Carlos Chagas e o enigma do Prêmio Nobel
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Carlos Chagas e o enigma do Prêmio Nobel
Carlos Chagas e o Enigma do Prêmio Nobel Carlos Chagas and the Nobel Prize Enigma Cristina B. M. F. Gurgel1, Christiane Vanessa Magdalena2, Larissa Fabbri Prioli2 Resumo A indicação ao prêmio Nobel de Medicina ocorreu pelo menos duas vezes para o brasileiro Carlos Chagas: 1913 e 1921. A história desta última indicação encontrase envolvida em mistério, que culminou com a ausência da premiação do Nobel de Medicina em 1921. Assim, objetivamos descrever as circunstâncias que possam ter comprometido o laureio do pesquisador, e para tal foi realizada extensa revisão bibliográfica, a partir das bases de dados Scielo, Medline e Lilacs. O descobridor da Doença de Chagas recebeu muitas premiações internacionais, mas em seu próprio país foi alvo de ataques de um grupo opositor na Academia Nacional de Medicina. Ali se questionava sobre a verdadeira existência do mal, sua extensão no país e a paternidade de sua descoberta. Tais intrigas possivelmente resultaram na negação do prêmio Nobel em 1921. Carlos Chagas, responsável pela descrição de uma das mais importantes doenças infectoparasitárias que atingem a população latino-americana, não foi reconhecido em primeira instância no Brasil. Ignorada sua contribuição à ciência, retardou-se o ensino desse mal nas universidades. Sem controle, a doença vitimou milhares de pessoas que poderiam ter sido poupadas. Palavras-Chave Carlos Chagas; prêmio Nobel; doença de Chagas; história da medicina. Abstract Carlos Chagas was nominated twice for the Nobel Prize of Medicine, in 1913 and 1921. The story of the second nomination was a mystery that ended without Medicine awarding in 1921. Thus, we aim here to describe the circumstances that could have compromised the academic honor of the researcher, and so we carried out an extensive bibliographical review. The discoverer of Chagas disease also called American trypanosomiasis received several international awards, but in his homeland he was the aim of critics by a group of opponents in the Academia Nacional de Medicina (national academy of medicine). There were many doubts about the real existence of such disease, its extension in the country and its real discoverer. Such intrigues have possibly resulted in the refuse to award him with the Nobel Prize in 1921. Carlos Chagas, who is responsible for describing one of the most important infectious disease that affect the Latin-American population, was not acknowledged at first in Brazil. Mestre em Clínica Médica. Professora Assistente de Clínica Médica da Pontifícia Universidade Católica de Campinas – SP e Médica Assistente de Cardiologia do Hospital e Maternidade Celso Pierro – Pontifícia Universidade Católica de Campinas – SP. End: Rua MMDC, n 47 apt. 101. Cep: 13025-130 E-mail: [email protected] 2 Graduanda da Faculdade de Medicina da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. 1 Cad. Saúde Colet., Rio de Janeiro, 17 (4): 799 - 809, 2009 – 799 C r i s t i n a B. M . F. G u r g e l , C h r i s t i a n e V a n e ss a M a g d a l e n a , L a r i ss a F a b b r i P r i o l i As his contribution to science was ignored, the teaching of this disease in universities was delayed. Without any control, the disease caused thousands of deaths that could have been avoided. Key words Carlos Chagas; Nobel prizes; Chagas´ disease; History of medicine. 1. Introdução Se o sueco Alfred Nobel não tivesse travado uma batalha com sua própria consciência, ele seria eternamente conhecido como um homem difícil e inteligente, que construiu fortunas a partir da invenção da dinamite. Quis o destino que o empresário lesse seu próprio obituário, publicado por engano em um jornal. Nobel não gostou do que viu. Ele não queria ser lembrado como o causador de tantos infortúnios e por isso articulou uma estratégia para apagar a imagem negativa que detinha. Com a riqueza que acumulara ao longo de sua vida, em fins do século XIX viabilizou a concessão de uma premiação anual para indivíduos que tivessem contribuído para o bem da humanidade. A partir de 1901, o Prêmio Nobel passou a ser conferido àqueles que alcançaram importantes conquistas nas áreas de física, química, fisiologia, medicina, literatura e paz (Fundação Nobel, 2008; Lima, 2008). A premiação é coordenada pela Fundação Nobel, localizada no Instituto Karolinska, em Estocolmo (Suécia), e consiste em uma medalha de ouro, um diploma com a citação da condecoração e uma retribuição monetária equivalente a um milhão de euros (Fundação Nobel, 2008). Entretanto, nada é comparado à honra de ser laureado, motivo de orgulho pessoal, institucional e nacional, uma vez que o país do ganhador sente-se também premiado, apesar de a intenção de Nobel ter sido completamente inversa. O sistema de indicação e escolha é intrincado, obedecendo às normas rigidamente preestabelecidas. Anualmente a Comissão do Nobel envia convites individuais para centenas de “nomeadores” de diversos países para que indiquem candidatos à premiação. Não é permitida a autoindicação. Em Estocolmo, uma assembleia com cinquenta membros analisa cada nome e é a responsável final pela seleção do premiado. Todo o trâmite, desde a indicação dos candidatos até a escolha definitiva, tem duração de mais de um ano. As cerimônias ocorrem naquela mesma cidade e o prêmio é entregue pelo Rei da Suécia. Exceção é o Prêmio Nobel da Paz, entregue em Oslo pelo presidente do Comitê Norueguês (Fundação Nobel, 2008). A premiação pode ser individual ou compartilhada entre até três pesquisadores e, se não outorgada em um determinado ano, podem ser concedidos dois prêmios 800 – Cad. Saúde Colet., Rio de Janeiro, 17 (4): 799 - 809, 2009 Carlos Chagas e o Enigma do Prêmio Nobel da mesma categoria no ano seguinte. O estatuto da Fundação Nobel determina ainda que as informações sobre as nominações, investigações e opiniões relatadas durante o curso de premiação sejam divulgadas publicamente apenas cinquenta anos após a indicação. Apesar de austeros, os critérios básicos para a eleição do laureado são objetivos e baseiam-se nos méritos pessoais do pesquisador independentemente de sua nacionalidade, raça ou ideologia (Fundação Nobel, 2008). A indicação de tão importante prêmio ocorreu pelo menos duas vezes para o brasileiro Carlos Chagas. Contudo, uma delas encontra-se envolvida em um mistério, culminado com a ausência de premiação do Nobel de Medicina em 1921. Neste artigo objetivamos descrever as circunstâncias das indicações oficiais de Carlos Chagas, em especial o enigma de 1921. Para tal, foi realizada extensa revisão bibliográfica de artigos, livros e jornais da época desde sua primeira recomendação, em 1913. O levantamento de dados bibliográficos foi realizado por meio de dados das fontes Scielo, Medline e Lilacs entre os anos de 1996 a 2008, utilizando descritores como história de “Carlos Chagas”, “Carlos Chagas e Indicações”, “Carlos Chagas e Prêmio Nobel”, “Doença de Chagas/ Descoberta”. Tal busca bibliográfica foi realizada em 2008; foram encontrados 18 artigos em revistas médicas, dois livros e 19 matérias em jornais da época (Jornal do Commercio, A Ephoca, A Noite, A Rua, Gazeta de Notícias, O Imparcial, Correio da Manhã). 2. Carlos Chagas: biografia e descoberta Carlos Ribeiro Justiniano Chagas nasceu em Oliveira-MG em 1878 e doutorou-se pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro em 1903. Sua formação médica foi certamente influenciada pelas profundas transformações no ensino universitário realizadas naquela instituição pelo Visconde de Sabóia, entre 1882 e 1889. O período administrado por este diretor foi considerado áureo – ele havia conseguido – reformar e aumentar as instalações da Faculdade, criar a Policlínica do Rio de Janeiro e, principalmente, mudar o currículo, então considerado ultrapassado. Sabóia estendeu o número de cadeiras para 26, introduziu aulas práticas e livres, dentre elas de Anatomia Patológica, e introduziu a Medicina Experimental. Todas essas medidas foram de fundamental importância para as gerações de médicos que passaram a se formar, testemunhas e protagonistas de uma época de incrível desenvolvimento da medicina, especialmente nas áreas de microbiologia e parasitologia (Brenes, 1991; Edler, 1992). Desde o final do século XIX, vários agentes infecciosos haviam sido descobertos e em todo o mundo as pesquisas aconteciam de forma acelerada, com o objetivo de encontrar não apenas o agente agressor, mas seus mecanismos de transmissão, fisiopatologia e combate às doenças por eles causadas (Lyons et al.,1997). Cad. Saúde Colet., Rio de Janeiro, 17 (4): 799 - 809, 2009 – 801 C r i s t i n a B. M . F. G u r g e l , C h r i s t i a n e V a n e ss a M a g d a l e n a , L a r i ss a F a b b r i P r i o l i Ainda aluno, Chagas ingressou no Instituto Soroterápico de Manguinhos (posteriormente Oswaldo Cruz) para adquirir habilidades na área de medicina experimental. Esse instituto fora criado entre 1899/1900 para desenvolver soros e vacinas em um período em que o Brasil estava infestado de epidemias e navios recusavam-se a ancorar em nossos portos pelos perigos à saúde de seus tripulantes. Um dos maiores problemas era a malária. O pesquisador preparou sua tese de doutoramento em estudos hematológicos no impaludismo, que, defendida com eficiência, proporcionou o reconhecimento de seu orientador, Oswaldo Cruz, então diretor de Manguinhos. Este o encaminhou para Santos, onde a malária grassava entre os operários da Companhia Docas com tal violência que as obras do porto tiveram de ser paralisadas. Chagas alcançou seu objetivo com sucesso quando, além de outras medidas profiláticas, usou pela primeira vez o piretro, um inseticida de origem vegetal, no combate ao mosquito transmissor (Chagas Filho, 1993). Em 1907, foi convidado a controlar a malária em Lassance, um vilarejo no norte de Minas Gerais. Ali, a doença igualmente dizimava os operários da linha férrea Central do Brasil e era preciso combater o mal antes que causasse incrível mortandade. Em meio aos trabalhos, o chefe da comissão de engenheiros Cantarino Mota apresentou ao cientista um inseto hematófago e de hábitos noturnos chamado de barbeiro pela população local. Motta também alertou o pesquisador sobre o fato desses insetos infestarem especialmente as casas de vítimas de bócio e de retardo mental (Coutinho et al., 1999; Dias, 2000; Lewinsohn, 1981; 2000). Movido pela curiosidade, o pesquisador capturou alguns desses insetos e, levando-os ao seu improvisado laboratório num vagão de trem, pesquisou o tubo digestivo dos barbeiros. Ali encontrou um protozoário pertencente à espécie Trypanosoma e, para estudar sua capacidade de infecção em mamíferos, Chagas enviou alguns insetos infectados para Manguinhos. Na instituição, Oswaldo Cruz contaminou saguis – animais isentos de infecção por qualquer outro tipo de protozoário – e constatou o adoecimento destes animais. Em homenagem a Oswaldo, o novo parasita encontrado foi batizado pelo pesquisador de Trypanosoma cruzi. No dia 14 de fevereiro de 1909, Chagas consultou aquele que seria o primeiro caso humano comprovado da parasitose: uma garota de dois anos (Berenice) que apresentava febre alta, hepatoesplenomegalia e edema duro no rosto. Pesquisando seu sangue periférico, pôde encontrar o Trypanosoma cruzi, comprovando a existência de uma nova moléstia tropical humana (Salgado, 1962; Lewinsohn, 1981; 2000; Coutinho et al., 1999; Dias, 2000). 802 – Cad. Saúde Colet., Rio de Janeiro, 17 (4): 799 - 809, 2009 Carlos Chagas e o Enigma do Prêmio Nobel O inusitado na descoberta dessa tripanossomíase – que, por influência do presidente da Academia Nacional de Medicina Miguel Couto, veio a ser conhecida por Doença de Chagas – está no caminho inverso de sua pesquisa, iniciada sequencialmente pelos estudos do inseto, do parasita que o infectava, da capacidade de infecção em animais e por fim a descoberta da doença humana. Desta forma, foram apresentados pelo mesmo pesquisador o agente etiológico, os mecanismos de transmissão, a epidemiologia, os sintomas em suas diferentes formas clínicas, a anatomia patológica e posteriormente sua profilaxia (Coutinho et al., 1999; Dias, 2000; Lewinsohn, 1981; 2000). Carlos Chagas, como membro das Academias de Medicina do Brasil, Lima, Nova York e Paris, manteve-se atuante por toda a sua vida. Em 1917, com a morte de Oswaldo Cruz, assumiu a diretoria de Manguinhos. Em 1918 atuou incansavelmente na epidemia de gripe espanhola, criando hospitais de emergência no Rio de Janeiro e prestando assistência à população. Entre 1920 e 1926, exerceu o cargo de diretor-geral do Departamento de Saúde Pública do Rio de Janeiro, aprimorando o serviço sanitário da cidade e organizando serviços especializados de combate à tuberculose, hanseníase e doenças venéreas, que grassavam entre a população. Em 1925 iniciou sua atividade como professor na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, onde instituiu a cadeira de Medicina Tropical. Morreu subitamente em 1934, aos 55 anos. 3. Os prêmios e as polêmicas Carlos Chagas foi consagrado internacionalmente como um grande pesquisador. Ele jamais fez algum intercâmbio em instituição fora do Brasil que, reconhecidamente, não possuía nenhuma tradição para a pesquisa. Em 1912 foi agraciado com o prêmio Schaudinn, conferido a cada quatro anos pelo Instituto de Moléstias Tropicais de Hamburgo, Alemanha, para os melhores pesquisadores nas áreas de protozoologia e microbiologia (Coutinho et al., 1999). O feito do brasileiro não foi pequeno. Concorriam ao prêmio nada menos que Erlich e Metchnikoff (laureados com o prêmio Nobel em 1908, por seus trabalhos sobre imunologia), Laveran (ganhador do Nobel em 1907 pelo estudo sobre o papel dos protozoários nas doenças), Nicolle (laureado em 1928 por suas pesquisas sobre o tifo) e Leishman (que descreveu o agente do calazar). A comissão julgadora era formada por vários cientistas, dentre eles, Koch (Nobel em 1905, por suas pesquisas sobre tuberculose), Ross (Nobel em 1902, pelo estudo sobre a contaminação do organismo humano pela malária) e Golgi (Nobel em 1906, pelos trabalhos sobre a estrutura do sistema nervoso). Companheiros e juízes de peso que enalteceram ainda mais a figura de Chagas. Cad. Saúde Colet., Rio de Janeiro, 17 (4): 799 - 809, 2009 – 803 C r i s t i n a B. M . F. G u r g e l , C h r i s t i a n e V a n e ss a M a g d a l e n a , L a r i ss a F a b b r i P r i o l i Durante sua primeira viagem aos Estados Unidos, a convite da Fundação Rockefeller para professar um curso de Medicina Tropical na Universidade de Harvard, Chagas foi laureado com o título honoris causa (1921). Dois anos depois, recebeu o prêmio hors-concours pelos seus trabalhos sobre saúde pública e doenças tropicais, expostos na conferência comemorativa do centenário de Pasteur, em Estrasburgo (Chagas Filho, 1993). Em 1925, a Universidade de Hamburgo lhe conferiu a medalha de ouro do prêmio Kummel. Dentre as homenagens que Chagas recebeu, uma das que lhe deu maior satisfação foi prestada pelo rei Alberto, da Bélgica. Em 1921 o rei prestigiou os serviços realizados no Instituto de Manguinhos e entregou-lhe pessoalmente as insígnias de comendador da Ordem da Coroa Belga (Chagas Filho, 1993). Enquanto no exterior Chagas era homenageado por seu mérito científico, no Brasil surgia um grupo opositor, que foi responsável pela grande polêmica vivida na Academia Nacional de Medicina entre os anos de 1922 e 1923. Em seu livro “Meu Pai”, Chagas Filho cita um episódio ocorrido no Instituto de Manguinhos em 1910, que pode ter sido o estopim para a formação de uma ferrenha oposição ao cientista (Chagas Filho, 1993). Rocha Lima, pesquisador de Manguinhos que viria a descobrir o agente causal do tifo exantemático, partiu para a Europa deixando a função de Chefe de Serviço, vaga cobiçada por muitos pesquisadores do Instituto, dentre eles Figueiredo de Vasconcellos. Realizado o concurso para ocupação do cargo, Chagas, um dos mais novos integrantes do laboratório, foi o escolhido. Com a morte de Oswaldo Cruz em 1917, o pesquisador foi designado como diretor do Instituto e mais tarde também para a chefia do Departamento Nacional de Saúde Pública. Foi a gota d’agua para Afrânio Peixoto, que almejava esta importante posição política. Ele passou a liderar, juntamente com Figueiredo Vasconcellos e Parreiras Horta, um grupo antagonista a Chagas, que encontrou os elementos necessários para denegrir a imagem do pesquisador nas críticas de Rudolph Kraus (Chagas Filho, 1993). Este consagrado bacteriologista da Universidade de Viena, que então exercia o cargo de diretor do Instituto de Bacteriologia de Buenos Aires, colocara em dúvida a existência da Doença de Chagas. Kraus alegava ter encontrado barbeiros infectados no Chaco argentino, mas não a ocorrência de casos de enfermidade humana (Chagas Filho, 1993). Contestava também alguns itens sobre a divisão inicial das formas clínicas da doença feita por Chagas – distúrbios endócrinos, neurológicos e cardíacos. Chagas defendera que o bócio tireoidiano, afecção então bastante comum no interior do Brasil, era causada pela tripanossomíase e chegou a referir-se à doença como tireoidite parasitária. Kraus contestou as 804 – Cad. Saúde Colet., Rio de Janeiro, 17 (4): 799 - 809, 2009 Carlos Chagas e o Enigma do Prêmio Nobel formas endócrina e nervosa e defendeu que elas, na realidade, correspondiam ao bócio e cretinismo endêmicos, já descritos na Europa. Para explicar a ausência de tripanossomíase na Argentina, o cientista e seus colaboradores apresentaram a hipótese de que naquele país o T. cruzi teria sua violência atenuada, provavelmente em função do clima. Estas colocações puseram em dúvida a própria definição da doença de Chagas, principalmente em sua fase crônica, enquanto entidade clínica diferenciada (Kropf, 2008). Em 1916, no I Congresso Médico Nacional realizado em Buenos Aires, Chagas defendeu seu conceito geral da doença, mas iniciou ali uma importante revisão de suas ideias, ao minimizar os sinais tireoidianos e reforçando os elementos cardíacos da fase crônica da doença. Em publicação posterior, apresentou a etiologia parasitária do bócio como passível de revisão e deixou definitivamente de mencionar a doença como tireoidite parasitária. Se Chagas, elegante e sutilmente admitiu seu erro – o que em absoluto minimiza a importância e a dimensão de sua descoberta – Kraus também o fez ao afirmar publicamente seu equívoco sobre a ausência da tripanossomíase em território argentino (Kropf, 2008). Anos mais tarde os pesquisadores Salvador Mazza e Cecílio Romaña comprovaram definitivamente a grande extensão da moléstia naquele país. A contenda, que seria normal entre dois cientistas, foi deliberadamente aproveitada para a criação de um ambiente de inquietação e dúvidas e aqueceu os já bastante exacerbados debates nacionalistas da década de 1920. O cerne dessa questão foi a exposição nua e crua das péssimas condições de saúde no interior do Brasil, e criaram-se assim outros dois polos antagônicos: o dos apaixonados defensores da resolução de tamanha tragédia e o dos que preferiam esconder os problemas nacionais aos olhos estrangeiros. No choque entre a ciência e a política, o clima gerado permitiu que alguns médicos confrontassem os achados de Chagas, supostamente ancorados pelos estudos argentinos e, para completar, o acusaram de antipatriótico por expor a saúde pública do país desta maneira (Kropf, 2008). Havia ainda aqueles que sequer acreditavam na existência da tripanossomíase, seja por desconhecimento da doença ou porque seus interesses pessoais assim não o permitiam. Baseados nas pesquisas de Kraus, Parreiras Horta passou a fazer declarações claramente tendenciosas, cheias de erros biológicos e geográficos que confundiram a opinião pública. Os integrantes da Academia Nacional de Medicina compraram uma disputa de caráter essencialmente pessoal com a finalidade de denegrir a imagem de Chagas. Ridiculamente, após terem negado a existência da doença, atribuíram sua descoberta a Oswaldo Cruz. Tal afirmação foi negada pelo próprio filho de Oswaldo, Bento Cruz, que escreveu: “Julgo cumprir um dever declarando, em Cad. Saúde Colet., Rio de Janeiro, 17 (4): 799 - 809, 2009 – 805 C r i s t i n a B. M . F. G u r g e l , C h r i s t i a n e V a n e ss a M a g d a l e n a , L a r i ss a F a b b r i P r i o l i nome de minha família e no meu próprio, que Oswaldo Cruz atribuiu sempre essa descoberta, integralmente, ao Dr. Carlos Chagas[...]” (Chagas Filho, 1993, p. 199). Em função das dúvidas lançadas por Afrânio Peixoto e seus companheiros, em discurso na Academia Nacional de Medicina sobre a importância da tripanossomíase e sua extensão, Chagas solicita uma comissão para verificar todos os trabalhos realizados. Trouxe da região de Lassance, 40 pacientes que ficaram internados no Rio de Janeiro, para que assim seus opositores pudessem comprovar o quadro clínico da doença. Mas alguns destes alegaram que aqueles eram a totalidade de pacientes portadores existentes. Em dezembro de 1923 a palavra final na Academia foi de Carlos Chagas, que encerrou essa discussão em longa conferência reafirmando e explicitando os seus conceitos, ao mesmo tempo em que analisava os deslizes cometidos por seus inimigos em suas críticas infundadas (Lewinsohn, 2003). Essa campanha contra Chagas, ocorrida entre 1922-23, coincidiu na época com sua segunda nomeação ao Prêmio Nobel, que de certa forma deve ter influenciado na decisão do Comitê Nobel. De acordo com a biografia de Salvador Mazza, o historiador Jobino Pedro Sierra afirma: “Em 1921, [Chagas] foi proposto para o Prêmio Nobel de Medicina e, quando tudo indicava que lhe seria concedido, influências interferiram. O Instituto sueco havia-se dirigido a entidades científicas do Brasil, solicitando dados sobre a sua personalidade e a sua obra; porém alguns dos seus próprios compatriotas objetaram. Nesse ano, o cobiçado louro mundial de medicina não foi concedido a ninguém” (Lewinsohn, 2003, p. 258). 4. Carlos Chagas perdeu o Nobel? A indicação de Chagas por Manoel Augusto Hilário de Gouvêa, médico otorrinolaringologista do Rio de Janeiro e membro da Academia, ao Nobel de 1921 foi confirmada por Nils Ringertz, secretário da comissão Nobel para Fisiologia e Medicina. Sua indicação havia sido examinada por Gunnar Hedén, que aparentemente fez um relatório oral à comissão. Em seu livro “Três Epidemias. Lições do Passado”, Lewinsohn relata que, tentando descobrir alguma informação adicional sobre o mistério do Prêmio negado a Chagas, enviou cartas para Estocolmo. Nelas incluiu o histórico da descoberta da doença de Chagas, além de cartas de credenciamento da OMS, da FIOCRUZ e da UNICAMP, pedindo a permissão para examinar os arquivos do Comitê Nobel. Muitas foram as tentativas da pesquisadora, até receber a seguinte resposta: 806 – Cad. Saúde Colet., Rio de Janeiro, 17 (4): 799 - 809, 2009 Carlos Chagas e o Enigma do Prêmio Nobel “Prezada doutora Lewinsohn, pelo que entendemos, V.S deseja examinar nossos arquivos para obter a informação a respeito do doutor C. C. Ele foi nomeado por uma pessoa em 1913 e por outra em 1921. Em 1921, houve uma avaliação. Este é todo material existente em nossos arquivos a respeito dele. Nós poderíamos copiar as nomeações e a avaliação e enviá-las a V.S.[...]” (Lewinsohn, 2003, p.260). Ao receber as cópias prometidas pelo Nobel Office, os documentos eram referentes apenas às nomeações. Em relação à avaliação feita na segunda nomeação, Estocolmo afirmava tratar-se apenas de uma avaliação verbal. Surpresa com o episódio, a pesquisadora questiona por que o secretário do Comitê teria oferecido um documento que, provavelmente, existia em seu arquivo e depois de alguns dias alegava ser inexistente. Certamente essa história é estranha e torna-se um grande enigma difícil de ser descoberto, uma vez que o próprio Comitê desconhece ou omite os verdadeiros fatos (Lewinsohn, 2003). Em relação à nomeação de 1913 por Pirajá da Silva, também confirmada por Nils Ringertz, muito pouco pudemos encontrar na literatura. Apenas acreditavam que a indicação ainda fosse prematura, necessitando de mais estudos sobre a doença, pois até 1912, somente 14 trabalhos haviam sido publicados sobre a entidade, sendo 12 do próprio Chagas (Dias, 2000). Sobre a nomeação não oficial de 1934, formou-se um movimento na Europa liderado pelo hematologista Gustavo Pitaluga, que escreveu para Chagas pedindo todas as suas publicações e o seu currículo para ser apresentado ao Comitê como possível candidato ao Prêmio Nobel de 1936. Devido ao seu falecimento em novembro de 1934 e sendo o prêmio não atribuído postumamente, a nomeação não pôde ser levada a termo (Chagas Filho, 1993; Coutinho, 2008; Freire, 1999). 5. Conclusão O brilhante pesquisador Carlos Chagas, responsável pela descrição de uma das mais importantes doenças que atingem a população latino-americana, acometendo, hoje, cerca de 12 a 14 milhões de pessoas na América Latina, sendo 3,5 milhões no Brasil (Dias, 2000), foi consagrado internacionalmente recebendo diversas premiações e titulações. Porém, em seu próprio país, suas contribuições à ciência não foram valorizadas em primeira instância. A consequência imediata foi o retardo do ensino sobre a doença nas universidades e, por conseguinte, o desconhecimento dos novos médicos formados sobre uma doença essencialmente rural na época de sua descoberta. O Brasil litorâneo, mais populoso e com mais recursos, dava as costas para o Brasil do interior, pobre e abandonado pelo poder público de então. Cad. Saúde Colet., Rio de Janeiro, 17 (4): 799 - 809, 2009 – 807 C r i s t i n a B. M . F. G u r g e l , C h r i s t i a n e V a n e ss a M a g d a l e n a , L a r i ss a F a b b r i P r i o l i A polêmica da descoberta da doença de Chagas na Academia Nacional de Medicina pode ter exercido uma influência negativa sobre a Comissão do Nobel, não permitindo que o pesquisador fosse laureado em 1921. Nesse ano, nenhum cientista foi premiado na área de Medicina e Fisiologia, motivo que fortaleceu o enigma, pois se dava como certa a premiação de Carlos Chagas. Este seria o primeiro prêmio Nobel brasileiro, talvez o único da nossa história (Dias, 2000). Contudo, esta não foi a pior parte da história. A doença de Chagas no Brasil existe desde tempos pré-coloniais, porém, acredita-se que seu significado epidemiológico tenha sido pequeno até o século XIX. Neste período, o desequilíbrio ecológico causado por extensos desmatamentos nas lavouras de canade-açúcar e café, as migrações de um elevado número de pessoas para o interior e a chegada ao país do mais importante transmissor da Doença de Chagas, o Triatoma infestans, tornaram-na epidemiologicamente significativos e causaram a contaminação de milhões ao longo dos anos (Gurgel et al., 2007). A morte lhes poderia ter sido evitada se a doença tivesse sido reconhecida e controlada antes que a tragédia acontecesse nas proporções por todos conhecidas. A população pobre, desinformada e esquecida do poder público foi a verdadeira vítima dessa infeliz história. Referências Brenes, A. C. 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Dissertação (Mestrado em História)Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, Universidade de São Paulo, São Paulo, 1992. Freire, O. J.; Dias, J. C. P. The Noble enigma: Chagas nomination for the Nobel prize. Memórias Instituto Oswaldo Cruz, v. 94, 1999. Suplemento 1, p. 123-129. Fundação Nobel (Suécia). Nomination. Estocolmo. Disponível em: <http:// nobelprize.org/>. Acesso em: 5 jul. 2008. Gurgel, C. B. F. M. et al. A doença de Chagas no Brasil: uma presença antiga. Revista da Sociedade Brasileira de Clínica Médica, v. 5, n. 6, p. 196-202, 2007. Kropf, S. P. Doença de Chagas – polêmica. Rio de Janeiro: Casa de Oswaldo Cruz. Disponível em: <www.fiocruz.br/Chagas>. Acesso em: 18 ago. 2008. Lewinsohn, R. Carlos Chagas and the discovery of chagas disease (Americam Trypanosomiasis). Journal Royal Society of Medicine, v. 74, p. 451-455, 1981. ______. Três epidemias: lições do passado. 1. ed. Campinas, SP: Ed. Universidade Estadual de Campinas, 2003. 318 p. Lima, E. G. 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