico 45: Boxplot dos valores Sr/ Sr dos indivíduos analisados do sítio Armação do Sul, Tapera (Bastos
2014) e Forte Marechal Luz (Bastos 2009).
A formação geológica, contudo, não explica a maior variação das razões obtidas
para os sítios Tapera e Armação do Sul – com coeficientes de variação de Pearson (CVp) de
0,078% e 0,042% respectivamente – frente à estreita variação do Forte Marechal Luz –
com CVp de 0,033%. Também não explica a maior variação do sítio Tapera frente ao sítio
Armação do Sul. Embora o litoral central apresente uma geologia mais variada que o litoral
norte, a tendência é de que o processo de biopurificação e a influência marinha tornem as
assinaturas isotópicas mais homogêneas (Bentley 2006, Price et al. 2002). Além disso, o
fato de os indivíduos do sítio Armação do Sul e Tapera estarem inseridos nesse mesmo
240
contexto de variação geológica e, ainda assim, apresentarem CVp tão diferentes, indica
que outros fatores que não a geologia local estão influenciando nos valores isotópicos
87
Sr/86Sr.
6.2.4 Discussão
Frente aos dados apresentados, está claro que possivelmente nenhum dos
indivíduos analisados passou seus primeiros anos de vida (entre 2 e 7 anos) em regiões de
disponibilidade isotópica muito distinta daquela encontrada no litoral do Estado de Santa
Catarina, como o interior do continente, a encosta da serra ou o planalto – e as análises de
δ15N e δ13C nos permitem afirmar também que todos eles passaram seus últimos anos de
vida no litoral, alimentando-se sobretudo de recursos marinhos.
Isso significa que as mudanças observadas ao longo da estratigrafia do sítio
provavelmente não estão relacionadas à incorporação de indivíduos não locais
provenientes do interior, mesmo resultado obtido por Bastos (2014) com relação à
presença de cerâmica no sítio Tapera. É possível, no entanto, que tais mudanças estejam
relacionadas à incorporação de indivíduos provenientes de regiões litorâneas próximas.
Os valores das assinaturas isotópicas
87
Sr/86Sr dos indivíduos analisados do sítio
Armação do Sul aumentaram progressivamente – e significativamente – desde o início da
ocupação do sítio, com um aumento também na variação desses valores ao longo do
tempo. O aumento progressivo dos valores poderia ser explicado por uma mudança
gradual da dieta que estaria se tornando mais terrestre ao longo do tempo, como indicado
pelas análises isotópicas de carbono e nitrogênio. Acontece que essas análises foram
realizadas a partir do colágeno dos ossos, dizendo respeito à dieta dos últimos anos de
vida dos indivíduos, enquanto as análises de 87Sr/86Sr foram realizadas a partir do esmalte
dentário, dizendo respeito à assinatura isotópica dos indivíduos na infância, o que
inviabiliza o estabelecimento de correlações. O aumento na variação dos valores, por sua
vez, seria mais bem explicado por uma expansão nas relações entre populações de regiões
litorâneas próximas, com a incorporação de indivíduos provenientes dessas regiões pela
população do sítio da Armação do Sul.
241
De fato, é possível que alguns indivíduos sepultados no sítio sejam provenientes de
localidades litorâneas próximas e, em algum momento de suas vidas tenham migrado para
o sul da Ilha de Santa Catarina. Embora todos os valores
87
Sr/86Sr obtidos para o esmalte
dentário humano estejam de acordo com a assinatura local biologicamente disponível
indicada pela fauna analisada, a presença de outliers e valores desviantes da tendência
normal aponta para essa possibilidade.
Quando os resultados são abordados a partir de uma perspectiva geral de longa
duração – que lida com a tendência isotópica do sítio ao longo de seus mais de 1500 anos
de ocupação – apenas o sepultamento 2 aparece como outlier. Coincidentemente ou não,
esse é justamente o indivíduo que apresenta lesão óssea causada por comportamento
violento, com uma ponta cravada em sua quarta vértebra lombar (Lessa e Scherer 2008).
Caso realmente seja não local, esse indivíduo estimado como adulto jovem do sexo
masculino deve ter migrado em algum momento entre seus 8 e 30 anos de idade, tendo
aparentemente sido incorporado pela população do sítio, pois recebeu o mesmo
tratamento funerário que os demais na ocasião da sua morte em 1430-1315 anos cal AP –
até mesmo dividindo suntuosidade com alguns outros sepultamentos masculinos.
Ao aproximarmos o olhar para conjunturas específicas, numa perspectiva de média
duração, percebemos que o sepultamento 49 também desponta como outlier, porém
somente dentro do conjunto de valores do primeiro período de ocupação do sítio. Caso
realmente seja não local, esse indivíduo estimado como adulto maduro do sexo feminino
deve ter migrado em algum momento de sua vida após os 8 anos de idade, tendo
provavelmente sido incorporado como igual pela população do sítio, uma vez que recebeu
o mesmo tratamento funerário apresentado pelos demais sepultamentos do período 1.
Na união entre os dados isotópicos de estrôncio com os dados isotópicos de
nitrogênio e carbono, poderíamos presumir que, por exemplo, o indivíduo referente ao
sepultamento 2, teria recentemente migrado para a área onde se situa o sítio Armação do
Sul quando foi possivelmente morto em decorrência de golpe por arma com ponta óssea.
Assim, no momento de sua morte ele ainda guardaria a assinatura isotópica da
alimentação que tinha no local de onde veio. No mesmo sentido, poderíamos “imaginar”
que a mulher referente ao sepultamento 59 teria migrado há mais tempo e, assim, a
242
remodelação óssea já teria dado conta de substituir a assinatura de δ15N e δ13C antiga pela
nova. É muita suposição. De toda forma, o indivíduo 2 é um indivíduo extremo, o que se
revela nos valores
87
Sr/86Sr, nos valores δ15N e δ13C e na ponta óssea cravada em sua
quarta vértebra lombar.
O fato de o sepultamento 49 ser considerado outlier somente em seu momento
cronológico específico chama atenção para a questão colocada por Wright (2005) quanto à
possibilidade de indivíduos não locais estarem incluídos nas extremidades da distribuição
normal. Reforça também a ideia de que indivíduos não locais provenientes de regiões
geológicas parecidas podem estar inseridos dentro da faixa de distribuição da assinatura
biológica local, passando despercebidos; ou, então, a ideia de que a jaguatirica, limite
superior da assinatura local, seria proveniente do continente próximo à Ilha de Santa
Catarina, o que diminuiria a faixa de variação biológica e tornaria os indivíduos dos
sepultamentos 2, 49 e talvez 31 indiscutivelmente não locais.
Como os valores 87Sr/86Sr que desviam da tendência central se destacam por serem
mais elevados que os demais, somos levados a supor que os indivíduos potencialmente
não locais teriam origem no próprio litoral central, em localidades onde a presença de
formações geológicas mais antigas do Proterozóico e Arqueano – como ocorre em alguns
pontos entre Porto Belo e Balneário Camboriú, mais ao norte; e no município de São José,
no continente próximo à Ilha de Santa Catarina – poderia estar elevando as assinaturas
isotópicas.
Inserindo os resultados obtidos para o sitio Armação do Sul no contexto do litoral
central, é possível observar diferença significativa entre a média das razões 87Sr/86Sr desse
sítio, que é menor, e a média dos indivíduos analisados por Bastos (2014) no sítio Tapera,
que é mais elevada. No sítio Tapera, é também mais elevada a variação dos valores,
principalmente entre os indivíduos do sexo feminino, o que levou Bastos (2014) a levantar
a hipótese da virilocalidade, como foi sugerido por Hubbe (2009) para os sítios conchíferos
mais tardios com presença de cerâmica. O sítio Armação do Sul, por sua vez, parece
apresentar uma maior variação entre os indivíduos do sexo masculino no período 1 –
embora o único outlier seja estimado para o sexo feminino – e uma equiparação no
243
período 2, causada por um aumento grande na variação das mulheres e aumento menor
na variação dos homens. Para interpretar esse quadro, podemos também seguir a deixa de
Hubbe (2009) e considerar a possibilidade de que o período 1 teria sido marcado pela
matrilocalidade e o período 2 por uma transição de um padrão matrilocal para um padrão
virilocal; ou então, de que ambos os períodos representariam essa transição, uma vez que
a distribuição dos dados não deixa nada muito claro.
Em sua análise dos marcadores de estresse músculo-esquelético, Scherer (2012)
observou que a parcela feminina do sítio Armação do Sul não parece ter realizado
qualquer atividade que envolvesse deslocamentos para longe de seu núcleo habitacional,
enquanto que o grupo feminino do sítio Tapera apresentou graus de robusticidade bem
variados, inclusive com presença de casos compatíveis com maiores deslocamentos,
mesmo que mais frequentemente realizados em áreas planas do que íngremes. Esses
resultados podem estar simplesmente apontando para padrões de mobilidade e/ou
realização de atividades distintas pelas mulheres dos sítios em questão, mas podem
também ser entendidos como uma evidência da passagem de um padrão de residência
matrilocal para um padrão virilocal em tempos mais tardios.
Frente a esses dados relativos às diferenças entre Armação do Sul e Tapera e
partindo da ideia de continuidade histórica entre os sítios conchíferos com e sem
cerâmica, podemos pensar então que o aumento dos valores isotópicos
87
Sr/86Sr
observado desde o início da formação do sítio Armação do Sul faz parte de um processo
que continua no sítio da Tapera (Bastos 2014), pois este sítio apresenta razões que ora se
sobrepõem aos daquele e ora são ainda mais altas. E o mesmo serve para o aumento na
variação dos valores no sítio Armação do Sul, que parece prenunciar a variação ainda
maior que teria lugar no momento seguinte, em sítios cerâmicos como Tapera.
A diferença entre a média dos valores 87Sr/86Sr dos dois sítios poderia ser explicada
por diferenças na dieta, por diferenças geológicas nas principais áreas de captação de
recursos – como um aumento na utilização de recursos continentais ou a utilização de
fontes de água distintas – e, claro, a presença de indivíduos provenientes de regiões com
formação geológica mais antiga poderia também estar contribuindo para essa diferença.
244
Sabemos que animais de regiões com disponibilidade isotópica diferente faziam
parte da dieta tanto dos indivíduos do sítio Armação do Sul quanto Tapera, a exemplo dos
porcos do mato com razões
87
Sr/86Sr muito acima da média e outras amostras de fauna
que se mostraram potencialmente não locais. Como o sítio Tapera está situado na baía sul,
voltado para o continente, o acesso a esse tipo de recurso deveria ser facilitado. Além
disso, Scherer (2012) observou lesão na área de origem do músculo gastrocnêmio entre os
indivíduos do sexo masculino desse sítio cerâmico, o que sugere a transposição de
terrenos íngremes e acidentados e leva a autora a considerar que a caça foi uma atividade
mais intensa no grupo Tapera se comparado ao grupo Armação do Sul. Nesse sentido,
talvez os indivíduos da Tapera estivessem caçando tanto na mata atlântica – onde os
terrenos são mais irregulares, demandando mais dos membros inferiores – quanto em
áreas de baixadas, enquanto os indivíduos da Armação do Sul estivessem caçando
principalmente nas áreas de baixadas (Scherer 2012:148).
Um foco maior nos recursos da mata atlântica – que, na Ilha de Santa Catarina, se
situa sobre granitos alcalinos do Eopaleozóico – poderia ser responsável pelo aumento nas
razões isotópicas 87Sr/86Sr, ainda mais se tais recursos fossem buscados também na mata
atlântica continental, como na região da serra do Tabuleiro, vizinha de frente da praia da
Tapera, onde embora a geologia também seja marcada por granitos alcalinos do
Eopaleozóico, a influência do estrôncio marinho sobre a assinatura biologicamente
disponível é menor do que nas terras insulares. Ou, ainda, nos arredores dos municípios de
Biguaçu, São José e Palhoça, onde há presença de granitóides calcialcalinos do
Proterozóico e de formações do Complexo Águas Mornas, que remetem ao Arqueano.
A grande diferença nos coeficientes de variação (CVp), entretanto, é mais difícil de
ser explicada para além da ideia de que no sítio Tapera a presença de indivíduos não locais
provenientes de localidades litorâneas próximas teria sido mais expressiva. Como ambos
os sítios estão inseridos em um mesmo contexto geológico, e como mesmo em regiões
com grande heterogeneidade isotópica
87
Sr/86Sr – a exemplo do litoral central – a
tendência é de que grupos humanos e outros animais apresentem notável homogeneidade
em suas assinaturas isotópicas (Price el al. 2002) – ainda mais em ambientes litorâneos
245
com forte influência do estrôncio marinho (Bentley 2006) – os valores
87
Sr/86Sr dos
indivíduos dos sítios Armação do Sul e Tapera deveriam apresentar variação mais parecida.
Apesar da tendência à homogeneidade, existem fatores que podem introduzir
variação nas razões
87
Sr/86Sr de uma população, como a dieta. Para isso acontecer,
contudo, precisa haver diferença na dieta de indivíduos ou grupos de indivíduos
específicos (Price et al. 2002). Embora Bastos (2014) tenha observado que algumas
mulheres da Tapera possivelmente estavam se alimentando de recursos com valores de
δ13C mais negativos, não encontrou esse tipo de variabilidade na dieta da população da
Tapera, nem qualquer correspondência entre a variação nas razões
87
Sr/86Sr e os valores
de δ15N e δ13C. No sítio Armação do Sul, embora não seja possível fazer correlações entre
os valores δ15N e δ13C do colágeno dos ossos e as assinaturas 87Sr/86Sr do esmalte dentário,
pode-se dizer que não há tamanha variabilidade na dieta: enquanto entre os indivíduos do
sexo masculino foram, de fato, observadas diferenças, no grupo feminino a dieta é
bastante homogênea e semelhante à das crianças fora da idade de amamentação.
Ficamos então com a hipótese de que a diferença na variação dos valores
isotópicos
87
Sr/86Sr entre os sítios Armação do Sul e Tapera esteja relacionada à uma
expansão nas relações com populações litorâneas próximas por parte dos indivíduos da
Tapera. Expansão tanto em termos quantitativos, com um aumento na frequência e
intensidade dessas relações, quanto em termos qualitativos, com a incorporação de outras
regiões isotópicas que em tempos anteriores talvez não estivessem incluídas na rede de
relações. Em um momento anterior, representado pelo período 1 do sítio da Armação, as
interações talvez fossem menos frequentes e/ou restritas a localidades específicas de
disponibilidade isotópica mais parecida com a da ilha de Santa Catarina, como a maior
parte do continente próximo à ilha; no momento seguinte, representado pelo período 2, o
processo expansivo teria se iniciado timidamente para, mais tarde, atingir seu auge em
sítios como Tapera.
Se a hipótese estiver correta, essa expansão estaria se fazendo visível no registro
arqueológico do sítio Tapera devido às trocas resultantes de um padrão virilocal de
residência pós-marital, que aparecem no registro sob a forma de patrimônios genéticos
(Hubbe 2009), assinaturas isotópicas (Bastos 2014) e, talvez, graus de robusticidade
246
(Scherer 2012) mais variados. Provavelmente estaria também se manifestando por meio
da presença de objetos, alimentos e costumes intercambiados, ainda por serem
identificados em pesquisas futuras – como quem sabe a própria cerâmica.
Pensando agora no contexto regional e nas diferenças observadas entre os valores
87
Sr/86Sr obtidos para as populações do litoral central e do litoral norte, enquanto os sítios
Armação do Sul e Tapera apontam para um aumento da média e da variação das razões
isotópicas em tempos mais tardios, no sítio Forte Marechal Luz, do litoral norte, a média e
a variação das razões isotópicas permaneceram iguais ao longo dos mais de 3000 anos em
que foi ocupado, embora três indivíduos tenham despontado como outliers no período
final do sítio (Bastos 2009).
Esses dados contribuem para uma melhor compreensão dos processos de mudança
pelos quais passaram os sítios conchíferos catarinenses a partir de 2000 anos AP,
chamando atenção para a forma como contextos locais diferentes respondem
diferentemente a pressões estruturais possivelmente semelhantes (Sahlins 2011[1985]).
Nisso, colocam também em pauta a importância da relação entre indivíduo e estrutura nos
processos de mudança social. A ação se dá por meio das disposições de indivíduos e
grupos inseridos em contextos de significado específicos (Bourdieu 2011[1967]);
interpretações
diferentes,
ocasionadas
por
habitus
distintos,
podem
levar
a
desenrolamentos inimaginados que fogem às pressões estruturais, tal como a morte do
capitão Cook quando estava indo embora no Havaí (Sahlins 2011[1985]). Daí, a
necessidade de se entender os processos de mudança contextualmente.
As razões isotópicas
87
Sr/86Sr indicam que acontecimentos possivelmente
semelhantes de ordem cultural e/ou ambiental – como a diminuição do nível do mar, o
aumento da umidade, o contato intercultural ou qualquer outro evento que tenha se dado
em escala regional – se desenrolaram diferentemente no litoral norte e no litoral central
do Estado. A população do sítio Forte Marechal Luz (Bastos 2009) manteve o mesmo
padrão de mobilidade após o aparecimento da cerâmica, com manutenção da média dos
valores isotópicos e incorporação eventual de indivíduos de outras regiões litorâneas; a
única possível mudança foi em direção a um aumento na frequência dessa eventualidade –
de um indivíduo não local para três. A população do sítio Tapera (Bastos 2014), de certa
247
forma, também manteve o padrão de mobilidade observado no sítio Armação do Sul,
caracterizado por uma pequena – porém crescente – variação nos valores isotópicos, no
entanto, apresentou valores ainda mais altos, elevando tanto a média dos valores quanto o
seu coeficiente de variação.
O que parece é que na interpretação local de acontecimentos regionais, a
população associada ao sítio Forte Marechal Luz manteve-se circunscrita em torno dela
mesma, embora não possa ser descartada a possibilidade da presença de indivíduos
provenientes de outras partes do entorno da baía da Babitonga que, tendo em vista a
homogeneidade geológica da área, se fariam imperceptíveis no registro isotópico 87Sr/86Sr.
Enquanto isso, as populações do sítio Armação do Sul e da Tapera tornaram-se ainda mais
abertas do que eram, expandindo suas fronteiras – pelo menos no sentido de trocas
culturais e/ou pessoas – para regiões litorâneas próximas com presença de formações
geológicas mais antigas, como ocorre em alguns pontos entre Porto Belo e Balneário
Camboriú, mais ao norte, e no município de São José, no continente próximo.
Ademais, a constatação da existência de diferença significativa entre as médias das
assinaturas de 87Sr/86Sr dos sítios em questão nos dá um maior poder interpretativo frente
aos dados, mostrando que indivíduos provenientes do litoral norte podem vir a ser
identificados quando estiverem sepultados em sítios do litoral central e vice-versa. Mesmo
que as variações nas assinaturas isotópicas disponíveis ao longo do litoral catarinense
sejam pequenas – mais por causa da influência do estrôncio marinho do que da geologia –
o fato dos espectrômetros de massa modernos apresentarem precisão mínima de 10-5
(Allègre 2008) torna variações na quarta casa decimal extremamente significativas,
podendo ser utilizadas para identificar indivíduos não locais (Grupe 1997).
Com um aprofundamento dos estudos e mapeamento das pequenas variações ao
longo do litoral, portanto, os isótopos de estrôncio poderão passar a informar não apenas
sobre as relações estabelecidas com populações do interior e outras regiões litorâneas
mais distantes, mas também sobre as relações estabelecidas – fluxos de ideias, objetos e
pessoas – entre as populações das diferentes porções do litoral catarinense, colocando-se
como um caminho possível para a melhor compreensão das redes de inter-relações na
paisagem pré-colonial do litoral de Santa Catarina e dessa paisagem enquanto sistema.
248
Antes de finalizar, é importante ressaltar que as análises isotópicas de estrôncio
geram resultados que sempre subestimam a presença de indivíduos não locais. Além de
dizerem respeito somente às migrações realizadas após o período de formação dos dentes
analisados, existe a possibilidade de indivíduos provenientes de locais com disponibilidade
isotópica idêntica à da ilha de Santa Catarina estarem totalmente integrados à amostra
considerada local, bem como de indivíduos provenientes de regiões com formação
geológica mais recente estarem camuflados na extremidade inferior da distribuição
normal.
Ainda, devo alertar que embora as proveniências inferidas – tanto para os
indivíduos humanos quanto para a fauna que apresentou valores
87
Sr/86Sr desviantes –
sejam baseadas em informações geológicas seguras (figura 53) e, por vezes, até mesmo
em dados isotópicos da assinatura
87
Sr/86Sr presente na geologia (Basei 1985), as
interpretações aqui apresentadas devem ser encaradas com cautela enquanto não forem
realizados mais estudos no sentido de promover um melhor entendimento das pequenas
variações isotópicas entre porções distintas do litoral catarinense.
Com relação à hipótese colocada no início deste trabalho, de que haveria presença
de indivíduos não locais no sítio Armação do Sul, ela foi confirmada em parte: rejeitada
quanto à presença de indivíduos provenientes do interior e de regiões litorâneas mais
distantes, porém confirmada quanto à presença de indivíduos de localidades litorâneas
próximas – claro, levando-se em consideração as ressalvas feitas acima.
249
7 Finalizando:
tudo ao mesmo tempo agora
Deixo aos vários futuros (não a todos)
meu jardim de veredas que se bifurcam.
Jorge Luis Borges, Ficções, 1941
Infinitas séries de tempos, numa rede crescente e vertiginosa de tempos
divergentes, convergentes e paralelos; essa trama de tempos que se aproximam, se
bifurcam, se cortam ou que secularmente se ignoram abrange todas as possibilidades.
Assim, Borges (1941:113) descreveu o labirinto deixado aos futuros por Ts’sui Pen.
Aqueles indivíduos associados ao espaço ritual que hoje chamamos de sítio
Armação do Sul nos deixaram seu próprio labirinto, expresso de forma tão pragmática
como somente a materialidade consegue ser: as veredas que se bifurcam estão ali, visíveis
– e invisíveis! – em sua estratigrafia. Alegoria do encontro entre o local e o regional, entre
as longas e curtas durações, entre a mudança e a estabilidade, o sítio Armação do Sul
mostra como processos complexos de mudança se manifestam no registro arqueológico,
desafiando a percepção dos arqueólogos, geralmente distanciada e unifocal, a tomar
novos pontos de vista e pluridirecionar-se.
A textura densa de dados apresentada ao longo da segunda parte desta
dissertação, gerada por meio das determinações radiocarbônicas, da análise das práticas
mortuárias e das análises isotópicas 87Sr/86Sr, δ13C e δ15N, passa a integrar o conjunto das
coisas que mudam apresentado na primeira parte. Agora, em vez de suscitar infrutíferas
elucubrações aferindo papel de causa ou efeito aos diferentes elementos em jogo, sigo a
deixa de Bourdieu (2011[1967]) ao ponderar o surgimento do estilo gótico e me limito a
esboçar um quadro de séries causais independentes na ordem da causalidade, cuja
combinação ou encontro engendrou mudanças significativas na vivência de mundo da
250
população associada ao sítio Armação do Sul e, de quebra, no registro arqueológico. O
que, na verdade, nada tem de limitante, e eu diria que é até libertador; como já
mencionado há alguns capítulos atrás, “mais elevada que a realidade está a possibilidade”
(Heidegger 2008[1927]).
Nesse quadro possível de acontecimentos inter-relacionados, está presente a
fundação de um novo espaço ritual para o empreendimento de atividades funerárias, ato
que por si só representa uma quebra com a tradição; o desapego com relação às ideias por
detrás da monumentalidade dimensionalmente exacerbada dos sítios conchíferos,
perceptível no contexto do litoral central desde tempos mais antigos (Oppitz 2011), porém
ainda mais evidente com a formação de sítios “rasos” como Armação do Sul em tempos
mais tardios; a menor presença de conchas que caracteriza o sítio desde o início de sua
formação e, depois, o aparecimento da terra preta; o adensamento populacional ou maior
quantidade de indivíduos sendo sepultados no mesmo local; a mudança na dieta de alguns
indivíduos adultos do sexo masculino, em direção provável à introdução ou ao aumento no
consumo de recursos C4 (como o milho) e/ou à diminuição no consumo de recursos
marinhos de alto nível trófico; o aumento na diferenciação social entre os indivíduos do
sexo masculino que pode ou não estar associado ao estabelecimento de uma hierarquia
social mais complexa, expressa na maior variabilidade dos acompanhamentos funerários
de diferentes indivíduos – o que pode também, simplesmente, significar uma atualização
nas práticas mortuárias de relações de status e/ou poder que já estavam em voga
anteriormente; o possível estabelecimento de relações de status e/ou poder hereditárias,
expressas na maior variabilidade dos acompanhamentos funerários nos sepultamentos
infantis, alguns casos apresentando muitos elementos e outros apresentando poucos; a
introdução das pontas ósseas e artefatos fusiformes ao rol de acompanhamentos
funerários passíveis de serem escolhidos para compor, principalmente, sepultamentos
masculinos e infantis; o abandono parcial do uso de ocre, seguido por abandono total; a
expansão da rede de relações com populações de outras localidades do litoral central e,
quiçá, do litoral catarinense; o início da mudança para um padrão de residência virilocal; o
aumento da violência; e, por fim, o abandono de um espaço ritual – pelo menos com
relação ao empreendimento de atividades funerárias – que vinha sendo utilizado há mais
251
de 1500 anos. Logo em seguida, ocorre o aparecimento da cerâmica, a maior robustez
óssea entre os indivíduos do sexo masculino e maior variabilidade na robustez entre os
indivíduos do sexo feminino (Scherer 2012), e o estabelecimento claro de um padrão de
residência virilocal (Hubbe 2005, Bastos 2014), mas esses são acontecimentos que não
mais estão materializados no sítio Armação do Sul, sendo preciso buscá-los em sítios
formados posteriormente.
Penso ainda que o início da prática de confeccionar inscrições rupestres possa ser
adicionado a esse quadro, afinal, esse tipo de sítio arqueológico é uma particularidade do
litoral central, e parece ser justamente nesse momento representado pelo sítio Armação
do Sul que o litoral central mais se diferencia das porções litorâneas adjacentes. Para
Comerlato (2005), as inscrições rupestres operavam como um código visual, uma unidade
estrutural compartilhada e articuladora de espaços ao longo de todo o litoral central,
espaços também interconectados visualmente. Essa articulação de toda uma faixa
litorânea por meio de um sistema de representações comum parece fazer sentido com o
contexto de expansão na rede de relações locais ou, pelo menos, de formalização de
relações talvez pré-existentes. Vejo as inscrições rupestres como uma alternativa
desenvolvida localmente e criativamente frente à decadência dos esquemas perceptivos
então em voga, desafiados por razões práticas diversas. Em tempos de progressivo
fechamento de alguns dos corpos d’água que centralizavam as relações sociais e deveriam
atuar na comunhão de recursos e ideias, uma prática voltada para o oceano; uma
reconfiguração das antigas formas de viver e entender o mundo; uma hipótese que
dificilmente será testada – tendo em vista as limitações nos métodos de datação hoje
conhecidos.
A ilha do Campeche, local onde está a maior concentração de inscrições rupestres
do litoral central, situa-se logo em frente ao sítio Armação do Sul, além de haver também
registro de uma inscrição na ponta das Campanhas, local de onde saem os barcos para
visitação da ilha e onde há um sítio conchífero que provavelmente é imediatamente
posterior ao sítio Armação do Sul. Reforça minha intuição a possibilidade levantada por
Comerlato (2005), de que os artefatos fusiformes poderiam estar sendo utilizados para
polir as superfícies e regularizar os traços incisos ou martelados das inscrições, tendo sido
252
encontrados vários objetos desse tipo no terraço marinho eólico da ilha do Campeche. Os
artefatos fusiformes, que passam a ser utilizados como acompanhamentos funerários
distintivos somente após 2500 anos AP, ocorrendo em alguns sepultamentos masculinos e
infantis mais suntuosos; justamente eles.
É provável também que o contato ou a intensificação das relações com populações
interioranas tenha integrado esse cenário, porém, até o momento, não há evidências
materiais contundentes desse contato possível para além do aparecimento da cerâmica a
partir de 1500 anos AP que, a meu ver, em sua exclusividade não constitui uma evidência
suficientemente decisiva.
Ao mesmo tempo em que esses tantos acontecimentos eram submetidos aos riscos
da interpretação e transformados em eventos, desenrolando-se conforme as prédisposições individuais e do contexto local, a paisagem enquanto conjunto de feições
relacionadas aparentemente congeladas também se transformava. O local onde está
assentado o sítio Armação do Sul, um terraço marinho holocênico coberto por areias
eólicas, formou-se por volta de 5000 AP, situando-se à beira de uma paleolaguna que
existiu até mais ou menos 3600 AP e, a partir daí, começou a fechar para, mais tarde,
deixar de existir – tornando-se então a lagoa do Peri. Ainda, em meio à progressiva
diminuição do nível do mar que marcou todo o período de ocupação do sítio, é possível
que por volta de 2600 AP tenha havido um rápido aumento seguido de retorno à
diminuição, o que foi sugerido para a Ilha de Santa Catarina (Caruso Junior 1989, 1993,
1995; Horn Filho e Livi 2012) e para o sul do estado (Caruso Junior 1989, 1993, 1995;
Suguio et al 1985).
O conjunto de atividades relacionadas (taskscape) arroladas e esse conjunto de
feições relacionadas (landscape) que acaba de ser parcialmente descrito, juntos,
conformam uma paisagem temporalizada (Ingold 2002[2000]), gerada e mantida por meio
das relações organismo-meio ambiente num processo de incorporação; uma paisagem
temporalizada em transformação.
O mundo passava também por alterações climáticas importantes com impactos
distintos em diferentes regiões do globo e influência também sobre o clima dessas
paragens meridionais do litoral brasileiro. Durante o período em que o espaço do sítio
253
Armação do Sul foi utilizado para a realização de rituais funerários, dois eventos globais de
alteração climática se destacam.
O primeiro deles teria se dado entre aproximadamente 2800 e 2600 AP e pode
estar relacionado a um período de baixa atividade solar (forte mínimo solar), com impacto
climático mais intenso no hemisfério sul e indicativo de aumento de chuvas em registros
paleoclimáticos de regiões do Brasil (Stríkis et al. 2011, Novello et al. 2012) que
apresentam padrão de chuva relacionado ao Sistema de Monção Sul-Americana (Marengo
et al. 2012). Há registro também de aumento da umidade e diminuição das temperaturas
em diferentes localidades da Europa, na América do Norte, na Nova Zelândia e no Japão,
sendo que na Holanda essa alteração climática teria sido acompanhada pelo abandono de
assentamentos da Idade do Bronze tardia devido ao alagamento das áreas habitadas e
subsequente colonização de áreas costeiras (Van Geel et al. 1996), e, no sul da Sibéria e
Ásia central, pela aceleração no desenvolvimento cultural, adensamento populacional e
expansão territorial dos citas (Van Geel et al. 2004).
O segundo evento, conhecido como Anomalia Climática Medieval, teria se dado
entre aproximadamente 1200 e 800 anos AP e, portanto, no final do período de ocupação
do sítio Armação do Sul ou mesmo em período posterior ao seu abandono, estando
possivelmente associado a um aumento na atividade solar e vulcânica (Novello 2012). Esse
evento anômalo foi marcado por alterações distintas e, por vezes, antagônicas em
diferentes partes do mundo (Bradley et al. 2003), com elevação da temperatura na
Europa. Para a América do Sul, registros paleoclimáticos da região do Sistema de Monção
Sul-Americana que se estendem do Peru até o estado de São Paulo, mostram condições
significativamente áridas para esse período (Vuille et al. 2012, Novello et al. 2012).
Arqueologicamente, esse período foi marcado tanto por florescimento e expansão quanto
por colapso de diferentes culturas, conforme a região do globo enfocada e a alteração
climática observada. Enquanto os Vikings se expandiam através do Atlântico Norte em
meio a um clima favorável e estações de crescimento mais longas (Dansgaard 1975, Price e
Burton 2011) e a Europa medieval passava por um crescimento material e demográfico
extraordinário, os Maias lidavam com transformações sociais e políticas em meio a secas
prolongadas que culminaram no seu colapso (Yaeger e Hodell 2008, Kennett e Beach
254
2013); os centros urbanos e campos elevados da cultura Tiwanaku eram abandonados
(DeMenocal 2001); a cultura Mimbres passava por mudanças sociais e reconfiguração dos
assentamentos e as regiões de Mesa Verde e Hohokam eram depopuladas (Hegmon et al.
2008); na Amazônia central ocorria adensamento populacional, maior interação étnica e
aumento dos conflitos, estes evidenciados pela construção de estruturas defensivas, como
valas e paliçadas (Moraes e Neves 2012).
Cabe destacar que não estou sugerindo que esses florescimentos e colapsos, ou as
mudanças observadas no registro arqueológico do sítio Armação do Sul, possam ser
atribuídos às alterações paleoclimáticas, apenas chamo atenção para a forma como esses
acontecimentos coincidem no tempo, compondo cada um à sua maneira os contextos de
mudança.
Embora possamos presumir similaridade com os registros obtidos para qualquer
região da América do Sul que seja afetada pelo Sistema de Monção Sul-Americana
(Marengo et al. 2012), não sabemos ao certo em que intensidade se revelaram os eventos
paleoclimáticos mencionados na Ilha de Santa Catarina. Qualquer alteração climática
prolongada, contudo, interfere na disponibilidade de recursos. No caso dos ecossistemas
marinhos, variações na temperatura da água podem levar à reorganização das
comunidades de plânctons, o que gera impacto sobre a ictiofauna, uma vez que todos os
peixes em fase larval – e alguns também em fase adulta – consomem plânctons e a
concomitância entre o pico de abundância desses organismos e a chegada das larvas é
crucial para a sobrevivência dessas últimas (Hays, Richardson e Robinson 2005). Ainda,
variações na salinidade da água, ocasionadas por alterações no regime de chuvas, podem
impactar diretamente a reprodução e abundância das comunidades ictiológicas e
malacológicas.
A desestruturação de uma sociedade pode se dar por diversos motivos. Basta, por
exemplo, uma alteração pequena na disponibilidade dos recursos para que as relações
estabelecidas sejam abaladas, revelando as contradições e gerando necessidade de
improviso e inovação, para a manutenção ou para a transformação. Tal inovação pode se
dar, por exemplo, pela escolha de novos elementos de distinção social, como talvez tenha
acontecido entre os indivíduos masculinos do sítio Armação do Sul.
255
Deparamo-nos, então, com uma rede de causalidades locais, regionais e globais
sincrônica e diacronicamente inter-relacionadas, na qual se incluem desde acontecimentos
mais prosaicos como a inovação no contexto de uso das pontas ósseas e artefatos
fusiformes até a atividade solar e o vulcanismo do mundo. A convergência dessas
diferentes trajetórias resultou naquilo que hoje observamos no registro arqueológico do
sítio Armação do Sul, nessa pequena ilha do litoral meridional brasileiro.
Apesar dos tantos cuidados na interpretação dos dados gerados, em uma redação
por vezes hesitante e um texto repleto de possíveis, ao fim, as inferências hesitantemente
feitas configuram-se em um cenário bastante coerente, ainda mais se entendidas em
conjunto com os outros dados culturais e paleoambientais apresentados. Ou seja, talvez
estejamos no caminho certo.
O cenário é de intensificação nos processos de mudança, de transição; e,
resguardadas as idiossincrasias locais, envolve uma associação de acontecimentos
possíveis que é recorrente em diferentes contextos de mudança ao redor do mundo, como
a expansão nas relações com outras populações, o desenvolvimento de uma hierarquia
social mais claramente observável no registro arqueológico, o aumento da violência, o
adensamento populacional, a mudança na dieta, a quebra de tradições, as inovações
materiais/ideológicas, e as alterações ambientais. Esse conjunto de acontecimentos, por
vezes, está relacionado a contextos de transição para a agricultura (Larsen 2006), mas, no
caso do sítio Armação do Sul, a dieta permaneceu essencialmente marinha, mesmo com a
possibilidade de um consumo pequeno de milho – que, fosse o caso, provavelmente teria
sido utilizado como forma de distinção entre alguns indivíduos do sexo masculino. A
população associada ao sítio Armação do Sul viveu, em seus próprios termos, seus próprios
tempos de mudança.
Analisando as práticas mortuárias em diferentes contextos de transição, Childe
(1945) tem um insight interessante, retomado posteriormente por Parker Pearson
(2006[1982]), e que nesse momento me parece muito conveniente, indo diretamente ao
encontro daquilo que estou tentando expor. Em linhas gerais, a ideia é de que em
sociedades que passam por períodos de pouca mudança relativa, os acompanhamentos
funerários tendem a aparecer em quantidade e variedade cada vez menor, porém, quando
256
essa “estabilidade” é abalada por eventos diversos, os acompanhamentos aparecem em
maior quantidade e variedade, atuando mais enfaticamente na produção e reprodução das
novas relações e posições sociais em formação, ou na legitimação de relações préexistentes colocadas à prova. É claro, Childe não faz sua colocação exatamente nesses
termos, sendo os “eventos diversos”, para ele, a invasão, imigração ou o contato entre
sociedades bárbaras e civilizadas, de forma que "for instance, trade introduces new sorts
of wealth, new opportunities for acquiring wealth and new classes (traders) who do not fit
in at once into the kinship organization of a tribe” (Childe 1945: 17).
De fato, em rápida e superficial análise das práticas mortuárias em sítios
conchíferos anteriores e posteriores ao sítio Armação do Sul, não pude perceber tamanha
quantidade e variedade nos acompanhamentos funerários. É como se o sítio Armação do
Sul representasse um momento de maior agitação nos processos de mudança, enquanto
os sítios cerâmicos posteriores, como Tapera, Base Aérea e Laranjeiras II, representassem
uma nova “estabilidade”; a calmaria depois da tempestade.
Pois bem, esse seria o cenário no litoral central, mas as coisas não mudaram da
mesma forma em todas as porções litorâneas catarinenses. Embora as populações
associadas aos sítios conchíferos dessa faixa costeira compartilhassem inúmeras tradições
e vivências de mundo que deveriam conferir-lhes uma identidade coletiva, estruturando e
sendo estruturadas por suas práticas, como a dieta, a tecnologia, a íntima relação com
ambientes estuarinos, a distribuição dos sítios no entorno de formações lagunares, a
resposta à crise biológica e social da morte e a monumentalização das áreas funerárias
pela deposição de material faunístico e sedimento; e, embora haja sintonia cronológica
entre muitos dos acontecimentos observados, os habitus e contextos locais – ou paisagens
temporalizadas – geraram um efeito de refração, condicionando a apreensão de tais
acontecimentos enquanto eventos e, assim, seus desenrolares.
Processos de mudança que se interseccionaram em determinados pontos no
tempo e no espaço, porém novamente se bifurcaram em direções, intensidades e atores
distintos. Isso é denunciado pelas particularidades nos panoramas arqueológicos de cada
uma das porções litorâneas, e foi indicado pelos resultados das análises isotópicas. As
análises de estrôncio (87Sr/86Sr) revelaram padrões de mobilidade distintos para as
257
populações do litoral norte e do litoral central após 1500 AP, o primeiro mais fechado,
porém com eventuais inclusões de indivíduos de porções litorâneas mais distantes, como
da Cananéia, e o segundo mais aberto, com inclusão frequente de indivíduos provenientes
de localidades litorâneas próximas. E as análises de nitrogênio (δ15N) e carbono (δ13C),
demonstraram haver diferenças nas direções tomadas pela dieta nas porções litorâneas
norte, central e sul em tempos mais tardios, a primeira apresentando um aumento no
consumo de recursos C3, a segunda apresentando a introdução ou aumento no consumo
de recursos C4 e/ou a diminuição do consumo de recursos marinhos de alto nível trófico, e
a terceira não apresentando qualquer mudança perceptível. É claro, ainda são poucos os
sítios analisados e para uma confirmação dessas diferenças serão necessários mais
estudos.
O caráter recortado e multifacetado do litoral central, marcado por formações
cristalinas que esbarram diretamente sobre o mar e diversas ilhas, enseadas e pequenas
baías de fundo lodoso ou de mangue (Lago 1968) que, no caso da ilha de Santa Catarina,
contrastam com as praias de mar aberto e costões rochosos situados no lado leste, deve
ter desempenhado papel importante no desenrolar dos acontecimentos, inspirando
determinadas práticas e contribuindo para a formação de modos genuinamente locais de
viver o mundo.
Outra característica importante do contexto de relações vividas pelas populações
do litoral central, e que também deve ter atuado na formação de habitus e direcionado os
processos de mudança, é indicada pela aparente descentralização do sistema local de
sítios conchíferos. Enquanto no litoral norte e sul os sítios estavam dispostos no entorno
de grandes corpos d’água – respectivamente a baía da Babitonga (Vieira 2008) e a
paleolaguna de Santa Marta (Kneip 2004, Giannini et al. 2010) – que interligavam
indivíduos e grupos dispersos em uma vasta área e centralizavam as relações, no litoral
central, ou pelo menos na ilha de Santa Catarina, os sítios estavam dispostos no entorno
de corpos d’água menores, como a laguna da Conceição no leste da ilha (Jockyman 2015),
a paleolaguna da bacia do rio Ratones, no norte (Duarte 1981, Comerlato 2007), a
paleolaguna da planície costeira da Armação do Sul, na porção sudoeste (Castilhos 1995) e,
258
possivelmente, na bacia do rio Tavares, situada na porção sudeste da ilha (Horn Filho e Livi
2012).
Com uma distribuição espacial mais dispersa, o sistema de sítios conchíferos do
litoral central seria, na verdade, composto por subsistemas menores, centralizados em si
mesmos. Da mesma forma, as populações associadas a esses sítios estariam organizadas
em agrupamentos menores independentes, porém interconectados por redes de relações
diversas e vivências de mundo compartilhadas.
Como indivíduos e grupos distintos respondem diferentemente aos desafios,
oportunidades e riscos colocados pela prática, essa descentralização deve ter permitido
uma maior diversidade de respostas frente aos acontecimentos, contribuindo para a
resiliência do sistema vivido no litoral central (Leslie e McCabe 2013). Resiliência sendo
entendida como a capacidade de um sistema em absorver perturbações e ainda assim
persistir, mantendo as relações entre os diferentes elementos (Holling 1973), ou, de uma
perspectiva mais flexível, reorganizando-se em meio à mudança de forma que seja possível
a manutenção de aspectos essenciais de sua estrutura e composição (Walker e Salt 2012).
Essa relação entre heterogeneidade de respostas e resiliência pode ser entendida
também em termos de rigidez (Hegmon et al. 2008). Há uma associação entre o grau de
rigidez dos sistemas e sua habilidade para a superação de perturbações, em que situações
que causam limitação à flexibilidade, supressão das inovações e resistência à mudança
acabam impedindo sociedades por vez bastante afluentes de realizar modificações
necessárias para a sua manutenção. A coesão extrema pode ser um problema, e ignorar ou
resistir a uma mudança é aumentar sua própria vulnerabilidade. Essas situações – ou
armadilhas de rigidez – geralmente advêm de práticas repetitivas que reproduzem ou
ampliam as estruturas e, conscientemente ou não, reprimem a diversidade e determinam
o modo como os diferentes elementos devem relacionar-se; passam, portanto pelo
habitus.
No litoral central, a possível descentralização da rede de relações, somada a outros
aspectos como o ambiente recortado e multifacetado e o menor tamanho da população –
suposto a partir da pouca quantidade de sepultamentos por sítio, o que se inverte em
tempos mais tardios – devem ter engendrado uma maior flexibilidade, abertura para a
259
mudança e, logo, um menor grau de rigidez. Nas porções litorâneas norte e sul, por outro
lado, a coesão promovida pelos grandes corpos d’água que interconectavam toda a
localidade, a maior monotonia das paisagens e a maior demografia devem ter resultado
em maior rigidez.
Podemos apreender esses conceitos provenientes da teoria de sistemas
adaptativos complexos a partir da perspectiva dos regimes de historicidade, ou “uma das
condições de possibilidade da produção de histórias” em que “de acordo com as relações
respectivas do presente, do passado e do futuro, determinados tipos de história são
possíveis e outros não” (Hartog 2013[2003]:39).
Todas as sociedades são igualmente históricas, mas se diferem na forma como
experimentam essa historicidade inerente. Sahlins faz uma distinção entre estruturas
performativas e estruturas prescritivas, cada uma delas estando diferentemente aberta
para a história, o que talvez possa ser aplicado às populações do litoral catarinense. As
ordens performativas, segundo ele, “tendem a assimilar-se às circunstâncias
contingentes”, enquanto as ordens prescritivas “tendem a assimilar as circunstâncias a elas
mesmas, por um tipo de negação de seu caráter contingente e eventual” (Sahlins
2011[1985]:14). Inspirado pelo caso havaiano, ele acrescenta que em uma sociedade
performativa, os acontecimentos circunstanciais são valorizados por seu afastamento com
relação aos arranjos existentes no momento, podendo ser manipulados pelos agentes para
a reconstrução das condições sociais; ao passo que em uma sociedade prescritiva nada é
novo, sendo os acontecimentos valorizados por sua similaridade com o sistema
constituído, o qual é projetado sobre eles, mesmo quando o que acontece é sem
precedentes.
Trata-se de experienciar a história como um meio interessante de ação sobre o
presente e sobre o futuro ou, então, como desordem e ameaça às coisas como elas estão.
O que está estreitamente relacionado à forma como se percebe a mudança enquanto
fenômeno: como algo inevitável e bem-vindo, talvez até almejado, ou como algo evitável e
indesejado por seu potencial para a revelação de contradições? Sahlins (2011[1985])
alerta, contudo, para o fato de que esses são apenas tipos ideais; modelos que podem,
inclusive, ser encontrados em uma mesma sociedade – e em geral de fato o são, embora
260
um regime possa se sobressair ao outro – onde existem pontos estratégicos de ação
histórica e outros pontos mais fechados.
Não me surpreenderia se as populações do litoral norte e sul, sob a
monumentalidade soberana dos sambaquis gigantescos, tivessem permanecido mais fiéis
às coisas como elas eram. A forma como a população associada ao sítio Forte Marechal Luz
(Bastos 2009) se manteve circunscrita em torno dela mesma ao longo do tempo, com
pequena variação nos valores
87
Sr/86Sr, bem como a ausência de diferença na dieta dos
indivíduos sepultados no sítio Jabuticabeira II (mais antigo) e Galheta IV (mais tardio)
(Colonese et al. 2014), que apresentaram média semelhantes para os valores δ15N e δ13C,
parecem apontar nesse sentido. Ainda, a continuidade na prática de acrescentar volume
aos sítios mesmo após a alteração no material construtivo (Bendazzoli 2007, Nishida 2007,
Villagran 2012) pode estar relacionada a um desejo de manutenção do mundo como lhes
era conhecido: a tradição deveria continuar, e os gigantescos sambaquis, que outrora
haviam desempenhado papel relevante no desenvolvimento dessas sociedades, podem,
ao fim, ter sido suas próprias armadilhas de rigidez.
Lembro aqui das contradições observadas por Shanks e Tilley (2006 [1982]) e
Shennan (2006 [1982]) entre os princípios estruturais de coletividade e a estratificação
social em sociedades do neolítico e da Idade do bronze europeia. Entendendo os sítios
conchíferos como fruto de um esforço coletivo que deveria estar intimamente relacionado
com o princípio de comunhão de recursos promovido pela centralidade espacial dos
corpos lagunares, poderíamos supor que as sociedades relacionadas aos sítios conchíferos
do litoral norte e sul, como integrantes de sistemas mais coesos e rigidamente
centralizados nos grandes corpos d’água, tenham sofrido mais com a diminuição do nível
do mar. O fechamento das paleolagunas deve ter desafiado a forma como essas
sociedades se organizavam e a ideologia de coletividade então em voga que, mesmo em
crise, continuou sendo alimentada pelas práticas de deposição de sedimento sobre os
sítios, insistentemente, até que em dado momento deve ter se tornado insustentável; mas
aí talvez fosse tarde demais para alterar o direcionamento dos desenrolares.
Tudo isso, contudo, talvez faça mais sentido no contexto do litoral sul. Na porção
litorânea norte a situação me parece mais nebulosa, sendo possível que lá a insistência na
261
continuidade tenha sido mais bem sucedida, ou pelo menos não tão drástica quanto no
litoral sul, onde além da diminuição na quantidade de sítios houve redução assustadora no
número de sepultamentos por sítio – lembrando que essa redução pode também significar
que apenas indivíduos de determinadas posições sociais continuaram sendo sepultados de
acordo com a tradição.
A curva do crescimento negativo no número de sítios concomitantemente ativos no
litoral norte e no litoral sul a partir de 2000 AP, observável nos gráficos apresentados no
capítulo 2, em muito lembra a curva de diminuição na construção de novos monumentos
que caracterizou o colapso dos Maias (Price e Burton 2011:196). Em ambos os casos,
embora as frequências diminuam, a formação de novos sítios ou de novos horizontes
sobre os sítios antigos não cessa, revelando uma presença humana provavelmente menor
na área, porém, continuada. Tal similaridade é, no mínimo, interessante.
Enquanto isso, no litoral central, a diminuição na presença de conchas e a
passagem para sedimento mais escuro frequentemente se deu diretamente sobre o chão,
com a formação de novos sítios libertos da ideia de monumentalidade. Esses novos sítios
foram assentados em praias de águas tranquilas e ilhas, e em geral próximos aos sítios
mais antigos; voltados para o mar, e não mais para os pequenos corpos d’água que
deixaram de existir – com exceção da laguna da Conceição, que existe até os dias de hoje.
A rede de relações se expandiu. A dieta mudou. As práticas mortuárias mudaram. Essas
informações, no entanto, dizem respeito somente aos sítios do sul da ilha de Santa
Catarina escavados por Rohr (1959, 1966, 1974; Rohr e Andreatta 1969) e aos sítios
Laranjeiras II (Schmitz et al. 1993), Cabeçudas (Schmitz e Verardi 1996) e Porto do Rio
Vermelho II (De Masi 2001), que são os únicos sítios tardios e com presença de
sepultamentos que passaram por pesquisas sistemáticas. É de se esperar a existência de
variações entre os processos de mudança dos diferentes subsistemas de sítios que
compõem a paisagem do litoral central, mas, por enquanto, nada pode ser conjecturado
nesse sentido, a não ser a possibilidade de que no entorno da laguna da Conceição os
efeitos sociais da mudança paleogeográfica tenham sido menos drásticos, uma vez que o
corpo d’água em questão continuou existindo.
262
Por fim, em uma tentativa de esclarecer como se deu a diferenciação do contexto
arqueológico do litoral central com relação àqueles das porções litorâneas que lhe são
adjacentes – como um desdobramento natural de toda a investigação e reflexão sobre a
mudança no sítio Armação do Sul e nos demais sítios conchíferos catarinenses – eu diria
que, possivelmente, no litoral central se instaurou um conjunto distinto de relações entre
as populações litorâneas e os demais elementos humanos e não humanos constituintes de
seu meio circundante. Um conjunto de relações que conferiu maior resiliência ao sistema,
favorecido por fatores diversos e inter-relacionados como a organização social mais
descentralizada que se configurou na região; a menor, porém crescente, demografia; o
meio ambiente recortado e multifacetado. Assim, no desenrolamento contextual de
acontecimentos locais, regionais e mesmo globais, o sistema local vivido no litoral central
se reconfigurou em uma nova paisagem, ao passo que os sistemas vividos no litoral sul e,
talvez, também no litoral norte, se desmantelaram.
E isso é tudo o que o labirinto e suas veredas entrecortadas, por ora, nos revelam.
Tudo ao mesmo tempo para eles e tudo ao mesmo tempo para nós; uma realidadepossibilidade tão simples, e ao mesmo tempo tão complexa. Presentes futuros e passados
fantásticos se confundem num inacabamento fenomenológico que certamente não se
encerra por aqui.
263
Referências bibliográficas
AB’SÁBER, A. (2006). Brasil: paisagens de exceção. Cotia, Ateliê Editorial.
ALLÈGRE, C.J. (2008). Isotope Geology. Cambridge, Cambridge University Press. 512pp.
AMARAL, M.M.V. (1995). As oficinas líticas de polimento da Ilha de Santa Catarina.
Dissertação de Mestrado. Porto Alegre, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul. 92pp.
AMBROSE, S.H. (1990). Preparation and Characterization of Bone and Tooth Collagen for
Isotopic Analysis. Journal of Archaeological Science, 17:431-451.
AMBROSE, S.H. (1993). Isotopic analysis of paleodiets: methodological and interpretive
considerations. In: Sandford, M.K. (Ed.). Investigations of Ancient Human Tissue. Gordon
and Breach. p. 59–130.
ARNOLD, J.R.; LIBBY, W.F. (1949). Age determinations by radiocarbon content: checks with
samples of known age. Science, 23(10): 678-680.
ARNOLD, J.E. (1996). The archaeology of complex hunter-gatherers. Journal of
Archaeological Method and Theory, 3(2): 77–126.
ATALAY, S.; HASTORF, C.A. (2006). Food, Meals, and Daily Activities: Food Habitus at
Neolithic Çatalhöyük. American Antiquity, 71(2):283-319.
BAILEY, G. (2007). Time perspectives, palimpsests and the archaeology of time. Journal of
Anthropological Archaeology, 26: 198-223.
BANDEIRA, D.R. (1992). Mudança na estratégia de subsistência: o sítio arqueológico
Enseada I - um estudo de caso. Dissertação de Mestrado. Florianópolis, Universidade
Federal de Santa Catarina. 145pp.
BANDEIRA, D.R. (2004). Ceramistas pré-coloniais da baía da Babitonga, SC – arqueologia e
etnicidade. Tese de Doutorado. Campinas, Universidade Estadual de Campinas. 257pp.
BARTHES, R. (1979). Toward a Psychosociology of Contemporary Food Consumption In:
FOSTER, R.; RANUM, O. (Eds.) (1979). Food and drink in history. Baltimore, John Hopkins
University Press.
BASEI, M.A.S. (1985). O Cinturão Dom Feliciano em Santa Catarina. Tese de Doutoramento.
São Paulo, Universidade de São Paulo. 218pp.
BASTOS, M.Q.R. (2009). Mobilidade humana no litoral brasileiro: análise de isótopos de
estrôncio no sambaqui do Forte Marechal Luz. Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro,
Fundação Oswaldo Cruz. 86pp.
BASTOS, M.Q.R. (2014). Dos sambaquis do sul do Brasil à diáspora africana: estudos de
geoquímica isotópica de séries esqueléticas humanas escavadas de sítios arqueológicos
brasileiros. Tese de Doutorado. Brasília, Universidade de Brasília. 158pp.
BECK, A. (2007 [1973]). A variação do conteúdo cultural dos sambaquis do litoral de Santa
Catarina. Erechim, Habilis. 347pp.
BELL, C. (2009[1992]). Ritual Theory, Ritual Practice. Nova York, Oxford University Press.
BENDAZZOLI, C. (2007). O processo de formação dos sambaquis: uma leitura estratigráfica
do sítio Jabuticabeira II. Dissertação de Mestrado. São Paulo, Universidade de São
Paulo. 246pp.
BENDER, M.M. (1968). Mass Spectrometric Studies of Carbon 13 Variations in Corn and
Other Grasses. Radiocarbon, 10(2):468-472.
BENTLEY, R.A. (2006). Strontium isotopes from the Earth to the archaeological skeleton: a
review. Journal of Archaeological Method and Theory, 13(3): 135-187.
BENTLEY, R.A.; KRAUSE, R.; PRICE, T.D. (2003). Human mobility at the early Neolithic
settlement of Vaihingen, Germany: evidence from strontium isotope analysis.
Archaeometry, 45(3): 471-486.
BIGARELLA, J.J. (1949). Contribuição ao estudo da planície sedimentar da parte norte da
Ilha de Santa Catarina. Arquivos de Biologia e Tecnologia, 4: 108-140.
BINFORD, L. (1962). Archaeology as Anthropology. American Antiquity, 28(2): 217-225.
BINFORD, L.R. (1982). Archaeology of place. In: BINFORD, L.R. (1983). Working at
archaeology. New York, Academic Press. p. 357-377.
BINFORD, L.R.; BINFORD, S.R. (1966). A preliminary analysis of functional variability in the
Mousterian of levallois facies. In: BINFORD, L.R. (1983). Working at archaeology. New
York, Academic Press. p. 71-124.
265
BINFORD, L.R. (1971). Mortuary Practices: Their Study and Their Potential. Memoirs of the
Society for American Archaeology, 25:6-29.
BOCHERENS, H.; DRUCKER, D. (2003). Trophic Level Isotopic Enrichment of Carbon and
Nitrogen in Bone Collagen: Case Studies from Recent and Ancient Terrestrial
Ecosystems. International Journal of Osteoarchaeology, 13:46-53.
BORGES, J.L. (2007 [1970]). Ficções. São Paulo, Globo. 197pp.
BOURDIEU, P. (1967). Estruturas, Habitus e Prática. In: BOURDIEU, P. (2011). A economia
das trocas simbólicas. São Paulo, Perspectiva. 361pp.
BOURDIEU, P. (1989). O poder do simbólico. Rio de Janeiro, Bertrand Brasil. 311pp.
BOURDIEU, P. (2011[1994]). Razões práticas: sobre a teoria da ação. Campinas, Papirus.
224pp.
BRADLEY, R.S.; HUGHES, M.K.; DIAS, H.F. (2003). Climate in Medieval Time. Science,
302:404-405.
BRAUDEL, F. (1984). O Mediterrâneo e o mundo mediterrânico na época de Filipe II. Vol. 1,
2, 3. São Paulo, Martins Fontes.
BRAUDEL, F. (2005 [1992]). Escritos sobre a História. São Paulo, Perspectiva.
BUENO, L.M.R. (2014). Atividades de intervenção no sítio arqueológico Travessão do rio
vermelho, Etapa 1. Relatório de Pesquisa. Universidade Federal de Santa Catarina,
Florianópolis. 14pp.
BUENO, L.; BOND, L.; MENDES, R.; OPPITZ, G.; PEREIRA, T.; BATISTA, J.; BEE, B. (2015).
Florianópolis Arqueológica. Relatório Final. Florianópolis, CNPq/IPHAN. 120p.
CALIPPO, F. (2010). Sociedade sambaquieira, comunidades marítimas. Tese de Doutorado.
São Paulo, Universidade de São Paulo. 290pp.
CARUSO JUNIOR, F. (1989). Geologia e características ambientais da Lagoa da Conceição Ilha de Santa Catarina. Dissertação de mestrado. Curso de Pós-graduação em
Geociências, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 66 pp.
CARUSO JUNIOR, F. (1995). Mapa Geológico e de Recursos Minerais do Sudeste de Santa
Catarina. In: Programa cartas de síntese e estudos de integração geológica. [S.1.]:
DNPM/ MME, vol. 1. 52 pp.
266
CARUSO JUNIOR, F.; AWDZIEJ, J. (1993). Mapa Geológico da Ilha de Santa Catarina – Escala
1:100.000. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Notas técnicas, nº 6. CECO (com
texto explicativo). 28 pp.
CASTILHOS, J.A. (1995). Estudo evolutivo, sedimentológico e morfodinâmico da planície
costeira e praia da Armação – Ilha de Santa Catarina, SC. Dissertação de Mestrado.
Florianópolis Universidade Federal de Santa Catarina.
CASTILHOS, P.V.; SIMÕES-LOPES, P.C. (2005). A capivara, Hydrochoerus hydrochaeris
(Mammalia, Rodentia), no sítio arqueológico SC PRV 02, Ilha de Santa Catarina – Santa
Catarina. Biotemas, 18(2):203-218.
CHAMBERLAIN, A.T. (2006). Demography in archaeology. Cambridge, Cambridge University
Press.
CHAPMAN, R. (2003). Death, society and archaeology: the social dimensions of mortuary
practices. Mortality, 8(3):305-312.
CHAPMAN, J. (2000). Tension at funerals: social practices and the subversion of community
structure in later Hungarian prehistory. In: DOBRES, M. A.; ROBB, J. E. (Eds.). Agency in
archaeology. Londres, Routledge:169-195.
CHARTIER, R. (1990). A História Cultural: entre práticas e representações. Rio de Janeiro,
Bertrand Brasil. 235pp.
CHILDE, V. G. (1945). Directional Changes in Funerary Practices During 50,000 Years. Man,
45: 13-19.
CHILDE, V.G. (1975[1936]). A evolução cultural do homem [Man makes himself]. Rio de
Janeiro, Zahar. 229pp.
CHMYZ, I. (1967). Dados parciais sobre a arqueologia do vale do rio Paranapanema. ln:
Programa Nacional de Pesquisas Arqueológicas: resultados preliminares do primeiro
ano 1965-1966. Museu Paraense Emílio Goeldi, publicações avulsas, Belém, 6: 59-78.
CHMYZ, I. (1968). Considerações sobre duas novas tradições ceramistas arqueológicas no
Estado do Paraná. Anais do Segundo Simpósio de Arqueologia da Área do Prata.
Pesquisas, Antropologia, São Leopoldo, 18:115-125.
CLARKE, D. (1968). Analytical Archaeology. London, Methuen & Co.
CLARKE, D. (1973). Archaeology: the loss of innocence. Antiquity, 47: 6-18.
COLONESE, A.; COLLINS, M.; LUCQUIN, A. ; EUSTACE, M.; HANCOCK, Y.; PONZONI, R. A. R.;
MORA, A.; SMITH, C. ; DeBLASIS, P.; FIGUTI, L.; WESOLOWSKI, V.; PLENS, C. R.; EGGERS,
267
S.; FARIAS, D. S. E.; GLENDHILL, A.; CRAIG, O. E.; (2014). Long-Term Resilience of Late
Holocene Coastal Subsistence System in Southeastern South America. PLOS ONE, 9(4):
e93854.
COMERLATO, F. (1998). Análise espacial das armações catarinenses e suas estruturas
remanescentes: um estudo através da arqueologia histórica. Dissertação de Mestrado.
Porto Alegre, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. 309pp.
COMERLATO, F. (2005) As representações rupestres do litoral de Santa Catarina. Tese de
Doutorado. Porto Alegre, Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. 317pp.
COMERLATO, F. (2007) Sambaquis e a reconstituição paleogeográfica da bacia do rio
Ratones, Florianópolis, SC. Trabalho de Conclusão de Curso. Florianópolis, Universidade
Federal de Santa Catarina, Florianópolis. 90pp.
DANSGAARD, W.; JOHNSEN, S.J.; REEH, N.; GUNDESTRUP, N.; CLAUSEN, H.B.; HAMMER,
C.U. (1975). Climatic changes, Norsemen, and modern man. Nature 255: 24–28.
DeBLASIS, P.; KNEIP, A.; SCHEEL-YBERT, R.; GIANINNI, P.C.; GASPAR, M.D. (2007).
Sambaquis e paisagem: dinâmica natural e Arqueologia regional no litoral do sul do
Brasil. Revista Arqueología Suramericana, 3: 29-61.
DeBLASIS, P. & GASPAR, M.D. (2008/2009). Os sambaquis do sul Catarinense: retrospectiva
e perspectiva de dez anos de pesquisas. Especiaria - Cadernos de Ciências Humanas,
Ilhéus, 20/21 (11/12): 83-125.
DeBLASIS, P.; FARIAS, D.S.; KNEIP, A. (2014). Velhas tradições e gente nova no pedaço:
perspectivas longevas de arquitetura funerária na paisagem do litoral sul catarinense.
Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 24. (no prelo).
DE MASI, M.A.N. (1991). Escavações arqueológicas do Pe. João Alfredo Rohr: o
assentamento da Armação do Sul, SC, Brasil. Dissertação de Mestrado. São Leopoldo,
Universidade do Vale do Rio dos Sinos.
DE MASI, M.A.N. (2001). Pescadores coletores da costa sul do Brasil. Pesquisas,
Antropologia, São Leopoldo, 57. 136pp.
DE MASI, M.A.N. (2009). Aplicações de isótopos estáveis de 18/16O, 13/12C e 15/14N em
estudos de sazonalidade, mobilidade e dieta de populações pré-históricas no sul do
Brasil. Revista de Arqueologia, 22(2): 55-76.
DeMENOCAL, P.B. (2001). Cultural responses to climate change during the Late Holocene.
Science, 292: 667-673.
268
DeNIRO, M.J.; EPSTEIN, S. (1978). Influence of diet on the distribution of carbon isotopes in
animals. Geochimica et Cosmochimica Acta, 42:495-506.
DeNIRO, M.; EPSTEIN, S. (1981). Influence of diet on distribution of nitrogen isotopes in
animals. Geochimica et Cosmochimica Acta, 45:341-351.
DeNIRO, M.J.; SCHOENINGER, M.J.; HASTORF, C.A. (1985). Effect of Heating on the Stable
Carbon and Nitrogen Isotope Ratios of Bone Collagen. Journal of Archaeological Science,
n. 12:1-7.
DIETLER, M. (2005). The archaeology of colonization and the colonization of archaeology:
theoretical challenges from an ancient Mediterranean colonial encounter. In: STEIN, G.J.
(Ed.). (2005). The archaeology of colonial encounters: comparative perspectives. Santa
Fe, School of American Research Press. p. 33-68.
DOUGLAS, M. (1972). Deciphering a Meal. Daedalus, 101: 61-81.
DUARTE, G.M. (1981). Estratigrafia e evolução do Quaternário do plano costeiro norte da
Ilha de Santa Catarina. Dissertação de Mestrado. Porto Alegre, Universidade Federal do
Rio Grande do Sul.
ELIAS, N. (1994[1939]). O processo civilizador Vol. 1: Uma História dos Costumes. Rio de
Janeiro, Jorge Zahar Editor. 277pp.
ERIKSSON, G. (2003). Norm and difference: Stone Age dietary practice in the Baltic region.
Tese de Doutorado. Estocolmo, Stockholm University. 35pp.
EVANS, J.A.; CHENERY, C.A.; FITZPATRICK, A.P. (2006). Bronze age childhood migration of
Individuals near Stonehenge, revealed by strontium and oxygen isotope tooth enamel
analysis. Archaeometry, 48(2): 309-321.
FAHLANDER, F. (2008). A Piece of the Mesolithic: Horizontal Stratigraphy and Bodily
Manipulations at Skateholm. In: FAHLANDER, F.; OESTIGAARD, T. (2008). The Materiality
of Death: Bodies, burials, beliefs. Oxford, Archaeopress.
FAHLANDER, F.; OESTIGAARD, T. (2008). The Materiality of Death: Bodies, burials, beliefs.
Oxford, Archaeopress.
FARIAS, D.S.E. & KNEIP, A. (2010). Panorama arqueológico de Santa Catarina. Palhoça,
Editora Unisul. 306pp.
FARIAS, D.S.E. (2011). Programa de salvamento arqueológico pré-colonial na área de
implantação do loteamento Caravelas, município de Governador Celso Ramos, SC e
Programa de Educação Patrimonial no município de Governador Celso Ramos, SC.
Relatório Final, GRUPEP/UNISUL.
269
FIGUTI, L. (1993). O homem pré-histórico, o molusco e os sambaquis: considerações sobre
a subsistência dos povos sambaquieiros. Revista do Museu de Arqueologia e Etnologia,
São Paulo, 3: 67-80.
FLANNERY, K.V. (1967). Culture History v. Cultural Process: a debate in American
Archaeology. In: LEONE, M.P. (1972). Contemporary archaeology: a guide to theory and
contributions. Carbondale/Edwardsville, Southern Illinois University Press. p. 102-107.
FOGEL, M.; TUROSS, N.; OWSLEY, D.W. (1989). Nitrogen isotope tracers of human
lactation in modern and archaeological populations. Carnegie Institution of Washington,
Annual report of the director of the Geophysical Laboratory (1988-1989).
FOSSARI, T.D. (1985). A indústria óssea na arqueologia brasileira: estudo piloto do material
de Enseada, SC, e Tenório, SP. Dissertação de Mestrado. São Paulo, Universidade de São
Paulo. 270pp.
FOSSARI, T.D. (1987). O povoamento pré-histórico da Ilha de Santa Catarina: 1º Relatório.
Mimeografado. Florianópolis, UFSC, IPHAN, FINEP. 66 pp.
FOSSARI, T.D. (2004). A população pré-colonial Jê na paisagem da Ilha de Santa Catarina.
Tese (Doutorado em Geografia). Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina.
339pp.
GASPAR, M.D. (2004). Sambaqui: arqueologia do litoral brasileiro. Rio de Janeiro, Jorge
Zahar. 89pp.
GASPAR, M.D.; DEBLASIS, P.; FISH, S.K.; FISH, P.R. (2008). Sambaqui (Shell Mound) Societies
of Coastal Brazil. In: SILVERMAN, H.; ISBELL, W. H. The Handbook of South American
Archaeology. New York, Springer. p. 319-335.
GIANNINI, P.C.F. ; VILLAGRAN, X.S. ; FORNARI, M.; NASCIMENTO JÚNIOR, D.R.; MENEZES,
P.M.L.; TANAKA, A.P.B.; ASSUNÇÃO, D.C.; DeBLASIS, P.; AMARAL, P.G.C. (2010).
Interações entre evolução sedimentar e ocupação humana pré-histórica na costa
centro-sul de Santa Catarina, Brasil. Boletim do Museu Paraense Emílio Goeldi, Ciências
Humanas, Belém, 5(1): 105-128.
GINZBURG, C. (2005 [1987]). O queijo e os vermes: O cotidiano e as ideias de um moleiro
perseguido pela Inquisição. São Paulo, Companhia das Letras. 271pp.
GOMES, A.A.O. (2012). Perspectivas interpretativas no estudo das esculturas zoomórficas
pré-coloniais do litoral sul do Brasil. Dissertação de Mestrado. Curitiba, Universidade
Federal do Paraná. 243pp.
270
GOSDEN, C. (2005). What do objects want? Journal of archaeological method and theory,
12(3): 193-211.
GOFFER, Z. (2007). Archaeological chemistry. New Jersey/Canada, John Wiley & Sons.
623pp.
GRUPE, G.; PRICE, D.T.; SCHROTER, P.; SOLLNER, F.; JOHNSON, C.M.; BEARD, B.L.; (1997).
Mobility of Bell Beaker people revealed by strontium isotope ratios of tooth and bone: a
study of southern Bavarian skeletal remains. Applied Geochemistry, 12: 517-525.
GRUZINSKI, S. (2001). O pensamento mestiço. São Paulo, Companhia das Letras. 398 pp.
HANSEL, F.A.; SCHMITZ, P.I. (2006). Classificação e interpretação dos resíduos orgânicos
preservados em fragmentos de cerâmica arqueológica por cromatografia gasosa e
cromatografia gasosa - espectrometria de massas. Pesquisas, Antropologia, São
Leopoldo, 63: 81-112.
HARTOG, F. (2013). Regimes de historicidade: presentismo e experiências do tempo. Belo
Horizonte, Autêntica Editora. 267pp.
HAYS, G.C.; RICHARDSON, A.J; ROBINSON, C. (2005). Climate change and marine plankton.
Trends in Ecology and Environment. V20: 336–344.
HEGMON, M.; KULOW, S. (2005). Painting as agency, style as structure: innovations in
Mimbres pottery designs forms Southern New Mexico. Journal of archaeological
method and theory, 12 (4): 313-334.
HEGMON, M.; PEEPLES, M.A.; KINZIG, A.P.; KULOW, S.; MEEGAN, C.M.; NELSON, M.C.
(2008). Social transformation and its human costs in the Prehispanic U.S. Southwest.
American Anthropologist, 110(3): 313-324.
HEIDEGGER, M. (2008[1927]). Ser e tempo. Petrópolis, Vozes; Bragança Paulista, Ed.
Universitária São Francisco.
HERMENEGILDO, T. (2009). Reconstituição da dieta e dos padrões de subsistência das
populações pré-históricas de caçadores-coletores do Brasil Central através da ecologia
isotópica. Dissertação de Mestrado. Piracicaba, Universidade de São Paulo. 126pp.
HERZ, N.; GARRISON, E.G. (1998). Geological methods for Archaeology. New York/Oxford,
Oxford University Press. 343pp.
HILLSON, S. (2005).Teeth. New York, Cambridge University Press. 373pp.
HOBSBAWM, E.; RANGER, T. (1997). Invenção das tradições. São Paulo, Paz e Terra.
271
HODDER, I. (Ed.) (2006[1982]). Symbolic and structural archaeology. Nova York, Cambridge
University Press.
HODDER, I. (1985). Postprocessual archeology. Advances in Archaeological Method and
Theory, Academic Press, 8: 1-26.
HODDER, I. (1999). Crises in global archaeology. In: HODDER, I. The archaeological process:
an introduction. Oxford, Blackwell Publishers. p. 1-19.
HODDER, I. (2009[1987]). The contribution of the long term. In: HODDER, I. (Ed.).
Archaeology as long-term History. Cambridge, Cambridge University Press. p. 1-8.
HODDER, I.; HUTSON, S. (2003). Reading the past: current approaches to interpretation in
archaeology. Cambridge/New York, Cambridge University Press. 293pp.
HOLDAWAY, S. (2006). Absolute dating. In: BALME J.; PATERSON, A. (Eds.). Archaeology in
practice: a student guide to archaeological analyses. Oxford, Blackwell Publishing, p.
117-158.
HOLLING, C. S. (1973). Resilience and stability of ecological systems. Annual Review of
Ecology and Systematics, 4: 1-23.
HORN FILHO, N.O.; LIVI, N.S. (2012). Geologia e evolução paleogeográfica da planície
costeira da ilha de Santa Catarina em base ao estudo dos depósitos quaternários. V
CONGRESSO BRASILEIRO DE OCEANOGRAFIA, Rio de Janeiro. CDROM Programa
Trabalho 0325. Balneário Camboriú - SC: Associação Brasileira de Oceanografia –
AOCEANO, p. 398-416.
HUBBE, M.O.R. (2005). Análise biocultural dos remanescentes ósseos humanos de Porto do
Rio Vermelho 02 (SC-PRV-02) e suas implicações para a colonização da costa brasileira.
Tese de Doutorado. São Paulo, Universidade de São Paulo. 555pp.
HUBBE, M.; NEVES, W.; OLIVEIRA, E.C.; STRAUSS, A. (2009). Postmarital residence practice
in Southern Brazilian coastal groups: continuity and change. Latin American Antiquity,
20(2):1-12.
HURT, W.R. (1974). The Interrelationships between the natural environment and four
sambaquis, coast of Santa Catarina, Brazil. Occasional Papers and Monographs,
Bloomnigton, Indiana University Museum, 1.
HOGG, A.G.; HUA, Q,; BLACKWELL, P.G.; NIU, M.; BUCK, C.E.; GUILDERSON, T.P.; HEATON,
T.J.; PALMER, J.G.; REIMER P.J.; REIMER, R.W.; TURNEY, C.S.M,; ZIMMERMAN, S.R.H.;
(2013). SHCal13 Southern Hemisphere calibration, 0–50,000 years cal BP. Radiocarbon,
55(4):1889-1903.
272
INGOLD, T. (2002 [2000]). The perception of the environment: essays on livelihood, dwelling
and skill. London, Taylor & Francis e-Library. 465pp.
IZIDRO, J.M. (2001). O jazigo funerário de Içara no contexto litorâneo catarinense.
Dissertação de Mestrado. São Leopoldo, Universidade do Vale do Rio dos Sinos. 155pp.
JOCKYMAN, K. (2015). Sambaquis da Laguna da Conceição e paleoambiente: uma
abordagem geoarqueológica. Dissertação de Mestrado. Florianópolis, Universidade
Federal de Santa Catarina.
KATZENBERG, M.A.; HERRING, D.A.; SAUNDERS, S.R. (1996). Weaning and Infant Mortality:
Evaluating the Skeletal Evidence. Yearbook of Physical Anthropology, 39:177-199.
KATZENBERG, M.A.; HARRISON, R.G. (1997). What's in a Bone? Recent Advances in
Archaeological Bone Chemistry. Journal of Archaeological Research, 5(3):265-293.
KELLY, J.A.; TYKOT, R.H.; MILANICH, J.T. (2006). Evidence for Early Use of Maize in
Peninsular Florida In: STALLER, J.; TYKOT, R.; BENZ, B. (2006). Histories of Maize:
Multidisciplinary Approaches to the Prehistory, Linguistics, Biogeography,
Domestication, and Evolution of Maize. Walnut Creek, Left Coast Press:249-261.
KLÖKLER, D.M. (2001). Construindo ou deixando um sambaqui? Análise de sedimentos de
um sambaqui do litoral meridional brasileiro: processos formativos. Região de Laguna,
SC. Dissertação de Mestrado. São Paulo, Universidade de São Paulo. 164pp.
KLÖKLER, D.M. (2008). Food for body and soul: mortuary ritual in shell mounds (Laguna –
Brazil). Tese de Doutorado, Tucson, Universidade do Arizona. 369pp.
KNEIP, A. (2004). O povo da lagoa: uso do SIG para modelamento e simulação na área
arqueológica do Camacho. Tese de Doutorado, Universidade de São Paulo. 171pp.
KNUDSON, K.J; PRICE, T.D.; BUIKSTRA, J.E.; BLOM, D.E. (2004). The use of strontium isotope
analysis to investigate Tiwanaku migration and mortuary ritual in Bolivia and Peru.
Archaeometry, 46(1): 5-18.
LAGO, P.F. (1968) Santa Catarina: a terra, o homem, a economia. Florianópolis, Ed. UFSC.
LARSEN, C.S. (2006). The agricultural revolution as environmental catastrophe: implications
for health and lifestyle in the Holocene. Quaternary International, 150: 12-20.
LARSEN, C.S. (2015[1997]). Isotopic and elemental signatures of diet, nutrition, and life
history. In: LARSEN, C.S. (2015[1997]). Bioarchaeology: interpreting behavior from the
human skeleton:301-356.
273
LEE, R.B. (1980). Lactation, Ovulation, Infanticide, and Women's Work: A Study of Huntergatherer Population Regulation In: COHEN, M.N.; MALPASS, R.S., KLEIN, H.G. (Eds.)
(1980). Biosocial mechanisms of population regulation. New Haven, Yale University
Press:321-348.
LEE-THORP, J.A.; SEALY, J.C.; VAN DER MERWE, N.J. (1989). Stable Carbon Isotope Ratio
Differences Between Bone Collagen and Bone Apatite, and their Relationship to Diet.
Journal of Archaeological Science, 16:585-599.
LESLIE, P.; MCCABE, J.T. (2013). Response Diversity and Resilience in Social-Ecological
Systems. Current Anthropology, Chicago, 54(2): 114-143.
LESSA, A. (2005). Reflexões preliminares sobre paleoepidemiologia da violência em grupos
ceramistas litorâneos: (i) sítio Praia da tapera – SC. Revista do Museu de Arqueologia e
Etnologia, 15: 199-207.
LESSA, A.; SCHERER, L.Z. (2008). O outro lado do paraíso: novos dados e reflexões sobre
violência entre pescadores-coletores pré-coloniais. Revista do Museu de Arqueologia e
Etnologia, 18:89-100.
LESSA, A.; GASPAR, M.D. (2014). Estratégias de subsistência, complexidade social e
violência entre grupos sambaquieiros do litoral brasileiro. In: MAZZ, J.L.; BERÓN, M.
(Eds.) Indicadores arqueológicos de violencia, guerra y conflicto em Sudamérica.
Montevideo, Universidad de la República. p. 55-76.
LIMA, T.A. (1999/2000). Em busca dos frutos do mar: os pescadores-coletores do litoral
centro-sul do Brasil. Revista da USP, São Paulo, 44: 270-327.
LILLIE, M. (2003). Tasting the forbidden fruit: gender based dietary differences among
prehistoric hunter-gatherers of Eastern Europe. Before Farming, 2003/2(3):1-16.
LOCK, G.; MOLYNEAUX, B.L. (2006). Confronting scale in archaeology: issues of theory and
practice. New York, Springer. 280pp.
MARCUS, J. (2008). The Archaeological Evidence for Social Evolution. Annual Review of
Anthropology, Ann Arbor, 37: 251-266.
MARENGO, J.A.; LIEBMANN, B.; GRIMM, A.M.; MISRA, V.; SILVA DIAS, P.L.; CAVALCANTI,
I.F.A.; CARVALHO, L.M.V.; BERBERY, E.H.; AMBRIZZI, T.; VERA C.S.; SAULO, A.C.;
NOGUES-PAEGLE , J.; ZIPSER, E.; SETH, A.; ALVES, L.M. (2012). Recent developments on
the South American monsoon system. International Journal of Climatology, 32: 1–21.
MENDONÇA DE SOUZA, S.M.F. (2014). Sambaqui People, the Shell Mound Builders of
Brazil: a challenge for paleodemographers. In: ROKSANDIC, M.; MENDONÇA DE SOUZA,
274
S.M.F.; EGGERS, S.; BURCHELL, M.; KLOKLER, D. The cultural dynamics of shell-matrix
sites. Albuquerque, University of New Mexico Press. p. 163-172.
MERLEAU-PONTY, M. (1999 [1945]). Fenomenologia da percepção. São Paulo, Martins
Fontes. 662pp.
MONTGOMERY, J.; EVANS, J.A.; NEIGHBOUR, T. (2003). Sr isotope evidence for population
movement within the Hebridean Norse community of NW Scotland. Journal of the
Geological Society, 160(5): 649-653.
MORAES, C. P.; NEVES, E.G. (2012). O ano 1000: adensamento populacional, interação e
conflito na Amazônia Central. Amazônica. 4 (1): 122-148.
MORRIS, I. (2000). Archaeology as Cultural History: words and things in Iron Age Greece.
Malden/Oxford, Backwell Publishers.
NEVES, W. (1988). Paleogenética dos grupos pré-históricos do litoral sul do Brasil (Paraná e
Sana Catarina). Pesquisas, Antropologia, São Leopoldo, 43. 178pp.
NILSSON STUTZ, L. (2010). The way we bury our dead: Reflections on mortuary ritual,
community and identity at the time of the Mesolithic-Neolithic transition. Documenta
Praehistorica, n. 37:33-42.
NISHIDA, P. (2007). A coisa ficou preta: estudo do processo de formação da terra preta do
sítio arqueológico Jabuticabeira II. Tese de Doutorado. São Paulo, Universidade de São
Paulo. 112pp.
NORA, P. (1993). Entre história e memória: a problemática dos lugares. Revista Projeto
História, v. 10:7-28.
NOVELLO, V.F. (2012). Reconstituição Paleoclimática do Holoceno Recente com Base em
Estalagmites da Região Central do Estado da Bahia. Dissertação de Mestrado. São
Paulo, Universidade de São Paulo. 115pp.
NOVELLO, V.F.; CRUZ, F.W.; KARMANN, I.; BURNS, S.J.; STRÍKIS, N.M.; VUILLE, M.; CHENG,
H.; EDWARDS, R.L.; SANTOS, R.V.; FRIGO, E.; BARRETO, E.A.S. (2012). Multidecadal
climate variability in Brazil’s Nordeste during the last 3000 years based on speleothem
isotope records. Geophysical Research Letters, 39:L23706.
OKUMURA, M.M. (2008). Diversidade morfológica craniana, micro-evolução e ocupação
pré-histórica da costa brasileira. Pesquisas, Antropologia, São Leopoldo, 66. 306pp.
OPPITZ, G. (2011). Vivendo a paisagem: contribuições transdisciplinares para o estudo do
contexto regional de sambaquis do litoral central de Santa Catarina. Trabalho de
Conclusão de Curso. Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina. 137pp.
275
ORTNER, D.J. (2003). Identification of pathological conditions in human skeletal remains.
San Diego, Academic Press. 645pp.
PARKER PEARSON, M. (1999). Learning from the Dead. In: PARKER PEARSON, M. (1999).
The Archaeology of Death and Burial. College Station, Texas A&M University Press.
PARKER PEARSON, M. (2006[1982]) Mortuary practices, society and ideology: an
ethnoarchaeological study In: HODDER, I. (Ed.) (2006[1982]). Symbolic and structural
archaeology. Nova York, Cambridge University Press.
PHILLIPS, P.; WILLEY, G. (1953). Method and theory in American archaeology: an
operational basis for culture-historical integration. American Anthropologist, 55(5)1:
615-633.
PLENS, C.R. (2007). Sítio Moraes, uma biografia não autorizada: análise do processo de
formação de um sambaqui fluvial. Tese de Doutorado. São Paulo, Universidade de São
Paulo. 240pp.
PLENS, C.R. (2009). O papel dos amontoados de conchas no sambaqui fluvial. Revista de
Arqueologia, 22(2): 77-93.
PRICE, T.D.; BURTON, J.H. (2011). An introduction to archaeological chemistry. New York,
Springer. 311pp.
PRICE, T.D.; BURTON, J.H.; BENTLEY, R.A. (2002). The characterization of biologically
available strontium isotope ratios for the study of Prehistoric migration. Archaeometry,
44: 117-135.
PROUS, A. (1992). Arqueologia Brasileira. Brasília, Ed. UNB. 613pp.
REIS, J.C. (1994). Nouvelle Histoire e tempo histórico: a contribuição de Febvre, Bloch e
Braudel. São Paulo, Ed. Ática.
ROHR, J.A. (1966). O sítio arqueológico da praia da Tapera (nota prévia). Pesquisas,
Antropologia, 15, Pesquisas arqueológicas em Santa Catarina:3-20.
ROHR, J.A. (1974). Armação do Sul: três mil anos de história. Correio do Povo, Porto Alegre.
ROHR, J.A. (1977). O sítio arqueológico do Pântano do Sul SC-F-10. Florianópolis, IOESC.
114pp.
ROHR, J.A. (1959). Pesquisas paleo-etnográficas na Ilha de Santa Catarina. Pesquisas, 3:
199-266.
276
ROHR, J.A. (1984). Sítios arqueológicos de Santa Catarina. Anais do Museu de Antropologia,
UFSC, Florianópolis, 17: 77-168.
ROHR, J.A.; ANDREATTA, M. (1969). O sítio arqueológico da Armação do Sul (nota prévia).
In: Anais do Terceiro Simpósio de Arqueologia da Área do Prata. Pesquisas,
Antropologia, 20, Estudos Leopoldenses, 13:135-138.
ROUSE, I. (1953). The strategy of culture-history. In: KROEBER, A.L. (Org.). Anthropology
today: an encyclopedic inventory. Chicago/London, University of Chicago Press. p. 57-76.
ROUSE, I. (1955). On correlation of phases of cultures. American Anthropologist, 55(1):
615-633.
SAHLINS, M. (2003[1976]). La Pensée Bourgeoise In: SAHLINS, M. (2003[1976]) Cultura e
Razão Prática. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor.
SAHLINS, M. (2011[1985]). Ilhas de História. Rio de Janeiro, Zahar. 250pp.
SASSAMAN, K.E. (2004). Complex hunter–gatherers in evolution and history: a North
American perspective. Journal of Archaeological Research, 12(3): 227-280.
SAXE, A.A. (1970). Social Dimensions of Mortuary Practices. Tese de doutorado. Ann
Arbour, University of Michigan. 240pp.
SHANKS, M.; TILLEY, C. (2006[1982]). Ideology, symbolic power and ritual communication:
a reinterpretation of Neolithic mortuary practices. In: HODDER, I. (Ed.). Symbolic and
structural archaeology. Cambridge University Press: Cambridge. p. 129-154.
SHANKS, M.; TILLEY, C. (1992[1987]). Re-constructing archaeology: theory and practice.
London/New York: Cambridge University Press.
SCHEEL-YBERT, R. (1999). Considerações sobre o método de datação pelo carbono 14 e
alguns comentários sobre datação em sambaquis. Revista do Museu de Arqueologia e
Etnologia, São Paulo, 9: 292-301.
SCHEEL-YBERT, R. (2001). Man and vegetation in the Southeastern Brazil during the Late
Holocene. Journal of Archaeological Science, 28(5): 471-480.
SCHEEL-YBERT, R.; EGGERS, S.; WESOLOWSKI, V.; PETRONILHO, C.C.; BOYADJIAN, C.H.;
DeBLASIS, P.A.D.; BARBOSA-GUIMARÃES, M.; GASPAR, M.D. (2003). Novas perspectivas
na reconstituição do modo de vida dos sambaquieiros: uma abordagem multidisciplinar.
Revista Arqueologia, 16: 109-137.
277
SCHERER, L.Z. (2012). Marcadores de estresse músculo-esquelético e mobilidade terrestre
em grupos pré-coloniais litorâneos do sul do Brasil. Dissertação de Mestrado. Rio de
Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 174pp.
SCHMITZ, P.I. (1959). A cerâmica Guarani da Ilha de Santa Catarina. Pesquisas,
Antropologia, São Leopoldo, 3. p. 267-307.
SCHMITZ, P.I.; DE MASI, M.A.N.; VERARDI, I.; LAVINA, R.; JACOBUS, A.L. (1992). O sítio
arqueológico da Armação do Sul. Pesquisas, Antropologia, São Leopoldo, 48. 220pp.
SCHMITZ, P. I.; ROSA, A. O.; IZIDRO, J; M., HAUBERT, F.; KREVER, M. L. B.; BITENCOURT, A.
L.; ROGGE, J. H.; BEBER, M. V. (1999). Içara: um jazigo mortuário no litoral de Santa
Catarina. Pesquisas, Antropologia, São Leopoldo, 55, 164pp.
SCHMITZ, P.I.; VERARDI, I.; DE MASI, M.A.N.; ROGGE, J. H.; JACOBUS, A.L. (1993). O sítio da
praia de Laranjeiras II: Uma aldeia da tradição ceramista Itararé. Pesquisas,
Antropologia, São Leopoldo, 49. 181pp.
SCHMITZ, P.I.; VERARDI, I. (1996). Cabeçudas: Um sítio Itararé no litoral de Santa Catarina.
Pesquisas, Antropologia, São Leopoldo, 53:125-181.
SCHOELLER, D.A. (1999). Isotope Fractionation: Why Aren't What We Eat?. Journal of
Archaeological Science 26:667-673.
SCHOENINGER, M.J.; DeNIRO, M.J.; TAUBER, H. (1983). Stable nitrogen isotope ratios of
bone collagen reflect marine and terrestrial components of prehistoric human diet.
Science, New Series, 220 (4604): 1381-1383.
SCHOENINGER, M.J.; MOORE, K. (1992). Bone Stable Isotopes Studies in Archaeology.
Journal of World Prehistory, 2:247-296.
SEVCENKO, N. (1984). O renascimento. São Paulo, Atual; Campinas, Ed. da Unicamp.
SHENNAN, S. (2006[1982]). Ideology, change and the European Early Bronze Age. In:
HODDER, I. (Ed.). Symbolic and structural archaeology. Cambridge University Press:
Cambridge. p. 151-161.
SILVA, L. C.; BORTOLUZZI, C. A. (Eds.). (1987). Mapa Geológico do Estado de Santa Catarina.
DNPM/CODISC, Florianópolis. 1 mapa color. Escala 1:500.000. In: Série Textos Básicos de
Geologia e Recursos Minerais de Santa Catarina, n. 1.
SMITH, B.N.; EPSTEIN, S. (1971). To Categories of
Physiol. 47:380-384.
13
C/12C Ratios for Higher Plants. Plant
278
SOPHIATI, D. (2010). Os amoladores-polidores fixos na paisagem da Ilha de Santa Catarina.
Dissertação de Mestrado. Instituto Politécnico de Tomar e Universidade de Trás-osMontes e Alto Douro, Tomar e Vila Real. 165pp.
STEWARD, J.H. (1955). Theory of culture change. Urbana, University of Illinois.
STRÍKIS, N.M.; CRUZ, F.W.; CHENG, H.; KARMANN, I., EDWARDS, R.L; VUILLE, M., WANG, X.;
de PAULA, M.S.; NOVELLO, V.F.; AULER, A.S. (2011). Abrupt variations in South
American monsoon rainfall during the Holocene based on speleothem record from
central-eastern Brazil. Geology, 39: 1075-1078.
SUGUIO, K.; MARTIN, L.; BITTENCOURT, A. C. S. P.; DOMINGUEZ, J. M. L.; FLEXOR, J. M. &
AZEVEDO, A. E. G. de. (1985). Flutuações do nível relativo do mar durante o Quaternário
Superior ao longo do litoral brasileiro e suas implicações na sedimentação costeira.
Revista Brasileira de Geociências, 15: 273-286.
TAYLOR, W.W. (1983 [1948]). A study of Archaeology. Carbondale, Southern Illinois
University.
TENÓRIO, M.C. (1991). A importância da coleta de vegetais no advento da agricultura.
Dissertação de Mestrado. Rio de Janeiro, Universidade Federal do Rio de Janeiro.
234pp.
TENÓRIO, M.C. (2004). Identidade cultural e origem dos sambaquis. Revista do Museu de
Arqueologia e Etnologia, São Paulo, 14: 169-178.
TIBURTIUS, G.; BIGARELLA, I.K.; BIGARELLA, J.J. (2011 [1951]). Nota prévia sobre a jazida
paleoetnográfica de Itacoara. In: BIGARELLA, J.J. Sambaquis. Curitiba, Posigraf. p.217248.
VAN GEEL, B.; BUURMAN, J.; WATERBOLK, H.T. (1996). Archaeological and
palaeoecological indications of an abrupt climate change in The Netherlands, and
evidence for climatological teleconnections around - 2650 BP. Journal of Quaternary
Science 11(6): 451-460.
VAN GEEL, B.; BOKOVENKO, N.A.; BUROVA, N.D.; CHUGUNOV, K.V.; DERGACHEV, V.A.;
DIRKSEN, V.G.; KULKOVA, M.; NAGLER, A.; PARZINGER, H.; VAN DER PLICHT, J.; VASILIEV,
S.S.; ZAITSEVA, G.I. (2004). Climate change and the expansion of the Scythian culture
after 850 BC: a hypothesis. Journal of Archaeological Science, 31:1735-1742.
VIEIRA, C.V. (2008). Mapeamento geológico costeiro e evolução paleogeográfica do setor
oriental da folha Garuva, nordeste de Santa Catarina, Brasil. Dissertação de Mestrado.
Florianópolis, Universidade Federal de Santa Catarina. 171pp.
VILLAGRAN, X.S. (2008). Análise de arqueofácies na camada preta do sambaqui
Jabuticabeira II. São Paulo, Universidade de São Paulo. 170pp.
279
VILLAGRAN, X.S. (2012). Micromorfologia de sítios concheiros da América do Sul:
arqueoestratigrafia e processos de formação de sambaquis (Santa Catarina, Brasil) e
concheros (Terra do Fogo, Argentina). São Paulo, Universidade de São Paulo. 493pp.
VUILLE, M.; BURNS, S.J.; TAYLOR, B.L.; CRUZ, F.W.; BIRD, B.W.; ABBOTT, M.B.; KANNER,
L.C.; CHENG, H.; NOVELLO, V.F. (2012). A review of the South American monsoon
history as recorded in stable isotopic proxies over the past two millennia. Climate of the
Past, 8: 1309–1321.
WALKER, B.; SALT, D. (2012). Resilience Thinking: Sustaining Ecosystems and People in a
Changing World. Washington DC, Island Press. 192pp.
WALKER, P. L.; DeNIRO, M. J. (1986). Stable nitrogen and carbone isotopic ratios in bone
collagen as indices of prehistoric dietary dependence on marine and terrestrial
resources in Southern California. American Journal of Physical Anthropology, 71: 51-61.
WEBSTER, G.S. (2008). Culture History: a cultural-historical approach. In: BENTLEY, A.R.;
MASCHNER, H.D.G.; CHIPPINDALE, C. Handbook of Archaeological Theories. Lanham,
Altamira Press. p. 11-27.
WESOLOWSKI, V. (2000). A prática da horticultura entre os construtores de sambaquis e
acampamentos litorâneos da região da Baía de São Francisco, Santa Catarina: uma
abordagem bio-antropológica. Dissertação de Mestrado. São Paulo, Universidade de
São Paulo.
WESOLOWSKI, V. (2007). Cáries, desgaste, cálculos dentários e micro-resíduos da dieta
entre grupos pré-históricos do litoral norte de Santa Catarina. É possível comer amido e
não ter cárie? Tese de Doutorado. Rio de Janeiro, Fundação Oswaldo Cruz. 188pp.
WHITE, C.D.; SCHWARCZ, H.P. (1994). Temporal Trends in Stable Isotopes for Nubian
Mummy Tissues. American Journal of Physical Anthropology, 93:165-187.
WIENER, C. (1876). Estudos sobre os sambaquis do sul do Brasil. Archivos do Museu
Nacional, Rio de Janeiro, 1. p. 10-19.
WILLEY, G.; PHILLIPIS, P. (1958). Method and theory in American Archaeology.
Chicago/London, University of Chicago Press.
WRIGHT, L.E. (2005). Identifying immigrants to Tikal, Guatemala: defining local variability in
strontium isotope ratios of human tooth enamel. Journal of Archaeological Science, 32:
555-566.
ZANINI, L.F.P.; BRANCO, P.M.; CAMOZZATO, E; RAMGRAB, G.E. (1997). Programa
Levantamentos Geológicos Básicos do Brasil. Florianópolis (Folha SG.22-Z-D-V), Lagoa
(Folha SG.22-Z-D-VI), Estado de santa Catarina, Escala 1:100.000. Brasília, CPRM. 252pp.
280
Anexo I:
Exemplo de uma das fichas de registro de
sepultamentos preenchidas por Rohr e Andreatta
Ficha referente ao sepultamento 5.
Acervo documental do Museu do Homem do Sambaqui “João Alfredo Rohr”.
281
Anexo II: Planta baixa geral dos sepultamentos da área I
Na primeira planta
estão os
sepultamentos que
Schmitz et al. (1992)
consideram como
antigos. Na segunda
estão aqueles que os
autores citados
consideram como
novos. Desenho de
Rohr. Fonte: Schmitz
et al. (1992).
282

Documentos relacionados