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46 Diário Económico Sexta-feira 12 Setembro 2008
REPORTAGEM
Em Longyearbyen,
capital de Svalbard,
existem cerca de 1500
motas de neve. A cidade
só tem mais 300
moradores.
À direita, os glaciares
do arquipélago são
a melhor prova dos
efeitos do aquecimento
global no Árctico.
TAGEM
REPOR
Gonçalo Vieira
De
O mundo no fim
do mundo
O arquipélago norueguês de Svalbard, a cerca de mil quilómetros do Pólo Norte,
é um dos testemunhos do aquecimento global do planeta. Um território inóspito,
gelado, com dois milhares de habitantes, onde funciona um centro universitário
que é referência na investigação do meio ambiente do Árctico.
Texto de Jaime Martins Alberto, em Svalbard
Na penúltima linha do ‘guestbook’
deixado à entrada do centro universitário de Longyearbyen, na ilha de
Spitsbergen, capital do arquipélago
norueguês de Svalbard, pode ler-se
o seguinte: “Resumo de Svalbard:
Rochas! Rochas! Rochas! Ursos polares! Rochas! Hei-de voltar”. Na
realidade, a ilha de Spitsbergen, a
cerca de mil quilómetros do Pólo
Norte, não é muito diferente. Excepto na parte final da citação – pouca
gente volta, de facto.
A maioria dos habitantes de
Longyearbyen não vive mais de
dois ou três anos na principal cidade do arquipélago. Há poucos motivos para ficar. Para além de estar
sempre frio – até para os nórdicos –,
há duas regras de ouro que, por
muito entusiasmantes que possam
parecer numa primeira impressão,
cedo se tornam num obstáculo para
uma qualidade de vida saudável: todos os moradores são obrigados,
por lei, a levar uma espingarda ao
ombro de cada vez que saem à rua e
têm de saber conduzir uma mota de
neve. Ambas se explicam pelos argumentos do tal aluno. A espingar-
da serve para matar os ursos polares
– que, por sinal, estão em vias de extinção – que possam descer das
montanhas à procura de comida; as
motas de neve são para a eventualidade de a neve bloquear as estradas.
Para os turistas, claro, é uma aventura. Para os residentes, como se
perceberá, o panorama não é muito
agradável. “Ou se ama ou se odeia. É
preciso tolerância para viver aqui”,
diz ao Diário Económico Havard Julinssen, professor na Universidade
UNIS, que está a meio de um contrato de trabalho que termina na
Primavera de 2010. Depois deverá
voltar ao continente. Como os 357
alunos dos mestrados e doutoramentos que vivem nos antigos dormitórios dos mineiros, em Nybyen,
a três quilómetros da cidade. As ultramodernas instalações do centro
universitário – que custaram 45 milhões de euros em 1993 – são hoje
uma referência na investigação da
vida ambiental do Árctico.
Zona sensível
Nomeadamente do ‘permafrost’, o
solo gelado da região, que tem vin-
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mais um copo. Também não têm
grandes alternativas.
Tradição e petróleo
do a aquecer uma média de 2º centígrados desde o final do século
XIX. Nos próximos 100 anos, estima-se que os efeitos dos gases de
estufa e do dióxido de carbono
provoquem um novo aumento da
temperatura entre os 4º e os 7º.
Tradução (da forma mais simples
possível): o gelo torna-se mais
fino, os glaciares derretem, os
oceanos sobem, as correntes oceânicas passam a circular devagar e a
temperatura da Terra sobe em
proporção. Para além de tudo o
resto (ver infografia).
“O Árctico é muito mais sensível do
que qualquer outra zona do globo”,
explica Gonçalo Vieira, do Centro
de Estudos Geográficos da Universidade de Lisboa. Para o especialista, que estudou o ‘permafrost’ nos
dois pólos, é um dado adquirido
que o aquecimento global é resultado directo da acção humana e não
um mero ciclo da natureza, como
alguns continuam a defender.
O melhor exemplo desta tendência é bem visível no fiorde que banha Svalbard. Há três anos que
não congela no Inverno – apesar
de as temperaturas chegarem aos
14º negativos na cidade e descerem aos -40º nas montanhas. Sessenta por cento deste arquipélago
está coberto de glaciares. Na quinta-feira da semana passada, uma
placa de gelo do tamanho de Manhattan desprendeu-se do Árctico
e ficou à deriva no mar.
Atrás das transformações ambien-
tais vieram as revoluções dos costumes. Se ao longo de todo o século
passado, as minas de carvão foram o
único sustento das famílias que
emigraram para Longyearbyen,
hoje os 1.800 moradores (na sua
maioria noruegueses, mas com uma
grande comunidade tailandesa) dispersaram-se também pelo turismo
e serviços terciários – até porque só
se pode viver ali com emprego garantido. Para isso, o Governo, que
não quer ter idosos junto ao Pólo
Norte, ofereceu aos novos exploradores um verdadeiro paraíso fiscal:
enquanto que no “continente” –
como a Noruega é referida pelos habitantes do gelo – o imposto sobre
os rendimentos ronda os 36%, ali
fica-se pelos 12%. Os ordenados são
mais altos e a média dos preços dos
produtos de consumo é também
mais baixa. Excepto dos bens alimentares, que vêm por avião de
Tromso (no Norte da Noruega)
para não se estragarem nos dois ou
três dias de viagem de barco.
O que não significa que os preços
sejam acessíveis para as bolsas
dos restantes cidadãos europeus.
Preços baratos no país mais caro
do mundo significam que se, por
exemplo, quiser beber uma cerveja na discoteca mais ‘in’ das redondezas – na cave de uma sala
de cinema a cerca de um quilómetro de Longyearbyen –, paga
quase dez euros. Os entusiásticos
jovens noruegueses, e não só,
não se queixam e vão bebendo
Do tempo dos mineiros ficaram as
tradições. “Desde os quatro anos
que queria vir viver para aqui”, diz
Kristin Aknes, que, há dois anos e
meio decidiu deixar Oslo, onde trabalhava num hotel, para fazer o
mesmo em Longyearbyen. Pelo
meio seguiu os passos de todas as
mulheres que a precederam: engravidou e tornou-se noiva de um mineiro. “É uma daquelas histórias
que já todos ouvimos”, acrescenta
Aknes, 31 anos, atrás do balcão da
recepção e vestida com a farda do
hotel Spitsbergen. E sem sapatos, ritual cumprido por todos dentro de
casa ou de qualquer outro edifício
em Svalbard. Uma tradição que
também vem dos mineiros, que se
habituaram a deixar as botas à porta
de casa para não deixarem restos de
carvão no chão onde os filhos brincavam.
Falar do Norte da Noruega é falar
também de petróleo – de muito petróleo. O terceiro maior exportador
do mundo não quer, contudo, grandes conversas a esse respeito. Os
seus líderes conhecem melhor do
que ninguém a contradição de estar
neste ‘ranking’, enquanto tentam
manter o país na liderança do combate às transformações ambientais.
Em Svalbard, a questão torneou-se
de outra forma. No início do ano, o
governo inaugurou uma espécie de
Arca de Noé dedicada a sementes
de todo o mundo (ver caixa) e lançou um projecto de reformulação
das fábricas de carvão, onde o dióxido de carbono produzido vai passar
a ser “enterrado” no subsolo em vez
de expelido para a atmosfera. Além
disso, o executivo norueguês traçou
ainda a ambiciosa meta de, até 2025,
transformar a produção de minério
da ilha em hidrogénio.
“O Árctico é muito mais sensível
do que qualquer outra zona do
globo”, diz o investigador português
Gonçalo Vieira. Para
o especialista, é um dado adquirido
que o aquecimento global é resultado
directo da acção humana.
“Temos que dar o exemplo”, afirma
Ole Holck, 65, diácono da Igreja da
Noruega, que passou o último fimde-semana na “pérola do Árctico”
para participar numa conferência
sobre ética ambiental. Mais do que
os tradicionais argumentos religiosos, Holck procura sensibilizar a
opinião pública através do simples
respeito pela natureza. E pela ciência. “Estamos aqui para aprender.
Temos que saber o que se passa.
Não podemos continuar a destruir a
vida de tantas espécies. Não temos
esse direito”, conclui, enquanto se
apressa a caminho da Igreja, no topo
da cidade, onde vai assistir à missa
daquela manhã de domingo. ■
A arca das sementes
■ Bem no alto na montanha, longe do nível do mar
e a alguns quilómetros de Longyearbyen, há uma
entrada estreita em betão que se enterra na
encosta. Lá dentro, está o maior reservatório de
sementes do mundo, que preserva plantas de
agricultura a 100 metros de profundidade sob o
solo ártico – onde a temperatura está abaixo dos 18
graus e consegue resistir ao aquecimento global.
Na inauguração dos 4.500 metros cúbicos
escondidos no subsolo, em Fevereiro, Durão
Barroso, enquanto presidente da Comissão
Europeia, descreveu o cofre como “um jardim do
Éden glacial”. No futuro, que se prevê incerto no
que toca à biodiversidade, muitos países poderão
recuperar, deste modo, as suas culturas tradicionais.
Uma oferta do governo da Noruega ao mundo.
Infografia: Marta Carvalho | [email protected]