- Urbanismo

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Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias
A Morfologia Urbana da Cidade do Funchal e os seus
espaços públicos estruturantes
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
Lisboa, 18 de Julho de 2007
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
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MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
Agradecimentos
O presente trabalho sobre a Morfologia Urbana da Cidade do
Funchal e os seus espaços públicos estruturantes é fruto de uma apurado
trabalho de pesquisa, de campo e de elaboração de cartografia. A sua
realização só foi possível com o apoio de várias pessoas.
Sendo uma dissertação de mestrado, começo por agradecer a
todos aqueles que, neste âmbito, tiveram um papel fundamental para a
sua concretização:
- ao Professor Doutor Mário Moutinho, meu orientador, pela
motivação que me soube transmitir, as críticas e sugestões que fez e o
empenho que demonstrou desde o primeiro momento;
- aos responsáveis e aos técnicos do Arquivo Regional da Madeira;
do Arquivo Histórico Ultramarino; do Gabinete de Planeamento
Estratégico e do Gabinete de Informação Geográfica da Câmara
Municipal do Funchal; da Sociedade Portuguesa de Geografia; da
Biblioteca Pública Regional da Madeira; Biblioteca Nacional; da Casa
Museu Frederico de Freitas e do Museu Quinta das Cruzes pela
disponibilidade e ajuda que me dispensaram aquando da pesquisa de
bibliografia, cartografia e iconografia sobre a Cidade do Funchal;
- ao Mestre Agostinho Lopes pela documentação que gentilmente
cedeu para consulta.
Agradeço de um modo especial ao Agustin Vieira pelo seu apoio ao
nível gráfico e à Ana Brás e à Sílvia Tranquada, amigas e professoras da
disciplina de Português, pela amabilidade e paciência de ler e corrigir todo
este trabalho.
Não posso dispensar um especial agradecimento à Madalena
Ferreira, minha amiga, pelo apoio que me prestou.
Finalmente, um muito obrigada à minha família e, em especial, ao
João e ao Vitor, pela compreensão da minha pouca disponibilidade e pelo
incentivo e apoio que me dispensaram ao longo destes meses.
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Resumo
O presente trabalho sobre a Morfologia Urbana da Cidade
do Funchal e os seus espaços públicos estruturantes tem como
objecto o estudo das variações da forma da cidade do Funchal e
dos seus elementos morfológicos e, ainda, dos fenómenos que lhe
deram origem nos últimos quinhentos anos. Com base em
cartografia elaborada a partir de Plantas da Cidade do Funchal de
diversas épocas concertadas sobre o ortofotomapa do Funchal de
2004, foi feita a análise da morfologia urbana da cidade.
A cidade do Funchal, à semelhança de outras cidades
insulares portuguesas do século XV, está implantada numa ampla
baía, tendo-se desenvolvido a partir de um núcleo primitivo
localizado junto ao mar, no lado Este da mesma. Desde o século
XVI a cidade tem vindo a expandir-se gradualmente segundo dois
eixos estruturantes fundamentais, um paralelo à linha da costa, no
sentido Este-Oeste e, outro, perpendicular ao mar, em direcção a
Norte, acompanhando de um modo geral o traçado das três
ribeiras que a atravessam. Hoje a cidade ocupa todo o anfiteatro
do Funchal, continuando a crescer sobretudo para Ocidente.
Na malha urbana do centro do Funchal estão gravados os
vestígios das “cidades” que a precederam no tempo. Estas
memórias são parte da identidade da cidade e importantes pontos
de referência que orientam locais e estrangeiros ao longo dos
diferentes espaços desta urbe.
Hoje é importante que o Funchal se torne mais flexível,
atractivo e vivido, sendo necessário valorizar e reforçar a sua
identidade e continuar a qualificar a sua imagem.
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Abstract
The present work about “The Urban Morphology of the City
of Funchal and its structural public spaces” aims the study of the
variations of the form of the city of Funchal and of its morphological
elements and, yet, of the phenomenon that gave origin to it in the
last five hundred years. The analyse of the urban morphology of
the city was done, having as a base, the cartography elaborated
from the maps of the city of Funchal of different times, adjusted to
the ortophotomap of Funchal of 2004.
The city of Funchal, as other insular cities of the XV century,
is situated in a large bay, having developed from a primitive
nucleus located close to the sea, in the East side . Since the XVI
century the city has been expanding gradually in two structural
fundamental axes: one parallel to the line of the coast, in the EastWest direction, and other perpendicular to the sea, in direction to
the North, following, generally, the track of the three streams that
cross it. Today, the city occupies all the amphitheatre of Funchal,
continuing to grow, especially to the west.
In the urban mesh of the city of Funchal are still visible the
remainings of the “cities” that preceded it .These memories are
part of the identity of the city and important points of reference that
guide home people and foreigners through the different places of
this city.
Today it is important that Funchal becomes more flexible,
attractive and living. It is necessary to value and reinforce its
identity and continue to qualify its image.
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Índice
Índice de figuras
Índice de mapas
Introdução
13
0.1
A morfologia urbana da Cidade do Funchal e os
seus espaços públicos estruturantes
0.2
Fontes documentais
Capítulo I – A cidade e a sua morfologia urbana
27
1.1 A cidade
1.2 A morfologia urbana
1.2.1 A forma urbana e a sua análise
1.2.2 Os espaços públicos urbanos
1.3 A morfologia urbana das cidades portuguesas
1.3.1 A forma urbana das cidades portuguesas
1.3.2 Os primeiros núcleos urbanos construídos fora do
território continental – o exemplo das cidades das Ilhas
Atlânticas
Capítulo II – A cidade do Funchal e a sua
morfologia urbana
2.1
De lugar a cidade do Funchal
2.2
Cinco séculos de cidade – transformações e
permanências
2.2.1 O Século XVI: a “Cidade do Açúcar”
2.2.2 O Século XVII – XVIII: a “Cidade do Vinho”
2.2.3 O Século XIX
2.2.4 O Século XX
7
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Capítulo III – O Funchal do século XXI – uma cidade
voltada para o ambiente.
171
3.1 A natureza e a cidade do Funchal
3.2 Os desafios
3.3 Uma cidade para o futuro
Conclusão
213
Referências bibliográficas
223
Referências Cartográficas
229
Lista de abreviaturas
231
Bibliografia
233
Índice remissivo:
Cartografia
Iconografia – desenhos, gravuras e litografias
Iconografia - fotografias
Nomes
241
Anexo documental de imagens
I. Cartografia
II. Iconografia – desenho, gravura e pintura
247
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Índice de figuras
Figuras
1. A semelhança das características morfológicas das
cidades insulares.
2. Planta do Funchal, Mateus Fernandes (c. 1570).
3. Permanências da cidade quinhentista.
4. A magnificência da torre da Sé Catedral.
5. Fortificações quinhentistas.
6. Permanências da cidade "barroca".
7. Permanências seiscentistas e setecentistas.
8. Permanências de edificações da "cidade do vinho": as
torres “avista- navios”.
9. Permanências da cidade fortificada.
10. As marcas de uma cidade voltada para o turismo – a
proliferação de letreiros escritos em vários idiomas nas ruas
da cidade do Funchal.
11. Memória das muralhas de protecção na Ribeira de
Santa Luzia e na Ribeira de João Gomes.
12. Muralhas de protecção da Ribeira de Santa Luzia –
permanências do século XIX.
13. Portas da Cidade o Portão dos Varadouros.
14. Planta da Cidade do Funchal, atribuída a Paulo Dias de
Almeida, primeiro quartel do século XIX.
15. O porto do Funchal em 1888 – ligação do Ilhéu de São
José ao de Nossa Senhora da Conceição.
16. As ruínas do Convento de São Francisco, com a Sé
Catedral ao fundo e a Fortaleza de São Lourenço à direita.
17. Memórias do Funchal do início do século XX.
18. Memória de um passeio desde o Cais da Cidade até à
Praça da Rainha.
19. Memória de um passeio desde o Cais da Cidade até à
Praça de São Pedro.
20. Memória de um passeio na Avenida Arriaga.
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21. Memória de um passeio desde o Cais da Cidade até à
Ponte Nova.
22. Marcas de uma época
23. Zona dos Piornais, do lado sul da Estrada Monumental.
24. Zona do Lido, a sul da Estrada Monumental.
25. O final de uma manhã de Domingo no centro do
Funchal. A atracção de uns espaços.
26. Permanências que se preservaram.
27. Pontos de referência na cidade do Funchal.
28. A Ribeira de Santa Luzia.
29. A Avenida do Mar ponto de ligação entre a cidade e o
mar.
30. O passeio da Avenida do Mar.
31. Depois do muro a surpresa.
32. Oslo, Aker Brigge.
33. O verde e as memórias da cidade.
34. A zona portuária do Funchal.
35. Zona portuária do Funchal.
36. A frente mar da Avenida do Mar.
37. Desportos urbanos.
38. Caminhar e andar de bicicleta são duas actividades
desportivas que madeirenses, de diferentes faixas etárias,
têm vindo a adoptar nos últimos tempos.
39. Comércio e serviços existentes na frente mar da
Avenida do Mar.
40. Ruas que se desertificam ao fim da tarde e ao fim de
semana.
41. A Praça da Autonomia.
42. A Praça do Pelourinho.
43. O Jardim Almirante Reis.
44. Pormenor do Jardim Almirante Reis.
45. Autocarros de várias empresas junto à Praça da
Autonomia.
46. Transporte marítimo de passageiros na cidade de Oslo,
Noruega.
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Índice de mapas
Mapas
Mapa A – Área de estudo
Mapa 1 – Planta da Cidade do Funchal, Mateus Fernandes
(1570)
Mapa 2 – Planta da Cidade do Funchal: 1570 e 1775
Mapa 3 – Plan of the town of Funchal, Capitan Skinner
(1775)
Mapa 4 – Iluminação pública em 1895
Mapa 5 – Planta da Cidade do Funchal: 1775 e 1894
Mapa 6 – Planta da Cidade do Funchal que representa o
estado em que ficou depois do aluvião de 9 de Outubro de
1803, Brigadeiro Oudinot (1804)
Mapa 7 – Planta da Cidade do Funchal representando as
fortificações antigas e os projectos de melhoramento, Paulo
Dias de Almeida (s. d.)
Mapa 8 – Planta da Cidade do funchal e seus arredores,
Engº Carlos Maia, Engº Adriano Trigo e Engº Annibal Trigo
(1894)
Mapa 9 – Planta da Cidade do Funchal: 1894 e 1990
Mapa 10 – Plano Geral de melhoramentos para o Funchal,
Arqº Ventura Terra (1915)
Mapa 11 – Planta da Cidade do Funchal (1948-50)
Mapa 12 – Planta da Cidade do Funchal (1967-69)
Mapa 13 – Planta da Cidade do Funchal (1990)
Mapa 14 – Recursos existentes
Mapa 15 – Área a potencializar
Mapa 16 – Acessibilidade e mobilidade
Mapa 17 – Planta síntese
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“Hoje, desenhar a cidade e nela
intervir é também compreender
e conhecer a cidade antiga e a
cidade moderna, as suas
morfologias e processos de
formação.”
(LAMAS, José M. Ressano Garcia, pág. 28)
Introdução
A cidade ...
Todos a conhecem. Amada por uns e odiada por outros.
Lugar de encontros e de desencontros; de memórias e de história;
do conhecimento e de divertimento; de escolhas e de trocas. Palco
de transformações e interacções.
Gosto da cidade, sobretudo de a observar. Ela transformase, cria-se e recria-se a cada dia. Em cada esquina há uma
descoberta, uma forma, uma memória, um “olhar” indiscreto, uma
história de vida. Enfim, na cidade há vidas, de ontem e de hoje,
que se cruzam e misturam, acabando por se renovar e recriar.
A cidade é um teatro com múltiplos actores e
espectadores.
Enquanto
espectadora
da
cidade
observo-a
incessantemente para a conhecer e interpretar. Procuro
compreender as suas formas, os seus lugares, os seus espaços.
Comparo-a com o seu passado e com o seu semelhante. Analisoa para actuar.
O estudo que aqui se apresenta é sobre a cidade do
Funchal, os seus lugares e espaços, os seus actores, os cantos e
recantos onde se escondem e guardam as memórias e os
testemunhos da “cidade do açúcar”, da “cidade do vinho” e de
todas as que lhes sucederam e que se transformaram na actual
Cidade do Funchal.
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Na realidade, no actual centro da cidade do Funchal,
permanecem ainda os traçados das ruas quinhentistas e
seiscentistas, os edifícios e as torres “avista- navios” de
setecentos, as muralhas de protecção das ribeiras do século XIX e
a “modernidade” das avenidas e dos parques do século XX. Uma
história de memórias que testemunham o crescimento e a
expansão da cidade desde o pequeno núcleo urbano em Santa
Maria até às avenidas localizadas a Oeste, junto à Ribeira de São
João.
A cidade tem mudado e com ela a sua imagem. Apesar do
traçado das ruas e da forma dos quarteirões permanecerem quase
imutáveis ao longo destes cinco séculos, a verdade é que ela vem
se transformando sobretudo com a construção de edifícios que,
século após século, a vão preenchendo. Hoje, com um “ar” mais
cosmopolita, os seus espaços “vazios” há muito abandonados e
esquecidos vêm sendo transformandos em praças e jardins, que
aos poucos devolvem a cidade aos seus habitantes.
01.
A morfologia urbana da cidade do Funchal e os seus
espaços públicos estruturantes
O objecto deste estudo é a morfologia urbana da cidade
do Funchal e os seus espaços públicos estruturantes. O
conhecimento e compreensão da morfologia urbana, ou seja, das
variações da forma da cidade, dos seus elementos morfológicos, e
dos fenómenos que lhe deram origem, é fundamental para uma
intervenção urbanística consciente e inovadora.
Assim, neste estudo, que abrange o actual centro da
cidade do Funchal, foi dada especial atenção aos elementos
morfológicos da cidade, de onde se destacam os espaços públicos
– a rua e a praça. Estes elementos que ligam os vários espaços e
partes da cidade e que lhe dão continuidade, estão directamente
relacionados com o seu processo de formação e de crescimento.
Além disso, o seu carácter de permanência, que lhes permite
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resistir às transformações urbanas, constitui uma mais valia para o
estudo e a compreensão da cidade.
Esta análise da morfologia urbana da cidade do Funchal e
dos seus espaços públicos estruturantes abrange um período de
500 anos. Período cujos limites coincidem com a elevação da vila
do Funchal à categoria de cidade – em 21/08/1508 – e a
comemoração dos seus quinhentos anos – 21/08/2008.
Numa primeira fase, foi feita uma investigação a nível da
história desta cidade, o que permitiu identificar e analisar os
momentos mais significativos do seu crescimento e transformação.
Posteriormente, efectuou-se um levantamento e uma
recolha de documentos cartográficos e iconográficos em arquivos,
bibliotecas e museus da Região Autónoma da Madeira e do
Continente –Arquivo Regional da Madeira, Arquivo Histórico
Ultramarino, Gabinete de Informação Geográfica da Câmara
Municipal do Funchal; Sociedade Portuguesa de Geografia;
Biblioteca Pública Regional da Madeira, Biblioteca Nacional,
Biblioteca Pública Municipal do Porto; Museu Quinta das Cruzes e
Casa Museu Frederico de Freitas –, os quais foram utilizados
como uma das bases fundamentais para a sustentação do
trabalho de investigação.
É de salientar que neste estudo privilegiou-se como fontes
primárias de investigação a utilização de documentos materiais,
não escritos, tais como cartografia e iconografia – pintura, gravura,
desenho e fotografia –, que foram conjuntamente e
dialecticamente complementados com diferentes documentos
escritos, sobre as quais falaremos mais à frente.
Seguiu-se um trabalho de campo para a identificação de
permanências, na cidade contemporânea, quer ao nível de
traçados e de espaços públicos, quer ao nível de “testemunhos”
edificados referentes aos momentos mais marcantes do
crescimento e da transformação da cidade, e que se traduziu
fundamentalmente num trabalho fotográfico.
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Identificados os momentos mais significativos do
desenvolvimento da cidade, encontradas as fontes documentais,
em nosso entender, mais adequadas ao apoio e à sustentação da
nossa tese e recolhidas as fontes cartográficas e iconográficas,
passou-se à fase de elaboração da cartografia caracterizadora da
morfologia urbana da cidade do Funchal nos últimos cinco
séculos.
Para este estudo foram elaborados vários mapas, onde
foram concertadas plantas da Cidade do Funchal de diferentes
épocas sobre o ortofotomapa de 2004, o qual constituíu a nossa
base de trabalho.
Este foi um dos nossos principais desafios, que exigiu
muitas horas de dedicação, uma vez que algumas dessas plantas,
sobretudo as dos séculos XVI, XVIII e XIX, apresentavam não só
escalas com unidades distintas, mas sobretudo inúmeras
discrepâncias ao nível de distâncias entre diferentes pontos da
cidade. Saliente-se no entanto que estas diferenças encontradas
são perfeitamente compreensíveis tendo em atenção a época em
que estas plantas foram elaboradas, com métodos e técnicas de
levantamento da cidade e de elaboração das cartas ainda pouco
desenvolvidos. Além disso, é preciso ter em atenção as
deformações provocadas quer pelo material onde estas foram
inicialmente desenhadas – seda, cambraia de linho e papel – quer
pelo modo como algumas delas foram reproduzidas.
Para melhor ajustar as cartas ao ortofotomapa foram
considerados três pontos de referência – a Sé Catedral, a
Fortaleza/Palácio de São Lourenço e o Forte do Pico – os quais
ajudaram a compreender melhor os desvios existentes em cada
uma das plantas.
A elaboração destes mapas, embora inicialmente tenha
parecido uma tarefa impossível, acabou por revelar-se um trabalho
entusiasmante e que, aos poucos, foi revelando “cidades” que
ainda hoje são perceptíveis na malha urbana do Funchal.
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O presente trabalho encontra-se dividido em três
capítulos:
- Capítulo 1. A cidade e a sua morfologia urbana – constitui
um capítulo introdutório onde se fala da cidade e da morfologia
urbana, tema no qual o nosso trabalho se insere, e de conceitos a
ele associados. Apresenta, ainda, uma abordagem geral da
morfologia urbana das cidades portuguesas e dos primeiros
núcleos urbanos construídos fora do território continental no
século XV;
- Capítulo 2. A Cidade do Funchal e a sua morfologia urbana
– aborda a cidade do Funchal desde o século XVI até ao século
XX. Organizado cronologicamente, este capítulo faz para cada
século uma abordagem dos momentos mais significativos da
história da cidade e a caracterização morfológica da sua estrutura
urbana;
- Capítulo 3. O Funchal do século XXI – uma cidade voltada
para o ambiente – este capítulo, numa primeira parte, analisa a
importância da natureza, sobretudo do mar e das ribeiras, nesta
cidade, seguindo-se a identificação dos desafios que a actual
cidade determina e a apresentação de algumas medidas para que
esta possa no futuro ser mais flexível, atractiva e vivida.
02.
Fontes documentais
Pierre de Saint-Georges afirma que “não existe
1
investigação sem documentação” . Num trabalho de investigação,
tem de existir “uma documentação de fundo ligada, por um lado, à
formação teórica de base e, por outro, ao domínio de investigação
2
preciso em que estamos empenhados” . As fontes de
documentação são diversificadas, sendo escolhidas em função do
1
Albarello, L. e outros. (1995). Práticas e métodos de investigação em Ciências
Sociais. Lisboa: Gradiva, pág. 15.
2
Idem, op. cit., pág. 16.
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trabalho que se pretende fazer. Saint-Georges alerta para a
necessidade de haver complementaridade entre diferentes fontes,
salientando que “é raro uma única fonte esgotar a investigação” e
que, embora todas tenham o seu interesse, “a síntese do conjunto
3
é ainda mais rica” .
Neste trabalho foram sobretudo as fontes documentais
não escritas que constituíram a documentação de fundo ligada ao
domínio da investigação. O estudo da morfologia urbana do
Funchal apoiou-se fundamentalmente na cartografia urbana e na
4
iconografia . No entanto, apesar destas fontes constituirem uma
excelente base de investigação, a sua validade só foi possível
porque foram utilizadas conjuntamente e dialecticamente com
diferentes documentos escritos.
Na realidade, as fontes documentais escritas foram um
importante e imprescindível aliado na nossa investigação. A
existência de um vasto espólio documental sobre a cidade do
Funchal, ainda que disperso por diferentes arquivos e bibliotecas,
foi essencial para a nossa pesquisa. Contudo, foi exactamente
este elevado número de documentação disponível que nos
obrigou a restringir a nossa investigação.
Correndo o risco de omitir alguma fonte primordial, fomos
numa primeira fase listando as fontes documentais citadas em
diferentes fontes bibliográficas e ouvindo a opinião de alguns
especialistas. Posteriormente, após uma cuidada selecção,
procurou-se consultar essas mesmas fontes, as quais
constantemente nos remeteram para outras, que, por vezes,
conduziram a novas pesquisas. Em termos de bibliografia
consultada, que também é abundante, optamos em primeiro lugar,
e sempre que possível, por autores da época ou por autores que
3
Idem, op. cit., pág. 21.
4
Se bem que a iconografia - pintura, gravura, desenho e fotografia – constituíu
mais um “testemunho” que veio complementar a leitura da cartografia e de
documentos escritos.
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são de referência indispensável e unânime e, ainda, por autores
especialistas em cada uma das diferentes épocas. Depois, foi
nossa opção recorrer a revistas da especialidade e a trabalhos
recentes, tais como textos publicados em revistas, actas de
colóquios e teses de mestrado, os quais nos deram uma visão
mais actualizada e diversificada do conhecimento das diferentes
épocas.
Assim, em termos de pesquisa em fontes originais,
salientamos os documentos manuscritos do Archivo de Marinha e
Ultramar, inventariado por Eduardo de Castro e Almeida, que se
encontram no Arquivo Histórico Ultramarino e que abrangem o
período compreendido entre 1613 e 1819; os documentos do
Arquivo Histórico da Madeira, consultados no Arquivo do Funchal;
e as Actas da Comissão Administrativa da Câmara Municipal do
Funchal – de 1935 a 1946 – inventariadas por Agostinho Lopes e
por ele gentilmente cedidas para consulta.
Relativamente à bibliografia consultada, fundamental para
a fundamentação, compreensão e caracterização da morfologia
urbana da cidade do Funchal, temos a salientar os trabalhos dos
seguintes autores: Abel Marques Caldeira, Alberto Vieira, Aldo
Rossi, Álvaro Manso de Sousa, António Aragão, Bruno Zevi,
Camillo Sitte, Fernando Augusto da Silva, Gaspar Frutuoso,
Jacqueline Beaujeu-Garnier, Jane Jacobs, José Manuel
Fernandes, Nélson Veríssimo, Manuel Teixeira, Rui Carita e Rui
Nepomuceno.
As publicações periódicas e outros documentos a que
recorremos e valorizamos em termos de consulta, foram a revista
Islenha, com publicação semestral; as palestras e conclusões das
mesas redondas do Colóquio de Urbanismo realizado no Funchal
em 1969; e as Actas do I, II e III Colóquio Internacional de História
da Madeira, realizados, respectivamente, em 1986, 1989 e 1993.
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O sítio da NESOS constituíu ainda uma importante base
de dados de história das Ilhas Atlânticas.
Saliente-se, no entanto, que para além destas fontes que
acabamos de mencionar, existiram muitas outras, que se
encontram indicadas na bibliografia, cuja leitura foi fundamental
para aprofundar e consolidar alguns assuntos, para certificarmonos de situações passadas e para comparar opiniões. Algumas
destas fontes foram, ainda, imprescíndiveis para a identificação e
localização de referências e fontes documentais e bibliográficas
com interesse para a nossa investigação.
No entanto, perante o vasto número de documentação e
bibliografia encontrada inquieta-nos o facto de poder ter
prescindido ou de não ter dado a devida atenção a alguma fonte
documental de referência ou de grande importância para uma
maior valorização deste trabalho.

As fontes documentais não escritas: a cartografia e a
iconografia
Desde há muito que a imagem tem uma importância
relevante para o conhecimento.
M. Faria e E. Pataca relembram que Demócrito, filósofo
pré-socrático, já afirmava que “a construção da racionalidade se
6
baseia na apreensão da realidade através dos sentidos” . Com o
Renascimento, esta concepção do conhecimento e da ciência
volta a ser determinante, constituindo a representação visual uma
forma de linguagem universal. A partir do século XVI surge uma
“nova” ciência baseada na observação da natureza e na
experimentação, de que é exemplo a História Natural que surge no
5
6
Cujo sítio é: www.nesos.net
Faria, M., Pataca, E. M. (2005). Ver para Crer: a importância da imagem na
gestão do Império Português no final de Setecentos. Anais da Universidade
Autónoma de Lisboa, Série História, Vol. 9-10, 61-98, pág. 64.
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século XVII, e onde era necessário ver antes de se nomear. “A
construção de modelos imagéticos passou então a se incorporar à
prática científica. Os cientistas passaram a aceitar que as imagens
7
visuais faziam parte da linguagem científica” . A expressão visual
passou a ter uma finalidade informativa e didáctica, e o recurso à
imagem vulgarizou-se sob a forma de mapas, de desenhos e
pinturas e, posteriormente, sob a forma de fotografias.
O uso destas e de outras imagens tem vindo a
generalizar-se. E para além de recursos informativos e didácticos,
complementares à escrita, passaram, com a chegada da
fotografia, a ser um testemunho de autenticidade do passado,
permitindo efectuar comparações e estabelecer pontes com o
presente.
A cartografia urbana e as diversas formas de iconografia
da cidade tiveram um papel preponderante nesta investigação.
Diversas cartas e plantas da cidade; pinturas, gravuras, desenhos
e fotografias sobre o Funchal foram recolhidas em arquivos,
bibliotecas e museus da Região Autónoma da Madeira e do
Continente – Arquivo Geral da Câmara Municipal do Funchal,
Arquivo Regional da Madeira, Arquivo Histórico Ultramarino;
Sociedade Portuguesa de Geografia; Biblioteca Pública Regional
da Madeira, Biblioteca Victor de Sá, Biblioteca Nacional; Museu
Quinta das Cruzes e Casa Museu Frederico de Freitas -, e
posteriormente alvo de uma análise atenta.
A análise destas fontes documentais não escritas, de
sucessivos momentos históricos, a sua comparação com outras
actuais e com a própria cidade de hoje permitiu reconstruir e,
ainda, formular hipóteses de reconstituição dos traçados urbanos
no Funchal e da sua evolução no tempo.
Resta ainda salientar que as informações que estas
formas de expressão visual nos forneceram foram confrontadas e
7
Idem, op. cit., pág. 65.
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cruzadas com
consultados.

diferentes
tipos
de
documentos
escritos
A cartografia
A cartografia constitui uma fonte documental priviligiada
para a compreensão do passado urbano e para o estudo da
morfologia urbana.
Com o tempo, os mapas, as cartas e as plantas, que nos
mostram os traçados urbanos das cidades ou de parte delas,
assumem um valor documental, por vezes, muito superior aos
objectivos imediatos para os quais foram elaboradas, passando a
constituir importantes fontes de história.
Na verdade, a análise de cartas, de diferentes épocas, de
uma cidade permite não só analisar e comparar o traçado e a
estrutura dos seus espaços, como também identificar e localizar
ruas, praças, edifícios e, inclusive, a distribuição das diferentes
funções na cidade.
A sua leitura depende daquilo a que nos propomos
estudar. De facto, a cartografia permite-nos fazer uma leitura a
vários níveis e escalas, cada qual com o seu significado e
informação.
No caso da cartografia urbana, ela dá-nos, por exemplo,
informações sobre a localização geográfica e as razões da
escolha do sítio para a implantação dos núcleos urbanos; as
características fundamentais dos traçados em sucessivos períodos
históricos; a génese e os principais períodos de desenvolvimento;
as sucessivas intervenções urbanísticas e a localização dos
diferentes espaços da cidade.
Interessa, ainda, salientar que a legenda e as ilustrações
que acompanham a cartografia – por exemplo, desenhos e perfis
de fortificações ou desenhos de paisagens urbanas – constituem
preciosas fontes de informação, que enriquecem e complementam
as cartas com elementos que de outra forma só através de outras
fontes se poderiam ter acesso.
22
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
Na utilização da cartografia como fonte de investigação
torna-se necessário que tenhamos em atenção que esta,
independentemente de ser uma representação da realidade ou de
um projecto ou intenção a construir, mostra-nos antes de tudo a
leitura do seu autor e/ou dos seus promotores. Por outro lado, a
leitura, o significado e a interpretação que hoje fazemos de uma
carta antiga é certamente diferente daquele que ela tinha quando
foi elaborada.
Assim, as informações que resultam da sua leitura e
interpretação devem ser alvo de uma análise cuidada e de uma
verificação e comparação com outras fontes.

A iconografia
A iconografia – pintura, gravura, desenho e fotografia –, à
semelhança da cartografia, constitui também uma importante fonte
documental da cidade.
Ela dá-nos uma visão tridimensional das cidades, o que no
fundo vai complementar a leitura da própria cartografia e dos
documentos escritos. Contudo é importante aqui realçar que
enquanto a pintura, a gravura e o desenho nos dão uma
“realidade” que é muitas vezes o produto de uma recordação, da
imaginação ou de uma reconstituição, a fotografia é “o real no
8
estado passado” , que resulta de um acto espontâneo que capta
directamente o momento e o perpétua no tempo.
Embora tenhamos privilegiado a fotografia neste trabalho,
é importante salientar que recorremos algumas vezes a pinturas,
gravuras e desenhos, enquanto “testemunhos” de lugares há
muito desaparecidos na cidade.
Esta nossa opção deve-se fundamentalmente ao facto da
fotografia não só ser o registo de um momento real e particular,
como também constituir, em si, um “certificado” desse mesmo
8
Barthes, R. (1980). A câmara clara. Lisboa: Edições 70, pág. 93.
23
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
momento. Relativamente a isto, Roland Barthes afirma que
“aquilo que a fotografia reproduz até ao infinito só acontece uma
vez” e que “nela, o acontecimento nunca se transforma noutra
9
coisa” . Lembrando, ainda, que “a essência da fotografia é ratificar
10
aquilo que representa” .
A fotografia surguiu no século XIX, tendo sido anunciada
em 1839 à Academia das Ciências como “a invenção de uma nova
11
forma de representação ou de reprodução do mundo” .
Bauret faz questão de salientar que desde bem cedo tanto
os cientistas como os geógrafos e os etnólogos encararam a
fotografia como um documento seguro, pois permitia “mostrar
numa imagem, exacta e minuciosa, uma infinidade de pormenores
12
que, por vezes, precisariam de várias páginas de descrição” ,
tornando-se “um novo instrumento” enquanto “informação visual”,
contribuindo para o conhecimento e para a compreensão dos
13
acontecimentos .
A fotografia passou assim a ser um testemunho fiável de
uma realidade, que permite, mais tarde, recordar e atestar a
existência dessa mesma realidade. Barthes diz que a fotografia
“não inventa, é a própria autenticação” e que, por conseguinte, ela
14
dá-nos uma certeza que nenhum texto pode dar .
Gabriel Bauret afirma que devido à fotografia “a pintura se
afastou, pouco a pouco, de uma prática figurativa marcada por
preocupações de ordem realista” porque “a fotografia se propôs
substituí-la nesta tarefa, se ofereceu como uma forma de
9
Idem, op. cit., pág. 12.
10
Idem, op. cit., pág. 96.
11
Bauret, G. (1992). A fotografia: história, estilos, tendências e aplicações. Lisboa:
Edições 70, pág. 41.
12
Idem, op. cit., pág. 25.
13
Idem, op. cit., pág. 23.
14
R. Barthes, op. cit., pág. 96.
24
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
representação mais segura, devido ao facto de o procedimento ser
considerado cientificamente irrepreensível”, o que tem vindo a
criar a ideia de que “o valor de um testemunho trazido pela
fotografia não se discute; que este tipo de documento atesta a
15
veracidade dos factos” . Contudo, actualmente, com o avanço da
tecnologia, isto poderá não ser verdade pois é possível construir e
reconstruir uma fotografia, através da sua manipulação.
Além disso, Bauret lembra ainda que “a simples escolha
de um ponto de vista”, por parte do fotografo, “que seguidamente
se materializa pelo enquadramento, constitui (...) um compromisso
marcado com uma certa subjectividade” uma vez que “a decisão
de mostrar esta ou aquela coisa num determinado instante”
16
depende do que o fotógrafo quer mostrar ou dar a conhecer .
Apesar disto, a fotografia pode ser vista como um
17
documento que permite olhar e reviver o passado, compará-lo
com o presente e contextualizar alguns momentos.
A fotografia da cidade, por ser extremamente compósita e
integrar uma série de pormenores, permite não só realizar várias
leituras sobre o momento em que foi captada mas também
compará-la com outros momentos e compreender o que mudou, o
quanto mudou e como mudou.
Relativamente a este aspecto, G. Bauret salienta que “há
coisas que a fotografia sabe mostrar, mas que a pintura (...) não
sabe ou não pode mostrar”, nomeadamente “determinados
aspectos da vida, determinadas realidades do mundo”, onde “(...)
a fotografia tem uma maneira, só dela, de fazer parar o tempo,
15
G. Bauret, op. cit., pág. 42.
16
Idem, op. cit., pág. 43.
17
Reviver no sentido de trazer à lembrança. Nesta perspectiva, R. Barthes lembra
que a fotografia não restitui aquilo que é abolido pelo tempo, pela distância, mas
sim confirma que aquilo que nela vemos existiu realmente (R. Barthes, op. cit., pág.
92).
25
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sugerindo, por vezes, o antes e o depois do instante decisivo”
através de um pormenor que memoriza. O autor lembra ainda que
“existe a emoção que só a imagem fotográfica sabe produzir, ao
mostrar uma pessoa, um sítio, uma coisa que já mudou ou que já
desapareceu. Isto acontece, sem dúvida, porque a fotografia está
associada no nosso espírito, mais ou menos confusamente, à
ideia da morte. A fotografia mostra, pois, coisas que só ela é a
única a poder mostrar (...)”, pois o seu “carácter relativamente
espontâneo” sugere uma “representação da realidade mais brutal,
18
mais natural” . Neste sentido a fotografia é singular, original.
Pelo que se disse, as fotografias por nós recolhidas em
diferentes instituições e, ainda, aquelas que fizemos da cidade
contemporânea ao longo destes nove meses, constituem um
importante repositório de testemunhos da cidade do Funchal na
segunda metade do século XIX e dos séculos XX e XXI.
18
G. Bauret, op. cit., pág. 114 e 115.
26
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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Capítulo I – A cidade e a sua morfologia urbana
1.1
A cidade
Teresa Barata Salgueiro, no seu livro “A cidade em
Portugal”, começa por afirmar que a “cidade refere-se a um
aglomerado populacional que a dada altura foi elevado a esta
categoria por uma entidade político-administrativa (Rei ou
19
Parlamento)” . Mais à frente lembra que “tradicionalmente para a
Geografia cidade é uma forma de povoamento” e que “a cidade é
uma entidade individualizada com certa dimensão e densidade
onde se desenrola um conjunto expressivo e diversificado de
20
actividades” .
A cidade não é apenas um título, uma qualificação. Também
21
não é só “uma forma de povoamento” ; um espaço destinado à
produção e à distribuição de bens e serviços ou, ainda, “um modo
22
de vida” . É antes de tudo “o espaço produzido resultante do meio
físico e da acção humana, que participou no nascimento e
desenvolvimento urbano e oferece agora,
à cidade
contemporânea, um quadro susceptível de ser modificado e de
pesar, por sua vez, na cidade numa longa sequência de pontos e
23
contrapontos nunca interrompidos” , ou seja, é o produto
acumulado das características do lugar e de sucessivas decisões
de diferentes actores, com objectivos e recursos diversos, que ao
19
Salgueiro, T. (1992). A cidade em Portugal. Uma Geografia Urbana. Porto:
Edições Afrontamento, pág. 19.
20
21
22
Idem, op. cit., pág. 26.
Entendida como forma de ocupação do território.
Pois o modo de vida urbano, sendo um produto da cidade, não é exclusivo
desta. (Ibidem)
23
Beaujeu-Garnier, J. (1980). Geografia urbana. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian, pág. 37.
27
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longo do tempo se vão influenciando mutua e continuamente pelas
suas decisões.
A cidade é o resultado de uma relação íntima entre o
24
25
lugar e o espaço , um palco de transformações e interacções de
apropriação e de memórias dessas mesmas apropriações.
Em cada cidade existe um “antes” e um “depois”, daí que
26
ela seja a síntese de vários momentos. De um modo geral o sítio
mantém-se, alterando-se a forma, o desenho urbano. Em
consequência, hoje os sítios são uma síntese de vários momentos
da história, com permanências, sem que no entanto ocorra um
corte epistemológico com o passado.
A sua forma é apenas a forma de “um momento” da
cidade. A forma urbana, tal como diz J. Lamas, não só depende da
sociedade que a produz e das condições históricas, sociais,
económicas e políticas em que a sociedade gera o seu espaço e o
27
habita , mas também “de teorias e posições culturais e estéticas”
28
de quem as idealiza e constrói . Nesta perspectiva a cidade é um
organismo vivo, um artefacto arquitectónico e humano em
constante transformação, que cresce sobre si própria.
A leitura da cidade torna-se assim complexa. J. Lamas
escreve que a primeira leitura da cidade será sempre ao nível
24
Entendido como espaço social, dado que é um espaço transformado ao longo
da história de determinada formação social (Prof. Teresa V. Heitor).
25
Enquanto suporte físico das áreas construídas e livres de um aglomerado.
26
Relacionado com o espaço geográfico, o sítio é, segundo Jacqueline Beaujeu-
Garnier, “o lugar preciso da implantação inicial da cidade” (op. cit., pág.94), ou
como define Aldo Rossi (Rossi, A. (1966). A arquitectura da cidade. Lisboa:
Edições Cosmos, pág. 84), “a área sobre a qual surge uma cidade; a superfície que
ela realmente ocupa”.
27
Lamas, J. M. R. G. (2004). Morfologia urbana e desenho da cidade. Porto:
Fundação Calouste Gulbenkian/Fundação para a Ciência e a Tecnologia, pág. 31.
28
Ibidem.
28
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“físico-espacial e morfológico”, pois só esta pode mostrar a
singularidade de cada espaço e de cada forma, e ainda “explicar
as características de cada parte da cidade”. Afirma, ainda, que a
esta primeira leitura juntam-se necessariamente outras que vão
dar a conhecer diversos conteúdos – históricos, económicos,
sociais e outros. No entanto, salienta que este “conjunto de
leituras só é possível porque a cidade existe como facto físico e
material” e que “todos os instrumentos de leitura lêem o mesmo
29
objecto – o espaço físico, a forma urbana” .
1.2
A morfologia urbana
A morfologia urbana, segundo o livro Espace Urbain –
vocabulaire et morphologie, é:
Étude de la forme physique de l’espace urbain, de son
évolution en relation avec les changements sociaux,
economiques et démographiques, les acteur et les
30
processus à l’oeuvre dans cette évolution.
Tendo em atenção esta definição e seguindo o raciocínio
31
de J. Lamas , poder-se-á então utilizar o termo morfologia para
designar o estudo da estrutura e da configuração exterior de um
objecto. Ou seja, a morfologia enquanto “ciência que estuda as
formas e as interliga com os fenómenos que lhes deram origem”.
Nesta perspectiva, Lamas afirma que a “morfologia urbana
irá estudar essencialmente os aspectos exteriores do meio urbano
29
Ibidem.
30
Gauthiez, B. (2003). Espace urbain – vocabulaire et morphologie. Paris: Monum,
Éditions du patrimoine, pág. 110.
31
J. Lamas, op. cit., pág. 37.
29
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e as suas relações recíprocas, definindo e explicando a paisagem
32
33
urbana e a sua estrutura” .
34
Assim sendo, e ainda segundo José Lamas , “a
morfologia urbana é a disciplina que estuda o objecto – a forma
urbana – nas suas características exteriores, físicas, e na sua
evolução no tempo”. Ou seja, é o estudo da forma do meio urbano
tendo em atenção os seus elementos morfológicos, a sua génese
e transformação no tempo. Contudo, Lamas sublinha que “um
estudo morfológico não se ocupa do processo de urbanização,
quer dizer, do conjunto de fenómenos sociais, económicos e
outros, motores da urbanização. Estes convergem na morfologia
como explicação da produção da forma, mas não como objecto de
estudo”. Esse estudo deve no entanto ocupar-se dos elementos
morfológicos da cidade e da sua articulação entre si e com os
lugares que constituem o espaço urbano. Lamas afirma, ainda,
que um estudo da morfologia urbana não só tem que ter em
atenção os “momentos de produção do espaço urbano”, como
também identificar esses mesmos momentos e as suas interrelações.
José Lamas acaba por salientar que, ao longo da história,
a produção do espaço urbano foi o resultado, não só, de regras
legais e de convenções sociais, mas também do modo como as
várias partes ou elementos da cidade foram organizados e
combinados, ou seja, do seu desenho urbano. E que, só mais
recentemente, houve a preocupação de planificar e programar as
quantidades (densidades, fluxos, volumetria, ...), as utilizações
32
Paisagem urbana enquanto parte de um território ou país que a natureza
apresenta ao observador, portanto no sentido da descrição dos aspectos exteriores
de uma realidade.
33
Ibidem.
34
Idem, op. cit., pág. 38.
30
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(uso do solo) e as localizações, o que, “de um modo geral,
35
precederá o desenho urbano”.
Pelo que em cima ficou dito, podemos afirmar que a
morfologia urbana é o estudo da evolução das formas
urbanas, tendo em atenção o desenvolvimento urbano
37
“reutilização” das partes da cidade.
36
e a
1.2.1 A forma urbana e a sua análise
A palavra forma pode significar:
1.
s.f. conjunto dos limites exteriores de um objecto ou de um corpo que
lhe conferem um feitio, uma configuração ou uma determinada
aparência; feitio; formato;
(...).
Dicionário PRO de Língua Portuguesa, Porto Editora
Neste sentido, a forma de um objecto refere-se à sua
configuração ou aparência exterior, o que implica apenas uma
“leitura - visual - exterior, que não revelará certamente todos os
38
conteúdos da forma” . Contudo, José Lamas afirma que à
morfologia urbana não interessa apenas esta leitura visual,
interessa sobretudo aquilo a que designa por “a leitura da cidade
39
como facto arquitectural” . Segundo este autor, “a construção do
espaço físico [da cidade] passa necessariamente pela
35
Idem, op. cit., pág. 39.
36
Entendido como o “conjunto de processos que conduzem ao crescimento das
cidades, por expansão ou por alterações no seu interior” (J. Lamas, op. cit., pág.
111)
37
“Reutilização” resultante de opções administrativas ou de particulares que não só
alteram o uso, como também modificam a forma. (J. Lamas, op. cit., pág. 112)
38
J. Lamas, op. cit., pág. 41.
39
Ibidem.
31
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arquitectura”, correspondendo assim a noção de forma urbana “ao
meio urbano como arquitectura, ou seja, um conjunto de objectos
arquitectónicos ligados entre si por relações espaciais”. Onde a
arquitectura, segundo a opinião deste autor, é “a chave da
interpretação correcta e global da cidade como estrutura
40
espacial” .
Mas será de facto a arquitectura a chave da interpretação
da cidade como estrutura espacial? Será ela a única ferramenta
correcta e global?
41
Bruno Zevi, no livro Saber ver a arquitectura , define a
arquitectura “como uma grande escultura escavada, em cujo
interior o homem penetra e caminha”, salientando mais à frente
que a arquitectura provém “do vazio, do espaço encerrado, do
espaço interior em que os homens andam e vivem”, e acrescenta
42
que “o espaço interior (...) é o protagonista do fato arquitetônico” .
Diz, ainda, que “tudo o que não tem espaço interior não é
43
arquitectura” , mas que “a experiência espacial própria da
arquitectura prolonga-se na cidade, nas ruas e praças, nos becos
e parques, nos estádios e jardins, onde quer que a obra do
homem haja limitado vazios, isto é, tenha criado espaços
44
fechados” .
40
Ibidem.
41
Zevi, B. (1984). Saber ver a arquitectura. São Paulo: Martins Fontes, pág. 17.
42
Idem, op. cit., pág. 18.
43
Idem, op. cit., pág. 24.
44
B. Zevi justifica deste modo: “(...) todo o espaço urbanístico, tudo o que é
visualmente limitado por cortinas, quer sejam muros, fileiras de árvores ou
cenários, é caracterizado pelos mesmos elementos que distinguem o espaço
arquitetônico.” (op. cit., pág. 25)
32
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
Uma vez que a cidade é constituída por espaços interiores,
“definidos perfeitamente pela obra arquitetônica”, e por espaços
“exteriores ou urbanísticos, encerrados nessa
45
obra e nas contíguas” , a construção do seu espaço físico resulta
46
da sua arquitectura .
Esta ideia é corroborada por Aldo Rossi, quando afirma que
a “forma [da cidade] resume-se na arquitectura da cidade ”,
podendo esta ser entendida como “um grande manufacto, uma
obra de engenharia e de arquitectura (...) que cresce no tempo”,
ou como “factos urbanos caracterizados por uma arquitectura e,
portanto, por uma sua forma”. No entanto, este autor reconhece
que “a arquitectura não representa senão um aspecto de uma
47
realidade mais complexa” .
É importante ter presente que a cidade não só é uma
estrutura espacial, onde necessariamente existe uma relação
entre os elementos que a constituem e o seu espaço, como
também o resultado da sociedade que a produz e das condições
históricas, sociais, económicas e políticas em que essa sociedade
gera o seu espaço e o habita. Deste modo a apropriação social e
cultural do espaço da cidade determina também a sua forma.
48
Quando se analisa a forma urbana é fundamental falar de
49
dimensão e de escala, uma vez que, como afirma J. Lamas,” a
45
B. Zevi, op. cit., pág. 25.
46
Arquitectura entendida como disciplina produtora do espaço.
47
Rossi, A. (1966). A arquitectura da cidade. Lisboa: Edições Cosmos, pág. 43.
48
Independentemente de ser a “forma física” de uma praça, de uma rua ou de uma
cidade ou, ainda, a “composição de diferentes unidades espaciais e elementos
morfológicos” (J. Lamas, op. cit., pág. 73).
49
J. Lamas (op. cit., pág. 73 e 74) considera existir três dimensões espaciais na
morfologia urbana: a dimensão sectorial – a escala da rua; a dimensão urbana – a
escala do bairro e a dimensão territorial – a escala da cidade. É importante aqui
33
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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compreensão e concepção das formas urbanas ou do território
coloca-se a diferentes níveis, diferenciados pelas unidades de
50
leitura e de concepção” .
Depreende-se, assim, que a leitura da cidade e do território
deverá ser feita simultaneamente a diversas dimensões e escalas,
ou seja, em diversos níveis.
No presente estudo, em que nos propomos a analisar a
morfologia urbana da cidade do Funchal e os seus espaços
públicos estruturantes, a partir de elementos de trabalho e de
compreensão do espaço como a cartografia e a iconografia,
optamos por trabalhar fundamentalmente com duas dimensões, a
51
52
que J. Lamas
designa por “dimensão territorial”
e por
53
“dimensão urbana” . A primeira à escala da cidade e a segunda à
escala do bairro.
referir que esta classificação das dimensões espaciais na morfologia urbana apoiase, como afirma Lamas (op. cit., pág. 75), nas classificações de J. Tricart e de A.
Rossi, os quais consideram haver três escalas: uma a nível da rua; outra a nível de
bairro e uma última a nível da cidade.
50
Idem, op. cit., pág. 73.
51
Idem, op. cit., pág. 74.
52
Dimensão territorial - “Nesta dimensão a forma estrutura-se através da
articulação de diferentes formas à dimensão urbana, diferentes bairros ligados
entre si. A forma das cidades define-se pela distribuição dos seus elementos
primários ou estruturantes: o macrossistema de arruamentos e os bairros, as zonas
habitacionais, centrais e produtivas, que se articulam entre si e com o suporte
geográfico.” (J. Lamas, op. cit., pág. 74)
53
Dimensão urbana - “É a partir desta dimensão, ou escala, que existe
vardadeiramente a área urbana, a cidade ou parte dela. Pressupõe uma estrutura
de ruas, praças ou formas de escalas inferiores. Corresponde numa cidade aos
bairros, às partes homogéneas identificáveis, e pode englobar a totalidade da vila,
aldeia, ou da própria cidade.” (Ibidem)
34
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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A utilização destas dimensões e escalas dá a liberdade para
seguir um método de análise que permite realizar aproximações
sucessivas, que nos leva do geral ao particular e vice-versa, sem
54
no entanto chegar ao detalhe que a “dimensão sectorial” propõe.
As mudanças de escala – mais dilatadas e abrangentes ou mais
diminutas e detalhadas – vão contribuir para o enriquecimento do
trabalho através da introdução de novas informações sobre os
elementos morfológicos, ou seja, as partes físicas exteriores do
espaço urbano.
Assim, cada uma das dimensões e escalas acima
mencionadas vai permitir fazer leituras diferentes dos diversos
55
elementos morfológicos . Enquanto na dimensão territorial, ou
escala urbana, “os elementos morfológicos identificam-se com os
bairros, as grandes infra-estruturas viárias e as grandes zonas
verdes relacionadas com o suporte geográfico e as estruturas
físicas da paisagem”, na dimensão urbana, ou escala de bairro,
“são os traçados e praças, os quarteirões e monumentos, os
56
jardins e áreas verdes” que são identificáveis .
Neste estudo privilegiamos fundamentalmente os
seguintes elementos morfológicos: o solo, entendido como a
topografia, ou seja, como o suporte geográfico preexistente e o
traçado/a rua, que liga os vários espaços e partes da cidade e que
se relaciona directamente com a formação e crescimento da
cidade.
É claro que quando analisamos a topografia, o traçado e a
rua inevitavelmente estão associados a estes outros elementos
morfológicos, nomeadamente as praças, os quarteirões, os
54
Dimensão sectorial - “Será a mais pequena unidade, ou porção de espaço
urbano, com forma própria (uma rua, uma praça).” (J. Lamas, op. cit., pág. 73)
55
A identificação destes diferentes elementos morfológicos no espaço urbano varia
de acordo com a dimensão ou escala escolhida para a análise.
56
José Lamas, op. cit., pág. 110.
35
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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monumentos, os jardins e as áreas verdes, aos quais também
daremos a devida atenção.
Na realidade, para o habitante da cidade, enquanto
“homem da rua”, a cidade é vista a partir de fragmentos. Nos seus
percursos diários ele passa pelas ruas, atravessa diferentes
espaços da cidade, descansa nas praças e nos jardins. São estes
os elementos morfológicos que o transeunte apreende quando
circula pela cidade.
Só quando olhamos a cidade “de cima” é que temos uma
noção do todo, e por conseguinte da continuidade do espaço, daí
a utilidade da cartografia urbana no estudo da cidade. O urbanista
ao intervir na cidade tem necessariamente que ter estas duas
perspectivas – a do cidadão que percorre a cidade a pé ou de
carro e a do especialista que observa a cidade através da
cartografia ou dos planos. A cidade é o resultado de um conjunto
de fragmentos os quais só têm coerência se forem pensados e
integrados num espaço maior que é a própria cidade.
1.2.2 Os espaços públicos urbanos
Para o urbanista os espaços públicos urbanos são
espaços exteriores, livres e abertos, com zonas públicas,
movimento e actividades.
O autor do livro Espace Urbain – vacabulaire et
57
morphologie faz a distinção entre “espaço público” e “espaço
público livre”, salientando que é este último que o urbanista
apreende.
Vejamos as definições que nos apresenta:
Espace public – Il est formé des espaces libres publics,
pouvant être couverts d’un vert dense ou arboré et
généralement affectés à des usages publics, et de ce
57
B. Gauthiez, op. cit., pág. 348.
36
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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qui est visible depuis ces espaces. Il comprend donc
pour partie le paysage urbain et les façades formant
interface entre l’espace public et l’espace privé de
l’intérieur des bâtiments. Il peut être souterrain.
Espace libre public – Espace libre accessible au public
et généralement de propriété publique.
Nesta perspectiva, enquanto o “espaço público”
corresponde, no caso de uma praça ou de uma rua, ao seu
espaço livre e ao cenário arquitectónico que o envolve, ou seja, ao
conjunto dos seus elementos construídos e não construídos, o
“espaço público livre” tem apenas em atenção os arranjos da via
pública e a iluminação.
Os espaços públicos englobam uma diversidade de
lugares, de onde se destacam os parques, jardins, avenidas, ruas,
praças, largos, pracetas e frentes de mar e de rios. Estes
encontram-se interligados formando uma rede de percursos que
atravessam a cidade, não só estruturando o meio envolvente
como também dando-lhe continuidade. Além disso, cada um deles
apresenta funções, formas, dimensões, arquitectura e valor
patrimonial distintos, constituindo uma referência na cidade, que
contribui para enriquecer e dar vida à própria urbe.
A cidade foi ao longo da história, como nos lembra Jan
Gehl e Lars Gemzøe, espaço de encontro e reunião de pessoas,
lugar de troca de informação e de bens e serviços, local de cultura
e de diversão. Foi, ainda, “a via pública que proporcionava acesso
58
e conectava os vários usos da cidade” .
Segundo este ponto de vista, os espaços públicos são
lugares de encontro, de comércio e de circulação, que oferecem e
58
Gehl, J. e Gemzøe, L. (2002). Novos espaços urbanos. Barcelona: Editorial
Gustavo Gili, pág. 10 e 13.
37
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
asseguram uma multiplicidade de usos. No entanto, verificamos
que hoje, ao contrário do passado, há uma tendência para uma
separação e diversificação desses usos, que nos são assegurados
por uma “rede contínua” de espaços públicos que se estendem por
toda a cidade.
Embora o uso tradicional destes espaços se mantenha,
constituindo desta forma uma herança que nos foi legada e que
transmite parte da identidade da cidade, a verdade é que novas
funções e usos têm surgido. Hoje, os espaços públicos constituem
importantes lugares de lazer, de passeio, de descanso, de cultura,
de práticas desportivas ou, ainda, áreas de preservação
ambiental.
Verifica-se, no entanto, que alguns espaços públicos da
cidade contemporânea têm vindo a ser alvo de um distanciamento
por parte dos seus utilizadores não só porque “o tráfego de
veículos e os estacionamentos usurparam gradualmente espaço
59
nas ruas e praças” , mas também porque o ruído e a poluição os
invadiram.
Além disso, como afirma Camillo Sitte, a excessiva
regularização urbana, com tudo dividido em blocos isolados
(casas, praças, jardins) e circunscrito pelo traçado das ruas, sem
arte e beleza, torna os diferentes espaços da cidade tristes e
60
monótonos, afastando as pessoas.
Na obra A construção das cidades segundo seus
61
princípios artísticos ,
Camillo Sitte apresenta princípios e
59
Idem, op. cit., pág. 14.
60
Esta é uma ideia que Sitte faz passar ao longo de toda a sua obra, A construção
das cidades segundo seus princípios artísticos, a qual apesar de ter sido escrita em
1889 continua a ter uma leitura muito actual. (Sitte, C. (1889). A construção das
cidades segundo seus princípios artísticos. São Paulo: Editora Ática., pág. 94, 95,
100, 110)
61
C. Sitte, op. cit., pág. 145 – 160.
38
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
métodos de execução para a construção de cidades com
qualidade urbana, semelhante à da cidade antiga. Verifica-se que
quando este autor se refere à construção e/ou intervenções em
praças, ruas e jardins, reforça frequentemente a necessidade de
haver um “efeito de conjunto”, ou melhor, um “efeito artisticamente
62
coeso” salientando que para tal é necessário ter em atenção
determinadas regras, de onde destaca a disposição harmoniosa
dos diferentes elementos desse espaço, sobretudo daqueles “que
podem ser vistos simultaneamente”; a relação entre a dimensão
desses mesmos elementos, que deverá ser proporcional; a
necessidade de existir obras de arte e de áreas verdes,
localizadas sobretudo nos lados desses espaços, libertando desta
forma as áreas centrais para “espaços de lazer tanto para crianças
quanto para adultos”; evitar praças com “um terreno aberto em
todas as direcções, sem fechamento algum, sem nenhuma coesão
63
dos efeitos artísticos”.
Sitte alerta ainda para a questão do trânsito nas ruas,
considerando que é um factor de opressão do espaço, e como tal
deverá ser transferido “para um lugar onde ele não incomode, mas
que seja útil”. Para atrair pessoas às praças, o autor sugere a
construção de edificações para diferentes actividades culturais,
cafés e restaurantes. Defende que cada praça, com dimensões
não muito grandes e com lugares para monumentos e o verde,
deverá ter a sua própria identidade contribuindo, desta forma, para
64
a diversidade da imagem urbana.
Fala ainda da importância do verde e da água na cidade,
defendendo que a sua introdução no meio urbano não só tem
benefícios para a saúde, como também para a “êxtase do espírito”
que encontra repouso nestes espaços naturais espalhados pela
62
Idem, op. cit., pág. 149.
63
Idem, op. cit., pág. 150-153.
64
Idem, op. cit., pág. 153-160.
39
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
65
cidade . Relativamente à sua introdução na cidade, Sitte diz que,
tal como as praças, estes devem estar em harmonia com o espaço
envolvente, uma vez que pode ocorrer um “incômodo conflito
estilístico” entre o realismo da natureza e o idealismo de certas
66
edificações . Além disso, à semelhança das cidades antigas, os
espaços naturais devem ter um tamanho pequeno e estar
espalhados por entre os edifícios da cidade.
Segundo Camillo Sitte, para além dos pequenos jardins
67
que constituem verdadeiros lugares de repouso , a permanência
de “velhas e solitárias árvores” ou de pequenos grupos de árvores
na cidade, por exemplo no canto de uma praças ou no desvio de
uma rua, formam igualmente agradáveis recantos com sombra
68
que convidam ao descanso .
Sitte defende ainda que para garantir a “harmonia do
efeito conjunto desejado” e “realizar belas coisas” é necessário
efectuar um estudo atento dos “elementos pertinentes envolvidos
69
em um grande parcelamento, inclusive o aspecto artístico” ,
abandonar definitivamente o “parcelamento em blocos” e ter em
consideração a opinião não só dos técnicos mas também dos
cidadãos. Além disso, estes espaços da cidade, sobretudo as
praças e os jardins, devem ser repousantes e oferecer protecção
não só do sol e dos diferentes elementos climáticos (vento e
70
precipitação), mas também do tumulto e dos ruídos das ruas .
A utilização e vivência dos espaços públicos está também
dependente da sua segurança, ou melhor, do sentimento de
segurança que transmite.
65
Idem, op. cit., pág. 167.
66
Idem, op. cit., pág. 108.
67
Idem, op. cit., pág. 109.
68
Idem, op. cit., pág. 171.
69
Idem, op. cit., pág. 164.
70
Idem, op. cit., pág. 164.
40
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
Segundo o que Jane Jacobs escreve no seu livro Morte e
71
vida de grandes cidades , o controlo ou vigilância social que
ocorre nos espaços exteriores públicos resulta da multiplicidade de
contactos sociais que diariamente ocorrem nas ruas da cidade e
através dos quais há uma vigilância, individual e colectiva, sobre
as actividades e comportamentos dos diferentes intervenientes na
vida urbana.
Na realidade, esta vigilância depende do número de
pessoas que percorrem os diferentes espaços da cidade, do modo
como estas se deslocam – a pé ou de automóvel – e, ainda, do
tipo de funções existentes nas áreas adjacentes ao espaço
público. Quanto maior a variedade funcional, maior o número de
pessoas que são atraídas ao local e, consequentemente, mais
eficais será a vigilância.
Associada à segurança está a “legibilidade” e a
“permeabilidade”. A “legibilidade” é a “facilidade com a qual as
partes [da cidade] podem ser reconhecidas e organizadas numa
72
estrutura coerente” . Desta forma, quanto mais acessível for a
leitura da cidade, mais clara é a imagem que cada indivíduo tem
dela, o que permite uma melhor orientação e deslocação na urbe
e, também, mais confiança e segurança.
Por seu lado, a “permeabilidade” depende do número de
percursos alternativos para a deslocação das pessoas no espaço
urbano. Assim, quanto maior esta for, maior será a intensidade do
movimento urbano e a diversidade de comportamentos de
deslocação, proporcionando aos transeuntes uma maior
segurança.
A “legibilidade” e a “permeabilidade” vão, ainda, facilitar a
mobilidade intencional ou espontânea dos indivíduos através dos
espaços públicos, garantindo a continuidade na cidade.
71
Jacobs, J. (2000). Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes.
72
Lynch, K. (1960). A imagem da cidade. Lisboa: Edições 70, pág. 13.
41
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
Em suma, os espaços públicos para continuarem a ser
locais por excelência de socialização, de comunicação, de troca,
de descanso e lazer têm necessariamente que ser locais
agradáveis e harmoniosos, onde cada indivíduo se sinta
confortável e seguro; espaços com grande “legibilidade” e
“permeabilidade” que permitam além de segurança, uma fácil
mobilidade e a continuidade dos diferentes percursos da cidade;
locais de inclusão e de coesão social, onde sejam salvaguardados
os interesses e as necessidade de todos os que utilizam a cidade
e os seus espaços públicos.
Além disso, hoje é importante que estes espaços sejam
entendidos como lugares emergentes de novas culturas e práticas
urbanas, em equilibrio com o ambiente, destinados a contribuir
para uma melhoria da qualidade de vida urbana e para a
reanimação da vida pública.
Os espaços públicos devem ainda ter um papel unificador
na cidade, ligando o “antigo” ao “novo” de forma a que não
ocorram processos de segregação.
1.3
A morfologia das cidades portuguesas
Ao observar as cidades portuguesas verificamos que estas
apresentam características morfológicas muito particulares. Vários
autores, dos quais se destacam José M. Fernandes, Manuel
Teixeira e Margarida Valla, salientam que esta particularidade das
formas urbanas das nossas cidades se deve a múltiplos factores,
relacionados, na maior parte das vezes, com os seguintes
aspectos: as diferentes influências e concepções de espaço que
estão na origem da cultura urbana portuguesa; a escolha dos
locais para a implantação dos núcleos iniciais dos aglomerados
urbanos; a íntima articulação dos traçados das cidades com as
particularidades topográficas locais; a localização de edifícios
singulares de acordo com a topografia, e o importante papel
destes edifícios na estruturação dos traçados urbanos; a lenta
estruturação formal das praças urbanas, associadas a diferentes
42
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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núcleos geradores e a funções distintas; a permanência da
estrutura de loteamento e das tipologias de construção a ela
associadas; o processo de planeamento e de construção da
cidade portuguesa, que é sempre projectada no sítio e com o sítio.
Para explicar as múltiplas referências e formas urbanas
presentes na cidade portuguesa, Manuel Teixeira e Margarida
73
Valla
referem a existência de componentes de natureza
74
vernácula e erudita articuladas, que resultaram respectivamente
da influência da “cultura mediterrânica, grega que mais tarde se
75
expressará também através da cultura mulçumana” , e da “cultura
76
romana”.
73
Teixeira, M. C., Valla, M. (1999). O urbanismo português. Séculos XIII – XVIII.
Portugal – Brasil. Livros Horizonte.
74
Sendo a componente vernácula o resultado de uma “cidade que é construída
sem recurso a técnicos especializados e em que se observa uma estreita relação
do traçado urbano com as características topográficas dos seus locais de
implantação”, enquanto a componente erudita é a consequência da “participação
de técnicos especializados, detentores de um saber intelectual, no desenho da
cidade”. (Idem, op. cit.)
75
Relativamente à influência da cultura mulçumana, M. Teixeira e M. Valla afirmam
que ainda hoje é possível apercebermo-nos desta influência nos traçados de
algumas cidades, acontecendo o mesmo a nível da “permanência de certos hábitos
de vida urbana, nomeadamente alguma incapacidade de entender e de usufruir
plenamente os espaços abertos da cidade” (op. cit., pág. 19).
76
A este respeito, Teixeira e Valla salientam que “na cultura urbana portuguesa
cada um dos pólos desta dupla realidade acentua-se ou esbate-se conforme as
circunstâncias históricas ou geográficas. Por um lado, temos a cultura marítima,
costeira e comercial, o império não territorial do controlo das rotas, que nos vem
dos Gregos (...). Por outro lado, temos a cultura territorial e material, o império
efectivo do controlo territorial, que nos vem dos Romanos”. Estes autores referem,
ainda, que “a cultura urbanística grega está associada a um conceito de espaço
arquitectónico e urbano em que o objecto é preponderante: os elementos
43
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
Cada uma destas componentes vai dar origem a um
modelo de cidade distinto. No caso da vernácula, será uma cidade
menos regular, estruturada essencialmente a partir de funções e
de edifícios singulares, civis ou religiosos, situados em lugares
elevados da malha urbana, os quais vão dar sentido e estruturar
os espaços urbanos envolventes. Quanto ao modelo de cidade
associado à componente erudita, verifica-se que este origina
cidades com um traçado regular (ou mais regular), planeadas e
construídas de acordo com um projecto, onde é definida uma
ordem (geométrica) que estrutura o traçado urbano e define a
77
posição dos diferentes tipos de edifícios e de funções.
Assim, pode-se afirmar que a concepção espacial da
cidade portuguesa está directamente relacionada com o modo, a
forma e o momento da construção da própria cidade, ou seja, com
as circunstâncias culturais, históricas ou geográficas e, sobretudo,
com a existência de um maior ou menor controlo central,
78
associado ao poder .
O certo é que, em resultado da sobreposição e articulação
das componentes vernácula e erudita ao longo dos séculos, as
estruturantes
fundamentais
do
espaço
urbano
grego
são
os
objectos
arquitectónicos, que são pólos aglutinadores e dão sentido aos espaços em volta.
A cultura urbana romana, pelo contrário, está associada a um conceito de espaço
em que, mais do que os edifícios, é o próprio espaço urbano que é o elemento
fundamental, sendo este moldado pelas massas construídas que lhe dão forma”.
(op. cit., pág. 18)
77
Ibidem.
78
Relativamente a esta acção do poder político e administrativo, é importante referir
que “quanto mais centralizado e mais forte é o poder mais a racionalidade e a
geometria se afirma” na cidade, aumentando a regularidade do traçado. (Idem, op.
cit.).
44
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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nossas cidades são o resultado da “síntese destas duas
79
concepções de espaço” .
1.3.1 A forma urbana das cidades portuguesas
Quando se fala da forma urbana das cidades portuguesas
é importante ter presente que a passagem de diferentes povos
pelo território continental, desde o século XII a.C., com os
Fenícios, até ao século XIII, com os Muçulmanos, deixou,
inevitavelmente, marcas nas estruturas urbanas, daí que estejam
sempre visíveis características de diferentes culturas urbanas nos
traçados urbanos portugueses.
Por outro lado, há a salientar que desde meados do século
XIII se verificou uma constante adopção de modelos racionais,
promovidos pelo poder. Esta componente erudita foi sobretudo
visível nos traçados regulares medievais dos séculos XIII e XIV,
nos traçados com influências renascentistas a partir do século XVI,
nos traçados urbanos ligados às fortificações do século XVII e nos
traçados iluministas do século XVIII. Nos séculos que se seguiram
esta componente esteve associada, em oitocentos, à continuação
da utilização dos traçados barrocos, de que são exemplo as
avenidas de Lisboa desenhadas por Ressano Garcia e, na
primeira metade do século XX, à influência de um “urbanismo pós80
industrial” , visível nos planos resultantes da política
desenvolvimentista do Eng. Duarte Pacheco, e à influência do
Urbanismo Moderno e da Carta de Atenas.
Façamos aqui uma breve caracterização dos traçados
das cidades portuguesas entre os séculos XIII e XX.
79
80
Idem, op. cit., pág. 18.
Não só preocupado em encontrar soluções para os problemas que a
industrialização trouxe às cidades, mas também com a valorização do desenho
urbano. Um “urbanismo científico e estético” (Pelletier, J., Delfante, C. (1969).
Cidades e Urbanismo no Mundo. Lisboa: Instituto Piaget, pág. 246).
45
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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Segundo Manuel Teixeira, as cidades medievais
planeadas construídas em Portugal nos séculos XIII e XIV
apresentavam “um conjunto de quarteirões com uma forma
rectangular alongada, cada um deles constituído por uma
sucessão de estreitos lotes urbanos paralelos uns aos outros e
orientados no mesmo sentido, com uma frente para uma rua
81
principal e outra frente para uma rua de traseiras” . Esta
disposição paralela das ruas em ruas principais e ruas de traseiras
que se alternavam, era cortada por outras vias que as cruzavam
perpendicularmente.
Nesta organização ortogonal de ruas e quarteirões, as
praças, como afirma o mesmo autor, ou não existiam como tal ou
82
iam se estruturando gradualmente ao longo do tempo.
Estas cidades medievais apresentavam ainda uma outra
característica, que era a existência de muralhas defensivas.
A partir dos finais do século XV e durante o século XVI,
refere M. Teixeira, ocorreu em Portugal um importante movimento
83
de renovação urbanística , cujo objectivo era o de modernizar as
81
M. Teixeira e M. Valla, op. cit., pág. 26.
82
Segundo M. Teixeira, nesta altura era frequente existirem os largos “onde se
localizavam os edifícios institucionais mais importantes” e que resultavam “do
alargamento da rua (principal), obtido através de um recuo da igreja”; e os terreiros,
que tinham origem em terrenos residuais entre o perímetro das muralhas e os
quarteirões construídos. Este autor, refere ainda que estes logradouros cumpriam
originalmente as funções de praça. (Teixeira e Valla, op. cit., pág. 26 e 27)
83
Este autor, mais do que uma vez, atribuiu este movimento de renovação
urbanística em Portugal ao desenvolvimento de uma nova atitude para com o
espaço urbano da cidade - influenciada pelos “novos conceitos de espaço urbano
ligados à redescoberta da tradição urbana da Antiguidade veiculada pelo
Renascimento”, que chegaram a Portugal através de vários tratados italianos - e à
reforma de leis e normas urbanísticas, iniciadas por D. Afonso V e prosseguidas
46
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
cidades, e que consistiu fundamentalmente na reforma, alteração
e/ou expansão das cidades existentes. Este autor menciona
também que, nalguns casos, estas intervenções incidiram na
reforma dos espaços públicos das cidades, particularmente na
criação de praças, associadas à construção de novos edifícios
institucionais, tais como as casas de Câmara, as Misericórdias e
as Igrejas Matrizes que constituíram os edifícios estruturantes da
maior parte destas praças. Noutros casos, tratou-se da construção
de novas expansões urbanas planeadas, em que foram aplicados
novos princípios de regularidade e de ordenamento, de influência
84
renascentista .
Este autor diz, ainda, que foram adoptadas no nosso país
três tipologias urbanas: o traçado rectilíneo e ordenado das ruas, a
construção de praças rectangulares fechadas e a utilização de
uma malha urbana ortogonal. Relativamente às estratégias de
desenho e de composição urbana, J. Teixeira refere que:
(...) incluíam a simetria, referida a um ou
mais eixos; a utilização da perspectiva e o
fechamento de vistas através da colocação de
edifícios, monumentos ou elementos urbanos
significativos no enfiamento de ruas ou de grandes
eixos; a utilização do mesmo tipo de elementos como
pontos focais de praças ou de espaços urbanos que
se viriam a estruturar como praças em torno destes
elementos; a integração de edifícios individuais em
conjuntos arquitectónicos harmónicos, muitas vezes
através do ordenamento e da repetição das
85
fachadas.
por D. João II e D. Manuel I, e que deram origem às Ordenações Afonsinas e mais
tarde às Ordenações Manuelinas. (Teixeira e Valla, op. cit., pág. 27, 83)
84
Idem, op. cit., pág. 83.
85
Idem, op. cit., pág. 85 e 86.
47
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
O século XVII trouxe a Portugal novos desafios a nível de
intervenções urbanísticas. Por um lado, a Restauração da
Independência de Portugal (1640) fez com que muitas cidades
tivessem sido alvo de intervenções com o objectivo de reforçar e
de melhorar o seu sistema defensivo. E, por outro lado, a
necessidade de ocupar e defender os novos territórios
ultramarinos implicou a construção de fortes e de novos conjuntos
fortificados. Estas intervenções, baseadas nos sistemas que então
vigoravam na Europa, tiveram implicações na estrutura urbana das
cidades portuguesas.
86
As cidades seiscentistas, segundo Margarida Valla ,
apresentavam várias cinturas de fortificação. Uma primeira
definida pelas cortinas e pelos baluartes, seguida de outra
composta, por exemplo, por fossos e esplanadas. Era, ainda,
frequente a existência de fortes, redutos e baterias, implantados
na área envolvente ao burgo, que constituíam uma terceira cintura
de fortificação e tinham como função dificultar o ataque inimigo.
Nestas cidades os edifícios militares localizavam-se junto às
muralhas, e ficavam separados do resto da cidade pela estrada de
armas que acompanhavam o perímetro das fortificações. Surgiu
87
também a Praça de Armas , que normalmente era independente
das restantes praças, destinadas a usos civis.
M. Valla salienta, ainda, que como neste século a
preocupação defensiva era dominante, “a intervenção no tecido
urbano procurava sobretudo uma relação entre as funções
urbanas e militares para que pudessem coexistir dentro do mesmo
88
espaço” .
86
87
Teixeira e Valla, op. cit., pág. 149.
A Praça de Armas era o “local de exercício e de reunião dos regimentos
militares” (op. cit., pág. 153)
88
Idem, op. cit., pág. 154.
48
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
No século XVIII, a experiência adquirida nos territórios
89
ultramarinos juntou-se aos princípios racionais iluministas e, em
conjunto, transformaram as cidades portuguesas, tornando-as
mais racionais e, assim, afastando-as cada vez mais do espaço,
90
do lugar, onde eram implantadas. Manuel Teixeira salienta que a
racionalização do traçado colocou em segundo plano a correcta
compreensão do sítio, chegando mesmo ao ponto de em algumas
cidades, construídas de raiz, a racionalidade e a abstracção
relativamente ao sítio serem totais.
91
Este autor
refere ainda que neste século surgiram
cidades construídas com planos regulares, concebidos segundo
traçados geométricos, na maior parte das vezes ortogonais, onde
a praça aparecia como o elemento central da malha urbana.
O século XIX, “século de charneira, caracterizado pela
continuidade da cidade clássica e barroca e pelo aparecimento de
novas tipologias urbanas que vão preparando a cidade
92
moderna” , continuou a distinguir-se pela utilização dos sistemas
de traçados regulares, quadrículas, quarteirões, ruas, avenidas e
praças, tendo no entanto sido introduzidas algumas inovações tais
como jardins, parques, alamedas, passeios públicos e avenidas.
Na realidade, verifica-se que neste século, um pouco por
todo o mundo, houve uma tendência para as grandes
transformações urbanísticas e para o crescimento das cidades. Na
89
É importante não esquecer que a expansão marítima portuguesa para as Ilhas do
Atlântico, África, Brasil, Índia e Extremo Oriente constituiu um grande factor de
desenvolvimento para o urbanismo português. Na realidade, estes novos territórios,
sobretudo os não urbanizados, foram um campo privilegiado a nível da
experimentação e do desenvolvimento de traçados regulares em cidades
construídas de raiz.
90
Idem, op. cit., pág. 285 e 286.
91
Idem, op. cit., pág. 286.
92
J. Lamas, op. cit., pág. 203 e 204.
49
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
Europa, estas transformações caracterizaram-se essencialmente
93
pela criação de grandes expansões e de traçados e renovações
que, na maior parte das vezes, destruíram grande parte da malha
94
urbana existente . Os centros das cidades foram modernizados e
as cidades fortificadas viram as suas muralhas serem demolidas.
Abriram-se grandes avenidas, construiram-se sistemas de
drenagem de águas e de recolha de esgotos, criaram-se grandes
praças e jardins. Este processo, que acabou por ser de destruição
e de renovação, não só marca a segunda metade do século XIX,
como prolongou-se pelo século XX até à Segunda Guerra Mundial.
Portugal, naturalmente, não ficou indiferente a todo este
processo e as principais cidades portuguesas passaram, assim, a
ser de algum modo “subjugadas” pelo progresso e pelo
cosmopolitismo, sendo Paris o principal modelo da época.
Nas primeiras décadas do século XX, com a influência da
“urbanística Formal”, do urbanismo Moderno e da Carta de
Atenas, continuou-se a assistir à renovação dos centros históricos
e à conservação parcial e limitada, isto é, descontextualizada do
seu conjunto, de monumentos e de partes dos centros urbanos.
A partir dos anos 60, com a revalorização do património,
assistiu-se à redescoberta do centro da cidade e dos bairros
antigos. Surgindo, assim, todo um movimento de reestruturação,
remodelação, reabilitação, melhoramento do habitat, salvaguarda
e restauro, que ainda hoje se faz sentir nas nossas cidades.
No entanto, nas últimas décadas tem sido cada vez mais
notória a globalização das cidades. A transição da sociedade
industrial para a sociedade do conhecimento tem vindo a traduzirse numa profunda alteração dos processos e formas de
urbanização e de ocupação do território. Algumas cidades
93
Expansões que foram, em parte, motivadas pela generalização da utilização do
automóvel que aumentou e facilitou a mobilidade da população.
94
O Plano de Haussmann para a cidade de Paris é, sem dúvida, um dos melhores
exemplos.
50
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
portuguesas começam a mostrar sinais desta mutação, tornandose aos poucos cada vez mais “globalizadas”, ou seja, “indiferentes
95
ao local” .
96
Em suma, como diz M. Teixeira , é possível afirmar que,
de um modo geral, a cidade portuguesa foi uma cidade com
grande coerência interna, resultante de uma prática urbanística
que, embora articulada com a cultura europeia, não se limitou a
reproduzir modelos abstractos, tendo procurado responder à
realidade material e cultural de cada situação.
No entanto, é importante salientar que a partir da segunda
metade do século XIX, com o prevalecimento da racionalização
das cidades, a crescente abstracção relativamente aos espaços
onde estas se implantam e a renovação do centro das cidades, a
“originalidade” da cidade portuguesa parece ter começado a ficar
ameaçada. No século XX, ainda que a partir da década de 60
tenha surgido uma nova preocupação com o património e,
consequentemente, com a “cidade antiga”, o certo é que algumas
cidades portuguesas continuaram a transformar-se e a adquirir
formas cada vez mais “globalizadas”.
1.3.2 Os primeiros núcleos urbanos construídos fora do
território continental – o exemplo das cidades das Ilhas
Atlânticas
A expansão marítima portuguesa teve início no século XV
com a descoberta e ocupação dos arquipélagos da Madeira e dos
Açores. Com a colonização destes arquipélagos, de onde se
destaca o da Madeira dado que foi o primeiro a merecer uma
95
Brandão, P. (2006). A cidade entre desenhos. Profissões do desenho, ética e
interdisciplinaridade. Lisboa: Livros Horizonte, pág.
96
Teixeira e Valla, O Urbanismo Português, séculos XIII – XVIII, Portugal – Brasil.
51
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
ocupação efectiva, estes transformaram-se em áreas pioneiras de
experimentação e depois de modelo de referência. A urbanização
destes territórios insulares, enquanto primeiras experiências fora
de Portugal Continental, não constituiu uma excepção,
destacando-se como exemplos as cidades do Funchal, de Ponta
Delgada, da Horta e de Angra do Heroísmo.
Nestas cidades das Ilhas Atlânticas é possível verificar e
confirmar a capacidade que os portugueses tinham em
compreender e articular as suas cidades com o território. M.
97
Teixeira explica que a partir de um modelo de referência, que
eram as cidades construídas em território continental, os colonos
e, posteriormente, os técnicos de arruação foram adaptando, de
um modo quase intuitivo, esse modelo às características de cada
lugar. O autor afirma ainda que, “apesar da diversidade de
condições locais e da forma aparentemente casual como estes
núcleos urbanos eram construídos, a tradição urbana que lhes
estava na base era suficientemente forte para assegurar uma
identidade e uma coerência formal bastante fortes entre todas
98
elas” .
Todas estas cidades insulares apresentam características
morfológicas semelhantes, o que é sobretudo visível na sua
localização junto à costa, na escolha do sítio para a implantação
do núcleo original e no traçado das ruas. O certo é que, de um
modo geral, nestas ilhas os núcleos urbanos primitivos eram
implantados em baías abrigadas e com boa capacidade de defesa.
Além disso, era comum estes núcleos urbanos desenvolverem-se,
inicialmente, ao longo de um caminho paralelo ao mar, que ligava
o núcleo de ocupação primitiva à casa do donatário ou a uma
capela localizada num dos extremos deste caminho. Numa fase
posterior, iam surgindo ruas paralelas e perpendiculares à pri
mitiva, por onde os núcleos se expandiam.
97
Teixeira e Valla, op. cit., pág. 48
98
Ibidem.
52
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
1. A semelhança das características morfológicas das cidades insulares –
Planta das forteficaçoens, e Bahia da Ilha do Faial, 1804 (Teixeira e Valla, O
urbanismo português. Séculos XIII – XVIII. Portugal – Brasil., pág. 59);
pormenor do Plan of the Town of Funchal By Cpt. Skinner, 1775 (C.M.F.F.)
M. Teixeira faz a seguinte síntese relativamente ao modo
como, inicialmente, estas cidades insulares se estruturaram e
evoluíram:
Numa primeira fase a estrutura de ocupação
era essencialmente condicionada pelas condições
físicas do território: o núcleo de ocupação primitivo
implantava-se num local com boas condições de
defesa e boas condições como porto natural, e a
primeira rua, que viria a tornar-se a principal,
acompanhava a curvatura da baía. A estrutura de
ocupação que daí resultava era essencialmente
linear. Numa fase subsequente, desenvolviam-se
uma ou duas
outras ruas, paralelas à primeira e a curta distância
desta para o interior. Apoiando-se nesses eixos
fundamentais, construíam-se perpendicularmente a
eles algumas ruas transversais de pequena dimensão
que os ligavam. Estruturava-se assim um pequeno
número de quarteirões, de forma sensivelmente
53
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
rectangular, que se dispunham na sua maior
dimensão paralelamente à linha da costa e que
99
constituíam a primeira fase de urbanização.
O mesmo autor diz ainda que:
Nas fases seguintes de desenvolvimento
urbano das cidades insulares, eram construídas ainda
outras ruas paralelas à rua primitiva que se
desenvolvia ao longo da costa. No entanto, dada a
distância cada vez maior a que cada uma das ruas
era traçada relativamente às anteriores, os
quarteirões formados por elas e pelas transversais
eram agora mais alongados e dispunham-se
perpendicularmente ao mar. Se bem que os grandes
eixos estruturantes da cidade continuassem a ser as
ruas paralelas à linha de costa, as ruas que as
cruzavam e se dispunham perpendicularmente ao
mar tendiam a adquirir uma importância crescente na
estrutura da cidade, tornando-se progressivamente a
100
direcção dominante do traçado.
E acrescenta que “a inovação nos traçados urbanos
destas cidades observa-se a partir das primeiras décadas do
século XVI”, sobretudo quando são construídas “novas zonas de
expansão” e/ou é feita a reestruturação de algumas “partes
101
centrais da malha urbana” .
No caso específico do Funchal, é nos finais do século XV,
início do século XVI, que ocorre a primeira “modernização” da
99
Idem, op. cit., pág. 49.
100
Idem, op. cit., pág. 50.
101
Ibidem.
54
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
102
então vila . Na verdade, data de 13 de Setembro de 1484 a carta
onde o Duque D. Manuel mostra a preocupação em saber “has
103
cousas que som necessareas aesta villa” , tendo posteriormente
104
o futuro monarca mandado fazer a “ygreja do fumchall” e “praça
E camara E paaço de tabaliãees E picota”, no “lugar mais
105
conveniente e no meio da povoação” . É, ainda, sob o governo
deste monarca que é construído no Funchal um novo sector da
malha urbana, composto por um conjunto de quarteirões
organizados segundo uma estrutura ortogonal regular.
D. Manuel I teve um papel muito importante no
crescimento e na modernização do Funchal no final de
quatrocentos, início de quinhentos. Na realidade, é o próprio
Gaspar Frutuoso que nos diz que o Funchal “sempre foi vila até o
tempo de el-Rei Dom Manuel, que a fez cidade e a acrescentou, e
106
enobreceu com obras que nela mandou fazer” .
Assim, e no seguimento da análise do que escreve M.
Teixeira, podemos afirmar que estas “obras”, devido às suas
características e ao modo como foram implementadas, podem ser
consideradas uma inovação na prática urbanística portuguesa não
só porque a praça junto à igreja, neste caso a Sé, e a nova malha
102
103
O Funchal só é elevado à categoria de cidade em 1508.
Doc. nº 90, 13 de Setembro de 1484, Carta do duque em que manda que
Requerem has cousas que som necessareas aesta villa – Arquivo Distrital do
Funchal (1972). Arquivo Histórico da Madeira. Boletim do Arquivo Distrital do
Funchal., Vol. XV, Funchal: D.R.A.C., pág. 139 e 140.
104
Doc. nº 95, 22 de Março de 1485, Apomtamentos del Rey dom manuell Sendo
Duque pera esta ylha Da madeyra - in op. cit., pág. 147 a 156.
105
Doc. nº 112, 3 de Outubro de 1486, Carta do duque em que manda fazer praça
E camara E paaço de tabaliãees E picota em esta vila – in op. cit., Vol. XVI, 1973,
pág. 200 e 201.
106
Frutuoso, G. (1584). Livro Segundo das Saudades da Terra. Ponta Delgada:
Instituto Cultural de Ponta Delgada, pág. 98.
55
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
107
urbana passam a ser um espaço urbano regular planeado mas,
sobretudo, porque resultam de uma acção deliberada, ou seja, de
uma estratégia de desenvolvimento e de modernização urbana.
A cidade de Angra do Heroísmo é outro exemplo onde
estes princípios foram aplicados. Esta cidade, que apresenta
características topográficas e de desenvolvimento distintas das
suas congéneres, vai a partir da primeira metade do século XVI
estruturar-se segundo um traçado regular inovador onde são
explorados conceitos e formas urbanas com influência
renascentista.
M. Teixeira, nos seus textos, deixa passar a convicção de
que foi nestas cidades dos Arquipélagos da Madeira e dos Açores
que se fez a síntese entre a prática do planeamento medieval e os
princípios teóricos emergentes do urbanismo renascentista. O
mesmo afirma que é com estas cidades, e em particular com a
cidade de Angra do Heroísmo, “que se inicia a inovação e a
experimentação urbanística” que nos séculos seguintes se irá
108
desenvolver em Portugal Continental, no Brasil e no Oriente .
107
Segundo M. Teixeira, as praças das igrejas deixam de ser um espaço residual
que resultava do encontro de várias ruas ou então de um espaço situado à margem
da malha urbana edificada. A estrutura de ruas também deixa de ser medieval e
passa a ser constituída por lotes orientados para as quatro frentes do quarteirão,
que vão criar uma estrutura de ruas mais urbana, sendo a hierarquia “feita pelo seu
perfil, pelas funções e pela arquitectura dos edifícios que nelas se vêm construir”.
(Teixeira e Valla, op. cit., pág. 315)
108
Idem, op. cit., pág. 50.
56
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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Capítulo II – A cidade do Funchal e a sua morfologia urbana
A cidade do Funchal está localizada numa ampla e
acolhedora baía, da vertente Sul da Ilha da Madeira. Com o
Atlântico a seus pés, é percorrida por três ribeiras, a Ribeira de
São João, a Ribeira de Santa Luzia e a Ribeira de João Gomes
(ver Mapa A - 1, 2 e 3, respectivamente), ao longo das quais a
cidade tem vindo a expandir-se, encosta acima, nestes últimos
500 anos.
A nossa área de estudo corresponde fundamentalmente ao
actual centro da cidade, abrangendo três freguesias do Concelho
do Funchal – freguesia da Sé; freguesia de S. Pedro e freguesia
de Santa Maria Maior. Ficam, ainda, localizados nesta área os três
núcleos históricos da cidade – o núcleo histórico de Santa Maria, o
núcleo histórico da Sé e o núcleo histórico de S. Pedro e Santa
Clara.
2.3
De lugar a cidade do Funchal
109
O povoamento da Ilha da Madeira teve início em 1420 .
110
Apesar de alguns autores
considerarem a existência de um
109
“E foi o começo da povoação desta ilha no ano do nascimento de Jesus Cristo
de mil quatrocentos e vinte anos; a qual ao tempo da feitura desta historia (1452-3
?) estava em razoada povoação, que havia em ela CL moradores, afora outras
gentes, que aí havia, assim como mercadores, e homens e mulheres solteiros, e
mancebos, e moços e moças, que já naceram na dita ilha, e isso mesmo clerigos e
frades, e outros que vão e veem por suas mercadorias e cousas que daquela ilha
não podem escusar” (Zurara, G. E. (1452-53?). Crónica de Guiné. Barcelos:
Livraria Civilização, Cap. LXXXIII, p. 348). No entanto, há autores que afirmam que
o povoamento teve início em 1425, como é o caso de Eduardo Pereira no livro
Infante D. Henrique e Geografia Histórica das Capitanias da Madeira, 4º ed., pág.
18.
110
Como por exemplo Manuel C. Teixeira e José Manuel Azevedo da Silva.
57
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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“núcleo embrionário” no lado ocidental da baía, junto a Santa
Catarina, onde o primeiro capitão donatário mandou construir a
sua primeira casa de madeira e a capela de Santa Catarina
(1425), o facto é que é comum considerar-se que o núcleo de
ocupação primitivo localizava-se na zona Leste da baía do
Funchal, o qual recebeu inicialmente o nome de Santa Maria ou de
Santa Maria do Calhau.
111
Segundo escreve António Aragão , existia ali uma
pequena igreja, a Igreja de Santa Maria do Calhau, a partir da qual
112
“estendia-se um chão que deslizava até ao calhau” e que “servia
de espaço social de convívio e comércio”. Desta igreja saía, “para
nascente”, uma rua e ao lado ficava um “improvisado cemitério” e
um poço público.
Com uma estrutura de ocupação linear, que se adaptava
às condições físicas do local, este núcleo urbano estendia-se “ao
113
longo da faixa de terra chã em face do mar, paralela ao calhau” ,
114
desde a Ribeira de Santa Maria até ao Corpo Santo. A rua que,
de um modo natural, resultou desta implantação recebeu o nome
de Rua de Santa Maria.
Uma segunda rua surgiu a norte desta, com um traçado
praticamente paralelo à anterior, e recebeu o nome de Rua Nova
111
Aragão, A. (1992). O espírito do lugar. A cidade do Funchal. Lisboa: Pedro
Ferreira Editor, pág. 21.
112
António Aragão esclarece que este “chão” corresponde “à actual área urbana
que desce dos arredores do Mercado dos Lavradores e pára junto ao calhau” e que
“a poente fazia fronteira com a Ribeira de Santa Maria (hoje de João Gomes) e
logo a levante abria-se a Rua de Santa Maria, enquanto a norte confrontava com
uma tapagem que se encontrava entre o adro da igreja e o lugar que, em 1430,
pertencia ao capitão João Gonçalves.” (op. cit., pág. 22)
113
Aragão, op. cit., pág. 23.
114
A actual Ribeira de João Gomes.
58
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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115
da Santa Maria ou apenas de Rua Nova . António Aragão fala
ainda de “mais algumas diminutas ruas, travessas, azinhagas e
becos que, a pouco e pouco, foram surgindo e umas casas
dispersas, em geral térreas, erguidas nos seus assentamentos ou
116
lugares e quintãs, amuradas ou não” .
Apesar deste autor não referir a orientação destas
pequenas ruas, travessas, azinhagas e becos é praticamente
evidente que estes foram construídos a partir das duas primeiras
ruas, que funcionaram como eixos fundamentais deste primeiro
núcleo urbano.
Estava assim constituído o núcleo urbano primitivo do
Funchal.
O lugar do Funchal depressa cresceu e durante a década de
1450 foi elevado à categoria de vila e de sede de concelho. É
também por esta altura que a produção de cana-de-açúcar
começa a ser significativa na Ilha. Surge o primeiro engenho junto
à Ribeira de Santa Luzia e, pouco depois, tem início a exportação
de açúcar.
Começa uma nova era para a Ilha da Madeira e,
sobretudo, para a vila do Funchal.
Novos povoadores chegam e o núcleo urbano primitivo de
Santa Maria alarga-se para ocidente, transpondo a Ribeira de
117
João Gomes .
O certo é que, a partir de 1466, altura em que os impostos
do açúcar diminuem, a vila do Funchal sofre um grande
118
incremento. Segundo António Aragão , “duas áreas urbanas
115
Segundo A. Aragão está Rua Nova corresponde, “salvo umas quantas variantes,
ao traçado da actual Rua Latino Coelho” (op. cit., pág. 25).
116
Ibidem.
117
António Aragão estimou que no ano de 1455 viviam na vila do Funchal cerca de
3 mil habitantes. (op. cit., pág. 22 e 23)
118
Idem, op. cit., pág. 27 e 31.
59
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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começam a distinguir-se e a afastar-se uma da outra ao longo da
baía do Funchal”. Ficando a nascente “o povoado primitivo de
119
Santa Maria do Calhau”
e, para poente deste, “no espaço
compreendido entre as três ribeiras”, o novo povoado que irá
120
constituir os “alicerces da futura cidade açucareira” .
Parece também certo que nesta altura já existia, “na frente
do calhau que une as três ribeiras”, uma rua cujo nome é
121
“adequado às suas funções sociais” – a Rua dos Mercadores .
Aragão especifica, ainda, que “a rua estende-se desde a Ribeira
de João Gomes, serpenteando o calhau até estancar quase junto
122
às terras de Sta. Catarina” .
A ligação entre estas duas áreas urbanas era feita por
123
duas pontes de madeira – a da Cadeia e a de Santa Maria .
No ano de 1471, os limites do Funchal são os seguintes:
(...) de Sam Pedro ataa tuha (sic) do duque de Santa
Catarina ataa Santa Luzia e ata casa de Joham
124
Gonçalluez capitam (...) .
119
Onde se localizavam as “tendas e moradas dos homens de ofício reunidos ao
longo da Rua da Santa Maria e da Rua Nova” (Aragão, op. cit., pág. 31).
120
Nesta data este novo povoado era constituído por “quintãs e lugares, cerrados
[terrenos murados] de canaviais e hortas, por entre assentamentos mais complexos
de razões agrícolas e moradas” (Ibidem).
121
Segundo o mesmo autor, esta rua que já era conhecida com este nome em
1469, tornou-se na principal artéria do novo povoado, sendo mesmo conhecida
apenas pelo nome de Rua. Ali localizavam-se as “logeas” de negócios, sobretudo
ligadas ao comércio do açucar. (Idem, op. cit., pág. 31 e 32).
122
Aragão, op. cit., pág. 31.
123
Idem, op. cit., pág. 36
124
Estes são os limites definidos na acta da sessão camarária de 27 de Julho de
1471, a qual estipula os limites em que se obrigavam os moradores da vila a
recolherem a suas casas, por razões de segurança, depois do “syno de corer”.
60
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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125
António Aragão
é de opinião que estes limites, embora
“abrangendo um espaço bastante ambicioso”, correspondiam à
dimensão real do Funchal. Esclarece ainda que “San Pedro” é
“agora São Paulo” e que “a tuha do duque” corresponde ao “granel
do duque situado na parte leste da Rua de Santa Maria”.
Relativamente a “Santa Luzia” diz que é a “antiga Igreja de Santa
Luzia que se levantava nas imediações do actual Caminho dos
Saltos e abaixo da Levada”.
À medida que a vila e o negócio do açúcar cresce
aumenta também o número de terrenos murados com plantações
de cana-de-açúcar. É necessária mais mão-de-obra. Chegam os
negros à Ilha da Madeira e é implantada a escravatura.
Em consequência disso, por volta de 1483, tem início um
ciclo de emigração de trabalhadores assalariados madeirenses
para Canárias, e mais tarde para S. Tomé e o Brasil. Estes
emigrantes levam consigo não só o conhecimento da “tecnologia
126
açucareira de raiz insular” como também os próprios artefactos
para a produção do açúcar. A futura “cidade do açúcar” vai assim
“exportar” a sua tecnologia açucareira e, juntamente, a mão-deobra, o que mais tarde acaba por ter péssimas repercussões em
termos económicos.
Na Ilha impera o poder “subtil” das “forças económicas das
classes mais privilegiadas”, sendo os seus interesses
127
salvaguardados pela “Casa dos Vinte e Quatro” e pela Câmara.
(Acta de 27 de Julho de 1471 – Costa, J. P. (1995). Vereações da Câmara
Municipal do Funchal – século XV. R.A.M.: S.R.T.C./CEHA, pág. 20.)
125
Aragão, op. cit., pág. 24 e 25.
126
Idem, op. cit., pág. 33
127
A Casa dos Vintes e Quatro Mesteres foi fundada em 1483 e era “composta
pelos procuradores dos mais diversos mesteres ou ofícios” existentes na Ilha, os
quais elegiam quatro representantes que participavam nas sessões camarárias.
(Ibidem)
61
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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As “gentes dos ofícios”, para sobreviver, só tinham como
alternativa a emigração. Entretanto, continuava a chegar ao
Funchal um grande número de estrangeiros e de nacionais
oriundos do continente que, ligados ao comércio do açúcar,
compravam terras de canaviais e construíam engenhos e
128
moradias .
129
Em finais de quatrocentos a vila do Funchal prospera e
cresce.
A vila, com um número cada vez maior de habitantes e
instalada entre as três ribeiras, tem cada vez mais ruas, becos e
azinhagas. No entanto, continua a ser uma vila onde o rural e o
urbano coexiste e se confunde. Na realidade, as hortas e os
canaviais abundam e encontram-se espalhados por toda a vila,
passando por entre estes espaços agrícolas as principais ruas da
urbe.
130
É, ainda, Aragão
que nos informa que em 1488 já
existia a Rua dos Mercadores, a qual acabava a poente com o
nome de Rua de Sta. Catarina; a Rua de Santa Maria do Calhau
da Ribeira; a Rua de Diogo Afonso; a Rua de Álvaro Matoso; a
128
É interessante aqui referir que alguns destes “novos povoadores” deixaram a
sua “marca” registada na toponímia de algumas ruas e locais. É o exemplo do
tabelião João Tavira que, em 1483, vivia na rua que ainda hoje se designa por Rua
de João Tavira. (Idem, op. cit., pág. 41)
129
Só no ano de 1498 foram exportadas 120 mil arrobas de açucar para mercados
do Sul e do Norte da Europa. Contudo, “logo nos começos da primeira metade do
século XVI” tem início a crise açucareira, a qual se deve à concorrência de novos
mercados produtores de açúcar, com preços mais competitivos; ao desgaste das
terras e consequente diminuição da produtividade e, ainda, ao abandono das
próprias terras motivado pelo “bicho da cana” que atacava os canaviais e os
destruia, provocando prejuízos incalculáveis. Em 1537 a exportação de açúcar não
ultrapassa as 46 700 arrobas. (Idem, op. cit., pág. 48 e 50)
130
Aragão, op. cit., pág. 44.
62
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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Rua de João Castanheira e a Rua de Pero Eanes. Relativamente
à Rua dos Mercadores sabe-se ainda que começava na ponte de
131
Santa Maria e que, pelo menos, ia “até à ponte com o Beco de
Gonçalo Aires”. Existia também, “a ocidente do Campo do Duque
132
e abaixo da Várzea” , o Convento de S. Francisco, o qual foi
133
erguido por volta de 1473 .
O Campo do Duque era já, em 1488, identificado como
espaço urbano. Na realidade, este Campo, inicialmente lugar de
plantações de canaviais, com a expansão da vila e com a sua
localização a norte da Rua dos Mercadores ganhou centralidade e
134
tornou-se num lugar privilegiado . É o próprio Duque D. Manuel
que, depois de ter mandado construir em 1485 a igreja do
Funchal, a Praça, a Câmara, o Paço de Tabaliães e o pelourinho
no “lugar mais conveniente e no meio da povoação”, que numa
135
carta datada de 20 de Novembro de 1486 , manda “que se faça
apraça em hum seu chãoo”.
Fica assim escolhido o centro da futura cidade do Funchal,
à volta do qual ainda hoje gravita toda a vida económica e social
deste centro urbano.
De facto, como se referiu no capítulo anterior, é D. Manuel
que dá um grande impulso a esta vila e que a eleva à categoria de
131
Pela análise da Planta do Funchal de Mateus Fernandes (c. 1570) verificamos
que existia uma segunda ponte, localizada sobre a Ribeira de Santa Luzia, a qual
já mencionamos anteriormente como sendo a ponte da Cadeia.
132
Onde hoje se localiza o Jardim Municipal do Funchal.
133
Idem, op. cit., pág. 56.
134
Idem, op. cit., pág. 55.
135
Doc. nº 114, de 20 de Novembro de 1486 - ¶ Carta do duque em que manda
que se faça apraça em hum seu chãoo - Arquivo Distrital do Funchal (1973).
Arquivo Histórico da Madeira. Boletim do Arquivo Distrital do Funchal., Vol. XVI,
Funchal: D.R.A.C., pág. 202.
63
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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136
cidade. António Aragão afirma que o Duque estava determinado
em equipá-la não só com novas construções destinadas “à vida
social, administrativa e religiosa”, mas também com novas ruas e
“outros espaços urbanos”, tendo para tal utilizado os rendimentos
provenientes do açúcar que se produzia na Ilha “para ajudar a
erguer a nova cidade atlântica – a cidade do açúcar”.
Em 1489, os moradores da vila pedem ao Duque D.
Manuel que sejam abertas duas ruas. São então construídas a
137
Rua do Sabão e a Rua de João Esmeraldo. António Aragão
realça que estas “duas novas artérias que, rompendo do
Varadouro dos Batéis para cima, e atravessando a parte central da
povoação, oferecem um trajecto urgente e perfeitamente
justificado”, na medida em que vão facilitar o “acesso ao mar da
principal zona fabril da povoação, a começar nos engenhos de
açúcar até pontear, lá no alto, no aglomerado de moinhos de
138
pão” .
Na última década de quatrocentos o Funchal era palco de
uma actividade construtiva muito intensa. Pelo que nos diz António
139
Aragão , no centro da vila era possível encontrar edíficios em
diferentes fases de construção: em 1492 eram executados os
136
Aragão, op. cit., pág. 56.
137
Idem, op. cit., pág. 57.
138
António Aragão faz a seguinte descrição da zona fabril da vila do Funchal:
“Encontravam-se então os engenhos de Pero de Agrela e João Berte de Almeida,
junto dos moinhos, sem contar com o velho engenho de Diogo de Teive, e, sempre
para baixo, os engenhos de Nuno Gonçalves (depois de seu filho Simão Darja), de
Martim Mendes, de Gonçalo Enes de Veloza, de António de Aguiar, de Duarte
Mendes de Vasconcelos(depois conhecido como o engenho da Viúva) e, no
extremo sul, o de Zenobio Acciaiuoli, confrontando com a Rua dos Ferreiros, artéria
onde desembocavam as duas novas ruas subindo do mar”. (Aragão, op. cit., pág.
58)
139
Idem, op. cit., pág. 60.
64
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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acabamentos da Casa da Câmara e do paço de Tabeliães; no ano
seguinte tinha início, “ali à ilharga”, a edificação da Sé; em 1495 o
Rei D. Manuel manda calcetar as ruas e construir em cantaria as
140
pontes de madeira
e, “sobre o arrife da Várzea, levantava-se
também o crescido vulto do convento franciscano de Santa Clara,
acabado de construir em 1496”.
Por esta mesma altura, mais precisamente em 21 de
Junho de 1493, o Duque D. Manuel manda que se “faca çerca E
141
muros nesta villa do fumchall” . Nesta carta são indicados os
limites da “çerca”. Ela devia ser feita “entre a ribeira de São
142
Francisco e de Santa Luzia e que chegue junto com o mar e que
deve ser da grandeza ao menos tamanha como Setubal”. Mas, na
realidade, os elevados encargos que a mesma iria trazer para uma
vila já tão sobrecarregada de obras fizeram com que o Rei D. João
II, em Janeiro de 1494, na sequência de um pedido dos senhores
da Ilha e da população em geral, mandasse que “nom se façam
açerqua E muros que mandou fazer”, determinando no entanto
que se fizessem “alguns baluartes, aqueles que necessários forem
e assim se tapem alguns portais onde cumprir de se taparem, para
143
boa defesa e guarda da dita Ilha” .
No início do século XVI a azáfama continua. É aberta “a
calçada do Rego de S. Pedro – hoje lugar dito de S. Paulo”,
continuavam a decorrer as obras da futura Sé Catedral (concluída
140
No entanto esta iniciativa foi rejeitada pelos senhores e pela população da
cidade, uma vez que os encargos com as obras já eram muito elevados.
141
Doc. nº 169, de 21 de Junho de 1493 - ¶ Carta do duque Em que mamda que se
faca çerca E muros nesta villa dofunchall - Arquivo Histórico da Madeira, op. cit.,
Vol. XVI, pág. 284 e 288.
142
Hoje Ribeira de São João.
143
Doc. nº 173, de 9 de Janeiro de 1494 - ¶ Carta del Rey em que manda que nom
se façam açerqua E muros que mandou fazer - Arquivo Histórico da Madeira, op.
cit., Vol. XVI, pág. 292 e 293.
65
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
em 1514) e da Alfândega Nova (terminada em 1519) e, muito
possivelmente, também estava a ser edificada a Casa do Fisco,
144
que se localizava logo abaixo da Sé, e o hospital novo.
Deste modo tão intenso, a vila vai ganhando dia após dia
uma nova estrutura e vitalidade, preparando-se assim para uma
nova fase – a de cidade.
2.4
Cinco séculos de cidade – transformações e
permanências
A 21 de Agosto de 1508, a vila do Funchal era elevada à
categoria de cidade:
Dom manuell per graça de deus Rey de purtugall E
dos algarues daquem E daallem mar (...). A quamtos
esta nosa carta virem fazemos Sabeer que
comsijramdo Nos como louuores anoso Snñor a villa
Do fumchall na nossa ylha Da nadeyra teem creçido
Em muy grãde pouoraçam E como viuem nella
muytos fidallgos caualleyros E pessoaas homrradas E
De gramdes fazedas pollas quaaes E pllo gramde
trauto Da dita ylha Esperamos com aJuda de Noso
Snñor que adita villa muyto mays Se em nobreza E
acreçemte E aveemdo Respeyto Ao muyto Serujço
que Reçebemos Dos moradores E esperamos ao
diamte Reçebeer E Desy por folgarmos de fazer
homrra E merçee Aos Ditos fidallgos caualleyros
escudeyros E povoo Della Sem elles nem outrem por
elles nollo pedir nem Requerer nos De noso moto
propeo poder Reall E absoluto com aquella booa
voomtade que sepre teuemos E teemos pera todo
bem E mayor a creçemtamento Das cousas Da dita
144
Aragão, op. cit., pág. 61 e 62.
66
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
villa.¶ Por esta presemte carta nos praz a fazermos E
De feyto fazemos çidade E queremos E nos praz
que daquj em diamte Se ymtitulle E chame çidade
E tenha todas as ymsinyas que has çidades de nosos
Reygnos pertemçe teer E huse E gouua de todos hos
145
priujlegios (...).
Passados cinco séculos, esta “pequena grande” cidade
cresceu e expandiu-se em direcção a Poente e às montanhas,
ocupando hoje praticamente todo o anfiteatro do Funchal.
Em quinhentos anos testemunhou mudanças sociais,
económicas e políticas, assaltos de corsários, o poder destrutivo
dos aluviões e a chegada da “modernidade” com a luz eléctrica, o
automóvel e as avenidas de Fernão de Ornelas.
A chegada de um novo milénio trouxe-lhe um enorme
desafio – ser uma cidade mais competitiva, atractiva e vivida.
2.2.1 O Século XVI: a “Cidade do Açúcar”
O século XVI foi sem dúvida caracterizado por anos de
146
profundas mudanças na Ilha da Madeira. António Aragão , fala
em “mudança económica e social, mudança de costumes,
mudança de maneiras de viver e mudança até de considerados
comportamentos humanos”. Na realidade, o açúcar, “com todo o
peso do seu apetrechamento técnico, económico e social,
145
Extraído e adaptado do Doc. nº 322, de 21 de Agosto de 1508 - ¶ Carta del Rey
noso Snñor Een que faz çidade aeste fumchall - Arquivo Distrital do Funchal
(1974). Arquivo Histórico da Madeira. Boletim do Arquivo Distrital do Funchal., Vol.
XVIII, Funchal: D.R.A.C., pág. 512 e 513.
146
Aragão, A. (1992). O espírito do lugar. A cidade do Funchal. Lisboa: Pedro
Ferreira Editor, pág. 54.
67
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dominou as mentes e a maneira de viver dos moradores do
147
Funchal” nos primeiros decénios de quinhentos .
Devido ao açúcar, a Madeira passa a fazer parte de uma
rota obrigatória no Atlântico atraindo comerciantes de vários
pontos da Europa, os quais traziam não só novos produtos vindos
de mercados distantes, como também novas ideias e novos
processos de trabalho.
A prosperidade que o comércio do açúcar trouxe à Ilha e,
sobretudo, à cidade é também visível na arquitectura e na arte. Na
realidade, esta riqueza proporcionou a construções de moradias e
edifícios mais “faustosos” e, ainda, de templos, muitos deles com
traços arquitectónicos de “estilo” mudéjar insular.
O “estilo” mudéjar insular, de influência ibérica,
compreendia edifícios normalmente baixos, “sem arrojadas
preocupações
volumétricas”,
com
“janelas
geminadas
enquadradas de alfiz” e com tectos e coberturas de madeira,
decorados “pelo profuso gosto geométrico mudéjar, variado e
imaginativo”, de que são exemplos, ainda hoje visíveis, a Sé
Catedral e o Solar de D. Mécia. António Aragão salienta que “as
construções mudéjar insulares foram edificadas com materiais
locais, pedra e madeira da Ilha, trabalhada localmente por artistas
148
insularizados, inspirados no gosto mudéjar de raíz ibérica” .
António Aragão diz, em jeito de síntese, que “ao lado do
açúcar brotando da terra, no mesmo espaço insular a arte mudéjar
ergueu-se também, nascida na Ilha, como expressão artística
149
perfeitamente ajustada ao tempo vivido” . Esta “doce”
abundância possibilitou ainda a encomenda de um número
considerável de peças de arte flamenga, importadas da Flandres,
as quais foram ornamentar e valorizar o interior de igrejas,
conventos e capelas.
147
Idem, op. cit., pág. 88.
148
Idem, op. cit., pág. 68 e 69.
149
Idem, op. cit., pág. 70.
68
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No entanto, grandes mudanças se avizinhavam. Este
primeiro grande ciclo da economia madeirense – o do açúcar –
está a chegar ao fim, motivado em grande parte pela concorrência
150
do açúcar de S. Tomé e do Brasil, o que vai provocar uma crise
na produção e nos preços do açúcar. Contudo, a partir da segunda
metade do século XVI, os canaviais começam a ser substituídos
por vinhedos e um novo ciclo começa a desenvolver-se – o do
vinho –, o qual irá trazer à Ilha e à própria cidade uma nova
dinâmica, sobretudo a partir do século XVII.
Este século ficou também marcado por grandes
calamidades. A cidade do Funchal por várias vezes foi saqueada
151
por corsários , revelando a falta de segurança e a necessidade
de construir um eficaz sistema de fortificações. Em 1593, foi palco
152
de um violento incêndio que destruíu 154 construções . E, muito
153
provavelmente, sentiu a força de algumas aluviões , as quais
com alguma frequência deixaram as suas marcas nesta cidade.

A cidade do Funchal
150
António Aragão chama a atenção para o seguinte: “A verdade, diga-se, é que a
indústria açucareira resvala para um franco descalabro e que, dos 50 e tantos
engenhos que chegaram a existir na Ilha nos tempos áureos, em 1640 apenas 5 se
mantinham de pé, até que, em 1782, só se erguia um “único engenho D’Assucar”
na Ribeira dos Socorridos.” (op. cit., pág. 53)
151
De onde se pode destacar o saque dos corsários franceses à cidade do Funchal
no dia 2 de Outubro de 1566. Este saque é descrito por Gaspar Frutuoso no Livro
Segundo das Saudades da Terra, Cap. 44º e 45º – pág. 327 – 360.
152
Aragão, op. cit., p. 64
153
No Elucidário Madeirense pode-se ler que “a aluvião de 1724 não foi a primeira
que causou prejuízos, pois que Mouquet que esteve aqui em 1601, diz, embora
não precise datas, que as águas que descem das montanhas algumas vezes
destroem pontes e casas em toda a ilha.” (Silva, F. (1921). Elucidário Madeirense.
Vol. I. Funchal: S.R.E.C, pág. 51 e 52)
69
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Gaspar Frutuoso começa do seguinte modo a “descrição da
154
nobre cidade do Funchal” :
Da ponta do Garajau, que está ao Nascente, até uns
ilhéus, que estão ao Ocidente, perto da terra, e a
ponta da Cruz, que é quase uma légua e meia, faz a
terra uma enseada muito grande e formosa, e do
Corpo Santo a São Lázaro e as Fontes de João Diniz,
que estão ao longo do mar, que é um quarto de
légua, há pela costa calhau miúdo e areia, o qual é o
porto da cidade, onde ancoram naus e navios, que ali
carregam e descarregam, tão povoado e cursado
sempre deles, com tanto tráfego de carregações e
descarregas, que parece outra Lisboa. E deste quarto
de légua de calhau miúdo e areia pela costa é a
compridão da grande e nobre cidade do Funchal, ali
situada em lugar baixo, em uma terra chã, que do mar
se mostra aos olhos mui soberba e populosa, tão bem
assombrosa nos edifícios como nos moradores (...).
Está assentada antre duas frescas ribeiras, a de
Nossa Senhora do Calhau, a Leste dos muros com
esta igreja, (...), e a ribeira de São Pedro, ou de São
João, ermidas que estão para o Ponente, porque
ambas elas estão ali, no cabo da cidade, ficando a
ribeira fora dos muros antre elas, e a igreja de São
Pedro dos muros para dentro àquem da ribeira, e São
João de fora deles, da banda de Loeste; (...). E, para
mais fresquidão, vai pelo meio dela a ribeira de Santa
Luzia (...).
Na verdade, o original do Livro Segundo das Saudades da
Terra de Gaspar Frutuoso data de 1584, daí que esta descrição
154
Frutuoso, G. (1584). Livro Segundo das Saudades da Terra. Ponta Delgada:
Instituto Cultural de Ponta Delgada, Cap. 16º, pág. 109.
70
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deva corresponder à cidade da segunda metade de quinhentos.
No entanto, através da leitura conjunta deste documento, de
outros da época e da Planta do Funchal de Mateus Fernandes por
nós concertada sobre o ortofotomapa do Funchal, de 2004, é
possível identificar e localizar não só edifícios, ruas e outros
espaços urbanos com interesse para a compreensão da evolução
da malha urbana do Funchal, como ainda visualizar e percorrer
esses mesmos espaços e percursos da cidade quinhentista.
A cidade que nasceu em 1508 apresentava já uma
evidente coerência urbanística. Não era apenas fruto de um
crescimento casual ou de uma adaptação às características do
local. Havia premeditação. Por exemplo, a Sé e a praça foram
deliberadamente construídas no Campo do Duque porque era o
“lugar mais conveniente e no meio da povoação”. A Rua do Sabão
e a Rua de João Esmeraldo foram abertas porque era importante
e urgente que a zona fabril tivesse um acesso fácil e directo ao
Varadouro dos Batéis, onde se processava a carga e descarga de
mercadorias.
Além disso, ao observar a Planta do Funchal de Mateus
Fernandes (c. 1570) são bem visíveis os principais eixos
estruturantes da cidade. Um formado pelo conjunto das três ruas
paralelas à costa – Rua de Santa Maria, Rua dos Mercadores e
Rua de Santa Catarina – que atravessam a cidade de nascente a
poente, ligando o núcleo primitivo às novas áreas de expansão e à
casa do capitão. Outro formado pelas ruas que saem
perpendicularmente ao eixo anterior – de onde se destaca a Rua
Direita, a Rua do Sabão e a Rua de João Esmeraldo – e que
ligavam a zona ribeirinha e o Varadouro ao centro da cidade e,
depois, através da Rua dos Ferreiros, à zona fabril, formando um
155
eixo de ligação entre o mar e a terra. António Aragão chama a
atenção para o facto de que “desde os começos de quinhentos
155
A. Aragão, op. cit., pág. 65.
71
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que os eixos principais da cidade tomaram assentamento como
se, desde o início, o essencial fosse previsto”.
O acesso à cidade e/ou ao resto da Ilha era feito por três
ruas: a poente, junto à ponte de São Pero (hoje São Paulo)
chegava o “caminho q vem de Câmara de Lobos e dos Piornais”;
de nascente, no extremo oposto, partia o “caminho q vai pera a
serra e pera ho Faial” e da Rua Direita saía, sempre para norte, o
156
“caminho q vai pera Nosa Sñora do Monte”.
2.
Planta
do
Funchal,
Mateus
Fernandes
(c. 1570) – (Planta cedida pela C.M.F.)
O Funchal do Século XVI é uma cidade curiosa e
imponente.
Curiosa na medida em que lado a lado vão coexistir
igrejas e engenhos, dois importantes pilares desta sociedade
156
Planta do Funchal, Mateus Fernandes.
72
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insular – a religião e o açúcar. No centro da cidade, próximo da Sé
Catedral ou da igreja de S. Sebastião ficam os engenhos de moer
cana. Talvez seja esta a singularidade desta cidade, onde edifícios
institucionais, igrejas, residências e unidades fabris coexistiam
157
num mesmo espaço. A atestar isto escreve-nos Aragão
o
seguinte:
Tudo se juntava perto, muito perto mesmo, numa
profusão farta de vida e crença religiosa, como se o
profano e o sagrado, unidos, fizessem parte comum
do mesmo destino. Então, compreende-se que seria
normal sair da porta de um templo, depois de orar,
para, uns passos andados mais adiante, se entregar
às rudes tarefas dos engenhos de moer cana. De
facto, será perfeitamente aceitável que as pessoas
gostassem de habitar por ali, tal como Zenobio
Acciaiuoli que até possuía as casas de morada logo à
banda de cima do seu engenho.
A sua imponência advém naturalmente da riqueza que o
doce e branco açúcar lhe proporcionou. Com ela se construíu o
vulto robusto da Sé Catedral, rematado pela torre ameada de
grandes proporções, a dominar as edificações em redor. Ou a
praça que se desenrolava à frente da Sé – “Hum campo tão
grande que correu nelle touros e cavallos, jogão às canas e fazem
158
outras festas.”
Ou “a Praça Nova, dita apenas do Pelourinho,
rodeada de boas casas sobradas, com janelas de mármore,
159
pelourinho a preceito” e “telhados coroados de ameias” .
Mas esta cidade pode também ser desconcertante. Uma
cidade que fora tão importante na altura da expansão portuguesa
157
Aragão, op. cit., pág. 64.
158
Idem, op. cit., pág. 70.
159
Idem, op. cit., pág. 62.
73
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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e europeia, tanto em termos económicos como estratégicos,
aquando da sua elevação a cidade não possuía um sistema
defensivo efectivo e, na realidade, só o teve muito mais tarde.
Esta cidade, a do açúcar, ainda hoje é visível. Deixou
rastos e memórias que o tempo não apagou.
Da cidade de quinhentos conserva-se o formato de alguns
quarteirões no actual centro. Permanece o traçado e o nome de
algumas ruas, como por exemplo a Rua de Santa Maria, a Rua do
Sabão, a Rua de João Esmeraldo e a Rua da Carreira (Mapa nº 1
– 24, 27, 26 e 21). Preservam-se, ainda, alguns edifícios, de que
se pode destacar a Sé Catedral, o Convento de Santa Clara e a
Capela de São Pedro (hoje conhecida como Capela de São Paulo)
(Mapa nº 1 – A, 9 e 5). Nela, ainda são visíveis alguns
testemunhos da cidade fortificada, de que são exemplos o torreão
leste da Fortaleza de S. Lourenço e alguns pequenos troços da
muralha.
3. Permanências da cidade quinhentista – o nome de ruas (1); a Sé Catedral (2), o
torreão leste da Fortaleza de S. Lourenço (3).

Como era então a “cidade do açúcar”?
Giulio Landi, um italiano que visitou esta cidade por volta
de 1530, descreveu-a do seguinte modo:
Estende-se esta cidade ao longo da praia (...). É a
sua largura menos de metade do seu comprimento.
Está voltada para sul e para levante. Por estar situada
ao longo da praia e um tanto inclinada, lança todas as
74
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suas sujidades no mar. Por isso ela é toda linda e
limpa. É igualmente rica em construções, quer
particulares quer públicas, e abundante em todas
aquelas coisas que são necessárias à vida e ao
embelezamento de uma cidade. Aqui chegam
frequentemente mercadores de países muito
distantes: da Itália, França, Flandres, Inglaterra e da
Península Ibérica, que para lá levam aquelas coisas
que fabricam para os da Ilha e dela transportam
aquelas de que a Ilha é produtora, tais como, açúcar
e vinho, por lá haver em grande abundância. Nem na
cidade, nem tão-pouco em toda a Ilha há um único
porto. No entanto, os navios aí ancoram bem por
haver uma boa praia. (...) Correm pela cidade uns
160
tantos rios os quais descem das colinas da Ilha.
Desta descrição há um pormenor que nos chama a
atenção – “é a sua largura menos de metade do seu comprimento”
– daí se depreende que a cidade não tinha crescido muito para o
interior, na realidade, espraiou-se ao longo da costa – entre o
actual Largo do Corpo Santo e a Rua de São Francisco – e para o
interior pouco ia além do “limite” composto pelo eixo formado pelas
actuais ruas da Mouraria, de S. Pedro e dos Netos, constituindo o
Convento de Santa Clara um dos seus extremos mais a norte.
Encontrava-se assim, de um modo geral, aninhada na parte
mais plana da baía.
A leitura e análise da Planta do Funchal de Mateus
Fernandes, que concertamos sobre o ortofotomapa de 2004
(Mapa nº 1), permite-nos conhecer melhor a malha urbana
quinhentista.
160
Giulio Landi, Descrição da Ilha da Madeira, in Aragão, A. (1981). A Madeira vista
por estrangeiros – 1455-1700. Funchal: S.R.E.C./DRAC, p. 82-83
75
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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Como já aqui referimos, a área urbana do Funchal
desenvolveu-se em fases distintas, as quais são visíveis no
traçado da cidade quinhentista.
A leste da Ribeira de João Gomes encontramos uma
primeira área de crescimento da malha urbana, a qual vai
corresponder, grosso modo, ao núcleo urbano primitivo de Santa
Maria do Calhau. No entanto, uma observação mais atenta do
Mapa nº 1 permite-nos identificar nesta parte, pelo menos, duas
áreas morfologicamente distintas, que se vão distinguir sobretudo
pela orientação dos quarteirões. Assim, existe uma unidade,
próxima à ribeira, constituída por quarteirões paralelos à costa e
que se desenvolveram ao longo da Rua de Santa Maria (24) e,
mais tarde, na Rua Nova a norte da primeira. Através de uma
visita ao local foi possível verificar que, actualmente, nestes
quarteirões as casas encontram-se, de um modo geral, voltadas
para Norte ou para Sul. A segunda unidade parece ser uma
expansão da Rua de Santa Maria para nascente, apresentando
quarteirões mais estreitos e perpendiculares à linha da costa. Aqui
podemos observar que os lotes estão voltados sobretudo para
nascente e para poente. O número de ruas perpendiculares à
costa é também visivelmente maior.
Uma segunda grande área de crescimento urbano é a que
se localiza entre a Ribeira de João Gomes e a Rua do Sabão (27),
prolongando-se para norte pela Rua dos Ferreiros (28). Muito
provavelmente esta terá sido a área de expansão da vila do
terceiro quartel de quatrocentos. Aqui os quarteirões têm uma
forma
“excessivamente”
alongada,
sendo
no
entanto
perpendiculares à costa, e têm como eixo estruturante a
continuação da Rua de Santa Maria e a Rua dos Mercadores (29)
e, mais acima, a Rua Direita (25) e a Rua dos Ferreiros, onde os
quarteirões são paralelos à rua. Pela observação do local,
verificamos que os lotes apresentam maioritariamente uma
orientação Este/Oeste.
Na elaboração do Mapa nº 1, que aqui se apresenta, ficou
a dúvida se esta segunda área de expansão não será
76
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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contemporânea da unidade do extremo Este da cidade
quinhentista. Não encontramos até ao momento nenhum
documento que prove esta nossa suspeita, mas há uma certa
conformidade no traçado destas duas áreas. Além disso, parecenos justificável esta contemporaneidade, na medida em que se a
vila cresceu para Ocidente com as casas e as propriedades dos
“senhores do açúcar”, também poderá ter crescido para Leste com
as casas das “gentes dos ofícios”.
Por último, temos a área de expansão urbana entre a Rua
do Sabão e as proximidades do Mosteiro de São Francisco (17),
que corresponde à “cidade manuelina” e que se desenvolveu a
partir do Campo do Duque. Este novo sector da malha urbana
apresenta-se construído segundo uma estrutura ortogonal regular,
tendo no seu centro a Sé Catedral e a praça. Os quarteirões são
mais pequenos e os lotes dispõem-se em diferentes direcções,
orientando-se para as quatro frentes do quarteirão.
Manuel Teixeira salienta que nesta última área de
expansão, a disposição dos lotes vai criar “uma estrutura de ruas
todas de frente cuja hierarquia é feita de forma mais subtil, pelo
seu perfil, pela arquitectura dos edifícios que nelas vêm a
construir-se, pelas funções que nelas vêm a desenvolver e pela
161
sua relação com outros componentes da malha urbana”
Nas
duas áreas anteriores, a estrutura e a hierarquia das ruas era feita
em função da frente e das traseiras dos lotes, que tinham todos,
como vimos, a mesma orientação.
Relativamente aos espaços públicos, nomeadamente
largos e praças, constata-se que estes eram ainda escassos,
resumindo-se ao Terreiro ou Praça da Sé (18), à Praça do
Pelourinho (19), ao Largo do Poço e a alguns adros de igrejas.
Estes espaços eram essencialmente utilizados para convívio
161
Teixeira, M. C., Valla, M. (1999). O urbanismo português. Séculos XIII – XVIII.
Portugal – Brasil. Livros Horizonte, pág. 53.
77
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social, actos religiosos e, ainda, para a realização de algumas
tarefas colectivas.
162
António Aragão
fala-nos da utilização destes espaços,
salientando que o lugar por excelência de convívio social da época
era o Terreiro da Sé, o que em nosso entender se deve
certamente à sua localização e dimensão. Este espaço, ao que
parece, foi durante muito tempo lugar de eleição para os
divertimentos públicos, para a realização de procissões e de
outros eventos e, também, para actos públicos de trabalho, como
163
por exemplo “cirandar cereais” .
Saliente-se, a título de curiosidade, que os divertimentos
públicos da época eram os jogos de canas, as touradas, a “péla” e
o jogo da bola. Embora se saiba que os dois primeiros se
realizavam no Terreiro da Sé, os dois seguintes tiveram desde
muito cedo um local próprio para a sua prática. Enquanto a “péla”
se realizava a leste da Sé Catedral junto às casas dos paços do
Concelho, o jogo da bola era praticado num local “para as bandas
164
de Santa Maria” .
Mas o conhecimento desta cidade quinhentista ficará mais
completo se tivermos em atenção outras fontes documentais, as
quais, conjuntamente com o mapa nº 1, vão permitir uma
visualização quase tridimensional da mesma. É sem dúvida
162
Aragão, A. (1992). O espírito do lugar. A cidade do Funchal. Lisboa: Pedro
Ferreira Editor, pág. 70 a 71.
163
A. Aragão refere que “ainda em 1768, era tal o hábito adquirido da prática
desses trabalhos públicos, que uma correição, levada a cabo nessa altura, proibe
que se cirandassem aí cereais, “de que rezulta hum inconsiderável danno à mesma
Catedral da introdução do pó no templo o que lhe irreverencia alem de prezuizo
que causa às Imagens, e ornamentos, e ainda às mesmas casas particulares”.
(Aragão, op.cit., pág. 71)
164
Idem, op. cit., pág. 72.
78
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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165
Gaspar Frutuoso
que nos apresenta uma das descrições mais
interessantes desta “cidade do açúcar”, muito provavelmente da
cidade da segunda metade do século XVI. Pela sua leitura é
possível identificar e localizar não só edifícios, ruas e outros
espaços urbanos, como ainda visualizar e percorrer esses
mesmos espaços e percursos da cidade de quinhentos.
Segundo este autor, esta era uma cidade “amurada” entre
166
167
a Ribeira da Nossa Senhora do Calhau e a “Fortaleza Velha” .
Na Ribeira da Nossa Senhora do Calhau o “muro” estendia-se
“perto de meia légua pela terra dentro, a entestar com rochas mais
168
ásperas, fortes e defensaveis” . Este “muro”, que tinha “cubelos
e seteiras”, possuía para o lado da Ribeira de São João três portas
de acesso à cidade, com “vigias e guardas”, e para o lado do mar
outras três que se localizavam nomeadamente junto “de Nossa
Senhora do Calhau”, junto dos açougues (1) e, “a mais principal”,
169
junto “aos Varadouros (31), defronte da rua dos Mercadores” .
170
Para Oeste da porta principal da cidade , ficava a Casa
da Alfândega (2), que era “amurada de cantaria e fechada pela
terra e pelo mar”, e “um tiro de besta” mais à frente ficava a
Fortaleza Velha (B), “situada sobre uma rocha”. Esta fortaleza
tinha “pela parte do mar, dois cubelos, como torres mui fortes, que
guardam o mesmo mar e a artilharia (...), e, pela banda da terra,
outros dois, que guardam toda a cidade por cima, por estarem
mais altos que ela, em a qual parte tem também um muro muito
171
alto e forte” .
165
Frutuoso, op. cit., Cap. XVI, pág. 109 - 117
166
Actual Ribeira de João Gomes.
167
Actual Palácio de São Lourenço.
168
Idem, op. cit., pág. 110.
169
Idem, op. cit., pág. 111.
170
Segundo Gaspar Frutuoso, a “meio tiro de besta” (Ibidem).
171
Ibidem.
79
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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A primeira e principal rua, “dos muros para dentro”, era a
dos Mercadores que se estendia desde Nossa Senhora do Calhau
até à Fortaleza Velha. No início desta rua, junto a Nossa Senhora
do Calhau, localizava-se uma “não muito grande, mas formosa e
cercada praça, de boas casas sobradadas, algumas de dois
172
sobrados, com um rico pelourinho de jaspe” - a Praça Nova ou
do Pelourinho (19). Desta praça saía uma “grande e larga rua” – a
Rua Direita –, a maior da cidade, onde se localizava a Igreja de
São Bartolomeu (11) e, no seu final, o “engenho de açúcar de
173
Simão Darja, que chega à ribeira” .
Da Rua dos Mercadores saíam várias ruas: a Rua do Poço
Novo, que tem no seu final um poço (20); a Rua do Esmeraldo e a
Rua do Sabão. Por sua vez, nesta última, nascia a Rua do
Capitão, que acabava junto à Fortaleza, e de onde derivavam
“serventias para a Sé”.
Relativamente à Sé Catedral (A), Gaspar Frutuoso para
além de mencionar que é uma “igreja mui populosa, bem
assombrada e fresca”, salienta o aspecto imponente da sua torre,
dizendo que:
(...) tem uma torre, muito alta, de cantaria, com um
formoso coruchéu de azuleijos, que, quando lhe dá o
raio de Sol, parecem prata e ouro, em cima do qual
está um sino de relógio, tão grande, que levará em
sua concavidade trinta alqueires de trigo, de tão
soberbo e grande tom, que se ouve de duas léguas,
(...); e, mais abaixo, na torre, estão três janelas, onde
174
estão quinze sinos.
172
Frutuoso, op. cit., pág. 111 e 112.
173
Idem, op. cit., pág. 112.
174
Idem, op. cit., pág. 113.
80
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Na realidade, esta obra devia ser magnificente na época,
pois ainda hoje é visível a sua imponência na baixa funchalense.
4. A magnificência da torre da Sé Catedral.
O mesmo autor refere ainda que a Sé possuía um adro
espaçoso, cercado por muros, ficando do lado de fora “um campo
tão grande, que correm nele touros e cavalos, jogam as canas e
175
fazem outras festas” .
A poente da Sé, a “um tiro de besta esforçado”, fica o
mosteiro de São Francisco (17), com uma igreja “muito grande e
lustrosa”, e as suas hortas envoltas numa “grande cerca”. “Pelas
costas da capela-mor de São Francisco” passa a Rua de São
Francisco que vai ter ao Convento de Santa Clara (9), que se
localiza “sobre uma rocha mui forte”. Do meio da Rua de São
Francisco saí uma outra rua principal, que vai ter a São Pedro
176
(hoje S. Paulo), denominada por Rua da Carreira dos Cavalos.
Da porta principal da Sé, para norte, saía a Rua de “João
ou de Manuel Tavila” (conhecida hoje como rua de João Tavira), e,
175
Ibidem.
176
Frutuoso, op. cit., pág. 114 e 115.
81
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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“acima dela”, a Rua das Pretas. Desta última rua deriva, para
nascente, a Rua dos Netos, da qual nasce uma outra “que vai ter
177
aos moinhos” .
178
Relativamente à zona leste da cidade, Gaspar Frutuoso
refere que junto ao Corpo Santo, onde se localiza a Capela com o
mesmo nome (7), começa a Rua de Santa Maria que vai “dentro
dos muros” até à Nossa Senhora do Calhau e que desta rua
nasce, para norte, a Rua da Olaria.
Fala-nos, ainda, da Igreja de Nossa Senhora do Calhau e
da Casa da Misericórdia (10 e 16) que ficam junto da Ribeira de
João Gomes. Para logo depois referir que por esta ribeira acima
“há muitas vinhas de malvasias e vidonhos, em que se colhem
179
cada ano duzentas pipas de vinho” . Relativamente a este
assunto, menciona ainda a existência de vinhedos ao longo da
Ribeira de S. Pedro, os quais produzem mais de duzentas pipas
de bom vinho.
Antes de terminar a sua descrição, menciona a “ponte de
180
pau muito grande e forte” sobre a Ribeira de João Gomes, que
ia dar à praça do Funchal, e a ponte sobre a Ribeira de Santa
Luzia.
Esta foi a cidade que Gaspar Frutuoso nos descreveu. Ao
confrontar esta descrição com a Planta do Funchal de Mateus
Fernandes é possível visualizar os “percursos descritivos” e os
lugares. No entanto, é evidente que existiam muitas mais ruas do
que aquelas que Frutuoso menciona, mas o mesmo, ainda que
indirectamente, dá-nos uma justificação para esta discrepância
177
Segundo António Aragão esta rua “que vai ter aos moinhos” abrange as actuais
Ruas do Castanheiro e das Mercês (Aragão, O Espírito do Lugar. A Cidade do
Funchal., pág. 65).
178
Frutuoso, op. cit., pág. 116.
179
Idem, op. cit., pág. 117.
180
Ibidem.
82
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quando diz que “estas são as ruas principais desta cidade, afora
muitas menores e travessas, que todas estão calçadas de pedra
181
miúda” .
Neste documento, o autor, por várias vezes, fez ainda
referência às moradias, normalmente de “homens mui principais”
ou de “pessoas de muita qualidade”, salientando a sua
sumptuosidade, a sua localização à beira das ruas e a existência
de jardins e/ou canaviais, vinhas e hortas na parte de trás das
mesmas.
Na verdade, e mais uma vez comparando esta descrição
com a Planta de Mateus Fernandes, se pode concluir que o
Funchal da segunda metade de quinhentos era uma cidade onde a
vida urbana e a vida agrícola se combinavam de um modo muito
natural.
Mas, da análise deste documento de Gaspar Frutuoso,
também se pode verificar que algumas ruas chegaram até aos
nossos dias com o nome de baptismo da época, o qual podia estar
ligado ao nome de um “homem de bem” que morava na rua ou a
diversas razões de circunstância, tais como particularidades ou
acontecimento ocorridos na rua. Já anteriormente referimos este
facto e alguns exemplos, no entanto voltamos aqui a relembrar
algumas dessas ruas: de João Tavira, de João Esmeraldo, dos
Netos, das Pretas, da Cadeia, do Sabão, das Hortas.
Antes de terminar esta análise da cidade do século XVI, é
importante deixar um apontamento sobre a defesa da cidade. A
“cidade do açúcar” só muito tardiamente teve um sistema
defensivo efectivo. Como vimos, em 1494, D. João II “recuou” em
relação à construção de uma “çerca” e dos “muros” que tinha
mandado fazer na então vila, dando como alternativa a construção
de alguns baluartes. Sabemos que, de facto ao fim de vinte anos,
João de Cáceres, “pedreiro de estima e residente no Funchal”, foi
encarregue em 1513 de construir um baluarte e o muro de defesa
181
Ibidem.
83
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
182
do Funchal, os quais só ficaram concluídos em 1542 . É ainda
certo que em 1553 a fortaleza da cidade ainda “se encontrava por
acabar e que da parte da cidade ela possuía um muro muito baixo
183
e vulnerável” . Gaspar Frutuoso diz, a este respeito, que o muro
da Fortaleza de S. Lourenço “não era mais alto que doze palmos
por aquela parte de além da porta do baluarte, que é a banda do
184
Norte” . Contudo, só depois do ataque dos corsários franceses à
cidade do Funchal, em 1566, é que vão ser realizadas obras de
vulto a nível da fortificação da cidade, sendo Mateus Fernandes,
185
Mestre das Obras Reais, um dos seus responsáveis .
Mateus Fernandes foi na realidade o primeiro grande
fortificador do Funchal, datando dessa altura a Planta do Funchal
que apresentamos neste trabalho e que serviu de base para as
obras mandadas realizar pelo Regimento da Fortificação de
186
1572 . Este mestre das obras reais foi o responsável pela
reforma da Fortaleza de S. Lourenço e pela construção da
182
Carita, R. (1984). O regimento de fortificação de D. Sebastião (1572) e a Carata
da Madeira de Bartolomeu João (1654). Funchal: S. R. E., pág. 28.
183
Aragão, A. (1987). Para a história do Funchal. Funchal: S.R.E.C./DRAC, pág.
236.
184
Frutuoso, op. cit., Cap. 45, pág. 343
185
Aragão, Para a História do Funchal, pág. 203.
186
Este Regimento de Fortificação de D. Sebastião determina a fortificação da
cidade do Funchal. Ele não só expõe em pormenor a implantação de uma muralha
para fechar a cidade, como também estabelece um nítido e autêntico sistema
defensivo. Rui Carita apresenta uma transcrição deste documento no seu livro O
Regimento de Fortificação de D. Sebastião (1572) e a Carta da Madeira de
Bartolomeu João (1654), pág. 77 a 81.
84
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187
Fortaleza Nova , das duas muralhas ao longo das ribeiras de
Nossa Senhora do Calhau e de São João, dos três baluartes da
Fortaleza Velha e do troço de muralha junto da igreja de São
Tiago.
5. Fortificações quinhentistas – Fortaleza de São Lourenço (1); Reduto da
Alfândega (2); Fortaleza Nova da Praça (3); Fortaleza de São João do Pico (4);
Fortaleza de São Tiago (5).
(Carita, R., O regimento de fortificação de D. Sebastião (1572) e a Carata da
Madeira de Bartolomeu João (1654).)
187
Esta Fortaleza concluída antes de 1582, recebeu o nome de Fortaleza da Praça
ou do Pelourinho, devido à sua localização junto à Praça do Pelourinho. Aragão
salienta ainda que esta Fortaleza foi também designada por Fortaleza de S. Filipe,
uma vez que este era o seu patrono. (Aragão, op. cit., pág. 254)
85
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Mais tarde, em 1595, D. Filipe II nomeou como fortificador
da Ilha Jerónimo Jorge que vai dar continuidade à construção de
várias fortificações, nomeadamente das muralhas do Cabo do
Calhau, e ainda dar início à construção das fortalezas do Pico e de
188
S. Tiago .
É um facto que no final do século XVI a cidade estava
fortificada da “parte do mar” e ao longo das ribeiras de São João e
de João Gomes. Apresentava, ainda, algumas fortificações à sua
volta e em pontos estratégicos da costa, de onde se destacam “as
trinchas da Ribeira de Gonçalo Aires e no Corpo Santo, a vigia da
referida ribeira e muros na Ribeira dos Socorridos, Praia Formosa,
189
Piornais e Ilhéus” .
Em síntese:



188
a cidade do final do século XVI está assente na parte mais
baixa do anfiteatro do Funchal, sensivelmente entre o actual
Largo do Corpo Santo e o Jardim Municipal, constituindo o
Convento de Santa Clara um dos seus extremos mais a norte;
no seu traçado são evidentes três áreas distintas de
crescimento da malha urbana: uma primeira a leste da Ribeira
de João Gomes e que corresponde ao núcleo urbano primitivo
de Santa Maria do Calhau; uma segunda entre esta ribeira e a
Rua do Sabão, que provavelmente será a faixa de expansão
da vila do terceiro quartel de quatrocentos, e, finalmente, uma
terceira entre a Rua do Sabão e as proximidades da Ribeira
de S. João, que corresponde à “cidade manuelina”, e que se
desenvolveu a partir do Campo do Duque;
a articular estes três núcleos urbanos, existem dois eixos
estruturantes fundamentais: um ao longo da costa, que liga o
Segundo A. Aragão, Jerónimo Jorge embora tenha apenas dado “início à
fortaleza do Pico e à fortaleza de S. Tiago” é possivelmente o autor do “risco”
destas duas fortalezas. (Idem, op. cit., pág. 205)
189
Idem, op. cit., pág. 254.
86
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


núcleo primitivo à área de expansão quatrocentista e
quinhentista, constituído pela Rua de Santa Maria, Rua dos
Mercadores e Rua de Santa Catarina, e um outro, que liga a
zona ribeirinha ao centro da cidade e depois à zona fabril,
constituído, num primeiro troço fundamentalmente por três
ruas – a Rua Direita, Rua de João Esmeraldo e a Rua do
Sabão – e depois pela Rua dos Ferreiros;
o centro da cidade é definido, fundamentalmente, pela
localização da Sé Catedral com a sua praça, da Casa da
Câmara e Paço de Tabeliães e da Nova Alfândega, que vão
assim unificar a vida religiosa e social, administrativa e
económica;
a “cidade manuelina” surge como um espaço urbano
planeado, construído segundo uma estrutura ortogonal
regular;
no final do século XVI o plano de fortificação de D. Sebastião
para a cidade do Funchal estava básicamente completo,
encontrando-se não só a cidade como também os seus
arredores fortificados.
2.2.2 O Século XVII – XVIII: a “Cidade do Vinho”
A “cidade do vinho” ergueu-se num cenário de inquietação.
As mudanças económicas e sociais que ocorreram na Ilha,
durante este período, geraram uma sociedade de extremos,
dividida entre os muito ricos e os muito pobres. Além disso, o país
esteve envolvido em várias contendas, as quais directa ou
indirectamente acabaram por ter repercussões na Ilha.
Na realidade, estes dois séculos, em termos regionais, são
marcados pela opulência e pela miséria, resultantes
essencialmente do comércio do vinho e, ainda, do medo e da
insegurança que se vivia no Atlântico, devido à constante ameaça
de ataques holandeses, ingleses, franceses e de corsários
argelinos.
87
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De facto, em seiscentos, a economia açucareira que tanta
riqueza trouxe à cidade do Funchal nos séculos XV e XVI
começou a desaparecer e, aos poucos, foi substituída pela do
190
vinho. No final do século XVII, Hans Sloane , médico e
naturalista irlandês de passagem pela Ilha, afirma que a Madeira
encontrava-se praticamente coberta de vinhedos, o que é
corroborado pelo inglês John Ovington (1689) quando, a propósito
da beleza da paisagem, afirma que “as colinas e vales, abafados
191
de vinha, ofereciam-nos o penetrante odor das uvas maduras” .
O certo é que à medida que os vinhedos se instalavam e
alastravam por toda a Ilha, o vinho transformava-se na principal
192
fonte económica da Ilha . Simultaneamente, os canaviais
193
desapareciam e a importação
de açúcar do Brasil ia
aumentando a fim de garantir a manufactura de doces.
Surgia assim uma nova produção agrícola com estruturas
económicas próprias. Com ela chegava o sistema de colonia, onde
o senhorio, dono da terra, cedia os seus terrenos aos colonos, que
as cultivam em troca do pagamento de metade da produção da
194
terra e do seu trabalho. Os colonos tinham ainda que pagar o
dízimo ao Rei a partir da sua metade da produção.
Este sistema, com o passar do tempo, criou situações de
extrema miséria, ao ponto de, nos finais do século XVIII, “muita
190
Aragão, A., A Madeira vista por estrangeiros – 1455-1700., pág. 158.
191
Idem, op. cit., pág. 199.
192
Segundo António Aragão, em 1646 a exportação de vinho rondava as 10 – 12
mil pipas anuais. Em 1698, a Ilha produzir 20 mil pipas de vinho. (Aragão, O
Espírito do Lugar. A cidade do Funchal., pág. 97)
193
Rui Nepomuceno afirma que, nos últimos anos do séc. XVII, “a Ilha importava
mais de mil caixas de açúcar anuais (35 000 arrobas)”. (Nepomuceno, R. (2006 B).
História da Madeira. Uma visão actual. Porto: Campo das Letras, pág. 141)
194
Segundo António Aragão estas eram “terras definhadas dos senhores de
açúcar”, com uma produtividade muito baixa. (A. A., op. cit., pág. 90)
88
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quantidade de gente anda[r] nesta cidade pedindo esmolla pellas
195
portas tanto homens como mulheres” .
Em contraste, os donos das terras de vinha, cada vez
mais ricos, instalavam-se na cidade, onde erguiam as suas casas
e viviam, “na sua ociosidade, quase exclusivamente da metade
196
que lhes cabia, resultante do trabalho dos colonos” .
Por sua vez, a actividade comercial também sofreu
transformações. O vinho passou a ser comercializado por
mercadores ingleses, que rapidamente substituíram os
mercadores açucareiros de várias nacionalidades.
No início de oitocentos, os mercadores ingleses
dominavam totalmente o mercado do vinho, impondo-se de tal
modo que “a população passou a depender deles para vestir e
comer, na medida que levavam o vinho e, em troca, traziam
197
tecidos e produtos alimentares, em especial trigo” .
De facto, estes comerciantes souberam tirar partido do
vinho que a Ilha produzia, fazendo-o chegar em grandes
quantidades às colónias europeias espalhadas pelos quatro
cantos do mundo, através das rotas marítimas coloniais, na sua
maioria sob o domínio inglês, que passavam pela Ilha e que
atraiam um elevado número de navios ao porto do Funchal.
Entretanto, à medida que o comércio do vinho se
expandia, os comerciantes ingleses e alguns madeirenses,
sobretudo os donos das terras de vinhas, enriqueciam enquanto a
maioria da população empobrecia.
195
Observação feita, em 1847, pelo governador civil José Silvestre Ribeiro e citado
por António Aragão (A. A., O Espírito do Lugar. A cidade do Funchal., pág. 94 e
95).
196
Idem, op. cit., pág. 96.
197
Idem, op. cit., pág. 99.
89
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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Curiosamente, é neste cenário, por um lado de opulência
por parte dos “senhores das terras” e dos mercadores de vinho e,
por outro, da insegurança que chegava pelo Atlântico, que a
cidade do Funchal vai modificar-se e ganhar um “novo rosto”.
Com a riqueza do vinho chegou o barroco. E, à semelhança
do que sucedeu com a arte mudéjar, chegaram do Reino artistas
barrocos, “tanto douradores como mestres de entalhar –
imaginários, ensabladores ou entalhadores”, que “conceberam e
criaram em terras insulares uma arte barroca que se expandiu por
198
todos os templos da Ilha” .
Segundo Aragão, o barroco insular foi sobretudo “uma arte
de interior”, que se expandiu “em esplendor e riqueza no interior
199
das igrejas e capelas”
, sob a forma de retábulos de talha
dourada e imaginária variada. O mesmo autor afirma ainda que, a
nível exterior, também deixou marcas nas fachadas das moradias
dos proprietários das vinhas que procuraram a cidade para viver,
salientando as fachadas dos edifícios com cantarias lavradas.
Desses edifícios restam alguns, ainda que adulterados, nas
ruas das Mercês, da Carreira, da Conceição, da Alfândega, dos
Netos, das Pretas, do Bispo ou dos Ferreiros. Pela observação in
loco verificamos que de facto estes edifícios impõem a sua
presença na rua, são robustos, e as suas cantarias são “mais
trabalhadas”, no entanto apenas concordamos com António
Aragão quando este diz que o barroco foi nesta cidade “uma arte
de interiores”.
198
Aragão, op. cit., pág. 103.
199
Idem, op. cit., pág. 108.
90
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6. Permanências da cidade "barroca" -Palácio de S. Pedro (1); Palácio da Câmara (2);
Palácio da Rua do Esmeraldo (3).
Por sua vez, a insegurança do Atlântico promoveu a
continuação e a intensificação da fortificação da cidade.
Na realidade, o sistema defensivo da cidade do Funchal
era uma preocupação constante desde os finais do século XVI.
Assim, na continuidade do que já havia acontecido no final do
século anterior e em consequência do perigo eminente de ataque
de corsários ou de uma invasão por parte dos holandeses ou dos
castelhanos, o Funchal continuou a ser alvo de um cuidado
processo de fortificação.
Como referimos anteriormente, foi Jerónimo Jorge que,
desde 1595, ficou responsável pela fortificação da cidade do
200
Funchal. Este fortificador, “engenheiro e arquitecto” , para além
200
António Aragão é da opinião que a actividade de Jerónimo Jorge, enquanto
engenheiro e arquitecto, foi além das obras de fortificação, atribuindo-lhe a autoria
do antigo Paço Episcopal, situado na Rua do Bispo, onde ainda hoje se pode
observar a arcada renascentista e a capela que se encontram integradas no
edifício do Museu de Arte Sacra. A propósito deste edifício, Aragão salienta que o
mesmo não corresponde ao que foi desenhado por Jerónimo Jorge, dado que esse
foi destruído pelo terramoto de 1748, tendo sido erguido em seu lugar “uma vasta e
91
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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de ter realizado várias fortificações, deu início à Fortaleza do Pico
e à Fortaleza de S. Tiago.
Em 1617 Jerónimo Jorge morreu e foi substituído pelo seu
filho Bartolomeu João que foi nomeado fortificador em 1618.
Durante um período aproximado de quarenta anos este novo
fortificador executou diversas obras, de onde se destacam a
201
conclusão da Fortaleza de S. Lourenço , da Fortaleza do Pico e
do Forte de S. Tiago, e, ainda, a edificação do Forte dos Louros,
202
do Reduto da Alfândega e do Forte do Ilhéu .
É importante salientar que as obras de fortificação da
cidade do Funchal sempre estiveram dependentes da
disponibilidade de verbas para custear as despesas, o que acabou
por ter repercussões no avanço das obras. No entanto, em 1632 já
estavam de facto concluídas as obras da Fortaleza Velha e do
Forte de S. Tiago, estando em curso as obras de acabamento da
203
Fortaleza do Pico .
Foi após a restauração da independência nacional, em
1644, que se realizou a construção do Reduto da Alfândega, do
204
Forte dos Louros e da Fortaleza do Ilhéu ou de Nossa Senhora
da Conceição. Sendo, ainda, por essa altura que ficou acabada a
cortina marítima entre o Forte de S. Filipe e a Fortaleza de S.
equilibrada edificação barroca, datada de 1750” (Aragão, Para a História do
Funchal, pág. 205).
201
Aragão diz-nos que as obras que se realização na Fortaleza de S. Lourenço
deviam ser a construção do baluarte norte virado para a Avenida Arriaga. (Idem,
op. cit., pág. 278)
202
Idem, op. cit., pág. 207.
203
Carita, R. (1984). O regimento de fortificação de D. Sebastião (1572) e a Carata
da Madeira de Bartolomeu João (1654). Funchal: S.R.E., pág. 101.
204
Segundo Rui Carita, o Forte dos Louros foi mandado construir por Diogo
Fernandes Branco, mercador da Ilha, provavelmente na primeira metade do século
XVII. (Idem, op. cit., pág. 102)
92
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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Tiago, para a qual foi necessário derrubar algumas casas do bairro
205
piscatório de Santa Maria.
No final do século XVII e princípios do século XVIII, foram
construídas novas fortificações na Ilha da Madeira, no entanto no
Funchal apenas é feita referência ao Forte Novo, construído entre
o Forte de S. Tiago e a Ribeira de João Gomes, e ao Forte da
Penha de França. Já na segunda metade de setecentos, António
206
Aragão
menciona que o Forte de São Tiago sofreu uma
ampliação (1767) e que foi construído um novo forte, o de São
José. Sabemos, ainda, que entre 1782 e 1797 foram gastos
m
“241:780. 833 réis” em obras realizadas nas fortificações da
207
Ilha , o que na realidade não é uma surpresa na medida em que,
na segunda metade deste século, vamos encontrar alguns
relatórios e ofícios onde são feitas referências às “péssimas
208
condições em que se encontravam as fortificações” , o que sem
dúvida ponha em causa a defesa da Ilha e da própria cidade.
205
Sarmento, A. A. (1952). Ensaios históricos da minha Terra. Ilha da Madeira. Vol.
II. Funchal: Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, pág. 12.
206
Aragão, Para a História do Funchal, pág. 283.
207
Mappa geral da despeza das obras de fortificação, que se fizeram no tempo do
Governador D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho, datado de 10 de Abril de 1799
(Caixa 5, nº 1066) (Documento manuscrito retirado do inventário de Almeida, E. C.
(1907). Archivo de Marinha e Ultramar. Madeira e Porto Santo – 1613 a 1819., Vol.
I, Coimbra: Imprensa da Universidade)
208
De onde se pode, por exemplo, destacar: o Relatório do governador, Conde de
S. Miguel, para Diogo de Mendonça Corte Real, de 20 de Janeiro de 1754 (Caixa 1,
nº 22 – annexo ao nº 21) – onde para salientar o estado das fortificações é utilizada
a expressão “(...) Ocomo estas forteficações seachão demolidas (...)”; o Relatório
do governador Manuel de Saldanha de Albuquerque, dirigido a El-rei D. José, de 1
de Outubro de 1754 (Caixa 1, nº 48 e 49) – onde se afirma que as fortificações
estão “emtal descuido nesta Ilha” devido à “falta de meyos”; o Officio do
governador, José Corrêa de Sá, de 2 de Junho de 1759 (Caixa 1, nº 162) e um
93
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
Através destes mesmos documentos ficamos ainda a
saber que “a cauza desta perigoza indefeza tem sido a falta de
cobranças da contribuição de nove mil cruzados annuaes com q’
concorrem os Habitantes, para a Fortificação, e q’ não se pagou
209
por muitos annos, pela indolencia da Provedoria extincta (...)” .
Mas nesta cidade, para além das grandes residências
senhoriais, dos fortes e redutos, surgiram ainda outras
construções, algumas das quais permaneceram firmes e
imponentes até aos dias de hoje. São exemplos dessas
210
construções o Paço Episcopal na Rua do Bispo , o Colégio dos
Jesuítas e a Igreja do Colégio ou de São João Evangelista. De
salientar, que estes dois últimos edifícios, anexos um ao outro,
constituíram até ao século XIX o “maior conjunto edificado no
211
Funchal” .
documento com Reflexões geraes sobre a Ilha da Madeira, do governador João
Gonçalves da Câmara, datado de 23 de Junho de 1780 (Caixa 3, nº 556) – onde se
pode ler, relativamente às fortificações, que estas se encontram “cahindo em ruina”
ou “improprios para a defeza pela sua irregular, e mal entendida construção”.
(Idem, op. cit.)
209
Reflexões geraes sobre a Ilha da Madeira, do governador João Gonçalves da
Câmara, datado de 23 de Junho de 1780 (Caixa 3, nº 556). (Idem, op. cit.)
210
Actual Museu de Arte Sacra.
211
C. M. F. (2004). Funchal - Roteiro histórico turístico da cidade. Funchal: Câmara
Municipal do Funchal, pág. 125.
94
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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7 Permanências seiscentistas e setecentistas: Paço Episcopal (1); Colégio dos
Jesuítas (2); Igreja do Colégio (3).
Foi neste ambiente, onde o “vinho” foi responsável não só
pela introdução de uma nova ordem social na Ilha, como também
por uma forma distinta de edificar e habitar, que a “cidade do
vinho” se ergueu sobre a “cidade do açúcar”.
Esta cidade que, ao longo de dois séculos, privilegiou os
limites herdados da cidade quinhentista, começou, de um modo
ainda muito tímido, a alongar-se pela encosta acima, onde se
instalaram algumas quintas com sumptuosos vinhendos e jardins.
O Funchal do século XVII e XVIII foi, como acabamos de
ver, uma cidade subtilmente melhorada e preenchida. As suas
muralhas, os fortes e as novas e ricas moradias dos “senhores do
vinho” deram-lhe sobretudo uma nova imagem. Os quarteirões
tornaram-se mais densos e os seus edifícios cresceram em altura,
com as suas torres “avista-navios”. Contudo, o traçado da malha
urbana quinhentista manteve-se. Esta cidade, como se pode
verificar no Mapa nº 2, passados duzentos e cinco anos, cresceu
muito pouco, permanecendo cristalizado o tecido urbano da
“cidade do açúcar”. Na realidade, como afirma Aragão, “salvo mais
umas quantas ruas e travessas, a cidade do vinho sobrepõe-se à
cidade do açúcar, encavalita-se no seu dorso cansado e propõe
212
sobretudo um novo rosto” .
212
Aragão, Para a História do Funchal, pág. 137.
95
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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Um “novo rosto” que vai dar à cidade uma imagem mais
sólida e refinada. Nas diferentes artérias da cidade surgiram
edifícios com fachadas guarnecidas com cantarias trabalhadas,
muitas vezes com capelas anexas ou integradas na própria casa.
Por esta altura, e com maior incidência no séc. XVIII, são também
construídas, nas “melhores casas” do centro do Funchal, torres de
“avista-navios”, as quais são “concebidas para aumentar a visão
213
panorâmica do porto”
e, assim, permitir aos seus moradores
214
observar o movimento dos barcos .
Hoje, ainda é possível observar alguns desses edifícios
seiscentistas e setecentistas, bem como algumas torres de “avistanavios” típicas da “cidade do vinho”, que se encontram espalhadas
pelo centro da cidade.
8 Permanências de edificações da "cidade do vinho": as torres “avista-navios”.
Mas esta era também uma cidade que despertava o sentido
do olfacto. Era com certeza uma cidade aromática, perfumada
pela enorme quantidade de vinho guardado nos armazéns do résdo-chão das casas. Não nos podemos esquecer que numa época
213
Aragão, op. cit., pág. 105.
214
Aragão salienta que “a chegada de um navio à monótona e reduzida vida da
cidade, funcionava não só como uma ansiada fonte de distracção, mas também
como presumível transporte de correio ou mesmo de novas lá de fora relatadas
pelos viajantes”. (Idem, op. cit., pág. 139 e 140)
96
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
215
em que as janelas das casas não tinham vidros e os armazéns
de vinho multiplicavam-se pelas ruas da cidade, a fragrância do
216
vinho invadia com certeza as ruas .

Como era a “cidade do vinho”?
Um olhar atento do Mapa nº 3, onde concertamos a Planta
do Funchal do Capitão Skinner, datada de 1775, sobre o
ortofotomapa de 2004, permite-nos numa primeira análise concluir
que a “cidade do vinho” conservou o traçado da cidade
quinhentista e que o crescimento urbano ocorreu sobretudo para
norte, ao longo da Ribeira de Santa Luzia, e para poente. Na
realidade, constata-se que, nestes dois séculos, a malha urbana
adensou-se e consolidou, sem que tenha havido uma expansão
urbana significativa.
De qualquer modo existem duas áreas de expansão
específicas. Uma primeira para Norte, que acompanha o curso da
Ribeira de Santa Luzia e que tem como principais eixos
estruturantes a Rua das Mercês, a Rua dos Ferreiros e a Rua da
Conceição e onde, à semelhança do que acontecia na cidade
quinhentista, os quarteirões apresentam uma forma alongada,
paralela à rua e à ribeira, e os lotes encontram-se orientados no
sentido Este/Oeste.
215
É John Ovington quem o afirma, aquando da sua passagem pela ilha em 1689,
ao caracterizar as casas da “cidade do Tunchal”. (Aragão, A Madeira vista por
Estrangeiros – 1455-1700, pág. 201)
216
É curioso que esta é uma “memória” de infância que guardo da cidade da
década de 70, princípio de 80, do século passado. No regresso da escola,
atravessava a Rua do Bispo onde havia um armazém de vinho. Logo no início da
rua, era perceptível o odor intenso e adocicado do vinho, que saía pelas janelas
abertas, emolduradas em cantaria vermelha e com malheiros. Toda a rua ficava
perfumada.
97
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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Uma segunda área de expansão surge a ocidente, no
prolongamento da “cidade manuelina”, cujos eixos estruturantes
continuam a ser paralelos à linha da costa. Os quarteirões
apresentam lotes dispostos em diferentes direcções, orientados
para todas as frentes dos mesmos.
Verifica-se também que existe uma “linha” de expansão
para leste, a qual dá continuidade à Rua de Santa Maria.
Ainda da observação do Mapa nº 3, é possível constatar
que na “cidade do vinho” o núcleo da Sé continuou a ser o centro
político-religioso-económico e que os espaços públicos, tais como
praças e jardins, continuam a não ser valorizados. Na realidade,
nestes dois séculos, não parecem ter surgido novas praças ou
jardins.
A planta do Funchal do Capitão Skinner dá-nos, ainda, uma
visão extraordinária sobre a fortificação da cidade. Apesar de
existir um mapa anterior, de Bartolomeu João (1654), com
desenhos de diferentes fortes da cidade do Funchal, é na planta
de Skinner que vamos encontrar informações precisas sobre o
Funchal fortificado. Esta planta permite-nos, com algum rigor,
identificar não só o percurso da muralha como também a
localização dos fortes que defendiam a cidade.
Assim, pelo Mapa nº 3, verificamos que, na segunda
metade de setecentos, a muralha da cidade, a ocidente, entestava
nas rochas junto à Fortaleza do Pico (C) e descia pelas actuais
ruas Pimenta Aguiar, Major Reis Gomes e dos Aranhas até à zona
do calhau de São Lázaro. Depois, acompanhando a costa, ia
ligando os diferentes fortes – o Forte de São Lourenço (B), da
Alfândega (4), do Pelourinho (7) e o Forte Novo (6) – até ao Forte
de São Tiago (9). Constata-se ainda que a partir do Forte do
Pelourinho saía uma muralha que subia a margem direita da
Ribeira de João Gomes até às rochas do “alto” da Pena.
Faziam também parte deste sistema defensivo da cidade o
Forte do Ilhéu (5), o Forte de S. Diogo (8) e o Forte dos Louros,
este último já fora dos limites definidos para este estudo.
98
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
Skinner assinalou, igualmente, na sua planta as “portas do
mar”, num total de sete.
Este sistema de fortificação fechava a cidade por terra e
defendia-a pelo lado do mar. Na realidade, a defesa da cidade,
com cruzamento de fogos das várias fortificações, dificultava a
entrada de navios inimigos no porto do Funchal, o que a manteve
protegida de possíveis ataques.
Deste sistema defensivo setecentista restam apenas
vestígios da muralha – pequenos troços localizados na Rua
Pimenta Aguiar, na Rua Major Reis Gomes e junto às rochas do
“alto” da Pena, na Rua Visconde do Anadia, e nas traseiras da
Rua do Portão de S. Tiago – e alguns fortes – o Forte do Pico, o
Forte de São Lourenço, o Forte de São Tiago, o Forte do Ilhéu e,
ainda, ruínas do Forte dos Louros.
9 Permanências da cidade fortificada:
cortina da cidade (Rua do Portão de S.
Tiago) (1); Forte do Ilhéu (2); Forte de São Tiago (3).
Em síntese:


a “cidade do vinho” é uma cidade que se consolidou,
mantendo praticamente os limites da cidade quinhentista;
no seu traçado encontramos, fundamentalmente, duas novas
áreas de crescimento da malha urbana: uma para Norte, que
acompanha o curso da Ribeira de Santa Luzia e que tem
como principais eixos estruturantes a Rua das Mercês, a Rua
dos Ferreiros e a Rua da Conceição, e uma outra para
Ocidente, no prolongamento da “cidade manuelina”, cujos
eixos estruturantes são paralelos ao traçado da linha da
costa;
99
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt



os eixos estruturantes fundamentais da cidade continuam a
ser dois. Um que acompanha o traçado da linha de costa, na
direcção Este-Oeste, ao longo da Rua de Santa Maria, Rua
dos Mercadores, passando pelo núcleo da Sé e avançando
em direcção da Ribeira de São João, até às actuais ruas
Major Reis e dos Aranhas. E um outro, para o interior, que liga
a zona marítima ao centro e, posteriormente, às novas áreas
de expansão e às principais saídas da cidade;
o centro da cidade continua a ser definido pelo núcleo da Sé,
onde se enquadram a Sé Catedral e a sua praça, a Casa da
Câmara, a Alfândega e a Misericórdia;
relativamente ao seu sistema defensivo, na segunda metade
de setecentos, o Funchal era uma cidade fortificada, com
muralhas e fortes que a fechavam e a defendiam tanto por
terra como por mar.
2.2.3 O Século XIX
No século XIX a Madeira e a cidade do Funchal estiveram
quase sempre sob um clima de conflitualidade latente e de grande
instabilidade. A ocupação inglesa e a implantação do liberalismo
não foram de todo consensuais.
Ao abrigo da aliança luso-inglesa, durante as guerras
napoleónicas, o exército inglês ocupou a Ilha, com o pretexto de a
proteger e defender de possíveis ataques franceses. Na verdade,
os ingleses estavam preocupados em defender os seus
interesses, tendo para o efeito enviado um destacamento dirigido
pelo Coronel Clinton, que ficou na Região entre 1801 e 1802.
Cinco anos depois, chegaram ao Funchal “dois regimentos de
infantaria (1000 soldados cada) e duas companhias de
217
artilharia”
sob o comando do Major-General William Carr
217
Carita, R. (1982). Paulo Dias de Almeida e a Descrição da Ilha da Madeira.
Funchal: DRAC, pág. 32.
100
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
Beresford. Este general britânico, após o desembarque, ocupou o
Palácio de São Lourenço e mandou hastear a bandeira inglesa em
todas as fortificações do Funchal. Pelo que nos diz Rui Carita, esta
segunda ocupação (1807-1814) “parecia visar, pura e
simplesmente, a ocupação definitiva do Arquipélago pelas forças
Inglesas e se não fora o enorme esforço diplomático, desenvolvido
em vários centros europeus, dificilmente as forças inglesas daqui
218
teriam saído” .
É claro que esta ocupação gerou desagrado desde o
primeiro momento, contudo o poder dos comerciantes britânicos
na Ilha e a importância destes para a sobrevivência dos
madeirenses fez com que não tenha havido de imediato uma
reacção à presença inglesa. O certo é que desde o século XVIII os
madeirenses estavam subjugados ao domínio dos ingleses, ou
melhor, dos comerciantes desta nacionalidade. Já em 1780, o
governador João Gonçalves da Câmara ao reflectir sobre o
problema do comércio na Madeira afirmava:
(...) mas huma cega preocupação dos Habitantes
nutrida artificiosamente pela desordenada cobiça dos
Negociantes Britanicos, que lhes persuadem não ter
esta Ilha necessidade de outro meyo pª subsistir, que
a abundante exportação dos seos vinhos, recebendo
o ses produtos em os generos necessarios, que elles
219
importão, por tão exorbitantes preços (...)
Isto demonstra bem o modo como os ingleses, em proveito
dos seus interesses comerciais, tinham levado os madeirenses à
monocultura da vinha, tornando-os assim seus dependentes não
218
Idem, op. cit., pág. 31 e 32.
219
Reflexões geraes sobre a Ilha da Madeira, pelo Governador, João Gonçalves da
Câmara, de 23 de Junho de 1780 (Caixa 3, nº 556) (Documento manuscrito
retirado do inventário de Almeida, Archivo de Marinha e Ultramar, op. cit.)
101
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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só para a comercialização e exportação do vinho como também
para importação de bens essenciais, nomeadamente de cereais.
Após um período de relativa calmia, em 1827, as guerras
entre liberais e miguelistas vão conduzir a uma nova crise
económica. Os comerciantes ingleses, principais exportadores de
vinho e importadores de cereais, preocupados com a situação
começam a abandonar a Ilha. Em consequência a fome volta a
grassar na Madeira, criando agitação social, marcada por furtos e
assassínios e tornando ainda mais cruéis as acções de violência e
repressão praticadas pelas forças miguelistas, que tinham
chegado à Ilha em Agosto de 1828.
O desenvolvimento da cidade oitocentista foi ainda
pautado, na primeira metade do século, pelo apogeu e declínio do
comércio do vinho e, na segunda metade, pelo turismo
220
“terapêutico” .
Segundo António Aragão, no início do século XIX, o
comércio do vinho “sofre profundos revezes, uns de origem interna
e outros provocados por diversas razões externas, as quais,
221
reunidas, obrigaram a uma tremenda e imparável decadência” .
As fraudes, as falsificações e as entradas na Ilha de aguardentes
vindas do exterior, diminuiram a sua qualidade e prejudicaram o
negócio vinícola. Além disso, o fim das guerras napoleónicas e o
termo do bloqueio, permitiram a entrada de vinhos europeus nos
mercados tradicionais do Vinho Madeira – Inglaterra e o mercado
colonial asiático e americano –, diminuindo o número de
exportações deste precioso elixir madeirense. A este propósito
Alberto Vieira diz-nos que entre 1819 e 1821 havia 20 mil pipas a
220
Silva, I. (1985). A Madeira e o Turismo – Pequeno Esboço Histórico. Funchal:
D.R.A.C.
221
António Aragão, O Espírito do Lugar. A Cidade do Funchal., pág. 112.
102
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
222
aguardar comprador . As exportações continuaram a decair,
contribuindo para o desmoronamento do sector agrícola, que tinha
vindo desde o século XVII a apostar exclusivamente na cultura da
vinha.
Na sequência de toda esta crise política, económica e
social e da fome que lhe sobreveio, um grande número de
madeirenses foi obrigado a emigrar para Demerara, Brasil e
Hawai. Entre 1835 e 1855, calcula-se que cerca de 40 mil pessoas
223
emigraram da Ilha .
Entretanto, à medida que a crise vinícola se instalava, os
proprietários das terras começavam a vender os seus terrenos e
quintas. Os comerciantes ingleses, enriquecidos com o comércio
do vinho, adquirem essas propriedades e transformam-nas em
pousadas e hotéis de acolhimento aos inúmeros britânicos de
passagem para as colónias ou à procura de cura para a tísica
pulmonar. Tem assim início um novo ciclo económico na Ilha – o
do turismo terapêutico – mais uma vez dominado pelos ingleses.
Esta nova actividade, apesar de estar voltada para um públicoalvo muito específico, fez com que a cidade começasse
224
progressivamente a ganhar uma “feição cosmopolita” .
Nelson Veríssimo, num artigo intitulado Funchal – Città
225
Dolente , diz-nos que a partir da segunda metade do século XIX
222
Vieira, A. (2000, Dezembro). O Funchal. Os ritmos históricos de uma cidade
portuária. Revista Sociedade e Território, nº 31/32, 60-80, pág. 75.
223
Aragão, op. cit., pág. 113.
224
Veríssimo, N. (1993, Janeiro-Junho). Funchal – Città Dolente. Revista Islenha,
nº 12. 7 – 15, pág. 14.
225
Saliente-se, ainda, que o título, numa alegada comparação com a Città di Dite,
no Inferno da Divina Comédia de Dante, é interessantíssimo pois o turismo
“terapêutico” desenvolvido na Ilha deixava impregnado no ambiente da cidade uma
persistente tristeza doentia, reconhecendo o próprio autor que “o Funchal era assim
um misto de encanto, doçura, consolação e morbidez”. (Idem, op. cit., pág. 15)
103
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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a Madeira transformou-se “numa reputada estação de Inverno”,
226
recomendada “aos tuberculosos, convalescentes e asténicos” .
Salientando que “o Funchal animava-se com esses forasteiros”,
sem que as pessoas da terra colocassem “barreiras ao convívio”:
Não havia espaço limitado para os doentes.
Recebiam-nos nas suas quintas ou em singelas
moradias. Magros e pálidos, esses parceiros do
infortúnio deambulavam pela cidade. Nasciam
amizades. (...) Consumia-se o tempo com passeios,
227
festas e pesquisas da Natureza.
O turismo terapêutico trouxe até à Ilha “aristocratas,
228
burgueses e intelectuais” , sobretudo ingleses, que embora
doentes priviligiavam a diversão – “bailes, teatro, concertos no
229
Passeio Público, os Clubs, as excursões pela ilha”
–,
emprestando à cidade do Funchal uma imagem cosmopolita
mórbida.
230
Na verdade, como diz Veríssimo , “no Funchal pairava a
sombra da morte”, pois enquanto uns melhoravam outros “fizeram
da Ilha a sua última morada”. Assim, para uma cidade que
procurava bem receber, era importante “ocultar os símbolos da
morte”, tendo sido aprovada em 1897 uma postura da Câmara
Municipal do Funchal que proibia “aos estabelecimentos de
pompas fúnebres a exposição de objectos relacionados com a sua
actividade”. Houve ainda uma preocupação com o tipo de árvores
a colocar nos espaços públicos, verificando-se que os jornais da
226
Idem, op. cit., pág. 7.
227
Ibidem.
228
Idem, op. cit., pág. 9.
229
Idem, op. cit., pág. 13.
230
Idem, op. cit., pág. 14.
104
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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época preocupados com este assunto aconselhavam “a não
utilização de árvores melancólicas, de cemitério” ou “o
ajardinamento (...), com carvalhos, til e outras árvores umbrosas
em vez do plátano, para assim melhorar a imagem da cidade
231
perante o visitante” .
Outra “marca” deixada pelo turismo terapêutico na cidade
foram as inúmeras “tabuletas e letreiros em língua estrangeiras,
232
espalhados pelas muitas lojas da cidade” .
10. As marcas de uma cidade voltada para o turismo – a proliferação de letreiros escritos em
vários idiomas nas ruas da cidade do Funchal. (Fotografias cedida pelo A. R. M.)
No entanto, esta actividade que tanto beneficiou
economicamente a Ilha, veio mais tarde a cobrar o seu preço
através da disseminação da doença entre a população, acabando
por vitimar muitos madeirenses.
O século XIX ficou ainda marcado por calamidades
naturais que espalharam a destruição e a morte.
233
A 9 de Outubro de 1803, um forte aluvião , com origem
em fortes chuvadas, atingiu a cidade do Funchal. Este aluvião,
231
Ibidem.
232
Ibidem.
105
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
conforme podemos verificar no inventário do Archivo da Marinha e
234
Ultramar , provocou enormes estragos na cidade do Funchal. O
comunicado que o Major António Rodrigues de Sá redigiu sobre
este assunto é muito elucidativo:
Ontem de pois das 8 horas da noute / em
consequencia da grande chuva, que comessou pelas
11 horas do dia com pouca difrensa, e durou com a
mesma constancia té anoutesser / foi atacada esta
cidę pellas Ribeiras que a divide com hum feror
indizevel: esta noticia exigio da minha obrigação,
mandar por sentinelas nas Ruas dos ferreiros, e
tanueiros, huas pª empedirem, que o Povo se
percepitasse na Ponte que na quele citio a Ribeira
levou ao Mar, como tãobem a da Prasa, a do Calhau,
a de S. Paulo, a do Ribeirinho da Carne Azeda, e o
Maynel da Roxinha; e outras pª animais, e salvar os
Moradores da Rua dos Tanueiros, que está de hua
parte quaze toda aruinada, ficando mtas casas, como
hua Praya de pedras grossas, mtas Familias, que
passarão à outra vida, mtos armazens e logas
innundadas, finalmente mtos outros estragos,
innumeraveis: (...): tãobem no Bairro do Calhau
ouverão casas inteiras, e familias que desaparecerão
235
(...).
233
Aluvião – acumulação de sedimentos deixados pelas correntes fluviais. (John
Small e Michael Witherick, Dicionário de Geografia, Publicações Dom Quixote, pág.
17)
234
235
Almeida, Archivo de Marinha e Ultramar, op. cit..
Participação do Major, Antonio Rodrigues de Sá, ácerca dos extraordinarios
estragos e lamentaveis desgraças pessoaes occasionados pela inundação das
ribeiras na noite de 9 de Outubro de 1803, de 10 de Outubro de 1803 (Caixa 7,
106
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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Existem testemunhos de outros aluviões neste século, dos
quais se podem destacar, a título de exemplo, aqueles a que o
engenheiro Reynaldo Oudinot faz referência no relatório de 14 de
Abril de 1804 – 6 de Março; 10 de Março e 13 de Março desse
236
ano
– ou aquele a que, segundo Rui Carita, Paulo Dias de
Almeida faz referência na Descrição da Ilha da Madeira e que
237
ocorreu no dia 30 de Outubro de 1815 .
Provavelmente muitos outros aconteceram, no
entanto a sua força demolidora não foi tão grande como o de 9 de
Outubro de 1803, sobretudo porque já tinham sido tomadas
algumas providências para protecção da cidade, nomeadamente
ao nível da construção de muralhas nas ribeiras.
Oitocentos não foi todavia só um rol de desastres, trouxe
também progresso e inovação à cidade.
À medida que se avançava no século, o sonho de iluminar
os diferentes espaços da cidade foi se tornando uma realidade. A
chegada da iluminação pública, primeiro a azeite, depois a
petróleo e, por fim, a energia eléctrica, modificou definitivamente a
paisagem da cidade.
Annexo ao nº 1392) (Documento manuscrito retirado do inventário de Almeida,
Archivo de Marinha e Ultramar, op. cit.)
236
Relatorio do Engenheiro, Reynaldo Oudinot, sobre os estragos materiaes
produzidos pelo temporal de 9 de Outubro de 1803, no Funchal e em outras
povoações, de 14 de Abril de 1804 (Caixa 7, nº 1456) (Idem, op. cit.)
237
“Em 30 de Outubro de 1815 pelas 5 horas da tarde, houve um aluvião que levou
quarenta casas e arruinou outras, inundando ruas, e se fosse à noite muita gente
morreria afogada. A ribeira de S. Paulo chegou a trazer uma coluna de água e
rochedos, que ocuparam a largura de 60 palmos e 30 de alto. Entre as pedras que
ficaram no leito da ribeira, junto ao mar, havia uma de 20 palmos quadrados, e de
10 palmos muitas. Esta enchente durou uma hora.” (Rui Carita, Paulo Dias de
Almeida e a Descrição da Ilha da Madeira, pág. 54)
107
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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Entre 1846 e 1852, por iniciativa do conselheiro José
Silvestre Ribeiro, governador da Ilha, foi colocado o primeiro
sistema de iluminação da cidade, com candeeiros de azeite. Em
1858, com o objectivo de dotar a cidade de um novo sistema mais
moderno e eficiente de iluminação, a Câmara Municipal do
Funchal deliberou a abertura de um concurso para iluminar a
cidade a gás. A primeira proposta chegou em 1859. Mas segundo
Maurício Fernandes, “em 1864, o Funchal continuava iluminado a
238
azeite, dispondo a cidade de 133 candeeiros de 2 e 3 bicos” .
Sabe-se no entanto que em 1881 já funcionavam candeeiros a
petróleo e que a Câmara do Funchal abriu um novo concurso para
a iluminação a gás, tendo havido uma proposta que foi rejeitada.
A 24 de Janeiro de 1884 o engenheiro Eduardo Augusto
Kopke fez uma proposta para implantar na cidade do Funchal um
sistema de iluminação a “gaz d’ulha”. No entanto, a adjudicação
desta obra foi alvo de grande polémica uma vez que não fazia
sentido, numa época em que a electricidade ganhava cada vez
mais adeptos, implantar um sistema desta natureza. Assim, em
1895, a Câmara Municipal realizou um novo contrato com este
engenheiro, desta feita para a colocação de um sistema de
iluminação eléctrica.
No dia 22 de Maio de 1895 era celebrada, entre a Câmara
Municipal do Funchal e o engenheiro Eduardo Augusto Kopke, a
“escriptura de contracto para a illuminação da cidade do Funchal
239
por meio de luz electrica” . Neste contrato estava definida a área
a electrificar (ver Mapa nº 4):
238
Fernandes, M. (1993, Janeiro-Junho). A iluminação pública no Funchal. Revista
Islenha, nº 12. 80 – 83, pág. 81.
239
Eduardo Augusto Kopke, Escriptura de contracto para a Illuminação da Cidade
do Funchal por meio de luz electrica celebrada entre a Camara Municipal da
mesma cidade, Arquivo Regional da Madeira.
108
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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(...) o perímetro formado pelos polygonos cujos
vertices se apoiam nos seguintes pontos:
1º Hotel Reid, na Estrada Monumental;
2º Ponte Velha do Ribeiro Seco;
3º Intercepção da rua do Arcebispo D. Ayres, com o
princípio da estrada Levada de Santa Luzia;
4º Extremo da Levada de Santa Luzia ou intercepção
da estrada da Levada de Santa Luzia com a Avenida
Pedro José de Ornelas;
5º Intercepção do Caminho do Palheiro do Ferreiro
com o Caminho do Terço;
240
6º Foz da Ribeira de Gonçalo Ayres.
O mesmo documento referia, ainda, que era concedido ao
engenheiro Eduardo Augusto Kopke, “por quarenta annos, (...), o
exclusivo do fornecimento de luz electrica para a illuminação
publica, municipal e particular e dos edificios públicos da cidade do
241
Funchal” . Ficamos também a saber que “as luzes da illuminação
publica, serão accesas todas as noites, e manterão o maximo da
intensidade estabelecida n’este contrato desde o occaso até ao
242
nascer do sol” .
Em Junho de 1897 era finalmente inaugurada a “luz
eléctrica” na cidade do Funchal.
O Funchal oitocentista, apesar de marcado por uma
variedade de acontecimentos que implicaram um número elevado
de obras, não sofreu alterações significativas na sua malha
urbana. O encanamento e consolidação do leito das ribeiras, a
construção de algumas pontes e estradas, que beneficiaram
sobretudo as ligações entre a cidade e o resto da Ilha e, ainda, a
240
Idem, pág. 4.
241
Idem, pág. 5.
242
Idem, pág. 6.
109
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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construção do Porto do Funchal constituiram intervenções
localizadas, abrangendo áreas restritas da cidade. Além disso,
243
todas estas intervenções acabaram por se prolongar no tempo
tendo um maior impacto na imagem do Funchal, manchada por
obras intermináveis, do que propriamente na sua forma.
No entanto, neste século a cidade do Funchal continuou a
crescer, tendo ultrapassado os primeiros obstáculos que o relevo
lhe impunha, sobretudo a Oeste, na margem direita da Ribeira de
São João, e a Norte, na zona de Santa Clara e dos antigos
Moinhos. A abertura de novas estradas parece ter sido
determinante para a expansão da urbanização.
Pela comparação da área construída nas plantas de
244
245
1894
e de 1775 , concertadas no Mapa nº 5 sobre o
ortofotomapa de 2004, comprovamos que a cidade expandiu-se
sobretudo para Ocidente, ocupando os terrenos, mais elevados,
da margem direita da Ribeira de São João. Além disso, na
margem esquerda desta ribeira, surgiram novos quarteirões,
implantados perpendicularmente à linha de água, acompanhando
o traçado da nova muralha da ribeira. O mesmo se verificou na
Ribeira de João Gomes, onde surgiram também alguns novos
quarteirões junto às margens. É, ainda, evidente que houve um
aumento significativo da área construída, ocorrendo uma
densificação do centro da cidade e a proliferação de uma série de
243
Temos vindo a constatar que esta foi uma realidade sempre presente na Ilha,
motivada por constantes crises económicas e financeiras e, ainda, pela inércia dos
vereadores e pela falta de apoio do Governo Central.
244
Planta da Cidade do Funchal e seus arredores, da autoria dos engenheiros
Carlos Roma Machado de Faria e Maia, Adriano Augusto Trigo e Annibal Augusto
Trigo, cedida pelo A.R.M..
245
Plan of the Town of Funchal, da autoria do Capitão Skinner, cedida pela Casa-
museu Frederico de Freitas.
110
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
pequenas construções nas áreas mais elevadas, envolventes à
cidade.

Como era o Funchal oitocentista?
A cidade de 1800 encontrava-se certamente degradada.
Com a excepção das casas dos senhores do vinho, que foram
adquiridas pelos ingleses e transformadas em casas de hóspedes
e em pequenos hotéis, é possível deduzir que muitos edifícios
públicos, habitações e fortificações encontravam-se em ruína e
que a ocupação urbana, sobretudo junto às margens das ribeiras,
era desordenada. A corroborar esta nossa suposição temos
diversos documentos do inventário do Archivo da Marinha e
246
Ultramar , que testemunham sobretudo o estado de degradação
das edificações.
Através da leitura destes e de outros documentos
tomámos ainda consciência da gravidade das dificuldades
económicas existentes na Ilha e dos muitos temporais e aluviões
que frequentemente assolavam a cidade. Estas circunstâncias
acabaram por contribuir e piorar o estado de decadência de muitos
edifícios da cidade.
Para agravar ainda mais a situação, a 9 de Outubro de
1803 a cidade foi atingida por um aluvião que, como já
mencionamos, provocou muita destruição e mortes.
246
A título de exemplo, podemos mencionar os seguintes documentos, das últimas
décadas de setecentos: Reflexões geraes sobre a Ilha da Madeira, pelo
Governador, João Gonçalves da Câmara, de 23 de Junho de 1780 (Caixa 3, nº
556); Representação do Senado do Funchal, mostrando a necessidade de se
construir uma nova casa da Câmara, de 23 de Novembro de 1779 (Caixa 3, nº
535); Officio do Governador, Ascenso de Siqueira Freire, para o Visconde de
Anadia, de 3 de Setembro de 1806 (Caixa 8, nº 1686). (Documento manuscrito
retirado do inventário de Almeida, Archivo de Marinha e Ultramar, op. cit.)
111
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
No Mapa nº 6, foram assinalados os leitos de cheia dos
cursos de água que atravessam a cidade, sendo deste modo
visíveis as áreas que foram destruídas pelo mesmo. Verifica-se
que as áreas mais devastadas foram as que se localizam entre as
ribeiras de Santa Luzia e de João Gomes, bem como as áreas
adjacentes às suas margens. Segundo diferentes relatos, os
estragos foram enormes na Rua dos Tanoeiros, no sítio do
247
Ribeirinho, na zona do Pelourinho e no Bairro de Santa Maria .
Relativamente à Ribeira de São João, embora esta
também tivesse galgado as margens, os prejuízos parecem ter
sido muito menores, uma vez que “ella termina a cidade da parte
248
occidental” , localizando-se ali fundamentalmente terrenos
agrícolas. Contudo, junto à foz, onde se localizava um pequeno
247
A propósito dos estragos provocados nestas áreas, Alberto Artur Sarmento
escreve o seguinte: “A ribeira de João Gomes numa fúria de arrasto (...) entulhou
ao chegar à cidade, esbraçando-se em três partes. No primeiro salto passou por
cima da ponte da Rochinha, levou tudo adiante de si pela rua dos Pangueiros,
caindo todas as casas que ficavam à porta da travessa de Nossa Senhora do
Calhau. O segundo lanço no estacamento, pelo sítio do Ribeirinho, escavou uma
vala enorme, por onde passava, levando consigo lojas e armazéns, e nas costas do
Pelourinho (...). O terceiro braço desgarrado da Ribeira arrancou-lhe as muralhas
da margem esquerda, entrou na rua do Hospital Velho, levou a Capela dos Reis
Magos onde fora primitivamente a Misericórdia, e daí para a baixo, todas as casas
com sua gente e haveres, e combinando-se as águas de encontro, derruíram a
igreja de Nossa Senhora do Calhau (...). Toda a parte baixa da cidade ficou
inundada, pois os muros de defesa no litoral serviram para subir mais a água que
procurava saída.” (Sarmento, A. A. (1952). Ensaios históricos da minha Terra. Ilha
da Madeira. Vol. III. Funchal: Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, pág.
169)
248
Relatorio do Engenheiro, Reynaldo Oudinot, sobre os estragos materiaes
produzidos pelo temporal de 9 de Outubro de 1803, de 14 de Abril de 1804 (Caixa
7, nº 1456) (Idem, op. cit.)
112
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núcleo de casas, os estragos foram significativos, tendo sido
destruídas algumas habitações.
Na sequência deste episódio e com o objectivo de dirigir
os trabalhos de reconstrução das áreas atingidas pelo aluvião,
chegou à Madeira, em Fevereiro de 1804, o engenheiro militar
Reynaldo Oudinot, acompanhado do capitão Feliciano António de
Matos e Carvalho. Em Setembro desse mesmo ano, juntou-se a
249
estes dois oficiais o Tenente Paulo Dias de Almeida .
250
Através da leitura do um relatório do Brigadeiro Oudinot ,
onde descreve os estragos causados pelo aluvião, ficamos a
conhecer o “projecto das obras a construir para reparar as ruinas
dos edificios e muralhas”. Nesse projecto, o engenheiro propunha,
fundamentalmente, a reedificação e reparação das principais
muralhas e pontes das ribeiras, definindo para o efeito algumas
“maximas” a ter em conta durante a execução das obras:
249
Paulo Dias de Almeida realizou vários trabalhos sob as ordens do Brigadeiro
Oudinot, de onde se destaca a execução de diferentes mapas, de que são
exemplos a Planta da Cidade do Funchal e a Carta Geral da Ilha da Madeira; o
levantamento de duas fortalezas – a de São Lourenço e a de São Tiago; a
execução da Planta de Perfil de um baluarte proposto para ser construído na
embocadura da Ribeira de São Paulo – a Bateria das Fontes; e outros perfis e
plantas de outros lugares da Ilha. Segundo o documento do Archivo da Marinha e
Ultramar (Carta de Paulo Dias de Almeida, para o Visconde de Anadia, de 15 de
Setembro de 1805 - Caixa 7, nº 1610), este Tenente reivindicou ser o autor do
mapa que o engenheiro Oudinot enviou, no dia 9 de Setembro de 1805, ao
Visconde de Anadia. Paulo Dias de Almeida colaborou ainda, em 1824, com o
Brigadeiro Francisco Raposo nos estudos sobre o porto do Funchal.
250
Relatorio do Engenheiro, Reynaldo Oudinot, sobre os estragos materiaes
produzidos pelo temporal de 9 de Outubro de 1803, de 14 de Abril de 1804 (Caixa
7, nº 1456) (Idem, op. cit.)
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Maxima 1ª. As ribeiras devem ser conduzidas ate o
Mar seguindo a direcção mais breve, e por
consequencia a mais recta possivel: (...)
Maxima 2ª. A largura de cada Ribeira e a altura de
seus diques serão determinados segundo a
observação das localidades e a experiencia tiverem
251
indicado que são convenientes (...)
As “maximas” ditavam não só a rectificação dos cursos de
água e a elevação das margens, bem como descreviam o método
a utilizar na construção das pontes.
Relativamente às obras a fazer na cidade, para além da
mudança de direcção de diferentes secções das ribeiras “para
outra mais recta”, destacavam-se a construção de pontes novas e
de novos troços de muralha. O projecto especificava ainda, para
cada uma das Ribeiras, a localização e a extensão das obras a
realizar e os métodos a aplicar.
Pela leitura de diferentes Officios e Cartas do inventário do
Archivo da Marinha e Ultramar, constatamos que as obras
propostas por Reynaldo Oudinot não só foram iniciadas antes de
252
24 de Abril de 1804 , como também estavam a ser feitas a um
bom ritmo no final desse ano. Num officio datado de 6 de
Dezembro de 1804, podemos ler que “as chuvas tinham produzido
grandes cheias nas ribeiras, pelas quaes se mostrára a efficacia e
253
solidez das obras construidas” . Os trabalhos propostos no Plano
251
Ibidem.
252
Carta de Reynaldo Oudinot, ácerca dos trabalhos de reparação a que estava
procedendo nas Ribeiras, de 24 de Abril de 1804 (Caixa 7, nº 1458) (Idem, op. cit.)
253
Officio do Engenheiro, Reynaldo Oudinot, de 6 de Dezembro de 1804 (Caixa 7,
nº 1540 – Annexo ao nº 1538) (Idem, op. cit.)
114
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254
de Oudinot continuavam em 1806
a ser executados com a
expropriação de diversos prédios para a construção das muralhas
nas margens das ribeiras de João Gomes e de Santa Luzia.
Sabemos ainda que entre Setembro de 1806 e Março de 1807
foram feitos vários trabalhos de reparação nos paredões das
255
Ribeiras de João Gomes e de Santa Luzia .
Contudo é um facto que as obras propostas por Oudinot
prolongaram-se, pelo menos, até ao ano de 1815:
(...) encarregando o encanamento dellas [ribeiras] ao
Brigadeiro Engenheiro Reynaldo Oudinot, que vindo a
esta Ilha, fez o Plano, e sendo approvado por V. A. R.
foi por elle posto em execução, e continuado depois
256
de sua morte , athe o prezente pelo seo Ajudante o
254
Officio do governador, Ascenso de Siqueira Freire, para o Visconde de Anadia,
de 3 de Setembro de 1806 (Caixa 8, nº 1686) (Idem, op. cit.)
255
Na Carta do Capitão, Feliciano Antonio de Mattos Carvalho, de 6 de Abril de
1807, podemos ler que: “Na Ribeira de João Gomes do lado direito está completa
amuralha em toda a sua elevação do ponto B athe o Forte do Pelourinho (...). Na
margem esquerda da dita Ribeira estão feitas 109 braças liniares de muralha em
toda a sua altura, contadas da Cortina da Marinha athé a primeira caza das que
ainda discansão sobre amuralha velha da Ribeira: como tambem a sua escada de
cantaria rija”. Relativamente à “Ribeira de Sta Luzia, no lado direito ficão ja
completas 54 braças liniares de muralha, a saber .. 40 .. da ponte atual da Praça
para a dentro, e .. 14 .. da dita ponte para o Mar (...). Do lado esquerdo da dita
Ribeira está comtoda a sua altura hua porção de muralha, que principiando no
Forte chega athe .. 17 .. braças pª adentro da Cidade (...)”. (Caixa 8, nº 1714)
(Idem, op. cit.)
256
O engenheiro Reynaldo Oudinot faleceu no dia 11 de Fevereiro de 1807, sendo
substituído na Direcção das Obras Públicas pelo Capitão Engenheiro Feliciano
António de Mattos. (Documentos da Caixa 8, nº 1703 e 1704 – Annexa ao nº 1703)
(Idem, op. cit.)
115
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Major Engenheiro Feliciano Antonio de Mattos (...).
(...) afrouxou este trabalho desde o anno de 1810,
pela necessidade de remetter para Londres a
consignação anual de 45 mil libras sterlinas, quantia,
que sendo muito superior ás sobras annuaes do
rendimento da Capitania (...). Não podendo por este
motivo concluir o trabalho, que devia pôr a cidade em
257
difeza (...)
Neste mesmo officio podemos ler que, a 26 de Outubro de
1815, a cidade sofreu um outro aluvião de grandes proporções, mas
que, apesar dos estragos causados nas pontes, nas casas e em
fazendas localizadas nas margens das ribeiras, as consequências
do mesmo não foram mais graves devido à protecção das muralhas
já construídas.
11. Memória das muralhas de protecção na Ribeira de Santa Luzia (1) e na Ribeira
de João Gomes (2) (s. d., fotografias cedidas pelo A.R.M.).
257
Officio do Governador, Florencio Corrêa de Mello, remettendo uma
representação da Junta da Real Fazenda, que lhe está annexa, de 23 de
Novembro de 1815 (Caixa 13, nº 3713 – 3714) (Idem, op. cit.)
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É de salientar que alguns troços das muralhas de
protecção, da época de Oudinot, ainda hoje são visíveis,
sobretudo na Ribeira de Santa Luzia.
12. Muralhas de protecção da Ribeira de Santa Luzia – permanências do século
XIX.
No início do século XIX foi difundido um projecto,
provavelmente da autoria de Oudinot, onde era proposto a
expansão da cidade do Funchal para Oeste.
Na Planta da Cidade do Funchal de Paulo Dias de
Almeida, que concertamos sobre o ortofotomapa do mapa nº 7,
podemos observar no sítio das Angústias, entre a margem direita
da ribeira de São João e o Ribeiro Seco, esse Projecto da Nova
Cidade. Apesar de nunca ter sido executado, este plano recticular,
com uma praça central quadrada, constituíu uma primeira tentativa
de planificar a expansão da cidade.
Esta Planta da Cidade do Funchal dá-nos inúmeras
informações sobre a cidade do início de oitocentos.
Uma análise atenta do mapa nº 7 permite-nos identificar e
localizar as diversas fortificações que guarneciam a cidade
oitocentista – Fortaleza do Pico (C); Fortaleza de São Tiago (10);
Forte Novo de São Pedro (9); Forte de São Filipe (7); Bateria da
Alfândega (1); Fortaleza de São Lourenço (B); Bateria das Fontes
(2); Bateria de São Lázaro (3); Bateria da Pontinha; Bateria da
Penha e Forte do Ilhéu (6).
117
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A propósito de fortificações refira-se, a título de
curiosidade, que no princípio do século XIX o Funchal tinha
dezasseis Portas da Cidade, tendo algumas delas sido demolidas
258
entre 1836-39 .
13. Portas da Cidade - o Portão dos Varadouros. (Dillon, Frank, Funchal Cathedral,
From the Beach – 1848-49 – gravura cedida pela C.M.F.F.); o Portão da Carleira (?),
na Rua da Carreira (gravura cedida pelo M.Q.C.)
Prosseguindo a leitura do mapa nº 7, constata-se que pela
primeira vez surge identificada a Igreja Inglesa (12). Na realidade,
apesar da longa presença dos ingleses na Ilha, só no primeiro
quartel de oitocentos estes conseguiram autorização para erguer
258
Segundo o Padre Fernando Augusto da Silva, em 1836 estavam de pé onze
Portas da Cidade: 2 entre a Fortaleza de São Tiago e o chamado Forte Novo; 1
entre o Forte Novo e o Pelourinho (Portão de Nossa Senhora do Calhau – demolido
em 1836); 1 portão nos Varadouros (Portão dos Varadouros); 1 portão no extremo
Sul da Rua do Sabão (demolido nesse mesmo ano); 1 junto ao Forte da Alfândega;
1 situado entre a Casa da Saúde e a Fortaleza de S. Lourenço (Portão da Saúde –
demolido em 1836); 1 no alto da Rua dos Aranhas (Portão de São Lázaro); 1 junto
à Capela de São Paulo (Portão de São Paulo – demolido em 1839); 1 situado
abaixo do cemitério britânico (Portão da Carleira) e outro entre a Capela de São
Paulo e a Rua da Bela Vista (Portão do Pico – demolido em 1865). (Silva, F.
(1921). Elucidário Madeirense. Vol. III. Funchal: S.R.E.C., pág. 100)
118
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um templo anglicano. É António Aragão quem nos dá essa
informação, salientando ainda que esta autorização foi dada “sob
condição de que o seu vulto arquitectónico não aparentasse
semelhanças com o templo católico”. Na realidade, ainda hoje a
igreja se encontra implantada no mesmo sítio, “um tanto afastado
da rua e sem que a sua presença se confunda com a imagem de
259
qualquer construção católica” .
No entanto, para uma análise mais detalhada das
propostas apresentadas por Oudinot para “melhorar” a cidade do
Funchal, podemos observar na figura nº 14 a Planta elaborada por
Paulo Dias de Almeida.
14. Planta da Cidade do Funchal, atribuída a Paulo Dias de Almeida, primeiro
quartel do século XIX (C.M.F.F) – 1. Projecto da Nova Cidade; 2. Ribeiro Seco; 3.
Travessa das Violetas; 4. Rua da Alegria; 5. Rua do Conde Canavial; 6. Rua de
João de Deus.
259
Aragão, O Espírito do Lugar. A Cidade do Funchal., pág. 122.
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Nesta Planta da Cidade está assinalado a vermelho o
260
“projecto que ainda se não realisou” . À parte do projecto da
Nova Cidade (1) que, como referimos, não foi executado, estava
ainda previsto a construção, junto à Ribeira de São João, de uma
segunda muralha, com dois fortes, e, ainda, a abertura de novas
ruas. Embora as muralhas não tenham sido edificados, é
interessante verificar, através do mapa nº 7, que existem
semelhanças entre a orientação das ruas projectadas e a de
algumas vias hoje existentes – Travessa das Violetas (3), Rua da
Alegria (4), Rua do Conde Canavial (5) e Rua de João de Deus
(6).
Nesta Planta é ainda bem visível o alinhamento das
ribeiras resultante das correcções propostas pelo Brigadeiro
Oudinot.
Ainda em relação ao sítio das Angústia, sabe-se pela
Descrição da Cidade do Funchal de Paulo Dias de Almeida,
261
incluída no livro de Rui Carita , que este começou a ser ocupado
por muitas casas de funchalenses e estrangeiros a partir de 1814,
altura em que “o Bispo fez encanar as Fontes de S. João para
262
aquele lugar, que não tinha água” . Naqueles terrenos foi
também edificado o Hospital e o Cemitério Público da Santa Casa
(5). Pela leitura da mesma descrição ficamos, igualmente, a saber
que a baía do Funchal tinha “um bom ancoradouro”, havendo “um
pequeno abrigo, a terra do Ilhéu, onde se abrigam pequenas
embarcações”. Na verdade, este pequeno “abrigo” não era mais
do que um pequeno cais de desembarque que tinha sido
construído, na segunda metade de setecentos, entre a Pontinha e
o Ilhéu de São José.
O porto do Funchal era um assunto que estava pendente,
pelo menos desde 1756. Na realidade, a partir dessa data são
260
Segundo uma nota que consta na parte inferior da Planta.
261
Carita, Paulo Dias de Almeida e a Descrição da Ilha da Madeira, pág. 57 a 59.
262
Idem, op. cit., pág. 57
120
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frequentes os documentos do inventário do Archivo da Marinha e
Ultramar que abordam o assunto das obras do porto e do cais da
cidade. Sabemos que o engenheiro Francisco Tossi Colombino foi
encarregue da elaboração do primeiro projecto do porto, havendo
um número significativo de documentos que falam a esse
263
264
respeito . No entanto, só a 22 de Março de 1756 é que surge o
primeiro registo a ordenar a construção do dito porto de abrigo.
Em Abril do ano seguinte, o “Plano e modelo do porto d’esta
265
ilha”
estava pronto, pois Colombino enviava-o para Thomé
266
Joaquim da Costa Corte Real . As obras deveriam ter sido
iniciadas logo de seguida, pois em Novembro de 1757 um officio
do Governador Manuel de Saldanha de Albuquerque, a propósito
de “um forte temporal na costa da ilha”, fala na obra e nos
estragos que a mesma sofreu:
(...) na referida obra: esta se acha bastantem
adiantada, e na prezente tormenta se conhecia
melhor a sua utilidade as obras exteriores que se lhe
263
De que é exemplo o Extracto das ordens, expedidas pelo Conselho de Fazenda
em 26 de Março de 1756 ao governador e capitão general da Ilha da Madeira,
Manuel de Saldanha de Albuquerque, e ao Provedor da Fazenda respectivo,
relativas às obras das fortificações, caes e porta daquella ilha. (Caixa 1, nº 69)
(Documento manuscrito retirado do inventário de Almeida, Archivo de Marinha e
Ultramar, op. cit.)
264
Copia da carta regia dirigida ao Governador da ilha da Madeira, Manuel de
Saldanha de Albuquerque, de 22 de Junho de 1756 (Caixa 1, nº 91 – Annexo ao nº
90) (Idem, op. cit.)
265
Carta do Engenheiro Francisco Tossi Colombino, para Thomé Joaquim da Costa
Corte Real, enviando o “Plano e modelo do porto d’esta ilha”, de 18 de Abril de
1757 (Caixa 1, nº 97) (Idem, op. cit.)
266
Thomé Joaquim da Costa Corte Real era Secretário de Estado da Marinha e
Domínios Ultramarinos.
121
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tinhão feito há dois mezes, pª mais segurança do
corpo principal da mesma obra, achandosse ainda
267
imperfeitas, e mto frescas, padesceram ruina (...)
Contudo estas obras prolongaram-se no tempo e, em
Dezembro de 1759, um outro temporal assolou a costa da Ilha e
são novamente referidos “grandes estragos em toda a costa e nas
268
obras do porto” .
A partir de 1768 começou a ser veiculada a ideia de
269
“fechar os ilheos para protecção dos navios ancorados no porto”
Mas, até ao início de oitocentos, parece não ter havido iniciativas
nesse sentido.
Sabemos, no entanto, que Paulo Dias de Almeida
colaborou, em 1824, com o Brigadeiro Francisco Raposo nos
estudos sobre o porto do Funchal, existindo na Biblioteca Nacional
várias Plantas, assinadas pelo primeiro, com diferentes projectos
270
para o Porto da Abrigo .
No entanto, sabemos que a obra que ligou o Ilhéu de São
José ao de Nossa Senhora da Conceição só começou a ser
efectuada em 1885.
267
Officio do Governador Manuel de Saldanha de Albuquerque, noticiando o ter
havido um forte temporal na costa da ilha, de 4 de Novembro de 1757 (Caixa 1, nº
122) (Idem, op. cit.)
268
Officio do Governador, José Corrêa de Sá, de 24 de Dezembro de 1759 (Caixa
1, nº 190) (Idem, op. cit.)
269
Carta do Governador, João António de Sá Pereira, de 2 de Abril de 1768 (Caixa
2, nº 312) (Idem, op. cit.)
270
Planta do Porto d’Abrigo na Bahia do Funchal, 1º Projecto e Planta do Porto
d’Abrigo na Bahia do Funchal, 2º Projecto, Paulo Dias d’Almeida, 1824 (Blanc, T. A.
(1869). Album de desenhos dos portos marítimos artificiaes antigos e modernos
que acompanham a histório dos mesmos portos).
122
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271
Relativamente ao cais da cidade, Iolanda Silva
diz-nos
que só em 22 de Abril de 1843, foi tomada a decisão de construir
um cais de pedra, em frente à cidade, tendo esta obra sido
embargada em 1844 devido aos seus elevados custos. Em 1876 a
construção do cais era ainda assunto de destaque.
15. O porto do Funchal em 1888 – ligação do Ilhéu de São José ao de Nossa
Senhora da Conceição (fotografia cedida pelo A.R.M.).
É interessante deixar aqui o testemunho de Isabella de
França, uma inglesa casada com um madeirense que visitou a
Madeira entre 1853 e 1854, a propósito do dito cais e da imagem
que este deixava aos visitantes quando desembarcavam na praia:
271
Simões, A. V. e outros (1983). Transportes na Madeira. Funchal: D.R.A.C., pág.
37 e 38.
123
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Perto do sítio em que desembarcámos notam-se
vestígios de um cais, planeado há já alguns anos. (...)
Quando veio o Inverno tinham feito progressos
consideráveis, sem tomar, contudo, as precauções
devidas. Não tardou que rebentasse um temporal, e
na manhã seguinte o cais estava desfeito. (...) Os
enormes blocos de pedra foram arrojados em todas
as direcções, e agora o que resta alcança apenas o
quebra-mar. Às vezes sentam-se ali doentes, a gozar
a brisa marítima; mas, como ponto de desembarque,
272
é totalmente inútil.
Isabella de França, no seu livro, faz-nos ainda uma
descrição muito interessante do Funchal na década de 50. Falanos dos meios de transporte – o carro de bois, o palanquim, as
zorras e a rede; das ruas que, de um modo geral, são estreitas,
“pavimentadas de seixos, na sua maior parte aguçados” e sem
273
passeios laterais ; da existência, à saída do local de
desembarque, de “uma rua larga entre dois renques de
274
plátanos” que conduz ao Passeio Público; do facto de existirem
na Rua da Carreira casas com quintais floridos, “demarcados pela
antiga muralha da cidade”, para além das quais havia “parreiras,
vivendas, quintas, a capela do cemitério, com o seu portão, num
maciço de ciprestes, canaviais, castanheiros e árvores de
folhagem exuberante, no meio das quais avultam imponentes as
275
largas folhas das bananeiras” ; da Igreja inglesa; do Convento de
Santa Clara; da Quinta das Cruzes e do Forte do Pico. Menciona,
272
França, I. (....). Jornal de uma Visita à Madeira e a Portugal (1853 – 1854).
Funchal: Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, pág. 51.
273
I. F., op. cit., pág. 52 e 53.
274
Idem, op. cit., pág. 53.
275
Idem, op. cit., pág. 54.
124
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ainda, as quintas espalhadas pelas encostas do anfiteatro do
Funchal – “(...) distinguem-se campos entremeados de quintas, até
ao Monte e Palheiro, e, por cima de tudo, a esplêndida serra com
os seus inúmeros espinhaços e recortes, nalguns pontos coberta
de pinhais ou giesta dourada, noutros exibindo montões de rocha
276
desnuda.”
Esta “cidade jardim”, envolta ainda num ambiente “semirural”, começava então a expandir-se em direcção às áreas mais
elevadas da baía. Isabella, em dado momento da sua descrição,
menciona que da “parte alta da cidade” podia observar melhor o
Funchal: “muito maior do que eu esperava: será a terceira das
terras portuguesas, depois de Lisboa e Porto. Estende-se por mais
de milha ao longo da costa e sobe a considerável distância até aos
277
montes.”
Depreendemos ainda pela sua descrição que o Funchal
era uma cidade segregada: “para lá das ribeiras, a nascente,
ficava outrora uma zona respeitável da cidade, como ainda se
pode inferir do que resta das belas casas ali edificadas, mas nos
últimos anos vem sendo abandonada às classes mais baixas e
278
transformada em verdadeira espelunca” . Acrescenta ainda que
nas margens das ribeiras existiam ruas, com “renques de
plátanos” plantados na década de 20, que “constituiriam agradável
passeio se não fossem as pessoas pobres que vivem nas
imediações e que as escolheram para depósito de todo o género
de porcarias, o que as torna intransitáveis a quem tiver olfacto
279
delicado” .
Ainda a propósito das ribeiras, ficamos a saber que “são
canais profundos entre fortes muralhas de pedra”, com um regime
torrencial que, quando havia grandes chuvadas, arrastavam
276
Ibidem.
277
França, op. cit., pág. 56.
278
Ibidem.
279
Ibidem.
125
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“pedregulhos de muitas toneladas”, os quais chegavam a destruir
280
as muralhas das ribeiras e provocavam inundações .
Os espaços públicos da cidade foram igualmente alvo da
sua atenção. Explica que o Passeio Público, que se localizava no
“meio da cidade”, apresentava “quatro filas de árvores, quase
todas carvalhos”; adiantando ainda que as árvores que
anteriormente lá existiam “(...) os Miguelistas cortaram-nas a fim
de arranjar campo para as tropas, ao mesmo tempo que
demoliram um lindo teatro que ficava diante da entrada da
281
Fortaleza” . Afirma que havia outros dois passeios públicos
arborizados, à beira-mar: a Praça da Rainha, que ficava junto ao
cais “arruinado”, e a Praça Académica, a menos frequentada,
localizada a nascente, “além das ribeiras”.
Refere que, ao longo da praia, havia “a linha dos fortes,
outrora artilhados, mas ao presente em triste estado de
abandono”, ligados por muralhas. Junto à Fortaleza de São
Lourenço existiam as “fontes públicas, às quais todos os
habitantes mandam buscar água de beber, embora haja muitas
282
para outros fins em todos os cantos da cidade” . Continua a
descrever a frente mar da cidade, referindo que para Este, ficava o
283
Pilar de Banger , a Alfândega, o mercado, a praça do peixe e,
por fim, o Forte de São Tiago. Salienta, no entanto, que o mercado
e a praça do peixe são “construções modernas e bem
284
ordenadas” .
280
Idem, op. cit., pág. 57.
281
Ibidem.
282
Idem, op. cit., pág. 58.
283
O Pilar de Banger foi inicialmente construído para apoio à descarga de
mercadorias por meio de um guindaste. Ficava assim no “calhau”, junto ao mar,
mas, segundo Isabella de França, a praia com o tempo foi alargando-se e esta
edificação deixou de ter essa utilidade.
284
Ibidem.
126
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A Norte do Passeio Público, em frente à Fortaleza de São
Lourenço, ficava o Hospital e, para Poente, “as ruínas do
Convento de São Francisco, parcialmente destruídas quando da
abolição das Ordens”. A Leste localizava-se a Sé Catedral, que a
Sul tinha um pequeno largo, fechado pela Cadeia. Isabella explica
ainda que a Câmara Municipal tinha funcionado nesse edifício da
Cadeia, mas que então ocupava uma casa na Rua dos Ferreiros.
16. As ruínas do Convento de São Francisco, com a Sé Catedral ao fundo e a
Fortaleza de São Lourenço à direita.(View near the Praça da Constituição – 1850)
(Gravura cedida pelo M.Q.C.)
Fala-nos das igrejas da cidade e das “inúmeras capelas,
muito arruinadas”. Acrescentando que a igreja do Colégio é a mais
285
“bem frequentada” e que “o convento anexo é agora quartel” .
285
França, op. cit., pág. 59.
127
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Relativamente aos “conventos de freiras” salienta que existem três
286
mas que “já não admitem mais noviças” .
O Pelourinho ou “antiga praça pública”, que segundo
Isabella já não tinha utilidade, nem tinha o pelourinho, estava
rodeada de “algumas casas grandes, que já foram belas e hoje
287
estão tristemente arruinadas” .
Isabella fala ainda da cortina de muralha que se estendia
desde o Forte do Pico até praticamente ao mar e que tinha duas
portas, a de São Paulo e a de São Lázaro, ficando o cemitério
inglês do lado de fora da primeira e o cemitério português a “curta
288
distância da segunda” .
Esta é a cidade da década de 50, permanecendo a nossa
ideia inicial de que o Funchal apresentava áreas muito
degradadas. No entanto, é interessante verificar que a cidade
“utilizada” por aqueles que chegam de fora, pelos visitantes,
restringia-se à área envoltente ao Passeio Público e à Rua da
Carreira que, segundo parece, eram as zonas mais bem
frequentadas e conservadas da cidade.
É curioso que esta mesma ideia nos é dada, trinta anos
mais tarde, por Dennis Embleton, quando escreve sobre a Praça
da Constituição, a qual Isabella de França designada por Passeio
Público:
The Praça da Constituição is the great “passeio”,
public promenade, or lounging place, with shops on
each side, and the General Hospital on the north side.
(…)You meet, on the Praça, with all the “beau monde”
of Funchal, dressed in the newest fashions, and
enjoying the music and a stroll about with their friends,
286
Ibidem.
287
Ibidem.
288
França, op. cit., pág. 60.
128
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
in clear sunny air, in which neither smoke nor dust
289
exist (…)
No entanto, na descrição deste autor em momento algum
é feita referência ao estado de conservação da cidade.
Uma coisa é certa, o Funchal de finais de oitocentos era
uma cidade que começava a crescer, e que já não se encontrava
confinada apenas à parte mais baixa da baía.
Através do Mapa nº 8, onde a Planta da Cidade do
Funchal e seus arredores, da autoria dos engenheiros Carlos
Maia, Adriano Trigo e Annibal Trigo, foi concertada sobre o
ortofotomapa de 2004, podemos observar esse mesmo
crescimento. A nossa área de estudo está agora polvilhada de
pequenas moradias, sobretudo a Oeste da Ribeira de São João e
a Nordeste da zona de Santa Maria. Relativamente à área
compreendida entre as ribeiras de São João e João Gomes, sendo
mais plana, continuou a densificar-se, surgindo novos quarteirões
sobretudo junto à margem esquerda da primeira ribeira.
Do sistema de fortificação da cidade parecem apenas
restar alguns fortes – a Fortaleza do Pico (C); o então já
denominado Palácio de São Lourenço (B); a Fortaleza do Ilhéu ou
de Nossa Senhora da conceição (8); o Forte de São Filipe (9); o
Forte de São Pedro (10) e o Forte de São Tiago (11) – e uma
parte da Cortina da Cidade (7) junto ao Campo de São Tiago (4).
O Forte das Fontes foi demolido, dando lugar ao prolongamento
da Praça da Rainha (27), de onde sai uma rua marginal que vai
dar ao porto de abrigo.
Ainda junto ao mar surge, a Oeste da Praça de São Pedro
(28), o Mercado de São Pedro (22) e a Rua da Praia. O cais da
cidade parece agora maior.
289
Embleton, D. (1882). A Visit to Madeira in Winter 1880-81. London: J. & A.
Churchill, pág. 33.
129
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
É também evidente que os espaços públicos aumentaram.
Surge o Jardim Municipal (15), onde antes estavam as ruínas do
Convento de São Francisco. A Praça da Constituição (26) tem
agora a ocidente um pequeno jardim e, como já mencionamos, a
Praça da Rainha está maior. O Largo de São Sebastião (18),
agora sem a capela, ganhou uma nova dinâmica, passando a ser
local de feira.
É evidente que a cidade mantém os seus eixos
estruturantes iniciais, continuando a crescer para Oeste,
paralelamente à linha de costa, e para Norte ao longo de ruas
mais ou menos paralelas ao traçado das ribeiras. No entanto, nas
áreas de expansão, começa a surgir uma urbanização dispersa.
Em síntese:



a cidade do Funchal do século XIX alargou definitivamente o
seu limite, ultrapassando os primeiros obstáculos que o relevo
lhe impunha, sobretudo para Oeste e para Norte, surgiu um
novo fenómeno de urbanização que foi o da proliferação de
pequenas habitações nas áreas envolventes, mais elevadas,
da cidade;
neste século continua a haver uma densificação do centro da
cidade;
a cidade manteve os seus eixos estruturantes iniciais,
continuando a crescer para Oeste, paralelamente à linha da
costa, e para Norte ao longo de ruas mais ou menos paralelas
ao traçado das ribeiras.
2.2.4 O Século XX
Portugal ao longo do século XX viveu períodos de grande
agitação política. Logo na primeira década, uma monarquia, cada
vez mais debilitada politicamente, é substituida pela Primeira
República, facto que criou grandes expectativas na população
portuguesa mas que pouco ou nada trouxe de novo.
130
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
À medida que o tempo passava, o clima de instabilidade
aumentava, com quedas sucessivas de governos e o agravamento
da crise económica.
A 28 de Maio de 1926, um golpe militar punha fim ao
regime parlamentar. Dois anos depois, António de Oliveira Salazar
tomava posse como Ministro das Finanças e, ao fim de um ano,
liquidava a dívida pública, baixava as taxas de juro, estabilizava o
valor da moeda, lançava o crédito público de médio e longo prazo,
dotava o Estado dos meios necessários ao lançamento de um
significativo programa de obras públicas. Aos poucos voltava a
estabilidade política e social ao país. Salazar é então nomeado
Primeiro Ministro em 1932 e com a promulgação da Constituição
de 1933 é instituído o Estado Novo. Entre 1934 e 1940 o Estado
Novo consolidou-se.
Com a II Guerra Mundial uma profunda crise económica e
social instalou-se em Portugal e o regime de Salazar sofreu a sua
primeira crise. Após as eleições de 1951, depois da morte do
general Carmona, é reiterada à confiança ao Chefe do Governo e
Salazar manteve-se à frente do Ministério.
Na década de 50 ocorreu uma intensificação da eficiência
governativa no plano da reorganização económica e uma
modernização das estruturas produtivas nacionais. Foram, então,
elaborados os Planos de Fomento – de 1953, de 1959-64 e de
1968-1973 – e a vida económica do país reanimou-se. No entanto,
em 1958, com as eleições presidenciais ocorreu a grande crise
política do regime salazarista. Américo Tomás foi eleito Presidente
da República. Sucedem a estas eleições uma série de
acontecimentos que vieram a gerar uma instabilidade política. Em
1968, Oliveira Salazar é hospitalizado com urgência. É então
exonerado do cargo e Marcelo Caetano é nomeado para as
funções de presidente do Conselho de Ministros.
A guerra de Ultramar começava a ser uma preocupação
grave sem fim à vista. O descontentamento instalou-se e em 24 de
Abril de 1974 ocorreu a Revolução que pôs fim à II República. A
nova Constituição foi promulgada em 1976 e após um período de
131
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
instabilidade política e social, com quedas sucessivas de governos
e um agravamento económico do país, a normalidade
constitucional consolidou-se. Em 1985 foi assinado o tratado de
adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia e em
290
1992 foi assinado o Acordo de Maastricht.
A Madeira acompanhou e viveu todos estes períodos com
a agravante do peso do afastamento e do isolamento geográfico e,
ainda, de uma crise económica e social que desde há muito
parecia se ter tornado crónica.
Na verdade, o Funchal novecentista despertou para o
novo século no seio de uma profunda crise económica, política e
291
social. Segundo Rui Nepomuceno , no início deste século a
economia da Ilha continuava estagnada e os atrasos sociais e
culturais eram enormes. O porto do Funchal vinha desde há algum
tempo a perder o estatuto de principal centro de apoio à
navegação do Atlântico, não só devido ao desaparecimento do
barco à vela, dependente dos ventos alísios e das correntes, mas
292
também devido à abertura do Canal do Suez , que desviavam o
tráfego marítimo para outras rotas, e dos portos das Ilhas
Canárias. Além disso, os principais sectores da economia
madeirense continuavam no domínio e na posse dos ingleses.
A tudo isto iria juntar-se a recente Autonomia
Administrativa, adoptada em 8 de Agosto de 1901, a qual tinha
criado algumas expectativas nos madeirenses mas que acabou
por não resolver os principais problemas, “mantendo-se a
comatosa crise económica, política, social e até cultural do
290
Saraiva, J. H. (1993). História de Portugal. Publicações Europa – América, pág.
495 a 560.
291
Nepomuceno, R. (2006 A). A conquista da Autonomia da Madeira. Os conflitos
dos séculos XIX e XX. Lisboa: Editorial Caminho, pág. 69.
292
Este canal foi inaugurado em 1869.
132
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
293
arquipélago” . Os madeirenses continuavam a não puder gerir os
seus recursos sem a interferência do Poder Central.
A proclamação da República, em 1910, trouxe aos
madeirenses a esperança, ainda que fugaz, de um maior
desenvolvimento económico e de uma maior autonomia. Rui
Nepomuceno escreve a este propósito que “a nova governação,
para além da importante medida de aumentar o porto e o cais do
Funchal, (...), apenas inaugurou, em 1911, a Rede Telefónica (...)
294
e o Sistema de Comunicações à base de telegrafia-sem-fios” .
Este mesmo autor salienta ainda que a entrada de
Portugal na Primeira Guerra Mundial veio agravar ainda mais a
instabilidade que se vivia no Arquipélago. O certo é que, durante a
guerra, não só o Funchal foi, em 1916 e em 1917, palco de dois
bombardeamentos, que provocaram mortes e prejuízos materiais
na cidade, como também, em consequência da diminuição do
tráfego do porto do Funchal gerou-se uma grave crise de
subsistência, ao ponto de em 1917 o Governador Civil Substituto
ter ordenado “o descarregamento forçado de cerca de 700
toneladas de milho de África, que era destinado ao Continente,
renovando, em pleno século XX, os cenários dramáticos do
passado madeirense, acontecidos nos períodos da quase
295
monocultura do açúcar e depois do vinho” .
Mas as contendas do passado pareciam não querer
abandonar o Arquipélago. Os ódios e as lutas entre caseiros e
senhorios continuavam, surgindo esporadicamente conflitos que
fragilizavam cada vez mais as relações sociais. Só em 1967, com
o Decreto-Lei 47 939, os Contratos de Colonia foram proibidos,
293
Nepomuceno, op. cit., pág. 71.
294
Nepomuceno, História da Madeira – uma visão actual, pág. 332.
295
Ibidem.
133
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
mantendo-se no entanto em vigor todos os pactos constituídos no
296
passado .
Entretanto, após a guerra, e em consequência dos seus
enormes custos, o país entra numa crise económica e financeira.
A 28 de Maio de 1926 é instaurada a ditadura em
Portugal. Mais uma vez, os madeirenses vêm nela uma esperança
de mudança, que muito rapidamente se transformou em
descontentamento generalizado e em revolta.
A agravar toda esta situação, a crise económica que
atingiu os Estados Unidos da América nos finais da década de 20,
teve graves repercussões na Ilha na medida em que este país era
o principal importador de bordado madeira. Em consequência
disso, “milhares de bordadeiras do campo e da cidade ficaram
sem trabalho e, muito embora ganhassem muito pouco a puxar
pela agulha, o certo é que esses míseros vencimentos eram
297
fundamentais para ajudar a sustentar as suas pobres famílias” .
Falências, desemprego, fome e muita miséria fazem-se sentir por
todo o lado.
No dia 4 Abril de 1931 os madeirenses revoltam-se em
prol da democracia e das liberdades. O objectivo era combater o
salazarismo e o seu governo corporativo. O regime fascista
empreendeu então uma ofensiva militar contra a Madeira, tendo
ocorrido alguns bombardeamentos e tiroteios em diferentes partes
298
da Ilha . A 2 de Maio os revoltosos renderam-se.
296
Estes conflitos só tiveram fim “quando a Assembleia Legislativa da Madeira,
após decisão da Assembleia da República, decretou, em 1978, o Direito de
Remição pelos colonos da nua propriedade das suas glebas”. (Nepomuceno, A
Conquista da Autonomia da Madeira – os conflitos dos séculos XIX e XX, pág. 78 e
79).
297
Idem, op. cit., pág. 80.
298
Idem, op. cit., pág. 90.
134
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
Esta revolta acabou por agravar os problemas da Região
nos anos que se seguiram. Novas lutas se fizeram sentir, mas de
nada serviram. Na opinião de Nepomuceno, o Arquipélago da
Madeira viria a ser uma das regiões “mais fustigadas durante
esses quase 50 anos da ditadura do Estado Novo, pois Salazar
nunca esqueceu o estigma da Revolução da Madeira e da Revolta
299
do Leite” , acabando a Região por ser fortemente penalizada
com pesados impostos. Em consequência da situação que a
Madeira vivia, muitas pessoas emigraram entre 1950 e 1970.
A Madeira com uma agricultura de subsistência, uma
indústria praticamente inexistente e um sector terciário que mal
sobrevivia, devido ao baixo poder de compra a esmagadora
maioria da população voltou-se então para o turismo. Contudo, a
concorrência era elevada e desigual. O Terreiro do Paço havia
protegido e desenvolvido o turismo no Algarve e a concorrência
das Ilhas Canárias era cada vez maior.
A nível social os problemas não eram menores. Havia falta
de escolas, não existia uma universidade e o analfabetismo era
enorme. Não havia uma eficaz assistência médica e
medicamentosa. A habitação social era escassa. Faltavam
infraestruturas – água canalizada, luz eléctrica e saneamento
básico.
A Madeira debatia-se assim com um grande atraso a nível
económico e social, e com uma enorme recessão económica.
A Revolução de 25 de Abril de 1974 marcou uma nova
fase para o Arquipélago. Novas esperanças surgiram. Em 1985,
com a entrada de Portugal na União Económica Europeia, nova
lufada de ar atingiu a Região.
Apesar de todas estas conturbações políticas, económicas
e sociais no País e na Região, o século XX foi sem dúvida aquele
299
Nepomuceno, História da Madeira – uma visão actual, pág. 387.
135
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
em que a cidade do Funchal mais cresceu e se transformou em
termos urbanísticos.
Até aos finais do século XIX, os limites da cidade tinham
apenas ultrapassado timidamente a zona baixa do anfiteatro do
Funchal. A cidade continuava aninhada e concentrada entre Santa
Maria e a Ribeira de S. João, havendo uma tendência para o
preenchimento e, consequente, consolidação do seu centro.
A chegada do automóvel à Ilha, logo no início de
novecentos, foi em nossa opinião determinante para o início do
processo de transformações e intervenções urbanísticas a que o
Funchal iria submeter-se ao longo da primeira metade do século
XX. Na realidade, este meio de transporte, aliado ao esforço para
a implantação de uma rede de estradas na Ilha e, ainda, à
melhoria da rede viária do Funchal, que tiveram de se adaptar à
circulação deste novo meio de transporte, contribuíu para o
aumento da mobilidade da população e para a diminuição das
distâncias.
As pessoas, ao ganhar mobilidade, elegeram as áreas
limítrofes da cidade para viver. O Funchal alargou-se, tendo
crescido sobretudo através de um processo de dispersão de
pequenas moradias que, com o decorrer do século, acabaram por
se espalhar por todo o seu anfiteatro.
No Mapa nº 9 podemos comparar a evolução da cidade do
Funchal entre 1894 e 1990. Pela sua análise, concluímos que, em
quase cem anos, a cidade cresceu e expandiu-se em diferentes
direcções. Constata-se que áreas anteriormente agrícolas foram
ocupadas sobretudo por pequenas construções dispersas e,
ainda, que a parte central da cidade tornou-se mais densa e
compacta. Ou seja, que ocorreu uma colmatagem dos espaços
vazios e o preenchimento cerrado das frentes dos arruamento,
com novas edifícações.
A observação deste mapa permite-nos ainda verificar que
nas áreas de expansão da cidade as construções não só se
encontram dispersas como também distribuídas de um modo
desordenado. Na realidade, este tipo de povoamento resultou do
136
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
facto de nestas áreas as estruturas das propriedades serem
fundamentalmente rurais, o que fez com que as construções
fossem aproveitando os caminhos públicos e seguindo o cadastro,
originando deste modo uma ocupação dispersa e desordenada.
Aliado a este crescimento da cidade surgiram novas
preocupações relacionadas com a criação de novas infraestruturas
e equipamentos sociais e, ainda, com a imagem da cidade.
É ainda importante salientar que nas décadas de 40 e 50, o
Governo Central a fim de atenuar o descontentamento dos
madeirenses, mandou executar importantes empreendimentos e
obras públicas, de onde se destacam a ampliação e o
apetrechamento do porto do Funchal (3ª fase – 1934-39 e a 4ª
fase – 1957-62), a construção de um aeroporto (concluído em
1964), melhorias nos Correios e nas comunicações e o
lançamento de redes de saneamento básico no Funchal.
Tendo em conta todo este processo, verifica-se que a
cidade novecentista vai ser alvo de várias intervenções
urbanísticas, às quais ficaram associados nomes como Ventura
Terra, Fernão de Ornelas, Rafael Botelho, Óscar Niemeyer e
outros, que devido à actualidade dos acontecimentos estão
presentes na memória de todos.
Na realidade, o grosso das acções urbanísticas que
marcaram a cidade novecentista decorreu de projectos, de planos
e de pessoas que num esforço conjunto conseguiram, passo a
passo, dar uma nova imagem à cidade sem que no entanto esta
tenha perdido a sua identidade.
Para esta nova imagem do Funchal foram fundamentais as
acções que a seguir se destacam:
1915 – foi apresentado um Plano de Melhoramentos para a
Cidade do Funchal, da autoria do Arquitecto Ventura Terra.
Este plano, que não chegou a ser executado, acabou por
servir de “modelo” orientador de muitas das decisões e
intervenções que vieram a ocorrer posteriormente na cidade;
1935-1947 – sob a alçada do Dr. Fernão de Ornelas,
presidente da Câmara Municipal do Funchal entre 1935 e
137
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
1947, a cidade do Funchal foi objecto de grandes
intervenções urbanísticas. Este autarca, sem dúvida o
primeiro impulsionador das ideias de Ventura Terra, promoveu
uma série de transformações que foram, sobretudo, cruciais
para uma maior acessibilidade e mobilidade na cidade;
1972 – tem início um novo momento para a cidade do
Funchal. Em Março deste ano é aprovado o primeiro Plano
Director, cujos princípios gerais eram garantir à cidade um
conveniente apetrechamento urbano, tendo em vista as
necessidades do momento e futuras; estabelecer uma
eficiente rede de circulação e comunicações; e defender o
património edificado e natural;
1997 – o Plano de 1972 foi revogado pelo actual Plano
Director do Funchal. Novas conjunturas tinham surgido e com
elas novas preocupações, interesses e exigências. Ao
Funchal pedia-se uma maior competitividade, uma maior
qualidade de vida para a sua população e uma qualificação do
meio urbano e natural. Assim, neste novo PDM é dada
especial atenção à defesa e valorização do património cultural
(artístico, urbanístico e etnográfico); à mobilidade e
acessibilidade; à criação de habitação; à valorização dos
espaços públicos e à recuperação da orla marítima.
Dada a importância que estas acções tiveram na
transformação e evolução da cidade do Funchal ao longo do
século XX, será feita uma análise individual de cada uma delas.

O Plano Geral de melhoramentos para o Funchal da
autoria do arquitecto Ventura Terra (1913-1915).
Ventura Terra nasceu em Seixas no ano de 1866. No seu
percurso académico passa pela Academia de Belas Artes do Porto
(1881), onde frequentou o curso de Arquitectura Civil e de
Desenho Histórico, e pela École Nationale et Speciale des BeauxArts, em Paris, onde frequentou o atelier do Arquitecto Jules André
138
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
e obteve, em 1894, o Diploma de Arquitecto de 1ª Classe do
Governo francês. Regressou a Portugal em 1896, onde procurou
pôr em prática a sua aprendizagem parisiense.
Enquanto arquitecto projectou prédios, palacetes, hospitais,
teatros, liceus, escolas, igrejas, pavilhões de exposições,
equipamentos assistenciais e monumentos. A sua actividade
contemplou ainda o urbanismo, onde se podem destacar os
projectos que realizou para o Parque Eduardo VII, os planos para
a zona ribeirinha de Lisboa e o Plano de Urbanização do Funchal
(1915).
Nos trabalhos deste arquitecto – urbanista, é possível
identificar uma preocupação constante com a vivência da cidade,
com a sua organização interna e com a sua modernização. Os
seus projectos reflectem, ainda, “preocupações de qualificação
dos espaços onde intervém, que se manifestam nos diferentes
300
níveis de contenção orçamental e formal a que recorre” .
No entanto, é importante aqui salientar um dos aspectos
fundamentais da modernidade defendidos por Ventura Terra, o
qual hoje não é facilmente aceitável. Para ele o Património era
uma herança que devia ser respeitada mas que não devia
dificultar o desenvolvimento do espaço urbano. Este foi sem
dúvida o aspecto mais negativo de alguns projectos que realizou,
pois com base nesta premissa, Terra propunha, por exemplo, a
demolição de edifícios históricos.
Ventura Terra foi então o autor do Plano Geral de
Melhoramentos para o Funchal, apresentado em 1915 à Câmara
Municipal do Funchal.
A preparação deste plano trouxe este arquitecto-urbanista
ao Funchal, em Fevereiro de 1913, com o intuito de “contactar
pessoalmente com as particularidades da Madeira, quer nas suas
300
C. M. E. (2006). Miguel Ventura Terra – A arquitectura enquanto Projecto de
Vida. Esposende: Câmara Municipal de Esposende, pág. 9.
139
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
301
belezas quer nos seus problemas” . Segundo o livro Miguel
Ventura Terra – a arquitectura enquanto projecto de vida, que cita
uma entrevista deste arquitecto dada ao Heraldo do Funchal,
Ventura Terra considerava a cidade do Funchal:
bastante confusa, com ruas horrivelmente calcetadas,
muito irregulares e acidentadas, uma cidade
completamente “destituída dos requisitos que faziam
a formosura e a comodidade dos sistemas de viação
das cidades modernas”. Lamentava, igualmente, que
sendo a Madeira uma das “mais belas regiões do
mundo”, a cidade do Funchal não aproveitasse os
esplêndidos pontos de vista de que poderia tirar
partido, apontando então directamente para o
302
desenvolvimento turístico.
Este plano de urbanização, realizado para a Câmara
Municipal do Funchal, era na opinião do seu autor para ser
executado a longo prazo – “(...) como o poderá ser d’aqui a uns
303
cincoenta ou cem anos” , o que só demonstra que Ventura Terra,
para além de ser um visionário, estava consciente dos entraves e
dos custos que tamanha intervenção acarretaria para uma cidade
da dimensão do Funchal.
Concertamos o Plano de Ventura Terra no ortofotomapa de
2004 (Mapa nº 10), e da sua análise verificamos que este projecto
propunha uma profunda remodelação do centro da cidade do
Funchal a nível do traçado da rede viária, incluindo não só a
alteração de alguns traçados como também a abertura de novas
vias de circulação. Além disso é evidente que Ventura Terra
301
Idem, op. cit., pág. 415.
302
C.M.E., op. cit., pág. 415 e 416.
303
Idem, op. cit., pág. 418.
140
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
pretendeu com este seu projecto privilegiar a ligação da cidade ao
mar.
Ventura Terra propunha então no seu plano a abertura de
uma ampla avenida marginal, que se estendia desde o Forte de S.
Tiago (5) até à Ribeira de S. João, prolongando-se depois por uma
rua, também ela litoral, até ao Largo de António Nobre (6).
Paralelamente a esta avenida criava uma outra que passava sobre
a Praça da Constituição (10) e continuava para Leste até ao
Lazareto (8), passando muito perto do Campo da Barca (4), e para
Oeste pelas Angústias até à Estrada Monumental. Mais para o
interior e ainda com um traçado sensivelmente paralelo às
avenidas, sugeria o alargamento da Rua da Carreira (11) e da
actual Rua do Bom Jesus (12), propondo uma nova praça para o
Largo do Colégio (7).
Perpendicularmente a estas vias, determina a criação de um
conjunto de outras avenidas paralelas entre si e com início na
avenida marginal. Assim encontramos uma grande avenida sobre
a Ribeira de Santa Luzia, que se prolongava para Norte até à zona
304
do Pombal (9); outra que passa em frente à Sé Catedral (A) e
que desemboca na actual Praça do Município (7); uma outra que
liga o cais da cidade à actual Avenida Arriaga (1) e, ainda, outra
que se estende pela Calçada de S. Lourenço (3) até à Rua da
Carreira.
No projecto são ainda visíveis outras ruas, na sua maioria
correspondendo ao alargamento de vias já existentes.
Através de uma observação mais atenta do Mapa nº 10
constatamos que a abertura ou alargamento das vias propostas
por Ventura Terra implicava não só a demolição de um elevado
305
número de prédios, de parte da Fortaleza de S. Lourenço (B) e
304
Era no Pombal que se localizava a estação de saída do comboio do Monte.
305
A abertura das duas avenidas contíguas ao Palácio de São Lourenço, implicava
a demolição da parte Leste e Oeste do Palácio de São Lourenço.
141
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
306
da Praça da Constituição, como também o cobrimento
da
Ribeira de Santa Luzia.
A leitura do mapa permite-nos, ainda, concluir que os eixos
estruturantes da cidade mais uma vez se mantêm. Ventura propõe
que as novas ruas e avenidas tenham fundamentalmente uma
orientação Este-Oeste e Sul-Norte. Assim, verificamos que no
primeiro caso estas vias seguem o eixo, paralelo à linha da costa,
que liga, longitudinalmente, a parte Oriental e Ocidental da cidade,
e no segundo o eixo, perpendicular à costa, que liga a frente mar
ao interior da cidade.
Da análise do Plano de Ventura Terra verificamos, também,
que estavam projectados para as novas ruas amplos passeios
laterais e placas centrais arborizadas. Constatamos, ainda, que
em frente ao cais da cidade estava planeada a construção de uma
ampla praça pública e, sobre o cais (2), um Casino Municipal.
Relativamente ao cais, observa-se que este seria desviado para
nascente, ficando localizado desta forma em frente à Alfândega.
Em síntese, Ventura Terra com este Plano de
Melhoramentos propôs uma nova forma de estar e organizar a
cidade, valorizando a localização da cidade e a sua relação com o
mar.
307
Além disso, o cosmopolitismo
que Ventura Terra fez
chegar até nós, através do seu Plano, foi sem dúvida uma
condição de qualidade e de inovação na cidade do Funchal.
Apesar do plano nunca ter sido executado, acreditamos que
acabou por servir de modelo, transformando-se num importante
306
Ventura Terra defendia que, “com a cobertura da Ribeira de Santa Luzia,
resolver-se-ia a questão do aspecto imundo e repugnante da mesma, por conduzir
a descoberto os esgotos das casas de grande parte da cidade, com grave ofensa
da higiene e do decoro da população”. (Idem, op. cit., pág. 419)
307
Que para Ventura Terra era “o gosto pela cidade como lugar de progresso e
felicidade”. (op. cit., pág. 22)
142
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
instrumento de consulta que tem ajudado a repensar a cidade do
Funchal nos últimos noventa e dois anos.

As intervenções urbanísticas do Dr. Fernão de Ornelas
(1935-1946)
Fernão de Ornelas foi presidente da Câmara Municipal do
Funchal entre 1935 e 1946. Durante a sua presidência houve um
grande empenho na requalificação e modernização do Funchal.
Este homem, de grande coragem e capacidade de realização,
tomou decisões, nem sempre as mais populares, que tiveram um
grande impacto na época e vieram a marcar de forma significativa
a actual imagem do Funchal.
Consciente das necessidades da cidade, sobretudo no
que diz respeito à construção e melhoramento de infraestruturas e
308
de equipamentos e à sua higienização, Fernão de Ornelas não
só procurou solucionar todos estes problemas como também deu
início a uma verdadeira “revolução” em termos de requalificação e
de modernização do Funchal. A cidade foi então palco de grandes
intervenções. Durante pouco mais de uma década o Funchal viuse envolto em numerosas obras que não só transformaram o seu
308
Segundo o Ofício-memorandum de 8 de Fevereiro de 1935, enviado pela C.M.F.
ao Presidente da Comissão Administrativa da Junta Geral Autónoma do Distrito de
Funchal, “as obras mais necessárias a atender” no Concelho eram: a pavimentação
de quase todas as ruas da cidade; a construção de um novo mercado de “frutas e
flôres”e de um mercado para “venda de peixe”; a construção de “casas destinadas
à residência dos magistrados”; a construção de escolas municipais; o lançamento
de uma nova rede geral de esgotos; a construção de um novo Matadouro
Municipal; e a construção de fontanários nas freguesisa rurais do Concelho.
(Lopes, A. (2006). A Obra de Fernão Ornelas na Presidência da Câmara Municipal
do Funchal: 1935-1946. Tese de Mestrado. Funchal, pág. 57 a 60)
143
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
centro como também contribuíram para a expansão da própria
cidade.
Em termos urbanísticos, a obra de Fernão de Ornelas foi
sobretudo visível nas intervenções realizadas na rede viária da
cidade. A requalificação e modernização das ruas contribuíu,
sobretudo, para uma maior mobilidade e acessibilidade e para
uma melhoria significativa da imagem do Funchal.
As intervenções realizadas na rede viária incluíram o
alargamento, realinhamento e calcetamento com paralelepipedos
de basalto, de ruas e pontes; o prolongamento, por exemplo, da
Avenida do Mar e das Ruas 5 de Outubro e 31 de Janeiro; e a
abertura de novas vias, de onde se destacam a Rua dos
Mercadores, actual Rua Fernão de Ornelas, e as avenidas Arriaga
e do Infante. Os trabalhos realizados nas ruas, em especial na
abertura de novas vias, teve um grande impacto no tecido urbano
da cidade, pois envolveram um elevado número de demolições. A
construção da Rotunda do Infante, que liga a Avenida Arriaga à
Avenida do Infante, exigiu a cobertura de parte da Ribeira de São
João.
Mas a obra deste autarca foi, ainda, visível noutro âmbito.
À volta do centro da cidade promoveu a construção de bairros
económicos para os grupos mais desfavorecidos da sociedade –
Bairro da Ajuda, Bairro de Santa Maria, Bairro dos Louros e Bairro
de São Gonçalo; deu início à construção de escolas; melhorou as
acessibilidades; colocou iluminação pública em ruas e jardins
públicos; construíu um Estádio de Futebol, a Cadeia Civil dos
Viveiros e, ainda, promoveu a construção de dois novos cemitérios
309
periféricos , para onde foi feita a trasladação do Cemitério das
Angústias. Foi também responsável pela construção de alguns
edifícios, estilo Estado Novo, de onde se destacam o edifício dos
C.T.T. e o Mercado dos Lavradores.
309
Cemitério de São Martinho e o de São Gonçalo.
144
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
Preocupado com o desenvolvimento da actividade
turística, mandou construir miradouros sobranceiros à cidade e
traçou o novo Roteiro Turístico do Funchal. Providenciou a
limpeza das ribeiras que atravessam a cidade e mandou plantar
Buganvílias nas suas margens para que estas trepassem os
muros e as cobrissem.
Fernão de Ornelas, neste percurso desenfreado de
requalificação e modernização do Funchal, exigiu um elevado
esforço financeiro à cidade, expropriou e demoliu prédios,
perturbou e alterou a rotina de muitos funchalenses que
diariamente percorriam e utilizavam a cidade e, ainda, beliscou
interesses privados. Acabou por acumular divergências. Apesar da
enorme obra que realizou não reuniu o consenso de todos e, em
Outubro de 1946, pediu a sua demissão.
Pela análise desta síntese da sua obra, podemos sem
dúvida afirmar que, ao propor a contrução da Avenida Arriaga e do
Infante, o prolongamento da Avenida do Mar ou a cobertura das
ribeiras com Buganvílias, Fernão de Ornelas estava no fundo a
materializar, ainda que de um modo modesto, o plano genial do
arquitecto Ventura Terra. Disposto a dar continuidade a este
projecto, Fernão de Ornelas apostou ainda na criação de novos
espaços públicos, de onde se destacam a Praça do Município
310
(concluída em 1942) e o Parque de Santa Catarina . A sua
coragem e capacidade de realização foram fundamentais para o
início da concretização da utopia de Ventura Terra.
Pela primeira vez, em quatro séculos, o centro do Funchal
era “rasgado”. Até aqui tinhamos assistido a um processo de
acrescentamento e compactação da cidade, mas agora estava em
curso um processo de ruptura.
310
A prossecução desta obra só ficou decidida em Maio de 1946. (Acta da
Comissão Administrativa da Câmara Municipal do Funcha,l de 9 de Maio de 1946 –
Lopes, op. cit., pág. 182)
145
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt

Os Planos Directores
O crescimento demográfico que se fez sentir no início deste
século no Funchal, conduziu à necessidade da intervenção do
poder administrativo, no sentido de ordenar as novas implantações
e de adaptar a malha urbana da cidade às novas exigências da
circulação automóvel, de higiene e salubridade. Sendo, ainda,
visível uma crescente preocupação com os espaços verdes e a
qualidade ambiental.
É então na sequência destas novas necessidades da cidade
que surgem, na primeira metade do século XX, diferentes planos
urbanísticos de onde se destacam o Plano Geral de
Melhoramentos para o Funchal (1915) do arquitecto Ventura
Terra; o Plano de Urbanização para a Cidade do Funchal (193133) elaborado pelo arquitecto Carlos Ramos e o Plano de
Urbanização do Funchal (1959) da autoria do arquitecto-urbanista
João Faria da Costa.
Na década de 60, a crescente necessidade da cidade
evoluir exigia a sua expansão, regeneração e renovação,
conduzindo à urgência da elaboração de programas e planos de
ordenamento que traduzissem “os desejos e as conveniências da
sociedade que a habita” e definissem “a forma e os meios
311
necessários à sua efectivação” .
Em 1968-69 surge o Plano de Urbanização do Funchal,
elaborado pelo arquitecto José Rafael Botelho. Da estreita
colaboração entre este arquitecto e o Gabinete de Urbanização da
Câmara Municipal do Funchal, acabou por nascer o primeiro Plano
Director da Cidade do Funchal.
Antes da aprovação deste Plano, a Câmara Municipal do
Funchal organizou, em 1969, um Colóquio de Urbanismo onde
311
Botelho, J. R. (1969). Realizações Urbanísticas e Programação. Colóquio de
Urbanismo (1969) – palestras e conclusões das mesas redondas, 143-155, pág.
143.
146
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
foram apresentados e debatidos os resultados dos estudos
preliminares.
Neste colóquio o arquitecto José Rafael Botelho, numa das
palestras que proferiu, apresentou os problemas da urbanização
desta cidade, começando por salientar que a sua evolução, ou a
de qualquer outra cidade, envolvia “inúmeros problemas de ordem
312
social, económica, administrativa, financeira e política” .
Na realidade, como se tem vindo a constatar, toda a história
do desenvolvimento da cidade do Funchal tem estado dependente
de problemas desta ordem, o que acabou por condicionar a
tomada de decisões e o timing da sua aplicação, com implicações
de vária ordem, inclusive urbanísticas. É importante ter presente
que esta cidade foi, durante séculos, o único polo de convergência
e fixação das principais actividades sócio-económicas da região.
Foi, ainda, o porto de chegada e de partida dos seus habitantes,
administradores, comerciantes e turistas, o que lhe conferiu um
importante papel a nível das relações nacionais e internacionais.
Rafael Botelho tinha tudo isto presente e, sobretudo,
estava consciente de que os problemas que o Funchal
apresentava nos finais da década de 60 exigiam uma estratégia, à
qual só um Plano Director daria seguimento.
Assim, Botelho acabaria por apresentar neste colóquio os
problemas mais significativos que justificavam a necessidade da
elaboração de um Plano de Urbanização. Em primeiro lugar
salientou as condições naturais onde a cidade estava implantada e
as dificuldades que estas traziam para a organização urbana do
Funchal, sobretudo devido aos obstáculos naturais que limitavam
313
e condicionavam a mobilidade e a edificação ; referiu os
problemas que uma expansão desordenada acarretava, alertando
para o facto desta situação implicar “o aumento considerável das
312
Botelho, J. R. (1969). Problemas de Urbanização do Funchal. Colóquio de
Urbanismo (1969) – palestras e conclusões das mesas redondas, 17-33, pág. 17.
313
J. R. Botelho, op. cit., pág. 19 e 20.
147
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
distâncias a percorrer no dia a dia; a grande extensão e fraca
utilização das redes de serviços públicos: de saneamento, de
comunicações, de energia e de transportes; o agravamento dos
encargos com a dispersão do equipamento necessário à
314
colectividade” , o que ficava para além das possibilidades da
economia local, daí a insistente falta de infraestruturas, de
comodidades e de serviços; abordou o problema do
congestionamento do centro da cidade, onde se localizavam e
concentravam
as
principais
actividades
económicas,
administrativas, culturais e recreativas; os problemas de tráfego e
de circulação, com um crescente conflito da circulação automóvel
e pedestre no cento da cidade; a crescente ocupação edificada e
consequente adensamento do tecido urbano, o que acaba por ter
repercussões, por exemplo, no consumo de energia e de água, no
caudal de esgoto, na necessidade de mais estacionamento e de
315
mais serviços e comércio ; e a desvitalização do centro devido à
progressiva ocupação dos prédios de habitação com actividades
316
económicas .
Concluía, ainda, que “os problemas genéricos postos pelas
necessidades de evolução do aglomerado incluem, no que toca a
317
sua natureza urbanística, essencialmente a renovação
e a
314
Idem, op. cit., pág. 21.
315
Botelho, op. cit., pág. 26.
316
Idem, op. cit., pág. 31.
317
Entendida como “uma operação de substituição parcial ou total de tecido
urbano, da organização espacial e funcional do aglomerado”. Botelho prossegue
dizendo que “ela pressupõe, portanto, modificações da estrutura ou o seu
reajustamento, a supressão ou reconstrução de edifícios, etc., com o fim de
adaptar os aglomerados às necessidades e aspirações da sociedade e do homem”.
Mais à frente alerta para os perigos e limitações da renovação urbana, salientando
que “as operações de renovação quando isoladas e alheias aos interesses e
exigências de uma adaptação correcta da forma urbana às necessidades da
148
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
318
expansão” , relembrando que a estes estão normalmente ligados
os problemas de circulação, de transportes e de estacionamento.
Na sequência dos problemas detectados foram
apresentadas várias sugestões de onde se destacava a expansão
urbana para Oeste, com um relevo mais suave, com maior
possibilidade de aproveitamento da frente mar para fins turísticos
e recreativos e com uma fraca ocupação edificada o que
proporcionava uma estruturação urbanística adequada; uma
renovação cuidada e consciente do centro da cidade, que se
enquadrasse numa perspectiva urbanística e que tivesse em
atenção os interesses e necessidades da colectividade; a
conservação do património urbano natural e edificado; a
revitalização do centro da cidade através da criação de
equipamentos complementares à habitação; e a criação de novas
vias de circulação.
A 23 de Março de 1972 era aprovado o primeiro Plano
319
Director, que preconizava as seguintes operações :
criação de novas vias ou melhoramento das existentes – via
de acesso ao novo quartel; via de acesso ao Hospital
Regional; via distribuidora este-oeste; ligação dos dois troços
existentes da Avenida 5 de Outubro; saída Leste e Oeste da
cidade;
renovação de zonas centrais – zona compreendida entre o
Bairro de S. Luzia, o Liceu, a Ribeira de João Gomes e a Rua
Conde de Carvalhal; quarteirão compreendido entre a Ribeira
de Santa Luzia e as Ruas dos Ferreiros e dos Netos; das
evolução do aglomerado, como tal consideradas numa visão global, têm na maioria
dos casos como consequência agravar as situações e consolidar os defeitos
estruturais existentes”. (Idem, op. cit., pág. 29)
318
Ibidem.
319
Botelho, Realizações Urbanísticas e Programação, pág. 148, 149 e 150.
149
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
zonas abrangidas pela via de distribuição entre a Saída Leste
e a Cruz de Carvalho;
novas zonas de expansão – entre a Rua do Gorgulho e a
Praia Formosa, como zona de interesse turístico e recreativo;
zona a Nascente do Novo Quartel (Nazaré), com fins
predominantemente habitacionais; zona Sul do Hospital
Regional, também destinada a um desenvolvimento
residencial;
áreas para instalação de indústria – zona a Norte do Novo
Quartel.
Este Plano Director da Cidade do Funchal, de 1972, foi
revogado pelo actual Plano Director Municipal do Funchal, o qual
320
foi ratificado pela Resolução nº 887/97 de 10 de Julho .
O novo Plano nascia no meio de uma nova conjuntura, com
outras preocupações, interesses e exigências. Portugal fazia parte
da Comunidade Económica Europeia e o Turismo impunha-se na
Região como a principal actividade económica em expansão. Ao
Funchal pedia-se uma maior competitividade, uma maior
qualidade de vida para a sua população e uma qualificação do
meio urbano e natural.
A cidade do início da década de 90 apresentava algumas
debilidades que era necessário ter em atenção – deficiências a
nível da acessibilidade interna, sobretudo no centro do Funchal; a
localização do porto comercial, em pleno centro da cidade, o que
apresentava inconvenientes de vária ordem, nomeadamente em
termos de imagem urbana, de poluição sonora e de sobrecarga
das infraestruturas viárias, sobretudo no tocante ao tráfego de
pesados; o crescimento desordenado de habitação “informal” nas
zonas altas; a sobreocupação de certas partes da Frente Mar e a
excessiva concentração de funções económicas e administrativas
320
Jornal Oficial, II Série, nº 151, de 8 de Agosto de 1997.
150
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
na zona histórica, o que conduzia ao seu congestionamento e o
abandono da função habitacional.
321
A falta de habitação e a necessidade de definir áreas de
expansão turtística e áreas para a localização de novas
actividades económicas fundamentais ao desenvolvimento do
Concelho eram outros aspectos a ter em atenção.
É evidente que estas debilidades conduziam a uma situação
constrangedora a nível urbanístico e de promoção turística,
tornando-se necessário proceder à elaboração de uma estratégia
de ordenamento.
Este Plano vai então estruturar o espaço urbano dando
especial atenção à definição de novas centralidades e à
reconversão de áreas para alargamento das funções urbanas
tradicionais e de turismo e lazer.
O P.D.M. propõe então, a nível do Ordenamento, a
cobertura das necessidades previstas de habitação e de
equipamentos colectivos de apoio social; a preservação da orla
costeira como parte integrante do património natural; a
preservação dos valores naturais, paisagísticos, florísticos e
faunísticos; a criação de uma estrutura verde urbana em
“continuum” natural; o aumento das acessibilidades internas e
externas; a racionalização da gestão viária e do sistema de
transportes; a garantia da cobertura total das zonas urbanizadas
com as principais infraestruturas urbanas; e, ainda, a preservação,
recuperação e protecção do património cultural (artístico,
322
construído e etnográfico).
321
Em 1991 o déficit de habitação rondava os 5 000 a 6 000 fogos, estimando-se
que até 2004 era necessário construir cerca de 14 000 fogos. (C. M. F. (1995).
Plano Director Municipal do Funchal. Elementos complementares. Relatório.
Funchal: Câmara Municipal do Funchal, pág. 4)
322
Idem, op. cit., pág. 15 a 17.
151
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
323
Destacando as seguintes acções programáticas :
324
a definição de novas centralidades , a fim de combater a
macrocefalia e o congestionamento do centro da cidade;
a contenção, recuperação e integração dos núcleos
habitacionais de construção espontânea;
o incremento da função habitacional no centro histórico do
Funchal, criando condições de atracção e fixação da
população;
a definição de espaços de utilização turística suficiente para
responder à procura previsível e dirigidos para uma promoção
de qualidade;
a
promoção
de
Áreas
ou
Parques
Industriais
convenientemente localizados e infraestruturados, a fim de
transferir as unidades industriais e os armazéns das zonas
habitacionais para zonas devidamente localizadas e
infraestruturadas;
a construção de novas vias circulares e radiais, bem como a
reformulação do sistema de ligações viárias ao exterior do
Concelho;
a expansão e diversificação da oferta de transportes
colectivos urbanos;
a reconversão parcial do porto do Funchal, com a
relocalização das actividades de carga e descarga de
mercadorias, passando assim este porto a ser utilizado
exclusivamente para as funções de porto de passageiros;
323
Idem, op. cit., pág. 18 a 21.
324
Para um melhor funcionamento da cidade, o P.D.M. propõe a criação de centros
locais
(Penteada
–
já
existente,
S.
Martinho,
Monte
e
S.
Gonçalo),
estrategicamente localizados numa zona de transição à volta do centro da cidade,
os quais deverão estar articulados com a zona de expansão a Oeste e com toda a
área habitacional envolvente através de um sistema de circulação melhorado.
(Idem, op. cit., pág. 7).
152
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
o reforço do sistema de abastecimento de água, sobretudo no
que diz respeito à substituição de condutas da rede de
distribuição (nomeadamente nas zonas centrais da cidade,
onde a mesma se encontra mais degradada);
a expansão do sistema de drenagem e de tratamento de
esgotos.
Da aplicação destes Planos constata-se que a cidade
ganhou uma nova imagem sem ter perdido a sua identidade. No
entanto, ficou também claro que a existência de um processo de
planeamento urbano foi, e é, fundamental para o desenvolvimento,
que se quer sustentável, desta e de todas as cidades.
As transformações urbanísticas que estes planos
produziram na nossa área de estudo serão apresentadas mais à
frente, quando analisarmos o Funchal na segunda metade do
século XX.

Como era o Funchal na primeira metade do século XX?
Adriano Trigo e Aníbal Trigo, no Roteiro e Guia do Funchal
de 1910, fazem uma descrição da cidade do Funchal muito
interessante. Como vimos anteriormente, estes dois irmãos,
engenheiros de profissão, foram os responsáveis pela elaboração
da Planta do Funchal de 1894, o que, na nossa opinião, lhes dá
uma outra visão da cidade.
Assim, estes dois engenheiros escrevem que, em 1910, o
Funchal ocupava:
uma área de, proximamente, 500 hectares, em que se
vem espalhadas milhares de edificações, de
construção simples, mas muito confortáveis, e
numerosissimas quintas e villas de requintado gosto e
surpreendentes vistas, elegantemente dispersas em
volta do grande nucleo central, onde as habitações
mais se agglomeram, onde a vida é mais activa e
153
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
laboriosa, por ser a sede principal do seu grande
325
commercio, da sua industria e navegação.
Sendo os seus limites “pelo norte, uma linha sensivelmente
horisontal, situada á altitude média de 180 metros, passando pelas
levadas do Bom Sucesso e Santa Luzia e pelo Caminho dos
Alamos; pelo sul, o oceano; por leste, a Ribeira de Gonçalo Ayres;
326
e por oeste o Ribeiro Secco”.
Ficamos também a saber que o Funchal tinha “um bom
caes no centro da bahia e um pequeno ancoradouro abrigado pelo
molhe da Pontinha”. Que possuía “magnificos passeios e jardins
publicos, importantes edificios tanto publicos como particulares,
hoteis de primeira ordem, um bello theatro, muitos e importantes
estabelecimentos industriaes e commerciaes e alguns
327
estabelecimentos hospitalares” . E que a cidade era iluminada
com luz eléctrica, mas que o serviço de esgotos e o abastecimento
de água potável “deixava muito a desejar”.
Relativamente às ruas, estes autores, dizem que “são
calçadas por fórma apropriada aos originais meios de locomoção
na cidade” – carros-de-bois e redes, acrescentando que as ruas
mais recentes “são amplas e bem alinhadas, offerecendo
328
commodos trattoirs aos viandantes” .
Adiantam ainda que o Funchal não é uma cidade moderna
com “amplas avenidas, grandes monumentos, variadas
distracções e outros attractivos”, mas que tem “um conjunto de
329
circumstancias naturaes” que a tornam particular e confortável.
325
Trigo, A., Trigo, A. (1910). Roteiro e Guia do Funchal. Funchal: Typographia
Esperança, pág. 2.
326
Ibidem
327
Idem, op. cit., pág. 2 e 3.
328
Idem, op. cit., pág. 3.
329
Ibidem.
154
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
Por outro lado, no livro O Funchal no Primeiro Quartel do
Século XX – 1900-1925, de Abel Marques Caldeira, encontramos
mais informações interessantes e complementares sobre a cidade
do início de novecentos. Este autor acrescenta-nos que as “ruas
da cidade eram calcetadas com pedras polidas de basalto”, ou
seja, com pequenos calhaus rolados trazidos da praia, e que, pelo
facto dos barcos fundearem ao largo, os passageiros eram
transportados até ao cais da cidade em barcos a remos ou em
330
lanchas .
17. Memórias do Funchal do início do século XX – o calcetamento das ruas com
pedras de calhau (1); os barco fundeados ao largo (2); o transporte de passageiros
do cais para os navios (3). (Fotografias cedidas por Renato Barros)
Em jeito de crítica à imagem da frente mar da cidade, este
autor, salienta que “o frontispício da cidade era emoldurado com
uma praia inestética, onde se cultivavam abóboras, pimpinelas e
hortaliças, parecendo um lugar rústico e nunca arredores do cais
da cidade, onde diariamente desembarcavam os nossos
331
visitantes” . Refere também que o cais da cidade era insuficiente
para o movimento do porto.
Mas, o mais interessante, é o passeio que Abel Caldeira
sugere e descreve pela “cidade antiga”, através do qual é possível
330
Caldeira, A. M. (1964). O Funchal no primeiro quartel do século XX – 1900-
1925. Funchal: E. M. E., Lda., pág. 10 e 11.
331
Caldeira, op. cit., pág. 11.
155
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
visualizar e percorrer o núcleo central da cidade do início do
século.
A fim de termos uma ideia mais precisa desta cidade do
primeiro quartel de novecentos criamos três percursos de
memória. Para este efeito seguimos os “passeios” que Abel
332
Caldeira nos sugere, juntamos a Planta da Cidade do Funchal
de 1894 com os diferentes percursos e, ainda, algumas
“memórias” em fotografias dessa época.
Percurso de memória A
Rainha.
333
- do Cais da Cidade à Praça da
Diz-nos Abel Caldeira que ao sair do Cais da Cidade (1)
334
encontrávamos, à esquerda, a Praça da Rainha
(2) que se
estendia ao longo da Estrada da Pontinha.
332
Planta da Cidade do Funchal e seus arredores, 1894, engenheiros Carlos Maia,
Adriano Trigo e Annibal Trigo (cedida pelo A.R.M.).
333
334
Adaptado de A. Caldeira, op. cit., pág. 13 e 14.
Esta praça recebeu posteriormente o nome de Praça Marquês de Pombal.
(Idem, op. cit., pág. 13)
156
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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Era uma praça cercada por galerias e portas de ferro,
“arborizada” com palmeiras. Tinha na sua entrada “dois curiosos
pavilhões em madeira, que em dias de turismo arvoravam as
bandeiras das nacionalidades dos barcos fundeados no porto”. Um
desses pavilhões era um bar-restaurante e o outro uma sala de
bilhar. Nas noites de calor, as pessoas passavam “momentos de
amistoso convívio na esplanada, fazendo uso de refrescos”.
No centro da praça, “existia um coreto onde às quintasfeiras, a Banda Regimental executava os seus apreciados
concertos”.
Ao fundo, a praça tinha um pavilhão, “magestosamente
levantado”, que acabou por ser ocupado por uma Agência de
Navegação.
No “largo fronteiro”, do outro lado do muro da estrada,
existia um lavadouro público (3), onde os habitantes dos bairros de
S. Lázaro e de Santa Catarina lavavam a sua roupa.
18. Memória de um passeio desde o Cais da Cidade até à Praça da Rainha – o Cais
da Cidade (1); a Praça da Rainha em frente ao Palácio de São Lourenço (2); os
lavadouros e a roupa a secar junto à Estrada da Pontinha (3). (cedidas por Renato
Barros)
335
Percurso de memória B
São Pedro.
335
- do Cais da Cidade à Praça de
Adaptado de A. Caldeira, op. cit., pág. 14 e 15.
157
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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Saindo novamente do Cais da Cidade (1) e, desta vez,
voltando à direita encontramos a Rua da Praia (2). Logo no início
336
desta rua podíamos admirar o Pilar de Banger
(3) e “o
movimento dos barcos de cabotagem que varavam em frente da
337
Alfândega” (4). Junto ao muro, existia um quiosque em madeira
que servia de taberna. Ali encontravamos, ainda, os vendedores
de fruta que utilizavam esta zona leste da praia para vender os
seus produtos.
Continuando o nosso percurso pela Rua da Praia,
podiamos observar, no calhau, os varadouros de madeira rotativos
acionados por parelhas de bois.
No final da rua encontravamos, à nossa direita, o Mercado
D. Pedro V (5), onde existia, no seu centro, um largo com um
338
chafariz em mármore .
336
O Pilar de Banger foi construído para fazer a descarga de mercadorias na praia,
através de um guindaste.
337
Idem, op. cit., pág. 14.
338
Este chafariz encontra-se actualmente no pátio interior da Câmara Municipal do
Funchal.
158
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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Ao sair do edifício do mercado, pela porta Sul, virávamos à
esquerda e encontravamos a Praça de São Pedro (6), ou Praça do
Peixe. Este mercado de peixe possuía ao todo três entradas,
339
sendo uma delas para a Rua do Príncipe
(7). Era um espaço
descoberto, com bancadas em cantaria para a venda do peixe.
Estas bancadas ficavam abrigadas do sol por extensos alpendres
de telha de canudo. Ao centro do mesmo edifício, erguia-se um
fontenário, também ele em cantaria, com a coroa portuguesa.
Finalmente, ao fundo da Praça, ficavam os talhos municipais e no
rés-do-chão o matadouro onde era abatido todo o gado destinado
à alimentação pública.
19. Memória de um passeio desde o Cais da Cidade até à Praça de São Pedro – os
varadouros de madeira rotativos e o Pilar de Banger, ao fundo (1) (R. Barros); o
Mercado D. Pedro V (2) (A.R.M.); a Praça de São Pedro (3) (A.R.M.).
339
Actual Rua 5 de Outubro.
159
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Percurso de memória C
340
- do Cais da Cidade até à Ponte Nova.
Tendo mais uma vez como ponto de partida o Cais, e desta
feita como destino o centro da cidade, era necessário subir a
Avenida Gonçalves Zarco (1) até à Praça da Constituição (2).
A Avenida Gonçalves Zarco estava ladeada por
confortáveis bancos de madeira e frondosos plátanos. No seu lado
esquerdo, ficava o portão e o gradeamento de ferro que cercavam
os jardins do Palácio de São Lourenço (3) e, no lado direito, em
340
Adaptado de A. Caldeira, op. cit., pág. 17 a 23.
160
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frente ao Comando Militar, ficavam as instalações da Estação de
Saúde e da Associação Comercial do Funchal.
No cimo da Avenida, na esquina do lado direito, ficava o
bar Golden-Gate, fundado no século XIX, e, em frente desta, o
Largo da Restauração (4), onde no início do século funcionava a
praça do “carro americano”, dos “trens” e dos carros de bois.
À nossa frente ficava a Praça da Constituição. Subindo os
degraus da entrada Sul desta praça encontravamos o quiosque
Bureau de la Presse onde se vendiam os jornais de Lisboa.
A Praça da Constituição estava ladeada, a Sul, por um
muro e, a Norte, por um mainel, os quais serviam de bancos para
repouso dos que por ali passavam. Existiam, ainda, bancos de
madeira à sombra de Figueiras da Índia e de Magnólias. Na parte
Oriental, havia um quiosque onde se vendiam refrescos.
Continuando o nosso percurso para Poente, logo a seguir,
localizava-se o Jardim Pequeno, situado entre a Praça da
Constituição e o Jardim D. Amélia (5). Em frente a este Jardim,
junto ao Palácio do Governo, havia um grande pavilhão de
madeira onde funcionava a “Fotografia Camachos Studio’s”. A
Norte ficava o Café Mónaco, frequentado pela Colónia Inglesa, e o
Consulado Britânico.
Prosseguindo pela Rua Hermenigildo Capelo (6),
encontravamos à direita o Jardim D. Amélia. No final da rua, após
termos atravessado a Rua do Conselheiro, a Rua dos Aranhas e a
Rua Serpa Pinto, ficava a Ribeira de São João, de onde podiamos
ver o Hospital dos Lázaros, com a sua capela anexa, e o bairro
dos trabalhadores do serviço de fornecimento de carvão aos
navios.
Voltando para trás, e fazendo o mesmo percurso no
sentido Leste, passavamos a Praça da Constituição e
chegavamos ao Largo da Sé (7).
Neste Largo, à direita, ficava o antigo casarão da Cadeia
Civil, ladeado a Sul pela Rua da Alfândega, a Oeste pela Travessa
dos Ingleses e, a Este, pela Travessa da Cadeia.
161
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20. Memória de um passeio na Avenida Arriaga - o Largo da Sé, com o antigo casarão
da Cadeia Civil ao fundo (1) - (R.B.); a Praça da Constituição, do lado direito, ao fundo, o
edifício da Santa Casa da Misericórdia (2) - (R. B.); a Sé Catedral vista da Praça da
Constituição, à esquerda a Rua do Capitão-tenente Carvalho Araújo (3) - (R. B.).
Na parte esquerda do largo, retrocedente um pouco para
Poente, ficava o edifício da Santa Casa da Misericórdia (8), onde
estava instalado o Hospital e o Posto Médico.
Repousando um pouco na Praça da Constituição, para
recuperar forças, prosseguiamos depois, para Este, pela Rua do
capitão-tenente Carvalho Araújo onde na esquina do lado
esquerdo ficava a Casa Havanesa, tabacaria e bar, “frequentada
por pessoas de alta categoria social, local de colóquio, onde se
discutiam assuntos sociais e políticos e onde apareciam as
341
novidades do dia” .
Logo à frente ficava o Largo de São Sebastião (9), onde
se realizava à Quarta-feira e ao Sábado a feira do calçado
regional, e depois a Rua do Bettencourt que ia dar à Rua do
Príncipe.
Subindo a Rua do Príncipe, junto à margem direita da
Ribeira de Santa Luzia, encontravamos, à esquerda, os cartórios
do Juízo de Direito da Comarca e, logo acima, o Quartel da
Corporação de Bombeiros. A seguir, ficava o edifício da Câmara
Municipal (10).
341
Idem, op. cit., pág. 20.
162
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21. Memória de um passeio desde o Cais da Cidade até à Ponte Nova – o Largo de
São Sebastião e a feira do calçado regional (1) - (A. R. M.); o Largo e a Igreja do
Colégio (5) - (A. R. M.).
Atravessando o edifício da Câmara, no sentido OesteEste, chegavamos ao Largo do Colégio (11). Neste Largo
localizava-se a Igreja do Colégio, o antigo Paço Episcopal de São
Luís e o Centro Republicano da Madeira.
De volta à Rua do Príncipe, desta vez pela Travessa de
João de Oliveira, e subindo até à Ponte Nova (12) encontravamos
um “grupo de casas construídas em madeira e pintadas de
342
vermelho sobre a Ribeira de Santa Luzia” .
Esta era a “cidade antiga”, do início do século XX. Em
menos de vinte e cinco anos a cidade transformou-se, foi invadida
por automóveis e as ruas alargaram-se. Surgiram grandes
avenidas e novas praças. A cidade cresceu e expandiu-se para
Poente.
Foi entre 1935 e 1947, durante a presidência da Câmara
do Dr. Fernão de Ornelas, que a cidade sofreu as primeiras
grandes intervenções urbanísticas do século. Com elas não só o
tecido urbano da cidade foi profundamente alterado através da
342
Idem, op. cit., pág. 22.
163
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abertura da Avenida Arriaga, da Avenida do Mar e da Rua Fernão
de Ornelas, como também foi consumada a desejada expansão da
cidade para Poente, através da Avenida do Infante.
A Avenida do Infante, ao ligar a Avenida Arriaga, no centro
da cidade, à Estrada Monumental, que se estende para Oeste a
partir do Ribeiro Seco, prolongou a cidade, numa primeira fase,
até à zona do Lido.
Contudo, não nos podemos esquecer que esta “nova”
cidade continuará a modificar-se até aos dias de hoje, expandindose e estendendo-se não só para poente, em direcção à Praia
Formosa, mas também por todo o anfiteatro do Funchal.
Através da observação do Mapa nº 11, onde concertamos
343
a Planta da Cidade do Funchal de 1948-1950
sobre o
ortofotomapa de 2004, tornam-se logo evidentes os “cortes” e
realinhamentos que a malha urbana da cidade sofreu, sobretudo
com a abertura de algumas Avenidas e Ruas.
Numa análise mais atenta, compreendemos que na
primeira metade do século XX a cidade sofreu profundas
alterações a nível da rede viária. Foram abertas novas Avenidas –
Arriaga (2), do Infante (3) e do Mar (4) – e Ruas – Dr. António José
de Almeida, Fernão de Ornelas (25), Padre Gonçalves Câmara.
Procedeu-se ao prolongamento da Avenida Zarco (5), para Norte,
através do quarteirão onde estava localizado o edifício da Santa
Casa da Misericórdia, e da Rua 5 de Outubro a qual estendeu-se
para Sul. Foi, ainda, realizado o alargamento de várias ruas da
cidade. A mobilidade era então uma prioridade para o Funchal.
Contudo os eixos estruturantes destas novas vias de
circulação continuam a ser os mesmos – um no sentido Este –
Oeste, prependicular à linha da costa, facilitando a ligação entre a
parte antiga da cidade e a nova área de expansão e outro, Sul –
Norte, priveligiando a ligação do mar ao interior da cidade.
343
Cedida pela Câmara Municipal do Funchal.
164
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Com a abertura das novas vias surgem novos espaços
públicos, sobretudo na frente mar, onde é construído um passeio
que se estende da Ribeira de São João até à Ribeira de Santa
Luzia. A Este, na parte final da Avenida do Mar, a Praça
Académica foi reformulada e deu lugar a um espaço mais amplo, o
Campo D. Carlos I (8). Na Avenida Arriaga, foi demolida a Praça
da Constituição e criada uma placa central pedonal ladeada por
árvores. O Largo do Colégio foi também reestruturado dando
origem à Praça do Município (24).
Neste mapa é ainda visível a localização de alguns
edifícios de estilo Estado Novo de onde se destacam o Banco de
Portugal (6) e o edifício dos C.T.T. (12), construídos em 1940. O
Mercado dos Lavradores (23), de 1946, e a Capitania (9),
edificada em 1950 são outros exemplos de edifícios construídos
na época.

O Funchal na segunda metade do século XX.
A segunda metade do século XX foi, sem dúvida, a época
que marcou a “modernidade” da cidade, sobretudo da então
recente área de expansão do Funchal.
Na década de 60, a parte Sul da Avenida do Infante, sofreu
duas das intervenções mais marcantes da época, não só pela
escala e dimensão dos espaços que aí surgiram, mas também
pelo valor urbanístico e arquitectónico que trouxeram à cidade.
Numa área que antes era ocupada pelo Cemitério de Nossa
Senhora das Angústias e por várias quintas surgiu o Parque de
Santa Catarina e o Casino Parque Hotel.
O primeiro, o Parque de Santa Catarina, localizado logo no
início da Avenida do Infante, veio ocupar toda a área
correspondente ao antigo Cemitério de Nossa Senhora das
Angústias e, ainda, os terrenos adjacentes a Leste. Com uma área
de aproximadamente 36 000
, é ainda hoje o maior espaço
verde público da cidade.
165
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O segundo, o Casino Parque Hotel, que ocupa os espaços
pertencentes às antigas Quintas Bianchi, Pavão e Vigia (ver Mapa
nº 8 – 31, 33 e 34, respectivamente), foi concebido, em 1966, por
Óscar Niemeyer. Este complexo, que só ficou concluído em 1974,
inclui hotel, casino, cine-teatro, centro de congressos e um enorme
jardim.
22. Marcas de uma época: o Casino Parque Hotel (1) e o Parque de Santa Catarina
(2).
166
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No Mapa nº 12, onde a Planta da Cidade do Funchal de
344
1967-1969
está concertada sobre o ortofotomapa de 2004, é
possível verificar a grandeza destes dois espaços (ver – 5 e 28).
Pela análise deste mapa, constatamos que no centro da
cidade do Funchal a malha urbana não sofreu alterações
significativas. No entanto, são bem visíveis as novas áreas de
expansão da cidade, nomeadamente a Ocidente, Norte e
Nordeste. Uma observação atenta destas áreas, que envolvem
todo o centro da cidade, permite-nos concluir que as construções
não só se encontram dispersas como também distribuídas de um
modo desordenado.
Ao nível do centro da cidade, verificamos que ocorreu o
preenchimento dos espaços disponíveis e, ainda, uma ocupação
cerrada das frentes das ruas, com novos edifícios. São exemplos
deste processo a construção do Liceu Nacional do Funchal (1946),
da Escola Industrial e Comercial do Funchal (1952) e do Palácio
da Justiça (1962) – (ver Mapa nº 12 – 25, 7 e 27, respectivamente)
– sendo evidente em alguns destes edifícios o estilo Estado Novo.
Há, ainda, a salientar o prolongamento para nascente do
passeio da Avenida do Mar.
Entre 1969 e 1990 a cidade do Funchal continuou a
crescer.
Pela análise do Mapa nº 13, onde a Planta da Cidade do
345
Funchal de 1990 foi concertada sobre o ortofotomapa de 2004,
concluímos que o centro da cidade continua a consolidar-se. À sua
volta, sobretudo na área de expansão a Leste, começa a ter lugar
uma maior densificação da construção, surgindo entre as
pequenas habitações edificações maiores. A Oeste, ao longo da
Avenida do Infante começam também a ser construídos grandes
prédios.
344
Cedida pela Câmara Municipal do Funchal.
345
Planta cedida pela Câmara Municipal do Funchal.
167
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Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
A observação deste mapa permite-nos ainda constatar que
as intervenções desta época ocorreram fundamentalmente ao
longo da frente mar. Assim, junto à avenida marginal foi construída
a Marina do Funchal (25), o cais de contentores (2), a lota e os
laboratórios da Direcção Regional de Pescas (24).
Se tivermos em atenção a área construída em 1990 e em
2004 verificamos que o centro da cidade continuou a preencher-se
cada vez mais.
Na realidade, constatou-se que continua a acontecer um
processo lento, mas contínuo, de consolidação do centro da
cidade, embora há muito se tenha verificado uma definição da
forma dos seus quarteirões.
Como já afirmamos, a evolução morfológica da cidade do
Funchal realizou-se sobretudo através de um processo de
acrescentamento e de compactação até aos anos 30/40 do século
XX, altura em que se realizaram profundas alterações no tecido da
cidade, através da abertura de novas vias. Além disso, os limites
da cidade só no século XX, com a expansão definitiva da urbe
para as áreas envolventes, ultrapassaram verdadeiramente a
nossa área de estudo. A cidade do século XX continuou a
espraiar-se para Ocidente, ao longo da costa e acompanhando o
traçado da Estrada Monumental, e para Norte, numa nítida
sequência e prolongamente dos principais eixos estruturantes da
“cidade do açúcar”.
Em síntese:


a cidade novecentista cresceu e expandiu-se em diferentes
direcções, através de um processo de dispersão de pequenas
moradias que, com o decorrer do século acabaram por se
espalhar desordenadamente por todo o anfiteatro;
o centro da cidade continuou a densificar-se e a compactarse, ocorrendo uma colmatagem dos espaços vazios e o
preenchimento cerrado das frentes dos arruamentos, com
novas edificações;
168
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
a cidade continuou a expandir-se para Oeste, ao longo da
costa, e para Norte, numa nítida sequência e prolongamento
dos principais eixos estruturantes da “cidade do açúcar”.
169
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Capítulo III – O Funchal do século XXI – uma cidade voltada
para o ambiente.
A cidade do Funchal cresceu e expandiu-se definitivamente
para além da baía e do anfiteatro que a viu nascer. Mantendo o
seu principal eixo estruturante de crescimento ao longo da costa e
em direcção a Oeste, estendeu-se pela Estrada Monumental, onde
a construção de hotéis e de edifícios para habitação tem vindo a
aumentar e a adensar-se dia após dia.
23. Zona dos Piornais, do lado sul da
24. Zona do Lido, a sul da Estrada
Estrada Monumental. Ao fundo a Praia
Monumental.
Formosa (1). (s. d., A.R.M.)
Por outro lado, no centro da cidade continuam gravados na
sua malha urbana os vestígios da cidade do açúcar e do vinho;
persistem edifícios e fortificações de outros tempos; permanecem
as marcas deixadas por Fernão de Ornelas em algumas ruas e
praças da cidade; o mar continua a ser presença assídua e as
ribeiras continuam a percorrer os seus leitos, compartimentando a
cidade em áreas que jamais serão homogéneas. Cada espaço da
cidade tem a sua própria identidade, que há muito foi ditada pela
história.
No entanto, ao percorrer o centro do Funchal sentimos que
há uma abertura, cada vez maior, para o espaço exterior, com
171
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uma crescente preocupação com os espaços públicos e o bemestar de todos aqueles que a utilizam. O centro da cidade tem
vindo a renovar-se e a transformar-se, sobretudo ao nível da sua
imagem.
Apesar da malha urbana não ter sofrido, nos últimos anos,
alterações significativas o facto é que a cidade está diferente. Os
vazios que com o tempo foram surgindo na cidade, quer por
degradação de edifícios ou por perda de interesse e consequente
abandono de espaços outrora vitais na economia do Funchal – por
exemplo: engenhos, o “calhau” da cidade e o seu cais –, têm vindo
a ser ocupados, de um modo geral, por equipamentos de
utilização colectiva, sobretudo destinados à prática, pela
colectividade, de actividades culturais, desportivas e de recreio e
lazer.
Hoje vive-se mais a cidade e o seu espaço exterior. As
razões são múltiplas, no entanto podemos destacar duas: por um
lado, uma maior oferta de funções e, por conseguinte de escolhas,
que atrai mais pessoas à cidade e, por outro, a necessidade de
uma maior comunhão com a natureza e o aumento da
preocupação com a saúde e o bem-estar físico e emocional, que
faz com que os citadinos procurem os diferentes espaços públicos
da cidade. A Câmara Municipal do Funchal tem apostado nesta
abertura da cidade ao meio, promovendo a recuperação,
renovação e criação de diferentes espaços públicos. Para
incentivar o seu uso, esta instituição tem vindo a realização
eventos e actividades culturais, onde se podem destacar a Festa
da Flor; a Festa do Livro; o Festival do Atlântico; as festas dos
Santos Populares; a Festa do Vinho; as iluminações e actividades
de Natal; o espectáculo pirotécnico do Fim do Ano; e, ainda,
exposições e concertos musicais ao ar livre. Em consequência,
nota-se uma maior aproximação da população à cidade, que aos
poucos começa a utiliza-la por um período mais dilatado. Porém, e
sobretudo porque os acontecimentos sociais nem sempre
acontecem, esta aproximação cidade/utente é ainda pontual e
172
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Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
intermitente, verificando-se que o centro da cidade continua a
esvaziar-se ao fim do dia, embora muito menos ao fim-de-semana.
25. O final de uma manhã de Domingo no centro do Funchal. A atracção de uns
espaços – o passeio da Avenida Arriaga (1) e o Cais da Cidade (2) – e o vazio de
outros – a Rua do Bispo (3).
A procura de uma nova imagem para o centro do Funchal,
tem conduzido à modernização da cidade. Hoje, esta é uma
cidade mais competitiva e apta para receber uma maior
diversidade de utilizadores.
A identidade da cidade parece-nos ter sido protegida até ao
momento. Há uma preocupação visível com a preservação das
“existências” e a reabilitação, conservação e divulgação do seu
património arquitectónico e cultural. Neste sentido, imóveis de
interesse público, localizados em diferentes áreas da cidade, têm
173
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sido ocupados por instituições públicas e privadas ou
transformados em museus e em espaços lúdicos e/ou com
aproveitamento turístico.
26. O edifício da Antiga Alfândega do Funchal, onde se encontra instalada a
Assembleia Legislativa Regional (1); o Solar de Dona Mécia, na Rua dos Aranhas,
actual sede da Câmara do Comércio e Indústria da Madeira (ACIF)(2); a Fortaleza de
Santiago, na zona de Santa Maria, hoje Museu de Arte Contemporânea (3) e o Forte
de Nossa Senhora da Conceição, actualmente em obras de recuperação e de
ampliação para uma futura utilização lúdica (4).
Além disso, algumas permanências tornaram-se pontos de
referência na cidade, guiando naturais e estrangeiros através de
uma cidade cheia de memórias.
174
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Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
27. Pontos de referência na cidade do Funchal: a torre do Convento de Santa Clara
(1); a torre da Igreja de São Pedro (2); a baía do Funchal (3); a torre da Sé Catedral
(4) a Praça do Munícipio (5); o Palácio de São Lourenço (6); as ruas – Rua da
Carreira (7); o Mercado dos Lavradores (8); a Capela e o Parque de Santa Catarina
(9) e as Ribeiras – a Ribeira de João Gomes (10).
175
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3.1 A natureza e a cidade do Funchal
Quando João Gonçalves Zarco viu a “formosa enseada” do
Funchal e o seu anfiteatro compreendeu que ali seria o lugar ideal
para o novo povoado. Rasgado por três ribeiras, abundava a água,
e o seu porto natural era amplo e acolhedor. Assim, “entendeu o
capitão Zargo em fazer uma igreja que fosse princípio e
fundamento da vila do Funchal, e, por estar segura e bem
assentada, a mandou ordenar à beira do mar, no cabo do vale do
346
Funchal, ao longo da primeira ribeira deste prado (...)” .
O certo é que a relação do Funchal com o mar e as suas
ribeiras assume, desde o povoamento, uma enorme importância.
O Funchal identifica-se com a sua frente mar e as suas zonas
ribeirinhas, constituindo desde os primórdios da cidade locais por
excelência da vida económica e social.
A cidade cresceu e organizou-se não só próxima ao mar e
às ribeiras, bem como em função destas. Na verdade, vimos que a
sua expansão ocorreu fundamentalmente ao longo da sua frente
mar e serpenteando as zonas ribeirinhas. A vida desta cidade
sempre esteve ligada à água que tanto a encheu de alegrias como
de tristezas. Pelo mar chegaram as suas gentes, os cereais que
lhes mataram a fome, os comerciantes do açúcar e do vinho, os
turistas e, também, os invasores e o perigo. As ribeiras forneceram
a água que lhes matou a sede e regou as culturas, mas também a
água que destruíu vidas, casas e ruas.
Cidade, mar e ribeiras tornaram-se assim indissociáveis e,
passados quinhentos anos, continua a não ser possível pensar no
Funchal sem lhe associar o mar e as suas ribeiras. Podemos dizer
que se transformaram na sua “imagem de marca”. Imagem essa
que deverá ser tratada e cuidada, pois não só é sinónimo de lugar
de “memórias” da sua história e dos seus habitantes como
também é “elemento de referência” de muitas fotografias que
346
Frutuoso, Livro Segundo das Saudades da Terra, pág. 83.
176
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diariamente percorrem o mundo pelas mãos dos turistas que
visitam a Ilha.
Ao olharmos um pouco para trás, verificamos que apesar do
Funchal, em determinado momento, se ter estendido em direcção
às montanhas nunca “abandonou” o mar, uma vez que é lá do alto
que as “vistas” sobre o oceano são mais formosas. Além disso,
verificamos que, no século XVIII, até a própria arquitectura das
casas procurou ir ao encontro do mar através das suas torres de
“avista-navios”, “concebidas para aumentar a visão panorâmica do
347
porto” .
As suas ribeiras foram até ao século passado local de
passagem de muitas pessoas que se deslocavam pela cidade a
pé. Bordeadas por passeios, pontilhados de plátanos, era
agradável percorrê-las, sobretudo no Verão pela frescura da
sombra das suas árvores.
Entretanto, o trânsito automóvel foi aumentando e aos
poucos as ruas foram alargando-se, invadindo os passeios e as
margens das ribeiras. Hoje, estas ruas, com grande movimento de
automóveis, constituem barreiras intransponíveis que afastam
cada vez mais as pessoas das ribeiras.
347
Aragão, O Espírito do Lugar. A Cidade do Funchal., pág. 105.
177
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28. A Ribeira de Santa Luzia – a ribeira (A), em 1927, ladeada de plátanos, com
o engenho de açúcar do Hinton ou do Torreão na sua margem esquerda (1) –
(fotografia retirada de um calendário de 1973); a ribeira, em 2007, ladeada por
ruas sem passeios e com a chaminé do antigo engenho do Hinton, hoje
integrada no Jardim de Santa Luzia (2).
Ventura Terra, como vimos, no projecto que apresentou
em 1915 reforçava de facto a relação da cidade com o mar, mas
minimizava a importância das ribeiras ao ponto de defender que
estas deveriam ser tapadas. Na realidade, quando Ventura Terra
se deslocou ao Funchal as ribeiras encontravam-se em muito mau
estado, com grande quantidade de lixo e com animais domésticos
a passear livremente pelas suas margens. Isabella de França já
tinha feito referência a este problema em 1853/54. No entanto,
para Ventura Terra isto constituíu um choque tão grande que o
arquitecto-urbanista, achou por bem esconder aquele cenário
degradante de uma cidade que tanta fama tinha.
Hoje, as ribeiras que atravessam a cidade do Funchal
estão limpas e cuidadas, encontrando-se em alguns troços
cobertas com buganvílias, que em determinadas épocas do ano se
enchem de flores, emprestando à cidade um alegre colorido.
Com a construção da Avenida do Mar, na década de 40 do
século passado, o objectivo de Ventura Terra foi em parte
concretizado, a foz das três ribeiras foi tapada, e, no caso da
Ribeira de São João, para além desta avenida foi, ainda,
178
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construída sobre o seu percurso final a Rotunda do Infante e o
Edifício do Infante.
O certo é que diariamente passam sobre as ribeiras
milhares de pessoas a pé, de automóvel e de autocarro. No caso
da Avenida do Mar, as pessoas que a percorrem, fazem-no num
rodopio incessante para chegar a tempo aos seus trabalhos ou
para regressar a casa. No seu percurso apressado simplesmente
passam sem prestar atenção ao que está à sua volta. Por outro
lado, circulam também por ali aqueles que, com maior
disponibilidade de tempo, aproveitam para disfrutar do um
agradável passeio pela baía.
29. A Avenida do Mar - ponto de ligação entre a cidade e o mar. A foz da Ribeira de
São João (1), a Poente, e a foz das ribeiras de Santa Luzia (2) e de João Gomes
(3), a Nascente. Passeio ao longo da avenida (4).
Esta avenida marginal dispõe, em todo o seu comprimento,
de um amplo passeio ajardinado, com esculturas, um mobiliário
urbano contemporâneo e pequenos cafés. Deste passeio, o peão
pode contemplar o mar, o porto, a cidade e a montanha. Contudo,
este ambiente, que só de imaginar transmite paz, é
179
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Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
constantemente invadido pelo ruído e pela poluição provocada
pela circulação de veículos. Deste modo, o rumor do mar como o
cheiro a maresia ficam ocultos, destituindo assim a cidade destes
elementos sensoriais tão particulares.
Além disso, entre o passeio Leste da avenida e o mar
existe um muro, relativamente alto e largo, que mantém o
transeunte afastado da praia, do “calhau” e, consequentemente,
do contacto com o mar.
30. O passeio da Avenida do Mar – o muro de “protecção” constitui uma barreira
visual (1); a rua e uma das muitas esculturas existentes na Avenida (2); o passeio
junto à Marina do Funchal (3).
Um transeunte mais curioso, ao debroçar-se sobre o muro,
para além de uma praia de calhaus rolados encontra, ainda, a foz
das ribeiras de Santa Luzia e de João Gomes. A surpresa é,
infelizmente, desagradável. A foz das ribeiras parecem
abandonadas, com paredões derrubados ou em ruína. É certo que
a força do mar é enorme, sobretudo no Inverno quando as ondas
galgam a costa, contudo, estamos convictos de que hoje a
engenharia dispõe de soluções que, simultaneamente, podem
exercer uma função de protecção e de conforto para os
utilizadores das áreas costeiras.
180
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31. Depois do muro a surpresa: a decadência da foz das ribeiras de João Gomes (1)
e de Santa Luzia (2).
Contudo, a marginal da cidade do Funchal é sem dúvida
um local emblemático que atrai madeirenses e estrangeiros. O
348
mar é por si só um elemento atractivo
e a avenida é o seu
grande balcão.
Hoje, um pouco por toda a Europa pode-se constatar que
há uma crescente preocupação em “devolver” às cidades e à sua
população a natureza e, sobretudo, as frentes de água marítimas
e fluviais às cidades.
Aker Brygge, na cidade de Oslo (Noruega), constitui um
dos muitos exemplos de antigas áreas portuárias – neste caso um
antigo estaleiro – que
têm vindo a ser reabilitadas e
transformadas em aprazíveis lugares de serviços, comércio,
habitação, convívio e lazer.
Inúmeras cidades têm vindo a transformar áreas portuárias
em espaços priviligiados. Contudo, é importante salientar que, no
caso da cidade do Funchal, essa intervenção urbanística deverá
ser feita no sentido da continuidade da cidade existente,
348
Paradoxalmente, nesta ilha, o mar começa a correr o risco de se tornar num
bem escasso devido à intensa edificação na orla costeira, sobretudo na zona Este
da cidade, ao longo da Estrada Monumental, onde o horizonte se vem
transformando de dia para dia numa autêntica “parede de betão”.
181
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apostando na criação de áreas multifuncionais onde o espaço
público deverá ser valorizado como elemento unificador.
32. Oslo, Aker Brigge – a área do antigo estaleiro Akers Mekaniske Verksted foi
reabilitada e transformada num novo espaço da cidade, com um sistema de
espaços públicos adequados às novas necessidades e usos e, ainda, com a
recuperação de estruturas edificadas existentes e edificação de novos edifícios
para diferentes usos.
Camillo Sitte já referia, em 1889, a importância da água e
do “verde” na cidade. Este alertou para o facto de os nossos
antepassados terem sido “homens de florestas” e que os citadinos,
por viverem em edifícios de apartamentos, encontravam-se
afastados da natureza, daí a irresistível atracção que sentiam por
ela, “sempre seduzidos pelas áreas verdes, um verdadeiro refúgio
349
contra o moinho de poeiras deste oceano de moradias” .
Acrescenta, ainda, que há outro elemento da natureza que o
“construtor urbano não pode dispensar, caso queira conferir
350
vivacidade à sua imagem urbana” – a água .
Os argumentos de Sitte encontram ainda eco nos dias de
hoje. Cada vez mais, o homem da cidade vive em pequenos
349
Sitte, A construção das cidades segundo seus princípios artísticos, pág.165.
350
Idem, op. cit., pág. 166.
182
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apartamentos e passa horas encerrado em escritórios. Nos seus
tempos livres ele procura a rua, os jardins, o mar e os rios.
O centro da cidade do Funchal com a sua extensa faixa
costeira, as suas ribeiras e o “verde” dos jardins e das árvores que
ladeiam as ruas, reune uma série de “ingredientes” fundamentais
para uma maior convivênvia dos seus utilizadores com a natureza.
Se a toda esta natureza se juntar o importante espaço de
memórias e de referências da sua malha urbana, o Funchal ficará
então, não só mais genuíno, como também possuidor de uma
imagem única.
A natureza e as memórias criadas pelo homem constituem
assim os dois aspectos fundamentais para a singular imagem
desta cidade, decidida não só a melhorar a qualidade de vida dos
seus habitantes e de todos os que a visitam, como também a
oferecer-lhes momentos de cultura, lazer e convívio diversificados.
Nesta perspectiva, é importante não só devolver o mar e as
ribeiras à cidade, enquanto espaços de natureza, como também
redescobrir e renovar os diferentes espaços da cidade – públicos,
351
de memória, comerciais e culturais –, criando “percursos”
que
dêem à cidade um “sentido de continuidade”, para que os seus
habitantes e visitantes possam usufruir na sua plenitude desta
pequena “grande cidade”, enquanto espaço económico, social,
cultural e de lazer.
351
Entendidos como canais que unificam os diferentes espaços públicos da cidade,
dando-lhes continuidade.
183
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33. O verde e as memórias da cidade: o Palácio de São Lourenço (1); o Jardim
Municipal (2); a Fortaleza do Pico (3); o Convento de Santa Clara (4); a
Avenida Gonçalves Zarco (5) e a Praça da Restauração (6).
Contudo, antes, é necessário compreender e repensar o
modo como estes elementos se organizam, interligam e
interagem, saber como são apreendidos, sentidos e utilizados
pelas pessoas e, posteriormente, encontrar a melhor solução para
que cada um desses elementos e o seu conjunto ganhem um
sentido de pertença para cada indivíduo.
É uma tarefa enorme e dificíl, no entanto acreditamos ser
possível e que irá contribuir para a renovação da imagem do
Funchal, tornando esta cidade mais atractiva e acolhedora para
todos.
184
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3.2 Os desafios
Um pouco por todo o Mundo, tem vindo a ser dada uma
crescente importância à requalificação e revitalização do centro
das cidades.
Na realidade, os centros das cidades, sobretudo nas
décadas de 70 e 80 do século XX, sofreram um declínio, motivado,
em parte, por uma série de factores, de onde se destacam o
fenómeno de terciarização; o congestionamento automóvel; a
perda de acessibilidade ao centro; o elevado custo do solo urbano
e o consequente desenvolvimento residencial na periferia; a perda
de atractividade do centro com a consequente deslocação dos
locais de lazer e de recreio para zonas menos centrais e, ainda, a
degradação do tecido urbano e a diminuição da segurança urbana.
O Funchal não foi excepção. Como vimos, o centro desta
cidade no início da década de 90, do século passado, aquando da
preparação do actual Plano Director Municipal do Funchal,
apresentava como principais debilidades deficiências a nível da
acessibilidade; excessiva concentração de funções económicas e
administrativas; excesso de tráfego, congestionamento e falta de
estacionamento; e o abandono da função habitacional. Na
verdade, a crescente terciarização do centro da cidade e a
diminuição da função habitacional no mesmo começava a traduzirse na desertificação do centro ao fim da tarde e ao fim-de-semana.
Constata-se, no entanto, que o esforço realizado no
sentido de solucionar estas e outras debilidades tem sido, por
parte da administração local, enorme e visível. Das muitas acções
e intervenções que foram realizadas podemos destacar a criação
de novas acessibilidades, como por exemplo a Via à Cota 40; a
prioridade dada à mobilidade pedonal no centro do Funchal, com o
encerramento de várias ruas ao trânsito automóvel e a criação de
parques de estacionamento em zonas estratégicas da cidade; a
renovação de diferentes espaços públicos e habitacionais; a
preservação, renovação e criação de espaços verdes e de praças;
e a recuperação da frente mar, através do “arranjo urbanístico” da
185
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Avenida do Mar. No âmbito do urbanismo comercial foi, ainda,
implantado o Programa URBCOM - da Sé e de São Pedro –
através do qual foi feita uma requalificação dos estabelecimentos
comerciais e de áreas do domínio público, destacando-se a
pavimentação, iluminação e colocação de mobiliário urbano.
Actualmente, foi dado início à preparação de um projecto
para a reconversão do porto do Funchal e do espaço público e
infra-estruturas anexas da Marginal Poente do Funchal. Enquanto
para o molhe Sul do porto está previsto a criação de uma gare
para embarque e desembarque de passageiros – a Gare Marítima
Internacional do Porto do Funchal –, no Cais 6, antigo Cais de
Contentores, e nas áreas que lhe estão anexas – Varadouro e
heliporto – será dada continuidade ao espaço público da Avenida
do Mar e à construção de um edifício de Estacionamento semi352
enterrado, com lojas e escritórios nos pisos superiores.
Encontram-se, também, em fase de preparação os Planos
de Pormenor do Castanheiro e do Carmo, dois quarteirões com
um elevado número de edifícios degradados, que a Câmara
Municipal do Funchal pretende renovar criando no seu interior
353
espaços públicos de circulação e de descanso.
No entanto, julgamos haver ainda muito a fazer sobretudo
no que se refere à “atracção espontânea” do cidadão, da
população vizinha e dos seus visitantes ao centro da cidade e aos
seus diferentes lugares. Não é suficiente criar as infra-estruturas,
os equipamentos e os espaços, é tanto ou mais importante tornálos atractivos, seguros e “vividos”, ainda mais quando se fala de
espaços públicos.
352
C.M.F. Estacionamento Urbano. Retirado em 12 de Junho de 2007 da World
Wide Web: www.cm-funchal.pt
353
Idem.
186
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34. A zona portuária do Funchal – molhe Sul (1); Cais 6, antigo Cais de
Contentores (2); Varadouro e instalações naúticas do Clube Naval do Funchal e do
Centro de Treino Mar (3); heliporto (4).
É importante ter sempre presente que a cidade não é só a
estrutura urbana é também todo um conjunto de indivíduos, com
necessidades específicas e diferenciadas, que nela habitam,
trabalham e passeiam, ou seja, que a utilizam diariamente. Uma
cidade vazia de pessoas, que não é vivida, é apenas um
“esqueleto” destinado ao abandono e à desintegração.
Camillo Sitte alerta-nos para o problema dos espaços
públicos vazios, salientando que este advém da excessiva
preocupação em regularizar o espaço urbano, o que conduz não
187
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354
só à destruição de “pedaços de memórias” da cidade , como
também à criação de praças excessivamente rectas, com “uma
árvore, um chafariz ou uma estátua” colocado no seu “centro
355
milimétrico” , o que faz naturalmente afastar as pessoas porque
as deixam expostas e desconfortáveis.
No entanto, hoje, acrescenta-se uma outra preocupação
que é a da segurança. Sabemos que a cidade proporciona, de um
modo geral, segurança aos seus utilizadores, através do controlo,
voluntário ou não, exercido pelas forças da ordem pública e pelos
próprios cidadãos. Na verdade, o facto de cada indivíduo estar
354
É interessante ver o que nos escreve Sitte a este respeito: “Em nenhum projeto
urbano podemos identificar, hoje, o princípio de se poupar cada velha árvore
remanescente ainda capaz de sobreviver, como uma venerável estátua da história
ou da arte. Não se demonstra a intenção de acolhê-la no recanto tranquilo de uma
praça com arredores adequados, seja através de desvios e curvas no traçado de
uma rua ou mesmo criando-lhe uma pracinha particular, tudo em benefício dessa
única árvore imponente – em vez disso, tudo é destruído de modo impiedoso. Na
regularizações urbanas modernas podemos encontrar diversos exemplos em que
antigas fontes rodeadas por formosos grupos de árvores, assim como antigos
jardins particulares de valor inestimável, fortificações cobertas por folhagens
abundantes, velhos portões de burgos ou capelas cujos arredores formavam belos
conjuntos pinturescos com agradáveis recantos à sombra de árvores e arbustos
tombaram sacrificados pelo primeiro golpe da régua do geômetro moderno, com o
seu monótono traçado retilíneo de ruas de largura uniforme. Todos estes exemplos
apresentam perdas irrecuperáveis, pois não podemos criar artificialmente o frescor
das formas espontâneas de um crescimento natural e gradativo. Contra isso há
apenas uma regra: a garantia de prioridade na conservação destas velhas
heranças, que devem ser incorporadas com harmonia à imagem urbana.” (Sitte, op.
cit., pág. 171)
355
Idem, op. cit., pág. 172.
188
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356
consciente de ser alvo de um controlo ou vigilância exercida por
todos aqueles que, de diferentes maneiras, se encontram à sua
volta, conduz não só ao cumprimento de regras de comportamento
social, como também à prevenção de situações de risco.
Neste sentido, os espaços exteriores e públicos da cidade
serão tanto mais procurados quanto maior for a vigilância social
exercida sobre eles e, consequentemente, maior for a segurança
que eles proporcionem a cada indivíduo.
Associado à vigilância está naturalmente a questão da
iluminação que, segundo Jacobs, “amplia cada par de olhos”, ou
seja, “faz com que os olhos valham mais porque o seu alcance é
357
maior” . Contudo, esta autora salienta que a iluminação só é útil
se existirem “olhos atentos” para que a vigilância seja efectiva, daí
a necessidade de os espaços públicos serem frequentados e
utilizados.
Importa, ainda, ter presente a questão da continuidade na
cidade. Para haver continuidade é necessário existir
358
“legibilidade” , diversidade de funções e complementaridade.
Em relação à “legibilidade”, Lynch lembra que “a nossa
percepção da cidade não é íntegra, mas sim bastante parcial,
359
fragmentária, envolvida noutras referências” , daí a importância
de uma leitura acessível da cidade para que cada indivíduo possa
ter uma imagem clara da mesma, a fim de poder orientar-se e
356
Como vimos no capítulo I, para Jane Jacobs o controlo ou vigilância social,
resulta da multiplicidade de contactos sociais que diariamente ocorrem nas ruas da
cidade, através dos quais há uma vigilância, individual e colectiva, sobre as
actividades e comportamentos dos diferentes intervenientes na vida urbana. (Jane
Jacobs, Morte e vida de grandes cidades)
357
J. Jacobs, op. cit., pág. 43.
358
Entendida como a “facilidade com a qual as partes podem ser reconhecidas e
organizadas numa estrutura coerente” (Lynch, A imagem da cidade, pág. 13)
359
Idem, op. cit., pág. 12.
189
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deslocar-se facilmente. A facilidade de percepção do meio
ambiente e a imagem mental que retemos desse meio, tem uma
360
“grande relevância prática e emocional no indivíduo” , pois não
só permite uma melhor orientação e deslocação, como também
proporciona confiança e segurança.
A legibilidade deverá, assim, facilitar uma mobilidade
intencional/espontânea, levando os indivíduos a percorrer
diferentes ruas da cidade sem se perder. Importa ainda salientar
que Lynch defende que as ruas, enquanto “rede de linhas
habituais ou potenciais de deslocação através do complexo
urbano”, constituem os meios mais significativos para organizar o
361
todo .
Nesta perspectiva, não só as ruas como todos os outros
espaços públicos, interligados muitas vezes por uma rede de
362
“percursos ocultos” , podem ser considerados elementos
estruturantes da cidade. Cada espaço público, com as suas
características e funções, vai interligar-se a outro ou outros
espaços, relacionando e unindo as diferentes funções que
exercem, dando um “sentido de conjunto” que irá garantir a
continuidade na cidade.
O espaço público é por natureza um lugar de circulação,
de encontro, de troca, de lazer e de memória. Teremos então
percursos, formados por diferentes espaços públicos, onde as
pessoas passam por ruas que podem se transformar num largo ou
numa praça, com uma esplanada e uma fonte, que depois vai
desembocar a outra rua com edifícios públicos, museus e espaços
comerciais, ou que vai contornar um monumento e passar junto a
uma ribeira, indo terminar numa pequena praça com uma velha
árvore e um fontanário; dali pode sair uma outra rua, que continua
360
Idem, op. cit., pág. 14.
361
Idem, op. cit., pág. 108.
362
“Percurso oculto” – entendido como o trajecto que a estrutura urbana criou de
um modo espontâneo e que as pessoas o percorrem de uma forma intuitiva.
190
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pela cidade atravessando esplanadas, restaurantes, parques ou
miradouros, conduzindo-nos de seguida a uma calçada estreita e
íngreme ou a uma longa escadaria que termina junto ao mar ou
junto a um forte. Pelo caminho encontramos pessoas, conhecidas
ou não; observamos atitudes; (re)descobrimos lugares; entramos
em lojas, numa igreja ou num museu; vemos crianças a brincar no
parque; deparamo-nos com pedintes; ouvimos vários idiomas;
sentimos o aroma da comida que sai pela janela de uma casa;
paramos para petiscar e observar o barco que entra no porto;
passamos pelo nosso antigo liceu e, a caminho de casa, pelo
mercado. A cidade fica assim ligada, conduzindo o indivíduo por
espaços distintos que se interligam e complementam.
Cada um destes espaços públicos, com funções, forma,
dimensão, arquitectura e valor patrimonial distintos, que
resultaram de “pedaços” de memórias da cidade e/ou de novos
espaços criados por intervenções recentes na urbe, devem
constituir referências na cidade, com identidade própria, que
contribuem para enriquecer e dar vida à própria cidade.
Mas o dinamismo da cidade depende ainda da
acessibilidade e da mobilidade que esta proporciona. Estes dois
factores condicionam a utilização dos diferentes espaços urbanos.
Na realidade, é importante ter presente que a cidade é o
local por excelência de uma variedade de “ofertas” e de
“escolhas”, sendo “impossível aproveitar-se dessa multiplicidade
363
sem ter condições de se movimentar com facilidade” . Jacobs,
salienta que essa mesma multiplicidade só existe devido à
364
possibilidade de “usos combinados” , acrescentando que a troca
de ideias, serviços e bens, exige comunicações e transportes
eficientes.
Por outro lado, Jacobs chama a atenção para o facto da
multiplicidade de “escolhas” e “ofertas” depender ainda de uma
363
Jacobs, op. cit., pág. 379.
364
Ibidem.
191
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“grande concentração de pessoas, de uma combinação intrincada
365
de usos e de um entrelaçamento complexo de caminhos” .
Concentração de pessoas, combinação de usos e
caminhos, sugerem mobilidade e, por conseguinte, a necessidade
de um modo de deslocação – a pé ou de automóvel.
Na verdade, o transporte motorizado de pessoas e
mercadorias contitui uma função urbana básica que não pode ser
descorada. No entanto, o movimento automóvel tem vindo a
tornar-se insustentável nas cidades, gerando problemas de
congestionamento e de excesso de tráfego, com repercussões
negativas a nível da funcionalidade do espaço público.
Em consequência, a convivência entre o tráfego
automóvel e o pedonal tem vindo a deteriorar-se, havendo uma
crescente invasão do automóvel no espaço destinado aos peões,
o que cria obstáculos e dificulta a mobilidade das pessoas.
Torna-se, assim, imperativo diminuir o número de veículos
que circulam na cidade e definir espaços para circulação
automóvel e pedonal. As soluções parecem ser inúmeras, no
entanto, pelas leituras que fizemos de diferentes autores,
nenhuma parece ser a ideal. Cada cidade é um caso e tem
necessariamente que ser vista no seu todo, ou seja, como um
conjunto interligado, ininterrupto, para que não sejam criadas
barreiras e, consequentemente, rupturas.
Contudo, é necessário ter em atenção algumas questões
relacionadas com a diminuição do trânsito automóvel e a criação
de ruas pedonais. Como referimos anteriormente, a circulação de
veículos é uma forma de promover a segurança/vigilância nos
espaços públicos urbanos. Além disso, o senso comum diz-nos
que as pessoas preferem ir às ruas onde há trânsito de veículos,
porque a deslocação de carro é mais cómoda. Por outro lado,
sabemos que a criação de espaços exclusivamente dedicados à
circulação pedestre contribui para uma maior liberdade de
365
Ibidem.
192
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circulação das pessoas mas que, ao mesmo tempo, cria
problemas ao nível da distribuição de mercadorias ou de recolha
de lixo às empresas localizadas nessas áreas.
366
Jane Jacobs
a este respeito é clara, afirmando que
duvida ”que as vantagens da completa separação sejam muito
grandes, em qualquer circunstância”. Salientando que a
experiência tem mostrado que, no caso de ruas exclusivamente
pedestres, as pessoas “não andam pelo meio, como se fossem
enfim donas da rua”, mas sim pelos lados onde podem observar
as vitrinas, os prédios e as outras pessoas. O uso da totalidade da
rua inteiramente pedestre só acontece quando há um número
elevado de pessoas a circular ou durante eventos, como festas e
exposições. Esta autora acredita que “a maior virtude das ruas de
pedestres não é a de não circularem veículos, mas sim a de não
serem sufocadas e dominadas por uma inundação de carros e
367
serem mais fáceis de atravessar” .
É importante ter presente que independentemente da
solução a adoptar é necessário haver primeiro uma
consciencialização da realidade existente. Jane Jacobs salienta
que não se pode decidir pela circulação pedestre sem antes
ponderar sobre a diversidade, a vitalidade e a concentração de
usos urbanos, concluindo que “na ausência da diversidade urbana,
as pessoas (...) provavelmente se saem melhor com um carro do
368
que a pé” . Mas a autora continua, advertindo que “a
dependência excessiva dos automóveis particulares e a
369
concentração urbana de usos são incompatíveis” .
Em definitivo, a resolução do problema passa
necessariamente pela redução do número de carros na cidade, até
porque não podemos continuar a esventrar os centros urbanos,
366
Jacobs, op. cit., pág. 386 e 387.
367
Idem, op. cit., pág. 387 e 388.
368
Idem, op. cit., pág. 388.
369
Idem, op. cit., pág. 388 e 389.
193
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para alargar e rectificar as suas ruas ou para criar espaços de
estacionamento. Além disso, se a cidade deixar de ser atractiva
deixa de ser “usada” e tudo o que fica são espaços vazios que
inevitavelmente se vão transformar em espaços inseguros e
degradados.
É ainda importante ter presente que a cidade deverá ser
um local de inclusão e de coesão social. A este nível, os espaços
públicos podem ter um papel fundamental enquanto locais de
atracção e de convergência de pessoas e grupos com
necessidades específicas e diferenciadas. Para isso basta que
sejam polivalentes e multifuncionais, e que tenham uma utilização
diversificada, para que possam atrair pessoas em diferentes horas
do dia e ao longo de todo o ano.
Em suma, é fundamental que a cidade seja “criativa”, com
uma dinâmica própria voltada para a tecnologia, a tolerância e o
talento. A cidade deverá ser um lugar privilegiado do
conhecimento, um lugar que suscite e promova a discussão, um
lugar de encontro. Para isso é necessário dar à cidade flexibilidade
a fim de permitir a descoberta do espaço pelas pessoas e, por fim,
as suas escolhas. Só assim ela se poderá tornar viva e vivênciada.
O desafio é então tornar a cidade do Funchal mais flexível,
atractiva e vivida. Para isso é necessário valorizar e reforçar a
identidade da cidade e continuar a qualificar a sua imagem. É,
ainda, importante não esquecer o “sítio”, a história, a
funcionalidade, a segurança, a estética, o conjunto onde as partes
se integram, os destinatários e os seus interesses, a colectividade,
a atenuação de deficiências e os investimentos complementares
essenciais à prestação das funções pré-existentes ou definidas
para cada espaço.
É necessário dar atenção à continuidade dos percursos, à
qualidade do ambiente e à diversidade e polivalência de espaços.
194
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3.3 Uma cidade para o futuro
Identificados os desafios que se colocam à cidade do
Funchal importa agir no sentido de ultrapassar as debilidades e de
atingir objectivos.
Feita a análise da morfologia urbana da cidade e após
muitas horas a percorrer e a observar os seus espaços e
utilizadores, torna-se evidente que:
toda a frente mar e a foz de cada uma das diferentes das
ribeiras tem de ser restituída à cidade e a todos aqueles que a
utlizam. Estes elementos de água, naturais, deverão fazer
parte de um espaço multifuncional que valorize e revitalize
toda a frente da baía do Funchal, desde o Forte de São Tiago
até ao Porto do Funchal;
os “percursos” com continuidade na cidade ainda são
escassos. É necessário diversificar as funções dos diferentes
espaços da cidade, sobretudo dos espaços públicos, para que
os “percursos” diárias de rotina da população citadina incluam
cada vez mais um maior número de lugares dentro da cidade.
É, ainda, importante eliminar os “vazios” que foram criados e
que constituem “barreiras invisíveis” à passagem das
pessoas. Os “percursos de continuidade” deverão, ainda,
incluir e ligar os espaços de cultura e de história (ver Mapa nº
14) que se encontram dispersos um pouco por todo o centro
do Funchal;
o centro da cidade continua a ficar deserto, especialmente, ao
fim do dia. A diversificação de usos dos espaços públicos irá
permitir que os mesmos possam ser utilizados por pessoas ou
grupos heterogéneos de pessoas, em diferentes horas do dia
e ao longo da semana e do ano;
é urgente reduzir o tráfego automóvel que diariamente se
dirige ao centro da cidade. Esta redução passa
inevitavelmente pelo incentivo à utilização dos transportes
públicos e pela diversificação dos mesmos. No entanto, é
necessário criar “linhas” de passagem que atravessem a parte
195
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central do centro do Funchal, para que determinados grupos
da população (por exemplo: idosos, deficientes, pessoas com
problemas de saúde, crianças) possam ter o acesso ao centro
facilitado.

A frente mar
A baía e o porto do Funchal, com a sua localização
privilegiada aos pés da cidade deverão constituir uma prioridade
para a renovação da imagem da cidade do Funchal. A combinação
diversificada de funções urbanas e a valorização dos espaços
naturais existentes ao longo de toda esta área deverão constituir
os aspectos fundamentais para a renovação da frente mar.
Como podemos observar no Mapa nº 15, a frente mar do
Funchal estende-se desde o Porto, a Oeste, até ao Forte de São
Tiago (7), a Este, apresentando duas áreas distintas – a primeira,
fundamentalmente, ligada às actividades portuárias, é cruzada
pela Avenida Sá Carneiro (2), que é limitada a Norte pela arriba
onde está localizado o Parque de Santa Catarina (13) e o Casino
Parque Hotel; a segunda, mais central, funciona como espaço de
lazer e lugar de chegada e de saída da cidade, sendo atravessada
longitudinalmente pela Avenida do Mar (1).
Ao longo desta área, heterogénea, deverá ser criada uma
nova estrutura de utilização e de continuidade da cidade,
privilegiando a criação de espaços públicos e valorizando os
elementos de água naturais existentes – o mar e a foz das
ribeiras.
Deste modo, o espaço público e a água terão um papel
unificador das várias partes, devendo ser favorecido,
intencionalmente, o acesso pedonal a toda a área. Deverá,
também, caber ao espaço público o papel de agente de ligação
entre o mar e a cidade existente, para que não ocorram processos
de segregação espacial e, ainda, para permitir que a acção de
renovação estenda a sua influência às diferentes áreas da cidade,
através de “percursos de continuidade” quer ao longo das ribeiras
196
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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quer através das ruas que saem da Avenida do Mar em direcção a
Norte. De esta maneira serão mantidos e valorizados os principais
eixos estruturantes da cidade.
Assim, toda a frente mar deverá sofrer um processo de
reabilitação e de renovação urbana a fim de ser dada uma
continuidade a este espaço da cidade, seguindo o eixo de
expansão da urbe para Oeste, em harmonia com o mar.
É importante aqui lembrar que a expansão da cidade do
Funchal para Poente, a partir da margem direita da Ribeira de São
João se fez através dos “terrenos das Angústias” e, por
conseguinte, a um plano muito acima do nível do mar. Tendo
chegado agora o momento da cidade ocupar e continuar o seu
percurso de expansão a uma cota mais baixa, junto ao mar, ao
longo da zona portuária.
Na realidade, a recente desafectação do porto do Funchal
às actividades mais “pesadas” e consumidoras de espaço, libertou
uma área de 18 660
correspondente ao Cais de Contentores
(fig. 35, nº 3), a qual poderá ser ampliada com a integração do
Varadouro e dos antigos silos de cereais (fig. 35, nº 5 e 2,
respectivamente), perfazendo, aproximadamente, um total de 65
924
. Toda esta área, com uma localização privilegiada na
cidade e constituindo uma das “portas de entrada” do Funchal,
deverá ser alvo de todo um processo de reconversão urbana.
O objectivo não deverá ser o de criar uma nova
centralidade, mas antes o de criar uma nova imagem urbana, mais
contemporânea e dinâmica, da cidade. Assim, deverão ser
construídos nesta área da frente mar edifícios, com uma
arquitectura contemporânea, que incluam espaços de serviços e
comércio, de cultura e de lazer. Deverá ser dada preferência a
escritórios, serviços da administração regional (que já existem na
área), a habitação, lojas para venda de equipamentos naúticos,
galerias e atellier de arte, restaurantes, bares e discoteca (também
já existentes neste local) e, possivelmente a um espaço dedicado
à biologia marinha. Deverá, ainda, haver nesta área uma
197
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
separação vertical da circulação de automóveis e de peões, com o
trânsito automóvel a ser feito num nível inferior, através de um
túnel que ligue a Rua Carvalho Araújo ao túnel da Rotunda Sá
Carneiro (fig. 35, nº 1 e 4), com acesso directo a parques de
estacionamento. Deste modo, todo o nível superior, da rua, poderá
ser utilizado exclusivamente por peões, sendo a mobilidade feita
através de áreas de circulação cobertas e descobertas.
35. Zona portuária do Funchal – Rua Carvalho Araújo (1); silos de cereais (2); Cais
de Contentores (3); Rotunda Sá Carneiro (4); Varadouro (5) e Marina do Funchal (6).
A actual Marina do Funchal (fig. 35, nº 6) deverá também
ser alvo de um estudo atento a fim de incluir um espaço destinado
às escolas de desportos naúticos para os mais jovens,
nomeadamente do Clube Naval do Funchal e do Centro de Treino
Mar actualmente a funcionar na área do Varadouro (fig. 35, nº 5).
A contemporaneidade desta área deverá estender-se para
Este, até ao Forte de São Tiago, através de espaços públicos
multifuncionais.
198
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36. A frente mar da Avenida do Mar – Avenida do Mar (1); Cais do Funchal (2); foz da
Ribeira de Santa Luzia (3); foz da Ribeira de João Gomes (4); Praia de São Tiago (5);
Forte de São Tiago (6).
Assim, na restante frente mar da cidade, para além dos
espaços públicos, deverá ser privilegiada uma circulação
exclusivamente pedonal, uma vez que existe uma série de
parques de estacionamento, públicos e privados, no espaço
contíguo à Avenida do Mar (fig. 36, nº 1) – Parque do Centro do
Infante (350 lugares), Parque de São Lourenço (61 lugares), AutoSilo do Almirante Reis (600 lugares), Auto-Silo São Tiago (292
370
lugares) (ver Mapa nº 15 – Parques de estacionamento).
Retirando o trânsito automóvel da frente mar, quebra-se
uma barreira visual e sonora, verifica-se uma melhoria da
qualidade do ar, e a cidade torna-se mais sensorial, podendo as
pessoas disfrutar do som do mar e das pedras a rolar na praia; do
cheiro da maresia, das flores e das castanhas assadas no Outono
e, ainda, da cor da água, da vegetação e das flores.
370
C.M.F. Estacionamento Urbano. Retirado em 12 de Junho de 2007 da World
Wide Web: www.cm-funchal.pt
199
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
Em diferentes pontos da actual Avenida do Mar deverão
ser construídos parques infantis destinados a crianças de diversas
faixas etárias e, ainda, espaços específicos para a prática de
desportos urbanos, nomeadamente skate; patins em linha e BMX
(Bicycle Motocross).
37. Desportos urbanos - skate (1); patins em linha (2); BMX (3).
(Imagens retiradas do Google – www.google.com)
Ao longo de toda a extensão da frente mar até ao porto,
deverá existir uma ciclovia, onde indivíduos de todas as faixas
etárias possam andar de bicicleta e, também, um passeio para
jogging e/ou caminhadas, actividades desportivas que começam a
reunir um número cada vez maior de adeptos na Ilha.
É, ainda, fundamental que a foz das ribeiras de Santa
Luzia e de João Gomes sejam destapadas, dando lugar a uma
área de descanso, relaxante, com espelhos de água e árvores.
200
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
38. Caminhar e andar de bicicleta são duas actividades desportivas que madeirenses,
de diferentes faixas etárias, têm vindo a adoptar nos últimos tempos.
Todo este extenso espaço público ficará limitado, a Norte,
pelos diferentes edifícios, públicos e privados (fig.39), ali
existentes, nomeadamente centros comerciais; o Palácio de São
Lourenço; restaurantes; serviços da TAP; instituições bancárias;
Assembleia Legislativa Regional; Guarda Nacional Republicana; a
Capitania; a Empresa de Electricidade da Madeira; o Museu Casa
da Luz; a estação do teleférico para o Monte; o Hotel Porto Santa
Maria e o Forte de São Tiago – os quais atraem um número
significativo de pessoas a este local, acabando também eles
próprios por serem valorizados por esta nova forma de utilização
do espaço.
201
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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39. Comércio e serviços existentes na frente mar da Avenida do Mar – centros
comerciais (1); Teatro Municipal Baltazar Dias (2); Palácio de São Lourenço (3);
restaurantes, instituições bancárias, serviços da TAP (4); Assembleia Legislativa
Regional (5); Guarda Nacional Republicana (6); Capitania (7); Empresa de
Electricidade da Madeira (8); Museu Casa da Luz (9); estação do teleférico para o
Monte (10); Hotel Porto Santa Maria (11).
A ligação da frente mar à restante cidade, como se pode
observar no Mapa nº 15, será feita através do Parque de Santa
Catarina (13) que estabelecerá a ligação, a Oeste, deste espaço à
Avenida do Infante; e de uma série de ruas e avenidas – Rua
Conselheiro José Silvestre Ribeiro (14), Avenida Zarco (15) e Rua
Dr. António José de Almeida (16) – que conduzem as pessoas
para diferentes pontos da cidade. As ribeiras de Santa Luzia e de
João Gomes constituem importantes corredores de trânsito
automóvel que ligarão esta área directamente a outros locais da
cidade.
202
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
Percursos de continuidade na cidade
O centro do Funchal apresenta ainda alguma
descontinuidade nos seus percursos. Verificamos que existem
espaços na cidade, que constituem “barreiras invisíveis” à
circulação de pessoas.
Na maior parte das vezes são ruas centrais, paralelas ou
perpendiculares a outras muito movimentadas, com tendência
para a monofuncionalidade. Contudo, esta falta de variedade de
funções não justifica por si só esta situação, verificando-se que
muitas vezes o problema é agravado por uma fraca confluência de
trajectos e pelo aspecto degradado dos edifícios. O facto de
algumas destas ruas serem espaços exclusivamente pedonais
veio contribuir ainda mais para a sua desertificação a partir do fim
do dia e ao fim-de-semana.
Algumas praças e jardins constituem outros pontos de
descontinuidade na cidade. Nestes casos, verifica-se que a forma
e a localização do espaço constituem fortes factores de repulsão.
Por exemplo, a Praça da Autonomia é um local por norma
pouco frequentado, enquanto que a pequena Praça do Pelourinho,
que lhe está anexa, quase escondida, tem um café que atraia
muitas pessoas. Camillo Sitte explica muito bem esta situação –
excessiva regularização da praça, com muita exposição de quem
a utiliza e consequente falta de conforto. Na realidade, enquanto a
primeira encontra-se construída a um nível superior à rua, com
linhas recta e um chafariz no centro, estando rodeada em três
frentes por ruas movimentadas, a segunda está localizada a um
nível mais baixo, com algumas árvores e o Pelourinho a um canto.
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40. Ruas que se desertificam ao fim da tarde e ao fim-se-semana: a Travessa
do Forno, transversal à Rua 5 de Outubro e à Rua dos Ferreiros (1);
pormenor do estado de alguns edifícios da Travessa do Forno (2); Rua do
Bispo, transversal à Rua dos Ferreiros e à Rua de João Tavira (3) e a Rua do
Sabão, transversal à Rua dos Ferreiros e à Rua da Alfândega (4).
O Jardim Almirante Reis, com uma área de 13000
,
constitui outro exemplo de descontinuidade. Na realidade, apesar
de confinar no seu extremo Este com o Hotel Porto Santa Maria e
a Oeste com a estação do teleférico para o Monte, não possui a
atracção que inicialmente se poderia esperar. As suas plataformas
ondulantes, relvadas, cortadas por percursos pedonais não atraem
um grande número de pessoas, uma vez que os passadiços ficam
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ocultos na ondulação. A sensação de falta de segurança parece
ser a justificação mais plausível.
41. A Praça da Autonomia (1), exposta
42. A Praça do Pelourinho, com
à área envolvente, com os seus
a esplanada do café ao fundo,
traçados rectos e o chafariz no centro.
as árvores e o Pelourinho.
A Praça do Pelourinho (2).
205
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43. O Jardim Almirante Reis (1). A Oeste a
44. Pormenor do Jardim Almirante
estação do teleférico para o Monte (2) e a
Reis - vista Norte com a estação do
Este o Hotel Porto Santa Maria (3).
teleférico ao fundo.
A questão da continuidade dos percursos na cidade é um
assunto complexo e extremamente interessante, que no caso do
Funchal deverá ser alvo de um estudo mais aprofundado. É
necessário diagnosticar as debilidades dos diferentes espaços da
cidade, compreender como estes se interligam e interagem e,
ainda, conhecer o modo como os diferentes grupos de pessoas
apreendem, sentem e utilizam esses espaços.
O facto é que uma cidade descontínua cria vazios e afasta
as pessoas. É urgente dar um “sentido de conjunto” ao centro do
Funchal para que possa ser garantida a continuidade na cidade e
deste modo incentivar a utilização de todo o centro, explorando ao
máximo os seus recursos e trazendo vida ao Funchal.
Este assunto ultrapassa o objecto do presente trabalho, no
entanto será certamente nosso tema de estudo e de pesquisa num
futuro próximo.

Acessibilidade e mobilidade
A questão da acessibilidade e da mobilidade no centro do
Funchal é complexa. Uma cidade viva e vivida tem
206
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Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
necessariamente de ter pessoas, utilizadores, os quais ou habitam
na cidade ou então têm de deslocar-se até ela.
Há um excesso de tráfego no centro do Funchal,
provocado quer pelo uso cada vez maior do automóvel particular
quer pelo elevado número de transportes públicos que aí circulam.
Verificamos que embora a área urbana da cidade seja servida por
uma única empresa de transportes públicos, Horários do Funchal,
estes não são os únicos autocarros que diariamente afluem ao
centro da cidade, em direcção à Avenida do Mar.
45. Autocarros de várias empresas junto à Praça da Autonomia
- Horários do Funchal (1); Rodoeste (2); SAM (3).
Julgamos assim não só ser necessário reduzir o número
de automóveis particulares como também o número de autocarros
que circulam no centro da cidade. Para estes últimos é necessário
encontrar novos locais de chegada e de partida, os quais devem
ficar estrategicamente colocados em pontos limítrofes do centro da
cidade. Para uma maior comodidade dos utentes, uma carreira de
transportes públicos urbanos, que circule exclusivamente na baixa,
deverá fazer a ligação entre estas estações de autocarros e
diferentes lugares do centro, incluindo as outras estações.
207
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
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É importante aqui referir que, actualmente, no centro do
Funchal circula uma carreira de autocarros públicos, eléctricos, – a
Linha Eco – que liga toda a baixa.
No entanto é necessário que a oferta de transportes
públicos seja diversificada. Para além do autocarro, o Funchal
poderá apostar ainda no barco.
À semelhança do que acontece, por exemplo, em Lisboa,
entre as duas margens do Rio Tejo, ou em Oslo, entre o centro e
Bygdøy ou as ilhas, o Funchal também poderá ter ligações de
barco entre o Cais da cidade e as áreas litorais envolventes,
incluindo as do concelho vizinho.
46. Transporte marítimo de passageiros na cidade de Oslo, Noruega – o porto
com os ferries que fazem a ligação entre o centro de Oslo e Bygdøy ou entre a
cidade e as ilhas (1); cais de embarque do Ferry para Bygdǿy (2).
Esta não é uma ideia nova. Deste o século XV até meados
do século XX, as ligações entre o Funchal e as outras localidades
do litoral da Madeira eram feitas quase exclusivamente por via
marítima, devido à morfologia da ilha. Pessoas e mercadorias
eram transportadas, inicialmente em pequenos barcos à vela e,
mais tarde, em barcos a vapor, entre o “calhau” / Cais da Cidade e
os diversos cais que se espalhavam pela costa, onde o litoral era
mais baixo.
Na realidade, um transporte marítimo rápido e eficiente
entre as principais áreas dormitório do Funchal – São Martinho e
Caniço – e o centro da cidade, não só iria contribuir para uma
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MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
diminuição do número de automóveis que diariamente afluem à
cidade, como também reduzir o tempo gasto nessas deslocações
e os níveis de poluição atmosférica.
Nesta perspectiva poderiam ser criadas duas ligações
fundamentais: uma para Oeste, entre o Cais da Cidade e a zona
do Lido e da Praia Formosa, e outra, para Este, com destino à
Praia do Garajau e ao Caniço de Baixo. Deste modo, estas
localidades constituiriam importantes “interfaces ou plataformas
371
multimodais”
de acesso ao centro da cidade do Funchal,
ligando, como se disse, duas importantes áreas dormitório ao
centro.
No Verão, o número de carreiras marítimas poderia ser
maior e o seu trajecto mais longo. Ligar o centro do Funchal a
diferentes pontos do litoral Sul da Ilha e, consequentemente, a
diferentes zonas balneares, poderá ser uma ideia muito
interessante na medida em que os funchalenses teriam desta
forma acesso a um maior número de praias – a Oeste, às praias
de Câmara de Lobos, Ribeira Brava, Ponta do Sol, Madalena do
Mar e Calheta; e, a Este, às praias do Garajau, Caniço, Santa
Cruz, Machico e Caniçal.
A pequena dimensão do centro do Funchal poderá à
primeira vista suscitar a ideia de que facilmente o poderemos
percorrer a pé. E é verdade, em vinte minutos, num passo rápido,
é possível atravessar a baixa da cidade no seu sentido
longitudinal. No entanto, a cidade tem diferentes utentes, com
características e necessidades específicas, de onde se podem
destacar os idosos e as pessoas doentes, os deficientes e as
crianças mais pequenas. Para estes, a liberdade de
movimentação pode estar limitada, necessitando de um meio de
371
Interface ou plataforma multimodal entendida como um espaço de encontro de
diferentes modos de transporte, com infra-estruturas e equipamentos que facilitam
a transferência de pessoas e mercadorias de um modo de transporte para outro.
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locomoção que lhes proporcione mais conforto, mais segurança e
uma maior flexibilidade nos percursos – o automóvel particular.
Podemos, então, depreender que não é viável retirar o
trânsito automóvel do centro da cidade, mas sim diminui-lo. Além
disso, é importante não esquecer que a circulação de automóveis
contribui
para
o
aumento
da
vigilância
social
e,
consequentemente, para o aumento da segurança na cidade.
Actualmente, como se pode verificar pelo Mapa nº 16,
existe no centro do Funchal um número significativo de ruas
encerradas ao trânsito automóvel. A fim de minimizar os
inconvenientes desta situação, torna-se imprescindível que sejam
criados no centro do Funchal “corredores” ou linhas de trânsito
centrais para a circulação de automóveis particulares. Um primeiro
“corredor”, no sentido Oeste-Este, formado pela Avenida do
Infante (1), Avenida Arriaga (2), Rua do Aljube (10) e Rua do
Carmo (11) ou Rua Fernão de Ornelas (12), que atravessa a
cidade, longitudinalmente, pelo seu “coração” permitindo um
acesso fácil a diferentes quarteirões fornecedores de serviços e
comércio diversificado. O segundo, no sentido Este-Oeste, seria
composto pela Rua do Bom Jesus (9), a Rua Câmara Pestana (7),
Rua da Carreira (6) ou Avenida Zarco (3), continuando pela
Avenida Arriaga (2) e Avenida do Infante (1) ou seguindo pelo
“corredor” Oeste-Este, atravessando igualmente o “coração” da
cidade, desta feita mais a Norte.
Com estes dois “corredores”, todos os quarteirões
localizados a Sul, ao centro e a Norte ficariam facilmente
acessíveis através de pequenos percursos a pé. As pequenas
ruas localizadas entre estes dois eixos poderiam destinar-se
exclusivamente à circulação pedonal, sendo necessário no entanto
salvaguardar o acesso ao trânsito local, destinado a moradores, à
distribuição de mercadorias e à recolha de lixo.
Deste modo ficavam criadas as condições necessárias para
a instituição de “percursos” pedonais, fundamentalmente no
sentido Sul/Norte, por onde as pessoas circulariam desde a baía
até à parte mais alta da cidade, através de espaços públicos
210
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multifuncionais, havendo sempre a oportunidade de na vizinhança
372
poderem apanhar um meio de transporte nas “linhas”
de
trânsito, paralelas à costa.
372
Estas “linhas” de trânsito são constituídas pelos dois “corredores” que
atravessam o coração da cidade e, ainda, por uma série de ruas que se localizam a
montantes destes.
211
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Conclusão
O estudo da morfologia urbana da cidade do Funchal e dos
seus espaços públicos estruturantes é o resultado de uma análise
atenta das variações da forma da cidade do Funchal e dos seus
elementos morfológicos assim como dos fenómenos que lhe
deram origem ao longo de cinco séculos.
A cartografia urbana constituiu uma das bases
fundamentais para a sustentação do trabalho de investigação
contribuindo, grosso modo, para o conhecimento e a compreensão
da morfologia urbana desta cidade. Utilizaram-se ainda, como
fontes primárias de investigação, outros documentos materiais não
escritos tais como a iconografia. Saliente-se, no entanto, que
apesar destas fontes constituirem uma excelente base de
investigação, a sua validade só foi possível porque foram
utilizadas conjuntamente e dialecticamente com diferentes
documentos escritos, os quais permitiram compreender os
fenómenos que deram origem à cidade.
Complementarmente, realizou-se um trabalho de campo
onde foram identificadas as permanências do traçado da malha
urbana e dos diferentes espaços da cidade, com especial
destaque para os espaços públicos, e, ainda, de “testemunhos”
edificados referentes aos momentos mais significativos do
crescimento e da transformação do Funchal. Este trabalho in loco
permitiu, também, sentir a cidade e observar o modo como ela é
usada e vivida. Desta experiência da cidade resultou um vasto
trabalho fotográfico, parte do qual é aqui apresentado.
Foram ainda elaborados vários mapas caracterizadores da
morfologia urbana do Funchal nos últimos quinhentos anos. Esta
cartografia teve como base de trabalho o ortofotomapa de 2004 do
centro do Funchal, sobre o qual foram concertadas Plantas da
Cidade do Funchal de diferentes épocas recolhidas em diversos
arquivos e bibliotecas de Lisboa e da Região Autónoma da
Madeira.
213
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Cada um destes mapas permitiu visualizar o espaço que a
cidade ocupava em cada uma das épocas e a sua forma.
Ajudaram a identificar e conhecer os diferentes elementos
morfológicos da cidade, tendo revelado “cidades” que ainda hoje
são perceptíveis na malha urbana do Funchal.
O Funchal, desde muito cedo, marcou a sua posição num
mundo que se expandia para além do Mediterrâneo. Durante
séculos, a sua posição estratégica no Atlântico transformou esta
cidade no principal porto marítimo fora do espaço continental da
Europa, constituindo a principal “porta de saída” para as rotas e os
contactos de Portugal e da Europa com o “novo mundo”. Foi,
ainda, a primeira cidade ultramarina portuguesa.
Espaço criador de riqueza, especializou-se na exportação
de produtos com grande procura nos mercados europeus – o
açúcar e o vinho. Ocupou, nos séculos XV e XVI, um lugar de
relevo na economia atlântica como escala de navegação e de
comércio. Nos séculos XVIII e XIX o seu protagonismo não foi
menor, pois não só continuou a ser um importante porto de apoio
aos mercadores, como também passou a “laboratório da ciência”,
enquanto lugar de passagem de cientistas e destino destacado de
“turismo terapêutico”. A partir da segunda metade do século XIX
tornou-se num importante destino turístico para aqueles que
procuravam aventura e exotismo. Mas tem sido ao longo do século
XX e XXI, que o Funchal tem vindo a reunir toda uma série de
requisitos para a afirmação e consolidação desta “nova” economia
– a do turismo. É um facto que, nas últimas décadas, o Funchal
tem sido palco de um novo desenvolvimento urbanístico, aquele
que provavelmente dará origem à “cidade do turismo”.
A cidade do Funchal, à semelhança das outras cidades
insulares do século XV, foi implantada numa ampla baía com boas
condições como porto natural e com boa capacidade de defesa.
O seu núcleo primitivo, o de Santa Maria do Calhau,
localizava-se na zona Leste da baía. Este desenvolveu-se
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paralelamente à linha da costa, ao longo da uma rua que recebeu
o nome de Santa Maria. Com o crescimento do povoado surgiu
uma nova rua a Norte da primeira, igualmente paralela ao mar.
Estas duas ruas acabaram por constituir os eixos fundamentais
deste pequeno núcleo urbano, de onde saía perpendicularmente
uma série de pequenas ruas, travessas e becos.
O lugar do Funchal depressa cresceu sendo elevado à
categoria de vila e de sede de concelho por volta de 1450.
Com o início da exportação de açúcar chegaram novos
povoadores e a vila começou a expandir-se para Oeste, em
direcção à Ribeira de João Gomes.
A partir de 1466 começam a distinguir-se duas áreas
urbanas na vila do Funchal – a nascente o povoado primitivo e a
poente, entre as três ribeiras, as fundações da futura “cidade do
açúcar”. Esta nova área de expansão, que ocorreu sobretudo
entre a Ribeira de João Gomes e a Rua do Sabão, prolongava-se
para Norte ao longo da margem direita da Ribeira de Santa Luzia.
Nesse momento já a Rua de Santa Maria tinha sido
prolongada, a partir da Ribeira de João Gomes, pela Rua dos
Mercadores até praticamente Santa Catarina, no lado ocidental da
baía, acompanhando o traçado da praia.
Em finais de quatrocentos a vila estava positivamente
instalada entre as ribeiras de João Gomes, Santa Luzia e São
João. Com um número cada vez maior de ruas construídas a
Norte da Rua dos Mercadores, perpendiculares a esta e em
direcção à zona fabril, começava a definir-se o centro da vila junto
ao Campo do Duque. Em 1486, o Duque D. Manuel mandou
construir neste campo a Igreja do Funchal, uma praça, a Câmara e
o Paço de Tabaliães, o que acabou por estabelecer
definitivamente o centro da futura cidade. É à volta deste que
ainda hoje gravita toda a vida económica e social da cidade do
Funchal.
A 21 de Agosto de 1508 a vila do Funchal era elevada à
categoria de cidade. No apogeu da era do açúcar a cidade
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encheu-se de moradias e edifícios faustosos e de templos com
traços arquitectónicos de estilo mudéjar insular.
A partir de meados do século XVI teve início um novo ciclo
económico, o do vinho, que trouxe uma nova dinâmica à cidade.
Nos finais de quinhentos, o Funchal era uma cidade que não só se
tinha expandido para além da Rua do Sabão ao longo da costa,
mas também para Norte acompanhando o traçado das ruas
perpendiculares à linha da costa. Este novo sector da malha
urbana, com uma estrutura ortogonal regular, corresponde à
“cidade manuelina”, ficando no seu centro a Sé Catedral e a praça.
Na cidade quinhentista edifícios institucionais, igrejas,
residências e unidades fabris coexistiam no mesmo espaço. Hoje
ainda é possível testemunhar a imponência dos edifícios da época
sobretudo através da magnificência da Sé Catedral. Os seus
espaços públicos resumiam-se à Praça da Sé, à Praça do
Pelourinho, ao Largo do Poço e a alguns adros de igrejas que
eram utilizados para convívio social, actos religiosos e ainda para
a realização de tarefas colectivas.
Dessa cidade permanece ainda hoje o formato de alguns
quarteirões no actual centro, o traçado e o nome de ruas e alguns
testemunhos da cidade fortificada. De facto, esta foi uma cidade
com fortes, fortalezas e muralhas. Contudo só em 1542 ficaram
concluídos o primeiro baluarte e os muros de defesa da frente
mar, sendo certo que em 1553 a fortaleza da cidade ainda se
encontrava em construção. Após um violento ataque por parte de
corsários franceses em 1566, é dado início a uma nova fase da
fortificação da cidade. Na realidade, só após o Regimento da
Fortificação de D. Sebastião, de 1572, é que são empreendidas
uma série de obras que deram origem a um sistema defensivo
efectivo.
Ao longo dos séculos XVII e XVIII o crescimento da cidade
sofreu um abrandamento. Como podemos observar na planta
síntese (Mapa nº 17) a cidade oitocentista (a cor-de-laranja)
parece ter ficado “cristalizada” no espaço ocupado pela “cidade do
açúcar” (a amarelo). O crescimento ocorreu sobretudo para Norte,
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ao longo da Ribeira de Santa Luzia, e para Poente. Na realidade,
esta cidade foi melhorada nestes dois séculos tendo-se
adensando e consolidado. Os quarteirões preencheram-se e os
edifícios cresceram em altura, no entanto o traçado da malha
quinhentista manteve-se. Curiosamente os eixos estruturantes da
cidade mantiveram-se desde os finais de quatrocentos.
O século XVII caracterizou-se principalmente pela
continuação do processo de fortificação da cidade, tendo sido
construídos nessa época a Fortaleza do Pico, a Fortaleza de São
Tiago, o Reduto da Alfândega e o Forte do Ilhéu ou de Nossa
Senhora da Conceição. A cortina marítima da cidade, entre o Forte
de São Filipe e a Fortaleza de São Tiago, foi também concluída.
No século seguinte as obras de fortificação continuaram, desta
feita com a edificação de vários fortes – o Novo, o da Penha de
França e o de São José –, com a ampliação do Forte de São
Tiago e, sobretudo, com obras de recuperação em diferentes
fortificações.
Mas nesta “cidade do vinho” surgiram ainda outras
edificações, de onde se destacam as grandes residências dos
senhores e dos comerciantes do vinho, e alguns dos edifícios mais
imponentes desta cidade – os edifícios do antigo Paço Episcopal,
do Colégio e da Igreja dos Jesuítas. São também desta altura as
torres “avista-navios”, uma forma muito subtil de manter um
contínuo olhar sobre a baía do Funchal.
A cidade oitocentista surge no Mapa nº 17 (a encarnado)
mais espraiada. Alargou definitivamente o seu limite,
ultrapassando os primeiros obstáculos que o relevo lhe impunha,
sobretudo para Oeste e para Norte. A abertura de ruas de ligação
ao resto da Ilha parece ter sido determinante para a expansão da
urbanização.
Neste século, à semelhança dos anteriores, continuou a
haver uma densificação do centro da cidade, surgindo um novo
fenómeno que foi o da proliferação de pequenas habitações nas
áreas envolventes mais elevadas da cidade. Apesar disso, a
cidade manteve os seus eixos estruturantes iniciais, continuando a
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crescer para Oeste, paralelamente à linha da costa, e para Norte
ao longo de ruas mais ou menos paralelas ao traçado das ribeiras.
Ironicamente todo o grande investimento feito no sistema
de fortificação da cidade nos séculos precedentes, foi nesta época
posto em causa com o abandono de alguns fortes e a demolição
de grande parte das muralhas e das portas da cidade.
Houve, sem dúvida, uma aposta nos espaços públicos da
cidade. Surgiram novas áreas verdes, o Jardim Municipal e um
pequeno jardim a Oeste da Praça da Constituição, e a Praça da
Rainha foi prolongada.
Em consequência de um novo ciclo económico – o do
turismo terapêutico – a cidade ganhou “feições cosmopolitas”,
onde os “doentes” estrangeiros passeavam pelas suas ruas e
praças.
No último quartel deste século a cidade não só foi dotada
de um Porto de Abrigo como também recebeu um sistema de
iluminação eléctrica, o que veio alterar para sempre o ambiente
urbano do Funchal.
Com o século XX chegou o automóvel. A cidade do
Funchal nunca mais seria a mesma. Este meio de transporte,
aliado ao esforço para melhorar a rede viária da cidade, fez
aumentar a mobilidade das pessoas e consequentemente o
alargamento dos limites urbanos.
O Funchal cresceu e expandiu-se através de um processo
de dispersão de pequenas moradias que, com o decorrer do
século, acabaram por se espalhar desordenadamente por todo o
seu anfiteatro.
Embora a cidade tenha crescido em diversas direcções,
como se pode ver pela mancha roxa do Mapa nº 17, continuou a
acontecer uma densificação e compactação do seu centro, com a
colmatagem dos espaços vazios e o preenchimento cerrado das
frentes dos arruamentos com novas edificações.
A cidade novecentista foi palco de várias intervenções
urbanísticas: ampliação do porto do Funchal; abertura de novas
avenidas; criação de novos parques e jardins; construção de
218
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complexos multifuncionais; apetrechamento do espaço urbano
com infra-estruturas e equipamentos, de acordo com as
necessidades do momento e futuras. A estas intervenções
urbanísticas ficaram associados nomes como Ventura Terra,
Fernão de Ornelas, Rafael Botelho, Óscar Niemeyer e outros que,
devido à actualidade dos acontecimentos, estão presentes na
memória de todos.
O grosso das acções urbanísticas que marcaram a cidade
novecentista decorreu de projectos, de planos e de pessoas que
num esforço conjunto conseguiram, passo a passo, dar uma nova
imagem à cidade sem que no entanto esta tenha perdido a sua
identidade.
No centro da cidade do Funchal continua a acontecer um
processo de consolidação lento, mas contínuo, embora a grande
parte da sua malha urbana tenha sido definida há muito.
Os limites da cidade contemporânea ultrapassaram
definitivamente a nossa área de estudo, que hoje abrange apenas
a baixa da cidade. Uma observação atenta de toda a cidade
mostra-nos que esta continua a estender-se para Oeste, ao longo
da costa, e para Norte, numa nítida sequência e prolongamento
dos principais eixos estruturantes da “cidade do açúcar”.
No centro da actual cidade continuam gravados na malha
urbana os vestígios das “cidades” que a precederam no tempo,
persistindo edifícios, fortificações, ruas e praças, memórias que
nos foram legadas e que transmitem parte da identidade desta
cidade. Algumas destas permanências constituem ainda
importantes pontos de referência na cidade, guiando locais e
estrangeiros através de percursos cheios de memórias.
No entanto, a cidade continua a modificar-se aumentando o
legado das gerações futuras.
Hoje, ao percorrermos o centro do Funchal, é visível uma
maior abertura da cidade ao espaço exterior. Há uma preocupação
crescente com o bem-estar de todos aqueles que a utilizam e os
espaços públicos são alvo de uma atenção redobrada.
219
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
A oferta de espaços multifuncionais tem vindo a aumentar,
assim como o número e a diversidade dos acontecimentos sociais.
Contudo, a utilização da cidade continua, principalmente ao fim do
dia, a ser pontual e intermitente.
A procura de uma nova imagem para o centro do Funchal
tem conduzido à sua modernização. Hoje a cidade tornou-se mais
competitiva e apta para receber uma maior diversidade de
utilizadores.
A identidade da cidade parece-nos protegida de momento,
havendo uma preocupação crescente com a preservação das
“existências” e a reabilitação, conservação e divulgação do
património arquitectónico e cultural. Imóveis de interesse público,
espalhados um pouco por toda a cidade, têm sido ocupados por
instituições públicas e privadas ou transformadas em museus e
espaços lúdicos. Alguns foram também aproveitados para fins
turísticos.
Mas a identidade da cidade do Funchal está ainda
associada ao mar e às suas ribeiras. O certo é que a cidade, o
mar e as ribeiras há muito que se tornaram indissociáveis,
continuando hoje a não ser possível pensar no Funchal sem lhe
associar estes dois elementos.
Na verdade, constatamos que a água e o verde desta
cidade, associado ao espaço de memórias e de referências da
malha urbana, conferem ao Funchal uma imagem genuína e
única.
Mas o futuro não perdoa e traz importantes desafios à
cidade quer ao nível da competitividade de outras cidades quer em
termos do bem-estar dos seus utilizadores e da qualidade do seu
espaço.
É fundamental que o Funchal seja uma cidade mais
flexível, atractiva e vivida. Para isso será necessário valorizar e
reforçar a identidade da cidade e continuar a qualificar a sua
imagem. É ainda necessário dar atenção à diversidade e
220
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
polivalência dos espaços, à continuidade dos percursos e à
qualidade do ambiente.
Neste sentido propomos: uma restituição de toda a frente
mar e da foz das ribeiras à cidade e a todos aqueles que a
utilizam, através da criação de um espaço público multifuncional
que valorize e revitalize toda a frente da baía do Funchal; a
diversificação das funções dos diferentes espaços da cidade,
sobretudo dos espaços públicos, com o intuito de criar “percursos
de continuidade” na cidade; uma redução do tráfego automóvel
não só através do incentivo à utilização dos transportes públicos,
mas também pela diversificação dos mesmos; a criação de
“linhas” centrais de passagem para automóveis particulares afim
de facilitar o acesso ao centro da cidade.
O presente estudo sobre a Morfologia Urbana da cidade do
Funchal e os seus espaços públicos estruturantes é um trabalho
de síntese sobre a morfologia urbana da cidade do Funchal que
abrange um período de quinhentos anos.
Conscientes da dimensão do período em análise e do
tema a que nos propusemos investigar reconhecemos que o
mesmo apresenta lacunas.
Salientamos desde já dois assuntos que merecem um
estudo mais aprofundado: a parte teórica do tema aqui tratado e,
ainda, a análise dos diversos espaços públicos da cidade em cada
um dos séculos estudados. Isoladamente, dariam excelentes
temas de pesquisa.
A continuidade dos percursos na cidade do Funchal é um
outro assunto igualmente interessante e extremamente útil para
esta cidade, que gostaríamos de ter aprofundado. Para a sua
concretização seria necessário diagnosticar as debilidades dos
diversos espaços da cidade, compreender a sua interligação e
interacção e conhecer o modo como os diferentes grupos de
pessoas apreendem, sentem e utilizam esses mesmos espaços.
Este assunto ultrapassa o objecto do presente trabalho.
Certamente, num futuro próximo investigá-lo-emos.
221
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
No decurso da preparação e realização deste trabalho
deparamo-nos com algumas dificuldades sobretudo ao nível da
elaboração dos mapas que aqui são apresentados. Concertar
Plantas da Cidade do Funchal elaboradas nos séculos XVI, XVIII e
XIX sobre o ortofotomapa da Cidade do Funchal de 2004 não foi
propriamente uma tarefa fácil. Foram muitas semanas de
pequenos avanços e recuos, que acabaram por se traduzir num
trabalho entusiasmante e que a cada dia revelava um novo
pormenor.
Acreditamos que esta nossa síntese da morfologia urbana
do Funchal pode contribuir de alguma forma para um maior e
melhor conhecimento desta cidade que, em 2008, festeja os seus
quinhentos anos.
Para concluir queremos salientar o gosto sentido na
realização deste trabalho, o qual deixou em nós uma vontade
sincera de conhecer ainda mais esta bela cidade e de constituir
matéria de estudo os temas que, por saírem do âmbito e do
propósito deste trabalho, não foram aqui objecto de análise.
222
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
Referências bibliográficas
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Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
230
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Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
Lista de abreviaturas
Abreviaturas
Significado
A. R. M.
Arquivo Regional da Madeira
B. N.
Biblioteca Nacional
C. M. E.
Câmara Municipal de Esposente
C. M. F.
Câmara Municipal do Funchal
C. M. F. F.
Casa Museu Frederico de Freitas
D. R. A. C.
G. E. A. E. M. / D. I.
E.
Direcção Regional dos Assuntos
Culturais
Gabinete de Estudos Arqueológicos da
Engenharia Militar / Direcção de Infraestruturas do Exército
G. I. G.
Gabinete de Informação Geográfica
M. Q. C.
Museu Quinta das Cruzes
P. D. M.
Plano Director Municipal
R. A. M.
Região Autónoma da Madeira
R.B.
Renato Barros
S. G. L.
Sociedade de Geografia de Lisboa
S. R. E. C.
Secretaria Regional da Educação e
Cultura
231
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Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
232
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
Bibliografia
 Citada:
a)
Sobre a Cidade do Funchal
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de Pombal a Filipe Folque 1750-1900: o património histórico
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XVII – imagens de Portugal e Ilhas Atlânticas. Lisboa:
Comissão
Nacional
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as
Comemorações
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Descobrimentos Portugueses.
240
MALHA URBANA Nº 9 – 2010
Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt
Índice remissivo
 Cartografia
Ortofotomapa do centro do Funchal, 2004
Plan of the Town of Funchal, Captain Skinner, 1775
Planta da Cidade do Funchal, Mateus Fernandes, 1570
Planta da Cidade do Funchal que representa o estado em
que ficou depois do aluvião de 9 de Outubro de 1803,
Brigadeiro Oudinot, 1804
Planta da Cidade do Funchal representando as fortificações
antigas e os projectos de melhoramento, Paulo Dias de
Almeida, s. d.
Planta da Cidade do Funchal e seus arredores, Engº Carlos
Maia, Engº Adriano Trigo e Engº Annibal Trigo, 1894
Planta da Cidade do Funchal, 1948-50
Planta da Cidade do Funchal, 1967-69
Planta da Cidade do Funchal, 1990
Planta geral de melhoramentos para o Funchal, Arqº
Ventura Terra, 1915
 Iconografia – desenhos, gravuras e litografias
Fortaleza de São João do Pico (1654)
Fortaleza de São Lourenço (1654)
Fortaleza de São Tiago (1654)
Fortaleza Nova da Praça (1654)
Funchal Cathedral, from the beach, 1848-49, Portão
dos Varadouros
Reduto da Alfândega (1654)
Rua da Carreira, Portão da Carleira
View near the Praça da Constituição, 1850
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 Iconografia - fotografias
Aker Brigge, Oslo
Antigo Colégio dos Jesuítas
Antigo Paço Episcopal
A Sé Catedral vista da Praça da Constituição
A torre da Sé vista do cais da Cidade
Cais da Cidade
Cais da Cidade, início do século XX
Capela de Santa Catarina
Cortina da cidade, Hotel Porto Santa Maria
Desportos urbanos – skate, patins em linha, BMX
Edifício da Antiga Alfândega do Funchal
Estrada da Pontinha
Forte de Nossa Senhora da Conceição
Forte de São Tiago
Foz das ribeiras de Santa Luzia e de João Gomes
Igreja do Colégio
Largo da Rua das Fontes
Largo de São Sebastião
Largo da Sé Catedral
Largo do Pelourinho
Lojas na Rua do Aljube
Mercado D. Pedro V
Mercado dos Lavradores
Oslo
Palácio da Câmara – Câmara Municipal do Funchal
Palácio da Rua do Esmeraldo
Palácio de São Lourenço
Palácio de São Pedro
Panorama da Praça da Autonomia
Panorama da zona Este do centro da cidade do
Funchal
Panorama da zona Noroeste do centro da cidade do
Funchal
Panorama da zona Oeste do centro da cidade do
Funchal
Panorama do centro da cidade do Funchal
Passeio da Avenida Arriaga
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Passeio da Avenida do Mar
Praça da Constituição
Praça de São Pedro
Praça do Município
Pormenor da muralha de protecção da Ribeira de
Santa Luzia
Pormenor de edifícios na Travessa do Forno
Pormenor do Jardim Almirante Reis
Porto do Funchal, em 1888
Ribeira de João Gomes
Ribeira de Santa Luzia
Ribeira de Santa Luzia, em 1927
Ribeira de Santa Luzia, em 2007
Rua da Praça, início do século XX
Rua do Bispo
Rua do Sabão
Sé Catedral
Solar de Dona Mécio
Tabuleta da Rua da Carreira
Tabuleta da Rua de Santa Maria
Transporte de passageiros entre o cais da cidade e os
barcos
Travessa do Forno
Torreão Leste da Fortaleza de São Lourenço
Torre “avista-navios” a Sul da Sé Catedral
Torre “avista-navios” do Instituto do Vinho da Madeira
Torres “avista-navios” na Rua do Bispo
Torre da igreja de Santa Clara
Torre da igreja de São Pedro
Torre da Sé Catedral
Varadouros de madeira rotativos
Vista aérea sobre a Avenida do Mar
Vista aérea sobre o Jardim Almirante Reis
Vista aérea sobre o Porto do Funchal
Zona do Lido
Zona dos Piornais
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
Nomes
Albarello, L.
Almeida, Paulo Dias de
Aragão, António
Barthes, Roland
Bauret, Gabriel
Beaujeu-Garnier, Jacqueline
Botelho, José Rafael
Caldeira, Abel Marques
Carita, Rui
Carvalho, Feliciano António
Matos e
Costa, João Faria da
Duque D. Manuel I
Embleton, Dennis
Faria, M.
Fernandes, Manuel
Fernandes, Mateus
França, Isabella de
Frutuoso, Gaspar
Gauthiez, B.
Jacobs, Jane
João, Bartolomeu
Jorge, Jerónimo
Kopke, Eduardo Augusto
Lamas, José
Lynch, Kevin
Maia, Carlos
Nepomuceno, Rui
Niemeyer, Óscar
Ornelas, Fernão de
Oudinot, Brigadeiro Reynaldo
Pelletier, J.
Ramos, Carlos
Raposo, Francisco
Real, Joaquim da Costa
Rossi, Aldo
Salgueiro, Teresa Barata
de
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Saraiva, José Hermano
Sarmento, A.
Silva, Fernando Augusto da
Sitte, Camillo
Skinner, Capitão Andrew
Teixeira, Manuel
Terra, Ventura
Trigo, Adriano
Veríssimo, Nelson
Zevi, Bruno
Zurara, Gomes Eanes da
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Anexo documental de imagens
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