Textos da Mostra - Centro Cultural do Ministério da Saúde

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Textos da Mostra - Centro Cultural do Ministério da Saúde
CENTRO CULTURAL DA SAÚDE (CCS)
TEXTOS
MOSTRA INAUGURAL
“MEMÓRIA DA LOUCURA”
Foram solicitados aos profissionais e especialistas da área de saúde mental
contribuições para a concepção da mostra inaugural do
CCS - Memória da Loucura.
Os textos, em parte adaptados para a exposição,
estão disponíveis na íntegra, em formato PDF, com informações
complementares dos autores.
Rio de Janeiro, 2001
CARTA AOS DIRETORES DE ASILOS DE LOUCOS
Antonin Artaud1
Senhores:
As leis, os costumes, concedem-lhes o direito de medir o espírito. Esta jurisdição
soberana e terrível, vocês a exercem segundo seus próprios padrões de entendimento.
Não nos façam rir. A credulidade dos povos civilizados, dos especialistas, dos
governantes, reveste a psiquiatria de inexplicáveis luzes sobrenaturais. A profissão
que vocês exercem está julgada de antemão. Não pensamos em discutir aqui o valor
dessa ciência, nem a duvidosa existência das doenças mentais. Porém para cada cem
pretendidas patogenias, onde as mais vagas são também as únicas utilizáveis, quantas
tentativas nobres se contam para conseguir melhor compreensão do mundo irreal
onde vivem aqueles que vocês encarceraram?
Quantos de vocês, por exemplo, consideram que o sonho do demente precoce
ou as imagens que o perseguem são algo mais que uma salada de palavras? Não nos
surpreende ver até que ponto vocês estão empenhados em uma tarefa para a qual só
existe muito poucos predestinados. Porém não nos rebelamos contra o direito concedido
a certos homens – capazes ou não – de dar por terminadas suas investigações no
campo do espírito com um veredicto de encarceramento perpétuo.
E que encerramento! Sabe-se – nunca se saberá o suficiente – que os asilos,
longe de ser “asilos”, são cárceres horríveis onde os reclusos fornecem mão-de-obra
gratuita e cômoda, e onde a brutalidade é norma. E vocês toleram tudo isso. O hospício
de alienados, sob o amparo da ciência e da justiça, é comparável aos quartéis, aos
cárceres, às penitenciárias. Não nos referimos aqui às internações arbitrárias, para
lhes evitar o incômodo de um fácil desmentido. Afirmamos que grande parte de seus
internados – completamente loucos segundo a definição oficial – estão também reclusos
arbitrariamente. E não podemos admitir que se impeça o livre desenvolvimento de um
delírio, tão legítimo e lógico como qualquer outra série de idéias e atos humanos. A
repressão das reações anti-sociais, em princípio, é tão quimérica como aceitável.
Todos os atos individuais são anti-sociais. Os loucos são as vítimas individuais por
excelência da ditadura social. E em nome dessa individualidade, que é patrimônio do
homem, reclamamos a liberdade desses forçados das galés da sensibilidade, já que
não se está dentro das faculdades da lei condenar à prisão a todos que pensam e
trabalham. Sem insistir no caráter verdadeiramente genial das manifestações de certos
loucos, na medida de nossa capacidade para avaliá-las, afirmamos a legitimidade
absoluta de sua concepção da realidade e de todos os atos que dela derivam.
Esperamos que amanhã de manhã, na hora da visita médica, recordem isto,
quando tratarem de conversar sem dicionário com esses homens sobre os quais –
reconheçam – só tem a superioridade da força.
1
ARTAUD, Antonin. Cartas aos Poderes. Porto Alegre: Villa Martha, 1979. (Coleção Surrealistas, 1).
EUGENIA
Laurinda Maciel2
Etimologicamente, o termo eugenia deriva do grego eugeneia e significa ciência
que estuda as condições mais propícias à reprodução e melhoramento da raça humana.
O termo foi criado em 1869 pelo inglês Francis Galton, que mais tarde, baseado em “A
Origem das Espécies” de Charles Darwin, elaborou a doutrina do aperfeiçoamento da
raça humana.
No Brasil, a partir dos anos 10 até a década de 40, surgiram várias agremiações
ou ligas onde se debatiam questões derivadas da eugenia e sua inserção na sociedade.
Vários intelectuais e cientistas do período revelavam a precariedade sanitária na qual
vivia o povo brasileiro e insistiam no saneamento do povo e do solo, baseados na
crença de que numerosas moléstias contribuíam para a degenerescência da raça.
Entre as ligas mais expressivas estão: a Liga de Defesa Nacional (1916), a Liga
Nacionalista de São Paulo (1917), a Liga Pró-Saneamento (1918), a Sociedade Eugênica
de São Paulo (1918), fundada por Renato Kehl e pioneira na realização de trabalhos
mais sistematizados acerca da eugenia na América Latina, e a Liga Brasileira de Higiene
Mental.
Juliano Moreira (diretor da Assistência aos Alienados), Afrânio Peixoto (um dos
pioneiros da medicina legal), Maurício de Lacerda (médico e político), Renato Kehl
(médico e farmacêutico), Heitor Carrilho (Diretor do manicômio Judiciário do Rio de
Janeiro) e Antônio Austregésilo (psiquiatra) faziam parte integrante, tanto na Liga
Pró-Saneamento quanto da Liga Brasileira de Higiene Mental.
A Liga Brasileira de Higiene Mental foi fundada em janeiro de 1923, no Rio de
Janeiro, por iniciativa do Dr. Gustavo Riedel. Desde a fundação até o fechamento
desta liga no início dos anos 50, o trinômio eugenia-higiene-prevenção sempre ocupou
lugar de destaque nos seus programas de ação.
Os principais objetivos dessa entidade eram a prevenção de doenças mentais
mediante higiene em geral e do sistema nervoso em particular, a proteção e amparo
no meio social aos egressos de manicômios e aos doentes mentais passíveis de
internação, o aperfeiçoamento dos meios de tratamento desses doentes e o programa
de higiene mental e eugenia, no domínio das atividades escolar, individual, profissional
e social, segundo seus estatutos. Os profissionais, movidos por um ideal de
aperfeiçoamento da raça, reivindicaram para si a tarefa de regenerar a nação e evitar
a degeneração mental da população, segundo as medidas preventivas de caráter
eugênico e higiênico.
2
Laurinda Maciel é pesquisadora da Escola Nacional de Saúde Pública (ENSP).
REFORMA PSIQUIÁTRICA
Dr. Paulo Amarante3
Anteriormente, a noção de Reforma Psiquiátrica estava restrita a transformações
técnico-assistenciais do campo institucional psiquiátrico. Assim, era comum tomá-la
como sinônimo de modernização ou humanização do hospital psiquiátrico ou, quando
muito, como a introdução de novas técnicas de intervenção terapêutica ou preventiva
na comunidade.
A partir das experiências e reflexões de Franco Basaglia em Gorizia e Trieste,
ambas no norte da Itália, o que se entendia por Reforma Psiquiátrica sofreu uma
radical transformação. Em primeiro lugar porque não se pretenderia mais a reforma
do hospital psiquiátrico. Percebido como um espaço de reclusão e não de cuidado e
terapêutica, o hospital deveria ser negado e superado. Em outras palavras, enquanto
espaço de mortificação, lugar zero das trocas sociais, o hospital psiquiátrico passava a
ser denunciado como manicômio, por pautar-se na tutela, na custódia, na gestão de
seus internos, no que Erwin Goffman denominou de instituição total.
A psiquiatria, que havia construído objetos tais como alienação, degeneração
ou ainda doença mental, que advogavam uma incapacidade de Juízo, de Razão, de
participação social do louco, construiu como projeto “terapêutico” nada mais que um
espaço de exclusão: o manicômio. Desta forma, o ideal de uma Reforma Psiquiátrica
após Basaglia, seria a de uma sociedade sem manicômios, isto é, de uma sociedade
onde fosse possível construir um lugar social para os loucos, os portadores de sofrimento
mental, os diferentes, os divergentes. Uma sociedade de inclusão e solidariedade.
Atualmente, entendemos por Reforma Psiquiátrica um processo complexo no
qual quatro dimensões simultâneas se articulam e se retroalimentam. Por um lado,
pela dimensão epistemológica que opera uma revisão e reconstrução no campo teórico
da ciência, da psiquiatria e da saúde mental. Por outro, na construção e invenção de
novas estratégias e dispositivos de assistência e cuidado, tais como os centros de
convivência, os núcleos e centros de atenção psicossocial, as cooperativas de trabalho,
dentre outras. Na dimensão jurídico-política temos a revisão de conceitos fundamental
na legislação civil, penal e sanitária (irresponsabilidade civil, periculosidade, etc.), e a
transformação, na prática social e política, de conceitos tais como cidadania, direitos
civis, sociais e humanos. Finalmente, na dimensão cultural, um conjunto muito amplo
de iniciativas vão estimulando as pessoas a repensarem seus princípios, pré-conceitos,
opiniões formadas (com a ajuda da psiquiatria) sobre a loucura. É a transformação do
imaginário social sobre a loucura, não como lugar de morte, de ausência e de falta,
mas como também de desejo e de vida.
3
Dr. Paulo Amarante é pesquisador titular do Depto. de Administração e Planejamento em Saúde,
graduou-se em Medicina (1976) pela Escola de Medicina Sta. Casa de Vitória (ES). Possui Mestrado
(1979) em Medicina Social pela UERJ e Doutorado em Saúde Pública (1994) pela ENSP...saiba mais:
http://www.ensp.fiocruz.br/pesquisa/7paunte.html
POLÍTICA E HOSPITAL PSIQUIÁTRICO
Roberto Machado4
O início do século XIX assinala o momento em que o hospital é percebido como
fator patogênico, causa de doença e de morte e, portanto, incompatível com a medicina
moderna. Até então o hospital não é uma instituição médica; é uma entidade religiosa
destinada à assistência a doentes pobres, forasteiros, soldados, marinheiros. Não tem
por objetivo a saúde, mas a salvação: o plantão, por exemplo, é do “capelão da
agonia”. Sua arquitetura não obedece a um plano médico. Não há médico em sua
administração. A assistência hospitalar é, portanto, menos uma assistência à doença
do que à miséria na hora da morte, parte de uma ação criativa da Santa Casa da
Misericórdia que inclui crianças abandonadas, indigentes e prisioneiros.
É nesse espaço que se encontram os loucos, quando não vagam pelas ruas ou
– no caso dos ricos – são contidos pelas famílias. E no hospital ele está como em uma
prisão: trancado e até mesmo preso a um tronco de escravos. Não é considerado
doente; não recebe tratamento; não tem médico ou enfermeiro específico; vive sem
condições higiênicas. Pode ser louco, mas ainda não é doente mental.
No século XIX, a medicina coloniza o hospital. Ruptura com o passado que pode
ser compreendida não só a partir de transformações médicas mas também econômicas
– advindas da abertura dos portos, intensificação do comércio, implantação de
manufaturas – e políticas que modificarão o Rio de Janeiro depois de 1808 e integrarão
ainda mais o Brasil na nova ordem capitalista internacional.
Nesse contexto, o papel que desempenham os médicos tem um objetivo claro:
combater a desordem social, o perigo dos homens e das coisas decorrente da nãoplanificação da distribuição e do funcionamento da cidade. A medicina começa a se
interessar por tudo o que diz respeito ao social. Passa a não ter fronteiras. Peça
integrante da nova estratégia política de controle dos indivíduos e da população, vai
pouco a pouco – não sem lutas e obstáculos – impregnar o aparelho de Estado e se
interessar por instituições como a escola, o quartel, a prisão, o cemitério, o bordel, a
fábrica, o hospital, o hospício...
Sua política em relação ao hospital é clara: dominar o perigo que grassa no seu
interior. E para isso não basta expulsar o hospital do centro da cidade; é necessário
transformar o seu espaço, para capacitá-lo a realizar a cura. O hospital é um operador
terapêutico, uma “máquina de curar”.
Essa política preside, em 1841, à criação, no Rio de Janeiro, do primeiro hospital
psiquiátrico brasileiro. Resultado de uma crítica higiênica e disciplinar às instituições
de reclusão, o Hospício de Pedro II significou a possibilidade de inserir, como doente
mental, uma população que se começa a perceber como desviante nos dispositivos da
medicina social nascente. Como? Realizando os seguintes objetivos: isolar o louco da
sociedade; organizar o espaço interno da instituição, possibilitando uma distribuição
regular e ordenada dos doentes; vigiá-los em todos os momentos e em todos os
lugares, através de uma “pirâmide de olhares” composta por médicos, enfermeiros,
serventes...; distribuir seu tempo, submetendo-os ao trabalho como principal norma
terapêutica. Terrível máquina de curar, que levou Esquirol a afirmar que no hospício o
4
Roberto Machado é psicanalista.
que cura é o próprio hospício. Por sua estrutura e funcionamento, ele deve ser um
operador de transformação dos indivíduos. Em suma, é uma nova máquina de poder,
resultado de uma luta médica e política que impõe, cada vez com mais peso, a presença
normalizadora da medicina como uma das características essenciais da sociedade
capitalista.
Mas o hospital psiquiátrico não está isento de críticas. Elas o acompanham
desde sua origem. E não só críticas externas. Principalmente críticas internas: de seus
médicos ou seus diretores. Como os ilustres Nuno de Andrade, Teixeira Bradão, Juliano
Moreira, que atacam sua organização arquitetônica, a subordinação do médico ao
pessoal religioso, a ignorância ou maldade dos enfermeiros, o processo não-médico
de internação, a falta de uma lei nacional de alienados e de um serviço de assistência
organizado pelo Estado.
Essas críticas, hoje ainda mais virulentas, são importantíssimas para fazer pensar
não só no fracasso real da psiquiatria como instância terapêutica, mas principalmente
na exigência de medicalização cada vez maior do espaço social que ela representa.
Por um lado, se a medicina mental apresenta a cura como sua aquisição científica, até
hoje nunca deixou de reconhecer o seu lado negro: só se entra no hospício para não
sair ou, na melhor das hipóteses, para logo depois voltar. Por outro lado, essa
reconhecida incapacidade terapêutica, longe de pôr em questão a própria psiquiatria,
serve fundamentalmente de apoio a uma exigência de maior medicalização. A crítica
faz a psiquiatria, cada vez mais, refinar seus conceitos para atingir novas faixas da
população – numa evolução que vai do doente mental ao anormal e do anormal ao
próprio normal –, tornando a sociedade uma espécie de asilo sem fronteiras.
A questão política da psiquiatria me parece assim mais profunda do que em
geral se pensa. Será que as transformações contemporâneas propostas à prática e
à teoria psiquiátricas – mesmo as que vestem de psicanálise seus conceitos básicos
e se intitulam, psiquiatria como instância político-científica de controle normalizador
da vida social, característica que a acompanha desde sua constituição?
AS CLASSES SOCIAIS DA CORTE E O
HOSPÍCIO DE PEDRO II
Edmar de Oliveira5
Alguns prontuários encontrados nos arquivos do Centro Psiquiátrico Pedro II
nos levam aos anos de 1854 a 1861 e com eles à classificação social do paciente,
subdivididos em primeira, segunda e terceira classe, o que parece ser dado importante
para as anamneses da época.
Entre os de primeira classe chama atenção serem moradores da côrte, brancos,
cidadãos, fazendeiros ou funcionários públicos, em número muito pequeno em relação
às outras classes.
Na segunda classe encontramos lavradores e o ofício de prendas domésticas,
ainda brancos e livres.
Na terceira são todos escravos, pretos pertencentes a um senhor importante,
já que na sua identificação possuíam apenas o primeiro nome seguido da nomeação
senhorial: escravo de tal senhor, com nome e sobrenome para o seu imediato
reconhecimento na côrte. Acrescente-se ainda a nação africana de origem: Nagô,
Congo, Iorubá, Mirra, entre outras.
Neste período não havia sido abolida oficialmente a escravidão no país, no
entanto, outra classificação aparece em maior número do que as das três classes
anteriores. São os “indigentes”. Às vezes possuíam apenas o primeiro nome, outras
vezes já traziam sobrenome. Nesta classificação estão, sobremaneira, os pretos ou
pardos libertos. Eram funileiros, carvoeiros, quitandeiros ou cozinheiros mas, em sua
maioria, não tinham profissão. Esta parece ser uma classe inferior à terceira, pois,
libertos não possuíam o “status” de pertencerem a um senhor.
Foi encontrado ainda um único prontuário que não pertence às classificações
anteriores. Está classificado como “pobre”. Possuía nome e sobrenome, era branco,
livre, brasileiro, paulista, morador da côrte, tinha 26 anos, e era solteiro e estudante.
Quais seriam os tratamentos ou o destinação arquitetônica que o Hospício de
Pedro II disporia para essas novas classificações?
Os pacientes de primeira e segunda classes habitavam quartos individuais ou
duplos, ficavam entretidos com pequenos trabalhos manuais ou jogos. Os de terceira
e muito provavelmente, os pobres e indigentes trabalhavam na manutenção, na
jardinagem, na limpeza e na cozinha. Paradoxalmente se recuperavam em maior
número que os primeiros que, paralisados pelo ócio, perpetuavam-se na internação.
5
Edmar de Oliveira é diretor do Instituto Municipal de Assistência à Saúde Nise da Silveira (IMASNS).
HOSPITAL PHILIPPE PINEL
Erickson Furtado6
Em janeiro de 1965 é criado o Hospital Philippe Pinel em substituição ao antigo
hospital de Neurossífilis. Um ano mais tarde, realiza-se em seu anfiteatro a fundação
da Associação Brasileira de Psiquiatria.
Entre 1968 e 1971, através do convênio estabelecido entre a Divisão Nacional
de Saúde Mental (DINSAM) e o Instituto de Psiquiatria da UFRJ (IPUB), o prof. Eustáchio
Portella Nunes implanta o modelo Comunidade Terapêutica, revolucionando o
tratamento dispensado até então aos pacientes. A excelência de seu corpo técnico e
sua constante preocupação com o ensino e pesquisa, sem descuidar da assistência,
fazem do Pinel um importante centro de formação em saúde mental na cidade do Rio
de Janeiro.
6
Extraído do texto de Dr. Erickson Furtado. Psic. Patrícia Saya
COLÔNIA JULIANO MOREIRA
Da Fazenda de Engenho à Instituição de Assistência à Saúde
Denise Rebouças Barbosa7
A Freguesia de Jacarepaguá, no município da corte, era região de grandes
fazendas, tendo a do Engenho Novo como uma das mais prósperas. Data do século
XVIII, quando foi desmembrada das terras da fazenda da Taquara.
Era constituída de pequena capela erguida pelos escravos no século XVII em
devoção à Nossa Senhora dos Remédios, um engenho de cana de açúcar e um moinho
de fubá ligado à unidade de produção da fazenda. Posteriormente, a propriedade
passou a chamar-se Fazenda do Engenho Novo da “Curicica” ou da “Pavuna”. Desde
então, a fazenda teve vários proprietários, tendo sido objeto de longa disputa judicial,
conhecida como a “Guerra dos Concunhados”. A Fazenda do Engenho Novo, como
outras de Jacarepaguá passou, no século XIX, por grandes transformações
socioeconômicas, quando o café e o anil substituíram gradativamente o açúcar como
produto principal. Na primeira década do século XX foi vendida por 150 contos de
Réis. A fazenda permaneceu isolada e reduzida a meras atividades agro-pastoris até
deixar de funcionar como unidade de produção.
João Augusto Rodrigues Caldas, diretor, empossado em 1909, das antigas
colônias Conde de Mesquita e São Bento, situadas no Galeão, Ilha do Governador,
pressionado pelas condições inadequadas dos estabelecimentos, encontrou nas terras
do Engenho Novo o local que procurava para a transferência das colônias. Graças a
sua persistência, em 31 de agosto de 1912 a fazenda foi desapropriada pela União,
tendo o supremo Tribunal Federal encerrado a pendência em torno do imóvel em
dezembro de 1918. Em 1919 iniciaram-se as obras do primeiro pavilhão. Em 1923 as
colônias de alienados da Ilha do Governador foram transferidas para as novas
instalações, nascendo, assim, a Colônia de Alienados de Jacarepaguá, inaugurada em
29 de março de 1924. Em meados de 1930 passou a chamar-se “Juliano Moreira”.
Hoje a municipalização acarretou o desmembramento da colônia em três
unidades: O Instituto Municipal de Assistência à Saúde Juliano Moreira, que compreende
as unidades de residentes, atualmente com 950 pacientes; O Hospital Municipal Jurandyr
Manfredini, responsável pelo atendimento aos pacientes agudos da área programática
4 (da qual faz parte o Centro de Apoio Psicossocial Arthur Bispo do Rosário); e, por
fim, o Hospital Municipal Álvaro Ramos, que realiza o atendimento em clínica médica
dos pacientes.
7
Denise Rebouças Barbosa é Presidente do Centro de Estudos do Instituto Municipal de Assistência à
Saúde Juliano Moreira (IMASJM).
(Pesquisa de Marcelo Soares dos Santos)
PSICANÁLISE E LOUCURA
Dra. Neusa Santos Souza8
A marca da própria psicanálise, da clínica psicanalítica, é sua determinação de
ouvir o sujeito que se queixa e, com ele, apostar no sentido dos sintomas como
condições de tratamento – condição necessária mas não suficiente posto que, além de
encontrar e inventar novos sentidos, e com isto deslocar e reduzir seus sintomas, o
paciente terá ainda que se confrontar e achar uma saída para o que, no seu sintoma,
insiste, persiste e não se deixa demover.
A psicanálise é sobretudo uma clínica da escuta – uma experiência entre aquele
que fala e aquele que fundamentalmente ouve, acolhe, se inclui no que é dito, e aceita
arcar com as conseqüências do que advém daí. Nesse laço feito de palavras, silêncios
e afetos, o motor do trabalho é o sofrimento do sujeito, o enigma de seus sintomas e
sua vontade de saber.
Outra marca da psicanálise – traço de origem e percurso – é incluir em seu
campo de operação, sujeitos excluídos, sempre postos à margem, sujeitos recusados
na escuta e na consideração de seu sofrimento, como se sua dor fosse sem razão.
Estes sujeitos foram e são acolhidos pela clínica psicanalítica onde, cada um em sua
diferença, encontra lugar, de fato e de direito. É assim que a loucura e os loucos têm
um lugar central na clínica analítica, um lugar que põe à prova, interroga e convoca o
psicanalista a reinventar a psicanálise.
Reinventar a psicanálise diante da novidade de cada paciente, eis aí outra marca
desse saber teórico-prático, marca impressa por Freud, seu fundador e reatualizada
por cada psicanalista que responde por este nome.
Com sua diferença e seu paradoxo, a cada um de nós que se dispõe a aprender,
o louco ensina a lição essencial: somos todos atravessados por contradições, nossa
matéria é frágil, trágica é a nossa condição.
A psicanálise entende o louco como um sujeito que se define no exercício
simultâneo de duas operações: rejeição e invenção. Por um lado, rejeita a realidade
consensual, despreza o bom senso e o senso comum, denuncia-lhes a impostura,
pagando por isso o preço da exclusão e da errância no caos de um mundo
desmoronando; e por outro lado, com os destroços desse mundo, tenta inventar uma
saída, um caminho, um mundo diferente.
A clínica psicanalítica se presta a fazer, junto com o louco, essa singular
caminhada e ajudá-lo a construir um mundo onde, sem demasiadas penas, sem
excessivas dores, e com algum afeto ele possa, em sua diferença, viver.
8
Dra. Neusa Santos Souza é psiquiatra e psicanalista.
A EXPOSIÇÃO DE 1922 E O PAVILHÃO DA ESTATÍSTICA
Milton de Mendonça Teixeira9
Quando, em 1919, assumiu a presidência da República o paraibano Epitácio da
Silva Pessoa, uma de suas primeiras providências no cargo foi a de nomear para
Prefeito do Distrito Federal o engenheiro Carlos Sampaio e incumbi-lo de organizar a
“Exposição Internacional Comemorativa do Centenário da Independência do Brasil,” a
ser realizada em 1922. Objetivava tal mostra não só afirmar ao mundo as
potencialidades brasileiras nos diversos setores da vida nacional, como, obviamente,
atrair novos mercados.
Após algumas hesitações, decidiu o prefeito pela realização da exposição no
sítio do morro do Castelo, local onde Mem de Sá refundou a cidade do Rio de Janeiro
em 1567, trazendo-a do morro Cara-de-Cão, onde Estácio de Sá a fundara dois anos
antes. Não se deu ouvidos à tradição ou à história, nem se levou em conta que existiam
diversos sítios ainda desocupados na cidade, mormente nas zonas sul e norte, onde a
mostra poderia ter sido realizada sem maiores gastos. Mas, tomada a decisão, arrasouse o morro em menos de dois anos e fez-se a exposição.
Alguns dos pavilhões ali edificados em 1921-22 foram projetados pelos maiores
arquitetos da época e, se de forma alguma compensavam os bens culturais perdidos
na destruição do morro do Castelo, ao menos foram obras marcantes para a cultura
de então.
O escritório Técnico Heitor de Melo, comandado pelos arquitetos Archimedes
Memória e Francisque Couchet, que pouco antes haviam construído o prédio da Câmara
Municipal e no ano de 1921 projetaram o Jóquei Clube na Lagoa e o Palácio Tiradentes,
seriam os autores do “Palácio das Festas”, em estilo Luís XVI (demolido em 1982); do
“Palácio das Grandes indústrias”, em estilo neocolonial (que era a antiga “Casa do
Trem” e hoje sedia o Museu Histórico Nacional) e o restaurante do Passeio Público, no
antigo terraço do Mestre Valentim (demolido em 1938). O arquiteto espanhol Adolfo
Morales de Los Rios, autor do projeto do prédio da Escola Nacional de Belas Artes,
ergueria ali o “Parque de Diversões da Exposição”; o “Palácio da Viação e Agricultura”
e o “Pavilhão da França” (ainda existente, doado em 1923 à Academia Brasileira de
Letras, que o converteu em sua sede). Nestor de Figueiredo e C. S. San Juan projetaram
o “Palácio da Caça e Pesca” (idem); e Rafael Galvão desenhou o “Portão Monumental”.
Dentre outros pavilhões, ergueu o governo um palacete destinado a expor a
riqueza do Brasil expressa em números: o “Pavilhão da Estatística”, projetado pelo
professor da Escola Nacional de Belas Artes Dr. Gastão da Cunha Bahiana (18791959). Filho e irmão de arquitetos, Gastão Bahiana era um purista, avesso ao estilo
neocolonial ou aos modernismos que começavam a debicar por aqui. Por este motivo
escolheu para o pavilhão um sóbrio estilo Luís XVI, cuja pureza foi prejudicada por
estranha cúpula, desenhada por seu sócio Nereu Sampaio. Ambos haviam projetado o
prédio do Fórum, algums metros adiante e ainda de pé. Após a exposição, Gastão
Bahiana fez gestões para a retirada da cúpula, finalmente obtida em 1930.
Este edifício, que depois foi repartição pública e mais recentemente Vigilância
Sanitária Portuária, é, portanto, dos raros remanescentes da Exposição Nacional de
1922, constituindo-se em importante bem cultural a ser preservado.
9
Milton de Mendonça Teixeira é professor.
JEAN ETIENNE DOMINIQUE ESQUIROL
(1772-1840)
Pierre Morel10
Nono filho de uma família de dez, Esquirol nasceu a 3 de fevereiro de 1772 na
cidade de Toulouse, onde seu pai era comerciante e supervisor da bolsa de mercadorias
(comércio).
Seus estudos com os Doutrinadores do colégio de l´Esquille o orientaram de
início para uma carreira religiosa.
Ele viveu um tempo em Issy no Seminário de Saint-Sulpice, mas por ocasião da
Revolução, sua vocação religiosa enfraqueceu. Em 1792 voltou a Toulouse iniciando a
carreira de medicina no Hospital de la Grave, cuja função de administrador era exercida
por seu pai e onde havia um grande número de doentes mentais internados.
Posteriormente, em Narbonne, servindo no exército dos Pirineus e na campanha de
Roussilon como oficial de saúde, diversos fatos ocorrem em sua vida, como a retomada
de seus estudos em Montpellier, a perda da fortuna familiar e a execução de seu irmão
François Antoine no segundo ano da Revolução.
Retornando a Paris em 1799 trabalhou no “Corvisart”, na “La Charité” em “La
Salpêtrière” onde ele conhece Philippe Pinel. Em 1805, defende a tese As Paixões
Consideradas Causas, Sintomas e Meios Curativos de Alienados Mentais e por ocasião
da morte de Pussin, em 1º de maio de 1811 é nomeado médico plantonista da Divisão
de Alienados de La Salpêtrière, tornando-se médico titular no ano seguinte.
Em 1807, Esquirol, atuando como reformador das instituições psiquiátricas visita
os asilos, hospitais e prisões de toda a França.
Em 1817 inaugura em La Salpêtrière um curso clínico de medicina mental, onde
suas qualidades de orador atraem um grande público. No aspecto doutrinal, torna-se
um discípulo ortodoxo de Pinel: como Pinel, ele acha que a loucura tem causas físicas
e morais, insiste na tendência hereditária e coloca na raiz do organismo a causa
principal do transtorno mental. Todavia, critica os conceitos nosográficos de seu mestre
e volta a dividir as moléstias mentais em quatro grupos principais: a demência, cuja
forma aguda e curável é chamada de “estupidez”, com seu aluno Georget, a “idiotia”
termo que ele prefere a idiotismo; a “mania” delírio geral com exaltação; e, a parte
mais original e criticada de sua obra clínica, o vasto grupo de “monomanias”, derivado
do desmembramento da melancolia de Pinel, delírio parcial crônico, de natureza alegre
ou triste, mas limitado a um número pequeno de objetos. Esquirol subdivide este
novo conceito em três categorias: as monomanias intelectuais, onde o delírio está no
primeiro plano ( uma das múltiplas formas possíveis é a lipomania ou melancolia, com
seu “ delírio crônico parcial, sustentado por uma triste paixão, debilitante e opressiva”,
as monomanias afetivas ou ressoantes que levam o doente a condutas “bizarras” e
“inconvenientes” e as monomanias instintivas que reagrupam as futuras “perversões”
e psicopatias e serão a fonte de violentas contestações, na medida que parecem
fornecer as justificativas de comportamentos criminais, num tempo em que a medicina
legal estava em vias de formação.
Também, por volta de 1817, começa a acolher na sua casa da Rua Buffon,
alguns alienados “pagantes”. O número desses pacientes aumenta tanto com o passar
10
Texto traduzido do “Dictionnaire Biographique de la Psyquiatrie”, de autoria de Pierre Morel
do tempo, que em 1827 adquire uma vasta propriedade em Ivry para instalar uma
casa de saúde que dirige com seu sobrinho Mitivié e onde começa a colocar em prática
suas idéias sobre a construção de asilos, que tinha apresentado no seu célebre relatório
de 1819 ao Ministro do Interior “Os estabelecimentos destinados aos alienados na
França e os meios de melhorá-los.”
Em 1820, torna-se membro da Academia de Medicina e seis anos mais tarde é
nomeado membro do Conselho de Salubridade Pública do Departamento do Sena,
participando ativamente, com seus alunos Ferrus e J.P. Falret, dos trabalhos
preparatórios da Lei de 1838 sobre os alienados.
Esquirol assume o posto de médico chefe da Maison Royale de Charenton, por
ocasião do falecimento de Royer Collard, em 27 de novembro de 1825.
Em 1838, Esquirol publica os dois volumes “Considerações das doenças mentais
sob as visões da medicina, da higiene e da medicina legal“, que são nada mais do que
a coletânea de suas publicações anteriores, acrescidas de 27 gravuras, muitas vezes
reproduzidas por Amboise Tardieu, “o pai” do alienista. Convencido do interesse a
respeito do estudo da fisionomia dos alienados, Esquirol encomendou a GeorgesFrançois-Marie Gabriel (retratista) mais de 200 retratos de enfermos, a maioria inéditos
até os dias atuais.
Tinha por hábito aos domingos reunir seus alunos na casa de Ivry, num encontro
amigável, fato que foi comentado por Moreau de Tours, como: “se almoçava muito
bem na casa do Sr. Esquirol”.
Esquirol falece, na Rue Buffon, em 12 de dezembro de 1840.

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