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Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias A Morfologia Urbana da Cidade do Funchal e os seus espaços públicos estruturantes Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Lisboa, 18 de Julho de 2007 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 2 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Agradecimentos O presente trabalho sobre a Morfologia Urbana da Cidade do Funchal e os seus espaços públicos estruturantes é fruto de uma apurado trabalho de pesquisa, de campo e de elaboração de cartografia. A sua realização só foi possível com o apoio de várias pessoas. Sendo uma dissertação de mestrado, começo por agradecer a todos aqueles que, neste âmbito, tiveram um papel fundamental para a sua concretização: - ao Professor Doutor Mário Moutinho, meu orientador, pela motivação que me soube transmitir, as críticas e sugestões que fez e o empenho que demonstrou desde o primeiro momento; - aos responsáveis e aos técnicos do Arquivo Regional da Madeira; do Arquivo Histórico Ultramarino; do Gabinete de Planeamento Estratégico e do Gabinete de Informação Geográfica da Câmara Municipal do Funchal; da Sociedade Portuguesa de Geografia; da Biblioteca Pública Regional da Madeira; Biblioteca Nacional; da Casa Museu Frederico de Freitas e do Museu Quinta das Cruzes pela disponibilidade e ajuda que me dispensaram aquando da pesquisa de bibliografia, cartografia e iconografia sobre a Cidade do Funchal; - ao Mestre Agostinho Lopes pela documentação que gentilmente cedeu para consulta. Agradeço de um modo especial ao Agustin Vieira pelo seu apoio ao nível gráfico e à Ana Brás e à Sílvia Tranquada, amigas e professoras da disciplina de Português, pela amabilidade e paciência de ler e corrigir todo este trabalho. Não posso dispensar um especial agradecimento à Madalena Ferreira, minha amiga, pelo apoio que me prestou. Finalmente, um muito obrigada à minha família e, em especial, ao João e ao Vitor, pela compreensão da minha pouca disponibilidade e pelo incentivo e apoio que me dispensaram ao longo destes meses. 3 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 4 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Resumo O presente trabalho sobre a Morfologia Urbana da Cidade do Funchal e os seus espaços públicos estruturantes tem como objecto o estudo das variações da forma da cidade do Funchal e dos seus elementos morfológicos e, ainda, dos fenómenos que lhe deram origem nos últimos quinhentos anos. Com base em cartografia elaborada a partir de Plantas da Cidade do Funchal de diversas épocas concertadas sobre o ortofotomapa do Funchal de 2004, foi feita a análise da morfologia urbana da cidade. A cidade do Funchal, à semelhança de outras cidades insulares portuguesas do século XV, está implantada numa ampla baía, tendo-se desenvolvido a partir de um núcleo primitivo localizado junto ao mar, no lado Este da mesma. Desde o século XVI a cidade tem vindo a expandir-se gradualmente segundo dois eixos estruturantes fundamentais, um paralelo à linha da costa, no sentido Este-Oeste e, outro, perpendicular ao mar, em direcção a Norte, acompanhando de um modo geral o traçado das três ribeiras que a atravessam. Hoje a cidade ocupa todo o anfiteatro do Funchal, continuando a crescer sobretudo para Ocidente. Na malha urbana do centro do Funchal estão gravados os vestígios das “cidades” que a precederam no tempo. Estas memórias são parte da identidade da cidade e importantes pontos de referência que orientam locais e estrangeiros ao longo dos diferentes espaços desta urbe. Hoje é importante que o Funchal se torne mais flexível, atractivo e vivido, sendo necessário valorizar e reforçar a sua identidade e continuar a qualificar a sua imagem. 5 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Abstract The present work about “The Urban Morphology of the City of Funchal and its structural public spaces” aims the study of the variations of the form of the city of Funchal and of its morphological elements and, yet, of the phenomenon that gave origin to it in the last five hundred years. The analyse of the urban morphology of the city was done, having as a base, the cartography elaborated from the maps of the city of Funchal of different times, adjusted to the ortophotomap of Funchal of 2004. The city of Funchal, as other insular cities of the XV century, is situated in a large bay, having developed from a primitive nucleus located close to the sea, in the East side . Since the XVI century the city has been expanding gradually in two structural fundamental axes: one parallel to the line of the coast, in the EastWest direction, and other perpendicular to the sea, in direction to the North, following, generally, the track of the three streams that cross it. Today, the city occupies all the amphitheatre of Funchal, continuing to grow, especially to the west. In the urban mesh of the city of Funchal are still visible the remainings of the “cities” that preceded it .These memories are part of the identity of the city and important points of reference that guide home people and foreigners through the different places of this city. Today it is important that Funchal becomes more flexible, attractive and living. It is necessary to value and reinforce its identity and continue to qualify its image. 6 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Índice Índice de figuras Índice de mapas Introdução 13 0.1 A morfologia urbana da Cidade do Funchal e os seus espaços públicos estruturantes 0.2 Fontes documentais Capítulo I – A cidade e a sua morfologia urbana 27 1.1 A cidade 1.2 A morfologia urbana 1.2.1 A forma urbana e a sua análise 1.2.2 Os espaços públicos urbanos 1.3 A morfologia urbana das cidades portuguesas 1.3.1 A forma urbana das cidades portuguesas 1.3.2 Os primeiros núcleos urbanos construídos fora do território continental – o exemplo das cidades das Ilhas Atlânticas Capítulo II – A cidade do Funchal e a sua morfologia urbana 2.1 De lugar a cidade do Funchal 2.2 Cinco séculos de cidade – transformações e permanências 2.2.1 O Século XVI: a “Cidade do Açúcar” 2.2.2 O Século XVII – XVIII: a “Cidade do Vinho” 2.2.3 O Século XIX 2.2.4 O Século XX 7 57 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Capítulo III – O Funchal do século XXI – uma cidade voltada para o ambiente. 171 3.1 A natureza e a cidade do Funchal 3.2 Os desafios 3.3 Uma cidade para o futuro Conclusão 213 Referências bibliográficas 223 Referências Cartográficas 229 Lista de abreviaturas 231 Bibliografia 233 Índice remissivo: Cartografia Iconografia – desenhos, gravuras e litografias Iconografia - fotografias Nomes 241 Anexo documental de imagens I. Cartografia II. Iconografia – desenho, gravura e pintura 247 8 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Índice de figuras Figuras 1. A semelhança das características morfológicas das cidades insulares. 2. Planta do Funchal, Mateus Fernandes (c. 1570). 3. Permanências da cidade quinhentista. 4. A magnificência da torre da Sé Catedral. 5. Fortificações quinhentistas. 6. Permanências da cidade "barroca". 7. Permanências seiscentistas e setecentistas. 8. Permanências de edificações da "cidade do vinho": as torres “avista- navios”. 9. Permanências da cidade fortificada. 10. As marcas de uma cidade voltada para o turismo – a proliferação de letreiros escritos em vários idiomas nas ruas da cidade do Funchal. 11. Memória das muralhas de protecção na Ribeira de Santa Luzia e na Ribeira de João Gomes. 12. Muralhas de protecção da Ribeira de Santa Luzia – permanências do século XIX. 13. Portas da Cidade o Portão dos Varadouros. 14. Planta da Cidade do Funchal, atribuída a Paulo Dias de Almeida, primeiro quartel do século XIX. 15. O porto do Funchal em 1888 – ligação do Ilhéu de São José ao de Nossa Senhora da Conceição. 16. As ruínas do Convento de São Francisco, com a Sé Catedral ao fundo e a Fortaleza de São Lourenço à direita. 17. Memórias do Funchal do início do século XX. 18. Memória de um passeio desde o Cais da Cidade até à Praça da Rainha. 19. Memória de um passeio desde o Cais da Cidade até à Praça de São Pedro. 20. Memória de um passeio na Avenida Arriaga. 9 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 21. Memória de um passeio desde o Cais da Cidade até à Ponte Nova. 22. Marcas de uma época 23. Zona dos Piornais, do lado sul da Estrada Monumental. 24. Zona do Lido, a sul da Estrada Monumental. 25. O final de uma manhã de Domingo no centro do Funchal. A atracção de uns espaços. 26. Permanências que se preservaram. 27. Pontos de referência na cidade do Funchal. 28. A Ribeira de Santa Luzia. 29. A Avenida do Mar ponto de ligação entre a cidade e o mar. 30. O passeio da Avenida do Mar. 31. Depois do muro a surpresa. 32. Oslo, Aker Brigge. 33. O verde e as memórias da cidade. 34. A zona portuária do Funchal. 35. Zona portuária do Funchal. 36. A frente mar da Avenida do Mar. 37. Desportos urbanos. 38. Caminhar e andar de bicicleta são duas actividades desportivas que madeirenses, de diferentes faixas etárias, têm vindo a adoptar nos últimos tempos. 39. Comércio e serviços existentes na frente mar da Avenida do Mar. 40. Ruas que se desertificam ao fim da tarde e ao fim de semana. 41. A Praça da Autonomia. 42. A Praça do Pelourinho. 43. O Jardim Almirante Reis. 44. Pormenor do Jardim Almirante Reis. 45. Autocarros de várias empresas junto à Praça da Autonomia. 46. Transporte marítimo de passageiros na cidade de Oslo, Noruega. 10 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Índice de mapas Mapas Mapa A – Área de estudo Mapa 1 – Planta da Cidade do Funchal, Mateus Fernandes (1570) Mapa 2 – Planta da Cidade do Funchal: 1570 e 1775 Mapa 3 – Plan of the town of Funchal, Capitan Skinner (1775) Mapa 4 – Iluminação pública em 1895 Mapa 5 – Planta da Cidade do Funchal: 1775 e 1894 Mapa 6 – Planta da Cidade do Funchal que representa o estado em que ficou depois do aluvião de 9 de Outubro de 1803, Brigadeiro Oudinot (1804) Mapa 7 – Planta da Cidade do Funchal representando as fortificações antigas e os projectos de melhoramento, Paulo Dias de Almeida (s. d.) Mapa 8 – Planta da Cidade do funchal e seus arredores, Engº Carlos Maia, Engº Adriano Trigo e Engº Annibal Trigo (1894) Mapa 9 – Planta da Cidade do Funchal: 1894 e 1990 Mapa 10 – Plano Geral de melhoramentos para o Funchal, Arqº Ventura Terra (1915) Mapa 11 – Planta da Cidade do Funchal (1948-50) Mapa 12 – Planta da Cidade do Funchal (1967-69) Mapa 13 – Planta da Cidade do Funchal (1990) Mapa 14 – Recursos existentes Mapa 15 – Área a potencializar Mapa 16 – Acessibilidade e mobilidade Mapa 17 – Planta síntese 11 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 12 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt “Hoje, desenhar a cidade e nela intervir é também compreender e conhecer a cidade antiga e a cidade moderna, as suas morfologias e processos de formação.” (LAMAS, José M. Ressano Garcia, pág. 28) Introdução A cidade ... Todos a conhecem. Amada por uns e odiada por outros. Lugar de encontros e de desencontros; de memórias e de história; do conhecimento e de divertimento; de escolhas e de trocas. Palco de transformações e interacções. Gosto da cidade, sobretudo de a observar. Ela transformase, cria-se e recria-se a cada dia. Em cada esquina há uma descoberta, uma forma, uma memória, um “olhar” indiscreto, uma história de vida. Enfim, na cidade há vidas, de ontem e de hoje, que se cruzam e misturam, acabando por se renovar e recriar. A cidade é um teatro com múltiplos actores e espectadores. Enquanto espectadora da cidade observo-a incessantemente para a conhecer e interpretar. Procuro compreender as suas formas, os seus lugares, os seus espaços. Comparo-a com o seu passado e com o seu semelhante. Analisoa para actuar. O estudo que aqui se apresenta é sobre a cidade do Funchal, os seus lugares e espaços, os seus actores, os cantos e recantos onde se escondem e guardam as memórias e os testemunhos da “cidade do açúcar”, da “cidade do vinho” e de todas as que lhes sucederam e que se transformaram na actual Cidade do Funchal. 13 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Na realidade, no actual centro da cidade do Funchal, permanecem ainda os traçados das ruas quinhentistas e seiscentistas, os edifícios e as torres “avista- navios” de setecentos, as muralhas de protecção das ribeiras do século XIX e a “modernidade” das avenidas e dos parques do século XX. Uma história de memórias que testemunham o crescimento e a expansão da cidade desde o pequeno núcleo urbano em Santa Maria até às avenidas localizadas a Oeste, junto à Ribeira de São João. A cidade tem mudado e com ela a sua imagem. Apesar do traçado das ruas e da forma dos quarteirões permanecerem quase imutáveis ao longo destes cinco séculos, a verdade é que ela vem se transformando sobretudo com a construção de edifícios que, século após século, a vão preenchendo. Hoje, com um “ar” mais cosmopolita, os seus espaços “vazios” há muito abandonados e esquecidos vêm sendo transformandos em praças e jardins, que aos poucos devolvem a cidade aos seus habitantes. 01. A morfologia urbana da cidade do Funchal e os seus espaços públicos estruturantes O objecto deste estudo é a morfologia urbana da cidade do Funchal e os seus espaços públicos estruturantes. O conhecimento e compreensão da morfologia urbana, ou seja, das variações da forma da cidade, dos seus elementos morfológicos, e dos fenómenos que lhe deram origem, é fundamental para uma intervenção urbanística consciente e inovadora. Assim, neste estudo, que abrange o actual centro da cidade do Funchal, foi dada especial atenção aos elementos morfológicos da cidade, de onde se destacam os espaços públicos – a rua e a praça. Estes elementos que ligam os vários espaços e partes da cidade e que lhe dão continuidade, estão directamente relacionados com o seu processo de formação e de crescimento. Além disso, o seu carácter de permanência, que lhes permite 14 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt resistir às transformações urbanas, constitui uma mais valia para o estudo e a compreensão da cidade. Esta análise da morfologia urbana da cidade do Funchal e dos seus espaços públicos estruturantes abrange um período de 500 anos. Período cujos limites coincidem com a elevação da vila do Funchal à categoria de cidade – em 21/08/1508 – e a comemoração dos seus quinhentos anos – 21/08/2008. Numa primeira fase, foi feita uma investigação a nível da história desta cidade, o que permitiu identificar e analisar os momentos mais significativos do seu crescimento e transformação. Posteriormente, efectuou-se um levantamento e uma recolha de documentos cartográficos e iconográficos em arquivos, bibliotecas e museus da Região Autónoma da Madeira e do Continente –Arquivo Regional da Madeira, Arquivo Histórico Ultramarino, Gabinete de Informação Geográfica da Câmara Municipal do Funchal; Sociedade Portuguesa de Geografia; Biblioteca Pública Regional da Madeira, Biblioteca Nacional, Biblioteca Pública Municipal do Porto; Museu Quinta das Cruzes e Casa Museu Frederico de Freitas –, os quais foram utilizados como uma das bases fundamentais para a sustentação do trabalho de investigação. É de salientar que neste estudo privilegiou-se como fontes primárias de investigação a utilização de documentos materiais, não escritos, tais como cartografia e iconografia – pintura, gravura, desenho e fotografia –, que foram conjuntamente e dialecticamente complementados com diferentes documentos escritos, sobre as quais falaremos mais à frente. Seguiu-se um trabalho de campo para a identificação de permanências, na cidade contemporânea, quer ao nível de traçados e de espaços públicos, quer ao nível de “testemunhos” edificados referentes aos momentos mais marcantes do crescimento e da transformação da cidade, e que se traduziu fundamentalmente num trabalho fotográfico. 15 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Identificados os momentos mais significativos do desenvolvimento da cidade, encontradas as fontes documentais, em nosso entender, mais adequadas ao apoio e à sustentação da nossa tese e recolhidas as fontes cartográficas e iconográficas, passou-se à fase de elaboração da cartografia caracterizadora da morfologia urbana da cidade do Funchal nos últimos cinco séculos. Para este estudo foram elaborados vários mapas, onde foram concertadas plantas da Cidade do Funchal de diferentes épocas sobre o ortofotomapa de 2004, o qual constituíu a nossa base de trabalho. Este foi um dos nossos principais desafios, que exigiu muitas horas de dedicação, uma vez que algumas dessas plantas, sobretudo as dos séculos XVI, XVIII e XIX, apresentavam não só escalas com unidades distintas, mas sobretudo inúmeras discrepâncias ao nível de distâncias entre diferentes pontos da cidade. Saliente-se no entanto que estas diferenças encontradas são perfeitamente compreensíveis tendo em atenção a época em que estas plantas foram elaboradas, com métodos e técnicas de levantamento da cidade e de elaboração das cartas ainda pouco desenvolvidos. Além disso, é preciso ter em atenção as deformações provocadas quer pelo material onde estas foram inicialmente desenhadas – seda, cambraia de linho e papel – quer pelo modo como algumas delas foram reproduzidas. Para melhor ajustar as cartas ao ortofotomapa foram considerados três pontos de referência – a Sé Catedral, a Fortaleza/Palácio de São Lourenço e o Forte do Pico – os quais ajudaram a compreender melhor os desvios existentes em cada uma das plantas. A elaboração destes mapas, embora inicialmente tenha parecido uma tarefa impossível, acabou por revelar-se um trabalho entusiasmante e que, aos poucos, foi revelando “cidades” que ainda hoje são perceptíveis na malha urbana do Funchal. 16 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt O presente trabalho encontra-se dividido em três capítulos: - Capítulo 1. A cidade e a sua morfologia urbana – constitui um capítulo introdutório onde se fala da cidade e da morfologia urbana, tema no qual o nosso trabalho se insere, e de conceitos a ele associados. Apresenta, ainda, uma abordagem geral da morfologia urbana das cidades portuguesas e dos primeiros núcleos urbanos construídos fora do território continental no século XV; - Capítulo 2. A Cidade do Funchal e a sua morfologia urbana – aborda a cidade do Funchal desde o século XVI até ao século XX. Organizado cronologicamente, este capítulo faz para cada século uma abordagem dos momentos mais significativos da história da cidade e a caracterização morfológica da sua estrutura urbana; - Capítulo 3. O Funchal do século XXI – uma cidade voltada para o ambiente – este capítulo, numa primeira parte, analisa a importância da natureza, sobretudo do mar e das ribeiras, nesta cidade, seguindo-se a identificação dos desafios que a actual cidade determina e a apresentação de algumas medidas para que esta possa no futuro ser mais flexível, atractiva e vivida. 02. Fontes documentais Pierre de Saint-Georges afirma que “não existe 1 investigação sem documentação” . Num trabalho de investigação, tem de existir “uma documentação de fundo ligada, por um lado, à formação teórica de base e, por outro, ao domínio de investigação 2 preciso em que estamos empenhados” . As fontes de documentação são diversificadas, sendo escolhidas em função do 1 Albarello, L. e outros. (1995). Práticas e métodos de investigação em Ciências Sociais. Lisboa: Gradiva, pág. 15. 2 Idem, op. cit., pág. 16. 17 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt trabalho que se pretende fazer. Saint-Georges alerta para a necessidade de haver complementaridade entre diferentes fontes, salientando que “é raro uma única fonte esgotar a investigação” e que, embora todas tenham o seu interesse, “a síntese do conjunto 3 é ainda mais rica” . Neste trabalho foram sobretudo as fontes documentais não escritas que constituíram a documentação de fundo ligada ao domínio da investigação. O estudo da morfologia urbana do Funchal apoiou-se fundamentalmente na cartografia urbana e na 4 iconografia . No entanto, apesar destas fontes constituirem uma excelente base de investigação, a sua validade só foi possível porque foram utilizadas conjuntamente e dialecticamente com diferentes documentos escritos. Na realidade, as fontes documentais escritas foram um importante e imprescindível aliado na nossa investigação. A existência de um vasto espólio documental sobre a cidade do Funchal, ainda que disperso por diferentes arquivos e bibliotecas, foi essencial para a nossa pesquisa. Contudo, foi exactamente este elevado número de documentação disponível que nos obrigou a restringir a nossa investigação. Correndo o risco de omitir alguma fonte primordial, fomos numa primeira fase listando as fontes documentais citadas em diferentes fontes bibliográficas e ouvindo a opinião de alguns especialistas. Posteriormente, após uma cuidada selecção, procurou-se consultar essas mesmas fontes, as quais constantemente nos remeteram para outras, que, por vezes, conduziram a novas pesquisas. Em termos de bibliografia consultada, que também é abundante, optamos em primeiro lugar, e sempre que possível, por autores da época ou por autores que 3 Idem, op. cit., pág. 21. 4 Se bem que a iconografia - pintura, gravura, desenho e fotografia – constituíu mais um “testemunho” que veio complementar a leitura da cartografia e de documentos escritos. 18 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt são de referência indispensável e unânime e, ainda, por autores especialistas em cada uma das diferentes épocas. Depois, foi nossa opção recorrer a revistas da especialidade e a trabalhos recentes, tais como textos publicados em revistas, actas de colóquios e teses de mestrado, os quais nos deram uma visão mais actualizada e diversificada do conhecimento das diferentes épocas. Assim, em termos de pesquisa em fontes originais, salientamos os documentos manuscritos do Archivo de Marinha e Ultramar, inventariado por Eduardo de Castro e Almeida, que se encontram no Arquivo Histórico Ultramarino e que abrangem o período compreendido entre 1613 e 1819; os documentos do Arquivo Histórico da Madeira, consultados no Arquivo do Funchal; e as Actas da Comissão Administrativa da Câmara Municipal do Funchal – de 1935 a 1946 – inventariadas por Agostinho Lopes e por ele gentilmente cedidas para consulta. Relativamente à bibliografia consultada, fundamental para a fundamentação, compreensão e caracterização da morfologia urbana da cidade do Funchal, temos a salientar os trabalhos dos seguintes autores: Abel Marques Caldeira, Alberto Vieira, Aldo Rossi, Álvaro Manso de Sousa, António Aragão, Bruno Zevi, Camillo Sitte, Fernando Augusto da Silva, Gaspar Frutuoso, Jacqueline Beaujeu-Garnier, Jane Jacobs, José Manuel Fernandes, Nélson Veríssimo, Manuel Teixeira, Rui Carita e Rui Nepomuceno. As publicações periódicas e outros documentos a que recorremos e valorizamos em termos de consulta, foram a revista Islenha, com publicação semestral; as palestras e conclusões das mesas redondas do Colóquio de Urbanismo realizado no Funchal em 1969; e as Actas do I, II e III Colóquio Internacional de História da Madeira, realizados, respectivamente, em 1986, 1989 e 1993. 19 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 5 O sítio da NESOS constituíu ainda uma importante base de dados de história das Ilhas Atlânticas. Saliente-se, no entanto, que para além destas fontes que acabamos de mencionar, existiram muitas outras, que se encontram indicadas na bibliografia, cuja leitura foi fundamental para aprofundar e consolidar alguns assuntos, para certificarmonos de situações passadas e para comparar opiniões. Algumas destas fontes foram, ainda, imprescíndiveis para a identificação e localização de referências e fontes documentais e bibliográficas com interesse para a nossa investigação. No entanto, perante o vasto número de documentação e bibliografia encontrada inquieta-nos o facto de poder ter prescindido ou de não ter dado a devida atenção a alguma fonte documental de referência ou de grande importância para uma maior valorização deste trabalho. As fontes documentais não escritas: a cartografia e a iconografia Desde há muito que a imagem tem uma importância relevante para o conhecimento. M. Faria e E. Pataca relembram que Demócrito, filósofo pré-socrático, já afirmava que “a construção da racionalidade se 6 baseia na apreensão da realidade através dos sentidos” . Com o Renascimento, esta concepção do conhecimento e da ciência volta a ser determinante, constituindo a representação visual uma forma de linguagem universal. A partir do século XVI surge uma “nova” ciência baseada na observação da natureza e na experimentação, de que é exemplo a História Natural que surge no 5 6 Cujo sítio é: www.nesos.net Faria, M., Pataca, E. M. (2005). Ver para Crer: a importância da imagem na gestão do Império Português no final de Setecentos. Anais da Universidade Autónoma de Lisboa, Série História, Vol. 9-10, 61-98, pág. 64. 20 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt século XVII, e onde era necessário ver antes de se nomear. “A construção de modelos imagéticos passou então a se incorporar à prática científica. Os cientistas passaram a aceitar que as imagens 7 visuais faziam parte da linguagem científica” . A expressão visual passou a ter uma finalidade informativa e didáctica, e o recurso à imagem vulgarizou-se sob a forma de mapas, de desenhos e pinturas e, posteriormente, sob a forma de fotografias. O uso destas e de outras imagens tem vindo a generalizar-se. E para além de recursos informativos e didácticos, complementares à escrita, passaram, com a chegada da fotografia, a ser um testemunho de autenticidade do passado, permitindo efectuar comparações e estabelecer pontes com o presente. A cartografia urbana e as diversas formas de iconografia da cidade tiveram um papel preponderante nesta investigação. Diversas cartas e plantas da cidade; pinturas, gravuras, desenhos e fotografias sobre o Funchal foram recolhidas em arquivos, bibliotecas e museus da Região Autónoma da Madeira e do Continente – Arquivo Geral da Câmara Municipal do Funchal, Arquivo Regional da Madeira, Arquivo Histórico Ultramarino; Sociedade Portuguesa de Geografia; Biblioteca Pública Regional da Madeira, Biblioteca Victor de Sá, Biblioteca Nacional; Museu Quinta das Cruzes e Casa Museu Frederico de Freitas -, e posteriormente alvo de uma análise atenta. A análise destas fontes documentais não escritas, de sucessivos momentos históricos, a sua comparação com outras actuais e com a própria cidade de hoje permitiu reconstruir e, ainda, formular hipóteses de reconstituição dos traçados urbanos no Funchal e da sua evolução no tempo. Resta ainda salientar que as informações que estas formas de expressão visual nos forneceram foram confrontadas e 7 Idem, op. cit., pág. 65. 21 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt cruzadas com consultados. diferentes tipos de documentos escritos A cartografia A cartografia constitui uma fonte documental priviligiada para a compreensão do passado urbano e para o estudo da morfologia urbana. Com o tempo, os mapas, as cartas e as plantas, que nos mostram os traçados urbanos das cidades ou de parte delas, assumem um valor documental, por vezes, muito superior aos objectivos imediatos para os quais foram elaboradas, passando a constituir importantes fontes de história. Na verdade, a análise de cartas, de diferentes épocas, de uma cidade permite não só analisar e comparar o traçado e a estrutura dos seus espaços, como também identificar e localizar ruas, praças, edifícios e, inclusive, a distribuição das diferentes funções na cidade. A sua leitura depende daquilo a que nos propomos estudar. De facto, a cartografia permite-nos fazer uma leitura a vários níveis e escalas, cada qual com o seu significado e informação. No caso da cartografia urbana, ela dá-nos, por exemplo, informações sobre a localização geográfica e as razões da escolha do sítio para a implantação dos núcleos urbanos; as características fundamentais dos traçados em sucessivos períodos históricos; a génese e os principais períodos de desenvolvimento; as sucessivas intervenções urbanísticas e a localização dos diferentes espaços da cidade. Interessa, ainda, salientar que a legenda e as ilustrações que acompanham a cartografia – por exemplo, desenhos e perfis de fortificações ou desenhos de paisagens urbanas – constituem preciosas fontes de informação, que enriquecem e complementam as cartas com elementos que de outra forma só através de outras fontes se poderiam ter acesso. 22 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Na utilização da cartografia como fonte de investigação torna-se necessário que tenhamos em atenção que esta, independentemente de ser uma representação da realidade ou de um projecto ou intenção a construir, mostra-nos antes de tudo a leitura do seu autor e/ou dos seus promotores. Por outro lado, a leitura, o significado e a interpretação que hoje fazemos de uma carta antiga é certamente diferente daquele que ela tinha quando foi elaborada. Assim, as informações que resultam da sua leitura e interpretação devem ser alvo de uma análise cuidada e de uma verificação e comparação com outras fontes. A iconografia A iconografia – pintura, gravura, desenho e fotografia –, à semelhança da cartografia, constitui também uma importante fonte documental da cidade. Ela dá-nos uma visão tridimensional das cidades, o que no fundo vai complementar a leitura da própria cartografia e dos documentos escritos. Contudo é importante aqui realçar que enquanto a pintura, a gravura e o desenho nos dão uma “realidade” que é muitas vezes o produto de uma recordação, da imaginação ou de uma reconstituição, a fotografia é “o real no 8 estado passado” , que resulta de um acto espontâneo que capta directamente o momento e o perpétua no tempo. Embora tenhamos privilegiado a fotografia neste trabalho, é importante salientar que recorremos algumas vezes a pinturas, gravuras e desenhos, enquanto “testemunhos” de lugares há muito desaparecidos na cidade. Esta nossa opção deve-se fundamentalmente ao facto da fotografia não só ser o registo de um momento real e particular, como também constituir, em si, um “certificado” desse mesmo 8 Barthes, R. (1980). A câmara clara. Lisboa: Edições 70, pág. 93. 23 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt momento. Relativamente a isto, Roland Barthes afirma que “aquilo que a fotografia reproduz até ao infinito só acontece uma vez” e que “nela, o acontecimento nunca se transforma noutra 9 coisa” . Lembrando, ainda, que “a essência da fotografia é ratificar 10 aquilo que representa” . A fotografia surguiu no século XIX, tendo sido anunciada em 1839 à Academia das Ciências como “a invenção de uma nova 11 forma de representação ou de reprodução do mundo” . Bauret faz questão de salientar que desde bem cedo tanto os cientistas como os geógrafos e os etnólogos encararam a fotografia como um documento seguro, pois permitia “mostrar numa imagem, exacta e minuciosa, uma infinidade de pormenores 12 que, por vezes, precisariam de várias páginas de descrição” , tornando-se “um novo instrumento” enquanto “informação visual”, contribuindo para o conhecimento e para a compreensão dos 13 acontecimentos . A fotografia passou assim a ser um testemunho fiável de uma realidade, que permite, mais tarde, recordar e atestar a existência dessa mesma realidade. Barthes diz que a fotografia “não inventa, é a própria autenticação” e que, por conseguinte, ela 14 dá-nos uma certeza que nenhum texto pode dar . Gabriel Bauret afirma que devido à fotografia “a pintura se afastou, pouco a pouco, de uma prática figurativa marcada por preocupações de ordem realista” porque “a fotografia se propôs substituí-la nesta tarefa, se ofereceu como uma forma de 9 Idem, op. cit., pág. 12. 10 Idem, op. cit., pág. 96. 11 Bauret, G. (1992). A fotografia: história, estilos, tendências e aplicações. Lisboa: Edições 70, pág. 41. 12 Idem, op. cit., pág. 25. 13 Idem, op. cit., pág. 23. 14 R. Barthes, op. cit., pág. 96. 24 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt representação mais segura, devido ao facto de o procedimento ser considerado cientificamente irrepreensível”, o que tem vindo a criar a ideia de que “o valor de um testemunho trazido pela fotografia não se discute; que este tipo de documento atesta a 15 veracidade dos factos” . Contudo, actualmente, com o avanço da tecnologia, isto poderá não ser verdade pois é possível construir e reconstruir uma fotografia, através da sua manipulação. Além disso, Bauret lembra ainda que “a simples escolha de um ponto de vista”, por parte do fotografo, “que seguidamente se materializa pelo enquadramento, constitui (...) um compromisso marcado com uma certa subjectividade” uma vez que “a decisão de mostrar esta ou aquela coisa num determinado instante” 16 depende do que o fotógrafo quer mostrar ou dar a conhecer . Apesar disto, a fotografia pode ser vista como um 17 documento que permite olhar e reviver o passado, compará-lo com o presente e contextualizar alguns momentos. A fotografia da cidade, por ser extremamente compósita e integrar uma série de pormenores, permite não só realizar várias leituras sobre o momento em que foi captada mas também compará-la com outros momentos e compreender o que mudou, o quanto mudou e como mudou. Relativamente a este aspecto, G. Bauret salienta que “há coisas que a fotografia sabe mostrar, mas que a pintura (...) não sabe ou não pode mostrar”, nomeadamente “determinados aspectos da vida, determinadas realidades do mundo”, onde “(...) a fotografia tem uma maneira, só dela, de fazer parar o tempo, 15 G. Bauret, op. cit., pág. 42. 16 Idem, op. cit., pág. 43. 17 Reviver no sentido de trazer à lembrança. Nesta perspectiva, R. Barthes lembra que a fotografia não restitui aquilo que é abolido pelo tempo, pela distância, mas sim confirma que aquilo que nela vemos existiu realmente (R. Barthes, op. cit., pág. 92). 25 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt sugerindo, por vezes, o antes e o depois do instante decisivo” através de um pormenor que memoriza. O autor lembra ainda que “existe a emoção que só a imagem fotográfica sabe produzir, ao mostrar uma pessoa, um sítio, uma coisa que já mudou ou que já desapareceu. Isto acontece, sem dúvida, porque a fotografia está associada no nosso espírito, mais ou menos confusamente, à ideia da morte. A fotografia mostra, pois, coisas que só ela é a única a poder mostrar (...)”, pois o seu “carácter relativamente espontâneo” sugere uma “representação da realidade mais brutal, 18 mais natural” . Neste sentido a fotografia é singular, original. Pelo que se disse, as fotografias por nós recolhidas em diferentes instituições e, ainda, aquelas que fizemos da cidade contemporânea ao longo destes nove meses, constituem um importante repositório de testemunhos da cidade do Funchal na segunda metade do século XIX e dos séculos XX e XXI. 18 G. Bauret, op. cit., pág. 114 e 115. 26 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Capítulo I – A cidade e a sua morfologia urbana 1.1 A cidade Teresa Barata Salgueiro, no seu livro “A cidade em Portugal”, começa por afirmar que a “cidade refere-se a um aglomerado populacional que a dada altura foi elevado a esta categoria por uma entidade político-administrativa (Rei ou 19 Parlamento)” . Mais à frente lembra que “tradicionalmente para a Geografia cidade é uma forma de povoamento” e que “a cidade é uma entidade individualizada com certa dimensão e densidade onde se desenrola um conjunto expressivo e diversificado de 20 actividades” . A cidade não é apenas um título, uma qualificação. Também 21 não é só “uma forma de povoamento” ; um espaço destinado à produção e à distribuição de bens e serviços ou, ainda, “um modo 22 de vida” . É antes de tudo “o espaço produzido resultante do meio físico e da acção humana, que participou no nascimento e desenvolvimento urbano e oferece agora, à cidade contemporânea, um quadro susceptível de ser modificado e de pesar, por sua vez, na cidade numa longa sequência de pontos e 23 contrapontos nunca interrompidos” , ou seja, é o produto acumulado das características do lugar e de sucessivas decisões de diferentes actores, com objectivos e recursos diversos, que ao 19 Salgueiro, T. (1992). A cidade em Portugal. Uma Geografia Urbana. Porto: Edições Afrontamento, pág. 19. 20 21 22 Idem, op. cit., pág. 26. Entendida como forma de ocupação do território. Pois o modo de vida urbano, sendo um produto da cidade, não é exclusivo desta. (Ibidem) 23 Beaujeu-Garnier, J. (1980). Geografia urbana. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, pág. 37. 27 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt longo do tempo se vão influenciando mutua e continuamente pelas suas decisões. A cidade é o resultado de uma relação íntima entre o 24 25 lugar e o espaço , um palco de transformações e interacções de apropriação e de memórias dessas mesmas apropriações. Em cada cidade existe um “antes” e um “depois”, daí que 26 ela seja a síntese de vários momentos. De um modo geral o sítio mantém-se, alterando-se a forma, o desenho urbano. Em consequência, hoje os sítios são uma síntese de vários momentos da história, com permanências, sem que no entanto ocorra um corte epistemológico com o passado. A sua forma é apenas a forma de “um momento” da cidade. A forma urbana, tal como diz J. Lamas, não só depende da sociedade que a produz e das condições históricas, sociais, económicas e políticas em que a sociedade gera o seu espaço e o 27 habita , mas também “de teorias e posições culturais e estéticas” 28 de quem as idealiza e constrói . Nesta perspectiva a cidade é um organismo vivo, um artefacto arquitectónico e humano em constante transformação, que cresce sobre si própria. A leitura da cidade torna-se assim complexa. J. Lamas escreve que a primeira leitura da cidade será sempre ao nível 24 Entendido como espaço social, dado que é um espaço transformado ao longo da história de determinada formação social (Prof. Teresa V. Heitor). 25 Enquanto suporte físico das áreas construídas e livres de um aglomerado. 26 Relacionado com o espaço geográfico, o sítio é, segundo Jacqueline Beaujeu- Garnier, “o lugar preciso da implantação inicial da cidade” (op. cit., pág.94), ou como define Aldo Rossi (Rossi, A. (1966). A arquitectura da cidade. Lisboa: Edições Cosmos, pág. 84), “a área sobre a qual surge uma cidade; a superfície que ela realmente ocupa”. 27 Lamas, J. M. R. G. (2004). Morfologia urbana e desenho da cidade. Porto: Fundação Calouste Gulbenkian/Fundação para a Ciência e a Tecnologia, pág. 31. 28 Ibidem. 28 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt “físico-espacial e morfológico”, pois só esta pode mostrar a singularidade de cada espaço e de cada forma, e ainda “explicar as características de cada parte da cidade”. Afirma, ainda, que a esta primeira leitura juntam-se necessariamente outras que vão dar a conhecer diversos conteúdos – históricos, económicos, sociais e outros. No entanto, salienta que este “conjunto de leituras só é possível porque a cidade existe como facto físico e material” e que “todos os instrumentos de leitura lêem o mesmo 29 objecto – o espaço físico, a forma urbana” . 1.2 A morfologia urbana A morfologia urbana, segundo o livro Espace Urbain – vocabulaire et morphologie, é: Étude de la forme physique de l’espace urbain, de son évolution en relation avec les changements sociaux, economiques et démographiques, les acteur et les 30 processus à l’oeuvre dans cette évolution. Tendo em atenção esta definição e seguindo o raciocínio 31 de J. Lamas , poder-se-á então utilizar o termo morfologia para designar o estudo da estrutura e da configuração exterior de um objecto. Ou seja, a morfologia enquanto “ciência que estuda as formas e as interliga com os fenómenos que lhes deram origem”. Nesta perspectiva, Lamas afirma que a “morfologia urbana irá estudar essencialmente os aspectos exteriores do meio urbano 29 Ibidem. 30 Gauthiez, B. (2003). Espace urbain – vocabulaire et morphologie. Paris: Monum, Éditions du patrimoine, pág. 110. 31 J. Lamas, op. cit., pág. 37. 29 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt e as suas relações recíprocas, definindo e explicando a paisagem 32 33 urbana e a sua estrutura” . 34 Assim sendo, e ainda segundo José Lamas , “a morfologia urbana é a disciplina que estuda o objecto – a forma urbana – nas suas características exteriores, físicas, e na sua evolução no tempo”. Ou seja, é o estudo da forma do meio urbano tendo em atenção os seus elementos morfológicos, a sua génese e transformação no tempo. Contudo, Lamas sublinha que “um estudo morfológico não se ocupa do processo de urbanização, quer dizer, do conjunto de fenómenos sociais, económicos e outros, motores da urbanização. Estes convergem na morfologia como explicação da produção da forma, mas não como objecto de estudo”. Esse estudo deve no entanto ocupar-se dos elementos morfológicos da cidade e da sua articulação entre si e com os lugares que constituem o espaço urbano. Lamas afirma, ainda, que um estudo da morfologia urbana não só tem que ter em atenção os “momentos de produção do espaço urbano”, como também identificar esses mesmos momentos e as suas interrelações. José Lamas acaba por salientar que, ao longo da história, a produção do espaço urbano foi o resultado, não só, de regras legais e de convenções sociais, mas também do modo como as várias partes ou elementos da cidade foram organizados e combinados, ou seja, do seu desenho urbano. E que, só mais recentemente, houve a preocupação de planificar e programar as quantidades (densidades, fluxos, volumetria, ...), as utilizações 32 Paisagem urbana enquanto parte de um território ou país que a natureza apresenta ao observador, portanto no sentido da descrição dos aspectos exteriores de uma realidade. 33 Ibidem. 34 Idem, op. cit., pág. 38. 30 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt (uso do solo) e as localizações, o que, “de um modo geral, 35 precederá o desenho urbano”. Pelo que em cima ficou dito, podemos afirmar que a morfologia urbana é o estudo da evolução das formas urbanas, tendo em atenção o desenvolvimento urbano 37 “reutilização” das partes da cidade. 36 e a 1.2.1 A forma urbana e a sua análise A palavra forma pode significar: 1. s.f. conjunto dos limites exteriores de um objecto ou de um corpo que lhe conferem um feitio, uma configuração ou uma determinada aparência; feitio; formato; (...). Dicionário PRO de Língua Portuguesa, Porto Editora Neste sentido, a forma de um objecto refere-se à sua configuração ou aparência exterior, o que implica apenas uma “leitura - visual - exterior, que não revelará certamente todos os 38 conteúdos da forma” . Contudo, José Lamas afirma que à morfologia urbana não interessa apenas esta leitura visual, interessa sobretudo aquilo a que designa por “a leitura da cidade 39 como facto arquitectural” . Segundo este autor, “a construção do espaço físico [da cidade] passa necessariamente pela 35 Idem, op. cit., pág. 39. 36 Entendido como o “conjunto de processos que conduzem ao crescimento das cidades, por expansão ou por alterações no seu interior” (J. Lamas, op. cit., pág. 111) 37 “Reutilização” resultante de opções administrativas ou de particulares que não só alteram o uso, como também modificam a forma. (J. Lamas, op. cit., pág. 112) 38 J. Lamas, op. cit., pág. 41. 39 Ibidem. 31 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt arquitectura”, correspondendo assim a noção de forma urbana “ao meio urbano como arquitectura, ou seja, um conjunto de objectos arquitectónicos ligados entre si por relações espaciais”. Onde a arquitectura, segundo a opinião deste autor, é “a chave da interpretação correcta e global da cidade como estrutura 40 espacial” . Mas será de facto a arquitectura a chave da interpretação da cidade como estrutura espacial? Será ela a única ferramenta correcta e global? 41 Bruno Zevi, no livro Saber ver a arquitectura , define a arquitectura “como uma grande escultura escavada, em cujo interior o homem penetra e caminha”, salientando mais à frente que a arquitectura provém “do vazio, do espaço encerrado, do espaço interior em que os homens andam e vivem”, e acrescenta 42 que “o espaço interior (...) é o protagonista do fato arquitetônico” . Diz, ainda, que “tudo o que não tem espaço interior não é 43 arquitectura” , mas que “a experiência espacial própria da arquitectura prolonga-se na cidade, nas ruas e praças, nos becos e parques, nos estádios e jardins, onde quer que a obra do homem haja limitado vazios, isto é, tenha criado espaços 44 fechados” . 40 Ibidem. 41 Zevi, B. (1984). Saber ver a arquitectura. São Paulo: Martins Fontes, pág. 17. 42 Idem, op. cit., pág. 18. 43 Idem, op. cit., pág. 24. 44 B. Zevi justifica deste modo: “(...) todo o espaço urbanístico, tudo o que é visualmente limitado por cortinas, quer sejam muros, fileiras de árvores ou cenários, é caracterizado pelos mesmos elementos que distinguem o espaço arquitetônico.” (op. cit., pág. 25) 32 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Uma vez que a cidade é constituída por espaços interiores, “definidos perfeitamente pela obra arquitetônica”, e por espaços “exteriores ou urbanísticos, encerrados nessa 45 obra e nas contíguas” , a construção do seu espaço físico resulta 46 da sua arquitectura . Esta ideia é corroborada por Aldo Rossi, quando afirma que a “forma [da cidade] resume-se na arquitectura da cidade ”, podendo esta ser entendida como “um grande manufacto, uma obra de engenharia e de arquitectura (...) que cresce no tempo”, ou como “factos urbanos caracterizados por uma arquitectura e, portanto, por uma sua forma”. No entanto, este autor reconhece que “a arquitectura não representa senão um aspecto de uma 47 realidade mais complexa” . É importante ter presente que a cidade não só é uma estrutura espacial, onde necessariamente existe uma relação entre os elementos que a constituem e o seu espaço, como também o resultado da sociedade que a produz e das condições históricas, sociais, económicas e políticas em que essa sociedade gera o seu espaço e o habita. Deste modo a apropriação social e cultural do espaço da cidade determina também a sua forma. 48 Quando se analisa a forma urbana é fundamental falar de 49 dimensão e de escala, uma vez que, como afirma J. Lamas,” a 45 B. Zevi, op. cit., pág. 25. 46 Arquitectura entendida como disciplina produtora do espaço. 47 Rossi, A. (1966). A arquitectura da cidade. Lisboa: Edições Cosmos, pág. 43. 48 Independentemente de ser a “forma física” de uma praça, de uma rua ou de uma cidade ou, ainda, a “composição de diferentes unidades espaciais e elementos morfológicos” (J. Lamas, op. cit., pág. 73). 49 J. Lamas (op. cit., pág. 73 e 74) considera existir três dimensões espaciais na morfologia urbana: a dimensão sectorial – a escala da rua; a dimensão urbana – a escala do bairro e a dimensão territorial – a escala da cidade. É importante aqui 33 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt compreensão e concepção das formas urbanas ou do território coloca-se a diferentes níveis, diferenciados pelas unidades de 50 leitura e de concepção” . Depreende-se, assim, que a leitura da cidade e do território deverá ser feita simultaneamente a diversas dimensões e escalas, ou seja, em diversos níveis. No presente estudo, em que nos propomos a analisar a morfologia urbana da cidade do Funchal e os seus espaços públicos estruturantes, a partir de elementos de trabalho e de compreensão do espaço como a cartografia e a iconografia, optamos por trabalhar fundamentalmente com duas dimensões, a 51 52 que J. Lamas designa por “dimensão territorial” e por 53 “dimensão urbana” . A primeira à escala da cidade e a segunda à escala do bairro. referir que esta classificação das dimensões espaciais na morfologia urbana apoiase, como afirma Lamas (op. cit., pág. 75), nas classificações de J. Tricart e de A. Rossi, os quais consideram haver três escalas: uma a nível da rua; outra a nível de bairro e uma última a nível da cidade. 50 Idem, op. cit., pág. 73. 51 Idem, op. cit., pág. 74. 52 Dimensão territorial - “Nesta dimensão a forma estrutura-se através da articulação de diferentes formas à dimensão urbana, diferentes bairros ligados entre si. A forma das cidades define-se pela distribuição dos seus elementos primários ou estruturantes: o macrossistema de arruamentos e os bairros, as zonas habitacionais, centrais e produtivas, que se articulam entre si e com o suporte geográfico.” (J. Lamas, op. cit., pág. 74) 53 Dimensão urbana - “É a partir desta dimensão, ou escala, que existe vardadeiramente a área urbana, a cidade ou parte dela. Pressupõe uma estrutura de ruas, praças ou formas de escalas inferiores. Corresponde numa cidade aos bairros, às partes homogéneas identificáveis, e pode englobar a totalidade da vila, aldeia, ou da própria cidade.” (Ibidem) 34 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt A utilização destas dimensões e escalas dá a liberdade para seguir um método de análise que permite realizar aproximações sucessivas, que nos leva do geral ao particular e vice-versa, sem 54 no entanto chegar ao detalhe que a “dimensão sectorial” propõe. As mudanças de escala – mais dilatadas e abrangentes ou mais diminutas e detalhadas – vão contribuir para o enriquecimento do trabalho através da introdução de novas informações sobre os elementos morfológicos, ou seja, as partes físicas exteriores do espaço urbano. Assim, cada uma das dimensões e escalas acima mencionadas vai permitir fazer leituras diferentes dos diversos 55 elementos morfológicos . Enquanto na dimensão territorial, ou escala urbana, “os elementos morfológicos identificam-se com os bairros, as grandes infra-estruturas viárias e as grandes zonas verdes relacionadas com o suporte geográfico e as estruturas físicas da paisagem”, na dimensão urbana, ou escala de bairro, “são os traçados e praças, os quarteirões e monumentos, os 56 jardins e áreas verdes” que são identificáveis . Neste estudo privilegiamos fundamentalmente os seguintes elementos morfológicos: o solo, entendido como a topografia, ou seja, como o suporte geográfico preexistente e o traçado/a rua, que liga os vários espaços e partes da cidade e que se relaciona directamente com a formação e crescimento da cidade. É claro que quando analisamos a topografia, o traçado e a rua inevitavelmente estão associados a estes outros elementos morfológicos, nomeadamente as praças, os quarteirões, os 54 Dimensão sectorial - “Será a mais pequena unidade, ou porção de espaço urbano, com forma própria (uma rua, uma praça).” (J. Lamas, op. cit., pág. 73) 55 A identificação destes diferentes elementos morfológicos no espaço urbano varia de acordo com a dimensão ou escala escolhida para a análise. 56 José Lamas, op. cit., pág. 110. 35 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt monumentos, os jardins e as áreas verdes, aos quais também daremos a devida atenção. Na realidade, para o habitante da cidade, enquanto “homem da rua”, a cidade é vista a partir de fragmentos. Nos seus percursos diários ele passa pelas ruas, atravessa diferentes espaços da cidade, descansa nas praças e nos jardins. São estes os elementos morfológicos que o transeunte apreende quando circula pela cidade. Só quando olhamos a cidade “de cima” é que temos uma noção do todo, e por conseguinte da continuidade do espaço, daí a utilidade da cartografia urbana no estudo da cidade. O urbanista ao intervir na cidade tem necessariamente que ter estas duas perspectivas – a do cidadão que percorre a cidade a pé ou de carro e a do especialista que observa a cidade através da cartografia ou dos planos. A cidade é o resultado de um conjunto de fragmentos os quais só têm coerência se forem pensados e integrados num espaço maior que é a própria cidade. 1.2.2 Os espaços públicos urbanos Para o urbanista os espaços públicos urbanos são espaços exteriores, livres e abertos, com zonas públicas, movimento e actividades. O autor do livro Espace Urbain – vacabulaire et 57 morphologie faz a distinção entre “espaço público” e “espaço público livre”, salientando que é este último que o urbanista apreende. Vejamos as definições que nos apresenta: Espace public – Il est formé des espaces libres publics, pouvant être couverts d’un vert dense ou arboré et généralement affectés à des usages publics, et de ce 57 B. Gauthiez, op. cit., pág. 348. 36 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt qui est visible depuis ces espaces. Il comprend donc pour partie le paysage urbain et les façades formant interface entre l’espace public et l’espace privé de l’intérieur des bâtiments. Il peut être souterrain. Espace libre public – Espace libre accessible au public et généralement de propriété publique. Nesta perspectiva, enquanto o “espaço público” corresponde, no caso de uma praça ou de uma rua, ao seu espaço livre e ao cenário arquitectónico que o envolve, ou seja, ao conjunto dos seus elementos construídos e não construídos, o “espaço público livre” tem apenas em atenção os arranjos da via pública e a iluminação. Os espaços públicos englobam uma diversidade de lugares, de onde se destacam os parques, jardins, avenidas, ruas, praças, largos, pracetas e frentes de mar e de rios. Estes encontram-se interligados formando uma rede de percursos que atravessam a cidade, não só estruturando o meio envolvente como também dando-lhe continuidade. Além disso, cada um deles apresenta funções, formas, dimensões, arquitectura e valor patrimonial distintos, constituindo uma referência na cidade, que contribui para enriquecer e dar vida à própria urbe. A cidade foi ao longo da história, como nos lembra Jan Gehl e Lars Gemzøe, espaço de encontro e reunião de pessoas, lugar de troca de informação e de bens e serviços, local de cultura e de diversão. Foi, ainda, “a via pública que proporcionava acesso 58 e conectava os vários usos da cidade” . Segundo este ponto de vista, os espaços públicos são lugares de encontro, de comércio e de circulação, que oferecem e 58 Gehl, J. e Gemzøe, L. (2002). Novos espaços urbanos. Barcelona: Editorial Gustavo Gili, pág. 10 e 13. 37 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt asseguram uma multiplicidade de usos. No entanto, verificamos que hoje, ao contrário do passado, há uma tendência para uma separação e diversificação desses usos, que nos são assegurados por uma “rede contínua” de espaços públicos que se estendem por toda a cidade. Embora o uso tradicional destes espaços se mantenha, constituindo desta forma uma herança que nos foi legada e que transmite parte da identidade da cidade, a verdade é que novas funções e usos têm surgido. Hoje, os espaços públicos constituem importantes lugares de lazer, de passeio, de descanso, de cultura, de práticas desportivas ou, ainda, áreas de preservação ambiental. Verifica-se, no entanto, que alguns espaços públicos da cidade contemporânea têm vindo a ser alvo de um distanciamento por parte dos seus utilizadores não só porque “o tráfego de veículos e os estacionamentos usurparam gradualmente espaço 59 nas ruas e praças” , mas também porque o ruído e a poluição os invadiram. Além disso, como afirma Camillo Sitte, a excessiva regularização urbana, com tudo dividido em blocos isolados (casas, praças, jardins) e circunscrito pelo traçado das ruas, sem arte e beleza, torna os diferentes espaços da cidade tristes e 60 monótonos, afastando as pessoas. Na obra A construção das cidades segundo seus 61 princípios artísticos , Camillo Sitte apresenta princípios e 59 Idem, op. cit., pág. 14. 60 Esta é uma ideia que Sitte faz passar ao longo de toda a sua obra, A construção das cidades segundo seus princípios artísticos, a qual apesar de ter sido escrita em 1889 continua a ter uma leitura muito actual. (Sitte, C. (1889). A construção das cidades segundo seus princípios artísticos. São Paulo: Editora Ática., pág. 94, 95, 100, 110) 61 C. Sitte, op. cit., pág. 145 – 160. 38 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt métodos de execução para a construção de cidades com qualidade urbana, semelhante à da cidade antiga. Verifica-se que quando este autor se refere à construção e/ou intervenções em praças, ruas e jardins, reforça frequentemente a necessidade de haver um “efeito de conjunto”, ou melhor, um “efeito artisticamente 62 coeso” salientando que para tal é necessário ter em atenção determinadas regras, de onde destaca a disposição harmoniosa dos diferentes elementos desse espaço, sobretudo daqueles “que podem ser vistos simultaneamente”; a relação entre a dimensão desses mesmos elementos, que deverá ser proporcional; a necessidade de existir obras de arte e de áreas verdes, localizadas sobretudo nos lados desses espaços, libertando desta forma as áreas centrais para “espaços de lazer tanto para crianças quanto para adultos”; evitar praças com “um terreno aberto em todas as direcções, sem fechamento algum, sem nenhuma coesão 63 dos efeitos artísticos”. Sitte alerta ainda para a questão do trânsito nas ruas, considerando que é um factor de opressão do espaço, e como tal deverá ser transferido “para um lugar onde ele não incomode, mas que seja útil”. Para atrair pessoas às praças, o autor sugere a construção de edificações para diferentes actividades culturais, cafés e restaurantes. Defende que cada praça, com dimensões não muito grandes e com lugares para monumentos e o verde, deverá ter a sua própria identidade contribuindo, desta forma, para 64 a diversidade da imagem urbana. Fala ainda da importância do verde e da água na cidade, defendendo que a sua introdução no meio urbano não só tem benefícios para a saúde, como também para a “êxtase do espírito” que encontra repouso nestes espaços naturais espalhados pela 62 Idem, op. cit., pág. 149. 63 Idem, op. cit., pág. 150-153. 64 Idem, op. cit., pág. 153-160. 39 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 65 cidade . Relativamente à sua introdução na cidade, Sitte diz que, tal como as praças, estes devem estar em harmonia com o espaço envolvente, uma vez que pode ocorrer um “incômodo conflito estilístico” entre o realismo da natureza e o idealismo de certas 66 edificações . Além disso, à semelhança das cidades antigas, os espaços naturais devem ter um tamanho pequeno e estar espalhados por entre os edifícios da cidade. Segundo Camillo Sitte, para além dos pequenos jardins 67 que constituem verdadeiros lugares de repouso , a permanência de “velhas e solitárias árvores” ou de pequenos grupos de árvores na cidade, por exemplo no canto de uma praças ou no desvio de uma rua, formam igualmente agradáveis recantos com sombra 68 que convidam ao descanso . Sitte defende ainda que para garantir a “harmonia do efeito conjunto desejado” e “realizar belas coisas” é necessário efectuar um estudo atento dos “elementos pertinentes envolvidos 69 em um grande parcelamento, inclusive o aspecto artístico” , abandonar definitivamente o “parcelamento em blocos” e ter em consideração a opinião não só dos técnicos mas também dos cidadãos. Além disso, estes espaços da cidade, sobretudo as praças e os jardins, devem ser repousantes e oferecer protecção não só do sol e dos diferentes elementos climáticos (vento e 70 precipitação), mas também do tumulto e dos ruídos das ruas . A utilização e vivência dos espaços públicos está também dependente da sua segurança, ou melhor, do sentimento de segurança que transmite. 65 Idem, op. cit., pág. 167. 66 Idem, op. cit., pág. 108. 67 Idem, op. cit., pág. 109. 68 Idem, op. cit., pág. 171. 69 Idem, op. cit., pág. 164. 70 Idem, op. cit., pág. 164. 40 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Segundo o que Jane Jacobs escreve no seu livro Morte e 71 vida de grandes cidades , o controlo ou vigilância social que ocorre nos espaços exteriores públicos resulta da multiplicidade de contactos sociais que diariamente ocorrem nas ruas da cidade e através dos quais há uma vigilância, individual e colectiva, sobre as actividades e comportamentos dos diferentes intervenientes na vida urbana. Na realidade, esta vigilância depende do número de pessoas que percorrem os diferentes espaços da cidade, do modo como estas se deslocam – a pé ou de automóvel – e, ainda, do tipo de funções existentes nas áreas adjacentes ao espaço público. Quanto maior a variedade funcional, maior o número de pessoas que são atraídas ao local e, consequentemente, mais eficais será a vigilância. Associada à segurança está a “legibilidade” e a “permeabilidade”. A “legibilidade” é a “facilidade com a qual as partes [da cidade] podem ser reconhecidas e organizadas numa 72 estrutura coerente” . Desta forma, quanto mais acessível for a leitura da cidade, mais clara é a imagem que cada indivíduo tem dela, o que permite uma melhor orientação e deslocação na urbe e, também, mais confiança e segurança. Por seu lado, a “permeabilidade” depende do número de percursos alternativos para a deslocação das pessoas no espaço urbano. Assim, quanto maior esta for, maior será a intensidade do movimento urbano e a diversidade de comportamentos de deslocação, proporcionando aos transeuntes uma maior segurança. A “legibilidade” e a “permeabilidade” vão, ainda, facilitar a mobilidade intencional ou espontânea dos indivíduos através dos espaços públicos, garantindo a continuidade na cidade. 71 Jacobs, J. (2000). Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes. 72 Lynch, K. (1960). A imagem da cidade. Lisboa: Edições 70, pág. 13. 41 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Em suma, os espaços públicos para continuarem a ser locais por excelência de socialização, de comunicação, de troca, de descanso e lazer têm necessariamente que ser locais agradáveis e harmoniosos, onde cada indivíduo se sinta confortável e seguro; espaços com grande “legibilidade” e “permeabilidade” que permitam além de segurança, uma fácil mobilidade e a continuidade dos diferentes percursos da cidade; locais de inclusão e de coesão social, onde sejam salvaguardados os interesses e as necessidade de todos os que utilizam a cidade e os seus espaços públicos. Além disso, hoje é importante que estes espaços sejam entendidos como lugares emergentes de novas culturas e práticas urbanas, em equilibrio com o ambiente, destinados a contribuir para uma melhoria da qualidade de vida urbana e para a reanimação da vida pública. Os espaços públicos devem ainda ter um papel unificador na cidade, ligando o “antigo” ao “novo” de forma a que não ocorram processos de segregação. 1.3 A morfologia das cidades portuguesas Ao observar as cidades portuguesas verificamos que estas apresentam características morfológicas muito particulares. Vários autores, dos quais se destacam José M. Fernandes, Manuel Teixeira e Margarida Valla, salientam que esta particularidade das formas urbanas das nossas cidades se deve a múltiplos factores, relacionados, na maior parte das vezes, com os seguintes aspectos: as diferentes influências e concepções de espaço que estão na origem da cultura urbana portuguesa; a escolha dos locais para a implantação dos núcleos iniciais dos aglomerados urbanos; a íntima articulação dos traçados das cidades com as particularidades topográficas locais; a localização de edifícios singulares de acordo com a topografia, e o importante papel destes edifícios na estruturação dos traçados urbanos; a lenta estruturação formal das praças urbanas, associadas a diferentes 42 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt núcleos geradores e a funções distintas; a permanência da estrutura de loteamento e das tipologias de construção a ela associadas; o processo de planeamento e de construção da cidade portuguesa, que é sempre projectada no sítio e com o sítio. Para explicar as múltiplas referências e formas urbanas presentes na cidade portuguesa, Manuel Teixeira e Margarida 73 Valla referem a existência de componentes de natureza 74 vernácula e erudita articuladas, que resultaram respectivamente da influência da “cultura mediterrânica, grega que mais tarde se 75 expressará também através da cultura mulçumana” , e da “cultura 76 romana”. 73 Teixeira, M. C., Valla, M. (1999). O urbanismo português. Séculos XIII – XVIII. Portugal – Brasil. Livros Horizonte. 74 Sendo a componente vernácula o resultado de uma “cidade que é construída sem recurso a técnicos especializados e em que se observa uma estreita relação do traçado urbano com as características topográficas dos seus locais de implantação”, enquanto a componente erudita é a consequência da “participação de técnicos especializados, detentores de um saber intelectual, no desenho da cidade”. (Idem, op. cit.) 75 Relativamente à influência da cultura mulçumana, M. Teixeira e M. Valla afirmam que ainda hoje é possível apercebermo-nos desta influência nos traçados de algumas cidades, acontecendo o mesmo a nível da “permanência de certos hábitos de vida urbana, nomeadamente alguma incapacidade de entender e de usufruir plenamente os espaços abertos da cidade” (op. cit., pág. 19). 76 A este respeito, Teixeira e Valla salientam que “na cultura urbana portuguesa cada um dos pólos desta dupla realidade acentua-se ou esbate-se conforme as circunstâncias históricas ou geográficas. Por um lado, temos a cultura marítima, costeira e comercial, o império não territorial do controlo das rotas, que nos vem dos Gregos (...). Por outro lado, temos a cultura territorial e material, o império efectivo do controlo territorial, que nos vem dos Romanos”. Estes autores referem, ainda, que “a cultura urbanística grega está associada a um conceito de espaço arquitectónico e urbano em que o objecto é preponderante: os elementos 43 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Cada uma destas componentes vai dar origem a um modelo de cidade distinto. No caso da vernácula, será uma cidade menos regular, estruturada essencialmente a partir de funções e de edifícios singulares, civis ou religiosos, situados em lugares elevados da malha urbana, os quais vão dar sentido e estruturar os espaços urbanos envolventes. Quanto ao modelo de cidade associado à componente erudita, verifica-se que este origina cidades com um traçado regular (ou mais regular), planeadas e construídas de acordo com um projecto, onde é definida uma ordem (geométrica) que estrutura o traçado urbano e define a 77 posição dos diferentes tipos de edifícios e de funções. Assim, pode-se afirmar que a concepção espacial da cidade portuguesa está directamente relacionada com o modo, a forma e o momento da construção da própria cidade, ou seja, com as circunstâncias culturais, históricas ou geográficas e, sobretudo, com a existência de um maior ou menor controlo central, 78 associado ao poder . O certo é que, em resultado da sobreposição e articulação das componentes vernácula e erudita ao longo dos séculos, as estruturantes fundamentais do espaço urbano grego são os objectos arquitectónicos, que são pólos aglutinadores e dão sentido aos espaços em volta. A cultura urbana romana, pelo contrário, está associada a um conceito de espaço em que, mais do que os edifícios, é o próprio espaço urbano que é o elemento fundamental, sendo este moldado pelas massas construídas que lhe dão forma”. (op. cit., pág. 18) 77 Ibidem. 78 Relativamente a esta acção do poder político e administrativo, é importante referir que “quanto mais centralizado e mais forte é o poder mais a racionalidade e a geometria se afirma” na cidade, aumentando a regularidade do traçado. (Idem, op. cit.). 44 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt nossas cidades são o resultado da “síntese destas duas 79 concepções de espaço” . 1.3.1 A forma urbana das cidades portuguesas Quando se fala da forma urbana das cidades portuguesas é importante ter presente que a passagem de diferentes povos pelo território continental, desde o século XII a.C., com os Fenícios, até ao século XIII, com os Muçulmanos, deixou, inevitavelmente, marcas nas estruturas urbanas, daí que estejam sempre visíveis características de diferentes culturas urbanas nos traçados urbanos portugueses. Por outro lado, há a salientar que desde meados do século XIII se verificou uma constante adopção de modelos racionais, promovidos pelo poder. Esta componente erudita foi sobretudo visível nos traçados regulares medievais dos séculos XIII e XIV, nos traçados com influências renascentistas a partir do século XVI, nos traçados urbanos ligados às fortificações do século XVII e nos traçados iluministas do século XVIII. Nos séculos que se seguiram esta componente esteve associada, em oitocentos, à continuação da utilização dos traçados barrocos, de que são exemplo as avenidas de Lisboa desenhadas por Ressano Garcia e, na primeira metade do século XX, à influência de um “urbanismo pós80 industrial” , visível nos planos resultantes da política desenvolvimentista do Eng. Duarte Pacheco, e à influência do Urbanismo Moderno e da Carta de Atenas. Façamos aqui uma breve caracterização dos traçados das cidades portuguesas entre os séculos XIII e XX. 79 80 Idem, op. cit., pág. 18. Não só preocupado em encontrar soluções para os problemas que a industrialização trouxe às cidades, mas também com a valorização do desenho urbano. Um “urbanismo científico e estético” (Pelletier, J., Delfante, C. (1969). Cidades e Urbanismo no Mundo. Lisboa: Instituto Piaget, pág. 246). 45 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Segundo Manuel Teixeira, as cidades medievais planeadas construídas em Portugal nos séculos XIII e XIV apresentavam “um conjunto de quarteirões com uma forma rectangular alongada, cada um deles constituído por uma sucessão de estreitos lotes urbanos paralelos uns aos outros e orientados no mesmo sentido, com uma frente para uma rua 81 principal e outra frente para uma rua de traseiras” . Esta disposição paralela das ruas em ruas principais e ruas de traseiras que se alternavam, era cortada por outras vias que as cruzavam perpendicularmente. Nesta organização ortogonal de ruas e quarteirões, as praças, como afirma o mesmo autor, ou não existiam como tal ou 82 iam se estruturando gradualmente ao longo do tempo. Estas cidades medievais apresentavam ainda uma outra característica, que era a existência de muralhas defensivas. A partir dos finais do século XV e durante o século XVI, refere M. Teixeira, ocorreu em Portugal um importante movimento 83 de renovação urbanística , cujo objectivo era o de modernizar as 81 M. Teixeira e M. Valla, op. cit., pág. 26. 82 Segundo M. Teixeira, nesta altura era frequente existirem os largos “onde se localizavam os edifícios institucionais mais importantes” e que resultavam “do alargamento da rua (principal), obtido através de um recuo da igreja”; e os terreiros, que tinham origem em terrenos residuais entre o perímetro das muralhas e os quarteirões construídos. Este autor, refere ainda que estes logradouros cumpriam originalmente as funções de praça. (Teixeira e Valla, op. cit., pág. 26 e 27) 83 Este autor, mais do que uma vez, atribuiu este movimento de renovação urbanística em Portugal ao desenvolvimento de uma nova atitude para com o espaço urbano da cidade - influenciada pelos “novos conceitos de espaço urbano ligados à redescoberta da tradição urbana da Antiguidade veiculada pelo Renascimento”, que chegaram a Portugal através de vários tratados italianos - e à reforma de leis e normas urbanísticas, iniciadas por D. Afonso V e prosseguidas 46 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt cidades, e que consistiu fundamentalmente na reforma, alteração e/ou expansão das cidades existentes. Este autor menciona também que, nalguns casos, estas intervenções incidiram na reforma dos espaços públicos das cidades, particularmente na criação de praças, associadas à construção de novos edifícios institucionais, tais como as casas de Câmara, as Misericórdias e as Igrejas Matrizes que constituíram os edifícios estruturantes da maior parte destas praças. Noutros casos, tratou-se da construção de novas expansões urbanas planeadas, em que foram aplicados novos princípios de regularidade e de ordenamento, de influência 84 renascentista . Este autor diz, ainda, que foram adoptadas no nosso país três tipologias urbanas: o traçado rectilíneo e ordenado das ruas, a construção de praças rectangulares fechadas e a utilização de uma malha urbana ortogonal. Relativamente às estratégias de desenho e de composição urbana, J. Teixeira refere que: (...) incluíam a simetria, referida a um ou mais eixos; a utilização da perspectiva e o fechamento de vistas através da colocação de edifícios, monumentos ou elementos urbanos significativos no enfiamento de ruas ou de grandes eixos; a utilização do mesmo tipo de elementos como pontos focais de praças ou de espaços urbanos que se viriam a estruturar como praças em torno destes elementos; a integração de edifícios individuais em conjuntos arquitectónicos harmónicos, muitas vezes através do ordenamento e da repetição das 85 fachadas. por D. João II e D. Manuel I, e que deram origem às Ordenações Afonsinas e mais tarde às Ordenações Manuelinas. (Teixeira e Valla, op. cit., pág. 27, 83) 84 Idem, op. cit., pág. 83. 85 Idem, op. cit., pág. 85 e 86. 47 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt O século XVII trouxe a Portugal novos desafios a nível de intervenções urbanísticas. Por um lado, a Restauração da Independência de Portugal (1640) fez com que muitas cidades tivessem sido alvo de intervenções com o objectivo de reforçar e de melhorar o seu sistema defensivo. E, por outro lado, a necessidade de ocupar e defender os novos territórios ultramarinos implicou a construção de fortes e de novos conjuntos fortificados. Estas intervenções, baseadas nos sistemas que então vigoravam na Europa, tiveram implicações na estrutura urbana das cidades portuguesas. 86 As cidades seiscentistas, segundo Margarida Valla , apresentavam várias cinturas de fortificação. Uma primeira definida pelas cortinas e pelos baluartes, seguida de outra composta, por exemplo, por fossos e esplanadas. Era, ainda, frequente a existência de fortes, redutos e baterias, implantados na área envolvente ao burgo, que constituíam uma terceira cintura de fortificação e tinham como função dificultar o ataque inimigo. Nestas cidades os edifícios militares localizavam-se junto às muralhas, e ficavam separados do resto da cidade pela estrada de armas que acompanhavam o perímetro das fortificações. Surgiu 87 também a Praça de Armas , que normalmente era independente das restantes praças, destinadas a usos civis. M. Valla salienta, ainda, que como neste século a preocupação defensiva era dominante, “a intervenção no tecido urbano procurava sobretudo uma relação entre as funções urbanas e militares para que pudessem coexistir dentro do mesmo 88 espaço” . 86 87 Teixeira e Valla, op. cit., pág. 149. A Praça de Armas era o “local de exercício e de reunião dos regimentos militares” (op. cit., pág. 153) 88 Idem, op. cit., pág. 154. 48 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt No século XVIII, a experiência adquirida nos territórios 89 ultramarinos juntou-se aos princípios racionais iluministas e, em conjunto, transformaram as cidades portuguesas, tornando-as mais racionais e, assim, afastando-as cada vez mais do espaço, 90 do lugar, onde eram implantadas. Manuel Teixeira salienta que a racionalização do traçado colocou em segundo plano a correcta compreensão do sítio, chegando mesmo ao ponto de em algumas cidades, construídas de raiz, a racionalidade e a abstracção relativamente ao sítio serem totais. 91 Este autor refere ainda que neste século surgiram cidades construídas com planos regulares, concebidos segundo traçados geométricos, na maior parte das vezes ortogonais, onde a praça aparecia como o elemento central da malha urbana. O século XIX, “século de charneira, caracterizado pela continuidade da cidade clássica e barroca e pelo aparecimento de novas tipologias urbanas que vão preparando a cidade 92 moderna” , continuou a distinguir-se pela utilização dos sistemas de traçados regulares, quadrículas, quarteirões, ruas, avenidas e praças, tendo no entanto sido introduzidas algumas inovações tais como jardins, parques, alamedas, passeios públicos e avenidas. Na realidade, verifica-se que neste século, um pouco por todo o mundo, houve uma tendência para as grandes transformações urbanísticas e para o crescimento das cidades. Na 89 É importante não esquecer que a expansão marítima portuguesa para as Ilhas do Atlântico, África, Brasil, Índia e Extremo Oriente constituiu um grande factor de desenvolvimento para o urbanismo português. Na realidade, estes novos territórios, sobretudo os não urbanizados, foram um campo privilegiado a nível da experimentação e do desenvolvimento de traçados regulares em cidades construídas de raiz. 90 Idem, op. cit., pág. 285 e 286. 91 Idem, op. cit., pág. 286. 92 J. Lamas, op. cit., pág. 203 e 204. 49 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Europa, estas transformações caracterizaram-se essencialmente 93 pela criação de grandes expansões e de traçados e renovações que, na maior parte das vezes, destruíram grande parte da malha 94 urbana existente . Os centros das cidades foram modernizados e as cidades fortificadas viram as suas muralhas serem demolidas. Abriram-se grandes avenidas, construiram-se sistemas de drenagem de águas e de recolha de esgotos, criaram-se grandes praças e jardins. Este processo, que acabou por ser de destruição e de renovação, não só marca a segunda metade do século XIX, como prolongou-se pelo século XX até à Segunda Guerra Mundial. Portugal, naturalmente, não ficou indiferente a todo este processo e as principais cidades portuguesas passaram, assim, a ser de algum modo “subjugadas” pelo progresso e pelo cosmopolitismo, sendo Paris o principal modelo da época. Nas primeiras décadas do século XX, com a influência da “urbanística Formal”, do urbanismo Moderno e da Carta de Atenas, continuou-se a assistir à renovação dos centros históricos e à conservação parcial e limitada, isto é, descontextualizada do seu conjunto, de monumentos e de partes dos centros urbanos. A partir dos anos 60, com a revalorização do património, assistiu-se à redescoberta do centro da cidade e dos bairros antigos. Surgindo, assim, todo um movimento de reestruturação, remodelação, reabilitação, melhoramento do habitat, salvaguarda e restauro, que ainda hoje se faz sentir nas nossas cidades. No entanto, nas últimas décadas tem sido cada vez mais notória a globalização das cidades. A transição da sociedade industrial para a sociedade do conhecimento tem vindo a traduzirse numa profunda alteração dos processos e formas de urbanização e de ocupação do território. Algumas cidades 93 Expansões que foram, em parte, motivadas pela generalização da utilização do automóvel que aumentou e facilitou a mobilidade da população. 94 O Plano de Haussmann para a cidade de Paris é, sem dúvida, um dos melhores exemplos. 50 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt portuguesas começam a mostrar sinais desta mutação, tornandose aos poucos cada vez mais “globalizadas”, ou seja, “indiferentes 95 ao local” . 96 Em suma, como diz M. Teixeira , é possível afirmar que, de um modo geral, a cidade portuguesa foi uma cidade com grande coerência interna, resultante de uma prática urbanística que, embora articulada com a cultura europeia, não se limitou a reproduzir modelos abstractos, tendo procurado responder à realidade material e cultural de cada situação. No entanto, é importante salientar que a partir da segunda metade do século XIX, com o prevalecimento da racionalização das cidades, a crescente abstracção relativamente aos espaços onde estas se implantam e a renovação do centro das cidades, a “originalidade” da cidade portuguesa parece ter começado a ficar ameaçada. No século XX, ainda que a partir da década de 60 tenha surgido uma nova preocupação com o património e, consequentemente, com a “cidade antiga”, o certo é que algumas cidades portuguesas continuaram a transformar-se e a adquirir formas cada vez mais “globalizadas”. 1.3.2 Os primeiros núcleos urbanos construídos fora do território continental – o exemplo das cidades das Ilhas Atlânticas A expansão marítima portuguesa teve início no século XV com a descoberta e ocupação dos arquipélagos da Madeira e dos Açores. Com a colonização destes arquipélagos, de onde se destaca o da Madeira dado que foi o primeiro a merecer uma 95 Brandão, P. (2006). A cidade entre desenhos. Profissões do desenho, ética e interdisciplinaridade. Lisboa: Livros Horizonte, pág. 96 Teixeira e Valla, O Urbanismo Português, séculos XIII – XVIII, Portugal – Brasil. 51 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt ocupação efectiva, estes transformaram-se em áreas pioneiras de experimentação e depois de modelo de referência. A urbanização destes territórios insulares, enquanto primeiras experiências fora de Portugal Continental, não constituiu uma excepção, destacando-se como exemplos as cidades do Funchal, de Ponta Delgada, da Horta e de Angra do Heroísmo. Nestas cidades das Ilhas Atlânticas é possível verificar e confirmar a capacidade que os portugueses tinham em compreender e articular as suas cidades com o território. M. 97 Teixeira explica que a partir de um modelo de referência, que eram as cidades construídas em território continental, os colonos e, posteriormente, os técnicos de arruação foram adaptando, de um modo quase intuitivo, esse modelo às características de cada lugar. O autor afirma ainda que, “apesar da diversidade de condições locais e da forma aparentemente casual como estes núcleos urbanos eram construídos, a tradição urbana que lhes estava na base era suficientemente forte para assegurar uma identidade e uma coerência formal bastante fortes entre todas 98 elas” . Todas estas cidades insulares apresentam características morfológicas semelhantes, o que é sobretudo visível na sua localização junto à costa, na escolha do sítio para a implantação do núcleo original e no traçado das ruas. O certo é que, de um modo geral, nestas ilhas os núcleos urbanos primitivos eram implantados em baías abrigadas e com boa capacidade de defesa. Além disso, era comum estes núcleos urbanos desenvolverem-se, inicialmente, ao longo de um caminho paralelo ao mar, que ligava o núcleo de ocupação primitiva à casa do donatário ou a uma capela localizada num dos extremos deste caminho. Numa fase posterior, iam surgindo ruas paralelas e perpendiculares à pri mitiva, por onde os núcleos se expandiam. 97 Teixeira e Valla, op. cit., pág. 48 98 Ibidem. 52 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 1. A semelhança das características morfológicas das cidades insulares – Planta das forteficaçoens, e Bahia da Ilha do Faial, 1804 (Teixeira e Valla, O urbanismo português. Séculos XIII – XVIII. Portugal – Brasil., pág. 59); pormenor do Plan of the Town of Funchal By Cpt. Skinner, 1775 (C.M.F.F.) M. Teixeira faz a seguinte síntese relativamente ao modo como, inicialmente, estas cidades insulares se estruturaram e evoluíram: Numa primeira fase a estrutura de ocupação era essencialmente condicionada pelas condições físicas do território: o núcleo de ocupação primitivo implantava-se num local com boas condições de defesa e boas condições como porto natural, e a primeira rua, que viria a tornar-se a principal, acompanhava a curvatura da baía. A estrutura de ocupação que daí resultava era essencialmente linear. Numa fase subsequente, desenvolviam-se uma ou duas outras ruas, paralelas à primeira e a curta distância desta para o interior. Apoiando-se nesses eixos fundamentais, construíam-se perpendicularmente a eles algumas ruas transversais de pequena dimensão que os ligavam. Estruturava-se assim um pequeno número de quarteirões, de forma sensivelmente 53 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt rectangular, que se dispunham na sua maior dimensão paralelamente à linha da costa e que 99 constituíam a primeira fase de urbanização. O mesmo autor diz ainda que: Nas fases seguintes de desenvolvimento urbano das cidades insulares, eram construídas ainda outras ruas paralelas à rua primitiva que se desenvolvia ao longo da costa. No entanto, dada a distância cada vez maior a que cada uma das ruas era traçada relativamente às anteriores, os quarteirões formados por elas e pelas transversais eram agora mais alongados e dispunham-se perpendicularmente ao mar. Se bem que os grandes eixos estruturantes da cidade continuassem a ser as ruas paralelas à linha de costa, as ruas que as cruzavam e se dispunham perpendicularmente ao mar tendiam a adquirir uma importância crescente na estrutura da cidade, tornando-se progressivamente a 100 direcção dominante do traçado. E acrescenta que “a inovação nos traçados urbanos destas cidades observa-se a partir das primeiras décadas do século XVI”, sobretudo quando são construídas “novas zonas de expansão” e/ou é feita a reestruturação de algumas “partes 101 centrais da malha urbana” . No caso específico do Funchal, é nos finais do século XV, início do século XVI, que ocorre a primeira “modernização” da 99 Idem, op. cit., pág. 49. 100 Idem, op. cit., pág. 50. 101 Ibidem. 54 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 102 então vila . Na verdade, data de 13 de Setembro de 1484 a carta onde o Duque D. Manuel mostra a preocupação em saber “has 103 cousas que som necessareas aesta villa” , tendo posteriormente 104 o futuro monarca mandado fazer a “ygreja do fumchall” e “praça E camara E paaço de tabaliãees E picota”, no “lugar mais 105 conveniente e no meio da povoação” . É, ainda, sob o governo deste monarca que é construído no Funchal um novo sector da malha urbana, composto por um conjunto de quarteirões organizados segundo uma estrutura ortogonal regular. D. Manuel I teve um papel muito importante no crescimento e na modernização do Funchal no final de quatrocentos, início de quinhentos. Na realidade, é o próprio Gaspar Frutuoso que nos diz que o Funchal “sempre foi vila até o tempo de el-Rei Dom Manuel, que a fez cidade e a acrescentou, e 106 enobreceu com obras que nela mandou fazer” . Assim, e no seguimento da análise do que escreve M. Teixeira, podemos afirmar que estas “obras”, devido às suas características e ao modo como foram implementadas, podem ser consideradas uma inovação na prática urbanística portuguesa não só porque a praça junto à igreja, neste caso a Sé, e a nova malha 102 103 O Funchal só é elevado à categoria de cidade em 1508. Doc. nº 90, 13 de Setembro de 1484, Carta do duque em que manda que Requerem has cousas que som necessareas aesta villa – Arquivo Distrital do Funchal (1972). Arquivo Histórico da Madeira. Boletim do Arquivo Distrital do Funchal., Vol. XV, Funchal: D.R.A.C., pág. 139 e 140. 104 Doc. nº 95, 22 de Março de 1485, Apomtamentos del Rey dom manuell Sendo Duque pera esta ylha Da madeyra - in op. cit., pág. 147 a 156. 105 Doc. nº 112, 3 de Outubro de 1486, Carta do duque em que manda fazer praça E camara E paaço de tabaliãees E picota em esta vila – in op. cit., Vol. XVI, 1973, pág. 200 e 201. 106 Frutuoso, G. (1584). Livro Segundo das Saudades da Terra. Ponta Delgada: Instituto Cultural de Ponta Delgada, pág. 98. 55 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 107 urbana passam a ser um espaço urbano regular planeado mas, sobretudo, porque resultam de uma acção deliberada, ou seja, de uma estratégia de desenvolvimento e de modernização urbana. A cidade de Angra do Heroísmo é outro exemplo onde estes princípios foram aplicados. Esta cidade, que apresenta características topográficas e de desenvolvimento distintas das suas congéneres, vai a partir da primeira metade do século XVI estruturar-se segundo um traçado regular inovador onde são explorados conceitos e formas urbanas com influência renascentista. M. Teixeira, nos seus textos, deixa passar a convicção de que foi nestas cidades dos Arquipélagos da Madeira e dos Açores que se fez a síntese entre a prática do planeamento medieval e os princípios teóricos emergentes do urbanismo renascentista. O mesmo afirma que é com estas cidades, e em particular com a cidade de Angra do Heroísmo, “que se inicia a inovação e a experimentação urbanística” que nos séculos seguintes se irá 108 desenvolver em Portugal Continental, no Brasil e no Oriente . 107 Segundo M. Teixeira, as praças das igrejas deixam de ser um espaço residual que resultava do encontro de várias ruas ou então de um espaço situado à margem da malha urbana edificada. A estrutura de ruas também deixa de ser medieval e passa a ser constituída por lotes orientados para as quatro frentes do quarteirão, que vão criar uma estrutura de ruas mais urbana, sendo a hierarquia “feita pelo seu perfil, pelas funções e pela arquitectura dos edifícios que nelas se vêm construir”. (Teixeira e Valla, op. cit., pág. 315) 108 Idem, op. cit., pág. 50. 56 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Capítulo II – A cidade do Funchal e a sua morfologia urbana A cidade do Funchal está localizada numa ampla e acolhedora baía, da vertente Sul da Ilha da Madeira. Com o Atlântico a seus pés, é percorrida por três ribeiras, a Ribeira de São João, a Ribeira de Santa Luzia e a Ribeira de João Gomes (ver Mapa A - 1, 2 e 3, respectivamente), ao longo das quais a cidade tem vindo a expandir-se, encosta acima, nestes últimos 500 anos. A nossa área de estudo corresponde fundamentalmente ao actual centro da cidade, abrangendo três freguesias do Concelho do Funchal – freguesia da Sé; freguesia de S. Pedro e freguesia de Santa Maria Maior. Ficam, ainda, localizados nesta área os três núcleos históricos da cidade – o núcleo histórico de Santa Maria, o núcleo histórico da Sé e o núcleo histórico de S. Pedro e Santa Clara. 2.3 De lugar a cidade do Funchal 109 O povoamento da Ilha da Madeira teve início em 1420 . 110 Apesar de alguns autores considerarem a existência de um 109 “E foi o começo da povoação desta ilha no ano do nascimento de Jesus Cristo de mil quatrocentos e vinte anos; a qual ao tempo da feitura desta historia (1452-3 ?) estava em razoada povoação, que havia em ela CL moradores, afora outras gentes, que aí havia, assim como mercadores, e homens e mulheres solteiros, e mancebos, e moços e moças, que já naceram na dita ilha, e isso mesmo clerigos e frades, e outros que vão e veem por suas mercadorias e cousas que daquela ilha não podem escusar” (Zurara, G. E. (1452-53?). Crónica de Guiné. Barcelos: Livraria Civilização, Cap. LXXXIII, p. 348). No entanto, há autores que afirmam que o povoamento teve início em 1425, como é o caso de Eduardo Pereira no livro Infante D. Henrique e Geografia Histórica das Capitanias da Madeira, 4º ed., pág. 18. 110 Como por exemplo Manuel C. Teixeira e José Manuel Azevedo da Silva. 57 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt “núcleo embrionário” no lado ocidental da baía, junto a Santa Catarina, onde o primeiro capitão donatário mandou construir a sua primeira casa de madeira e a capela de Santa Catarina (1425), o facto é que é comum considerar-se que o núcleo de ocupação primitivo localizava-se na zona Leste da baía do Funchal, o qual recebeu inicialmente o nome de Santa Maria ou de Santa Maria do Calhau. 111 Segundo escreve António Aragão , existia ali uma pequena igreja, a Igreja de Santa Maria do Calhau, a partir da qual 112 “estendia-se um chão que deslizava até ao calhau” e que “servia de espaço social de convívio e comércio”. Desta igreja saía, “para nascente”, uma rua e ao lado ficava um “improvisado cemitério” e um poço público. Com uma estrutura de ocupação linear, que se adaptava às condições físicas do local, este núcleo urbano estendia-se “ao 113 longo da faixa de terra chã em face do mar, paralela ao calhau” , 114 desde a Ribeira de Santa Maria até ao Corpo Santo. A rua que, de um modo natural, resultou desta implantação recebeu o nome de Rua de Santa Maria. Uma segunda rua surgiu a norte desta, com um traçado praticamente paralelo à anterior, e recebeu o nome de Rua Nova 111 Aragão, A. (1992). O espírito do lugar. A cidade do Funchal. Lisboa: Pedro Ferreira Editor, pág. 21. 112 António Aragão esclarece que este “chão” corresponde “à actual área urbana que desce dos arredores do Mercado dos Lavradores e pára junto ao calhau” e que “a poente fazia fronteira com a Ribeira de Santa Maria (hoje de João Gomes) e logo a levante abria-se a Rua de Santa Maria, enquanto a norte confrontava com uma tapagem que se encontrava entre o adro da igreja e o lugar que, em 1430, pertencia ao capitão João Gonçalves.” (op. cit., pág. 22) 113 Aragão, op. cit., pág. 23. 114 A actual Ribeira de João Gomes. 58 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 115 da Santa Maria ou apenas de Rua Nova . António Aragão fala ainda de “mais algumas diminutas ruas, travessas, azinhagas e becos que, a pouco e pouco, foram surgindo e umas casas dispersas, em geral térreas, erguidas nos seus assentamentos ou 116 lugares e quintãs, amuradas ou não” . Apesar deste autor não referir a orientação destas pequenas ruas, travessas, azinhagas e becos é praticamente evidente que estes foram construídos a partir das duas primeiras ruas, que funcionaram como eixos fundamentais deste primeiro núcleo urbano. Estava assim constituído o núcleo urbano primitivo do Funchal. O lugar do Funchal depressa cresceu e durante a década de 1450 foi elevado à categoria de vila e de sede de concelho. É também por esta altura que a produção de cana-de-açúcar começa a ser significativa na Ilha. Surge o primeiro engenho junto à Ribeira de Santa Luzia e, pouco depois, tem início a exportação de açúcar. Começa uma nova era para a Ilha da Madeira e, sobretudo, para a vila do Funchal. Novos povoadores chegam e o núcleo urbano primitivo de Santa Maria alarga-se para ocidente, transpondo a Ribeira de 117 João Gomes . O certo é que, a partir de 1466, altura em que os impostos do açúcar diminuem, a vila do Funchal sofre um grande 118 incremento. Segundo António Aragão , “duas áreas urbanas 115 Segundo A. Aragão está Rua Nova corresponde, “salvo umas quantas variantes, ao traçado da actual Rua Latino Coelho” (op. cit., pág. 25). 116 Ibidem. 117 António Aragão estimou que no ano de 1455 viviam na vila do Funchal cerca de 3 mil habitantes. (op. cit., pág. 22 e 23) 118 Idem, op. cit., pág. 27 e 31. 59 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt começam a distinguir-se e a afastar-se uma da outra ao longo da baía do Funchal”. Ficando a nascente “o povoado primitivo de 119 Santa Maria do Calhau” e, para poente deste, “no espaço compreendido entre as três ribeiras”, o novo povoado que irá 120 constituir os “alicerces da futura cidade açucareira” . Parece também certo que nesta altura já existia, “na frente do calhau que une as três ribeiras”, uma rua cujo nome é 121 “adequado às suas funções sociais” – a Rua dos Mercadores . Aragão especifica, ainda, que “a rua estende-se desde a Ribeira de João Gomes, serpenteando o calhau até estancar quase junto 122 às terras de Sta. Catarina” . A ligação entre estas duas áreas urbanas era feita por 123 duas pontes de madeira – a da Cadeia e a de Santa Maria . No ano de 1471, os limites do Funchal são os seguintes: (...) de Sam Pedro ataa tuha (sic) do duque de Santa Catarina ataa Santa Luzia e ata casa de Joham 124 Gonçalluez capitam (...) . 119 Onde se localizavam as “tendas e moradas dos homens de ofício reunidos ao longo da Rua da Santa Maria e da Rua Nova” (Aragão, op. cit., pág. 31). 120 Nesta data este novo povoado era constituído por “quintãs e lugares, cerrados [terrenos murados] de canaviais e hortas, por entre assentamentos mais complexos de razões agrícolas e moradas” (Ibidem). 121 Segundo o mesmo autor, esta rua que já era conhecida com este nome em 1469, tornou-se na principal artéria do novo povoado, sendo mesmo conhecida apenas pelo nome de Rua. Ali localizavam-se as “logeas” de negócios, sobretudo ligadas ao comércio do açucar. (Idem, op. cit., pág. 31 e 32). 122 Aragão, op. cit., pág. 31. 123 Idem, op. cit., pág. 36 124 Estes são os limites definidos na acta da sessão camarária de 27 de Julho de 1471, a qual estipula os limites em que se obrigavam os moradores da vila a recolherem a suas casas, por razões de segurança, depois do “syno de corer”. 60 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 125 António Aragão é de opinião que estes limites, embora “abrangendo um espaço bastante ambicioso”, correspondiam à dimensão real do Funchal. Esclarece ainda que “San Pedro” é “agora São Paulo” e que “a tuha do duque” corresponde ao “granel do duque situado na parte leste da Rua de Santa Maria”. Relativamente a “Santa Luzia” diz que é a “antiga Igreja de Santa Luzia que se levantava nas imediações do actual Caminho dos Saltos e abaixo da Levada”. À medida que a vila e o negócio do açúcar cresce aumenta também o número de terrenos murados com plantações de cana-de-açúcar. É necessária mais mão-de-obra. Chegam os negros à Ilha da Madeira e é implantada a escravatura. Em consequência disso, por volta de 1483, tem início um ciclo de emigração de trabalhadores assalariados madeirenses para Canárias, e mais tarde para S. Tomé e o Brasil. Estes emigrantes levam consigo não só o conhecimento da “tecnologia 126 açucareira de raiz insular” como também os próprios artefactos para a produção do açúcar. A futura “cidade do açúcar” vai assim “exportar” a sua tecnologia açucareira e, juntamente, a mão-deobra, o que mais tarde acaba por ter péssimas repercussões em termos económicos. Na Ilha impera o poder “subtil” das “forças económicas das classes mais privilegiadas”, sendo os seus interesses 127 salvaguardados pela “Casa dos Vinte e Quatro” e pela Câmara. (Acta de 27 de Julho de 1471 – Costa, J. P. (1995). Vereações da Câmara Municipal do Funchal – século XV. R.A.M.: S.R.T.C./CEHA, pág. 20.) 125 Aragão, op. cit., pág. 24 e 25. 126 Idem, op. cit., pág. 33 127 A Casa dos Vintes e Quatro Mesteres foi fundada em 1483 e era “composta pelos procuradores dos mais diversos mesteres ou ofícios” existentes na Ilha, os quais elegiam quatro representantes que participavam nas sessões camarárias. (Ibidem) 61 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt As “gentes dos ofícios”, para sobreviver, só tinham como alternativa a emigração. Entretanto, continuava a chegar ao Funchal um grande número de estrangeiros e de nacionais oriundos do continente que, ligados ao comércio do açúcar, compravam terras de canaviais e construíam engenhos e 128 moradias . 129 Em finais de quatrocentos a vila do Funchal prospera e cresce. A vila, com um número cada vez maior de habitantes e instalada entre as três ribeiras, tem cada vez mais ruas, becos e azinhagas. No entanto, continua a ser uma vila onde o rural e o urbano coexiste e se confunde. Na realidade, as hortas e os canaviais abundam e encontram-se espalhados por toda a vila, passando por entre estes espaços agrícolas as principais ruas da urbe. 130 É, ainda, Aragão que nos informa que em 1488 já existia a Rua dos Mercadores, a qual acabava a poente com o nome de Rua de Sta. Catarina; a Rua de Santa Maria do Calhau da Ribeira; a Rua de Diogo Afonso; a Rua de Álvaro Matoso; a 128 É interessante aqui referir que alguns destes “novos povoadores” deixaram a sua “marca” registada na toponímia de algumas ruas e locais. É o exemplo do tabelião João Tavira que, em 1483, vivia na rua que ainda hoje se designa por Rua de João Tavira. (Idem, op. cit., pág. 41) 129 Só no ano de 1498 foram exportadas 120 mil arrobas de açucar para mercados do Sul e do Norte da Europa. Contudo, “logo nos começos da primeira metade do século XVI” tem início a crise açucareira, a qual se deve à concorrência de novos mercados produtores de açúcar, com preços mais competitivos; ao desgaste das terras e consequente diminuição da produtividade e, ainda, ao abandono das próprias terras motivado pelo “bicho da cana” que atacava os canaviais e os destruia, provocando prejuízos incalculáveis. Em 1537 a exportação de açúcar não ultrapassa as 46 700 arrobas. (Idem, op. cit., pág. 48 e 50) 130 Aragão, op. cit., pág. 44. 62 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Rua de João Castanheira e a Rua de Pero Eanes. Relativamente à Rua dos Mercadores sabe-se ainda que começava na ponte de 131 Santa Maria e que, pelo menos, ia “até à ponte com o Beco de Gonçalo Aires”. Existia também, “a ocidente do Campo do Duque 132 e abaixo da Várzea” , o Convento de S. Francisco, o qual foi 133 erguido por volta de 1473 . O Campo do Duque era já, em 1488, identificado como espaço urbano. Na realidade, este Campo, inicialmente lugar de plantações de canaviais, com a expansão da vila e com a sua localização a norte da Rua dos Mercadores ganhou centralidade e 134 tornou-se num lugar privilegiado . É o próprio Duque D. Manuel que, depois de ter mandado construir em 1485 a igreja do Funchal, a Praça, a Câmara, o Paço de Tabaliães e o pelourinho no “lugar mais conveniente e no meio da povoação”, que numa 135 carta datada de 20 de Novembro de 1486 , manda “que se faça apraça em hum seu chãoo”. Fica assim escolhido o centro da futura cidade do Funchal, à volta do qual ainda hoje gravita toda a vida económica e social deste centro urbano. De facto, como se referiu no capítulo anterior, é D. Manuel que dá um grande impulso a esta vila e que a eleva à categoria de 131 Pela análise da Planta do Funchal de Mateus Fernandes (c. 1570) verificamos que existia uma segunda ponte, localizada sobre a Ribeira de Santa Luzia, a qual já mencionamos anteriormente como sendo a ponte da Cadeia. 132 Onde hoje se localiza o Jardim Municipal do Funchal. 133 Idem, op. cit., pág. 56. 134 Idem, op. cit., pág. 55. 135 Doc. nº 114, de 20 de Novembro de 1486 - ¶ Carta do duque em que manda que se faça apraça em hum seu chãoo - Arquivo Distrital do Funchal (1973). Arquivo Histórico da Madeira. Boletim do Arquivo Distrital do Funchal., Vol. XVI, Funchal: D.R.A.C., pág. 202. 63 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 136 cidade. António Aragão afirma que o Duque estava determinado em equipá-la não só com novas construções destinadas “à vida social, administrativa e religiosa”, mas também com novas ruas e “outros espaços urbanos”, tendo para tal utilizado os rendimentos provenientes do açúcar que se produzia na Ilha “para ajudar a erguer a nova cidade atlântica – a cidade do açúcar”. Em 1489, os moradores da vila pedem ao Duque D. Manuel que sejam abertas duas ruas. São então construídas a 137 Rua do Sabão e a Rua de João Esmeraldo. António Aragão realça que estas “duas novas artérias que, rompendo do Varadouro dos Batéis para cima, e atravessando a parte central da povoação, oferecem um trajecto urgente e perfeitamente justificado”, na medida em que vão facilitar o “acesso ao mar da principal zona fabril da povoação, a começar nos engenhos de açúcar até pontear, lá no alto, no aglomerado de moinhos de 138 pão” . Na última década de quatrocentos o Funchal era palco de uma actividade construtiva muito intensa. Pelo que nos diz António 139 Aragão , no centro da vila era possível encontrar edíficios em diferentes fases de construção: em 1492 eram executados os 136 Aragão, op. cit., pág. 56. 137 Idem, op. cit., pág. 57. 138 António Aragão faz a seguinte descrição da zona fabril da vila do Funchal: “Encontravam-se então os engenhos de Pero de Agrela e João Berte de Almeida, junto dos moinhos, sem contar com o velho engenho de Diogo de Teive, e, sempre para baixo, os engenhos de Nuno Gonçalves (depois de seu filho Simão Darja), de Martim Mendes, de Gonçalo Enes de Veloza, de António de Aguiar, de Duarte Mendes de Vasconcelos(depois conhecido como o engenho da Viúva) e, no extremo sul, o de Zenobio Acciaiuoli, confrontando com a Rua dos Ferreiros, artéria onde desembocavam as duas novas ruas subindo do mar”. (Aragão, op. cit., pág. 58) 139 Idem, op. cit., pág. 60. 64 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt acabamentos da Casa da Câmara e do paço de Tabeliães; no ano seguinte tinha início, “ali à ilharga”, a edificação da Sé; em 1495 o Rei D. Manuel manda calcetar as ruas e construir em cantaria as 140 pontes de madeira e, “sobre o arrife da Várzea, levantava-se também o crescido vulto do convento franciscano de Santa Clara, acabado de construir em 1496”. Por esta mesma altura, mais precisamente em 21 de Junho de 1493, o Duque D. Manuel manda que se “faca çerca E 141 muros nesta villa do fumchall” . Nesta carta são indicados os limites da “çerca”. Ela devia ser feita “entre a ribeira de São 142 Francisco e de Santa Luzia e que chegue junto com o mar e que deve ser da grandeza ao menos tamanha como Setubal”. Mas, na realidade, os elevados encargos que a mesma iria trazer para uma vila já tão sobrecarregada de obras fizeram com que o Rei D. João II, em Janeiro de 1494, na sequência de um pedido dos senhores da Ilha e da população em geral, mandasse que “nom se façam açerqua E muros que mandou fazer”, determinando no entanto que se fizessem “alguns baluartes, aqueles que necessários forem e assim se tapem alguns portais onde cumprir de se taparem, para 143 boa defesa e guarda da dita Ilha” . No início do século XVI a azáfama continua. É aberta “a calçada do Rego de S. Pedro – hoje lugar dito de S. Paulo”, continuavam a decorrer as obras da futura Sé Catedral (concluída 140 No entanto esta iniciativa foi rejeitada pelos senhores e pela população da cidade, uma vez que os encargos com as obras já eram muito elevados. 141 Doc. nº 169, de 21 de Junho de 1493 - ¶ Carta do duque Em que mamda que se faca çerca E muros nesta villa dofunchall - Arquivo Histórico da Madeira, op. cit., Vol. XVI, pág. 284 e 288. 142 Hoje Ribeira de São João. 143 Doc. nº 173, de 9 de Janeiro de 1494 - ¶ Carta del Rey em que manda que nom se façam açerqua E muros que mandou fazer - Arquivo Histórico da Madeira, op. cit., Vol. XVI, pág. 292 e 293. 65 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt em 1514) e da Alfândega Nova (terminada em 1519) e, muito possivelmente, também estava a ser edificada a Casa do Fisco, 144 que se localizava logo abaixo da Sé, e o hospital novo. Deste modo tão intenso, a vila vai ganhando dia após dia uma nova estrutura e vitalidade, preparando-se assim para uma nova fase – a de cidade. 2.4 Cinco séculos de cidade – transformações e permanências A 21 de Agosto de 1508, a vila do Funchal era elevada à categoria de cidade: Dom manuell per graça de deus Rey de purtugall E dos algarues daquem E daallem mar (...). A quamtos esta nosa carta virem fazemos Sabeer que comsijramdo Nos como louuores anoso Snñor a villa Do fumchall na nossa ylha Da nadeyra teem creçido Em muy grãde pouoraçam E como viuem nella muytos fidallgos caualleyros E pessoaas homrradas E De gramdes fazedas pollas quaaes E pllo gramde trauto Da dita ylha Esperamos com aJuda de Noso Snñor que adita villa muyto mays Se em nobreza E acreçemte E aveemdo Respeyto Ao muyto Serujço que Reçebemos Dos moradores E esperamos ao diamte Reçebeer E Desy por folgarmos de fazer homrra E merçee Aos Ditos fidallgos caualleyros escudeyros E povoo Della Sem elles nem outrem por elles nollo pedir nem Requerer nos De noso moto propeo poder Reall E absoluto com aquella booa voomtade que sepre teuemos E teemos pera todo bem E mayor a creçemtamento Das cousas Da dita 144 Aragão, op. cit., pág. 61 e 62. 66 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt villa.¶ Por esta presemte carta nos praz a fazermos E De feyto fazemos çidade E queremos E nos praz que daquj em diamte Se ymtitulle E chame çidade E tenha todas as ymsinyas que has çidades de nosos Reygnos pertemçe teer E huse E gouua de todos hos 145 priujlegios (...). Passados cinco séculos, esta “pequena grande” cidade cresceu e expandiu-se em direcção a Poente e às montanhas, ocupando hoje praticamente todo o anfiteatro do Funchal. Em quinhentos anos testemunhou mudanças sociais, económicas e políticas, assaltos de corsários, o poder destrutivo dos aluviões e a chegada da “modernidade” com a luz eléctrica, o automóvel e as avenidas de Fernão de Ornelas. A chegada de um novo milénio trouxe-lhe um enorme desafio – ser uma cidade mais competitiva, atractiva e vivida. 2.2.1 O Século XVI: a “Cidade do Açúcar” O século XVI foi sem dúvida caracterizado por anos de 146 profundas mudanças na Ilha da Madeira. António Aragão , fala em “mudança económica e social, mudança de costumes, mudança de maneiras de viver e mudança até de considerados comportamentos humanos”. Na realidade, o açúcar, “com todo o peso do seu apetrechamento técnico, económico e social, 145 Extraído e adaptado do Doc. nº 322, de 21 de Agosto de 1508 - ¶ Carta del Rey noso Snñor Een que faz çidade aeste fumchall - Arquivo Distrital do Funchal (1974). Arquivo Histórico da Madeira. Boletim do Arquivo Distrital do Funchal., Vol. XVIII, Funchal: D.R.A.C., pág. 512 e 513. 146 Aragão, A. (1992). O espírito do lugar. A cidade do Funchal. Lisboa: Pedro Ferreira Editor, pág. 54. 67 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt dominou as mentes e a maneira de viver dos moradores do 147 Funchal” nos primeiros decénios de quinhentos . Devido ao açúcar, a Madeira passa a fazer parte de uma rota obrigatória no Atlântico atraindo comerciantes de vários pontos da Europa, os quais traziam não só novos produtos vindos de mercados distantes, como também novas ideias e novos processos de trabalho. A prosperidade que o comércio do açúcar trouxe à Ilha e, sobretudo, à cidade é também visível na arquitectura e na arte. Na realidade, esta riqueza proporcionou a construções de moradias e edifícios mais “faustosos” e, ainda, de templos, muitos deles com traços arquitectónicos de “estilo” mudéjar insular. O “estilo” mudéjar insular, de influência ibérica, compreendia edifícios normalmente baixos, “sem arrojadas preocupações volumétricas”, com “janelas geminadas enquadradas de alfiz” e com tectos e coberturas de madeira, decorados “pelo profuso gosto geométrico mudéjar, variado e imaginativo”, de que são exemplos, ainda hoje visíveis, a Sé Catedral e o Solar de D. Mécia. António Aragão salienta que “as construções mudéjar insulares foram edificadas com materiais locais, pedra e madeira da Ilha, trabalhada localmente por artistas 148 insularizados, inspirados no gosto mudéjar de raíz ibérica” . António Aragão diz, em jeito de síntese, que “ao lado do açúcar brotando da terra, no mesmo espaço insular a arte mudéjar ergueu-se também, nascida na Ilha, como expressão artística 149 perfeitamente ajustada ao tempo vivido” . Esta “doce” abundância possibilitou ainda a encomenda de um número considerável de peças de arte flamenga, importadas da Flandres, as quais foram ornamentar e valorizar o interior de igrejas, conventos e capelas. 147 Idem, op. cit., pág. 88. 148 Idem, op. cit., pág. 68 e 69. 149 Idem, op. cit., pág. 70. 68 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt No entanto, grandes mudanças se avizinhavam. Este primeiro grande ciclo da economia madeirense – o do açúcar – está a chegar ao fim, motivado em grande parte pela concorrência 150 do açúcar de S. Tomé e do Brasil, o que vai provocar uma crise na produção e nos preços do açúcar. Contudo, a partir da segunda metade do século XVI, os canaviais começam a ser substituídos por vinhedos e um novo ciclo começa a desenvolver-se – o do vinho –, o qual irá trazer à Ilha e à própria cidade uma nova dinâmica, sobretudo a partir do século XVII. Este século ficou também marcado por grandes calamidades. A cidade do Funchal por várias vezes foi saqueada 151 por corsários , revelando a falta de segurança e a necessidade de construir um eficaz sistema de fortificações. Em 1593, foi palco 152 de um violento incêndio que destruíu 154 construções . E, muito 153 provavelmente, sentiu a força de algumas aluviões , as quais com alguma frequência deixaram as suas marcas nesta cidade. A cidade do Funchal 150 António Aragão chama a atenção para o seguinte: “A verdade, diga-se, é que a indústria açucareira resvala para um franco descalabro e que, dos 50 e tantos engenhos que chegaram a existir na Ilha nos tempos áureos, em 1640 apenas 5 se mantinham de pé, até que, em 1782, só se erguia um “único engenho D’Assucar” na Ribeira dos Socorridos.” (op. cit., pág. 53) 151 De onde se pode destacar o saque dos corsários franceses à cidade do Funchal no dia 2 de Outubro de 1566. Este saque é descrito por Gaspar Frutuoso no Livro Segundo das Saudades da Terra, Cap. 44º e 45º – pág. 327 – 360. 152 Aragão, op. cit., p. 64 153 No Elucidário Madeirense pode-se ler que “a aluvião de 1724 não foi a primeira que causou prejuízos, pois que Mouquet que esteve aqui em 1601, diz, embora não precise datas, que as águas que descem das montanhas algumas vezes destroem pontes e casas em toda a ilha.” (Silva, F. (1921). Elucidário Madeirense. Vol. I. Funchal: S.R.E.C, pág. 51 e 52) 69 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Gaspar Frutuoso começa do seguinte modo a “descrição da 154 nobre cidade do Funchal” : Da ponta do Garajau, que está ao Nascente, até uns ilhéus, que estão ao Ocidente, perto da terra, e a ponta da Cruz, que é quase uma légua e meia, faz a terra uma enseada muito grande e formosa, e do Corpo Santo a São Lázaro e as Fontes de João Diniz, que estão ao longo do mar, que é um quarto de légua, há pela costa calhau miúdo e areia, o qual é o porto da cidade, onde ancoram naus e navios, que ali carregam e descarregam, tão povoado e cursado sempre deles, com tanto tráfego de carregações e descarregas, que parece outra Lisboa. E deste quarto de légua de calhau miúdo e areia pela costa é a compridão da grande e nobre cidade do Funchal, ali situada em lugar baixo, em uma terra chã, que do mar se mostra aos olhos mui soberba e populosa, tão bem assombrosa nos edifícios como nos moradores (...). Está assentada antre duas frescas ribeiras, a de Nossa Senhora do Calhau, a Leste dos muros com esta igreja, (...), e a ribeira de São Pedro, ou de São João, ermidas que estão para o Ponente, porque ambas elas estão ali, no cabo da cidade, ficando a ribeira fora dos muros antre elas, e a igreja de São Pedro dos muros para dentro àquem da ribeira, e São João de fora deles, da banda de Loeste; (...). E, para mais fresquidão, vai pelo meio dela a ribeira de Santa Luzia (...). Na verdade, o original do Livro Segundo das Saudades da Terra de Gaspar Frutuoso data de 1584, daí que esta descrição 154 Frutuoso, G. (1584). Livro Segundo das Saudades da Terra. Ponta Delgada: Instituto Cultural de Ponta Delgada, Cap. 16º, pág. 109. 70 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt deva corresponder à cidade da segunda metade de quinhentos. No entanto, através da leitura conjunta deste documento, de outros da época e da Planta do Funchal de Mateus Fernandes por nós concertada sobre o ortofotomapa do Funchal, de 2004, é possível identificar e localizar não só edifícios, ruas e outros espaços urbanos com interesse para a compreensão da evolução da malha urbana do Funchal, como ainda visualizar e percorrer esses mesmos espaços e percursos da cidade quinhentista. A cidade que nasceu em 1508 apresentava já uma evidente coerência urbanística. Não era apenas fruto de um crescimento casual ou de uma adaptação às características do local. Havia premeditação. Por exemplo, a Sé e a praça foram deliberadamente construídas no Campo do Duque porque era o “lugar mais conveniente e no meio da povoação”. A Rua do Sabão e a Rua de João Esmeraldo foram abertas porque era importante e urgente que a zona fabril tivesse um acesso fácil e directo ao Varadouro dos Batéis, onde se processava a carga e descarga de mercadorias. Além disso, ao observar a Planta do Funchal de Mateus Fernandes (c. 1570) são bem visíveis os principais eixos estruturantes da cidade. Um formado pelo conjunto das três ruas paralelas à costa – Rua de Santa Maria, Rua dos Mercadores e Rua de Santa Catarina – que atravessam a cidade de nascente a poente, ligando o núcleo primitivo às novas áreas de expansão e à casa do capitão. Outro formado pelas ruas que saem perpendicularmente ao eixo anterior – de onde se destaca a Rua Direita, a Rua do Sabão e a Rua de João Esmeraldo – e que ligavam a zona ribeirinha e o Varadouro ao centro da cidade e, depois, através da Rua dos Ferreiros, à zona fabril, formando um 155 eixo de ligação entre o mar e a terra. António Aragão chama a atenção para o facto de que “desde os começos de quinhentos 155 A. Aragão, op. cit., pág. 65. 71 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt que os eixos principais da cidade tomaram assentamento como se, desde o início, o essencial fosse previsto”. O acesso à cidade e/ou ao resto da Ilha era feito por três ruas: a poente, junto à ponte de São Pero (hoje São Paulo) chegava o “caminho q vem de Câmara de Lobos e dos Piornais”; de nascente, no extremo oposto, partia o “caminho q vai pera a serra e pera ho Faial” e da Rua Direita saía, sempre para norte, o 156 “caminho q vai pera Nosa Sñora do Monte”. 2. Planta do Funchal, Mateus Fernandes (c. 1570) – (Planta cedida pela C.M.F.) O Funchal do Século XVI é uma cidade curiosa e imponente. Curiosa na medida em que lado a lado vão coexistir igrejas e engenhos, dois importantes pilares desta sociedade 156 Planta do Funchal, Mateus Fernandes. 72 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt insular – a religião e o açúcar. No centro da cidade, próximo da Sé Catedral ou da igreja de S. Sebastião ficam os engenhos de moer cana. Talvez seja esta a singularidade desta cidade, onde edifícios institucionais, igrejas, residências e unidades fabris coexistiam 157 num mesmo espaço. A atestar isto escreve-nos Aragão o seguinte: Tudo se juntava perto, muito perto mesmo, numa profusão farta de vida e crença religiosa, como se o profano e o sagrado, unidos, fizessem parte comum do mesmo destino. Então, compreende-se que seria normal sair da porta de um templo, depois de orar, para, uns passos andados mais adiante, se entregar às rudes tarefas dos engenhos de moer cana. De facto, será perfeitamente aceitável que as pessoas gostassem de habitar por ali, tal como Zenobio Acciaiuoli que até possuía as casas de morada logo à banda de cima do seu engenho. A sua imponência advém naturalmente da riqueza que o doce e branco açúcar lhe proporcionou. Com ela se construíu o vulto robusto da Sé Catedral, rematado pela torre ameada de grandes proporções, a dominar as edificações em redor. Ou a praça que se desenrolava à frente da Sé – “Hum campo tão grande que correu nelle touros e cavallos, jogão às canas e fazem 158 outras festas.” Ou “a Praça Nova, dita apenas do Pelourinho, rodeada de boas casas sobradas, com janelas de mármore, 159 pelourinho a preceito” e “telhados coroados de ameias” . Mas esta cidade pode também ser desconcertante. Uma cidade que fora tão importante na altura da expansão portuguesa 157 Aragão, op. cit., pág. 64. 158 Idem, op. cit., pág. 70. 159 Idem, op. cit., pág. 62. 73 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt e europeia, tanto em termos económicos como estratégicos, aquando da sua elevação a cidade não possuía um sistema defensivo efectivo e, na realidade, só o teve muito mais tarde. Esta cidade, a do açúcar, ainda hoje é visível. Deixou rastos e memórias que o tempo não apagou. Da cidade de quinhentos conserva-se o formato de alguns quarteirões no actual centro. Permanece o traçado e o nome de algumas ruas, como por exemplo a Rua de Santa Maria, a Rua do Sabão, a Rua de João Esmeraldo e a Rua da Carreira (Mapa nº 1 – 24, 27, 26 e 21). Preservam-se, ainda, alguns edifícios, de que se pode destacar a Sé Catedral, o Convento de Santa Clara e a Capela de São Pedro (hoje conhecida como Capela de São Paulo) (Mapa nº 1 – A, 9 e 5). Nela, ainda são visíveis alguns testemunhos da cidade fortificada, de que são exemplos o torreão leste da Fortaleza de S. Lourenço e alguns pequenos troços da muralha. 3. Permanências da cidade quinhentista – o nome de ruas (1); a Sé Catedral (2), o torreão leste da Fortaleza de S. Lourenço (3). Como era então a “cidade do açúcar”? Giulio Landi, um italiano que visitou esta cidade por volta de 1530, descreveu-a do seguinte modo: Estende-se esta cidade ao longo da praia (...). É a sua largura menos de metade do seu comprimento. Está voltada para sul e para levante. Por estar situada ao longo da praia e um tanto inclinada, lança todas as 74 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt suas sujidades no mar. Por isso ela é toda linda e limpa. É igualmente rica em construções, quer particulares quer públicas, e abundante em todas aquelas coisas que são necessárias à vida e ao embelezamento de uma cidade. Aqui chegam frequentemente mercadores de países muito distantes: da Itália, França, Flandres, Inglaterra e da Península Ibérica, que para lá levam aquelas coisas que fabricam para os da Ilha e dela transportam aquelas de que a Ilha é produtora, tais como, açúcar e vinho, por lá haver em grande abundância. Nem na cidade, nem tão-pouco em toda a Ilha há um único porto. No entanto, os navios aí ancoram bem por haver uma boa praia. (...) Correm pela cidade uns 160 tantos rios os quais descem das colinas da Ilha. Desta descrição há um pormenor que nos chama a atenção – “é a sua largura menos de metade do seu comprimento” – daí se depreende que a cidade não tinha crescido muito para o interior, na realidade, espraiou-se ao longo da costa – entre o actual Largo do Corpo Santo e a Rua de São Francisco – e para o interior pouco ia além do “limite” composto pelo eixo formado pelas actuais ruas da Mouraria, de S. Pedro e dos Netos, constituindo o Convento de Santa Clara um dos seus extremos mais a norte. Encontrava-se assim, de um modo geral, aninhada na parte mais plana da baía. A leitura e análise da Planta do Funchal de Mateus Fernandes, que concertamos sobre o ortofotomapa de 2004 (Mapa nº 1), permite-nos conhecer melhor a malha urbana quinhentista. 160 Giulio Landi, Descrição da Ilha da Madeira, in Aragão, A. (1981). A Madeira vista por estrangeiros – 1455-1700. Funchal: S.R.E.C./DRAC, p. 82-83 75 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Como já aqui referimos, a área urbana do Funchal desenvolveu-se em fases distintas, as quais são visíveis no traçado da cidade quinhentista. A leste da Ribeira de João Gomes encontramos uma primeira área de crescimento da malha urbana, a qual vai corresponder, grosso modo, ao núcleo urbano primitivo de Santa Maria do Calhau. No entanto, uma observação mais atenta do Mapa nº 1 permite-nos identificar nesta parte, pelo menos, duas áreas morfologicamente distintas, que se vão distinguir sobretudo pela orientação dos quarteirões. Assim, existe uma unidade, próxima à ribeira, constituída por quarteirões paralelos à costa e que se desenvolveram ao longo da Rua de Santa Maria (24) e, mais tarde, na Rua Nova a norte da primeira. Através de uma visita ao local foi possível verificar que, actualmente, nestes quarteirões as casas encontram-se, de um modo geral, voltadas para Norte ou para Sul. A segunda unidade parece ser uma expansão da Rua de Santa Maria para nascente, apresentando quarteirões mais estreitos e perpendiculares à linha da costa. Aqui podemos observar que os lotes estão voltados sobretudo para nascente e para poente. O número de ruas perpendiculares à costa é também visivelmente maior. Uma segunda grande área de crescimento urbano é a que se localiza entre a Ribeira de João Gomes e a Rua do Sabão (27), prolongando-se para norte pela Rua dos Ferreiros (28). Muito provavelmente esta terá sido a área de expansão da vila do terceiro quartel de quatrocentos. Aqui os quarteirões têm uma forma “excessivamente” alongada, sendo no entanto perpendiculares à costa, e têm como eixo estruturante a continuação da Rua de Santa Maria e a Rua dos Mercadores (29) e, mais acima, a Rua Direita (25) e a Rua dos Ferreiros, onde os quarteirões são paralelos à rua. Pela observação do local, verificamos que os lotes apresentam maioritariamente uma orientação Este/Oeste. Na elaboração do Mapa nº 1, que aqui se apresenta, ficou a dúvida se esta segunda área de expansão não será 76 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt contemporânea da unidade do extremo Este da cidade quinhentista. Não encontramos até ao momento nenhum documento que prove esta nossa suspeita, mas há uma certa conformidade no traçado destas duas áreas. Além disso, parecenos justificável esta contemporaneidade, na medida em que se a vila cresceu para Ocidente com as casas e as propriedades dos “senhores do açúcar”, também poderá ter crescido para Leste com as casas das “gentes dos ofícios”. Por último, temos a área de expansão urbana entre a Rua do Sabão e as proximidades do Mosteiro de São Francisco (17), que corresponde à “cidade manuelina” e que se desenvolveu a partir do Campo do Duque. Este novo sector da malha urbana apresenta-se construído segundo uma estrutura ortogonal regular, tendo no seu centro a Sé Catedral e a praça. Os quarteirões são mais pequenos e os lotes dispõem-se em diferentes direcções, orientando-se para as quatro frentes do quarteirão. Manuel Teixeira salienta que nesta última área de expansão, a disposição dos lotes vai criar “uma estrutura de ruas todas de frente cuja hierarquia é feita de forma mais subtil, pelo seu perfil, pela arquitectura dos edifícios que nelas vêm a construir-se, pelas funções que nelas vêm a desenvolver e pela 161 sua relação com outros componentes da malha urbana” Nas duas áreas anteriores, a estrutura e a hierarquia das ruas era feita em função da frente e das traseiras dos lotes, que tinham todos, como vimos, a mesma orientação. Relativamente aos espaços públicos, nomeadamente largos e praças, constata-se que estes eram ainda escassos, resumindo-se ao Terreiro ou Praça da Sé (18), à Praça do Pelourinho (19), ao Largo do Poço e a alguns adros de igrejas. Estes espaços eram essencialmente utilizados para convívio 161 Teixeira, M. C., Valla, M. (1999). O urbanismo português. Séculos XIII – XVIII. Portugal – Brasil. Livros Horizonte, pág. 53. 77 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt social, actos religiosos e, ainda, para a realização de algumas tarefas colectivas. 162 António Aragão fala-nos da utilização destes espaços, salientando que o lugar por excelência de convívio social da época era o Terreiro da Sé, o que em nosso entender se deve certamente à sua localização e dimensão. Este espaço, ao que parece, foi durante muito tempo lugar de eleição para os divertimentos públicos, para a realização de procissões e de outros eventos e, também, para actos públicos de trabalho, como 163 por exemplo “cirandar cereais” . Saliente-se, a título de curiosidade, que os divertimentos públicos da época eram os jogos de canas, as touradas, a “péla” e o jogo da bola. Embora se saiba que os dois primeiros se realizavam no Terreiro da Sé, os dois seguintes tiveram desde muito cedo um local próprio para a sua prática. Enquanto a “péla” se realizava a leste da Sé Catedral junto às casas dos paços do Concelho, o jogo da bola era praticado num local “para as bandas 164 de Santa Maria” . Mas o conhecimento desta cidade quinhentista ficará mais completo se tivermos em atenção outras fontes documentais, as quais, conjuntamente com o mapa nº 1, vão permitir uma visualização quase tridimensional da mesma. É sem dúvida 162 Aragão, A. (1992). O espírito do lugar. A cidade do Funchal. Lisboa: Pedro Ferreira Editor, pág. 70 a 71. 163 A. Aragão refere que “ainda em 1768, era tal o hábito adquirido da prática desses trabalhos públicos, que uma correição, levada a cabo nessa altura, proibe que se cirandassem aí cereais, “de que rezulta hum inconsiderável danno à mesma Catedral da introdução do pó no templo o que lhe irreverencia alem de prezuizo que causa às Imagens, e ornamentos, e ainda às mesmas casas particulares”. (Aragão, op.cit., pág. 71) 164 Idem, op. cit., pág. 72. 78 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 165 Gaspar Frutuoso que nos apresenta uma das descrições mais interessantes desta “cidade do açúcar”, muito provavelmente da cidade da segunda metade do século XVI. Pela sua leitura é possível identificar e localizar não só edifícios, ruas e outros espaços urbanos, como ainda visualizar e percorrer esses mesmos espaços e percursos da cidade de quinhentos. Segundo este autor, esta era uma cidade “amurada” entre 166 167 a Ribeira da Nossa Senhora do Calhau e a “Fortaleza Velha” . Na Ribeira da Nossa Senhora do Calhau o “muro” estendia-se “perto de meia légua pela terra dentro, a entestar com rochas mais 168 ásperas, fortes e defensaveis” . Este “muro”, que tinha “cubelos e seteiras”, possuía para o lado da Ribeira de São João três portas de acesso à cidade, com “vigias e guardas”, e para o lado do mar outras três que se localizavam nomeadamente junto “de Nossa Senhora do Calhau”, junto dos açougues (1) e, “a mais principal”, 169 junto “aos Varadouros (31), defronte da rua dos Mercadores” . 170 Para Oeste da porta principal da cidade , ficava a Casa da Alfândega (2), que era “amurada de cantaria e fechada pela terra e pelo mar”, e “um tiro de besta” mais à frente ficava a Fortaleza Velha (B), “situada sobre uma rocha”. Esta fortaleza tinha “pela parte do mar, dois cubelos, como torres mui fortes, que guardam o mesmo mar e a artilharia (...), e, pela banda da terra, outros dois, que guardam toda a cidade por cima, por estarem mais altos que ela, em a qual parte tem também um muro muito 171 alto e forte” . 165 Frutuoso, op. cit., Cap. XVI, pág. 109 - 117 166 Actual Ribeira de João Gomes. 167 Actual Palácio de São Lourenço. 168 Idem, op. cit., pág. 110. 169 Idem, op. cit., pág. 111. 170 Segundo Gaspar Frutuoso, a “meio tiro de besta” (Ibidem). 171 Ibidem. 79 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt A primeira e principal rua, “dos muros para dentro”, era a dos Mercadores que se estendia desde Nossa Senhora do Calhau até à Fortaleza Velha. No início desta rua, junto a Nossa Senhora do Calhau, localizava-se uma “não muito grande, mas formosa e cercada praça, de boas casas sobradadas, algumas de dois 172 sobrados, com um rico pelourinho de jaspe” - a Praça Nova ou do Pelourinho (19). Desta praça saía uma “grande e larga rua” – a Rua Direita –, a maior da cidade, onde se localizava a Igreja de São Bartolomeu (11) e, no seu final, o “engenho de açúcar de 173 Simão Darja, que chega à ribeira” . Da Rua dos Mercadores saíam várias ruas: a Rua do Poço Novo, que tem no seu final um poço (20); a Rua do Esmeraldo e a Rua do Sabão. Por sua vez, nesta última, nascia a Rua do Capitão, que acabava junto à Fortaleza, e de onde derivavam “serventias para a Sé”. Relativamente à Sé Catedral (A), Gaspar Frutuoso para além de mencionar que é uma “igreja mui populosa, bem assombrada e fresca”, salienta o aspecto imponente da sua torre, dizendo que: (...) tem uma torre, muito alta, de cantaria, com um formoso coruchéu de azuleijos, que, quando lhe dá o raio de Sol, parecem prata e ouro, em cima do qual está um sino de relógio, tão grande, que levará em sua concavidade trinta alqueires de trigo, de tão soberbo e grande tom, que se ouve de duas léguas, (...); e, mais abaixo, na torre, estão três janelas, onde 174 estão quinze sinos. 172 Frutuoso, op. cit., pág. 111 e 112. 173 Idem, op. cit., pág. 112. 174 Idem, op. cit., pág. 113. 80 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Na realidade, esta obra devia ser magnificente na época, pois ainda hoje é visível a sua imponência na baixa funchalense. 4. A magnificência da torre da Sé Catedral. O mesmo autor refere ainda que a Sé possuía um adro espaçoso, cercado por muros, ficando do lado de fora “um campo tão grande, que correm nele touros e cavalos, jogam as canas e 175 fazem outras festas” . A poente da Sé, a “um tiro de besta esforçado”, fica o mosteiro de São Francisco (17), com uma igreja “muito grande e lustrosa”, e as suas hortas envoltas numa “grande cerca”. “Pelas costas da capela-mor de São Francisco” passa a Rua de São Francisco que vai ter ao Convento de Santa Clara (9), que se localiza “sobre uma rocha mui forte”. Do meio da Rua de São Francisco saí uma outra rua principal, que vai ter a São Pedro 176 (hoje S. Paulo), denominada por Rua da Carreira dos Cavalos. Da porta principal da Sé, para norte, saía a Rua de “João ou de Manuel Tavila” (conhecida hoje como rua de João Tavira), e, 175 Ibidem. 176 Frutuoso, op. cit., pág. 114 e 115. 81 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt “acima dela”, a Rua das Pretas. Desta última rua deriva, para nascente, a Rua dos Netos, da qual nasce uma outra “que vai ter 177 aos moinhos” . 178 Relativamente à zona leste da cidade, Gaspar Frutuoso refere que junto ao Corpo Santo, onde se localiza a Capela com o mesmo nome (7), começa a Rua de Santa Maria que vai “dentro dos muros” até à Nossa Senhora do Calhau e que desta rua nasce, para norte, a Rua da Olaria. Fala-nos, ainda, da Igreja de Nossa Senhora do Calhau e da Casa da Misericórdia (10 e 16) que ficam junto da Ribeira de João Gomes. Para logo depois referir que por esta ribeira acima “há muitas vinhas de malvasias e vidonhos, em que se colhem 179 cada ano duzentas pipas de vinho” . Relativamente a este assunto, menciona ainda a existência de vinhedos ao longo da Ribeira de S. Pedro, os quais produzem mais de duzentas pipas de bom vinho. Antes de terminar a sua descrição, menciona a “ponte de 180 pau muito grande e forte” sobre a Ribeira de João Gomes, que ia dar à praça do Funchal, e a ponte sobre a Ribeira de Santa Luzia. Esta foi a cidade que Gaspar Frutuoso nos descreveu. Ao confrontar esta descrição com a Planta do Funchal de Mateus Fernandes é possível visualizar os “percursos descritivos” e os lugares. No entanto, é evidente que existiam muitas mais ruas do que aquelas que Frutuoso menciona, mas o mesmo, ainda que indirectamente, dá-nos uma justificação para esta discrepância 177 Segundo António Aragão esta rua “que vai ter aos moinhos” abrange as actuais Ruas do Castanheiro e das Mercês (Aragão, O Espírito do Lugar. A Cidade do Funchal., pág. 65). 178 Frutuoso, op. cit., pág. 116. 179 Idem, op. cit., pág. 117. 180 Ibidem. 82 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt quando diz que “estas são as ruas principais desta cidade, afora muitas menores e travessas, que todas estão calçadas de pedra 181 miúda” . Neste documento, o autor, por várias vezes, fez ainda referência às moradias, normalmente de “homens mui principais” ou de “pessoas de muita qualidade”, salientando a sua sumptuosidade, a sua localização à beira das ruas e a existência de jardins e/ou canaviais, vinhas e hortas na parte de trás das mesmas. Na verdade, e mais uma vez comparando esta descrição com a Planta de Mateus Fernandes, se pode concluir que o Funchal da segunda metade de quinhentos era uma cidade onde a vida urbana e a vida agrícola se combinavam de um modo muito natural. Mas, da análise deste documento de Gaspar Frutuoso, também se pode verificar que algumas ruas chegaram até aos nossos dias com o nome de baptismo da época, o qual podia estar ligado ao nome de um “homem de bem” que morava na rua ou a diversas razões de circunstância, tais como particularidades ou acontecimento ocorridos na rua. Já anteriormente referimos este facto e alguns exemplos, no entanto voltamos aqui a relembrar algumas dessas ruas: de João Tavira, de João Esmeraldo, dos Netos, das Pretas, da Cadeia, do Sabão, das Hortas. Antes de terminar esta análise da cidade do século XVI, é importante deixar um apontamento sobre a defesa da cidade. A “cidade do açúcar” só muito tardiamente teve um sistema defensivo efectivo. Como vimos, em 1494, D. João II “recuou” em relação à construção de uma “çerca” e dos “muros” que tinha mandado fazer na então vila, dando como alternativa a construção de alguns baluartes. Sabemos que, de facto ao fim de vinte anos, João de Cáceres, “pedreiro de estima e residente no Funchal”, foi encarregue em 1513 de construir um baluarte e o muro de defesa 181 Ibidem. 83 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 182 do Funchal, os quais só ficaram concluídos em 1542 . É ainda certo que em 1553 a fortaleza da cidade ainda “se encontrava por acabar e que da parte da cidade ela possuía um muro muito baixo 183 e vulnerável” . Gaspar Frutuoso diz, a este respeito, que o muro da Fortaleza de S. Lourenço “não era mais alto que doze palmos por aquela parte de além da porta do baluarte, que é a banda do 184 Norte” . Contudo, só depois do ataque dos corsários franceses à cidade do Funchal, em 1566, é que vão ser realizadas obras de vulto a nível da fortificação da cidade, sendo Mateus Fernandes, 185 Mestre das Obras Reais, um dos seus responsáveis . Mateus Fernandes foi na realidade o primeiro grande fortificador do Funchal, datando dessa altura a Planta do Funchal que apresentamos neste trabalho e que serviu de base para as obras mandadas realizar pelo Regimento da Fortificação de 186 1572 . Este mestre das obras reais foi o responsável pela reforma da Fortaleza de S. Lourenço e pela construção da 182 Carita, R. (1984). O regimento de fortificação de D. Sebastião (1572) e a Carata da Madeira de Bartolomeu João (1654). Funchal: S. R. E., pág. 28. 183 Aragão, A. (1987). Para a história do Funchal. Funchal: S.R.E.C./DRAC, pág. 236. 184 Frutuoso, op. cit., Cap. 45, pág. 343 185 Aragão, Para a História do Funchal, pág. 203. 186 Este Regimento de Fortificação de D. Sebastião determina a fortificação da cidade do Funchal. Ele não só expõe em pormenor a implantação de uma muralha para fechar a cidade, como também estabelece um nítido e autêntico sistema defensivo. Rui Carita apresenta uma transcrição deste documento no seu livro O Regimento de Fortificação de D. Sebastião (1572) e a Carta da Madeira de Bartolomeu João (1654), pág. 77 a 81. 84 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 187 Fortaleza Nova , das duas muralhas ao longo das ribeiras de Nossa Senhora do Calhau e de São João, dos três baluartes da Fortaleza Velha e do troço de muralha junto da igreja de São Tiago. 5. Fortificações quinhentistas – Fortaleza de São Lourenço (1); Reduto da Alfândega (2); Fortaleza Nova da Praça (3); Fortaleza de São João do Pico (4); Fortaleza de São Tiago (5). (Carita, R., O regimento de fortificação de D. Sebastião (1572) e a Carata da Madeira de Bartolomeu João (1654).) 187 Esta Fortaleza concluída antes de 1582, recebeu o nome de Fortaleza da Praça ou do Pelourinho, devido à sua localização junto à Praça do Pelourinho. Aragão salienta ainda que esta Fortaleza foi também designada por Fortaleza de S. Filipe, uma vez que este era o seu patrono. (Aragão, op. cit., pág. 254) 85 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Mais tarde, em 1595, D. Filipe II nomeou como fortificador da Ilha Jerónimo Jorge que vai dar continuidade à construção de várias fortificações, nomeadamente das muralhas do Cabo do Calhau, e ainda dar início à construção das fortalezas do Pico e de 188 S. Tiago . É um facto que no final do século XVI a cidade estava fortificada da “parte do mar” e ao longo das ribeiras de São João e de João Gomes. Apresentava, ainda, algumas fortificações à sua volta e em pontos estratégicos da costa, de onde se destacam “as trinchas da Ribeira de Gonçalo Aires e no Corpo Santo, a vigia da referida ribeira e muros na Ribeira dos Socorridos, Praia Formosa, 189 Piornais e Ilhéus” . Em síntese: 188 a cidade do final do século XVI está assente na parte mais baixa do anfiteatro do Funchal, sensivelmente entre o actual Largo do Corpo Santo e o Jardim Municipal, constituindo o Convento de Santa Clara um dos seus extremos mais a norte; no seu traçado são evidentes três áreas distintas de crescimento da malha urbana: uma primeira a leste da Ribeira de João Gomes e que corresponde ao núcleo urbano primitivo de Santa Maria do Calhau; uma segunda entre esta ribeira e a Rua do Sabão, que provavelmente será a faixa de expansão da vila do terceiro quartel de quatrocentos, e, finalmente, uma terceira entre a Rua do Sabão e as proximidades da Ribeira de S. João, que corresponde à “cidade manuelina”, e que se desenvolveu a partir do Campo do Duque; a articular estes três núcleos urbanos, existem dois eixos estruturantes fundamentais: um ao longo da costa, que liga o Segundo A. Aragão, Jerónimo Jorge embora tenha apenas dado “início à fortaleza do Pico e à fortaleza de S. Tiago” é possivelmente o autor do “risco” destas duas fortalezas. (Idem, op. cit., pág. 205) 189 Idem, op. cit., pág. 254. 86 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt núcleo primitivo à área de expansão quatrocentista e quinhentista, constituído pela Rua de Santa Maria, Rua dos Mercadores e Rua de Santa Catarina, e um outro, que liga a zona ribeirinha ao centro da cidade e depois à zona fabril, constituído, num primeiro troço fundamentalmente por três ruas – a Rua Direita, Rua de João Esmeraldo e a Rua do Sabão – e depois pela Rua dos Ferreiros; o centro da cidade é definido, fundamentalmente, pela localização da Sé Catedral com a sua praça, da Casa da Câmara e Paço de Tabeliães e da Nova Alfândega, que vão assim unificar a vida religiosa e social, administrativa e económica; a “cidade manuelina” surge como um espaço urbano planeado, construído segundo uma estrutura ortogonal regular; no final do século XVI o plano de fortificação de D. Sebastião para a cidade do Funchal estava básicamente completo, encontrando-se não só a cidade como também os seus arredores fortificados. 2.2.2 O Século XVII – XVIII: a “Cidade do Vinho” A “cidade do vinho” ergueu-se num cenário de inquietação. As mudanças económicas e sociais que ocorreram na Ilha, durante este período, geraram uma sociedade de extremos, dividida entre os muito ricos e os muito pobres. Além disso, o país esteve envolvido em várias contendas, as quais directa ou indirectamente acabaram por ter repercussões na Ilha. Na realidade, estes dois séculos, em termos regionais, são marcados pela opulência e pela miséria, resultantes essencialmente do comércio do vinho e, ainda, do medo e da insegurança que se vivia no Atlântico, devido à constante ameaça de ataques holandeses, ingleses, franceses e de corsários argelinos. 87 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt De facto, em seiscentos, a economia açucareira que tanta riqueza trouxe à cidade do Funchal nos séculos XV e XVI começou a desaparecer e, aos poucos, foi substituída pela do 190 vinho. No final do século XVII, Hans Sloane , médico e naturalista irlandês de passagem pela Ilha, afirma que a Madeira encontrava-se praticamente coberta de vinhedos, o que é corroborado pelo inglês John Ovington (1689) quando, a propósito da beleza da paisagem, afirma que “as colinas e vales, abafados 191 de vinha, ofereciam-nos o penetrante odor das uvas maduras” . O certo é que à medida que os vinhedos se instalavam e alastravam por toda a Ilha, o vinho transformava-se na principal 192 fonte económica da Ilha . Simultaneamente, os canaviais 193 desapareciam e a importação de açúcar do Brasil ia aumentando a fim de garantir a manufactura de doces. Surgia assim uma nova produção agrícola com estruturas económicas próprias. Com ela chegava o sistema de colonia, onde o senhorio, dono da terra, cedia os seus terrenos aos colonos, que as cultivam em troca do pagamento de metade da produção da 194 terra e do seu trabalho. Os colonos tinham ainda que pagar o dízimo ao Rei a partir da sua metade da produção. Este sistema, com o passar do tempo, criou situações de extrema miséria, ao ponto de, nos finais do século XVIII, “muita 190 Aragão, A., A Madeira vista por estrangeiros – 1455-1700., pág. 158. 191 Idem, op. cit., pág. 199. 192 Segundo António Aragão, em 1646 a exportação de vinho rondava as 10 – 12 mil pipas anuais. Em 1698, a Ilha produzir 20 mil pipas de vinho. (Aragão, O Espírito do Lugar. A cidade do Funchal., pág. 97) 193 Rui Nepomuceno afirma que, nos últimos anos do séc. XVII, “a Ilha importava mais de mil caixas de açúcar anuais (35 000 arrobas)”. (Nepomuceno, R. (2006 B). História da Madeira. Uma visão actual. Porto: Campo das Letras, pág. 141) 194 Segundo António Aragão estas eram “terras definhadas dos senhores de açúcar”, com uma produtividade muito baixa. (A. A., op. cit., pág. 90) 88 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt quantidade de gente anda[r] nesta cidade pedindo esmolla pellas 195 portas tanto homens como mulheres” . Em contraste, os donos das terras de vinha, cada vez mais ricos, instalavam-se na cidade, onde erguiam as suas casas e viviam, “na sua ociosidade, quase exclusivamente da metade 196 que lhes cabia, resultante do trabalho dos colonos” . Por sua vez, a actividade comercial também sofreu transformações. O vinho passou a ser comercializado por mercadores ingleses, que rapidamente substituíram os mercadores açucareiros de várias nacionalidades. No início de oitocentos, os mercadores ingleses dominavam totalmente o mercado do vinho, impondo-se de tal modo que “a população passou a depender deles para vestir e comer, na medida que levavam o vinho e, em troca, traziam 197 tecidos e produtos alimentares, em especial trigo” . De facto, estes comerciantes souberam tirar partido do vinho que a Ilha produzia, fazendo-o chegar em grandes quantidades às colónias europeias espalhadas pelos quatro cantos do mundo, através das rotas marítimas coloniais, na sua maioria sob o domínio inglês, que passavam pela Ilha e que atraiam um elevado número de navios ao porto do Funchal. Entretanto, à medida que o comércio do vinho se expandia, os comerciantes ingleses e alguns madeirenses, sobretudo os donos das terras de vinhas, enriqueciam enquanto a maioria da população empobrecia. 195 Observação feita, em 1847, pelo governador civil José Silvestre Ribeiro e citado por António Aragão (A. A., O Espírito do Lugar. A cidade do Funchal., pág. 94 e 95). 196 Idem, op. cit., pág. 96. 197 Idem, op. cit., pág. 99. 89 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Curiosamente, é neste cenário, por um lado de opulência por parte dos “senhores das terras” e dos mercadores de vinho e, por outro, da insegurança que chegava pelo Atlântico, que a cidade do Funchal vai modificar-se e ganhar um “novo rosto”. Com a riqueza do vinho chegou o barroco. E, à semelhança do que sucedeu com a arte mudéjar, chegaram do Reino artistas barrocos, “tanto douradores como mestres de entalhar – imaginários, ensabladores ou entalhadores”, que “conceberam e criaram em terras insulares uma arte barroca que se expandiu por 198 todos os templos da Ilha” . Segundo Aragão, o barroco insular foi sobretudo “uma arte de interior”, que se expandiu “em esplendor e riqueza no interior 199 das igrejas e capelas” , sob a forma de retábulos de talha dourada e imaginária variada. O mesmo autor afirma ainda que, a nível exterior, também deixou marcas nas fachadas das moradias dos proprietários das vinhas que procuraram a cidade para viver, salientando as fachadas dos edifícios com cantarias lavradas. Desses edifícios restam alguns, ainda que adulterados, nas ruas das Mercês, da Carreira, da Conceição, da Alfândega, dos Netos, das Pretas, do Bispo ou dos Ferreiros. Pela observação in loco verificamos que de facto estes edifícios impõem a sua presença na rua, são robustos, e as suas cantarias são “mais trabalhadas”, no entanto apenas concordamos com António Aragão quando este diz que o barroco foi nesta cidade “uma arte de interiores”. 198 Aragão, op. cit., pág. 103. 199 Idem, op. cit., pág. 108. 90 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 6. Permanências da cidade "barroca" -Palácio de S. Pedro (1); Palácio da Câmara (2); Palácio da Rua do Esmeraldo (3). Por sua vez, a insegurança do Atlântico promoveu a continuação e a intensificação da fortificação da cidade. Na realidade, o sistema defensivo da cidade do Funchal era uma preocupação constante desde os finais do século XVI. Assim, na continuidade do que já havia acontecido no final do século anterior e em consequência do perigo eminente de ataque de corsários ou de uma invasão por parte dos holandeses ou dos castelhanos, o Funchal continuou a ser alvo de um cuidado processo de fortificação. Como referimos anteriormente, foi Jerónimo Jorge que, desde 1595, ficou responsável pela fortificação da cidade do 200 Funchal. Este fortificador, “engenheiro e arquitecto” , para além 200 António Aragão é da opinião que a actividade de Jerónimo Jorge, enquanto engenheiro e arquitecto, foi além das obras de fortificação, atribuindo-lhe a autoria do antigo Paço Episcopal, situado na Rua do Bispo, onde ainda hoje se pode observar a arcada renascentista e a capela que se encontram integradas no edifício do Museu de Arte Sacra. A propósito deste edifício, Aragão salienta que o mesmo não corresponde ao que foi desenhado por Jerónimo Jorge, dado que esse foi destruído pelo terramoto de 1748, tendo sido erguido em seu lugar “uma vasta e 91 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt de ter realizado várias fortificações, deu início à Fortaleza do Pico e à Fortaleza de S. Tiago. Em 1617 Jerónimo Jorge morreu e foi substituído pelo seu filho Bartolomeu João que foi nomeado fortificador em 1618. Durante um período aproximado de quarenta anos este novo fortificador executou diversas obras, de onde se destacam a 201 conclusão da Fortaleza de S. Lourenço , da Fortaleza do Pico e do Forte de S. Tiago, e, ainda, a edificação do Forte dos Louros, 202 do Reduto da Alfândega e do Forte do Ilhéu . É importante salientar que as obras de fortificação da cidade do Funchal sempre estiveram dependentes da disponibilidade de verbas para custear as despesas, o que acabou por ter repercussões no avanço das obras. No entanto, em 1632 já estavam de facto concluídas as obras da Fortaleza Velha e do Forte de S. Tiago, estando em curso as obras de acabamento da 203 Fortaleza do Pico . Foi após a restauração da independência nacional, em 1644, que se realizou a construção do Reduto da Alfândega, do 204 Forte dos Louros e da Fortaleza do Ilhéu ou de Nossa Senhora da Conceição. Sendo, ainda, por essa altura que ficou acabada a cortina marítima entre o Forte de S. Filipe e a Fortaleza de S. equilibrada edificação barroca, datada de 1750” (Aragão, Para a História do Funchal, pág. 205). 201 Aragão diz-nos que as obras que se realização na Fortaleza de S. Lourenço deviam ser a construção do baluarte norte virado para a Avenida Arriaga. (Idem, op. cit., pág. 278) 202 Idem, op. cit., pág. 207. 203 Carita, R. (1984). O regimento de fortificação de D. Sebastião (1572) e a Carata da Madeira de Bartolomeu João (1654). Funchal: S.R.E., pág. 101. 204 Segundo Rui Carita, o Forte dos Louros foi mandado construir por Diogo Fernandes Branco, mercador da Ilha, provavelmente na primeira metade do século XVII. (Idem, op. cit., pág. 102) 92 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Tiago, para a qual foi necessário derrubar algumas casas do bairro 205 piscatório de Santa Maria. No final do século XVII e princípios do século XVIII, foram construídas novas fortificações na Ilha da Madeira, no entanto no Funchal apenas é feita referência ao Forte Novo, construído entre o Forte de S. Tiago e a Ribeira de João Gomes, e ao Forte da Penha de França. Já na segunda metade de setecentos, António 206 Aragão menciona que o Forte de São Tiago sofreu uma ampliação (1767) e que foi construído um novo forte, o de São José. Sabemos, ainda, que entre 1782 e 1797 foram gastos m “241:780. 833 réis” em obras realizadas nas fortificações da 207 Ilha , o que na realidade não é uma surpresa na medida em que, na segunda metade deste século, vamos encontrar alguns relatórios e ofícios onde são feitas referências às “péssimas 208 condições em que se encontravam as fortificações” , o que sem dúvida ponha em causa a defesa da Ilha e da própria cidade. 205 Sarmento, A. A. (1952). Ensaios históricos da minha Terra. Ilha da Madeira. Vol. II. Funchal: Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, pág. 12. 206 Aragão, Para a História do Funchal, pág. 283. 207 Mappa geral da despeza das obras de fortificação, que se fizeram no tempo do Governador D. Diogo Pereira Forjaz Coutinho, datado de 10 de Abril de 1799 (Caixa 5, nº 1066) (Documento manuscrito retirado do inventário de Almeida, E. C. (1907). Archivo de Marinha e Ultramar. Madeira e Porto Santo – 1613 a 1819., Vol. I, Coimbra: Imprensa da Universidade) 208 De onde se pode, por exemplo, destacar: o Relatório do governador, Conde de S. Miguel, para Diogo de Mendonça Corte Real, de 20 de Janeiro de 1754 (Caixa 1, nº 22 – annexo ao nº 21) – onde para salientar o estado das fortificações é utilizada a expressão “(...) Ocomo estas forteficações seachão demolidas (...)”; o Relatório do governador Manuel de Saldanha de Albuquerque, dirigido a El-rei D. José, de 1 de Outubro de 1754 (Caixa 1, nº 48 e 49) – onde se afirma que as fortificações estão “emtal descuido nesta Ilha” devido à “falta de meyos”; o Officio do governador, José Corrêa de Sá, de 2 de Junho de 1759 (Caixa 1, nº 162) e um 93 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Através destes mesmos documentos ficamos ainda a saber que “a cauza desta perigoza indefeza tem sido a falta de cobranças da contribuição de nove mil cruzados annuaes com q’ concorrem os Habitantes, para a Fortificação, e q’ não se pagou 209 por muitos annos, pela indolencia da Provedoria extincta (...)” . Mas nesta cidade, para além das grandes residências senhoriais, dos fortes e redutos, surgiram ainda outras construções, algumas das quais permaneceram firmes e imponentes até aos dias de hoje. São exemplos dessas 210 construções o Paço Episcopal na Rua do Bispo , o Colégio dos Jesuítas e a Igreja do Colégio ou de São João Evangelista. De salientar, que estes dois últimos edifícios, anexos um ao outro, constituíram até ao século XIX o “maior conjunto edificado no 211 Funchal” . documento com Reflexões geraes sobre a Ilha da Madeira, do governador João Gonçalves da Câmara, datado de 23 de Junho de 1780 (Caixa 3, nº 556) – onde se pode ler, relativamente às fortificações, que estas se encontram “cahindo em ruina” ou “improprios para a defeza pela sua irregular, e mal entendida construção”. (Idem, op. cit.) 209 Reflexões geraes sobre a Ilha da Madeira, do governador João Gonçalves da Câmara, datado de 23 de Junho de 1780 (Caixa 3, nº 556). (Idem, op. cit.) 210 Actual Museu de Arte Sacra. 211 C. M. F. (2004). Funchal - Roteiro histórico turístico da cidade. Funchal: Câmara Municipal do Funchal, pág. 125. 94 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 7 Permanências seiscentistas e setecentistas: Paço Episcopal (1); Colégio dos Jesuítas (2); Igreja do Colégio (3). Foi neste ambiente, onde o “vinho” foi responsável não só pela introdução de uma nova ordem social na Ilha, como também por uma forma distinta de edificar e habitar, que a “cidade do vinho” se ergueu sobre a “cidade do açúcar”. Esta cidade que, ao longo de dois séculos, privilegiou os limites herdados da cidade quinhentista, começou, de um modo ainda muito tímido, a alongar-se pela encosta acima, onde se instalaram algumas quintas com sumptuosos vinhendos e jardins. O Funchal do século XVII e XVIII foi, como acabamos de ver, uma cidade subtilmente melhorada e preenchida. As suas muralhas, os fortes e as novas e ricas moradias dos “senhores do vinho” deram-lhe sobretudo uma nova imagem. Os quarteirões tornaram-se mais densos e os seus edifícios cresceram em altura, com as suas torres “avista-navios”. Contudo, o traçado da malha urbana quinhentista manteve-se. Esta cidade, como se pode verificar no Mapa nº 2, passados duzentos e cinco anos, cresceu muito pouco, permanecendo cristalizado o tecido urbano da “cidade do açúcar”. Na realidade, como afirma Aragão, “salvo mais umas quantas ruas e travessas, a cidade do vinho sobrepõe-se à cidade do açúcar, encavalita-se no seu dorso cansado e propõe 212 sobretudo um novo rosto” . 212 Aragão, Para a História do Funchal, pág. 137. 95 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Um “novo rosto” que vai dar à cidade uma imagem mais sólida e refinada. Nas diferentes artérias da cidade surgiram edifícios com fachadas guarnecidas com cantarias trabalhadas, muitas vezes com capelas anexas ou integradas na própria casa. Por esta altura, e com maior incidência no séc. XVIII, são também construídas, nas “melhores casas” do centro do Funchal, torres de “avista-navios”, as quais são “concebidas para aumentar a visão 213 panorâmica do porto” e, assim, permitir aos seus moradores 214 observar o movimento dos barcos . Hoje, ainda é possível observar alguns desses edifícios seiscentistas e setecentistas, bem como algumas torres de “avistanavios” típicas da “cidade do vinho”, que se encontram espalhadas pelo centro da cidade. 8 Permanências de edificações da "cidade do vinho": as torres “avista-navios”. Mas esta era também uma cidade que despertava o sentido do olfacto. Era com certeza uma cidade aromática, perfumada pela enorme quantidade de vinho guardado nos armazéns do résdo-chão das casas. Não nos podemos esquecer que numa época 213 Aragão, op. cit., pág. 105. 214 Aragão salienta que “a chegada de um navio à monótona e reduzida vida da cidade, funcionava não só como uma ansiada fonte de distracção, mas também como presumível transporte de correio ou mesmo de novas lá de fora relatadas pelos viajantes”. (Idem, op. cit., pág. 139 e 140) 96 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 215 em que as janelas das casas não tinham vidros e os armazéns de vinho multiplicavam-se pelas ruas da cidade, a fragrância do 216 vinho invadia com certeza as ruas . Como era a “cidade do vinho”? Um olhar atento do Mapa nº 3, onde concertamos a Planta do Funchal do Capitão Skinner, datada de 1775, sobre o ortofotomapa de 2004, permite-nos numa primeira análise concluir que a “cidade do vinho” conservou o traçado da cidade quinhentista e que o crescimento urbano ocorreu sobretudo para norte, ao longo da Ribeira de Santa Luzia, e para poente. Na realidade, constata-se que, nestes dois séculos, a malha urbana adensou-se e consolidou, sem que tenha havido uma expansão urbana significativa. De qualquer modo existem duas áreas de expansão específicas. Uma primeira para Norte, que acompanha o curso da Ribeira de Santa Luzia e que tem como principais eixos estruturantes a Rua das Mercês, a Rua dos Ferreiros e a Rua da Conceição e onde, à semelhança do que acontecia na cidade quinhentista, os quarteirões apresentam uma forma alongada, paralela à rua e à ribeira, e os lotes encontram-se orientados no sentido Este/Oeste. 215 É John Ovington quem o afirma, aquando da sua passagem pela ilha em 1689, ao caracterizar as casas da “cidade do Tunchal”. (Aragão, A Madeira vista por Estrangeiros – 1455-1700, pág. 201) 216 É curioso que esta é uma “memória” de infância que guardo da cidade da década de 70, princípio de 80, do século passado. No regresso da escola, atravessava a Rua do Bispo onde havia um armazém de vinho. Logo no início da rua, era perceptível o odor intenso e adocicado do vinho, que saía pelas janelas abertas, emolduradas em cantaria vermelha e com malheiros. Toda a rua ficava perfumada. 97 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Uma segunda área de expansão surge a ocidente, no prolongamento da “cidade manuelina”, cujos eixos estruturantes continuam a ser paralelos à linha da costa. Os quarteirões apresentam lotes dispostos em diferentes direcções, orientados para todas as frentes dos mesmos. Verifica-se também que existe uma “linha” de expansão para leste, a qual dá continuidade à Rua de Santa Maria. Ainda da observação do Mapa nº 3, é possível constatar que na “cidade do vinho” o núcleo da Sé continuou a ser o centro político-religioso-económico e que os espaços públicos, tais como praças e jardins, continuam a não ser valorizados. Na realidade, nestes dois séculos, não parecem ter surgido novas praças ou jardins. A planta do Funchal do Capitão Skinner dá-nos, ainda, uma visão extraordinária sobre a fortificação da cidade. Apesar de existir um mapa anterior, de Bartolomeu João (1654), com desenhos de diferentes fortes da cidade do Funchal, é na planta de Skinner que vamos encontrar informações precisas sobre o Funchal fortificado. Esta planta permite-nos, com algum rigor, identificar não só o percurso da muralha como também a localização dos fortes que defendiam a cidade. Assim, pelo Mapa nº 3, verificamos que, na segunda metade de setecentos, a muralha da cidade, a ocidente, entestava nas rochas junto à Fortaleza do Pico (C) e descia pelas actuais ruas Pimenta Aguiar, Major Reis Gomes e dos Aranhas até à zona do calhau de São Lázaro. Depois, acompanhando a costa, ia ligando os diferentes fortes – o Forte de São Lourenço (B), da Alfândega (4), do Pelourinho (7) e o Forte Novo (6) – até ao Forte de São Tiago (9). Constata-se ainda que a partir do Forte do Pelourinho saía uma muralha que subia a margem direita da Ribeira de João Gomes até às rochas do “alto” da Pena. Faziam também parte deste sistema defensivo da cidade o Forte do Ilhéu (5), o Forte de S. Diogo (8) e o Forte dos Louros, este último já fora dos limites definidos para este estudo. 98 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Skinner assinalou, igualmente, na sua planta as “portas do mar”, num total de sete. Este sistema de fortificação fechava a cidade por terra e defendia-a pelo lado do mar. Na realidade, a defesa da cidade, com cruzamento de fogos das várias fortificações, dificultava a entrada de navios inimigos no porto do Funchal, o que a manteve protegida de possíveis ataques. Deste sistema defensivo setecentista restam apenas vestígios da muralha – pequenos troços localizados na Rua Pimenta Aguiar, na Rua Major Reis Gomes e junto às rochas do “alto” da Pena, na Rua Visconde do Anadia, e nas traseiras da Rua do Portão de S. Tiago – e alguns fortes – o Forte do Pico, o Forte de São Lourenço, o Forte de São Tiago, o Forte do Ilhéu e, ainda, ruínas do Forte dos Louros. 9 Permanências da cidade fortificada: cortina da cidade (Rua do Portão de S. Tiago) (1); Forte do Ilhéu (2); Forte de São Tiago (3). Em síntese: a “cidade do vinho” é uma cidade que se consolidou, mantendo praticamente os limites da cidade quinhentista; no seu traçado encontramos, fundamentalmente, duas novas áreas de crescimento da malha urbana: uma para Norte, que acompanha o curso da Ribeira de Santa Luzia e que tem como principais eixos estruturantes a Rua das Mercês, a Rua dos Ferreiros e a Rua da Conceição, e uma outra para Ocidente, no prolongamento da “cidade manuelina”, cujos eixos estruturantes são paralelos ao traçado da linha da costa; 99 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt os eixos estruturantes fundamentais da cidade continuam a ser dois. Um que acompanha o traçado da linha de costa, na direcção Este-Oeste, ao longo da Rua de Santa Maria, Rua dos Mercadores, passando pelo núcleo da Sé e avançando em direcção da Ribeira de São João, até às actuais ruas Major Reis e dos Aranhas. E um outro, para o interior, que liga a zona marítima ao centro e, posteriormente, às novas áreas de expansão e às principais saídas da cidade; o centro da cidade continua a ser definido pelo núcleo da Sé, onde se enquadram a Sé Catedral e a sua praça, a Casa da Câmara, a Alfândega e a Misericórdia; relativamente ao seu sistema defensivo, na segunda metade de setecentos, o Funchal era uma cidade fortificada, com muralhas e fortes que a fechavam e a defendiam tanto por terra como por mar. 2.2.3 O Século XIX No século XIX a Madeira e a cidade do Funchal estiveram quase sempre sob um clima de conflitualidade latente e de grande instabilidade. A ocupação inglesa e a implantação do liberalismo não foram de todo consensuais. Ao abrigo da aliança luso-inglesa, durante as guerras napoleónicas, o exército inglês ocupou a Ilha, com o pretexto de a proteger e defender de possíveis ataques franceses. Na verdade, os ingleses estavam preocupados em defender os seus interesses, tendo para o efeito enviado um destacamento dirigido pelo Coronel Clinton, que ficou na Região entre 1801 e 1802. Cinco anos depois, chegaram ao Funchal “dois regimentos de infantaria (1000 soldados cada) e duas companhias de 217 artilharia” sob o comando do Major-General William Carr 217 Carita, R. (1982). Paulo Dias de Almeida e a Descrição da Ilha da Madeira. Funchal: DRAC, pág. 32. 100 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Beresford. Este general britânico, após o desembarque, ocupou o Palácio de São Lourenço e mandou hastear a bandeira inglesa em todas as fortificações do Funchal. Pelo que nos diz Rui Carita, esta segunda ocupação (1807-1814) “parecia visar, pura e simplesmente, a ocupação definitiva do Arquipélago pelas forças Inglesas e se não fora o enorme esforço diplomático, desenvolvido em vários centros europeus, dificilmente as forças inglesas daqui 218 teriam saído” . É claro que esta ocupação gerou desagrado desde o primeiro momento, contudo o poder dos comerciantes britânicos na Ilha e a importância destes para a sobrevivência dos madeirenses fez com que não tenha havido de imediato uma reacção à presença inglesa. O certo é que desde o século XVIII os madeirenses estavam subjugados ao domínio dos ingleses, ou melhor, dos comerciantes desta nacionalidade. Já em 1780, o governador João Gonçalves da Câmara ao reflectir sobre o problema do comércio na Madeira afirmava: (...) mas huma cega preocupação dos Habitantes nutrida artificiosamente pela desordenada cobiça dos Negociantes Britanicos, que lhes persuadem não ter esta Ilha necessidade de outro meyo pª subsistir, que a abundante exportação dos seos vinhos, recebendo o ses produtos em os generos necessarios, que elles 219 importão, por tão exorbitantes preços (...) Isto demonstra bem o modo como os ingleses, em proveito dos seus interesses comerciais, tinham levado os madeirenses à monocultura da vinha, tornando-os assim seus dependentes não 218 Idem, op. cit., pág. 31 e 32. 219 Reflexões geraes sobre a Ilha da Madeira, pelo Governador, João Gonçalves da Câmara, de 23 de Junho de 1780 (Caixa 3, nº 556) (Documento manuscrito retirado do inventário de Almeida, Archivo de Marinha e Ultramar, op. cit.) 101 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt só para a comercialização e exportação do vinho como também para importação de bens essenciais, nomeadamente de cereais. Após um período de relativa calmia, em 1827, as guerras entre liberais e miguelistas vão conduzir a uma nova crise económica. Os comerciantes ingleses, principais exportadores de vinho e importadores de cereais, preocupados com a situação começam a abandonar a Ilha. Em consequência a fome volta a grassar na Madeira, criando agitação social, marcada por furtos e assassínios e tornando ainda mais cruéis as acções de violência e repressão praticadas pelas forças miguelistas, que tinham chegado à Ilha em Agosto de 1828. O desenvolvimento da cidade oitocentista foi ainda pautado, na primeira metade do século, pelo apogeu e declínio do comércio do vinho e, na segunda metade, pelo turismo 220 “terapêutico” . Segundo António Aragão, no início do século XIX, o comércio do vinho “sofre profundos revezes, uns de origem interna e outros provocados por diversas razões externas, as quais, 221 reunidas, obrigaram a uma tremenda e imparável decadência” . As fraudes, as falsificações e as entradas na Ilha de aguardentes vindas do exterior, diminuiram a sua qualidade e prejudicaram o negócio vinícola. Além disso, o fim das guerras napoleónicas e o termo do bloqueio, permitiram a entrada de vinhos europeus nos mercados tradicionais do Vinho Madeira – Inglaterra e o mercado colonial asiático e americano –, diminuindo o número de exportações deste precioso elixir madeirense. A este propósito Alberto Vieira diz-nos que entre 1819 e 1821 havia 20 mil pipas a 220 Silva, I. (1985). A Madeira e o Turismo – Pequeno Esboço Histórico. Funchal: D.R.A.C. 221 António Aragão, O Espírito do Lugar. A Cidade do Funchal., pág. 112. 102 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 222 aguardar comprador . As exportações continuaram a decair, contribuindo para o desmoronamento do sector agrícola, que tinha vindo desde o século XVII a apostar exclusivamente na cultura da vinha. Na sequência de toda esta crise política, económica e social e da fome que lhe sobreveio, um grande número de madeirenses foi obrigado a emigrar para Demerara, Brasil e Hawai. Entre 1835 e 1855, calcula-se que cerca de 40 mil pessoas 223 emigraram da Ilha . Entretanto, à medida que a crise vinícola se instalava, os proprietários das terras começavam a vender os seus terrenos e quintas. Os comerciantes ingleses, enriquecidos com o comércio do vinho, adquirem essas propriedades e transformam-nas em pousadas e hotéis de acolhimento aos inúmeros britânicos de passagem para as colónias ou à procura de cura para a tísica pulmonar. Tem assim início um novo ciclo económico na Ilha – o do turismo terapêutico – mais uma vez dominado pelos ingleses. Esta nova actividade, apesar de estar voltada para um públicoalvo muito específico, fez com que a cidade começasse 224 progressivamente a ganhar uma “feição cosmopolita” . Nelson Veríssimo, num artigo intitulado Funchal – Città 225 Dolente , diz-nos que a partir da segunda metade do século XIX 222 Vieira, A. (2000, Dezembro). O Funchal. Os ritmos históricos de uma cidade portuária. Revista Sociedade e Território, nº 31/32, 60-80, pág. 75. 223 Aragão, op. cit., pág. 113. 224 Veríssimo, N. (1993, Janeiro-Junho). Funchal – Città Dolente. Revista Islenha, nº 12. 7 – 15, pág. 14. 225 Saliente-se, ainda, que o título, numa alegada comparação com a Città di Dite, no Inferno da Divina Comédia de Dante, é interessantíssimo pois o turismo “terapêutico” desenvolvido na Ilha deixava impregnado no ambiente da cidade uma persistente tristeza doentia, reconhecendo o próprio autor que “o Funchal era assim um misto de encanto, doçura, consolação e morbidez”. (Idem, op. cit., pág. 15) 103 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt a Madeira transformou-se “numa reputada estação de Inverno”, 226 recomendada “aos tuberculosos, convalescentes e asténicos” . Salientando que “o Funchal animava-se com esses forasteiros”, sem que as pessoas da terra colocassem “barreiras ao convívio”: Não havia espaço limitado para os doentes. Recebiam-nos nas suas quintas ou em singelas moradias. Magros e pálidos, esses parceiros do infortúnio deambulavam pela cidade. Nasciam amizades. (...) Consumia-se o tempo com passeios, 227 festas e pesquisas da Natureza. O turismo terapêutico trouxe até à Ilha “aristocratas, 228 burgueses e intelectuais” , sobretudo ingleses, que embora doentes priviligiavam a diversão – “bailes, teatro, concertos no 229 Passeio Público, os Clubs, as excursões pela ilha” –, emprestando à cidade do Funchal uma imagem cosmopolita mórbida. 230 Na verdade, como diz Veríssimo , “no Funchal pairava a sombra da morte”, pois enquanto uns melhoravam outros “fizeram da Ilha a sua última morada”. Assim, para uma cidade que procurava bem receber, era importante “ocultar os símbolos da morte”, tendo sido aprovada em 1897 uma postura da Câmara Municipal do Funchal que proibia “aos estabelecimentos de pompas fúnebres a exposição de objectos relacionados com a sua actividade”. Houve ainda uma preocupação com o tipo de árvores a colocar nos espaços públicos, verificando-se que os jornais da 226 Idem, op. cit., pág. 7. 227 Ibidem. 228 Idem, op. cit., pág. 9. 229 Idem, op. cit., pág. 13. 230 Idem, op. cit., pág. 14. 104 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt época preocupados com este assunto aconselhavam “a não utilização de árvores melancólicas, de cemitério” ou “o ajardinamento (...), com carvalhos, til e outras árvores umbrosas em vez do plátano, para assim melhorar a imagem da cidade 231 perante o visitante” . Outra “marca” deixada pelo turismo terapêutico na cidade foram as inúmeras “tabuletas e letreiros em língua estrangeiras, 232 espalhados pelas muitas lojas da cidade” . 10. As marcas de uma cidade voltada para o turismo – a proliferação de letreiros escritos em vários idiomas nas ruas da cidade do Funchal. (Fotografias cedida pelo A. R. M.) No entanto, esta actividade que tanto beneficiou economicamente a Ilha, veio mais tarde a cobrar o seu preço através da disseminação da doença entre a população, acabando por vitimar muitos madeirenses. O século XIX ficou ainda marcado por calamidades naturais que espalharam a destruição e a morte. 233 A 9 de Outubro de 1803, um forte aluvião , com origem em fortes chuvadas, atingiu a cidade do Funchal. Este aluvião, 231 Ibidem. 232 Ibidem. 105 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt conforme podemos verificar no inventário do Archivo da Marinha e 234 Ultramar , provocou enormes estragos na cidade do Funchal. O comunicado que o Major António Rodrigues de Sá redigiu sobre este assunto é muito elucidativo: Ontem de pois das 8 horas da noute / em consequencia da grande chuva, que comessou pelas 11 horas do dia com pouca difrensa, e durou com a mesma constancia té anoutesser / foi atacada esta cidę pellas Ribeiras que a divide com hum feror indizevel: esta noticia exigio da minha obrigação, mandar por sentinelas nas Ruas dos ferreiros, e tanueiros, huas pª empedirem, que o Povo se percepitasse na Ponte que na quele citio a Ribeira levou ao Mar, como tãobem a da Prasa, a do Calhau, a de S. Paulo, a do Ribeirinho da Carne Azeda, e o Maynel da Roxinha; e outras pª animais, e salvar os Moradores da Rua dos Tanueiros, que está de hua parte quaze toda aruinada, ficando mtas casas, como hua Praya de pedras grossas, mtas Familias, que passarão à outra vida, mtos armazens e logas innundadas, finalmente mtos outros estragos, innumeraveis: (...): tãobem no Bairro do Calhau ouverão casas inteiras, e familias que desaparecerão 235 (...). 233 Aluvião – acumulação de sedimentos deixados pelas correntes fluviais. (John Small e Michael Witherick, Dicionário de Geografia, Publicações Dom Quixote, pág. 17) 234 235 Almeida, Archivo de Marinha e Ultramar, op. cit.. Participação do Major, Antonio Rodrigues de Sá, ácerca dos extraordinarios estragos e lamentaveis desgraças pessoaes occasionados pela inundação das ribeiras na noite de 9 de Outubro de 1803, de 10 de Outubro de 1803 (Caixa 7, 106 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Existem testemunhos de outros aluviões neste século, dos quais se podem destacar, a título de exemplo, aqueles a que o engenheiro Reynaldo Oudinot faz referência no relatório de 14 de Abril de 1804 – 6 de Março; 10 de Março e 13 de Março desse 236 ano – ou aquele a que, segundo Rui Carita, Paulo Dias de Almeida faz referência na Descrição da Ilha da Madeira e que 237 ocorreu no dia 30 de Outubro de 1815 . Provavelmente muitos outros aconteceram, no entanto a sua força demolidora não foi tão grande como o de 9 de Outubro de 1803, sobretudo porque já tinham sido tomadas algumas providências para protecção da cidade, nomeadamente ao nível da construção de muralhas nas ribeiras. Oitocentos não foi todavia só um rol de desastres, trouxe também progresso e inovação à cidade. À medida que se avançava no século, o sonho de iluminar os diferentes espaços da cidade foi se tornando uma realidade. A chegada da iluminação pública, primeiro a azeite, depois a petróleo e, por fim, a energia eléctrica, modificou definitivamente a paisagem da cidade. Annexo ao nº 1392) (Documento manuscrito retirado do inventário de Almeida, Archivo de Marinha e Ultramar, op. cit.) 236 Relatorio do Engenheiro, Reynaldo Oudinot, sobre os estragos materiaes produzidos pelo temporal de 9 de Outubro de 1803, no Funchal e em outras povoações, de 14 de Abril de 1804 (Caixa 7, nº 1456) (Idem, op. cit.) 237 “Em 30 de Outubro de 1815 pelas 5 horas da tarde, houve um aluvião que levou quarenta casas e arruinou outras, inundando ruas, e se fosse à noite muita gente morreria afogada. A ribeira de S. Paulo chegou a trazer uma coluna de água e rochedos, que ocuparam a largura de 60 palmos e 30 de alto. Entre as pedras que ficaram no leito da ribeira, junto ao mar, havia uma de 20 palmos quadrados, e de 10 palmos muitas. Esta enchente durou uma hora.” (Rui Carita, Paulo Dias de Almeida e a Descrição da Ilha da Madeira, pág. 54) 107 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Entre 1846 e 1852, por iniciativa do conselheiro José Silvestre Ribeiro, governador da Ilha, foi colocado o primeiro sistema de iluminação da cidade, com candeeiros de azeite. Em 1858, com o objectivo de dotar a cidade de um novo sistema mais moderno e eficiente de iluminação, a Câmara Municipal do Funchal deliberou a abertura de um concurso para iluminar a cidade a gás. A primeira proposta chegou em 1859. Mas segundo Maurício Fernandes, “em 1864, o Funchal continuava iluminado a 238 azeite, dispondo a cidade de 133 candeeiros de 2 e 3 bicos” . Sabe-se no entanto que em 1881 já funcionavam candeeiros a petróleo e que a Câmara do Funchal abriu um novo concurso para a iluminação a gás, tendo havido uma proposta que foi rejeitada. A 24 de Janeiro de 1884 o engenheiro Eduardo Augusto Kopke fez uma proposta para implantar na cidade do Funchal um sistema de iluminação a “gaz d’ulha”. No entanto, a adjudicação desta obra foi alvo de grande polémica uma vez que não fazia sentido, numa época em que a electricidade ganhava cada vez mais adeptos, implantar um sistema desta natureza. Assim, em 1895, a Câmara Municipal realizou um novo contrato com este engenheiro, desta feita para a colocação de um sistema de iluminação eléctrica. No dia 22 de Maio de 1895 era celebrada, entre a Câmara Municipal do Funchal e o engenheiro Eduardo Augusto Kopke, a “escriptura de contracto para a illuminação da cidade do Funchal 239 por meio de luz electrica” . Neste contrato estava definida a área a electrificar (ver Mapa nº 4): 238 Fernandes, M. (1993, Janeiro-Junho). A iluminação pública no Funchal. Revista Islenha, nº 12. 80 – 83, pág. 81. 239 Eduardo Augusto Kopke, Escriptura de contracto para a Illuminação da Cidade do Funchal por meio de luz electrica celebrada entre a Camara Municipal da mesma cidade, Arquivo Regional da Madeira. 108 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt (...) o perímetro formado pelos polygonos cujos vertices se apoiam nos seguintes pontos: 1º Hotel Reid, na Estrada Monumental; 2º Ponte Velha do Ribeiro Seco; 3º Intercepção da rua do Arcebispo D. Ayres, com o princípio da estrada Levada de Santa Luzia; 4º Extremo da Levada de Santa Luzia ou intercepção da estrada da Levada de Santa Luzia com a Avenida Pedro José de Ornelas; 5º Intercepção do Caminho do Palheiro do Ferreiro com o Caminho do Terço; 240 6º Foz da Ribeira de Gonçalo Ayres. O mesmo documento referia, ainda, que era concedido ao engenheiro Eduardo Augusto Kopke, “por quarenta annos, (...), o exclusivo do fornecimento de luz electrica para a illuminação publica, municipal e particular e dos edificios públicos da cidade do 241 Funchal” . Ficamos também a saber que “as luzes da illuminação publica, serão accesas todas as noites, e manterão o maximo da intensidade estabelecida n’este contrato desde o occaso até ao 242 nascer do sol” . Em Junho de 1897 era finalmente inaugurada a “luz eléctrica” na cidade do Funchal. O Funchal oitocentista, apesar de marcado por uma variedade de acontecimentos que implicaram um número elevado de obras, não sofreu alterações significativas na sua malha urbana. O encanamento e consolidação do leito das ribeiras, a construção de algumas pontes e estradas, que beneficiaram sobretudo as ligações entre a cidade e o resto da Ilha e, ainda, a 240 Idem, pág. 4. 241 Idem, pág. 5. 242 Idem, pág. 6. 109 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt construção do Porto do Funchal constituiram intervenções localizadas, abrangendo áreas restritas da cidade. Além disso, 243 todas estas intervenções acabaram por se prolongar no tempo tendo um maior impacto na imagem do Funchal, manchada por obras intermináveis, do que propriamente na sua forma. No entanto, neste século a cidade do Funchal continuou a crescer, tendo ultrapassado os primeiros obstáculos que o relevo lhe impunha, sobretudo a Oeste, na margem direita da Ribeira de São João, e a Norte, na zona de Santa Clara e dos antigos Moinhos. A abertura de novas estradas parece ter sido determinante para a expansão da urbanização. Pela comparação da área construída nas plantas de 244 245 1894 e de 1775 , concertadas no Mapa nº 5 sobre o ortofotomapa de 2004, comprovamos que a cidade expandiu-se sobretudo para Ocidente, ocupando os terrenos, mais elevados, da margem direita da Ribeira de São João. Além disso, na margem esquerda desta ribeira, surgiram novos quarteirões, implantados perpendicularmente à linha de água, acompanhando o traçado da nova muralha da ribeira. O mesmo se verificou na Ribeira de João Gomes, onde surgiram também alguns novos quarteirões junto às margens. É, ainda, evidente que houve um aumento significativo da área construída, ocorrendo uma densificação do centro da cidade e a proliferação de uma série de 243 Temos vindo a constatar que esta foi uma realidade sempre presente na Ilha, motivada por constantes crises económicas e financeiras e, ainda, pela inércia dos vereadores e pela falta de apoio do Governo Central. 244 Planta da Cidade do Funchal e seus arredores, da autoria dos engenheiros Carlos Roma Machado de Faria e Maia, Adriano Augusto Trigo e Annibal Augusto Trigo, cedida pelo A.R.M.. 245 Plan of the Town of Funchal, da autoria do Capitão Skinner, cedida pela Casa- museu Frederico de Freitas. 110 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt pequenas construções nas áreas mais elevadas, envolventes à cidade. Como era o Funchal oitocentista? A cidade de 1800 encontrava-se certamente degradada. Com a excepção das casas dos senhores do vinho, que foram adquiridas pelos ingleses e transformadas em casas de hóspedes e em pequenos hotéis, é possível deduzir que muitos edifícios públicos, habitações e fortificações encontravam-se em ruína e que a ocupação urbana, sobretudo junto às margens das ribeiras, era desordenada. A corroborar esta nossa suposição temos diversos documentos do inventário do Archivo da Marinha e 246 Ultramar , que testemunham sobretudo o estado de degradação das edificações. Através da leitura destes e de outros documentos tomámos ainda consciência da gravidade das dificuldades económicas existentes na Ilha e dos muitos temporais e aluviões que frequentemente assolavam a cidade. Estas circunstâncias acabaram por contribuir e piorar o estado de decadência de muitos edifícios da cidade. Para agravar ainda mais a situação, a 9 de Outubro de 1803 a cidade foi atingida por um aluvião que, como já mencionamos, provocou muita destruição e mortes. 246 A título de exemplo, podemos mencionar os seguintes documentos, das últimas décadas de setecentos: Reflexões geraes sobre a Ilha da Madeira, pelo Governador, João Gonçalves da Câmara, de 23 de Junho de 1780 (Caixa 3, nº 556); Representação do Senado do Funchal, mostrando a necessidade de se construir uma nova casa da Câmara, de 23 de Novembro de 1779 (Caixa 3, nº 535); Officio do Governador, Ascenso de Siqueira Freire, para o Visconde de Anadia, de 3 de Setembro de 1806 (Caixa 8, nº 1686). (Documento manuscrito retirado do inventário de Almeida, Archivo de Marinha e Ultramar, op. cit.) 111 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt No Mapa nº 6, foram assinalados os leitos de cheia dos cursos de água que atravessam a cidade, sendo deste modo visíveis as áreas que foram destruídas pelo mesmo. Verifica-se que as áreas mais devastadas foram as que se localizam entre as ribeiras de Santa Luzia e de João Gomes, bem como as áreas adjacentes às suas margens. Segundo diferentes relatos, os estragos foram enormes na Rua dos Tanoeiros, no sítio do 247 Ribeirinho, na zona do Pelourinho e no Bairro de Santa Maria . Relativamente à Ribeira de São João, embora esta também tivesse galgado as margens, os prejuízos parecem ter sido muito menores, uma vez que “ella termina a cidade da parte 248 occidental” , localizando-se ali fundamentalmente terrenos agrícolas. Contudo, junto à foz, onde se localizava um pequeno 247 A propósito dos estragos provocados nestas áreas, Alberto Artur Sarmento escreve o seguinte: “A ribeira de João Gomes numa fúria de arrasto (...) entulhou ao chegar à cidade, esbraçando-se em três partes. No primeiro salto passou por cima da ponte da Rochinha, levou tudo adiante de si pela rua dos Pangueiros, caindo todas as casas que ficavam à porta da travessa de Nossa Senhora do Calhau. O segundo lanço no estacamento, pelo sítio do Ribeirinho, escavou uma vala enorme, por onde passava, levando consigo lojas e armazéns, e nas costas do Pelourinho (...). O terceiro braço desgarrado da Ribeira arrancou-lhe as muralhas da margem esquerda, entrou na rua do Hospital Velho, levou a Capela dos Reis Magos onde fora primitivamente a Misericórdia, e daí para a baixo, todas as casas com sua gente e haveres, e combinando-se as águas de encontro, derruíram a igreja de Nossa Senhora do Calhau (...). Toda a parte baixa da cidade ficou inundada, pois os muros de defesa no litoral serviram para subir mais a água que procurava saída.” (Sarmento, A. A. (1952). Ensaios históricos da minha Terra. Ilha da Madeira. Vol. III. Funchal: Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, pág. 169) 248 Relatorio do Engenheiro, Reynaldo Oudinot, sobre os estragos materiaes produzidos pelo temporal de 9 de Outubro de 1803, de 14 de Abril de 1804 (Caixa 7, nº 1456) (Idem, op. cit.) 112 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt núcleo de casas, os estragos foram significativos, tendo sido destruídas algumas habitações. Na sequência deste episódio e com o objectivo de dirigir os trabalhos de reconstrução das áreas atingidas pelo aluvião, chegou à Madeira, em Fevereiro de 1804, o engenheiro militar Reynaldo Oudinot, acompanhado do capitão Feliciano António de Matos e Carvalho. Em Setembro desse mesmo ano, juntou-se a 249 estes dois oficiais o Tenente Paulo Dias de Almeida . 250 Através da leitura do um relatório do Brigadeiro Oudinot , onde descreve os estragos causados pelo aluvião, ficamos a conhecer o “projecto das obras a construir para reparar as ruinas dos edificios e muralhas”. Nesse projecto, o engenheiro propunha, fundamentalmente, a reedificação e reparação das principais muralhas e pontes das ribeiras, definindo para o efeito algumas “maximas” a ter em conta durante a execução das obras: 249 Paulo Dias de Almeida realizou vários trabalhos sob as ordens do Brigadeiro Oudinot, de onde se destaca a execução de diferentes mapas, de que são exemplos a Planta da Cidade do Funchal e a Carta Geral da Ilha da Madeira; o levantamento de duas fortalezas – a de São Lourenço e a de São Tiago; a execução da Planta de Perfil de um baluarte proposto para ser construído na embocadura da Ribeira de São Paulo – a Bateria das Fontes; e outros perfis e plantas de outros lugares da Ilha. Segundo o documento do Archivo da Marinha e Ultramar (Carta de Paulo Dias de Almeida, para o Visconde de Anadia, de 15 de Setembro de 1805 - Caixa 7, nº 1610), este Tenente reivindicou ser o autor do mapa que o engenheiro Oudinot enviou, no dia 9 de Setembro de 1805, ao Visconde de Anadia. Paulo Dias de Almeida colaborou ainda, em 1824, com o Brigadeiro Francisco Raposo nos estudos sobre o porto do Funchal. 250 Relatorio do Engenheiro, Reynaldo Oudinot, sobre os estragos materiaes produzidos pelo temporal de 9 de Outubro de 1803, de 14 de Abril de 1804 (Caixa 7, nº 1456) (Idem, op. cit.) 113 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Maxima 1ª. As ribeiras devem ser conduzidas ate o Mar seguindo a direcção mais breve, e por consequencia a mais recta possivel: (...) Maxima 2ª. A largura de cada Ribeira e a altura de seus diques serão determinados segundo a observação das localidades e a experiencia tiverem 251 indicado que são convenientes (...) As “maximas” ditavam não só a rectificação dos cursos de água e a elevação das margens, bem como descreviam o método a utilizar na construção das pontes. Relativamente às obras a fazer na cidade, para além da mudança de direcção de diferentes secções das ribeiras “para outra mais recta”, destacavam-se a construção de pontes novas e de novos troços de muralha. O projecto especificava ainda, para cada uma das Ribeiras, a localização e a extensão das obras a realizar e os métodos a aplicar. Pela leitura de diferentes Officios e Cartas do inventário do Archivo da Marinha e Ultramar, constatamos que as obras propostas por Reynaldo Oudinot não só foram iniciadas antes de 252 24 de Abril de 1804 , como também estavam a ser feitas a um bom ritmo no final desse ano. Num officio datado de 6 de Dezembro de 1804, podemos ler que “as chuvas tinham produzido grandes cheias nas ribeiras, pelas quaes se mostrára a efficacia e 253 solidez das obras construidas” . Os trabalhos propostos no Plano 251 Ibidem. 252 Carta de Reynaldo Oudinot, ácerca dos trabalhos de reparação a que estava procedendo nas Ribeiras, de 24 de Abril de 1804 (Caixa 7, nº 1458) (Idem, op. cit.) 253 Officio do Engenheiro, Reynaldo Oudinot, de 6 de Dezembro de 1804 (Caixa 7, nº 1540 – Annexo ao nº 1538) (Idem, op. cit.) 114 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 254 de Oudinot continuavam em 1806 a ser executados com a expropriação de diversos prédios para a construção das muralhas nas margens das ribeiras de João Gomes e de Santa Luzia. Sabemos ainda que entre Setembro de 1806 e Março de 1807 foram feitos vários trabalhos de reparação nos paredões das 255 Ribeiras de João Gomes e de Santa Luzia . Contudo é um facto que as obras propostas por Oudinot prolongaram-se, pelo menos, até ao ano de 1815: (...) encarregando o encanamento dellas [ribeiras] ao Brigadeiro Engenheiro Reynaldo Oudinot, que vindo a esta Ilha, fez o Plano, e sendo approvado por V. A. R. foi por elle posto em execução, e continuado depois 256 de sua morte , athe o prezente pelo seo Ajudante o 254 Officio do governador, Ascenso de Siqueira Freire, para o Visconde de Anadia, de 3 de Setembro de 1806 (Caixa 8, nº 1686) (Idem, op. cit.) 255 Na Carta do Capitão, Feliciano Antonio de Mattos Carvalho, de 6 de Abril de 1807, podemos ler que: “Na Ribeira de João Gomes do lado direito está completa amuralha em toda a sua elevação do ponto B athe o Forte do Pelourinho (...). Na margem esquerda da dita Ribeira estão feitas 109 braças liniares de muralha em toda a sua altura, contadas da Cortina da Marinha athé a primeira caza das que ainda discansão sobre amuralha velha da Ribeira: como tambem a sua escada de cantaria rija”. Relativamente à “Ribeira de Sta Luzia, no lado direito ficão ja completas 54 braças liniares de muralha, a saber .. 40 .. da ponte atual da Praça para a dentro, e .. 14 .. da dita ponte para o Mar (...). Do lado esquerdo da dita Ribeira está comtoda a sua altura hua porção de muralha, que principiando no Forte chega athe .. 17 .. braças pª adentro da Cidade (...)”. (Caixa 8, nº 1714) (Idem, op. cit.) 256 O engenheiro Reynaldo Oudinot faleceu no dia 11 de Fevereiro de 1807, sendo substituído na Direcção das Obras Públicas pelo Capitão Engenheiro Feliciano António de Mattos. (Documentos da Caixa 8, nº 1703 e 1704 – Annexa ao nº 1703) (Idem, op. cit.) 115 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Major Engenheiro Feliciano Antonio de Mattos (...). (...) afrouxou este trabalho desde o anno de 1810, pela necessidade de remetter para Londres a consignação anual de 45 mil libras sterlinas, quantia, que sendo muito superior ás sobras annuaes do rendimento da Capitania (...). Não podendo por este motivo concluir o trabalho, que devia pôr a cidade em 257 difeza (...) Neste mesmo officio podemos ler que, a 26 de Outubro de 1815, a cidade sofreu um outro aluvião de grandes proporções, mas que, apesar dos estragos causados nas pontes, nas casas e em fazendas localizadas nas margens das ribeiras, as consequências do mesmo não foram mais graves devido à protecção das muralhas já construídas. 11. Memória das muralhas de protecção na Ribeira de Santa Luzia (1) e na Ribeira de João Gomes (2) (s. d., fotografias cedidas pelo A.R.M.). 257 Officio do Governador, Florencio Corrêa de Mello, remettendo uma representação da Junta da Real Fazenda, que lhe está annexa, de 23 de Novembro de 1815 (Caixa 13, nº 3713 – 3714) (Idem, op. cit.) 116 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt É de salientar que alguns troços das muralhas de protecção, da época de Oudinot, ainda hoje são visíveis, sobretudo na Ribeira de Santa Luzia. 12. Muralhas de protecção da Ribeira de Santa Luzia – permanências do século XIX. No início do século XIX foi difundido um projecto, provavelmente da autoria de Oudinot, onde era proposto a expansão da cidade do Funchal para Oeste. Na Planta da Cidade do Funchal de Paulo Dias de Almeida, que concertamos sobre o ortofotomapa do mapa nº 7, podemos observar no sítio das Angústias, entre a margem direita da ribeira de São João e o Ribeiro Seco, esse Projecto da Nova Cidade. Apesar de nunca ter sido executado, este plano recticular, com uma praça central quadrada, constituíu uma primeira tentativa de planificar a expansão da cidade. Esta Planta da Cidade do Funchal dá-nos inúmeras informações sobre a cidade do início de oitocentos. Uma análise atenta do mapa nº 7 permite-nos identificar e localizar as diversas fortificações que guarneciam a cidade oitocentista – Fortaleza do Pico (C); Fortaleza de São Tiago (10); Forte Novo de São Pedro (9); Forte de São Filipe (7); Bateria da Alfândega (1); Fortaleza de São Lourenço (B); Bateria das Fontes (2); Bateria de São Lázaro (3); Bateria da Pontinha; Bateria da Penha e Forte do Ilhéu (6). 117 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt A propósito de fortificações refira-se, a título de curiosidade, que no princípio do século XIX o Funchal tinha dezasseis Portas da Cidade, tendo algumas delas sido demolidas 258 entre 1836-39 . 13. Portas da Cidade - o Portão dos Varadouros. (Dillon, Frank, Funchal Cathedral, From the Beach – 1848-49 – gravura cedida pela C.M.F.F.); o Portão da Carleira (?), na Rua da Carreira (gravura cedida pelo M.Q.C.) Prosseguindo a leitura do mapa nº 7, constata-se que pela primeira vez surge identificada a Igreja Inglesa (12). Na realidade, apesar da longa presença dos ingleses na Ilha, só no primeiro quartel de oitocentos estes conseguiram autorização para erguer 258 Segundo o Padre Fernando Augusto da Silva, em 1836 estavam de pé onze Portas da Cidade: 2 entre a Fortaleza de São Tiago e o chamado Forte Novo; 1 entre o Forte Novo e o Pelourinho (Portão de Nossa Senhora do Calhau – demolido em 1836); 1 portão nos Varadouros (Portão dos Varadouros); 1 portão no extremo Sul da Rua do Sabão (demolido nesse mesmo ano); 1 junto ao Forte da Alfândega; 1 situado entre a Casa da Saúde e a Fortaleza de S. Lourenço (Portão da Saúde – demolido em 1836); 1 no alto da Rua dos Aranhas (Portão de São Lázaro); 1 junto à Capela de São Paulo (Portão de São Paulo – demolido em 1839); 1 situado abaixo do cemitério britânico (Portão da Carleira) e outro entre a Capela de São Paulo e a Rua da Bela Vista (Portão do Pico – demolido em 1865). (Silva, F. (1921). Elucidário Madeirense. Vol. III. Funchal: S.R.E.C., pág. 100) 118 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt um templo anglicano. É António Aragão quem nos dá essa informação, salientando ainda que esta autorização foi dada “sob condição de que o seu vulto arquitectónico não aparentasse semelhanças com o templo católico”. Na realidade, ainda hoje a igreja se encontra implantada no mesmo sítio, “um tanto afastado da rua e sem que a sua presença se confunda com a imagem de 259 qualquer construção católica” . No entanto, para uma análise mais detalhada das propostas apresentadas por Oudinot para “melhorar” a cidade do Funchal, podemos observar na figura nº 14 a Planta elaborada por Paulo Dias de Almeida. 14. Planta da Cidade do Funchal, atribuída a Paulo Dias de Almeida, primeiro quartel do século XIX (C.M.F.F) – 1. Projecto da Nova Cidade; 2. Ribeiro Seco; 3. Travessa das Violetas; 4. Rua da Alegria; 5. Rua do Conde Canavial; 6. Rua de João de Deus. 259 Aragão, O Espírito do Lugar. A Cidade do Funchal., pág. 122. 119 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Nesta Planta da Cidade está assinalado a vermelho o 260 “projecto que ainda se não realisou” . À parte do projecto da Nova Cidade (1) que, como referimos, não foi executado, estava ainda previsto a construção, junto à Ribeira de São João, de uma segunda muralha, com dois fortes, e, ainda, a abertura de novas ruas. Embora as muralhas não tenham sido edificados, é interessante verificar, através do mapa nº 7, que existem semelhanças entre a orientação das ruas projectadas e a de algumas vias hoje existentes – Travessa das Violetas (3), Rua da Alegria (4), Rua do Conde Canavial (5) e Rua de João de Deus (6). Nesta Planta é ainda bem visível o alinhamento das ribeiras resultante das correcções propostas pelo Brigadeiro Oudinot. Ainda em relação ao sítio das Angústia, sabe-se pela Descrição da Cidade do Funchal de Paulo Dias de Almeida, 261 incluída no livro de Rui Carita , que este começou a ser ocupado por muitas casas de funchalenses e estrangeiros a partir de 1814, altura em que “o Bispo fez encanar as Fontes de S. João para 262 aquele lugar, que não tinha água” . Naqueles terrenos foi também edificado o Hospital e o Cemitério Público da Santa Casa (5). Pela leitura da mesma descrição ficamos, igualmente, a saber que a baía do Funchal tinha “um bom ancoradouro”, havendo “um pequeno abrigo, a terra do Ilhéu, onde se abrigam pequenas embarcações”. Na verdade, este pequeno “abrigo” não era mais do que um pequeno cais de desembarque que tinha sido construído, na segunda metade de setecentos, entre a Pontinha e o Ilhéu de São José. O porto do Funchal era um assunto que estava pendente, pelo menos desde 1756. Na realidade, a partir dessa data são 260 Segundo uma nota que consta na parte inferior da Planta. 261 Carita, Paulo Dias de Almeida e a Descrição da Ilha da Madeira, pág. 57 a 59. 262 Idem, op. cit., pág. 57 120 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt frequentes os documentos do inventário do Archivo da Marinha e Ultramar que abordam o assunto das obras do porto e do cais da cidade. Sabemos que o engenheiro Francisco Tossi Colombino foi encarregue da elaboração do primeiro projecto do porto, havendo um número significativo de documentos que falam a esse 263 264 respeito . No entanto, só a 22 de Março de 1756 é que surge o primeiro registo a ordenar a construção do dito porto de abrigo. Em Abril do ano seguinte, o “Plano e modelo do porto d’esta 265 ilha” estava pronto, pois Colombino enviava-o para Thomé 266 Joaquim da Costa Corte Real . As obras deveriam ter sido iniciadas logo de seguida, pois em Novembro de 1757 um officio do Governador Manuel de Saldanha de Albuquerque, a propósito de “um forte temporal na costa da ilha”, fala na obra e nos estragos que a mesma sofreu: (...) na referida obra: esta se acha bastantem adiantada, e na prezente tormenta se conhecia melhor a sua utilidade as obras exteriores que se lhe 263 De que é exemplo o Extracto das ordens, expedidas pelo Conselho de Fazenda em 26 de Março de 1756 ao governador e capitão general da Ilha da Madeira, Manuel de Saldanha de Albuquerque, e ao Provedor da Fazenda respectivo, relativas às obras das fortificações, caes e porta daquella ilha. (Caixa 1, nº 69) (Documento manuscrito retirado do inventário de Almeida, Archivo de Marinha e Ultramar, op. cit.) 264 Copia da carta regia dirigida ao Governador da ilha da Madeira, Manuel de Saldanha de Albuquerque, de 22 de Junho de 1756 (Caixa 1, nº 91 – Annexo ao nº 90) (Idem, op. cit.) 265 Carta do Engenheiro Francisco Tossi Colombino, para Thomé Joaquim da Costa Corte Real, enviando o “Plano e modelo do porto d’esta ilha”, de 18 de Abril de 1757 (Caixa 1, nº 97) (Idem, op. cit.) 266 Thomé Joaquim da Costa Corte Real era Secretário de Estado da Marinha e Domínios Ultramarinos. 121 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt tinhão feito há dois mezes, pª mais segurança do corpo principal da mesma obra, achandosse ainda 267 imperfeitas, e mto frescas, padesceram ruina (...) Contudo estas obras prolongaram-se no tempo e, em Dezembro de 1759, um outro temporal assolou a costa da Ilha e são novamente referidos “grandes estragos em toda a costa e nas 268 obras do porto” . A partir de 1768 começou a ser veiculada a ideia de 269 “fechar os ilheos para protecção dos navios ancorados no porto” Mas, até ao início de oitocentos, parece não ter havido iniciativas nesse sentido. Sabemos, no entanto, que Paulo Dias de Almeida colaborou, em 1824, com o Brigadeiro Francisco Raposo nos estudos sobre o porto do Funchal, existindo na Biblioteca Nacional várias Plantas, assinadas pelo primeiro, com diferentes projectos 270 para o Porto da Abrigo . No entanto, sabemos que a obra que ligou o Ilhéu de São José ao de Nossa Senhora da Conceição só começou a ser efectuada em 1885. 267 Officio do Governador Manuel de Saldanha de Albuquerque, noticiando o ter havido um forte temporal na costa da ilha, de 4 de Novembro de 1757 (Caixa 1, nº 122) (Idem, op. cit.) 268 Officio do Governador, José Corrêa de Sá, de 24 de Dezembro de 1759 (Caixa 1, nº 190) (Idem, op. cit.) 269 Carta do Governador, João António de Sá Pereira, de 2 de Abril de 1768 (Caixa 2, nº 312) (Idem, op. cit.) 270 Planta do Porto d’Abrigo na Bahia do Funchal, 1º Projecto e Planta do Porto d’Abrigo na Bahia do Funchal, 2º Projecto, Paulo Dias d’Almeida, 1824 (Blanc, T. A. (1869). Album de desenhos dos portos marítimos artificiaes antigos e modernos que acompanham a histório dos mesmos portos). 122 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 271 Relativamente ao cais da cidade, Iolanda Silva diz-nos que só em 22 de Abril de 1843, foi tomada a decisão de construir um cais de pedra, em frente à cidade, tendo esta obra sido embargada em 1844 devido aos seus elevados custos. Em 1876 a construção do cais era ainda assunto de destaque. 15. O porto do Funchal em 1888 – ligação do Ilhéu de São José ao de Nossa Senhora da Conceição (fotografia cedida pelo A.R.M.). É interessante deixar aqui o testemunho de Isabella de França, uma inglesa casada com um madeirense que visitou a Madeira entre 1853 e 1854, a propósito do dito cais e da imagem que este deixava aos visitantes quando desembarcavam na praia: 271 Simões, A. V. e outros (1983). Transportes na Madeira. Funchal: D.R.A.C., pág. 37 e 38. 123 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Perto do sítio em que desembarcámos notam-se vestígios de um cais, planeado há já alguns anos. (...) Quando veio o Inverno tinham feito progressos consideráveis, sem tomar, contudo, as precauções devidas. Não tardou que rebentasse um temporal, e na manhã seguinte o cais estava desfeito. (...) Os enormes blocos de pedra foram arrojados em todas as direcções, e agora o que resta alcança apenas o quebra-mar. Às vezes sentam-se ali doentes, a gozar a brisa marítima; mas, como ponto de desembarque, 272 é totalmente inútil. Isabella de França, no seu livro, faz-nos ainda uma descrição muito interessante do Funchal na década de 50. Falanos dos meios de transporte – o carro de bois, o palanquim, as zorras e a rede; das ruas que, de um modo geral, são estreitas, “pavimentadas de seixos, na sua maior parte aguçados” e sem 273 passeios laterais ; da existência, à saída do local de desembarque, de “uma rua larga entre dois renques de 274 plátanos” que conduz ao Passeio Público; do facto de existirem na Rua da Carreira casas com quintais floridos, “demarcados pela antiga muralha da cidade”, para além das quais havia “parreiras, vivendas, quintas, a capela do cemitério, com o seu portão, num maciço de ciprestes, canaviais, castanheiros e árvores de folhagem exuberante, no meio das quais avultam imponentes as 275 largas folhas das bananeiras” ; da Igreja inglesa; do Convento de Santa Clara; da Quinta das Cruzes e do Forte do Pico. Menciona, 272 França, I. (....). Jornal de uma Visita à Madeira e a Portugal (1853 – 1854). Funchal: Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal, pág. 51. 273 I. F., op. cit., pág. 52 e 53. 274 Idem, op. cit., pág. 53. 275 Idem, op. cit., pág. 54. 124 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt ainda, as quintas espalhadas pelas encostas do anfiteatro do Funchal – “(...) distinguem-se campos entremeados de quintas, até ao Monte e Palheiro, e, por cima de tudo, a esplêndida serra com os seus inúmeros espinhaços e recortes, nalguns pontos coberta de pinhais ou giesta dourada, noutros exibindo montões de rocha 276 desnuda.” Esta “cidade jardim”, envolta ainda num ambiente “semirural”, começava então a expandir-se em direcção às áreas mais elevadas da baía. Isabella, em dado momento da sua descrição, menciona que da “parte alta da cidade” podia observar melhor o Funchal: “muito maior do que eu esperava: será a terceira das terras portuguesas, depois de Lisboa e Porto. Estende-se por mais de milha ao longo da costa e sobe a considerável distância até aos 277 montes.” Depreendemos ainda pela sua descrição que o Funchal era uma cidade segregada: “para lá das ribeiras, a nascente, ficava outrora uma zona respeitável da cidade, como ainda se pode inferir do que resta das belas casas ali edificadas, mas nos últimos anos vem sendo abandonada às classes mais baixas e 278 transformada em verdadeira espelunca” . Acrescenta ainda que nas margens das ribeiras existiam ruas, com “renques de plátanos” plantados na década de 20, que “constituiriam agradável passeio se não fossem as pessoas pobres que vivem nas imediações e que as escolheram para depósito de todo o género de porcarias, o que as torna intransitáveis a quem tiver olfacto 279 delicado” . Ainda a propósito das ribeiras, ficamos a saber que “são canais profundos entre fortes muralhas de pedra”, com um regime torrencial que, quando havia grandes chuvadas, arrastavam 276 Ibidem. 277 França, op. cit., pág. 56. 278 Ibidem. 279 Ibidem. 125 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt “pedregulhos de muitas toneladas”, os quais chegavam a destruir 280 as muralhas das ribeiras e provocavam inundações . Os espaços públicos da cidade foram igualmente alvo da sua atenção. Explica que o Passeio Público, que se localizava no “meio da cidade”, apresentava “quatro filas de árvores, quase todas carvalhos”; adiantando ainda que as árvores que anteriormente lá existiam “(...) os Miguelistas cortaram-nas a fim de arranjar campo para as tropas, ao mesmo tempo que demoliram um lindo teatro que ficava diante da entrada da 281 Fortaleza” . Afirma que havia outros dois passeios públicos arborizados, à beira-mar: a Praça da Rainha, que ficava junto ao cais “arruinado”, e a Praça Académica, a menos frequentada, localizada a nascente, “além das ribeiras”. Refere que, ao longo da praia, havia “a linha dos fortes, outrora artilhados, mas ao presente em triste estado de abandono”, ligados por muralhas. Junto à Fortaleza de São Lourenço existiam as “fontes públicas, às quais todos os habitantes mandam buscar água de beber, embora haja muitas 282 para outros fins em todos os cantos da cidade” . Continua a descrever a frente mar da cidade, referindo que para Este, ficava o 283 Pilar de Banger , a Alfândega, o mercado, a praça do peixe e, por fim, o Forte de São Tiago. Salienta, no entanto, que o mercado e a praça do peixe são “construções modernas e bem 284 ordenadas” . 280 Idem, op. cit., pág. 57. 281 Ibidem. 282 Idem, op. cit., pág. 58. 283 O Pilar de Banger foi inicialmente construído para apoio à descarga de mercadorias por meio de um guindaste. Ficava assim no “calhau”, junto ao mar, mas, segundo Isabella de França, a praia com o tempo foi alargando-se e esta edificação deixou de ter essa utilidade. 284 Ibidem. 126 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt A Norte do Passeio Público, em frente à Fortaleza de São Lourenço, ficava o Hospital e, para Poente, “as ruínas do Convento de São Francisco, parcialmente destruídas quando da abolição das Ordens”. A Leste localizava-se a Sé Catedral, que a Sul tinha um pequeno largo, fechado pela Cadeia. Isabella explica ainda que a Câmara Municipal tinha funcionado nesse edifício da Cadeia, mas que então ocupava uma casa na Rua dos Ferreiros. 16. As ruínas do Convento de São Francisco, com a Sé Catedral ao fundo e a Fortaleza de São Lourenço à direita.(View near the Praça da Constituição – 1850) (Gravura cedida pelo M.Q.C.) Fala-nos das igrejas da cidade e das “inúmeras capelas, muito arruinadas”. Acrescentando que a igreja do Colégio é a mais 285 “bem frequentada” e que “o convento anexo é agora quartel” . 285 França, op. cit., pág. 59. 127 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Relativamente aos “conventos de freiras” salienta que existem três 286 mas que “já não admitem mais noviças” . O Pelourinho ou “antiga praça pública”, que segundo Isabella já não tinha utilidade, nem tinha o pelourinho, estava rodeada de “algumas casas grandes, que já foram belas e hoje 287 estão tristemente arruinadas” . Isabella fala ainda da cortina de muralha que se estendia desde o Forte do Pico até praticamente ao mar e que tinha duas portas, a de São Paulo e a de São Lázaro, ficando o cemitério inglês do lado de fora da primeira e o cemitério português a “curta 288 distância da segunda” . Esta é a cidade da década de 50, permanecendo a nossa ideia inicial de que o Funchal apresentava áreas muito degradadas. No entanto, é interessante verificar que a cidade “utilizada” por aqueles que chegam de fora, pelos visitantes, restringia-se à área envoltente ao Passeio Público e à Rua da Carreira que, segundo parece, eram as zonas mais bem frequentadas e conservadas da cidade. É curioso que esta mesma ideia nos é dada, trinta anos mais tarde, por Dennis Embleton, quando escreve sobre a Praça da Constituição, a qual Isabella de França designada por Passeio Público: The Praça da Constituição is the great “passeio”, public promenade, or lounging place, with shops on each side, and the General Hospital on the north side. (…)You meet, on the Praça, with all the “beau monde” of Funchal, dressed in the newest fashions, and enjoying the music and a stroll about with their friends, 286 Ibidem. 287 Ibidem. 288 França, op. cit., pág. 60. 128 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt in clear sunny air, in which neither smoke nor dust 289 exist (…) No entanto, na descrição deste autor em momento algum é feita referência ao estado de conservação da cidade. Uma coisa é certa, o Funchal de finais de oitocentos era uma cidade que começava a crescer, e que já não se encontrava confinada apenas à parte mais baixa da baía. Através do Mapa nº 8, onde a Planta da Cidade do Funchal e seus arredores, da autoria dos engenheiros Carlos Maia, Adriano Trigo e Annibal Trigo, foi concertada sobre o ortofotomapa de 2004, podemos observar esse mesmo crescimento. A nossa área de estudo está agora polvilhada de pequenas moradias, sobretudo a Oeste da Ribeira de São João e a Nordeste da zona de Santa Maria. Relativamente à área compreendida entre as ribeiras de São João e João Gomes, sendo mais plana, continuou a densificar-se, surgindo novos quarteirões sobretudo junto à margem esquerda da primeira ribeira. Do sistema de fortificação da cidade parecem apenas restar alguns fortes – a Fortaleza do Pico (C); o então já denominado Palácio de São Lourenço (B); a Fortaleza do Ilhéu ou de Nossa Senhora da conceição (8); o Forte de São Filipe (9); o Forte de São Pedro (10) e o Forte de São Tiago (11) – e uma parte da Cortina da Cidade (7) junto ao Campo de São Tiago (4). O Forte das Fontes foi demolido, dando lugar ao prolongamento da Praça da Rainha (27), de onde sai uma rua marginal que vai dar ao porto de abrigo. Ainda junto ao mar surge, a Oeste da Praça de São Pedro (28), o Mercado de São Pedro (22) e a Rua da Praia. O cais da cidade parece agora maior. 289 Embleton, D. (1882). A Visit to Madeira in Winter 1880-81. London: J. & A. Churchill, pág. 33. 129 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt É também evidente que os espaços públicos aumentaram. Surge o Jardim Municipal (15), onde antes estavam as ruínas do Convento de São Francisco. A Praça da Constituição (26) tem agora a ocidente um pequeno jardim e, como já mencionamos, a Praça da Rainha está maior. O Largo de São Sebastião (18), agora sem a capela, ganhou uma nova dinâmica, passando a ser local de feira. É evidente que a cidade mantém os seus eixos estruturantes iniciais, continuando a crescer para Oeste, paralelamente à linha de costa, e para Norte ao longo de ruas mais ou menos paralelas ao traçado das ribeiras. No entanto, nas áreas de expansão, começa a surgir uma urbanização dispersa. Em síntese: a cidade do Funchal do século XIX alargou definitivamente o seu limite, ultrapassando os primeiros obstáculos que o relevo lhe impunha, sobretudo para Oeste e para Norte, surgiu um novo fenómeno de urbanização que foi o da proliferação de pequenas habitações nas áreas envolventes, mais elevadas, da cidade; neste século continua a haver uma densificação do centro da cidade; a cidade manteve os seus eixos estruturantes iniciais, continuando a crescer para Oeste, paralelamente à linha da costa, e para Norte ao longo de ruas mais ou menos paralelas ao traçado das ribeiras. 2.2.4 O Século XX Portugal ao longo do século XX viveu períodos de grande agitação política. Logo na primeira década, uma monarquia, cada vez mais debilitada politicamente, é substituida pela Primeira República, facto que criou grandes expectativas na população portuguesa mas que pouco ou nada trouxe de novo. 130 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt À medida que o tempo passava, o clima de instabilidade aumentava, com quedas sucessivas de governos e o agravamento da crise económica. A 28 de Maio de 1926, um golpe militar punha fim ao regime parlamentar. Dois anos depois, António de Oliveira Salazar tomava posse como Ministro das Finanças e, ao fim de um ano, liquidava a dívida pública, baixava as taxas de juro, estabilizava o valor da moeda, lançava o crédito público de médio e longo prazo, dotava o Estado dos meios necessários ao lançamento de um significativo programa de obras públicas. Aos poucos voltava a estabilidade política e social ao país. Salazar é então nomeado Primeiro Ministro em 1932 e com a promulgação da Constituição de 1933 é instituído o Estado Novo. Entre 1934 e 1940 o Estado Novo consolidou-se. Com a II Guerra Mundial uma profunda crise económica e social instalou-se em Portugal e o regime de Salazar sofreu a sua primeira crise. Após as eleições de 1951, depois da morte do general Carmona, é reiterada à confiança ao Chefe do Governo e Salazar manteve-se à frente do Ministério. Na década de 50 ocorreu uma intensificação da eficiência governativa no plano da reorganização económica e uma modernização das estruturas produtivas nacionais. Foram, então, elaborados os Planos de Fomento – de 1953, de 1959-64 e de 1968-1973 – e a vida económica do país reanimou-se. No entanto, em 1958, com as eleições presidenciais ocorreu a grande crise política do regime salazarista. Américo Tomás foi eleito Presidente da República. Sucedem a estas eleições uma série de acontecimentos que vieram a gerar uma instabilidade política. Em 1968, Oliveira Salazar é hospitalizado com urgência. É então exonerado do cargo e Marcelo Caetano é nomeado para as funções de presidente do Conselho de Ministros. A guerra de Ultramar começava a ser uma preocupação grave sem fim à vista. O descontentamento instalou-se e em 24 de Abril de 1974 ocorreu a Revolução que pôs fim à II República. A nova Constituição foi promulgada em 1976 e após um período de 131 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt instabilidade política e social, com quedas sucessivas de governos e um agravamento económico do país, a normalidade constitucional consolidou-se. Em 1985 foi assinado o tratado de adesão de Portugal à Comunidade Económica Europeia e em 290 1992 foi assinado o Acordo de Maastricht. A Madeira acompanhou e viveu todos estes períodos com a agravante do peso do afastamento e do isolamento geográfico e, ainda, de uma crise económica e social que desde há muito parecia se ter tornado crónica. Na verdade, o Funchal novecentista despertou para o novo século no seio de uma profunda crise económica, política e 291 social. Segundo Rui Nepomuceno , no início deste século a economia da Ilha continuava estagnada e os atrasos sociais e culturais eram enormes. O porto do Funchal vinha desde há algum tempo a perder o estatuto de principal centro de apoio à navegação do Atlântico, não só devido ao desaparecimento do barco à vela, dependente dos ventos alísios e das correntes, mas 292 também devido à abertura do Canal do Suez , que desviavam o tráfego marítimo para outras rotas, e dos portos das Ilhas Canárias. Além disso, os principais sectores da economia madeirense continuavam no domínio e na posse dos ingleses. A tudo isto iria juntar-se a recente Autonomia Administrativa, adoptada em 8 de Agosto de 1901, a qual tinha criado algumas expectativas nos madeirenses mas que acabou por não resolver os principais problemas, “mantendo-se a comatosa crise económica, política, social e até cultural do 290 Saraiva, J. H. (1993). História de Portugal. Publicações Europa – América, pág. 495 a 560. 291 Nepomuceno, R. (2006 A). A conquista da Autonomia da Madeira. Os conflitos dos séculos XIX e XX. Lisboa: Editorial Caminho, pág. 69. 292 Este canal foi inaugurado em 1869. 132 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 293 arquipélago” . Os madeirenses continuavam a não puder gerir os seus recursos sem a interferência do Poder Central. A proclamação da República, em 1910, trouxe aos madeirenses a esperança, ainda que fugaz, de um maior desenvolvimento económico e de uma maior autonomia. Rui Nepomuceno escreve a este propósito que “a nova governação, para além da importante medida de aumentar o porto e o cais do Funchal, (...), apenas inaugurou, em 1911, a Rede Telefónica (...) 294 e o Sistema de Comunicações à base de telegrafia-sem-fios” . Este mesmo autor salienta ainda que a entrada de Portugal na Primeira Guerra Mundial veio agravar ainda mais a instabilidade que se vivia no Arquipélago. O certo é que, durante a guerra, não só o Funchal foi, em 1916 e em 1917, palco de dois bombardeamentos, que provocaram mortes e prejuízos materiais na cidade, como também, em consequência da diminuição do tráfego do porto do Funchal gerou-se uma grave crise de subsistência, ao ponto de em 1917 o Governador Civil Substituto ter ordenado “o descarregamento forçado de cerca de 700 toneladas de milho de África, que era destinado ao Continente, renovando, em pleno século XX, os cenários dramáticos do passado madeirense, acontecidos nos períodos da quase 295 monocultura do açúcar e depois do vinho” . Mas as contendas do passado pareciam não querer abandonar o Arquipélago. Os ódios e as lutas entre caseiros e senhorios continuavam, surgindo esporadicamente conflitos que fragilizavam cada vez mais as relações sociais. Só em 1967, com o Decreto-Lei 47 939, os Contratos de Colonia foram proibidos, 293 Nepomuceno, op. cit., pág. 71. 294 Nepomuceno, História da Madeira – uma visão actual, pág. 332. 295 Ibidem. 133 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt mantendo-se no entanto em vigor todos os pactos constituídos no 296 passado . Entretanto, após a guerra, e em consequência dos seus enormes custos, o país entra numa crise económica e financeira. A 28 de Maio de 1926 é instaurada a ditadura em Portugal. Mais uma vez, os madeirenses vêm nela uma esperança de mudança, que muito rapidamente se transformou em descontentamento generalizado e em revolta. A agravar toda esta situação, a crise económica que atingiu os Estados Unidos da América nos finais da década de 20, teve graves repercussões na Ilha na medida em que este país era o principal importador de bordado madeira. Em consequência disso, “milhares de bordadeiras do campo e da cidade ficaram sem trabalho e, muito embora ganhassem muito pouco a puxar pela agulha, o certo é que esses míseros vencimentos eram 297 fundamentais para ajudar a sustentar as suas pobres famílias” . Falências, desemprego, fome e muita miséria fazem-se sentir por todo o lado. No dia 4 Abril de 1931 os madeirenses revoltam-se em prol da democracia e das liberdades. O objectivo era combater o salazarismo e o seu governo corporativo. O regime fascista empreendeu então uma ofensiva militar contra a Madeira, tendo ocorrido alguns bombardeamentos e tiroteios em diferentes partes 298 da Ilha . A 2 de Maio os revoltosos renderam-se. 296 Estes conflitos só tiveram fim “quando a Assembleia Legislativa da Madeira, após decisão da Assembleia da República, decretou, em 1978, o Direito de Remição pelos colonos da nua propriedade das suas glebas”. (Nepomuceno, A Conquista da Autonomia da Madeira – os conflitos dos séculos XIX e XX, pág. 78 e 79). 297 Idem, op. cit., pág. 80. 298 Idem, op. cit., pág. 90. 134 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Esta revolta acabou por agravar os problemas da Região nos anos que se seguiram. Novas lutas se fizeram sentir, mas de nada serviram. Na opinião de Nepomuceno, o Arquipélago da Madeira viria a ser uma das regiões “mais fustigadas durante esses quase 50 anos da ditadura do Estado Novo, pois Salazar nunca esqueceu o estigma da Revolução da Madeira e da Revolta 299 do Leite” , acabando a Região por ser fortemente penalizada com pesados impostos. Em consequência da situação que a Madeira vivia, muitas pessoas emigraram entre 1950 e 1970. A Madeira com uma agricultura de subsistência, uma indústria praticamente inexistente e um sector terciário que mal sobrevivia, devido ao baixo poder de compra a esmagadora maioria da população voltou-se então para o turismo. Contudo, a concorrência era elevada e desigual. O Terreiro do Paço havia protegido e desenvolvido o turismo no Algarve e a concorrência das Ilhas Canárias era cada vez maior. A nível social os problemas não eram menores. Havia falta de escolas, não existia uma universidade e o analfabetismo era enorme. Não havia uma eficaz assistência médica e medicamentosa. A habitação social era escassa. Faltavam infraestruturas – água canalizada, luz eléctrica e saneamento básico. A Madeira debatia-se assim com um grande atraso a nível económico e social, e com uma enorme recessão económica. A Revolução de 25 de Abril de 1974 marcou uma nova fase para o Arquipélago. Novas esperanças surgiram. Em 1985, com a entrada de Portugal na União Económica Europeia, nova lufada de ar atingiu a Região. Apesar de todas estas conturbações políticas, económicas e sociais no País e na Região, o século XX foi sem dúvida aquele 299 Nepomuceno, História da Madeira – uma visão actual, pág. 387. 135 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt em que a cidade do Funchal mais cresceu e se transformou em termos urbanísticos. Até aos finais do século XIX, os limites da cidade tinham apenas ultrapassado timidamente a zona baixa do anfiteatro do Funchal. A cidade continuava aninhada e concentrada entre Santa Maria e a Ribeira de S. João, havendo uma tendência para o preenchimento e, consequente, consolidação do seu centro. A chegada do automóvel à Ilha, logo no início de novecentos, foi em nossa opinião determinante para o início do processo de transformações e intervenções urbanísticas a que o Funchal iria submeter-se ao longo da primeira metade do século XX. Na realidade, este meio de transporte, aliado ao esforço para a implantação de uma rede de estradas na Ilha e, ainda, à melhoria da rede viária do Funchal, que tiveram de se adaptar à circulação deste novo meio de transporte, contribuíu para o aumento da mobilidade da população e para a diminuição das distâncias. As pessoas, ao ganhar mobilidade, elegeram as áreas limítrofes da cidade para viver. O Funchal alargou-se, tendo crescido sobretudo através de um processo de dispersão de pequenas moradias que, com o decorrer do século, acabaram por se espalhar por todo o seu anfiteatro. No Mapa nº 9 podemos comparar a evolução da cidade do Funchal entre 1894 e 1990. Pela sua análise, concluímos que, em quase cem anos, a cidade cresceu e expandiu-se em diferentes direcções. Constata-se que áreas anteriormente agrícolas foram ocupadas sobretudo por pequenas construções dispersas e, ainda, que a parte central da cidade tornou-se mais densa e compacta. Ou seja, que ocorreu uma colmatagem dos espaços vazios e o preenchimento cerrado das frentes dos arruamento, com novas edifícações. A observação deste mapa permite-nos ainda verificar que nas áreas de expansão da cidade as construções não só se encontram dispersas como também distribuídas de um modo desordenado. Na realidade, este tipo de povoamento resultou do 136 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt facto de nestas áreas as estruturas das propriedades serem fundamentalmente rurais, o que fez com que as construções fossem aproveitando os caminhos públicos e seguindo o cadastro, originando deste modo uma ocupação dispersa e desordenada. Aliado a este crescimento da cidade surgiram novas preocupações relacionadas com a criação de novas infraestruturas e equipamentos sociais e, ainda, com a imagem da cidade. É ainda importante salientar que nas décadas de 40 e 50, o Governo Central a fim de atenuar o descontentamento dos madeirenses, mandou executar importantes empreendimentos e obras públicas, de onde se destacam a ampliação e o apetrechamento do porto do Funchal (3ª fase – 1934-39 e a 4ª fase – 1957-62), a construção de um aeroporto (concluído em 1964), melhorias nos Correios e nas comunicações e o lançamento de redes de saneamento básico no Funchal. Tendo em conta todo este processo, verifica-se que a cidade novecentista vai ser alvo de várias intervenções urbanísticas, às quais ficaram associados nomes como Ventura Terra, Fernão de Ornelas, Rafael Botelho, Óscar Niemeyer e outros, que devido à actualidade dos acontecimentos estão presentes na memória de todos. Na realidade, o grosso das acções urbanísticas que marcaram a cidade novecentista decorreu de projectos, de planos e de pessoas que num esforço conjunto conseguiram, passo a passo, dar uma nova imagem à cidade sem que no entanto esta tenha perdido a sua identidade. Para esta nova imagem do Funchal foram fundamentais as acções que a seguir se destacam: 1915 – foi apresentado um Plano de Melhoramentos para a Cidade do Funchal, da autoria do Arquitecto Ventura Terra. Este plano, que não chegou a ser executado, acabou por servir de “modelo” orientador de muitas das decisões e intervenções que vieram a ocorrer posteriormente na cidade; 1935-1947 – sob a alçada do Dr. Fernão de Ornelas, presidente da Câmara Municipal do Funchal entre 1935 e 137 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 1947, a cidade do Funchal foi objecto de grandes intervenções urbanísticas. Este autarca, sem dúvida o primeiro impulsionador das ideias de Ventura Terra, promoveu uma série de transformações que foram, sobretudo, cruciais para uma maior acessibilidade e mobilidade na cidade; 1972 – tem início um novo momento para a cidade do Funchal. Em Março deste ano é aprovado o primeiro Plano Director, cujos princípios gerais eram garantir à cidade um conveniente apetrechamento urbano, tendo em vista as necessidades do momento e futuras; estabelecer uma eficiente rede de circulação e comunicações; e defender o património edificado e natural; 1997 – o Plano de 1972 foi revogado pelo actual Plano Director do Funchal. Novas conjunturas tinham surgido e com elas novas preocupações, interesses e exigências. Ao Funchal pedia-se uma maior competitividade, uma maior qualidade de vida para a sua população e uma qualificação do meio urbano e natural. Assim, neste novo PDM é dada especial atenção à defesa e valorização do património cultural (artístico, urbanístico e etnográfico); à mobilidade e acessibilidade; à criação de habitação; à valorização dos espaços públicos e à recuperação da orla marítima. Dada a importância que estas acções tiveram na transformação e evolução da cidade do Funchal ao longo do século XX, será feita uma análise individual de cada uma delas. O Plano Geral de melhoramentos para o Funchal da autoria do arquitecto Ventura Terra (1913-1915). Ventura Terra nasceu em Seixas no ano de 1866. No seu percurso académico passa pela Academia de Belas Artes do Porto (1881), onde frequentou o curso de Arquitectura Civil e de Desenho Histórico, e pela École Nationale et Speciale des BeauxArts, em Paris, onde frequentou o atelier do Arquitecto Jules André 138 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt e obteve, em 1894, o Diploma de Arquitecto de 1ª Classe do Governo francês. Regressou a Portugal em 1896, onde procurou pôr em prática a sua aprendizagem parisiense. Enquanto arquitecto projectou prédios, palacetes, hospitais, teatros, liceus, escolas, igrejas, pavilhões de exposições, equipamentos assistenciais e monumentos. A sua actividade contemplou ainda o urbanismo, onde se podem destacar os projectos que realizou para o Parque Eduardo VII, os planos para a zona ribeirinha de Lisboa e o Plano de Urbanização do Funchal (1915). Nos trabalhos deste arquitecto – urbanista, é possível identificar uma preocupação constante com a vivência da cidade, com a sua organização interna e com a sua modernização. Os seus projectos reflectem, ainda, “preocupações de qualificação dos espaços onde intervém, que se manifestam nos diferentes 300 níveis de contenção orçamental e formal a que recorre” . No entanto, é importante aqui salientar um dos aspectos fundamentais da modernidade defendidos por Ventura Terra, o qual hoje não é facilmente aceitável. Para ele o Património era uma herança que devia ser respeitada mas que não devia dificultar o desenvolvimento do espaço urbano. Este foi sem dúvida o aspecto mais negativo de alguns projectos que realizou, pois com base nesta premissa, Terra propunha, por exemplo, a demolição de edifícios históricos. Ventura Terra foi então o autor do Plano Geral de Melhoramentos para o Funchal, apresentado em 1915 à Câmara Municipal do Funchal. A preparação deste plano trouxe este arquitecto-urbanista ao Funchal, em Fevereiro de 1913, com o intuito de “contactar pessoalmente com as particularidades da Madeira, quer nas suas 300 C. M. E. (2006). Miguel Ventura Terra – A arquitectura enquanto Projecto de Vida. Esposende: Câmara Municipal de Esposende, pág. 9. 139 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 301 belezas quer nos seus problemas” . Segundo o livro Miguel Ventura Terra – a arquitectura enquanto projecto de vida, que cita uma entrevista deste arquitecto dada ao Heraldo do Funchal, Ventura Terra considerava a cidade do Funchal: bastante confusa, com ruas horrivelmente calcetadas, muito irregulares e acidentadas, uma cidade completamente “destituída dos requisitos que faziam a formosura e a comodidade dos sistemas de viação das cidades modernas”. Lamentava, igualmente, que sendo a Madeira uma das “mais belas regiões do mundo”, a cidade do Funchal não aproveitasse os esplêndidos pontos de vista de que poderia tirar partido, apontando então directamente para o 302 desenvolvimento turístico. Este plano de urbanização, realizado para a Câmara Municipal do Funchal, era na opinião do seu autor para ser executado a longo prazo – “(...) como o poderá ser d’aqui a uns 303 cincoenta ou cem anos” , o que só demonstra que Ventura Terra, para além de ser um visionário, estava consciente dos entraves e dos custos que tamanha intervenção acarretaria para uma cidade da dimensão do Funchal. Concertamos o Plano de Ventura Terra no ortofotomapa de 2004 (Mapa nº 10), e da sua análise verificamos que este projecto propunha uma profunda remodelação do centro da cidade do Funchal a nível do traçado da rede viária, incluindo não só a alteração de alguns traçados como também a abertura de novas vias de circulação. Além disso é evidente que Ventura Terra 301 Idem, op. cit., pág. 415. 302 C.M.E., op. cit., pág. 415 e 416. 303 Idem, op. cit., pág. 418. 140 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt pretendeu com este seu projecto privilegiar a ligação da cidade ao mar. Ventura Terra propunha então no seu plano a abertura de uma ampla avenida marginal, que se estendia desde o Forte de S. Tiago (5) até à Ribeira de S. João, prolongando-se depois por uma rua, também ela litoral, até ao Largo de António Nobre (6). Paralelamente a esta avenida criava uma outra que passava sobre a Praça da Constituição (10) e continuava para Leste até ao Lazareto (8), passando muito perto do Campo da Barca (4), e para Oeste pelas Angústias até à Estrada Monumental. Mais para o interior e ainda com um traçado sensivelmente paralelo às avenidas, sugeria o alargamento da Rua da Carreira (11) e da actual Rua do Bom Jesus (12), propondo uma nova praça para o Largo do Colégio (7). Perpendicularmente a estas vias, determina a criação de um conjunto de outras avenidas paralelas entre si e com início na avenida marginal. Assim encontramos uma grande avenida sobre a Ribeira de Santa Luzia, que se prolongava para Norte até à zona 304 do Pombal (9); outra que passa em frente à Sé Catedral (A) e que desemboca na actual Praça do Município (7); uma outra que liga o cais da cidade à actual Avenida Arriaga (1) e, ainda, outra que se estende pela Calçada de S. Lourenço (3) até à Rua da Carreira. No projecto são ainda visíveis outras ruas, na sua maioria correspondendo ao alargamento de vias já existentes. Através de uma observação mais atenta do Mapa nº 10 constatamos que a abertura ou alargamento das vias propostas por Ventura Terra implicava não só a demolição de um elevado 305 número de prédios, de parte da Fortaleza de S. Lourenço (B) e 304 Era no Pombal que se localizava a estação de saída do comboio do Monte. 305 A abertura das duas avenidas contíguas ao Palácio de São Lourenço, implicava a demolição da parte Leste e Oeste do Palácio de São Lourenço. 141 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 306 da Praça da Constituição, como também o cobrimento da Ribeira de Santa Luzia. A leitura do mapa permite-nos, ainda, concluir que os eixos estruturantes da cidade mais uma vez se mantêm. Ventura propõe que as novas ruas e avenidas tenham fundamentalmente uma orientação Este-Oeste e Sul-Norte. Assim, verificamos que no primeiro caso estas vias seguem o eixo, paralelo à linha da costa, que liga, longitudinalmente, a parte Oriental e Ocidental da cidade, e no segundo o eixo, perpendicular à costa, que liga a frente mar ao interior da cidade. Da análise do Plano de Ventura Terra verificamos, também, que estavam projectados para as novas ruas amplos passeios laterais e placas centrais arborizadas. Constatamos, ainda, que em frente ao cais da cidade estava planeada a construção de uma ampla praça pública e, sobre o cais (2), um Casino Municipal. Relativamente ao cais, observa-se que este seria desviado para nascente, ficando localizado desta forma em frente à Alfândega. Em síntese, Ventura Terra com este Plano de Melhoramentos propôs uma nova forma de estar e organizar a cidade, valorizando a localização da cidade e a sua relação com o mar. 307 Além disso, o cosmopolitismo que Ventura Terra fez chegar até nós, através do seu Plano, foi sem dúvida uma condição de qualidade e de inovação na cidade do Funchal. Apesar do plano nunca ter sido executado, acreditamos que acabou por servir de modelo, transformando-se num importante 306 Ventura Terra defendia que, “com a cobertura da Ribeira de Santa Luzia, resolver-se-ia a questão do aspecto imundo e repugnante da mesma, por conduzir a descoberto os esgotos das casas de grande parte da cidade, com grave ofensa da higiene e do decoro da população”. (Idem, op. cit., pág. 419) 307 Que para Ventura Terra era “o gosto pela cidade como lugar de progresso e felicidade”. (op. cit., pág. 22) 142 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt instrumento de consulta que tem ajudado a repensar a cidade do Funchal nos últimos noventa e dois anos. As intervenções urbanísticas do Dr. Fernão de Ornelas (1935-1946) Fernão de Ornelas foi presidente da Câmara Municipal do Funchal entre 1935 e 1946. Durante a sua presidência houve um grande empenho na requalificação e modernização do Funchal. Este homem, de grande coragem e capacidade de realização, tomou decisões, nem sempre as mais populares, que tiveram um grande impacto na época e vieram a marcar de forma significativa a actual imagem do Funchal. Consciente das necessidades da cidade, sobretudo no que diz respeito à construção e melhoramento de infraestruturas e 308 de equipamentos e à sua higienização, Fernão de Ornelas não só procurou solucionar todos estes problemas como também deu início a uma verdadeira “revolução” em termos de requalificação e de modernização do Funchal. A cidade foi então palco de grandes intervenções. Durante pouco mais de uma década o Funchal viuse envolto em numerosas obras que não só transformaram o seu 308 Segundo o Ofício-memorandum de 8 de Fevereiro de 1935, enviado pela C.M.F. ao Presidente da Comissão Administrativa da Junta Geral Autónoma do Distrito de Funchal, “as obras mais necessárias a atender” no Concelho eram: a pavimentação de quase todas as ruas da cidade; a construção de um novo mercado de “frutas e flôres”e de um mercado para “venda de peixe”; a construção de “casas destinadas à residência dos magistrados”; a construção de escolas municipais; o lançamento de uma nova rede geral de esgotos; a construção de um novo Matadouro Municipal; e a construção de fontanários nas freguesisa rurais do Concelho. (Lopes, A. (2006). A Obra de Fernão Ornelas na Presidência da Câmara Municipal do Funchal: 1935-1946. Tese de Mestrado. Funchal, pág. 57 a 60) 143 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt centro como também contribuíram para a expansão da própria cidade. Em termos urbanísticos, a obra de Fernão de Ornelas foi sobretudo visível nas intervenções realizadas na rede viária da cidade. A requalificação e modernização das ruas contribuíu, sobretudo, para uma maior mobilidade e acessibilidade e para uma melhoria significativa da imagem do Funchal. As intervenções realizadas na rede viária incluíram o alargamento, realinhamento e calcetamento com paralelepipedos de basalto, de ruas e pontes; o prolongamento, por exemplo, da Avenida do Mar e das Ruas 5 de Outubro e 31 de Janeiro; e a abertura de novas vias, de onde se destacam a Rua dos Mercadores, actual Rua Fernão de Ornelas, e as avenidas Arriaga e do Infante. Os trabalhos realizados nas ruas, em especial na abertura de novas vias, teve um grande impacto no tecido urbano da cidade, pois envolveram um elevado número de demolições. A construção da Rotunda do Infante, que liga a Avenida Arriaga à Avenida do Infante, exigiu a cobertura de parte da Ribeira de São João. Mas a obra deste autarca foi, ainda, visível noutro âmbito. À volta do centro da cidade promoveu a construção de bairros económicos para os grupos mais desfavorecidos da sociedade – Bairro da Ajuda, Bairro de Santa Maria, Bairro dos Louros e Bairro de São Gonçalo; deu início à construção de escolas; melhorou as acessibilidades; colocou iluminação pública em ruas e jardins públicos; construíu um Estádio de Futebol, a Cadeia Civil dos Viveiros e, ainda, promoveu a construção de dois novos cemitérios 309 periféricos , para onde foi feita a trasladação do Cemitério das Angústias. Foi também responsável pela construção de alguns edifícios, estilo Estado Novo, de onde se destacam o edifício dos C.T.T. e o Mercado dos Lavradores. 309 Cemitério de São Martinho e o de São Gonçalo. 144 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Preocupado com o desenvolvimento da actividade turística, mandou construir miradouros sobranceiros à cidade e traçou o novo Roteiro Turístico do Funchal. Providenciou a limpeza das ribeiras que atravessam a cidade e mandou plantar Buganvílias nas suas margens para que estas trepassem os muros e as cobrissem. Fernão de Ornelas, neste percurso desenfreado de requalificação e modernização do Funchal, exigiu um elevado esforço financeiro à cidade, expropriou e demoliu prédios, perturbou e alterou a rotina de muitos funchalenses que diariamente percorriam e utilizavam a cidade e, ainda, beliscou interesses privados. Acabou por acumular divergências. Apesar da enorme obra que realizou não reuniu o consenso de todos e, em Outubro de 1946, pediu a sua demissão. Pela análise desta síntese da sua obra, podemos sem dúvida afirmar que, ao propor a contrução da Avenida Arriaga e do Infante, o prolongamento da Avenida do Mar ou a cobertura das ribeiras com Buganvílias, Fernão de Ornelas estava no fundo a materializar, ainda que de um modo modesto, o plano genial do arquitecto Ventura Terra. Disposto a dar continuidade a este projecto, Fernão de Ornelas apostou ainda na criação de novos espaços públicos, de onde se destacam a Praça do Município 310 (concluída em 1942) e o Parque de Santa Catarina . A sua coragem e capacidade de realização foram fundamentais para o início da concretização da utopia de Ventura Terra. Pela primeira vez, em quatro séculos, o centro do Funchal era “rasgado”. Até aqui tinhamos assistido a um processo de acrescentamento e compactação da cidade, mas agora estava em curso um processo de ruptura. 310 A prossecução desta obra só ficou decidida em Maio de 1946. (Acta da Comissão Administrativa da Câmara Municipal do Funcha,l de 9 de Maio de 1946 – Lopes, op. cit., pág. 182) 145 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Os Planos Directores O crescimento demográfico que se fez sentir no início deste século no Funchal, conduziu à necessidade da intervenção do poder administrativo, no sentido de ordenar as novas implantações e de adaptar a malha urbana da cidade às novas exigências da circulação automóvel, de higiene e salubridade. Sendo, ainda, visível uma crescente preocupação com os espaços verdes e a qualidade ambiental. É então na sequência destas novas necessidades da cidade que surgem, na primeira metade do século XX, diferentes planos urbanísticos de onde se destacam o Plano Geral de Melhoramentos para o Funchal (1915) do arquitecto Ventura Terra; o Plano de Urbanização para a Cidade do Funchal (193133) elaborado pelo arquitecto Carlos Ramos e o Plano de Urbanização do Funchal (1959) da autoria do arquitecto-urbanista João Faria da Costa. Na década de 60, a crescente necessidade da cidade evoluir exigia a sua expansão, regeneração e renovação, conduzindo à urgência da elaboração de programas e planos de ordenamento que traduzissem “os desejos e as conveniências da sociedade que a habita” e definissem “a forma e os meios 311 necessários à sua efectivação” . Em 1968-69 surge o Plano de Urbanização do Funchal, elaborado pelo arquitecto José Rafael Botelho. Da estreita colaboração entre este arquitecto e o Gabinete de Urbanização da Câmara Municipal do Funchal, acabou por nascer o primeiro Plano Director da Cidade do Funchal. Antes da aprovação deste Plano, a Câmara Municipal do Funchal organizou, em 1969, um Colóquio de Urbanismo onde 311 Botelho, J. R. (1969). Realizações Urbanísticas e Programação. Colóquio de Urbanismo (1969) – palestras e conclusões das mesas redondas, 143-155, pág. 143. 146 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt foram apresentados e debatidos os resultados dos estudos preliminares. Neste colóquio o arquitecto José Rafael Botelho, numa das palestras que proferiu, apresentou os problemas da urbanização desta cidade, começando por salientar que a sua evolução, ou a de qualquer outra cidade, envolvia “inúmeros problemas de ordem 312 social, económica, administrativa, financeira e política” . Na realidade, como se tem vindo a constatar, toda a história do desenvolvimento da cidade do Funchal tem estado dependente de problemas desta ordem, o que acabou por condicionar a tomada de decisões e o timing da sua aplicação, com implicações de vária ordem, inclusive urbanísticas. É importante ter presente que esta cidade foi, durante séculos, o único polo de convergência e fixação das principais actividades sócio-económicas da região. Foi, ainda, o porto de chegada e de partida dos seus habitantes, administradores, comerciantes e turistas, o que lhe conferiu um importante papel a nível das relações nacionais e internacionais. Rafael Botelho tinha tudo isto presente e, sobretudo, estava consciente de que os problemas que o Funchal apresentava nos finais da década de 60 exigiam uma estratégia, à qual só um Plano Director daria seguimento. Assim, Botelho acabaria por apresentar neste colóquio os problemas mais significativos que justificavam a necessidade da elaboração de um Plano de Urbanização. Em primeiro lugar salientou as condições naturais onde a cidade estava implantada e as dificuldades que estas traziam para a organização urbana do Funchal, sobretudo devido aos obstáculos naturais que limitavam 313 e condicionavam a mobilidade e a edificação ; referiu os problemas que uma expansão desordenada acarretava, alertando para o facto desta situação implicar “o aumento considerável das 312 Botelho, J. R. (1969). Problemas de Urbanização do Funchal. Colóquio de Urbanismo (1969) – palestras e conclusões das mesas redondas, 17-33, pág. 17. 313 J. R. Botelho, op. cit., pág. 19 e 20. 147 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt distâncias a percorrer no dia a dia; a grande extensão e fraca utilização das redes de serviços públicos: de saneamento, de comunicações, de energia e de transportes; o agravamento dos encargos com a dispersão do equipamento necessário à 314 colectividade” , o que ficava para além das possibilidades da economia local, daí a insistente falta de infraestruturas, de comodidades e de serviços; abordou o problema do congestionamento do centro da cidade, onde se localizavam e concentravam as principais actividades económicas, administrativas, culturais e recreativas; os problemas de tráfego e de circulação, com um crescente conflito da circulação automóvel e pedestre no cento da cidade; a crescente ocupação edificada e consequente adensamento do tecido urbano, o que acaba por ter repercussões, por exemplo, no consumo de energia e de água, no caudal de esgoto, na necessidade de mais estacionamento e de 315 mais serviços e comércio ; e a desvitalização do centro devido à progressiva ocupação dos prédios de habitação com actividades 316 económicas . Concluía, ainda, que “os problemas genéricos postos pelas necessidades de evolução do aglomerado incluem, no que toca a 317 sua natureza urbanística, essencialmente a renovação e a 314 Idem, op. cit., pág. 21. 315 Botelho, op. cit., pág. 26. 316 Idem, op. cit., pág. 31. 317 Entendida como “uma operação de substituição parcial ou total de tecido urbano, da organização espacial e funcional do aglomerado”. Botelho prossegue dizendo que “ela pressupõe, portanto, modificações da estrutura ou o seu reajustamento, a supressão ou reconstrução de edifícios, etc., com o fim de adaptar os aglomerados às necessidades e aspirações da sociedade e do homem”. Mais à frente alerta para os perigos e limitações da renovação urbana, salientando que “as operações de renovação quando isoladas e alheias aos interesses e exigências de uma adaptação correcta da forma urbana às necessidades da 148 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 318 expansão” , relembrando que a estes estão normalmente ligados os problemas de circulação, de transportes e de estacionamento. Na sequência dos problemas detectados foram apresentadas várias sugestões de onde se destacava a expansão urbana para Oeste, com um relevo mais suave, com maior possibilidade de aproveitamento da frente mar para fins turísticos e recreativos e com uma fraca ocupação edificada o que proporcionava uma estruturação urbanística adequada; uma renovação cuidada e consciente do centro da cidade, que se enquadrasse numa perspectiva urbanística e que tivesse em atenção os interesses e necessidades da colectividade; a conservação do património urbano natural e edificado; a revitalização do centro da cidade através da criação de equipamentos complementares à habitação; e a criação de novas vias de circulação. A 23 de Março de 1972 era aprovado o primeiro Plano 319 Director, que preconizava as seguintes operações : criação de novas vias ou melhoramento das existentes – via de acesso ao novo quartel; via de acesso ao Hospital Regional; via distribuidora este-oeste; ligação dos dois troços existentes da Avenida 5 de Outubro; saída Leste e Oeste da cidade; renovação de zonas centrais – zona compreendida entre o Bairro de S. Luzia, o Liceu, a Ribeira de João Gomes e a Rua Conde de Carvalhal; quarteirão compreendido entre a Ribeira de Santa Luzia e as Ruas dos Ferreiros e dos Netos; das evolução do aglomerado, como tal consideradas numa visão global, têm na maioria dos casos como consequência agravar as situações e consolidar os defeitos estruturais existentes”. (Idem, op. cit., pág. 29) 318 Ibidem. 319 Botelho, Realizações Urbanísticas e Programação, pág. 148, 149 e 150. 149 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt zonas abrangidas pela via de distribuição entre a Saída Leste e a Cruz de Carvalho; novas zonas de expansão – entre a Rua do Gorgulho e a Praia Formosa, como zona de interesse turístico e recreativo; zona a Nascente do Novo Quartel (Nazaré), com fins predominantemente habitacionais; zona Sul do Hospital Regional, também destinada a um desenvolvimento residencial; áreas para instalação de indústria – zona a Norte do Novo Quartel. Este Plano Director da Cidade do Funchal, de 1972, foi revogado pelo actual Plano Director Municipal do Funchal, o qual 320 foi ratificado pela Resolução nº 887/97 de 10 de Julho . O novo Plano nascia no meio de uma nova conjuntura, com outras preocupações, interesses e exigências. Portugal fazia parte da Comunidade Económica Europeia e o Turismo impunha-se na Região como a principal actividade económica em expansão. Ao Funchal pedia-se uma maior competitividade, uma maior qualidade de vida para a sua população e uma qualificação do meio urbano e natural. A cidade do início da década de 90 apresentava algumas debilidades que era necessário ter em atenção – deficiências a nível da acessibilidade interna, sobretudo no centro do Funchal; a localização do porto comercial, em pleno centro da cidade, o que apresentava inconvenientes de vária ordem, nomeadamente em termos de imagem urbana, de poluição sonora e de sobrecarga das infraestruturas viárias, sobretudo no tocante ao tráfego de pesados; o crescimento desordenado de habitação “informal” nas zonas altas; a sobreocupação de certas partes da Frente Mar e a excessiva concentração de funções económicas e administrativas 320 Jornal Oficial, II Série, nº 151, de 8 de Agosto de 1997. 150 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt na zona histórica, o que conduzia ao seu congestionamento e o abandono da função habitacional. 321 A falta de habitação e a necessidade de definir áreas de expansão turtística e áreas para a localização de novas actividades económicas fundamentais ao desenvolvimento do Concelho eram outros aspectos a ter em atenção. É evidente que estas debilidades conduziam a uma situação constrangedora a nível urbanístico e de promoção turística, tornando-se necessário proceder à elaboração de uma estratégia de ordenamento. Este Plano vai então estruturar o espaço urbano dando especial atenção à definição de novas centralidades e à reconversão de áreas para alargamento das funções urbanas tradicionais e de turismo e lazer. O P.D.M. propõe então, a nível do Ordenamento, a cobertura das necessidades previstas de habitação e de equipamentos colectivos de apoio social; a preservação da orla costeira como parte integrante do património natural; a preservação dos valores naturais, paisagísticos, florísticos e faunísticos; a criação de uma estrutura verde urbana em “continuum” natural; o aumento das acessibilidades internas e externas; a racionalização da gestão viária e do sistema de transportes; a garantia da cobertura total das zonas urbanizadas com as principais infraestruturas urbanas; e, ainda, a preservação, recuperação e protecção do património cultural (artístico, 322 construído e etnográfico). 321 Em 1991 o déficit de habitação rondava os 5 000 a 6 000 fogos, estimando-se que até 2004 era necessário construir cerca de 14 000 fogos. (C. M. F. (1995). Plano Director Municipal do Funchal. Elementos complementares. Relatório. Funchal: Câmara Municipal do Funchal, pág. 4) 322 Idem, op. cit., pág. 15 a 17. 151 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 323 Destacando as seguintes acções programáticas : 324 a definição de novas centralidades , a fim de combater a macrocefalia e o congestionamento do centro da cidade; a contenção, recuperação e integração dos núcleos habitacionais de construção espontânea; o incremento da função habitacional no centro histórico do Funchal, criando condições de atracção e fixação da população; a definição de espaços de utilização turística suficiente para responder à procura previsível e dirigidos para uma promoção de qualidade; a promoção de Áreas ou Parques Industriais convenientemente localizados e infraestruturados, a fim de transferir as unidades industriais e os armazéns das zonas habitacionais para zonas devidamente localizadas e infraestruturadas; a construção de novas vias circulares e radiais, bem como a reformulação do sistema de ligações viárias ao exterior do Concelho; a expansão e diversificação da oferta de transportes colectivos urbanos; a reconversão parcial do porto do Funchal, com a relocalização das actividades de carga e descarga de mercadorias, passando assim este porto a ser utilizado exclusivamente para as funções de porto de passageiros; 323 Idem, op. cit., pág. 18 a 21. 324 Para um melhor funcionamento da cidade, o P.D.M. propõe a criação de centros locais (Penteada – já existente, S. Martinho, Monte e S. Gonçalo), estrategicamente localizados numa zona de transição à volta do centro da cidade, os quais deverão estar articulados com a zona de expansão a Oeste e com toda a área habitacional envolvente através de um sistema de circulação melhorado. (Idem, op. cit., pág. 7). 152 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt o reforço do sistema de abastecimento de água, sobretudo no que diz respeito à substituição de condutas da rede de distribuição (nomeadamente nas zonas centrais da cidade, onde a mesma se encontra mais degradada); a expansão do sistema de drenagem e de tratamento de esgotos. Da aplicação destes Planos constata-se que a cidade ganhou uma nova imagem sem ter perdido a sua identidade. No entanto, ficou também claro que a existência de um processo de planeamento urbano foi, e é, fundamental para o desenvolvimento, que se quer sustentável, desta e de todas as cidades. As transformações urbanísticas que estes planos produziram na nossa área de estudo serão apresentadas mais à frente, quando analisarmos o Funchal na segunda metade do século XX. Como era o Funchal na primeira metade do século XX? Adriano Trigo e Aníbal Trigo, no Roteiro e Guia do Funchal de 1910, fazem uma descrição da cidade do Funchal muito interessante. Como vimos anteriormente, estes dois irmãos, engenheiros de profissão, foram os responsáveis pela elaboração da Planta do Funchal de 1894, o que, na nossa opinião, lhes dá uma outra visão da cidade. Assim, estes dois engenheiros escrevem que, em 1910, o Funchal ocupava: uma área de, proximamente, 500 hectares, em que se vem espalhadas milhares de edificações, de construção simples, mas muito confortáveis, e numerosissimas quintas e villas de requintado gosto e surpreendentes vistas, elegantemente dispersas em volta do grande nucleo central, onde as habitações mais se agglomeram, onde a vida é mais activa e 153 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt laboriosa, por ser a sede principal do seu grande 325 commercio, da sua industria e navegação. Sendo os seus limites “pelo norte, uma linha sensivelmente horisontal, situada á altitude média de 180 metros, passando pelas levadas do Bom Sucesso e Santa Luzia e pelo Caminho dos Alamos; pelo sul, o oceano; por leste, a Ribeira de Gonçalo Ayres; 326 e por oeste o Ribeiro Secco”. Ficamos também a saber que o Funchal tinha “um bom caes no centro da bahia e um pequeno ancoradouro abrigado pelo molhe da Pontinha”. Que possuía “magnificos passeios e jardins publicos, importantes edificios tanto publicos como particulares, hoteis de primeira ordem, um bello theatro, muitos e importantes estabelecimentos industriaes e commerciaes e alguns 327 estabelecimentos hospitalares” . E que a cidade era iluminada com luz eléctrica, mas que o serviço de esgotos e o abastecimento de água potável “deixava muito a desejar”. Relativamente às ruas, estes autores, dizem que “são calçadas por fórma apropriada aos originais meios de locomoção na cidade” – carros-de-bois e redes, acrescentando que as ruas mais recentes “são amplas e bem alinhadas, offerecendo 328 commodos trattoirs aos viandantes” . Adiantam ainda que o Funchal não é uma cidade moderna com “amplas avenidas, grandes monumentos, variadas distracções e outros attractivos”, mas que tem “um conjunto de 329 circumstancias naturaes” que a tornam particular e confortável. 325 Trigo, A., Trigo, A. (1910). Roteiro e Guia do Funchal. Funchal: Typographia Esperança, pág. 2. 326 Ibidem 327 Idem, op. cit., pág. 2 e 3. 328 Idem, op. cit., pág. 3. 329 Ibidem. 154 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Por outro lado, no livro O Funchal no Primeiro Quartel do Século XX – 1900-1925, de Abel Marques Caldeira, encontramos mais informações interessantes e complementares sobre a cidade do início de novecentos. Este autor acrescenta-nos que as “ruas da cidade eram calcetadas com pedras polidas de basalto”, ou seja, com pequenos calhaus rolados trazidos da praia, e que, pelo facto dos barcos fundearem ao largo, os passageiros eram transportados até ao cais da cidade em barcos a remos ou em 330 lanchas . 17. Memórias do Funchal do início do século XX – o calcetamento das ruas com pedras de calhau (1); os barco fundeados ao largo (2); o transporte de passageiros do cais para os navios (3). (Fotografias cedidas por Renato Barros) Em jeito de crítica à imagem da frente mar da cidade, este autor, salienta que “o frontispício da cidade era emoldurado com uma praia inestética, onde se cultivavam abóboras, pimpinelas e hortaliças, parecendo um lugar rústico e nunca arredores do cais da cidade, onde diariamente desembarcavam os nossos 331 visitantes” . Refere também que o cais da cidade era insuficiente para o movimento do porto. Mas, o mais interessante, é o passeio que Abel Caldeira sugere e descreve pela “cidade antiga”, através do qual é possível 330 Caldeira, A. M. (1964). O Funchal no primeiro quartel do século XX – 1900- 1925. Funchal: E. M. E., Lda., pág. 10 e 11. 331 Caldeira, op. cit., pág. 11. 155 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt visualizar e percorrer o núcleo central da cidade do início do século. A fim de termos uma ideia mais precisa desta cidade do primeiro quartel de novecentos criamos três percursos de memória. Para este efeito seguimos os “passeios” que Abel 332 Caldeira nos sugere, juntamos a Planta da Cidade do Funchal de 1894 com os diferentes percursos e, ainda, algumas “memórias” em fotografias dessa época. Percurso de memória A Rainha. 333 - do Cais da Cidade à Praça da Diz-nos Abel Caldeira que ao sair do Cais da Cidade (1) 334 encontrávamos, à esquerda, a Praça da Rainha (2) que se estendia ao longo da Estrada da Pontinha. 332 Planta da Cidade do Funchal e seus arredores, 1894, engenheiros Carlos Maia, Adriano Trigo e Annibal Trigo (cedida pelo A.R.M.). 333 334 Adaptado de A. Caldeira, op. cit., pág. 13 e 14. Esta praça recebeu posteriormente o nome de Praça Marquês de Pombal. (Idem, op. cit., pág. 13) 156 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Era uma praça cercada por galerias e portas de ferro, “arborizada” com palmeiras. Tinha na sua entrada “dois curiosos pavilhões em madeira, que em dias de turismo arvoravam as bandeiras das nacionalidades dos barcos fundeados no porto”. Um desses pavilhões era um bar-restaurante e o outro uma sala de bilhar. Nas noites de calor, as pessoas passavam “momentos de amistoso convívio na esplanada, fazendo uso de refrescos”. No centro da praça, “existia um coreto onde às quintasfeiras, a Banda Regimental executava os seus apreciados concertos”. Ao fundo, a praça tinha um pavilhão, “magestosamente levantado”, que acabou por ser ocupado por uma Agência de Navegação. No “largo fronteiro”, do outro lado do muro da estrada, existia um lavadouro público (3), onde os habitantes dos bairros de S. Lázaro e de Santa Catarina lavavam a sua roupa. 18. Memória de um passeio desde o Cais da Cidade até à Praça da Rainha – o Cais da Cidade (1); a Praça da Rainha em frente ao Palácio de São Lourenço (2); os lavadouros e a roupa a secar junto à Estrada da Pontinha (3). (cedidas por Renato Barros) 335 Percurso de memória B São Pedro. 335 - do Cais da Cidade à Praça de Adaptado de A. Caldeira, op. cit., pág. 14 e 15. 157 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Saindo novamente do Cais da Cidade (1) e, desta vez, voltando à direita encontramos a Rua da Praia (2). Logo no início 336 desta rua podíamos admirar o Pilar de Banger (3) e “o movimento dos barcos de cabotagem que varavam em frente da 337 Alfândega” (4). Junto ao muro, existia um quiosque em madeira que servia de taberna. Ali encontravamos, ainda, os vendedores de fruta que utilizavam esta zona leste da praia para vender os seus produtos. Continuando o nosso percurso pela Rua da Praia, podiamos observar, no calhau, os varadouros de madeira rotativos acionados por parelhas de bois. No final da rua encontravamos, à nossa direita, o Mercado D. Pedro V (5), onde existia, no seu centro, um largo com um 338 chafariz em mármore . 336 O Pilar de Banger foi construído para fazer a descarga de mercadorias na praia, através de um guindaste. 337 Idem, op. cit., pág. 14. 338 Este chafariz encontra-se actualmente no pátio interior da Câmara Municipal do Funchal. 158 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Ao sair do edifício do mercado, pela porta Sul, virávamos à esquerda e encontravamos a Praça de São Pedro (6), ou Praça do Peixe. Este mercado de peixe possuía ao todo três entradas, 339 sendo uma delas para a Rua do Príncipe (7). Era um espaço descoberto, com bancadas em cantaria para a venda do peixe. Estas bancadas ficavam abrigadas do sol por extensos alpendres de telha de canudo. Ao centro do mesmo edifício, erguia-se um fontenário, também ele em cantaria, com a coroa portuguesa. Finalmente, ao fundo da Praça, ficavam os talhos municipais e no rés-do-chão o matadouro onde era abatido todo o gado destinado à alimentação pública. 19. Memória de um passeio desde o Cais da Cidade até à Praça de São Pedro – os varadouros de madeira rotativos e o Pilar de Banger, ao fundo (1) (R. Barros); o Mercado D. Pedro V (2) (A.R.M.); a Praça de São Pedro (3) (A.R.M.). 339 Actual Rua 5 de Outubro. 159 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Percurso de memória C 340 - do Cais da Cidade até à Ponte Nova. Tendo mais uma vez como ponto de partida o Cais, e desta feita como destino o centro da cidade, era necessário subir a Avenida Gonçalves Zarco (1) até à Praça da Constituição (2). A Avenida Gonçalves Zarco estava ladeada por confortáveis bancos de madeira e frondosos plátanos. No seu lado esquerdo, ficava o portão e o gradeamento de ferro que cercavam os jardins do Palácio de São Lourenço (3) e, no lado direito, em 340 Adaptado de A. Caldeira, op. cit., pág. 17 a 23. 160 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt frente ao Comando Militar, ficavam as instalações da Estação de Saúde e da Associação Comercial do Funchal. No cimo da Avenida, na esquina do lado direito, ficava o bar Golden-Gate, fundado no século XIX, e, em frente desta, o Largo da Restauração (4), onde no início do século funcionava a praça do “carro americano”, dos “trens” e dos carros de bois. À nossa frente ficava a Praça da Constituição. Subindo os degraus da entrada Sul desta praça encontravamos o quiosque Bureau de la Presse onde se vendiam os jornais de Lisboa. A Praça da Constituição estava ladeada, a Sul, por um muro e, a Norte, por um mainel, os quais serviam de bancos para repouso dos que por ali passavam. Existiam, ainda, bancos de madeira à sombra de Figueiras da Índia e de Magnólias. Na parte Oriental, havia um quiosque onde se vendiam refrescos. Continuando o nosso percurso para Poente, logo a seguir, localizava-se o Jardim Pequeno, situado entre a Praça da Constituição e o Jardim D. Amélia (5). Em frente a este Jardim, junto ao Palácio do Governo, havia um grande pavilhão de madeira onde funcionava a “Fotografia Camachos Studio’s”. A Norte ficava o Café Mónaco, frequentado pela Colónia Inglesa, e o Consulado Britânico. Prosseguindo pela Rua Hermenigildo Capelo (6), encontravamos à direita o Jardim D. Amélia. No final da rua, após termos atravessado a Rua do Conselheiro, a Rua dos Aranhas e a Rua Serpa Pinto, ficava a Ribeira de São João, de onde podiamos ver o Hospital dos Lázaros, com a sua capela anexa, e o bairro dos trabalhadores do serviço de fornecimento de carvão aos navios. Voltando para trás, e fazendo o mesmo percurso no sentido Leste, passavamos a Praça da Constituição e chegavamos ao Largo da Sé (7). Neste Largo, à direita, ficava o antigo casarão da Cadeia Civil, ladeado a Sul pela Rua da Alfândega, a Oeste pela Travessa dos Ingleses e, a Este, pela Travessa da Cadeia. 161 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 20. Memória de um passeio na Avenida Arriaga - o Largo da Sé, com o antigo casarão da Cadeia Civil ao fundo (1) - (R.B.); a Praça da Constituição, do lado direito, ao fundo, o edifício da Santa Casa da Misericórdia (2) - (R. B.); a Sé Catedral vista da Praça da Constituição, à esquerda a Rua do Capitão-tenente Carvalho Araújo (3) - (R. B.). Na parte esquerda do largo, retrocedente um pouco para Poente, ficava o edifício da Santa Casa da Misericórdia (8), onde estava instalado o Hospital e o Posto Médico. Repousando um pouco na Praça da Constituição, para recuperar forças, prosseguiamos depois, para Este, pela Rua do capitão-tenente Carvalho Araújo onde na esquina do lado esquerdo ficava a Casa Havanesa, tabacaria e bar, “frequentada por pessoas de alta categoria social, local de colóquio, onde se discutiam assuntos sociais e políticos e onde apareciam as 341 novidades do dia” . Logo à frente ficava o Largo de São Sebastião (9), onde se realizava à Quarta-feira e ao Sábado a feira do calçado regional, e depois a Rua do Bettencourt que ia dar à Rua do Príncipe. Subindo a Rua do Príncipe, junto à margem direita da Ribeira de Santa Luzia, encontravamos, à esquerda, os cartórios do Juízo de Direito da Comarca e, logo acima, o Quartel da Corporação de Bombeiros. A seguir, ficava o edifício da Câmara Municipal (10). 341 Idem, op. cit., pág. 20. 162 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 21. Memória de um passeio desde o Cais da Cidade até à Ponte Nova – o Largo de São Sebastião e a feira do calçado regional (1) - (A. R. M.); o Largo e a Igreja do Colégio (5) - (A. R. M.). Atravessando o edifício da Câmara, no sentido OesteEste, chegavamos ao Largo do Colégio (11). Neste Largo localizava-se a Igreja do Colégio, o antigo Paço Episcopal de São Luís e o Centro Republicano da Madeira. De volta à Rua do Príncipe, desta vez pela Travessa de João de Oliveira, e subindo até à Ponte Nova (12) encontravamos um “grupo de casas construídas em madeira e pintadas de 342 vermelho sobre a Ribeira de Santa Luzia” . Esta era a “cidade antiga”, do início do século XX. Em menos de vinte e cinco anos a cidade transformou-se, foi invadida por automóveis e as ruas alargaram-se. Surgiram grandes avenidas e novas praças. A cidade cresceu e expandiu-se para Poente. Foi entre 1935 e 1947, durante a presidência da Câmara do Dr. Fernão de Ornelas, que a cidade sofreu as primeiras grandes intervenções urbanísticas do século. Com elas não só o tecido urbano da cidade foi profundamente alterado através da 342 Idem, op. cit., pág. 22. 163 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt abertura da Avenida Arriaga, da Avenida do Mar e da Rua Fernão de Ornelas, como também foi consumada a desejada expansão da cidade para Poente, através da Avenida do Infante. A Avenida do Infante, ao ligar a Avenida Arriaga, no centro da cidade, à Estrada Monumental, que se estende para Oeste a partir do Ribeiro Seco, prolongou a cidade, numa primeira fase, até à zona do Lido. Contudo, não nos podemos esquecer que esta “nova” cidade continuará a modificar-se até aos dias de hoje, expandindose e estendendo-se não só para poente, em direcção à Praia Formosa, mas também por todo o anfiteatro do Funchal. Através da observação do Mapa nº 11, onde concertamos 343 a Planta da Cidade do Funchal de 1948-1950 sobre o ortofotomapa de 2004, tornam-se logo evidentes os “cortes” e realinhamentos que a malha urbana da cidade sofreu, sobretudo com a abertura de algumas Avenidas e Ruas. Numa análise mais atenta, compreendemos que na primeira metade do século XX a cidade sofreu profundas alterações a nível da rede viária. Foram abertas novas Avenidas – Arriaga (2), do Infante (3) e do Mar (4) – e Ruas – Dr. António José de Almeida, Fernão de Ornelas (25), Padre Gonçalves Câmara. Procedeu-se ao prolongamento da Avenida Zarco (5), para Norte, através do quarteirão onde estava localizado o edifício da Santa Casa da Misericórdia, e da Rua 5 de Outubro a qual estendeu-se para Sul. Foi, ainda, realizado o alargamento de várias ruas da cidade. A mobilidade era então uma prioridade para o Funchal. Contudo os eixos estruturantes destas novas vias de circulação continuam a ser os mesmos – um no sentido Este – Oeste, prependicular à linha da costa, facilitando a ligação entre a parte antiga da cidade e a nova área de expansão e outro, Sul – Norte, priveligiando a ligação do mar ao interior da cidade. 343 Cedida pela Câmara Municipal do Funchal. 164 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Com a abertura das novas vias surgem novos espaços públicos, sobretudo na frente mar, onde é construído um passeio que se estende da Ribeira de São João até à Ribeira de Santa Luzia. A Este, na parte final da Avenida do Mar, a Praça Académica foi reformulada e deu lugar a um espaço mais amplo, o Campo D. Carlos I (8). Na Avenida Arriaga, foi demolida a Praça da Constituição e criada uma placa central pedonal ladeada por árvores. O Largo do Colégio foi também reestruturado dando origem à Praça do Município (24). Neste mapa é ainda visível a localização de alguns edifícios de estilo Estado Novo de onde se destacam o Banco de Portugal (6) e o edifício dos C.T.T. (12), construídos em 1940. O Mercado dos Lavradores (23), de 1946, e a Capitania (9), edificada em 1950 são outros exemplos de edifícios construídos na época. O Funchal na segunda metade do século XX. A segunda metade do século XX foi, sem dúvida, a época que marcou a “modernidade” da cidade, sobretudo da então recente área de expansão do Funchal. Na década de 60, a parte Sul da Avenida do Infante, sofreu duas das intervenções mais marcantes da época, não só pela escala e dimensão dos espaços que aí surgiram, mas também pelo valor urbanístico e arquitectónico que trouxeram à cidade. Numa área que antes era ocupada pelo Cemitério de Nossa Senhora das Angústias e por várias quintas surgiu o Parque de Santa Catarina e o Casino Parque Hotel. O primeiro, o Parque de Santa Catarina, localizado logo no início da Avenida do Infante, veio ocupar toda a área correspondente ao antigo Cemitério de Nossa Senhora das Angústias e, ainda, os terrenos adjacentes a Leste. Com uma área de aproximadamente 36 000 , é ainda hoje o maior espaço verde público da cidade. 165 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt O segundo, o Casino Parque Hotel, que ocupa os espaços pertencentes às antigas Quintas Bianchi, Pavão e Vigia (ver Mapa nº 8 – 31, 33 e 34, respectivamente), foi concebido, em 1966, por Óscar Niemeyer. Este complexo, que só ficou concluído em 1974, inclui hotel, casino, cine-teatro, centro de congressos e um enorme jardim. 22. Marcas de uma época: o Casino Parque Hotel (1) e o Parque de Santa Catarina (2). 166 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt No Mapa nº 12, onde a Planta da Cidade do Funchal de 344 1967-1969 está concertada sobre o ortofotomapa de 2004, é possível verificar a grandeza destes dois espaços (ver – 5 e 28). Pela análise deste mapa, constatamos que no centro da cidade do Funchal a malha urbana não sofreu alterações significativas. No entanto, são bem visíveis as novas áreas de expansão da cidade, nomeadamente a Ocidente, Norte e Nordeste. Uma observação atenta destas áreas, que envolvem todo o centro da cidade, permite-nos concluir que as construções não só se encontram dispersas como também distribuídas de um modo desordenado. Ao nível do centro da cidade, verificamos que ocorreu o preenchimento dos espaços disponíveis e, ainda, uma ocupação cerrada das frentes das ruas, com novos edifícios. São exemplos deste processo a construção do Liceu Nacional do Funchal (1946), da Escola Industrial e Comercial do Funchal (1952) e do Palácio da Justiça (1962) – (ver Mapa nº 12 – 25, 7 e 27, respectivamente) – sendo evidente em alguns destes edifícios o estilo Estado Novo. Há, ainda, a salientar o prolongamento para nascente do passeio da Avenida do Mar. Entre 1969 e 1990 a cidade do Funchal continuou a crescer. Pela análise do Mapa nº 13, onde a Planta da Cidade do 345 Funchal de 1990 foi concertada sobre o ortofotomapa de 2004, concluímos que o centro da cidade continua a consolidar-se. À sua volta, sobretudo na área de expansão a Leste, começa a ter lugar uma maior densificação da construção, surgindo entre as pequenas habitações edificações maiores. A Oeste, ao longo da Avenida do Infante começam também a ser construídos grandes prédios. 344 Cedida pela Câmara Municipal do Funchal. 345 Planta cedida pela Câmara Municipal do Funchal. 167 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt A observação deste mapa permite-nos ainda constatar que as intervenções desta época ocorreram fundamentalmente ao longo da frente mar. Assim, junto à avenida marginal foi construída a Marina do Funchal (25), o cais de contentores (2), a lota e os laboratórios da Direcção Regional de Pescas (24). Se tivermos em atenção a área construída em 1990 e em 2004 verificamos que o centro da cidade continuou a preencher-se cada vez mais. Na realidade, constatou-se que continua a acontecer um processo lento, mas contínuo, de consolidação do centro da cidade, embora há muito se tenha verificado uma definição da forma dos seus quarteirões. Como já afirmamos, a evolução morfológica da cidade do Funchal realizou-se sobretudo através de um processo de acrescentamento e de compactação até aos anos 30/40 do século XX, altura em que se realizaram profundas alterações no tecido da cidade, através da abertura de novas vias. Além disso, os limites da cidade só no século XX, com a expansão definitiva da urbe para as áreas envolventes, ultrapassaram verdadeiramente a nossa área de estudo. A cidade do século XX continuou a espraiar-se para Ocidente, ao longo da costa e acompanhando o traçado da Estrada Monumental, e para Norte, numa nítida sequência e prolongamente dos principais eixos estruturantes da “cidade do açúcar”. Em síntese: a cidade novecentista cresceu e expandiu-se em diferentes direcções, através de um processo de dispersão de pequenas moradias que, com o decorrer do século acabaram por se espalhar desordenadamente por todo o anfiteatro; o centro da cidade continuou a densificar-se e a compactarse, ocorrendo uma colmatagem dos espaços vazios e o preenchimento cerrado das frentes dos arruamentos, com novas edificações; 168 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt a cidade continuou a expandir-se para Oeste, ao longo da costa, e para Norte, numa nítida sequência e prolongamento dos principais eixos estruturantes da “cidade do açúcar”. 169 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 170 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Capítulo III – O Funchal do século XXI – uma cidade voltada para o ambiente. A cidade do Funchal cresceu e expandiu-se definitivamente para além da baía e do anfiteatro que a viu nascer. Mantendo o seu principal eixo estruturante de crescimento ao longo da costa e em direcção a Oeste, estendeu-se pela Estrada Monumental, onde a construção de hotéis e de edifícios para habitação tem vindo a aumentar e a adensar-se dia após dia. 23. Zona dos Piornais, do lado sul da 24. Zona do Lido, a sul da Estrada Estrada Monumental. Ao fundo a Praia Monumental. Formosa (1). (s. d., A.R.M.) Por outro lado, no centro da cidade continuam gravados na sua malha urbana os vestígios da cidade do açúcar e do vinho; persistem edifícios e fortificações de outros tempos; permanecem as marcas deixadas por Fernão de Ornelas em algumas ruas e praças da cidade; o mar continua a ser presença assídua e as ribeiras continuam a percorrer os seus leitos, compartimentando a cidade em áreas que jamais serão homogéneas. Cada espaço da cidade tem a sua própria identidade, que há muito foi ditada pela história. No entanto, ao percorrer o centro do Funchal sentimos que há uma abertura, cada vez maior, para o espaço exterior, com 171 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt uma crescente preocupação com os espaços públicos e o bemestar de todos aqueles que a utilizam. O centro da cidade tem vindo a renovar-se e a transformar-se, sobretudo ao nível da sua imagem. Apesar da malha urbana não ter sofrido, nos últimos anos, alterações significativas o facto é que a cidade está diferente. Os vazios que com o tempo foram surgindo na cidade, quer por degradação de edifícios ou por perda de interesse e consequente abandono de espaços outrora vitais na economia do Funchal – por exemplo: engenhos, o “calhau” da cidade e o seu cais –, têm vindo a ser ocupados, de um modo geral, por equipamentos de utilização colectiva, sobretudo destinados à prática, pela colectividade, de actividades culturais, desportivas e de recreio e lazer. Hoje vive-se mais a cidade e o seu espaço exterior. As razões são múltiplas, no entanto podemos destacar duas: por um lado, uma maior oferta de funções e, por conseguinte de escolhas, que atrai mais pessoas à cidade e, por outro, a necessidade de uma maior comunhão com a natureza e o aumento da preocupação com a saúde e o bem-estar físico e emocional, que faz com que os citadinos procurem os diferentes espaços públicos da cidade. A Câmara Municipal do Funchal tem apostado nesta abertura da cidade ao meio, promovendo a recuperação, renovação e criação de diferentes espaços públicos. Para incentivar o seu uso, esta instituição tem vindo a realização eventos e actividades culturais, onde se podem destacar a Festa da Flor; a Festa do Livro; o Festival do Atlântico; as festas dos Santos Populares; a Festa do Vinho; as iluminações e actividades de Natal; o espectáculo pirotécnico do Fim do Ano; e, ainda, exposições e concertos musicais ao ar livre. Em consequência, nota-se uma maior aproximação da população à cidade, que aos poucos começa a utiliza-la por um período mais dilatado. Porém, e sobretudo porque os acontecimentos sociais nem sempre acontecem, esta aproximação cidade/utente é ainda pontual e 172 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt intermitente, verificando-se que o centro da cidade continua a esvaziar-se ao fim do dia, embora muito menos ao fim-de-semana. 25. O final de uma manhã de Domingo no centro do Funchal. A atracção de uns espaços – o passeio da Avenida Arriaga (1) e o Cais da Cidade (2) – e o vazio de outros – a Rua do Bispo (3). A procura de uma nova imagem para o centro do Funchal, tem conduzido à modernização da cidade. Hoje, esta é uma cidade mais competitiva e apta para receber uma maior diversidade de utilizadores. A identidade da cidade parece-nos ter sido protegida até ao momento. Há uma preocupação visível com a preservação das “existências” e a reabilitação, conservação e divulgação do seu património arquitectónico e cultural. Neste sentido, imóveis de interesse público, localizados em diferentes áreas da cidade, têm 173 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt sido ocupados por instituições públicas e privadas ou transformados em museus e em espaços lúdicos e/ou com aproveitamento turístico. 26. O edifício da Antiga Alfândega do Funchal, onde se encontra instalada a Assembleia Legislativa Regional (1); o Solar de Dona Mécia, na Rua dos Aranhas, actual sede da Câmara do Comércio e Indústria da Madeira (ACIF)(2); a Fortaleza de Santiago, na zona de Santa Maria, hoje Museu de Arte Contemporânea (3) e o Forte de Nossa Senhora da Conceição, actualmente em obras de recuperação e de ampliação para uma futura utilização lúdica (4). Além disso, algumas permanências tornaram-se pontos de referência na cidade, guiando naturais e estrangeiros através de uma cidade cheia de memórias. 174 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 27. Pontos de referência na cidade do Funchal: a torre do Convento de Santa Clara (1); a torre da Igreja de São Pedro (2); a baía do Funchal (3); a torre da Sé Catedral (4) a Praça do Munícipio (5); o Palácio de São Lourenço (6); as ruas – Rua da Carreira (7); o Mercado dos Lavradores (8); a Capela e o Parque de Santa Catarina (9) e as Ribeiras – a Ribeira de João Gomes (10). 175 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 3.1 A natureza e a cidade do Funchal Quando João Gonçalves Zarco viu a “formosa enseada” do Funchal e o seu anfiteatro compreendeu que ali seria o lugar ideal para o novo povoado. Rasgado por três ribeiras, abundava a água, e o seu porto natural era amplo e acolhedor. Assim, “entendeu o capitão Zargo em fazer uma igreja que fosse princípio e fundamento da vila do Funchal, e, por estar segura e bem assentada, a mandou ordenar à beira do mar, no cabo do vale do 346 Funchal, ao longo da primeira ribeira deste prado (...)” . O certo é que a relação do Funchal com o mar e as suas ribeiras assume, desde o povoamento, uma enorme importância. O Funchal identifica-se com a sua frente mar e as suas zonas ribeirinhas, constituindo desde os primórdios da cidade locais por excelência da vida económica e social. A cidade cresceu e organizou-se não só próxima ao mar e às ribeiras, bem como em função destas. Na verdade, vimos que a sua expansão ocorreu fundamentalmente ao longo da sua frente mar e serpenteando as zonas ribeirinhas. A vida desta cidade sempre esteve ligada à água que tanto a encheu de alegrias como de tristezas. Pelo mar chegaram as suas gentes, os cereais que lhes mataram a fome, os comerciantes do açúcar e do vinho, os turistas e, também, os invasores e o perigo. As ribeiras forneceram a água que lhes matou a sede e regou as culturas, mas também a água que destruíu vidas, casas e ruas. Cidade, mar e ribeiras tornaram-se assim indissociáveis e, passados quinhentos anos, continua a não ser possível pensar no Funchal sem lhe associar o mar e as suas ribeiras. Podemos dizer que se transformaram na sua “imagem de marca”. Imagem essa que deverá ser tratada e cuidada, pois não só é sinónimo de lugar de “memórias” da sua história e dos seus habitantes como também é “elemento de referência” de muitas fotografias que 346 Frutuoso, Livro Segundo das Saudades da Terra, pág. 83. 176 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt diariamente percorrem o mundo pelas mãos dos turistas que visitam a Ilha. Ao olharmos um pouco para trás, verificamos que apesar do Funchal, em determinado momento, se ter estendido em direcção às montanhas nunca “abandonou” o mar, uma vez que é lá do alto que as “vistas” sobre o oceano são mais formosas. Além disso, verificamos que, no século XVIII, até a própria arquitectura das casas procurou ir ao encontro do mar através das suas torres de “avista-navios”, “concebidas para aumentar a visão panorâmica do 347 porto” . As suas ribeiras foram até ao século passado local de passagem de muitas pessoas que se deslocavam pela cidade a pé. Bordeadas por passeios, pontilhados de plátanos, era agradável percorrê-las, sobretudo no Verão pela frescura da sombra das suas árvores. Entretanto, o trânsito automóvel foi aumentando e aos poucos as ruas foram alargando-se, invadindo os passeios e as margens das ribeiras. Hoje, estas ruas, com grande movimento de automóveis, constituem barreiras intransponíveis que afastam cada vez mais as pessoas das ribeiras. 347 Aragão, O Espírito do Lugar. A Cidade do Funchal., pág. 105. 177 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 28. A Ribeira de Santa Luzia – a ribeira (A), em 1927, ladeada de plátanos, com o engenho de açúcar do Hinton ou do Torreão na sua margem esquerda (1) – (fotografia retirada de um calendário de 1973); a ribeira, em 2007, ladeada por ruas sem passeios e com a chaminé do antigo engenho do Hinton, hoje integrada no Jardim de Santa Luzia (2). Ventura Terra, como vimos, no projecto que apresentou em 1915 reforçava de facto a relação da cidade com o mar, mas minimizava a importância das ribeiras ao ponto de defender que estas deveriam ser tapadas. Na realidade, quando Ventura Terra se deslocou ao Funchal as ribeiras encontravam-se em muito mau estado, com grande quantidade de lixo e com animais domésticos a passear livremente pelas suas margens. Isabella de França já tinha feito referência a este problema em 1853/54. No entanto, para Ventura Terra isto constituíu um choque tão grande que o arquitecto-urbanista, achou por bem esconder aquele cenário degradante de uma cidade que tanta fama tinha. Hoje, as ribeiras que atravessam a cidade do Funchal estão limpas e cuidadas, encontrando-se em alguns troços cobertas com buganvílias, que em determinadas épocas do ano se enchem de flores, emprestando à cidade um alegre colorido. Com a construção da Avenida do Mar, na década de 40 do século passado, o objectivo de Ventura Terra foi em parte concretizado, a foz das três ribeiras foi tapada, e, no caso da Ribeira de São João, para além desta avenida foi, ainda, 178 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt construída sobre o seu percurso final a Rotunda do Infante e o Edifício do Infante. O certo é que diariamente passam sobre as ribeiras milhares de pessoas a pé, de automóvel e de autocarro. No caso da Avenida do Mar, as pessoas que a percorrem, fazem-no num rodopio incessante para chegar a tempo aos seus trabalhos ou para regressar a casa. No seu percurso apressado simplesmente passam sem prestar atenção ao que está à sua volta. Por outro lado, circulam também por ali aqueles que, com maior disponibilidade de tempo, aproveitam para disfrutar do um agradável passeio pela baía. 29. A Avenida do Mar - ponto de ligação entre a cidade e o mar. A foz da Ribeira de São João (1), a Poente, e a foz das ribeiras de Santa Luzia (2) e de João Gomes (3), a Nascente. Passeio ao longo da avenida (4). Esta avenida marginal dispõe, em todo o seu comprimento, de um amplo passeio ajardinado, com esculturas, um mobiliário urbano contemporâneo e pequenos cafés. Deste passeio, o peão pode contemplar o mar, o porto, a cidade e a montanha. Contudo, este ambiente, que só de imaginar transmite paz, é 179 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt constantemente invadido pelo ruído e pela poluição provocada pela circulação de veículos. Deste modo, o rumor do mar como o cheiro a maresia ficam ocultos, destituindo assim a cidade destes elementos sensoriais tão particulares. Além disso, entre o passeio Leste da avenida e o mar existe um muro, relativamente alto e largo, que mantém o transeunte afastado da praia, do “calhau” e, consequentemente, do contacto com o mar. 30. O passeio da Avenida do Mar – o muro de “protecção” constitui uma barreira visual (1); a rua e uma das muitas esculturas existentes na Avenida (2); o passeio junto à Marina do Funchal (3). Um transeunte mais curioso, ao debroçar-se sobre o muro, para além de uma praia de calhaus rolados encontra, ainda, a foz das ribeiras de Santa Luzia e de João Gomes. A surpresa é, infelizmente, desagradável. A foz das ribeiras parecem abandonadas, com paredões derrubados ou em ruína. É certo que a força do mar é enorme, sobretudo no Inverno quando as ondas galgam a costa, contudo, estamos convictos de que hoje a engenharia dispõe de soluções que, simultaneamente, podem exercer uma função de protecção e de conforto para os utilizadores das áreas costeiras. 180 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 31. Depois do muro a surpresa: a decadência da foz das ribeiras de João Gomes (1) e de Santa Luzia (2). Contudo, a marginal da cidade do Funchal é sem dúvida um local emblemático que atrai madeirenses e estrangeiros. O 348 mar é por si só um elemento atractivo e a avenida é o seu grande balcão. Hoje, um pouco por toda a Europa pode-se constatar que há uma crescente preocupação em “devolver” às cidades e à sua população a natureza e, sobretudo, as frentes de água marítimas e fluviais às cidades. Aker Brygge, na cidade de Oslo (Noruega), constitui um dos muitos exemplos de antigas áreas portuárias – neste caso um antigo estaleiro – que têm vindo a ser reabilitadas e transformadas em aprazíveis lugares de serviços, comércio, habitação, convívio e lazer. Inúmeras cidades têm vindo a transformar áreas portuárias em espaços priviligiados. Contudo, é importante salientar que, no caso da cidade do Funchal, essa intervenção urbanística deverá ser feita no sentido da continuidade da cidade existente, 348 Paradoxalmente, nesta ilha, o mar começa a correr o risco de se tornar num bem escasso devido à intensa edificação na orla costeira, sobretudo na zona Este da cidade, ao longo da Estrada Monumental, onde o horizonte se vem transformando de dia para dia numa autêntica “parede de betão”. 181 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt apostando na criação de áreas multifuncionais onde o espaço público deverá ser valorizado como elemento unificador. 32. Oslo, Aker Brigge – a área do antigo estaleiro Akers Mekaniske Verksted foi reabilitada e transformada num novo espaço da cidade, com um sistema de espaços públicos adequados às novas necessidades e usos e, ainda, com a recuperação de estruturas edificadas existentes e edificação de novos edifícios para diferentes usos. Camillo Sitte já referia, em 1889, a importância da água e do “verde” na cidade. Este alertou para o facto de os nossos antepassados terem sido “homens de florestas” e que os citadinos, por viverem em edifícios de apartamentos, encontravam-se afastados da natureza, daí a irresistível atracção que sentiam por ela, “sempre seduzidos pelas áreas verdes, um verdadeiro refúgio 349 contra o moinho de poeiras deste oceano de moradias” . Acrescenta, ainda, que há outro elemento da natureza que o “construtor urbano não pode dispensar, caso queira conferir 350 vivacidade à sua imagem urbana” – a água . Os argumentos de Sitte encontram ainda eco nos dias de hoje. Cada vez mais, o homem da cidade vive em pequenos 349 Sitte, A construção das cidades segundo seus princípios artísticos, pág.165. 350 Idem, op. cit., pág. 166. 182 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt apartamentos e passa horas encerrado em escritórios. Nos seus tempos livres ele procura a rua, os jardins, o mar e os rios. O centro da cidade do Funchal com a sua extensa faixa costeira, as suas ribeiras e o “verde” dos jardins e das árvores que ladeiam as ruas, reune uma série de “ingredientes” fundamentais para uma maior convivênvia dos seus utilizadores com a natureza. Se a toda esta natureza se juntar o importante espaço de memórias e de referências da sua malha urbana, o Funchal ficará então, não só mais genuíno, como também possuidor de uma imagem única. A natureza e as memórias criadas pelo homem constituem assim os dois aspectos fundamentais para a singular imagem desta cidade, decidida não só a melhorar a qualidade de vida dos seus habitantes e de todos os que a visitam, como também a oferecer-lhes momentos de cultura, lazer e convívio diversificados. Nesta perspectiva, é importante não só devolver o mar e as ribeiras à cidade, enquanto espaços de natureza, como também redescobrir e renovar os diferentes espaços da cidade – públicos, 351 de memória, comerciais e culturais –, criando “percursos” que dêem à cidade um “sentido de continuidade”, para que os seus habitantes e visitantes possam usufruir na sua plenitude desta pequena “grande cidade”, enquanto espaço económico, social, cultural e de lazer. 351 Entendidos como canais que unificam os diferentes espaços públicos da cidade, dando-lhes continuidade. 183 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 33. O verde e as memórias da cidade: o Palácio de São Lourenço (1); o Jardim Municipal (2); a Fortaleza do Pico (3); o Convento de Santa Clara (4); a Avenida Gonçalves Zarco (5) e a Praça da Restauração (6). Contudo, antes, é necessário compreender e repensar o modo como estes elementos se organizam, interligam e interagem, saber como são apreendidos, sentidos e utilizados pelas pessoas e, posteriormente, encontrar a melhor solução para que cada um desses elementos e o seu conjunto ganhem um sentido de pertença para cada indivíduo. É uma tarefa enorme e dificíl, no entanto acreditamos ser possível e que irá contribuir para a renovação da imagem do Funchal, tornando esta cidade mais atractiva e acolhedora para todos. 184 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 3.2 Os desafios Um pouco por todo o Mundo, tem vindo a ser dada uma crescente importância à requalificação e revitalização do centro das cidades. Na realidade, os centros das cidades, sobretudo nas décadas de 70 e 80 do século XX, sofreram um declínio, motivado, em parte, por uma série de factores, de onde se destacam o fenómeno de terciarização; o congestionamento automóvel; a perda de acessibilidade ao centro; o elevado custo do solo urbano e o consequente desenvolvimento residencial na periferia; a perda de atractividade do centro com a consequente deslocação dos locais de lazer e de recreio para zonas menos centrais e, ainda, a degradação do tecido urbano e a diminuição da segurança urbana. O Funchal não foi excepção. Como vimos, o centro desta cidade no início da década de 90, do século passado, aquando da preparação do actual Plano Director Municipal do Funchal, apresentava como principais debilidades deficiências a nível da acessibilidade; excessiva concentração de funções económicas e administrativas; excesso de tráfego, congestionamento e falta de estacionamento; e o abandono da função habitacional. Na verdade, a crescente terciarização do centro da cidade e a diminuição da função habitacional no mesmo começava a traduzirse na desertificação do centro ao fim da tarde e ao fim-de-semana. Constata-se, no entanto, que o esforço realizado no sentido de solucionar estas e outras debilidades tem sido, por parte da administração local, enorme e visível. Das muitas acções e intervenções que foram realizadas podemos destacar a criação de novas acessibilidades, como por exemplo a Via à Cota 40; a prioridade dada à mobilidade pedonal no centro do Funchal, com o encerramento de várias ruas ao trânsito automóvel e a criação de parques de estacionamento em zonas estratégicas da cidade; a renovação de diferentes espaços públicos e habitacionais; a preservação, renovação e criação de espaços verdes e de praças; e a recuperação da frente mar, através do “arranjo urbanístico” da 185 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Avenida do Mar. No âmbito do urbanismo comercial foi, ainda, implantado o Programa URBCOM - da Sé e de São Pedro – através do qual foi feita uma requalificação dos estabelecimentos comerciais e de áreas do domínio público, destacando-se a pavimentação, iluminação e colocação de mobiliário urbano. Actualmente, foi dado início à preparação de um projecto para a reconversão do porto do Funchal e do espaço público e infra-estruturas anexas da Marginal Poente do Funchal. Enquanto para o molhe Sul do porto está previsto a criação de uma gare para embarque e desembarque de passageiros – a Gare Marítima Internacional do Porto do Funchal –, no Cais 6, antigo Cais de Contentores, e nas áreas que lhe estão anexas – Varadouro e heliporto – será dada continuidade ao espaço público da Avenida do Mar e à construção de um edifício de Estacionamento semi352 enterrado, com lojas e escritórios nos pisos superiores. Encontram-se, também, em fase de preparação os Planos de Pormenor do Castanheiro e do Carmo, dois quarteirões com um elevado número de edifícios degradados, que a Câmara Municipal do Funchal pretende renovar criando no seu interior 353 espaços públicos de circulação e de descanso. No entanto, julgamos haver ainda muito a fazer sobretudo no que se refere à “atracção espontânea” do cidadão, da população vizinha e dos seus visitantes ao centro da cidade e aos seus diferentes lugares. Não é suficiente criar as infra-estruturas, os equipamentos e os espaços, é tanto ou mais importante tornálos atractivos, seguros e “vividos”, ainda mais quando se fala de espaços públicos. 352 C.M.F. Estacionamento Urbano. Retirado em 12 de Junho de 2007 da World Wide Web: www.cm-funchal.pt 353 Idem. 186 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 34. A zona portuária do Funchal – molhe Sul (1); Cais 6, antigo Cais de Contentores (2); Varadouro e instalações naúticas do Clube Naval do Funchal e do Centro de Treino Mar (3); heliporto (4). É importante ter sempre presente que a cidade não é só a estrutura urbana é também todo um conjunto de indivíduos, com necessidades específicas e diferenciadas, que nela habitam, trabalham e passeiam, ou seja, que a utilizam diariamente. Uma cidade vazia de pessoas, que não é vivida, é apenas um “esqueleto” destinado ao abandono e à desintegração. Camillo Sitte alerta-nos para o problema dos espaços públicos vazios, salientando que este advém da excessiva preocupação em regularizar o espaço urbano, o que conduz não 187 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 354 só à destruição de “pedaços de memórias” da cidade , como também à criação de praças excessivamente rectas, com “uma árvore, um chafariz ou uma estátua” colocado no seu “centro 355 milimétrico” , o que faz naturalmente afastar as pessoas porque as deixam expostas e desconfortáveis. No entanto, hoje, acrescenta-se uma outra preocupação que é a da segurança. Sabemos que a cidade proporciona, de um modo geral, segurança aos seus utilizadores, através do controlo, voluntário ou não, exercido pelas forças da ordem pública e pelos próprios cidadãos. Na verdade, o facto de cada indivíduo estar 354 É interessante ver o que nos escreve Sitte a este respeito: “Em nenhum projeto urbano podemos identificar, hoje, o princípio de se poupar cada velha árvore remanescente ainda capaz de sobreviver, como uma venerável estátua da história ou da arte. Não se demonstra a intenção de acolhê-la no recanto tranquilo de uma praça com arredores adequados, seja através de desvios e curvas no traçado de uma rua ou mesmo criando-lhe uma pracinha particular, tudo em benefício dessa única árvore imponente – em vez disso, tudo é destruído de modo impiedoso. Na regularizações urbanas modernas podemos encontrar diversos exemplos em que antigas fontes rodeadas por formosos grupos de árvores, assim como antigos jardins particulares de valor inestimável, fortificações cobertas por folhagens abundantes, velhos portões de burgos ou capelas cujos arredores formavam belos conjuntos pinturescos com agradáveis recantos à sombra de árvores e arbustos tombaram sacrificados pelo primeiro golpe da régua do geômetro moderno, com o seu monótono traçado retilíneo de ruas de largura uniforme. Todos estes exemplos apresentam perdas irrecuperáveis, pois não podemos criar artificialmente o frescor das formas espontâneas de um crescimento natural e gradativo. Contra isso há apenas uma regra: a garantia de prioridade na conservação destas velhas heranças, que devem ser incorporadas com harmonia à imagem urbana.” (Sitte, op. cit., pág. 171) 355 Idem, op. cit., pág. 172. 188 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 356 consciente de ser alvo de um controlo ou vigilância exercida por todos aqueles que, de diferentes maneiras, se encontram à sua volta, conduz não só ao cumprimento de regras de comportamento social, como também à prevenção de situações de risco. Neste sentido, os espaços exteriores e públicos da cidade serão tanto mais procurados quanto maior for a vigilância social exercida sobre eles e, consequentemente, maior for a segurança que eles proporcionem a cada indivíduo. Associado à vigilância está naturalmente a questão da iluminação que, segundo Jacobs, “amplia cada par de olhos”, ou seja, “faz com que os olhos valham mais porque o seu alcance é 357 maior” . Contudo, esta autora salienta que a iluminação só é útil se existirem “olhos atentos” para que a vigilância seja efectiva, daí a necessidade de os espaços públicos serem frequentados e utilizados. Importa, ainda, ter presente a questão da continuidade na cidade. Para haver continuidade é necessário existir 358 “legibilidade” , diversidade de funções e complementaridade. Em relação à “legibilidade”, Lynch lembra que “a nossa percepção da cidade não é íntegra, mas sim bastante parcial, 359 fragmentária, envolvida noutras referências” , daí a importância de uma leitura acessível da cidade para que cada indivíduo possa ter uma imagem clara da mesma, a fim de poder orientar-se e 356 Como vimos no capítulo I, para Jane Jacobs o controlo ou vigilância social, resulta da multiplicidade de contactos sociais que diariamente ocorrem nas ruas da cidade, através dos quais há uma vigilância, individual e colectiva, sobre as actividades e comportamentos dos diferentes intervenientes na vida urbana. (Jane Jacobs, Morte e vida de grandes cidades) 357 J. Jacobs, op. cit., pág. 43. 358 Entendida como a “facilidade com a qual as partes podem ser reconhecidas e organizadas numa estrutura coerente” (Lynch, A imagem da cidade, pág. 13) 359 Idem, op. cit., pág. 12. 189 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt deslocar-se facilmente. A facilidade de percepção do meio ambiente e a imagem mental que retemos desse meio, tem uma 360 “grande relevância prática e emocional no indivíduo” , pois não só permite uma melhor orientação e deslocação, como também proporciona confiança e segurança. A legibilidade deverá, assim, facilitar uma mobilidade intencional/espontânea, levando os indivíduos a percorrer diferentes ruas da cidade sem se perder. Importa ainda salientar que Lynch defende que as ruas, enquanto “rede de linhas habituais ou potenciais de deslocação através do complexo urbano”, constituem os meios mais significativos para organizar o 361 todo . Nesta perspectiva, não só as ruas como todos os outros espaços públicos, interligados muitas vezes por uma rede de 362 “percursos ocultos” , podem ser considerados elementos estruturantes da cidade. Cada espaço público, com as suas características e funções, vai interligar-se a outro ou outros espaços, relacionando e unindo as diferentes funções que exercem, dando um “sentido de conjunto” que irá garantir a continuidade na cidade. O espaço público é por natureza um lugar de circulação, de encontro, de troca, de lazer e de memória. Teremos então percursos, formados por diferentes espaços públicos, onde as pessoas passam por ruas que podem se transformar num largo ou numa praça, com uma esplanada e uma fonte, que depois vai desembocar a outra rua com edifícios públicos, museus e espaços comerciais, ou que vai contornar um monumento e passar junto a uma ribeira, indo terminar numa pequena praça com uma velha árvore e um fontanário; dali pode sair uma outra rua, que continua 360 Idem, op. cit., pág. 14. 361 Idem, op. cit., pág. 108. 362 “Percurso oculto” – entendido como o trajecto que a estrutura urbana criou de um modo espontâneo e que as pessoas o percorrem de uma forma intuitiva. 190 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt pela cidade atravessando esplanadas, restaurantes, parques ou miradouros, conduzindo-nos de seguida a uma calçada estreita e íngreme ou a uma longa escadaria que termina junto ao mar ou junto a um forte. Pelo caminho encontramos pessoas, conhecidas ou não; observamos atitudes; (re)descobrimos lugares; entramos em lojas, numa igreja ou num museu; vemos crianças a brincar no parque; deparamo-nos com pedintes; ouvimos vários idiomas; sentimos o aroma da comida que sai pela janela de uma casa; paramos para petiscar e observar o barco que entra no porto; passamos pelo nosso antigo liceu e, a caminho de casa, pelo mercado. A cidade fica assim ligada, conduzindo o indivíduo por espaços distintos que se interligam e complementam. Cada um destes espaços públicos, com funções, forma, dimensão, arquitectura e valor patrimonial distintos, que resultaram de “pedaços” de memórias da cidade e/ou de novos espaços criados por intervenções recentes na urbe, devem constituir referências na cidade, com identidade própria, que contribuem para enriquecer e dar vida à própria cidade. Mas o dinamismo da cidade depende ainda da acessibilidade e da mobilidade que esta proporciona. Estes dois factores condicionam a utilização dos diferentes espaços urbanos. Na realidade, é importante ter presente que a cidade é o local por excelência de uma variedade de “ofertas” e de “escolhas”, sendo “impossível aproveitar-se dessa multiplicidade 363 sem ter condições de se movimentar com facilidade” . Jacobs, salienta que essa mesma multiplicidade só existe devido à 364 possibilidade de “usos combinados” , acrescentando que a troca de ideias, serviços e bens, exige comunicações e transportes eficientes. Por outro lado, Jacobs chama a atenção para o facto da multiplicidade de “escolhas” e “ofertas” depender ainda de uma 363 Jacobs, op. cit., pág. 379. 364 Ibidem. 191 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt “grande concentração de pessoas, de uma combinação intrincada 365 de usos e de um entrelaçamento complexo de caminhos” . Concentração de pessoas, combinação de usos e caminhos, sugerem mobilidade e, por conseguinte, a necessidade de um modo de deslocação – a pé ou de automóvel. Na verdade, o transporte motorizado de pessoas e mercadorias contitui uma função urbana básica que não pode ser descorada. No entanto, o movimento automóvel tem vindo a tornar-se insustentável nas cidades, gerando problemas de congestionamento e de excesso de tráfego, com repercussões negativas a nível da funcionalidade do espaço público. Em consequência, a convivência entre o tráfego automóvel e o pedonal tem vindo a deteriorar-se, havendo uma crescente invasão do automóvel no espaço destinado aos peões, o que cria obstáculos e dificulta a mobilidade das pessoas. Torna-se, assim, imperativo diminuir o número de veículos que circulam na cidade e definir espaços para circulação automóvel e pedonal. As soluções parecem ser inúmeras, no entanto, pelas leituras que fizemos de diferentes autores, nenhuma parece ser a ideal. Cada cidade é um caso e tem necessariamente que ser vista no seu todo, ou seja, como um conjunto interligado, ininterrupto, para que não sejam criadas barreiras e, consequentemente, rupturas. Contudo, é necessário ter em atenção algumas questões relacionadas com a diminuição do trânsito automóvel e a criação de ruas pedonais. Como referimos anteriormente, a circulação de veículos é uma forma de promover a segurança/vigilância nos espaços públicos urbanos. Além disso, o senso comum diz-nos que as pessoas preferem ir às ruas onde há trânsito de veículos, porque a deslocação de carro é mais cómoda. Por outro lado, sabemos que a criação de espaços exclusivamente dedicados à circulação pedestre contribui para uma maior liberdade de 365 Ibidem. 192 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt circulação das pessoas mas que, ao mesmo tempo, cria problemas ao nível da distribuição de mercadorias ou de recolha de lixo às empresas localizadas nessas áreas. 366 Jane Jacobs a este respeito é clara, afirmando que duvida ”que as vantagens da completa separação sejam muito grandes, em qualquer circunstância”. Salientando que a experiência tem mostrado que, no caso de ruas exclusivamente pedestres, as pessoas “não andam pelo meio, como se fossem enfim donas da rua”, mas sim pelos lados onde podem observar as vitrinas, os prédios e as outras pessoas. O uso da totalidade da rua inteiramente pedestre só acontece quando há um número elevado de pessoas a circular ou durante eventos, como festas e exposições. Esta autora acredita que “a maior virtude das ruas de pedestres não é a de não circularem veículos, mas sim a de não serem sufocadas e dominadas por uma inundação de carros e 367 serem mais fáceis de atravessar” . É importante ter presente que independentemente da solução a adoptar é necessário haver primeiro uma consciencialização da realidade existente. Jane Jacobs salienta que não se pode decidir pela circulação pedestre sem antes ponderar sobre a diversidade, a vitalidade e a concentração de usos urbanos, concluindo que “na ausência da diversidade urbana, as pessoas (...) provavelmente se saem melhor com um carro do 368 que a pé” . Mas a autora continua, advertindo que “a dependência excessiva dos automóveis particulares e a 369 concentração urbana de usos são incompatíveis” . Em definitivo, a resolução do problema passa necessariamente pela redução do número de carros na cidade, até porque não podemos continuar a esventrar os centros urbanos, 366 Jacobs, op. cit., pág. 386 e 387. 367 Idem, op. cit., pág. 387 e 388. 368 Idem, op. cit., pág. 388. 369 Idem, op. cit., pág. 388 e 389. 193 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt para alargar e rectificar as suas ruas ou para criar espaços de estacionamento. Além disso, se a cidade deixar de ser atractiva deixa de ser “usada” e tudo o que fica são espaços vazios que inevitavelmente se vão transformar em espaços inseguros e degradados. É ainda importante ter presente que a cidade deverá ser um local de inclusão e de coesão social. A este nível, os espaços públicos podem ter um papel fundamental enquanto locais de atracção e de convergência de pessoas e grupos com necessidades específicas e diferenciadas. Para isso basta que sejam polivalentes e multifuncionais, e que tenham uma utilização diversificada, para que possam atrair pessoas em diferentes horas do dia e ao longo de todo o ano. Em suma, é fundamental que a cidade seja “criativa”, com uma dinâmica própria voltada para a tecnologia, a tolerância e o talento. A cidade deverá ser um lugar privilegiado do conhecimento, um lugar que suscite e promova a discussão, um lugar de encontro. Para isso é necessário dar à cidade flexibilidade a fim de permitir a descoberta do espaço pelas pessoas e, por fim, as suas escolhas. Só assim ela se poderá tornar viva e vivênciada. O desafio é então tornar a cidade do Funchal mais flexível, atractiva e vivida. Para isso é necessário valorizar e reforçar a identidade da cidade e continuar a qualificar a sua imagem. É, ainda, importante não esquecer o “sítio”, a história, a funcionalidade, a segurança, a estética, o conjunto onde as partes se integram, os destinatários e os seus interesses, a colectividade, a atenuação de deficiências e os investimentos complementares essenciais à prestação das funções pré-existentes ou definidas para cada espaço. É necessário dar atenção à continuidade dos percursos, à qualidade do ambiente e à diversidade e polivalência de espaços. 194 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 3.3 Uma cidade para o futuro Identificados os desafios que se colocam à cidade do Funchal importa agir no sentido de ultrapassar as debilidades e de atingir objectivos. Feita a análise da morfologia urbana da cidade e após muitas horas a percorrer e a observar os seus espaços e utilizadores, torna-se evidente que: toda a frente mar e a foz de cada uma das diferentes das ribeiras tem de ser restituída à cidade e a todos aqueles que a utlizam. Estes elementos de água, naturais, deverão fazer parte de um espaço multifuncional que valorize e revitalize toda a frente da baía do Funchal, desde o Forte de São Tiago até ao Porto do Funchal; os “percursos” com continuidade na cidade ainda são escassos. É necessário diversificar as funções dos diferentes espaços da cidade, sobretudo dos espaços públicos, para que os “percursos” diárias de rotina da população citadina incluam cada vez mais um maior número de lugares dentro da cidade. É, ainda, importante eliminar os “vazios” que foram criados e que constituem “barreiras invisíveis” à passagem das pessoas. Os “percursos de continuidade” deverão, ainda, incluir e ligar os espaços de cultura e de história (ver Mapa nº 14) que se encontram dispersos um pouco por todo o centro do Funchal; o centro da cidade continua a ficar deserto, especialmente, ao fim do dia. A diversificação de usos dos espaços públicos irá permitir que os mesmos possam ser utilizados por pessoas ou grupos heterogéneos de pessoas, em diferentes horas do dia e ao longo da semana e do ano; é urgente reduzir o tráfego automóvel que diariamente se dirige ao centro da cidade. Esta redução passa inevitavelmente pelo incentivo à utilização dos transportes públicos e pela diversificação dos mesmos. No entanto, é necessário criar “linhas” de passagem que atravessem a parte 195 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt central do centro do Funchal, para que determinados grupos da população (por exemplo: idosos, deficientes, pessoas com problemas de saúde, crianças) possam ter o acesso ao centro facilitado. A frente mar A baía e o porto do Funchal, com a sua localização privilegiada aos pés da cidade deverão constituir uma prioridade para a renovação da imagem da cidade do Funchal. A combinação diversificada de funções urbanas e a valorização dos espaços naturais existentes ao longo de toda esta área deverão constituir os aspectos fundamentais para a renovação da frente mar. Como podemos observar no Mapa nº 15, a frente mar do Funchal estende-se desde o Porto, a Oeste, até ao Forte de São Tiago (7), a Este, apresentando duas áreas distintas – a primeira, fundamentalmente, ligada às actividades portuárias, é cruzada pela Avenida Sá Carneiro (2), que é limitada a Norte pela arriba onde está localizado o Parque de Santa Catarina (13) e o Casino Parque Hotel; a segunda, mais central, funciona como espaço de lazer e lugar de chegada e de saída da cidade, sendo atravessada longitudinalmente pela Avenida do Mar (1). Ao longo desta área, heterogénea, deverá ser criada uma nova estrutura de utilização e de continuidade da cidade, privilegiando a criação de espaços públicos e valorizando os elementos de água naturais existentes – o mar e a foz das ribeiras. Deste modo, o espaço público e a água terão um papel unificador das várias partes, devendo ser favorecido, intencionalmente, o acesso pedonal a toda a área. Deverá, também, caber ao espaço público o papel de agente de ligação entre o mar e a cidade existente, para que não ocorram processos de segregação espacial e, ainda, para permitir que a acção de renovação estenda a sua influência às diferentes áreas da cidade, através de “percursos de continuidade” quer ao longo das ribeiras 196 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt quer através das ruas que saem da Avenida do Mar em direcção a Norte. De esta maneira serão mantidos e valorizados os principais eixos estruturantes da cidade. Assim, toda a frente mar deverá sofrer um processo de reabilitação e de renovação urbana a fim de ser dada uma continuidade a este espaço da cidade, seguindo o eixo de expansão da urbe para Oeste, em harmonia com o mar. É importante aqui lembrar que a expansão da cidade do Funchal para Poente, a partir da margem direita da Ribeira de São João se fez através dos “terrenos das Angústias” e, por conseguinte, a um plano muito acima do nível do mar. Tendo chegado agora o momento da cidade ocupar e continuar o seu percurso de expansão a uma cota mais baixa, junto ao mar, ao longo da zona portuária. Na realidade, a recente desafectação do porto do Funchal às actividades mais “pesadas” e consumidoras de espaço, libertou uma área de 18 660 correspondente ao Cais de Contentores (fig. 35, nº 3), a qual poderá ser ampliada com a integração do Varadouro e dos antigos silos de cereais (fig. 35, nº 5 e 2, respectivamente), perfazendo, aproximadamente, um total de 65 924 . Toda esta área, com uma localização privilegiada na cidade e constituindo uma das “portas de entrada” do Funchal, deverá ser alvo de todo um processo de reconversão urbana. O objectivo não deverá ser o de criar uma nova centralidade, mas antes o de criar uma nova imagem urbana, mais contemporânea e dinâmica, da cidade. Assim, deverão ser construídos nesta área da frente mar edifícios, com uma arquitectura contemporânea, que incluam espaços de serviços e comércio, de cultura e de lazer. Deverá ser dada preferência a escritórios, serviços da administração regional (que já existem na área), a habitação, lojas para venda de equipamentos naúticos, galerias e atellier de arte, restaurantes, bares e discoteca (também já existentes neste local) e, possivelmente a um espaço dedicado à biologia marinha. Deverá, ainda, haver nesta área uma 197 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt separação vertical da circulação de automóveis e de peões, com o trânsito automóvel a ser feito num nível inferior, através de um túnel que ligue a Rua Carvalho Araújo ao túnel da Rotunda Sá Carneiro (fig. 35, nº 1 e 4), com acesso directo a parques de estacionamento. Deste modo, todo o nível superior, da rua, poderá ser utilizado exclusivamente por peões, sendo a mobilidade feita através de áreas de circulação cobertas e descobertas. 35. Zona portuária do Funchal – Rua Carvalho Araújo (1); silos de cereais (2); Cais de Contentores (3); Rotunda Sá Carneiro (4); Varadouro (5) e Marina do Funchal (6). A actual Marina do Funchal (fig. 35, nº 6) deverá também ser alvo de um estudo atento a fim de incluir um espaço destinado às escolas de desportos naúticos para os mais jovens, nomeadamente do Clube Naval do Funchal e do Centro de Treino Mar actualmente a funcionar na área do Varadouro (fig. 35, nº 5). A contemporaneidade desta área deverá estender-se para Este, até ao Forte de São Tiago, através de espaços públicos multifuncionais. 198 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 36. A frente mar da Avenida do Mar – Avenida do Mar (1); Cais do Funchal (2); foz da Ribeira de Santa Luzia (3); foz da Ribeira de João Gomes (4); Praia de São Tiago (5); Forte de São Tiago (6). Assim, na restante frente mar da cidade, para além dos espaços públicos, deverá ser privilegiada uma circulação exclusivamente pedonal, uma vez que existe uma série de parques de estacionamento, públicos e privados, no espaço contíguo à Avenida do Mar (fig. 36, nº 1) – Parque do Centro do Infante (350 lugares), Parque de São Lourenço (61 lugares), AutoSilo do Almirante Reis (600 lugares), Auto-Silo São Tiago (292 370 lugares) (ver Mapa nº 15 – Parques de estacionamento). Retirando o trânsito automóvel da frente mar, quebra-se uma barreira visual e sonora, verifica-se uma melhoria da qualidade do ar, e a cidade torna-se mais sensorial, podendo as pessoas disfrutar do som do mar e das pedras a rolar na praia; do cheiro da maresia, das flores e das castanhas assadas no Outono e, ainda, da cor da água, da vegetação e das flores. 370 C.M.F. Estacionamento Urbano. Retirado em 12 de Junho de 2007 da World Wide Web: www.cm-funchal.pt 199 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Em diferentes pontos da actual Avenida do Mar deverão ser construídos parques infantis destinados a crianças de diversas faixas etárias e, ainda, espaços específicos para a prática de desportos urbanos, nomeadamente skate; patins em linha e BMX (Bicycle Motocross). 37. Desportos urbanos - skate (1); patins em linha (2); BMX (3). (Imagens retiradas do Google – www.google.com) Ao longo de toda a extensão da frente mar até ao porto, deverá existir uma ciclovia, onde indivíduos de todas as faixas etárias possam andar de bicicleta e, também, um passeio para jogging e/ou caminhadas, actividades desportivas que começam a reunir um número cada vez maior de adeptos na Ilha. É, ainda, fundamental que a foz das ribeiras de Santa Luzia e de João Gomes sejam destapadas, dando lugar a uma área de descanso, relaxante, com espelhos de água e árvores. 200 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 38. Caminhar e andar de bicicleta são duas actividades desportivas que madeirenses, de diferentes faixas etárias, têm vindo a adoptar nos últimos tempos. Todo este extenso espaço público ficará limitado, a Norte, pelos diferentes edifícios, públicos e privados (fig.39), ali existentes, nomeadamente centros comerciais; o Palácio de São Lourenço; restaurantes; serviços da TAP; instituições bancárias; Assembleia Legislativa Regional; Guarda Nacional Republicana; a Capitania; a Empresa de Electricidade da Madeira; o Museu Casa da Luz; a estação do teleférico para o Monte; o Hotel Porto Santa Maria e o Forte de São Tiago – os quais atraem um número significativo de pessoas a este local, acabando também eles próprios por serem valorizados por esta nova forma de utilização do espaço. 201 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 39. Comércio e serviços existentes na frente mar da Avenida do Mar – centros comerciais (1); Teatro Municipal Baltazar Dias (2); Palácio de São Lourenço (3); restaurantes, instituições bancárias, serviços da TAP (4); Assembleia Legislativa Regional (5); Guarda Nacional Republicana (6); Capitania (7); Empresa de Electricidade da Madeira (8); Museu Casa da Luz (9); estação do teleférico para o Monte (10); Hotel Porto Santa Maria (11). A ligação da frente mar à restante cidade, como se pode observar no Mapa nº 15, será feita através do Parque de Santa Catarina (13) que estabelecerá a ligação, a Oeste, deste espaço à Avenida do Infante; e de uma série de ruas e avenidas – Rua Conselheiro José Silvestre Ribeiro (14), Avenida Zarco (15) e Rua Dr. António José de Almeida (16) – que conduzem as pessoas para diferentes pontos da cidade. As ribeiras de Santa Luzia e de João Gomes constituem importantes corredores de trânsito automóvel que ligarão esta área directamente a outros locais da cidade. 202 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Percursos de continuidade na cidade O centro do Funchal apresenta ainda alguma descontinuidade nos seus percursos. Verificamos que existem espaços na cidade, que constituem “barreiras invisíveis” à circulação de pessoas. Na maior parte das vezes são ruas centrais, paralelas ou perpendiculares a outras muito movimentadas, com tendência para a monofuncionalidade. Contudo, esta falta de variedade de funções não justifica por si só esta situação, verificando-se que muitas vezes o problema é agravado por uma fraca confluência de trajectos e pelo aspecto degradado dos edifícios. O facto de algumas destas ruas serem espaços exclusivamente pedonais veio contribuir ainda mais para a sua desertificação a partir do fim do dia e ao fim-de-semana. Algumas praças e jardins constituem outros pontos de descontinuidade na cidade. Nestes casos, verifica-se que a forma e a localização do espaço constituem fortes factores de repulsão. Por exemplo, a Praça da Autonomia é um local por norma pouco frequentado, enquanto que a pequena Praça do Pelourinho, que lhe está anexa, quase escondida, tem um café que atraia muitas pessoas. Camillo Sitte explica muito bem esta situação – excessiva regularização da praça, com muita exposição de quem a utiliza e consequente falta de conforto. Na realidade, enquanto a primeira encontra-se construída a um nível superior à rua, com linhas recta e um chafariz no centro, estando rodeada em três frentes por ruas movimentadas, a segunda está localizada a um nível mais baixo, com algumas árvores e o Pelourinho a um canto. 203 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 40. Ruas que se desertificam ao fim da tarde e ao fim-se-semana: a Travessa do Forno, transversal à Rua 5 de Outubro e à Rua dos Ferreiros (1); pormenor do estado de alguns edifícios da Travessa do Forno (2); Rua do Bispo, transversal à Rua dos Ferreiros e à Rua de João Tavira (3) e a Rua do Sabão, transversal à Rua dos Ferreiros e à Rua da Alfândega (4). O Jardim Almirante Reis, com uma área de 13000 , constitui outro exemplo de descontinuidade. Na realidade, apesar de confinar no seu extremo Este com o Hotel Porto Santa Maria e a Oeste com a estação do teleférico para o Monte, não possui a atracção que inicialmente se poderia esperar. As suas plataformas ondulantes, relvadas, cortadas por percursos pedonais não atraem um grande número de pessoas, uma vez que os passadiços ficam 204 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt ocultos na ondulação. A sensação de falta de segurança parece ser a justificação mais plausível. 41. A Praça da Autonomia (1), exposta 42. A Praça do Pelourinho, com à área envolvente, com os seus a esplanada do café ao fundo, traçados rectos e o chafariz no centro. as árvores e o Pelourinho. A Praça do Pelourinho (2). 205 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 43. O Jardim Almirante Reis (1). A Oeste a 44. Pormenor do Jardim Almirante estação do teleférico para o Monte (2) e a Reis - vista Norte com a estação do Este o Hotel Porto Santa Maria (3). teleférico ao fundo. A questão da continuidade dos percursos na cidade é um assunto complexo e extremamente interessante, que no caso do Funchal deverá ser alvo de um estudo mais aprofundado. É necessário diagnosticar as debilidades dos diferentes espaços da cidade, compreender como estes se interligam e interagem e, ainda, conhecer o modo como os diferentes grupos de pessoas apreendem, sentem e utilizam esses espaços. O facto é que uma cidade descontínua cria vazios e afasta as pessoas. É urgente dar um “sentido de conjunto” ao centro do Funchal para que possa ser garantida a continuidade na cidade e deste modo incentivar a utilização de todo o centro, explorando ao máximo os seus recursos e trazendo vida ao Funchal. Este assunto ultrapassa o objecto do presente trabalho, no entanto será certamente nosso tema de estudo e de pesquisa num futuro próximo. Acessibilidade e mobilidade A questão da acessibilidade e da mobilidade no centro do Funchal é complexa. Uma cidade viva e vivida tem 206 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt necessariamente de ter pessoas, utilizadores, os quais ou habitam na cidade ou então têm de deslocar-se até ela. Há um excesso de tráfego no centro do Funchal, provocado quer pelo uso cada vez maior do automóvel particular quer pelo elevado número de transportes públicos que aí circulam. Verificamos que embora a área urbana da cidade seja servida por uma única empresa de transportes públicos, Horários do Funchal, estes não são os únicos autocarros que diariamente afluem ao centro da cidade, em direcção à Avenida do Mar. 45. Autocarros de várias empresas junto à Praça da Autonomia - Horários do Funchal (1); Rodoeste (2); SAM (3). Julgamos assim não só ser necessário reduzir o número de automóveis particulares como também o número de autocarros que circulam no centro da cidade. Para estes últimos é necessário encontrar novos locais de chegada e de partida, os quais devem ficar estrategicamente colocados em pontos limítrofes do centro da cidade. Para uma maior comodidade dos utentes, uma carreira de transportes públicos urbanos, que circule exclusivamente na baixa, deverá fazer a ligação entre estas estações de autocarros e diferentes lugares do centro, incluindo as outras estações. 207 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt É importante aqui referir que, actualmente, no centro do Funchal circula uma carreira de autocarros públicos, eléctricos, – a Linha Eco – que liga toda a baixa. No entanto é necessário que a oferta de transportes públicos seja diversificada. Para além do autocarro, o Funchal poderá apostar ainda no barco. À semelhança do que acontece, por exemplo, em Lisboa, entre as duas margens do Rio Tejo, ou em Oslo, entre o centro e Bygdøy ou as ilhas, o Funchal também poderá ter ligações de barco entre o Cais da cidade e as áreas litorais envolventes, incluindo as do concelho vizinho. 46. Transporte marítimo de passageiros na cidade de Oslo, Noruega – o porto com os ferries que fazem a ligação entre o centro de Oslo e Bygdøy ou entre a cidade e as ilhas (1); cais de embarque do Ferry para Bygdǿy (2). Esta não é uma ideia nova. Deste o século XV até meados do século XX, as ligações entre o Funchal e as outras localidades do litoral da Madeira eram feitas quase exclusivamente por via marítima, devido à morfologia da ilha. Pessoas e mercadorias eram transportadas, inicialmente em pequenos barcos à vela e, mais tarde, em barcos a vapor, entre o “calhau” / Cais da Cidade e os diversos cais que se espalhavam pela costa, onde o litoral era mais baixo. Na realidade, um transporte marítimo rápido e eficiente entre as principais áreas dormitório do Funchal – São Martinho e Caniço – e o centro da cidade, não só iria contribuir para uma 208 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt diminuição do número de automóveis que diariamente afluem à cidade, como também reduzir o tempo gasto nessas deslocações e os níveis de poluição atmosférica. Nesta perspectiva poderiam ser criadas duas ligações fundamentais: uma para Oeste, entre o Cais da Cidade e a zona do Lido e da Praia Formosa, e outra, para Este, com destino à Praia do Garajau e ao Caniço de Baixo. Deste modo, estas localidades constituiriam importantes “interfaces ou plataformas 371 multimodais” de acesso ao centro da cidade do Funchal, ligando, como se disse, duas importantes áreas dormitório ao centro. No Verão, o número de carreiras marítimas poderia ser maior e o seu trajecto mais longo. Ligar o centro do Funchal a diferentes pontos do litoral Sul da Ilha e, consequentemente, a diferentes zonas balneares, poderá ser uma ideia muito interessante na medida em que os funchalenses teriam desta forma acesso a um maior número de praias – a Oeste, às praias de Câmara de Lobos, Ribeira Brava, Ponta do Sol, Madalena do Mar e Calheta; e, a Este, às praias do Garajau, Caniço, Santa Cruz, Machico e Caniçal. A pequena dimensão do centro do Funchal poderá à primeira vista suscitar a ideia de que facilmente o poderemos percorrer a pé. E é verdade, em vinte minutos, num passo rápido, é possível atravessar a baixa da cidade no seu sentido longitudinal. No entanto, a cidade tem diferentes utentes, com características e necessidades específicas, de onde se podem destacar os idosos e as pessoas doentes, os deficientes e as crianças mais pequenas. Para estes, a liberdade de movimentação pode estar limitada, necessitando de um meio de 371 Interface ou plataforma multimodal entendida como um espaço de encontro de diferentes modos de transporte, com infra-estruturas e equipamentos que facilitam a transferência de pessoas e mercadorias de um modo de transporte para outro. 209 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt locomoção que lhes proporcione mais conforto, mais segurança e uma maior flexibilidade nos percursos – o automóvel particular. Podemos, então, depreender que não é viável retirar o trânsito automóvel do centro da cidade, mas sim diminui-lo. Além disso, é importante não esquecer que a circulação de automóveis contribui para o aumento da vigilância social e, consequentemente, para o aumento da segurança na cidade. Actualmente, como se pode verificar pelo Mapa nº 16, existe no centro do Funchal um número significativo de ruas encerradas ao trânsito automóvel. A fim de minimizar os inconvenientes desta situação, torna-se imprescindível que sejam criados no centro do Funchal “corredores” ou linhas de trânsito centrais para a circulação de automóveis particulares. Um primeiro “corredor”, no sentido Oeste-Este, formado pela Avenida do Infante (1), Avenida Arriaga (2), Rua do Aljube (10) e Rua do Carmo (11) ou Rua Fernão de Ornelas (12), que atravessa a cidade, longitudinalmente, pelo seu “coração” permitindo um acesso fácil a diferentes quarteirões fornecedores de serviços e comércio diversificado. O segundo, no sentido Este-Oeste, seria composto pela Rua do Bom Jesus (9), a Rua Câmara Pestana (7), Rua da Carreira (6) ou Avenida Zarco (3), continuando pela Avenida Arriaga (2) e Avenida do Infante (1) ou seguindo pelo “corredor” Oeste-Este, atravessando igualmente o “coração” da cidade, desta feita mais a Norte. Com estes dois “corredores”, todos os quarteirões localizados a Sul, ao centro e a Norte ficariam facilmente acessíveis através de pequenos percursos a pé. As pequenas ruas localizadas entre estes dois eixos poderiam destinar-se exclusivamente à circulação pedonal, sendo necessário no entanto salvaguardar o acesso ao trânsito local, destinado a moradores, à distribuição de mercadorias e à recolha de lixo. Deste modo ficavam criadas as condições necessárias para a instituição de “percursos” pedonais, fundamentalmente no sentido Sul/Norte, por onde as pessoas circulariam desde a baía até à parte mais alta da cidade, através de espaços públicos 210 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt multifuncionais, havendo sempre a oportunidade de na vizinhança 372 poderem apanhar um meio de transporte nas “linhas” de trânsito, paralelas à costa. 372 Estas “linhas” de trânsito são constituídas pelos dois “corredores” que atravessam o coração da cidade e, ainda, por uma série de ruas que se localizam a montantes destes. 211 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 212 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Conclusão O estudo da morfologia urbana da cidade do Funchal e dos seus espaços públicos estruturantes é o resultado de uma análise atenta das variações da forma da cidade do Funchal e dos seus elementos morfológicos assim como dos fenómenos que lhe deram origem ao longo de cinco séculos. A cartografia urbana constituiu uma das bases fundamentais para a sustentação do trabalho de investigação contribuindo, grosso modo, para o conhecimento e a compreensão da morfologia urbana desta cidade. Utilizaram-se ainda, como fontes primárias de investigação, outros documentos materiais não escritos tais como a iconografia. Saliente-se, no entanto, que apesar destas fontes constituirem uma excelente base de investigação, a sua validade só foi possível porque foram utilizadas conjuntamente e dialecticamente com diferentes documentos escritos, os quais permitiram compreender os fenómenos que deram origem à cidade. Complementarmente, realizou-se um trabalho de campo onde foram identificadas as permanências do traçado da malha urbana e dos diferentes espaços da cidade, com especial destaque para os espaços públicos, e, ainda, de “testemunhos” edificados referentes aos momentos mais significativos do crescimento e da transformação do Funchal. Este trabalho in loco permitiu, também, sentir a cidade e observar o modo como ela é usada e vivida. Desta experiência da cidade resultou um vasto trabalho fotográfico, parte do qual é aqui apresentado. Foram ainda elaborados vários mapas caracterizadores da morfologia urbana do Funchal nos últimos quinhentos anos. Esta cartografia teve como base de trabalho o ortofotomapa de 2004 do centro do Funchal, sobre o qual foram concertadas Plantas da Cidade do Funchal de diferentes épocas recolhidas em diversos arquivos e bibliotecas de Lisboa e da Região Autónoma da Madeira. 213 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Cada um destes mapas permitiu visualizar o espaço que a cidade ocupava em cada uma das épocas e a sua forma. Ajudaram a identificar e conhecer os diferentes elementos morfológicos da cidade, tendo revelado “cidades” que ainda hoje são perceptíveis na malha urbana do Funchal. O Funchal, desde muito cedo, marcou a sua posição num mundo que se expandia para além do Mediterrâneo. Durante séculos, a sua posição estratégica no Atlântico transformou esta cidade no principal porto marítimo fora do espaço continental da Europa, constituindo a principal “porta de saída” para as rotas e os contactos de Portugal e da Europa com o “novo mundo”. Foi, ainda, a primeira cidade ultramarina portuguesa. Espaço criador de riqueza, especializou-se na exportação de produtos com grande procura nos mercados europeus – o açúcar e o vinho. Ocupou, nos séculos XV e XVI, um lugar de relevo na economia atlântica como escala de navegação e de comércio. Nos séculos XVIII e XIX o seu protagonismo não foi menor, pois não só continuou a ser um importante porto de apoio aos mercadores, como também passou a “laboratório da ciência”, enquanto lugar de passagem de cientistas e destino destacado de “turismo terapêutico”. A partir da segunda metade do século XIX tornou-se num importante destino turístico para aqueles que procuravam aventura e exotismo. Mas tem sido ao longo do século XX e XXI, que o Funchal tem vindo a reunir toda uma série de requisitos para a afirmação e consolidação desta “nova” economia – a do turismo. É um facto que, nas últimas décadas, o Funchal tem sido palco de um novo desenvolvimento urbanístico, aquele que provavelmente dará origem à “cidade do turismo”. A cidade do Funchal, à semelhança das outras cidades insulares do século XV, foi implantada numa ampla baía com boas condições como porto natural e com boa capacidade de defesa. O seu núcleo primitivo, o de Santa Maria do Calhau, localizava-se na zona Leste da baía. Este desenvolveu-se 214 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt paralelamente à linha da costa, ao longo da uma rua que recebeu o nome de Santa Maria. Com o crescimento do povoado surgiu uma nova rua a Norte da primeira, igualmente paralela ao mar. Estas duas ruas acabaram por constituir os eixos fundamentais deste pequeno núcleo urbano, de onde saía perpendicularmente uma série de pequenas ruas, travessas e becos. O lugar do Funchal depressa cresceu sendo elevado à categoria de vila e de sede de concelho por volta de 1450. Com o início da exportação de açúcar chegaram novos povoadores e a vila começou a expandir-se para Oeste, em direcção à Ribeira de João Gomes. A partir de 1466 começam a distinguir-se duas áreas urbanas na vila do Funchal – a nascente o povoado primitivo e a poente, entre as três ribeiras, as fundações da futura “cidade do açúcar”. Esta nova área de expansão, que ocorreu sobretudo entre a Ribeira de João Gomes e a Rua do Sabão, prolongava-se para Norte ao longo da margem direita da Ribeira de Santa Luzia. Nesse momento já a Rua de Santa Maria tinha sido prolongada, a partir da Ribeira de João Gomes, pela Rua dos Mercadores até praticamente Santa Catarina, no lado ocidental da baía, acompanhando o traçado da praia. Em finais de quatrocentos a vila estava positivamente instalada entre as ribeiras de João Gomes, Santa Luzia e São João. Com um número cada vez maior de ruas construídas a Norte da Rua dos Mercadores, perpendiculares a esta e em direcção à zona fabril, começava a definir-se o centro da vila junto ao Campo do Duque. Em 1486, o Duque D. Manuel mandou construir neste campo a Igreja do Funchal, uma praça, a Câmara e o Paço de Tabaliães, o que acabou por estabelecer definitivamente o centro da futura cidade. É à volta deste que ainda hoje gravita toda a vida económica e social da cidade do Funchal. A 21 de Agosto de 1508 a vila do Funchal era elevada à categoria de cidade. No apogeu da era do açúcar a cidade 215 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt encheu-se de moradias e edifícios faustosos e de templos com traços arquitectónicos de estilo mudéjar insular. A partir de meados do século XVI teve início um novo ciclo económico, o do vinho, que trouxe uma nova dinâmica à cidade. Nos finais de quinhentos, o Funchal era uma cidade que não só se tinha expandido para além da Rua do Sabão ao longo da costa, mas também para Norte acompanhando o traçado das ruas perpendiculares à linha da costa. Este novo sector da malha urbana, com uma estrutura ortogonal regular, corresponde à “cidade manuelina”, ficando no seu centro a Sé Catedral e a praça. Na cidade quinhentista edifícios institucionais, igrejas, residências e unidades fabris coexistiam no mesmo espaço. Hoje ainda é possível testemunhar a imponência dos edifícios da época sobretudo através da magnificência da Sé Catedral. Os seus espaços públicos resumiam-se à Praça da Sé, à Praça do Pelourinho, ao Largo do Poço e a alguns adros de igrejas que eram utilizados para convívio social, actos religiosos e ainda para a realização de tarefas colectivas. Dessa cidade permanece ainda hoje o formato de alguns quarteirões no actual centro, o traçado e o nome de ruas e alguns testemunhos da cidade fortificada. De facto, esta foi uma cidade com fortes, fortalezas e muralhas. Contudo só em 1542 ficaram concluídos o primeiro baluarte e os muros de defesa da frente mar, sendo certo que em 1553 a fortaleza da cidade ainda se encontrava em construção. Após um violento ataque por parte de corsários franceses em 1566, é dado início a uma nova fase da fortificação da cidade. Na realidade, só após o Regimento da Fortificação de D. Sebastião, de 1572, é que são empreendidas uma série de obras que deram origem a um sistema defensivo efectivo. Ao longo dos séculos XVII e XVIII o crescimento da cidade sofreu um abrandamento. Como podemos observar na planta síntese (Mapa nº 17) a cidade oitocentista (a cor-de-laranja) parece ter ficado “cristalizada” no espaço ocupado pela “cidade do açúcar” (a amarelo). O crescimento ocorreu sobretudo para Norte, 216 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt ao longo da Ribeira de Santa Luzia, e para Poente. Na realidade, esta cidade foi melhorada nestes dois séculos tendo-se adensando e consolidado. Os quarteirões preencheram-se e os edifícios cresceram em altura, no entanto o traçado da malha quinhentista manteve-se. Curiosamente os eixos estruturantes da cidade mantiveram-se desde os finais de quatrocentos. O século XVII caracterizou-se principalmente pela continuação do processo de fortificação da cidade, tendo sido construídos nessa época a Fortaleza do Pico, a Fortaleza de São Tiago, o Reduto da Alfândega e o Forte do Ilhéu ou de Nossa Senhora da Conceição. A cortina marítima da cidade, entre o Forte de São Filipe e a Fortaleza de São Tiago, foi também concluída. No século seguinte as obras de fortificação continuaram, desta feita com a edificação de vários fortes – o Novo, o da Penha de França e o de São José –, com a ampliação do Forte de São Tiago e, sobretudo, com obras de recuperação em diferentes fortificações. Mas nesta “cidade do vinho” surgiram ainda outras edificações, de onde se destacam as grandes residências dos senhores e dos comerciantes do vinho, e alguns dos edifícios mais imponentes desta cidade – os edifícios do antigo Paço Episcopal, do Colégio e da Igreja dos Jesuítas. São também desta altura as torres “avista-navios”, uma forma muito subtil de manter um contínuo olhar sobre a baía do Funchal. A cidade oitocentista surge no Mapa nº 17 (a encarnado) mais espraiada. Alargou definitivamente o seu limite, ultrapassando os primeiros obstáculos que o relevo lhe impunha, sobretudo para Oeste e para Norte. A abertura de ruas de ligação ao resto da Ilha parece ter sido determinante para a expansão da urbanização. Neste século, à semelhança dos anteriores, continuou a haver uma densificação do centro da cidade, surgindo um novo fenómeno que foi o da proliferação de pequenas habitações nas áreas envolventes mais elevadas da cidade. Apesar disso, a cidade manteve os seus eixos estruturantes iniciais, continuando a 217 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt crescer para Oeste, paralelamente à linha da costa, e para Norte ao longo de ruas mais ou menos paralelas ao traçado das ribeiras. Ironicamente todo o grande investimento feito no sistema de fortificação da cidade nos séculos precedentes, foi nesta época posto em causa com o abandono de alguns fortes e a demolição de grande parte das muralhas e das portas da cidade. Houve, sem dúvida, uma aposta nos espaços públicos da cidade. Surgiram novas áreas verdes, o Jardim Municipal e um pequeno jardim a Oeste da Praça da Constituição, e a Praça da Rainha foi prolongada. Em consequência de um novo ciclo económico – o do turismo terapêutico – a cidade ganhou “feições cosmopolitas”, onde os “doentes” estrangeiros passeavam pelas suas ruas e praças. No último quartel deste século a cidade não só foi dotada de um Porto de Abrigo como também recebeu um sistema de iluminação eléctrica, o que veio alterar para sempre o ambiente urbano do Funchal. Com o século XX chegou o automóvel. A cidade do Funchal nunca mais seria a mesma. Este meio de transporte, aliado ao esforço para melhorar a rede viária da cidade, fez aumentar a mobilidade das pessoas e consequentemente o alargamento dos limites urbanos. O Funchal cresceu e expandiu-se através de um processo de dispersão de pequenas moradias que, com o decorrer do século, acabaram por se espalhar desordenadamente por todo o seu anfiteatro. Embora a cidade tenha crescido em diversas direcções, como se pode ver pela mancha roxa do Mapa nº 17, continuou a acontecer uma densificação e compactação do seu centro, com a colmatagem dos espaços vazios e o preenchimento cerrado das frentes dos arruamentos com novas edificações. A cidade novecentista foi palco de várias intervenções urbanísticas: ampliação do porto do Funchal; abertura de novas avenidas; criação de novos parques e jardins; construção de 218 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt complexos multifuncionais; apetrechamento do espaço urbano com infra-estruturas e equipamentos, de acordo com as necessidades do momento e futuras. A estas intervenções urbanísticas ficaram associados nomes como Ventura Terra, Fernão de Ornelas, Rafael Botelho, Óscar Niemeyer e outros que, devido à actualidade dos acontecimentos, estão presentes na memória de todos. O grosso das acções urbanísticas que marcaram a cidade novecentista decorreu de projectos, de planos e de pessoas que num esforço conjunto conseguiram, passo a passo, dar uma nova imagem à cidade sem que no entanto esta tenha perdido a sua identidade. No centro da cidade do Funchal continua a acontecer um processo de consolidação lento, mas contínuo, embora a grande parte da sua malha urbana tenha sido definida há muito. Os limites da cidade contemporânea ultrapassaram definitivamente a nossa área de estudo, que hoje abrange apenas a baixa da cidade. Uma observação atenta de toda a cidade mostra-nos que esta continua a estender-se para Oeste, ao longo da costa, e para Norte, numa nítida sequência e prolongamento dos principais eixos estruturantes da “cidade do açúcar”. No centro da actual cidade continuam gravados na malha urbana os vestígios das “cidades” que a precederam no tempo, persistindo edifícios, fortificações, ruas e praças, memórias que nos foram legadas e que transmitem parte da identidade desta cidade. Algumas destas permanências constituem ainda importantes pontos de referência na cidade, guiando locais e estrangeiros através de percursos cheios de memórias. No entanto, a cidade continua a modificar-se aumentando o legado das gerações futuras. Hoje, ao percorrermos o centro do Funchal, é visível uma maior abertura da cidade ao espaço exterior. Há uma preocupação crescente com o bem-estar de todos aqueles que a utilizam e os espaços públicos são alvo de uma atenção redobrada. 219 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt A oferta de espaços multifuncionais tem vindo a aumentar, assim como o número e a diversidade dos acontecimentos sociais. Contudo, a utilização da cidade continua, principalmente ao fim do dia, a ser pontual e intermitente. A procura de uma nova imagem para o centro do Funchal tem conduzido à sua modernização. Hoje a cidade tornou-se mais competitiva e apta para receber uma maior diversidade de utilizadores. A identidade da cidade parece-nos protegida de momento, havendo uma preocupação crescente com a preservação das “existências” e a reabilitação, conservação e divulgação do património arquitectónico e cultural. Imóveis de interesse público, espalhados um pouco por toda a cidade, têm sido ocupados por instituições públicas e privadas ou transformadas em museus e espaços lúdicos. Alguns foram também aproveitados para fins turísticos. Mas a identidade da cidade do Funchal está ainda associada ao mar e às suas ribeiras. O certo é que a cidade, o mar e as ribeiras há muito que se tornaram indissociáveis, continuando hoje a não ser possível pensar no Funchal sem lhe associar estes dois elementos. Na verdade, constatamos que a água e o verde desta cidade, associado ao espaço de memórias e de referências da malha urbana, conferem ao Funchal uma imagem genuína e única. Mas o futuro não perdoa e traz importantes desafios à cidade quer ao nível da competitividade de outras cidades quer em termos do bem-estar dos seus utilizadores e da qualidade do seu espaço. É fundamental que o Funchal seja uma cidade mais flexível, atractiva e vivida. Para isso será necessário valorizar e reforçar a identidade da cidade e continuar a qualificar a sua imagem. É ainda necessário dar atenção à diversidade e 220 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt polivalência dos espaços, à continuidade dos percursos e à qualidade do ambiente. Neste sentido propomos: uma restituição de toda a frente mar e da foz das ribeiras à cidade e a todos aqueles que a utilizam, através da criação de um espaço público multifuncional que valorize e revitalize toda a frente da baía do Funchal; a diversificação das funções dos diferentes espaços da cidade, sobretudo dos espaços públicos, com o intuito de criar “percursos de continuidade” na cidade; uma redução do tráfego automóvel não só através do incentivo à utilização dos transportes públicos, mas também pela diversificação dos mesmos; a criação de “linhas” centrais de passagem para automóveis particulares afim de facilitar o acesso ao centro da cidade. O presente estudo sobre a Morfologia Urbana da cidade do Funchal e os seus espaços públicos estruturantes é um trabalho de síntese sobre a morfologia urbana da cidade do Funchal que abrange um período de quinhentos anos. Conscientes da dimensão do período em análise e do tema a que nos propusemos investigar reconhecemos que o mesmo apresenta lacunas. Salientamos desde já dois assuntos que merecem um estudo mais aprofundado: a parte teórica do tema aqui tratado e, ainda, a análise dos diversos espaços públicos da cidade em cada um dos séculos estudados. Isoladamente, dariam excelentes temas de pesquisa. A continuidade dos percursos na cidade do Funchal é um outro assunto igualmente interessante e extremamente útil para esta cidade, que gostaríamos de ter aprofundado. Para a sua concretização seria necessário diagnosticar as debilidades dos diversos espaços da cidade, compreender a sua interligação e interacção e conhecer o modo como os diferentes grupos de pessoas apreendem, sentem e utilizam esses mesmos espaços. Este assunto ultrapassa o objecto do presente trabalho. Certamente, num futuro próximo investigá-lo-emos. 221 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt No decurso da preparação e realização deste trabalho deparamo-nos com algumas dificuldades sobretudo ao nível da elaboração dos mapas que aqui são apresentados. Concertar Plantas da Cidade do Funchal elaboradas nos séculos XVI, XVIII e XIX sobre o ortofotomapa da Cidade do Funchal de 2004 não foi propriamente uma tarefa fácil. Foram muitas semanas de pequenos avanços e recuos, que acabaram por se traduzir num trabalho entusiasmante e que a cada dia revelava um novo pormenor. Acreditamos que esta nossa síntese da morfologia urbana do Funchal pode contribuir de alguma forma para um maior e melhor conhecimento desta cidade que, em 2008, festeja os seus quinhentos anos. Para concluir queremos salientar o gosto sentido na realização deste trabalho, o qual deixou em nós uma vontade sincera de conhecer ainda mais esta bela cidade e de constituir matéria de estudo os temas que, por saírem do âmbito e do propósito deste trabalho, não foram aqui objecto de análise. 222 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Referências bibliográficas Albarello, L. e outros. (1995). Práticas e métodos de investigação em Ciências Sociais. Lisboa: Gradiva. Almeida, E. C. (1907). Archivo de Marinha e Ultramar. Madeira e Porto Santo – 1613 a 1819., Vol. I, Coimbra: Imprensa da Universidade. Aragão, A. (1981). A Madeira vista por estrangeiros – 1455-1700. Funchal: S.R.E.C./DRAC. Aragão, A. (1987). Para a história do Funchal. Funchal: S.R.E.C./DRAC. Aragão, A. (1992). O espírito do lugar. A cidade do Funchal. Lisboa: Pedro Ferreira Editor. Arquivo Distrital do Funchal (1972). Arquivo Histórico da Madeira. Boletim do Arquivo Distrital do Funchal., Vol. XV, XVI, Funchal: D.R.A.C. Arquivo Distrital do Funchal (1973). Arquivo Histórico da Madeira. Boletim do Arquivo Distrital do Funchal., Vol. XVI, Funchal: D.R.A.C. Arquivo Distrital do Funchal (1974). Arquivo Histórico da Madeira. Boletim do Arquivo Distrital do Funchal., Vol. XVIII, Funchal: D.R.A.C. Barthes, R. (1980). A câmara clara. Lisboa: Edições 70. Bauret, G. (1992). A fotografia: história, estilos, tendências e aplicações. Lisboa: Edições 70. 223 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Beaujeu-Garnier, J. (1980). Geografia urbana. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian. Blanc, T. A. (1869). Album de desenhos dos portos marítimos artificiaes antigos e modernos que acompanham a histório dos mesmos portos. Botelho, J. R. (1969). Problemas de Urbanização do Funchal. Colóquio de Urbanismo (1969) – palestras e conclusões das mesas redondas, 17-33. Botelho, J. R. (1969). Realizações Urbanísticas e Programação. Colóquio de Urbanismo (1969) – palestras e conclusões das mesas redondas, 143-155. Brandão, P. (2006). A cidade entre desenhos. Profissões do desenho, ética e interdisciplinaridade. Lisboa: Livros Horizonte. Caldeira, A. M. (1964). O Funchal no primeiro quartel do século XX – 1900-1925. Funchal: E. M. E., Lda. Carita, R. (1981). Introdução à arquitectura militar na Madeira. A Fortaleza-Palácio de São Lourenço. Funchal: S.R.E.C./DRAC. Carita, R. (1982). Paulo Dias de Almeida e a Descrição da Ilha da Madeira. Funchal: DRAC. Carita, R. (1984). O regimento de fortificação de D. Sebastião (1572) e a Carata da Madeira de Bartolomeu João (1654). Funchal: S.R.E. Carita, R. (1989). História da Madeira (1420-1566). Povoamento e Produção Açucareira. Funchal: S.R.E. 224 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt C. M. E. (2006). Miguel Ventura Terra – A arquitectura enquanto Projecto de Vida. Esposende: Câmara Municipal de Esposende. C. M. F. (1969). Colóquio de Urbanismo – Palestras e conclusões das mesas redondas. Funchal: Câmara Municipal do Funchal. C. M. F. (1972). Plano Director da Cidade do Funchal – regulamento. Funchal: Câmara Municipal do Funchal. C. M. F. (1995). Plano Director Municipal do Funchal. Elementos complementares. Relatório. Funchal: Câmara Municipal do Funchal. C. M. F. (2004). Funchal - Roteiro histórico turístico da cidade. Funchal: Câmara Municipal do Funchal. Costa, J. P. (1995). Vereações da Câmara Municipal do Funchal – século XV. R.A.M.: S.R.T.C./CEHA Embleton, D. (1882). A Visit to Madeira in Winter 1880-81. London: J. & A. Churchill. Faria, M., Pataca, E. M. (2005). Ver para Crer: a importância da imagem na gestão do Império Português no final de Setecentos. Anais da Universidade Autónoma de Lisboa, Série História, Vol. 910, 61-98. Fernandes, M. (1993, Janeiro-Junho). A iluminação pública no Funchal. Revista Islenha, nº 12. 80 – 83. França, I. (....). Jornal de uma Visita à Madeira e a Portugal (1853 – 1854). Funchal: Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal. Frutuoso, G. (1584). Livro Segundo das Saudades da Terra. Ponta Delgada: Instituto Cultural de Ponta Delgada. 225 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Gauthiez, B. (2003). Espace urbain – vacabulaire et morphologie. Paris: Monum, Éditions du patrimoine. Gehl, J. e Gemzøe, L. (2002). Novos espaços urbanos. Barcelona: Editorial Gustavo Gili. Jacobs, J. (2000). Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes. Jornal Oficial, II Série, nº 151, de 8 de Agosto de 1997. Lamas, J. M. R. G. (2004). Morfologia urbana e desenho da cidade. Porto: Fundação Calouste Gulbenkian/Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Lynch, K. (1960). A imagem da cidade. Lisboa: Edições 70. Lopes, A. (2006). A Obra de Fernão Ornelas na Presidência da Câmara Municipal do Funchal: 1935-1946. Tese de Mestrado. Funchal Nepomuceno, R. (2006 A). A conquista da Autonomia da Madeira. Os conflitos dos séculos XIX e XX. Lisboa: Editorial Caminho. Nepomuceno, R. (2006 B). História da Madeira. Uma visão actual. Porto: Campo das Letras. Pelletier, J., Delfante, C. (1969). Cidades e Urbanismo no Mundo. Lisboa: Instituto Piaget. Rodolfo, J. S. (2002). Luís Cristino da Silva e a arquitectura moderna em Portugal. Lisboa: Publicações Dom Quixote. Rossi, A. (1966). A arquitectura da cidade. Lisboa: Edições Cosmos 226 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Salgueiro, T. (1992). A cidade em Portugal. Uma Geografia Urbana. Porto: Edições Afrontamento. Saraiva, J. H. (1993). História de Portugal. Publicações Europa – América. Sarmento, A. A. (1952). Ensaios históricos da minha Terra. Ilha da Madeira. Vol. III. Funchal: Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal. Silva, F. (1921). Elucidário Madeirense. Vol. I, II, III. Funchal: S.R.E.C. Silva, I. (1985). A Madeira e o Turismo – Pequeno Esboço Histórico. Funchal: D.R.A.C. Simões, A. e outros (1983). Transportes na Madeira. Funchal: D.R.A.C. Sitte, C. (1889). A construção das cidades segundo seus princípios artísticos. São Paulo: Editora Ática. Teixeira, M. C., Valla, M. (1999). O urbanismo português. Séculos XIII – XVIII. Portugal – Brasil. Livros Horizonte. Trigo, A., Trigo, A. (1910). Roteiro e Guia do Funchal. Funchal: Typographia Esperança. Veríssimo, N. (1993, Janeiro-Junho). Funchal – Città Dolente. Revista Islenha, nº 12. 7 – 15. Vieira, A. (2000, Dezembro). O Funchal. Os ritmos históricos de uma cidade portuária. Revista Sociedade e Território, nº 31/32, 6080. 227 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Zevi, B. (1984). Saber ver a arquitectura. São Paulo: Martins Fontes. Zurara, G. E. (1452-53?). Crónica de Guiné. Barcelos: Livraria Civilização. 228 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Referências cartográficas Almeida, P. D. (s. d.). Planta da Cidade do Funchal representando as fortificações antigas e os projectos de melhoramento. Fernandes, M. (1570). Planta da Cidade do Funchal. Maia, C. e outros (1894). Planta da Cidade do Funchal e seus arredores. Oudinot, R. (1804). Planta da Cidade do Funchal que representa o estado em que ficou depois do aluvião de 9 de Outubro de 1803. Skinner, A. (1775). Plan of the Town of Funchal. Terra, V. (1915) Planta geral de melhoramentos para o Funchal. (1948-50). Planta da Cidade do Funchal. (1967-69). Planta da Cidade do Funchal. (1990). Planta da Cidade do Funchal. (2004). Ortofotomapa do centro do Funchal. 229 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 230 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Lista de abreviaturas Abreviaturas Significado A. R. M. Arquivo Regional da Madeira B. N. Biblioteca Nacional C. M. E. Câmara Municipal de Esposente C. M. F. Câmara Municipal do Funchal C. M. F. F. Casa Museu Frederico de Freitas D. R. A. C. G. E. A. E. M. / D. I. E. Direcção Regional dos Assuntos Culturais Gabinete de Estudos Arqueológicos da Engenharia Militar / Direcção de Infraestruturas do Exército G. I. G. Gabinete de Informação Geográfica M. Q. C. Museu Quinta das Cruzes P. D. M. Plano Director Municipal R. A. M. Região Autónoma da Madeira R.B. Renato Barros S. G. L. Sociedade de Geografia de Lisboa S. R. E. C. Secretaria Regional da Educação e Cultura 231 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 232 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Bibliografia Citada: a) Sobre a Cidade do Funchal Almeida, E. C. (1907). Archivo de Marinha e Ultramar. Madeira e Porto Santo – 1613 a 1819., Vol. I, Coimbra: Imprensa da Universidade. Aragão, A. (1981). A Madeira vista por estrangeiros – 14551700. Funchal: S.R.E.C./DRAC. Aragão, A. (1987). Para a história do Funchal. Funchal: S.R.E.C./DRAC. Aragão, A. (1992). O espírito do lugar. A cidade do Funchal. Lisboa: Pedro Ferreira Editor. Arquivo Distrital do Funchal (1972). Arquivo Histórico da Madeira. Boletim do Arquivo Distrital do Funchal., Vol. XV, XVI, Funchal: D.R.A.C. Arquivo Distrital do Funchal (1973). Arquivo Histórico da Madeira. Boletim do Arquivo Distrital do Funchal., Vol. XVI, Funchal: D.R.A.C. Arquivo Distrital do Funchal (1974). Arquivo Histórico da Madeira. Boletim do Arquivo Distrital do Funchal., Vol. XVIII, Funchal: D.R.A.C. Blanc, T. A. (1869). Album de desenhos dos portos marítimos artificiaes antigos e modernos que acompanham a histório dos mesmos portos. 233 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Botelho, J. R. (1969). Problemas de Urbanização do Funchal. Colóquio de Urbanismo (1969) – palestras e conclusões das mesas redondas, 17-33. Botelho, J. R. (1969). Realizações Urbanísticas e Programação. Colóquio de Urbanismo (1969) – palestras e conclusões das mesas redondas, 143-155. Caldeira, A. M. (1964). O Funchal no primeiro quartel do século XX – 1900-1925. Funchal: E. M. E., Lda. Carita, R. (1981). Introdução à arquitectura militar na Madeira. A Fortaleza-Palácio de São Lourenço. Funchal: S.R.E.C./DRAC. Carita, R. (1982). Paulo Dias de Almeida e a Descrição da Ilha da Madeira. Funchal: DRAC. Carita, R. (1984). O regimento de fortificação de D. Sebastião (1572) e a Carata da Madeira de Bartolomeu João (1654). Funchal: S.R.E. Carita, R. (1989). História da Madeira (1420-1566). Povoamento e Produção Açucareira. Funchal: S.R.E. C. M. E. (2006). Miguel Ventura Terra – A arquitectura enquanto Projecto de Vida. Esposende: Câmara Municipal de Esposende. C. M. F. (1969). Colóquio de Urbanismo – Palestras e conclusões das mesas redondas. Funchal: Câmara Municipal do Funchal. C. M. F. (1972). Plano Director da Cidade do Funchal – regulamento. Funchal: Câmara Municipal do Funchal. 234 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt C. M. F. (1995). Plano Director Municipal do Funchal. Elementos complementares. Relatório. Funchal: Câmara Municipal do Funchal. C. M. F. (2004). Funchal - Roteiro histórico turístico da cidade. Funchal: Câmara Municipal do Funchal. Costa, J. P. (1995). Vereações da Câmara Municipal do Funchal – século XV. R.A.M.: S.R.T.C./CEHA Embleton, D. (1882). A Visit to Madeira in Winter 1880-81. London: J. & A. Churchill. Fernandes, M. (1993, Janeiro-Junho). A iluminação pública no Funchal. Revista Islenha, nº 12. 80 – 83. França, I. (....). Jornal de uma Visita à Madeira e a Portugal (1853 – 1854). Funchal: Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal. Frutuoso, G. (1584). Livro Segundo das Saudades da Terra. Ponta Delgada: Instituto Cultural de Ponta Delgada. Jornal Oficial, II Série, nº 151, de 8 de Agosto de 1997. Lopes, A. (2006). A Obra de Fernão Ornelas na Presidência da Câmara Municipal do Funchal: 1935-1946. Tese de Mestrado. Funchal Nepomuceno, R. (2006 A). A conquista da Autonomia da Madeira. Os conflitos dos séculos XIX e XX. Lisboa: Editorial Caminho. 235 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Nepomuceno, R. (2006 B). História da Madeira. Uma visão actual. Porto: Campo das Letras. Sarmento, A. A. (1952). Ensaios históricos da minha Terra. Ilha da Madeira. Vol. III. Funchal: Junta Geral do Distrito Autónomo do Funchal. Silva, F. (1921). Elucidário Madeirense. Vol. I, II, III. Funchal: S.R.E.C. Silva, I. (1985). A Madeira e o Turismo – Pequeno Esboço Histórico. Funchal: D.R.A.C. Simões, A. e outros (1983). Transportes na Madeira. Funchal: D.R.A.C. Teixeira, M. C., Valla, M. (1999). O urbanismo português. Séculos XIII – XVIII. Portugal – Brasil. Livros Horizonte. Trigo, A., Trigo, A. (1910). Roteiro e Guia do Funchal. Funchal: Typographia Esperança. Veríssimo, N. (1993, Janeiro-Junho). Funchal – Città Dolente. Revista Islenha, nº 12. 7 – 15. Vieira, A. (2000, Dezembro). O Funchal. Os ritmos históricos de uma cidade portuária. Revista Sociedade e Território, nº 31/32, 60-80. Zurara, G. E. (1452-53?). Crónica de Guiné. Barcelos: Livraria Civilização. 236 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt b) Sobre a Cidade e o Urbanismo Beaujeu-Garnier, J. (1980). Geografia Fundação Calouste Gulbenkian. urbana. Lisboa: Brandão, P. (2006). A cidade entre desenhos. Profissões do desenho, ética e interdisciplinaridade. Lisboa: Livros Horizonte. Gauthiez, B. (2003). Espace urbain – vacabulaire morphologie. Paris: Monum, Éditions du patrimoine. et Gehl, J. e Gemzøe, L. (2002). Novos espaços urbanos. Barcelona: Editorial Gustavo Gili. Jacobs, J. (2000). Morte e vida de grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes. Lamas, J. M. R. G. (2004). Morfologia urbana e desenho da cidade. Porto: Fundação Calouste Gulbenkian/Fundação para a Ciência e a Tecnologia. Lynch, K. (1960). A imagem da cidade. Lisboa: Edições 70. Pelletier, J., Delfante, C. (1969). Cidades e Urbanismo no Mundo. Lisboa: Instituto Piaget. Rodolfo, J. S. (2002). Luís Cristino da Silva e a arquitectura moderna em Portugal. Lisboa: Publicações Dom Quixote. Rossi, A. (1966). A arquitectura da cidade. Lisboa: Edições Cosmos Salgueiro, T. (1992). A cidade em Portugal. Uma Geografia Urbana. Porto: Edições Afrontamento. 237 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Sitte, C. (1889). A construção das cidades segundo seus princípios artísticos. São Paulo: Editora Ática. Teixeira, M. C., Valla, M. (1999). O urbanismo português. Séculos XIII – XVIII. Portugal – Brasil. Livros Horizonte. Zevi, B. (1984). Saber ver a arquitectura. São Paulo: Martins Fontes. c) Sobre outros temas Albarello, L. e outros. (1995). Práticas e métodos de investigação em Ciências Sociais. Lisboa: Gradiva. Barthes, R. (1980). A câmara clara. Lisboa: Edições 70. Bauret, G. (1992). A fotografia: história, estilos, tendências e aplicações. Lisboa: Edições 70. Faria, M., Pataca, E. M. (2005). Ver para Crer: a importância da imagem na gestão do Império Português no final de Setecentos. Anais da Universidade Autónoma de Lisboa, Série História, Vol. 9-10, 61-98. Saraiva, J. H. (1993). História de Portugal. Publicações Europa – América. Consultada: a) Sobre a Cidade do Funchal Carita, R. (2003). História da Madeira. As ocupações inglesas e as lutas liberais: o processo político (1801–1834). Funchal: S. R. E. 238 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Orlando, R. (1985). A Ilha da Madeira até meados do século XX. Lisboa: I.C.L.P. Santos, C. O. (2001). O nosso Niemeyer. Campo das Letras. b) Sobre a Cidade e o Urbanismo Augé, M. (1992). Não-Lugares. Editora 90º. Bacon, E. (1967). Design of cities. England: Penguin Books. Benevolo, L. (1998). A cidade e o arquitecto. Lisboa: Edições 70. Byrne, G. (2006). Geografias vivas. Casal de Cambra: Caleidoscópio. Brandão, P. (Coord.) (2002). O chão da cidade. Almada: Tipografia Peres. Choay, F. (1980). A regra e o modelo. Casal de Cambra: Caleidoscópio. Cullen, G. (1971). Paisagem Urbana. Lisboa: Edições 70. Goff, J. (1997). Por amor das cidades. Lisboa: Editorial Teorema. Gonçalves, J. M. (2006). Os espaços públicos na reconfiguração física e social da cidade. Lisboa: Universidade Lusíada Editora. Kostof, S. (1992). The city assembled. Thames & Hudson. 239 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Mumford, L. (1961). A cidade na história. São Paulo: Martins Fontes. Portas, N. (Coord.) (1998). Cidades e frentes de água. Porto: Inova. Teixeira, M. (Coord.) (1999). A praça na cidade portuguesa. Livros Horizonte. c) Sobre outros temas C. N. C. D. P. (1997). Cartografia de Lisboa séculos XVII a XX. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. Gervereau, L. (2007). Ver, compreender, analisar as imagens. Lisboa: Edições 70. Gulbenkian, F. C. (1982). Cartografia portuguesa do Marquês de Pombal a Filipe Folque 1750-1900: o património histórico cartográfico do Instituto Geográfico e Cadastral. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian Publicações. Joly, M. (1994). Introdução à análise da imagem. Lisboa: Edições 70. Marques, A. P. (1994). A Cartografia dos Descobrimentos Portugueses. Lisboa: Elo. Resende, M. T. (1994). Cartografia Impressa dos Séculos XVI e XVII – imagens de Portugal e Ilhas Atlânticas. Lisboa: Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses. 240 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Índice remissivo Cartografia Ortofotomapa do centro do Funchal, 2004 Plan of the Town of Funchal, Captain Skinner, 1775 Planta da Cidade do Funchal, Mateus Fernandes, 1570 Planta da Cidade do Funchal que representa o estado em que ficou depois do aluvião de 9 de Outubro de 1803, Brigadeiro Oudinot, 1804 Planta da Cidade do Funchal representando as fortificações antigas e os projectos de melhoramento, Paulo Dias de Almeida, s. d. Planta da Cidade do Funchal e seus arredores, Engº Carlos Maia, Engº Adriano Trigo e Engº Annibal Trigo, 1894 Planta da Cidade do Funchal, 1948-50 Planta da Cidade do Funchal, 1967-69 Planta da Cidade do Funchal, 1990 Planta geral de melhoramentos para o Funchal, Arqº Ventura Terra, 1915 Iconografia – desenhos, gravuras e litografias Fortaleza de São João do Pico (1654) Fortaleza de São Lourenço (1654) Fortaleza de São Tiago (1654) Fortaleza Nova da Praça (1654) Funchal Cathedral, from the beach, 1848-49, Portão dos Varadouros Reduto da Alfândega (1654) Rua da Carreira, Portão da Carleira View near the Praça da Constituição, 1850 241 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Iconografia - fotografias Aker Brigge, Oslo Antigo Colégio dos Jesuítas Antigo Paço Episcopal A Sé Catedral vista da Praça da Constituição A torre da Sé vista do cais da Cidade Cais da Cidade Cais da Cidade, início do século XX Capela de Santa Catarina Cortina da cidade, Hotel Porto Santa Maria Desportos urbanos – skate, patins em linha, BMX Edifício da Antiga Alfândega do Funchal Estrada da Pontinha Forte de Nossa Senhora da Conceição Forte de São Tiago Foz das ribeiras de Santa Luzia e de João Gomes Igreja do Colégio Largo da Rua das Fontes Largo de São Sebastião Largo da Sé Catedral Largo do Pelourinho Lojas na Rua do Aljube Mercado D. Pedro V Mercado dos Lavradores Oslo Palácio da Câmara – Câmara Municipal do Funchal Palácio da Rua do Esmeraldo Palácio de São Lourenço Palácio de São Pedro Panorama da Praça da Autonomia Panorama da zona Este do centro da cidade do Funchal Panorama da zona Noroeste do centro da cidade do Funchal Panorama da zona Oeste do centro da cidade do Funchal Panorama do centro da cidade do Funchal Passeio da Avenida Arriaga 242 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Passeio da Avenida do Mar Praça da Constituição Praça de São Pedro Praça do Município Pormenor da muralha de protecção da Ribeira de Santa Luzia Pormenor de edifícios na Travessa do Forno Pormenor do Jardim Almirante Reis Porto do Funchal, em 1888 Ribeira de João Gomes Ribeira de Santa Luzia Ribeira de Santa Luzia, em 1927 Ribeira de Santa Luzia, em 2007 Rua da Praça, início do século XX Rua do Bispo Rua do Sabão Sé Catedral Solar de Dona Mécio Tabuleta da Rua da Carreira Tabuleta da Rua de Santa Maria Transporte de passageiros entre o cais da cidade e os barcos Travessa do Forno Torreão Leste da Fortaleza de São Lourenço Torre “avista-navios” a Sul da Sé Catedral Torre “avista-navios” do Instituto do Vinho da Madeira Torres “avista-navios” na Rua do Bispo Torre da igreja de Santa Clara Torre da igreja de São Pedro Torre da Sé Catedral Varadouros de madeira rotativos Vista aérea sobre a Avenida do Mar Vista aérea sobre o Jardim Almirante Reis Vista aérea sobre o Porto do Funchal Zona do Lido Zona dos Piornais 243 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Nomes Albarello, L. Almeida, Paulo Dias de Aragão, António Barthes, Roland Bauret, Gabriel Beaujeu-Garnier, Jacqueline Botelho, José Rafael Caldeira, Abel Marques Carita, Rui Carvalho, Feliciano António Matos e Costa, João Faria da Duque D. Manuel I Embleton, Dennis Faria, M. Fernandes, Manuel Fernandes, Mateus França, Isabella de Frutuoso, Gaspar Gauthiez, B. Jacobs, Jane João, Bartolomeu Jorge, Jerónimo Kopke, Eduardo Augusto Lamas, José Lynch, Kevin Maia, Carlos Nepomuceno, Rui Niemeyer, Óscar Ornelas, Fernão de Oudinot, Brigadeiro Reynaldo Pelletier, J. Ramos, Carlos Raposo, Francisco Real, Joaquim da Costa Rossi, Aldo Salgueiro, Teresa Barata de 244 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Saraiva, José Hermano Sarmento, A. Silva, Fernando Augusto da Sitte, Camillo Skinner, Capitão Andrew Teixeira, Manuel Terra, Ventura Trigo, Adriano Veríssimo, Nelson Zevi, Bruno Zurara, Gomes Eanes da 245 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 246 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt Anexo documental de imagens 247 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 249 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 250 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 251 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 252 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 253 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 254 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 255 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 256 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 257 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 258 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 259 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 260 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 261 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 262 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 263 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 264 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 265 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 266 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 267 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 268 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 269 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 270 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 271 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 272 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 273 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 274 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 275 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 276 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 277 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 278 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 279 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 280 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 281 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 282 MALHA URBANA Nº 9 – 2010 Luísa Catarina Freitas Andrade Bettencourt 283