baixa - Avatares Antenados

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baixa - Avatares Antenados
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI
IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA
2015
1
O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI
IZABEL CRISTINA CORDEIRO LIMA COSTA
Tese de Doutorado submetida ao Programa de PósGraduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal
do Rio de Janeiro, para obtenção do título de Doutor em
Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos; opção:
Literatura Italiana).
Orientadora: Profa. Dra. Maria Lizete dos Santos
Rio de Janeiro
Junho 2015
2
FICHA CATALOGRÁFICA
Costa, Izabel Cristina Cordeiro Lima.
O tempo na narrativa de Dino Buzzati / Izabel Cristina Cordeiro Lima Costa. –
Rio de Janeiro: UFRJ/FL, 2015.
124f. : 30 cm
Orientadora: Maria Lizete dos Santos
Tese (Doutorado) – Faculdade de Letras, Departamento de Letras Neolatinas,
Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2015.
Referências Bibliográficas: f. 120-124.
1. Buzzati, Dino. 2. Narrativa italiana Séc. XX. 3. Conto. 4.Tempo. 5. Sessanta
racconti. 6. In quel preciso momento. Santos, Maria Lizete dos. II. Universidade
Federal do Rio de Janeiro. III. O tempo na narrativa de Dino Buzzati.
3
O TEMPO NA NARRATIVA DE DINO BUZZATI
Izabel Cristina Cordeiro Lima Costa
Orientadora: Professora Doutora Maria Lizete dos Santos
Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras
Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em Letras Neolatinas
(Estudos Literários Neolatinos; opção: Literatura Italiana).
Examinada por:
______________________________________________________________
Presidente, Professora Doutora Maria Lizete dos Santos - FL/UFRJ
_______________________________________________________________
Professor Doutor Alcebíades Martins Arêas - UERJ
_______________________________________________________________
Professora Doutora Marinês Lima Cardoso - UERJ
Professor Doutor Rossana Cavalieri Falcão - CNEN/UFRJ
Professora Doutora Sonia Cristina Reis - FL/UFRJ
Professora Doutora Geysa Silva - UFJF
_______________________________________________________________
Professor Doutor Flavio García Queiroz de Melo - UERJ
Rio de Janeiro
Junho de 2015
4
RESUMO
O tempo na narrativa de Dino Buzzati
Izabel Cristina Cordeiro Lima Costa
Orientadora: Professora Doutora Maria Lizete dos Santos
Resumo da Tese de Doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em
Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro, como parte dos
requisitos necessários à obtenção do titulo de Doutor em Letras Neolatinas
(Estudos Literários; opção: Literatura Italiana).
Esta tese analisa as estratégias utilizadas por Dino Buzzati (San Pellegrino,
1906 - Milão, 1972) em sua produção poética - especificamente, o gênero
conto - para a construção da categoria tempo com vistas a abordar a sua
irreversibilidade sob o ponto de vista ora da personagem, ora do narrador,
causando uma aparente irrelevância das outras duas categorias fundamentais
da narrativa: espaço e personagem. Dão suporte a este trabalho,
principalmente, os pressupostos teóricos de Gérard Genette em Discurso da
narrativa (1972), Confissões (2004) de Santo Agostinho e vários estudos que
tratam do tempo na narrativa, dentre os quais se destaca Paul Ricoeur e seu
Tempo e narrativa (2010) tomos I, II e III.
Palavras-chave: Dino Buzzati, Narrativa Italiana Séc. XX, Conto, Tempo,
Sessanta racconti, In quel preciso momento.
Rio de Janeiro
Junho de 2015
5
RIASSUNTO
Il tempo nella narrativa di Dino Buzzati
Izabel Cristina Cordeiro Lima Costa
Relatrice: Professoressa Dottoressa Maria Lizete dos Santos
Riassunto della Tesina di Dottorato presentata nell’ambito del Programma di
Post laurea in Lettere Neolatine presso l’Università Federale di Rio de Janeiro,
per acquisire il titolo di Dottore in Lettere Neolatine (Studi Letterari- opzione:
Letteratura Italiana).
Questa tesina analizza le strategie utilizzate da Dino Buzzati (San Pellegrino,
1906 - Milano, 1972) nella sua produzione poetica – e specificamente, il genere
racconto – per la costruzione della categoria tempo con vista alla sua
irreversibilità sotto punto di vista ora dal personaggio, ora del narratore,
causando un’apparente non pertinenza dalle altre due categorie fondamentali
dalla narrativa: spazio e personaggio. Daranno supporto a questo lavoro,
principalmente, i pressuposti teorici di Gérard Genette in il “Discurso da
narrativa” (1972), “Confissões” (2004) di Sant’ Agostino e vari studi che trattano
del tempo nella narrativa, tra i quali si mette in evidenza Paul Ricoeur e la sua
opera “Tempo e Narrativa” (2010) tomi I, II e III.
Parole-chiave: Dino Buzzati, Narrativa Italiana Sec. XX, Racconto, Tempo,
Sessanta racconti, In quel preciso momento.
Rio de Janeiro
Giugno 2015
6
ABSTRACT
Time on Dino Buzzati’s narrative
Izabel Cristina Cordeiro Lima Costa
Advisor: Professor Maria Lizete dos Santos
Abstract of the PhD thesis submitted to Rio de Janeiro Federal University’s Neo
Latin Literature Postgraduate Program, as a partial requisite necessary to
obtain the title of PhD in Neo Latin Literature (Literary Studies; option: Italian
Literature).
This thesis analyzes the narrative strategies employed by Dino Buzzati (San
Pellegrino, 1906 – Milão, 1972) in his poetry production – specifically the genre
of tales – in order to set up the time category and so approach its irreversibility
either under the character’s perspective or under the narrator’s, inducing an
apparent irrelevance of the narrative’s two other fundamental categories: space
and character. To support this work, we have, mainly, the theoretical
presuppositions of Gérard Genette’s Narrative Discourse (1972), Confessions
(2004), by Saint Augustine and many other studies on time in the narrative,
among which we can highlight Paul Ricoeur’s Time and Narrative (2010),
volumes 1, 2 and 3.
Keywords: Dino Buzzati, Italian Narrative from the 20th Century, Tale, Time,
Sessanta racconti, In quel preciso momento.
Rio de Janeiro
Junho de 2015
7
AGRADECIMENTOS
Muitas foram as dificuldades enfrentadas, dentro e fora da universidade, ao
longo destes quatro anos de pesquisa, mas muito maior que elas foi o amparo
que sempre recebi de amigos queridos e sempre prontos para me defender e
auxiliar em toda e qualquer situação.
Minha jornada acadêmica teria sido bem difícil sem a presença acolhedora de
Andrea Cabral, César Casimiro e Luciana Nascimento, que sempre puseram
em prática o verdadeiro significado da frase “um por todos e todos por um”.
Na impossibilidade de nominar todas as valorosas pessoas que participaram
deste sonho comigo, sei que todos os envolvidos, direta ou indiretamente,
encontrarão seu reflexo nestas linhas de gratidão.
Agradeço à Professora Doutora Maria Lizete dos Santos, por sua dedicação e
esmero em me ajudar com suas sábias orientações ao longo dos últimos sete
anos, me corrigindo e auxiliando com a paciência de uma verdadeira mãe
acadêmica. Obrigada por cada puxão de orelha!
À CAPES pela bolsa que financiou parte de nossa pesquisa.
A todos os professores com os quais tive a oportunidade de ampliar meus
horizontes assistindo suas enriquecedoras aulas desde a graduação.
Aos professores doutores Alcebíades Martins Arêas, Marinês Lima Cardoso,
Rossana Cavalieri Falcão e Sonia Cristina Reis, pela generosa leitura desta
tese.
Aos funcionários da Pós-Graduação e à secretária do Departamento de
Neolatinas da Faculdade de Letras, Maria Denise Genovese, in memoriam.
Aos meus familiares e amigos que compreenderam os motivos de minha
ausência temporária.
Aos meus filhos Vittor e Vittoria que, do alto de seus seis anos de vida,
conseguiram entender os motivos pelos quais a mamãe nem sempre pode
brincar com eles.
A todos vocês, por tudo isso e muito mais, o meu sincero e eterno
agradecimento.
8
Dedico esta tese ao meu marido, Gerson Costa, por sua generosidade infinita e
sua amorável dedicação ao trilhar este caminho junto a mim.
9
O tempo é um tecido invisível em que se pode bordar
tudo, uma flor, um pássaro, uma dama, um castelo, um
túmulo. Também se pode bordar nada. Nada em cima de
invisível é a mais sutil obra deste mundo, e acaso do
outro.
Machado de Assis.1
1
MACHADO DE ASSIS, Joaquim Maria. São Paulo: Abril Cultural, 1984, p. 52.
10
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO, p. 12
CAPÍTULO I
DINO BUZZATI, NO TEMPO, p. 14
1.1- Buzzati, autor de múltiplas estéticas, p. 14
1.2- Reflexionando a respeito do tempo, p. 19
1.2.1- O tempo em Confissões, p. 20
1.2.2- O tempo e os físicos, p. 27
1.3- O conto em foco, p. 31
1.4- Tempo, tempo, tempo, p. 37
1.5- Um elo em várias correntes, p. 42
CAPÍTULO II
TEMPO, MEMÓRIA, INESPERADO, p. 51
2.1- Naquele exato momento: contos mínimos, p. 56
2.2- Sessanta racconti: em busca de um tempo perdido, p. 68
2.3- Fantástico, Mágico ou Inesperado?, p. 77
2.3.1- Uma gota de medo, p. 83
2.3.2- Um paletó enfeitiçado, p. 85
2.3.3- Caçadores de tempo perdido, p. 92
2.3.4- Contestação global contra a "terrível senhora", p. 96
2.3.5- No médico: o morto em vida, p. 99
2.3.6- "Solidão" e seus integrantes, p. 103
CONSIDERAÇÕES FINAIS, p. 117
REFERÊNCIAS, p. 120
ANEXOS
11
INTRODUÇÃO
Nosso interesse pela obra de Dino Buzzati foi despertado quando
estávamos no curso de especialização em língua e literatura italiana oferecido
pela Faculdade de Letras da Universidade Federal do Rio de Janeiro e tivemos
a oportunidade de nos aproximar da obra desse multifacetado autor e
conhecer, especialmente, alguns dos seus contos que abordam a questão
medo/morte.
Mais tarde, já completamente enredados pela trama narrativa de Dino
Buzzati, decidimos investigá-la mais profundamente, e, em nosso mestrado,
também realizado na mesma Faculdade de Letras, nos dedicamos ao estudo
do tempo, do medo e da morte na produção poética do nosso autor. Esse
estudo teve vários desdobramentos, que se materializaram na pesquisa cujos
resultados apresentamos nesta tese, que objetiva, principalmente, analisar as
estratégias narrativas utilizadas por Dino Buzzati na construção da categoria
tempo para abordar a sua irreversibilidade sob o ponto de vista ora da
personagem, ora do narrador, causando uma aparente irrelevância das outras
categorias do discurso narrativo.
O tempo e o espaço estão intimamente ligados (cronotopo) em alguns
contos de Dino Buzzati, mas não na maioria deles, nos quais o tempo descrito
pelo narrador/personagem está, aparentemente, dissociado do elemento
espaço.
Nos
contos
em
que
se
observa
essa
pseudodissociação
tempo/espaço, o ponto de vista da personagem em relação ao tempo se
mantém o mesmo, mas verifica-se uma ampliação, um engrandecimento da
categoria tempo dentro da narrativa, toldando as demais categorias.
Nossa hipótese é, então, que a categoria tempo assume uma posição de
destaque na narrativa de Dino Buzzati, minimizando a presença das categorias
personagem e espaço como procuraremos demonstrar no corpus selecionado.
Assim, a partir de contos selecionados dos livros Sessanta racconti
(2007), In quel preciso momento (1950) e Le notti difficili (2002), pretendemos
analisar a relação do tempo com a categoria espaço e a categoria personagem,
12
através do ponto de vista do narrador/personagem, com a intenção de
demonstrar a intensidade com que a categoria tempo sobrepuja as demais nas
narrativas do nosso autor.
Para tanto, nossos estudos estarão ancorados, principalmente, nos
pressupostos teóricos de Gérard Genette em Discurso da narrativa (1972),
Mikhail Bakhtin em Estética da criação verbal (1997), Paul Ricoeur em Tempo
e narrativa (2010) tomos I, II e III, entre outros.
E, para tornar mais acessível a leitura da nossa tese, a segmentaremos
em dois capítulos. No primeiro – Dino Buzzati, no tempo –, será focalizada a
obra poética do autor; se refletirá sobre questões relativas ao tempo, filosófico
e científico; se discursará sobre o gênero conto; e, ainda, serão apresentadas
as correntes artísticas, literárias e filosóficas, às quais o autor se aproximou. No
segundo capítulo – Tempo, Memória, Inesperado –, serão abordados os
conceitos explicitados no título, bem como será proposta uma análise dos
contos selecionados para a composição desta tese.
Por fim, antes de iniciarmos a apresentação dos resultados da nossa
pesquisa, convém esclarecer que, sempre que possível, procuramos adotar a
bibliografia na língua original e que todas as traduções feitas por nós serão
indicadas com TN (Tradução Nossa).
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CAPÍTULO I
DINO BUZZATI, NO TEMPO.
1.1- Dino Buzzati, autor de múltiplas estéticas.
Dino Buzzati, jornalista, pintor e escritor italiano nasceu no dia 16 de
outubro de 1906, na localidade de San Pellegrino, Belluno, região do Vêneto,
na Itália. Formou-se em direito, em 1928 e, no mesmo ano, começou a
trabalhar no jornal milanês Corriere della Sera. Desde cedo soube conciliar seu
trabalho de jornalista com o ofício de escritor. Em 1933, publicou seu primeiro
romance, Bàrnabo delle montagne e, dois anos depois, Il segreto del bosco
vecchio. Em 1939, entregou para edição o manuscrito do romance Il deserto
dei Tartari, cujo título original era La fortalezza, mudado a pedido do editor, por
temer uma possível alusão à guerra, já iminente. No entanto, ironicamente, é
sua a “Cronaca di ore memorabili”, publicada na primeira página do Corriere
della Sera, em 25 de Abril de 1945, dia em que a Itália se liberta do domínio
nazifascista. Nesse mesmo ano, Buzzati lança La famosa invasione degli orsi in
Sicilia, história infanto-juvenil ilustrada pelo autor, publicada anteriormente em
capítulos, de 7 de janeiro a 29 de abril, no Corriere dei Piccoli.
“Tornou-se mundialmente conhecido em 1940 quando publicou Il deserto
dei tartari (O Deserto dos Tártaros), romance alegórico que Camus adaptou
para o teatro e Zurlini levou ao cinema”, conforme escreve Eduardo Pitta em
seu blogue – Da Literatura – em 1 de agosto de 2008, comentando a coletânea
de contos A Derrocada da Baliverna (http://daliteratura.blogspot.com/2008/08/dinobuzzati.html).
Em 1958 foi contemplado com o Prêmio Strega pelo livro Sessanta
racconti e, em 1970, com o premio jornalístico “Mario Massai” pelos artigos
publicados no Corriere della Sera, no verão de 1969, sobre a descida do
homem na Lua.
Em 1969, lança Poema a fumetti, obra idealizada no momento em que,
na Itália, os quadrinhos começavam a conquistar espaço no mundo das artes.
Afirma Buzzati:
14
La pittura per me non è un hobby, ma il mestiere; hobby per me
è scrivere. Ma dipingere e scrivere per me sono in fondo la
stessa cosa. Che dipinga o che scriva, io perseguo il medesimo
scopo, che è quello di raccontare delle storie2.
O autor, que já tinha tido a experiência de ilustrar seu livro La famosa
invasione degli orsi in Sicilia, reúne nesse Poema, suas duas paixões: a
literatura e as artes plásticas. No romance “a Fumetti” Buzzati apresenta e
redimensiona alguns de seus temas mais caros, dos quais destacamos a
Morte, a partir de um diálogo com textos clássicos da literatura como, por
exemplo, Orfeu e Eurídice.
A produção de Dino Buzzati obteve considerável sucesso no exterior,
principalmente na França, mas repercussão incipiente na Itália, apesar de seu
romance Il deserto dei Tartari (O deserto dos tártaros), considerado sua obraprima, ter sido traduzido em várias línguas. Somente a partir dos anos 1960 e,
mais especificamente, após a sua morte, em 1972, o autor passou a merecer
maior atenção dos estudiosos italianos. Entretanto, ainda não se contabiliza um
número significativo de críticos literários italianos que se tenham dedicado ao
exame de sua obra. Escassas referências ao autor são encontradas nas
principais antologias italianas de literatura; Buzzati é citado, na maior parte das
vezes, através de fragmentos de seu romance Il deserto dei tartari, cujo
sucesso, na opinião do estudioso da literatura italiana Giulio Ferroni (2001, p.
233), deve-se ao fato de a obra “collocarsi al limite tra la grande letteratura e la
letteratura di grande consumo” 3.
Recentemente,
foram
escritos
alguns
trabalhos
enfocando
a
religiosidade nas obras de Dino Buzzati, autor que se dizia agnóstico, “non
credente”. A pesquisadora Lucia Bellaspiga, por exemplo, realizou uma
pesquisa materializada no livro Dio che non esisti ti prego. Dino Buzzati, la
fatica di credere, no qual examina os contos do escritor com o intuito de
2
A pintura para mim não é um hobby, mas um ofício; hobby para mim é escrever. Mas pintar e escrever
para mim são, no fundo, a mesma coisa. Quer pinte ou quer escreva, eu persigo o mesmo objetivo, que
é o de contar histórias. (TN)
http://www.railibro.rai.it/articoli.asp?id=64. Acesso em 20 de junho de 2010.
3
Colocar-se no limite entre a grande literatura e a literatura de consumo. (TN)
15
individuar os “segnali” (sinais) que ele percebia como mensagens enviadas do
Além.
No Brasil, o escritor tem merecido alguns estudos acadêmicos. Desses,
na Universidade Federal do Rio de Janeiro, registram-se uma tese de
doutorado (2004) intitulada Dino Buzzati: na fronteira do narrativo e do
pictórico, de autoria de Jardilete Cabral de Andrade, e a dissertação de
mestrado da mesma autora – O imaginário social na alegoria do romance “Il
deserto dei Tartari”, além de nossa dissertação de mestrado (2010) intitulada O
Tempo, o Medo e a Morte em contos de Dino Buzzati.
Outros trabalhos produzidos nos últimos anos sobre a obra do autor
merecem ser citados como, por exemplo: Trabalho de Conclusão de Curso
(TCC) de Chiara Tormen, da Università Ca’ Foscari, de Veneza, intitulado Dino
Buzzati e il mondo della cronaca giornalistica (2012), que aborda a questão
escritor/jornalista, estabelecendo algumas comparações entre Buzzati e outros
escritores que também tiveram por ofício primeiro a atividade jornalística,
como, por exemplo, Leonardo Sciascia e Emile Zola. Também o TCC de
Tommaso Menna, da Università di Roma – “La sapienza”, intitulado Tempo e
spazio nei romanzi di Dino Buzzati (2007), que analisa a concepção do tempo e
do espaço na obra buzzatiana e sua singularidade na literatura novecentesca
italiana. Ou, ainda, o TCC de Maria Chiara Banchio, da Università degli studi di
Torino, intitulado Dino Buzzati e il racconto di Natale (2010), que focaliza trinta
e três contos de Buzzati dedicados à temática natalina e à forma como o
escritor insere temáticas atuais para abordar um evento sobre o qual um semnúmero de autores escreveram: o Natal.
Outros TCCs sobre o autor que merecem ser citados: de autoria de
Andrea Suverato, da Università degli studi di Genova, Il bestiario di Dino
Buzzati (2013), trata da iconografia animal que permeia várias obras do nosso
autor; La problematica morale ed esistenziale nella narrativa di Dino Buzzati, de
Giuseppina Lapadula, cuja instituição não foi informada (cf. link), aborda os
recursos utilizados pelo autor, que ela classifica de fantástico, para falar de
temas tão caros ao homem como a morte e Deus.
16
Com relação à produção ensaística sobre o autor, registra-se, o ensaio
de Chiara Lepri4 – Infanzia e linguaggi narrativi in Dino Buzzati (2014) –, que
trata da presença da infância na obra do autor e a importância da ingenuidade
infantil em alguns personagens para o desfecho de obras como Il segreto del
bosco vecchio, Barnabò delle montagne e La famosa invasione degli orsi in
Sicilia. Um outro ensaio, escrito por Eliza Martinez Garrido, no periódico
Quaderns d’Italià, sob o título Brevi considerazioni sulla familiarità perturbante
di Dino Buzzati. Una animalesca metamorfosi terrificante (2011), estuda o conto
“I topi” (os ratos) à luz da psicanálise freudiana e da experiência existencial do
autor, com o objetivo de problematizar a angústia edipiana. Por fim, a
professora Ancilia María Antonini, no periódico Cuadernos de Filología Italiana,
publicou o artigo La ricezione critica di Dino Buzzati in Spagna (2000), no qual
aborda o crescente interesse da crítica espanhola, bem como o renovado
interesse de pesquisadores pela obra de Dino Buzzati.
Como é possível observar, as pesquisas sobre a produção poética de
Dino Buzzati são cada vez mais volumosas e consistentes, particularmente se
tomarmos em consideração o trabalho que se vem realizando através do
Centro Studi Buzzati, constituído em 1991, como estrutura permanente da
Associazione Internazionale Dino Buzzati, com vistas a promover pesquisas
sobre o autor e difundir a sua obra, no mundo.
Autor multifacetado, Dino Buzzati morreu em Milão, em 28 de Janeiro de
1972. Legou-nos uma profícua produção poética: “libretos de ópera, crônica,
teatro, poesia e ficção, área em que se notabilizou: cinco romances e cerca de
uma centena de contos fizeram dele um nome incontornável da literatura
europeia do século XX” (PITTA). Tem traduzidos e publicados no Brasil os
seguintes trabalhos: O Deserto dos Tártaros (1984), Um Amor (1985), Naquele
Exato Momento (1986), e As Noites Difíceis (1986).
“Autor de uma obra que questiona o poder e indaga o sentido da vida,
Buzzati, um verista por excelência, tem sido com frequência associado ao
4
LEPRI, Chiara. Infanzia e linguaggi narrativi in Dino Buzzati. Studi sulla Formazione, [S.l.], p. 131-47,
apr. 2014. ISSN 2036-6981. Disponibile all’indirizzo:
http://www.fupress.net/index.php/sf/article/view/14246/13203 (acesso em 20/03/2015)
17
realismo fantástico graças ao estranhamento que nimba tantas das suas
histórias”, escreve Eduardo Pitta em seu blogue5.
Não concordamos com Pitta no que diz respeito à afirmação "um verista
por excelência", visto que as obras de Buzzati não se inscrevem na corrente
verista, quer seja temporalmente, quer seja pelas escolhas temáticas.
Concordamos, sim, plenamente, quanto ao estranhamento que "nimba tantas
das suas histórias", aspecto que nos atraiu para o estudo de sua obra.
Endossamos a afirmação de Pitta, sobre as reflexões ontológicas
propostas por Buzzati em sua produção poética; reflexões quase sempre
preteridas pelos críticos da literatura, em favor de uma leitura, muitas vezes
redutora, associada somente ao Surrealismo ou à narrativa fantástica.
Nossa intenção é, reiteramos, procurar demonstrar que sob a forma
narrativa que nos induz a aproximar a obra de Buzzati, por exemplo, do
Fantástico conceituado por Todorov, do Insólito pesquisado pelo professor
Flavio García6 ou do Surreal postulado por Breton, pulsa uma profunda
indagação sobre o Tempo, associado ao Medo e à Morte e que se manifesta
através do Realismo Mágico conceituado por Massimo Bontempelli.
E é sobre essa indagação – o tempo – que a seguir passaremos a
discorrer.
5
http://daliteratura.blogspot.com/2008/08/dino-buzzati.html
6
GARCÍA, Flavio. A banalização do insólito: questões de gênero literário – mecanismos de construção
narrativa. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2007.
18
1.2- Reflexionando a respeito do tempo.
Tamanha é a riqueza das experiências e das
interpretações do tempo através do curso da história que
se acaba sucumbindo à impressão de que qualquer
intento de atribuir-lhe uma definição que se pretendesse
exaustiva revelar-se-ia precária e antecipadamente
anacrônica. São raros os conceitos que podem ostentar
uma prodigalidade tão grande de abordagens, todas
como que a mostrar a inesgotabilidade do tema. 7
A afirmação de Gerd Bornhein, na epígrafe, nos ajuda a justificar a breve
reflexão que apresentaremos sobre o tempo, um tema inesgotável, valendonos, somente, de alguns conceitos dentre o sem-número de estudos
registrados através "do curso da história".
Nossas considerações têm início com os conceitos de tempo dos quais
nos valeremos ao longo deste trabalho.
Toda narrativa se constrói sobre as categorias de tempo, espaço e
personagem; e, para nossas reflexões, buscaremos aprofundar as acepções da
categoria tempo dentro do conto.
No verbete do dicionário8, encontramos várias definições sobre tempo,
como, por exemplo: “duração relativa das coisas que cria no ser humano a
ideia de presente, passado e futuro; período contínuo no qual os eventos se
sucedem”, que nos sinaliza a importância da memória para a construção da
ideia de tempo, ou a definição: “dimensão que permite identificar dois eventos
que, caso contrário, seriam idênticos e que ocorrem no mesmo ponto do
espaço” que se adequa aos estudos da física, ciência esta que também
contribuirá para as nossas reflexões e, ainda que não seja objeto de nossos
estudos, os conceitos estabelecidos por ela servirão para ilustrar a
versatilidade de Dino Buzzati na construção da categoria tempo em sua
narrativa.
7
BORNHEIN, Gerd. "A invenção do novo". In: Tempo e História / org. Adauto Novaes. São Paulo:
Companhia das Letras; Secretaria Municipal de Cultura, 1992, p. 103
8
HOUAISS, Antônio [et al.]. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009,
p. 1826.
19
Por outro lado, no Dicionário de narratologia9, lemos que o relevo do
tempo se dá, antes de tudo, por conta da “condição primordialmente temporal
de toda narrativa”10, uma vez que é o responsável pelas “implicações
linguísticas”11 advindas de sua importância como categoria gramatical.
Valemo-nos, aqui, apenas das definições que servem de aporte para
nossa tese, uma vez que sabemos que a narrativa nasce para explicar o mito,
mas também que o mito só se explica através da narrativa; daí, a necessidade
de revisitar os primórdios que tratam sobre o tempo. Por isto, optamos por
começar nossa reflexão por Confissões, de Santo Agostinho.
1.2.1- O tempo em Confissões.
No livro XI das Confissões, que se intitula “O homem e o tempo”,
Agostinho começa seu discurso questionando-se sobre o que, de fato, seja o
tempo e nos brinda com a sua célebre assertiva:
O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém mo
pergunta, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a
pergunta, já não sei. (AGOSTINHO, 2004, p. 322)
Percebemos ser esta, ainda, a angústia do homem moderno; não poder
definir o tempo, não poder controlá-lo, mais que nada, não poder vislumbrá-lo
mesmo que sofrendo todas as sanções advindas do seu ‘existir’. Sim, o tempo
“é”. Agostinho questiona essa existência do tempo em paralelo com a busca de
respostas do tipo “como pode ser breve ou longo o que não existe?”, quando
se refere à duração do tempo. Ele parte da divisão em passado, presente e
futuro e considera que, como o passado já não existe, e o futuro ainda está por
vir, apenas o presente poderia ser longo ou breve. Ocorre que, também esse
presente é questionável e suscetível às divisões passadas e futuras.
9
REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de narratologia. Coimbra: Almedina, 2002.
10
Idem
11
Ibidem
20
O filósofo percebe que, se o presente em questão for um dia, esse
mesmo dia é composto por vinte e quatro horas e que, se nos ativermos à hora
nona, por exemplo, as que lhe antecederam já pertencerão ao passado, assim
como as que ainda não vieram pertencem ao futuro. Ora, a mesma lógica
poderá ser aplicada à hora nona, no que se refere aos minutos e segundos que
a compõem. Partindo dessa premissa, ele questiona: “Onde existe portanto o
tempo que podemos chamar longo? Será o futuro? Mas deste tempo não
dizemos que é longo, porque ainda não existe. Dizemos: “será longo”. E
quando será?” (AGOSTINHO, 2004, p. 324. Os grifos são nossos.)
O advérbio onde possui várias funções, mas a sua significação básica
será sempre locativa. Assim como o advérbio quando, expressará sempre as
circunstâncias de tempo. Ora, o autor questiona a existência do tempo e sua
localização, mas sabe que ele ocupa algum lugar, em algum dado momento.
Continuando, Agostinho questiona a existência das coisas futuras e
conclui que os profetas não as vaticinariam, caso elas não fossem reais. Mas a
problemática da medição desse tempo se mantém, até porque intrínseca a esta
questão temos aquela da origem do tempo:
Mas de onde se origina ele? Por onde e para onde passa,
quando se mede? De onde se origina ele senão do
futuro? Por onde caminha, senão pelo presente? Para
onde se dirige, senão para o passado? Portanto, nasce
naquilo que ainda não existe, atravessando aquilo que
carece de dimensão, para ir para aquilo que já não existe.
(AGOSTINHO, 2004, p. 328)
O que pode ser medido, por assim dizer, é o que deixa marcas em
nossa alma, em nosso espírito; as impressões do antes, do durante e do
depois que ficam gravadas em nossa memória é que nos conferem certa ideia
de durabilidade do tempo. Daí, podermos dizer que o jantar de ontem à noite
foi longo, ao passo que a noite dormida foi curta, por exemplo.
Os acontecimentos diários em nossa vida estão, necessariamente,
repletos de imagens, que vão sendo gravadas em nossa memória, as quais
retomamos quando nos reportamos a um acontecimento do passado. As
impressões que esses acontecimentos deixaram em nosso espírito é que nos
permitem o ‘atrevimento’ de supor medir a duração de tais eventos. Da mesma
21
forma se dá quando vislumbramos acontecimentos futuros na expectativa de
que eles aconteçam.
Com base nessa expectativa do tempo futuro e nessa lembrança do
tempo passado, Santo Agostinho questiona se o tempo não seria “outra coisa
senão distensão”. Então, se assim é, poderíamos concluir que essa percepção
da passagem do tempo e essa noção de longo/curto só seriam possíveis em
nível psicológico, uma vez que se trata das impressões que essas vivências
imprimem na alma daquele que as experienciou. O tempo pertence à
consciência, já que medimos apenas o que fica retido na nossa memória,
porque:
[...] Meço a impressão que as coisas gravam em ti à sua
passagem, impressão que permanece, ainda depois de
elas terem passado. Meço-a a ela enquanto é presente, e
não àquelas coisas que se sucederam para a impressão
ser produzida. É a essa impressão ou percepção que eu
meço, quando meço os tempos. Portanto, ou esta
impressão é os tempos ou eu não meço os tempos.
(AGOSTINHO, 2004, p. 336)
Para Agostinho, as coisas passadas existem porque deixam suas
marcas na memória e o tempo que passou não pode ser longo, pois longa é
apenas “a lembrança do passado”. A atenção no presente é que permite que
as coisas presentes passem e, no que concerne ao futuro, ele não pode ser
longo uma vez que longa é, apenas, a “expectação do futuro”. (AGOSTINHO,
2004, p. 337)
Paul Ricoeur afirma que Santo Agostinho “poderá salvar essa certeza
inicial de um aparente desastre, transferindo para a expectativa e para a
memória a ideia de um longo futuro e de um longo passado”12, propondo uma
Solução elegante: confiando à memória o destino das
coisas passadas e à expectativa o das coisas futuras,
pode-se incluir memória e expectativa num presente
ampliado e dialetizado, que não é nenhum dos termos
anteriormente rejeitados: nem o passado, nem o futuro,
nem o presente pontual, nem mesmo a passagem do
presente. (RICOEUR, 2010, p. 23)
12
RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa I. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 18.
22
Para o filósofo francês, toda obra narrativa expressará sempre um
mundo temporal na medida em que “desenhe as características da experiência
temporal”, desde que o tempo humano esteja “articulado de maneira
narrativa”13. Assim sendo, não se pode medir algo que não seja sensível aos
nossos sentidos.
Consideramos oportuno fazer um breve desvio em nosso discurso, ainda
que nos mantenhamos nele. Agostinho trata de memória, quando nos
remetemos
ao
passado,
e
de
expectativa,
quando
projetamos
os
acontecimentos futuros: para evitar qualquer conceituação comprometida e
equivocada de nossa parte a respeito desses termos, recorremos ao dicionário
Houaiss:
memória s.f. (sXIII) 1 faculdade de conservar e lembrar
estados de consciência passados e tudo quanto se ache
associado aos mesmos [...] 3 aquilo que ocorre ao
espírito como resultado de experiências já vividas;
lembranças, reminiscência [...]14.
expectativa s.f. (1515) situação de quem espera a
ocorrência de algo, ou sua probabilidade de ocorrência,
em determinado momento [...]15
A partir da definição encontrada para o vocábulo memória, podemos
acrescentar que ela “é a percepção firme, pela alma, das coisas e das
palavras”16. É através da memória que temos noção do tempo que passou e do
que ainda poderá vir, assim como do que vivenciamos e imprimimos nela no
presente. É também por conta da memória que o homem criou e cria uma série
de símbolos para representá-la, para eternizá-la, mais que nada, para
reconhecer-se.
Segundo Norbert Elias, em seu livro Sobre o Tempo, o que nós
pontuamos com o uso dos relógios são os nossos compromissos sociais, uma
13
Ibidem.
14
HOUAISS, Antônio [et al.]. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p.
1271.
15
Idem, p. 858.
16
YATES, Frances A. A arte da memória. Campinas: Editora Unicamp, 2010, p. 25.
23
vez que não se pode “medir uma coisa que não se pode perceber pelos
sentidos”, ou seja,
[...] Uma das dificuldades com que deparamos em nossas
investigações decorre do fato de os homens ainda não
haverem adquirido uma consciência clara da natureza e
do modo de funcionamento dos símbolos que eles
mesmos aperfeiçoaram e, que constantemente utilizam.
Assim, correm o risco de se perder na densa floresta de
seus próprios simbolismos. O tempo é um exemplo deles.
Os calendários estabelecidos pelos homens e os
mostradores dos relógios atestam o caráter simbólico do
tempo. E, a despeito de tudo, o tempo tem sido, muitas
vezes, um enigma para os homens [...]
(ELIAS, 1998, p. 27)
Pode-se, então, afirmar que a memória armazena as impressões do que
foi vivenciado pelo indivíduo ao longo de sua vida e, quando recordamos
dessas experiências, ela nos sugere uma dimensão, breve/longa, do tempo
que supõe ter passado, além de, por força da própria lembrança, tornar esse
passado presente através da recordação que, por sua vez, estabelecerá
sempre o seu parâmetro de medida em relação ao presente. Então, o nosso
bom e velho relógio é a invenção que afere essa ilusão de tempo passado, e a
memória, o continente desse conteúdo temporal/atemporal:
De fato, não estando agora alegre, recordo-me de ter
estado contente. Sem tristeza, recordo a amargura
passada. Repasso sem temor o medo que outrora senti,
e, sem ambição, recordo a antiga cobiça. Algumas vezes,
pelo contrário, evoco com alegria as tristezas passadas; e
com amargura relembro as alegrias. (AGOSTINHO, 2004,
p. 272-73)
Em seu livro A arte da memória, Frances A. Yates trata do estudo da
memória desde Simônides de Ceos (556~468 a.C.) até Leibniz (1646~1716) e,
citando Boncompagno da Signa, professor de retórica na Universidade de
Bolonha, escreve:
O que é a memória. A memória é um glorioso e admirável
dom da natureza, pelo qual recordamos as coisas
passadas,
compreendemos
as
presentes
e
contemplamos as futuras, por meio de sua semelhança
com as coisas passadas. (YATES, 2010, p. 81)
24
A autora observa que é a memória que confere ao tempo a sua
imortalidade; é o que o torna perene. É através da memória que o homem,
desde os primórdios, conta a sua própria história e lega às gerações futuras os
feitos de sua época, seja por intermédio de arautos e escribas da antiguidade,
seja através dos textos impressos e digitais dos dias de hoje.
Ao longo de toda a história da humanidade, o tempo ocupou a posição
de desafiado, uma vez que o homem assume a postura de desafiador do
grande dragão que a tudo devora: Cronos.
Várias têm sido as tentativas, sejam elas filosóficas, científicas,
psicológicas ou literárias, de explicar e definir esse elemento misterioso, em
sua essência, e que controla tudo o que nos cerca. Ao mesmo tempo, tentamos
de todas as formas controlar os efeitos que ele causa em nós, seja com
cirurgias plásticas, tinturas nos cabelos, exercícios físicos para alimentar o
tônus muscular da juventude, a fim de aparentarmos menos “tempo” do que o
que temos na verdade. Somos, de fato, cada um de nós, regidos por três
pequenas agulhas, também chamadas ponteiros, que eternizam em seu
tiquetaquear as lembranças daquilo que chamamos vida.
Então, fica mais fácil entender que a nossa noção de tempo,
passado/presente/futuro, se dá por conta da capacidade que temos de
armazenar na memória tudo o que tange aos nossos sentidos, como afirmou
Kant em sua obra Crítica da razão pura, quando tratou do tempo:
Logo, o tempo é simplesmente uma condição subjetiva
da nossa (humana) intuição (que é sempre sensível, isto
é, na medida em que somos afetados por objetos), e em
si, fora do sujeito, não é nada. [...] (KANT, 2005, p. 80)
O autor postula que o tempo sem a experiência humana não existe, mas
há algumas controvérsias a respeito das coisas que tangem aos nossos
sentidos. Platão, em Fédon, quando escrevia a respeito dos contrários, afirma:
[...] E também, supondo pelo menos que depois de tê-lo
adquirido (o conhecimento) não o esqueçamos
constantemente, é uma necessidade lógica que
tenhamos nascido com esse saber eterno, conservando-o
sempre no curso de nossa vida. Saber, com efeito,
consiste nisso: depois de haver adquirido o conhecimento
25
de alguma coisa, dispor dele e não mais perdê-lo. Aliás, o
que denominamos “esquecimento” não é, por acaso, o
abandono de um conhecimento? [...]
(PLATÃO, 1983, p. 79)
Segundo Platão, narrando os diálogos de Sócrates, o mundo real é o
das ideias, e tudo quanto temos no mundo físico não passa de um simulacro
desse real. Esse conceito, por si só, já justificaria a teoria do conhecimento que
prescinde o empírico de Kant. Mas, também ele, Kant, reconhece esse saber
que antecede a experiência e o chama de a priori ou conhecimento puro:
E justamente nestes últimos conhecimentos, que se
elevam acima do mundo sensível, onde a experiência
não pode dar nem guia nem correção, residem as
investigações de nossa razão que pela sua importância
consideramos muito mais eminentes e pelo seu propósito
último muito mais sublimes do que tudo o que o
entendimento pode aprender no campo dos fenômenos;
mesmo sob o perigo de errar, nisto arriscamos antes tudo
a dever desistir de tão importantes investigações por uma
razão qualquer de escrúpulo, de menosprezo ou de
indiferença. Esses problemas inevitáveis da própria razão
pura são Deus, liberdade e imortalidade. [...]
(KANT, 2005, p. 56. O grifo é nosso.)
De acordo com Kant, apesar de o conhecimento humano começar com a
experiência, nem todos os saberes principiam nela. O conceito platônico da
imortalidade da alma, por exemplo, é para Kant um conhecimento a priori. A
esse respeito, Santo Agostinho, o “ancião cheio de sabedoria”17, no Livro X das
Confissões, quando trata da memória e dos sentidos, corrobora com as teorias
platônicas, ao escrever: “[...] Não foi por nenhum dos sentidos do corpo que
atingi essas coisas significadas nestes sons, nem as vi em parte nenhuma a
não ser no meu espírito. Escondi na memória não as suas imagens, mas os
próprios objetos.” (AGOSTINHO, 2004, p. 270)
Observamos que tempo e memória caminham juntos. É a memória que
nos confere o conhecimento de que o tempo passou, ou de que passamos por
ele. Santo Agostinho afirma que a memória é uma potência e que “esta
potência é própria do meu espírito, e pertence à minha natureza” 18. Sendo
17
ELIAS, Norbert. Sobre o tempo. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998, p. 7.
18
AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 2004, p. 268.
26
assim, podemos afirmar que, se a memória é uma potência do indivíduo e que
cada indivíduo tem um acervo de experiências diferente do seu semelhante e,
ainda, essa memória é responsável pela noção de tempo, existem vários
tempos. Esse conceito da pluralidade temporal também é objeto de estudos da
Física quando trata do tempo através da ótica do observador, como esclarece o
estudioso Stephen Hawking:
[...] O tempo dos eventos não poderia ser rotulado de
uma única maneira. Pelo contrário, cada observador teria
sua própria medida de tempo conforme registrada pelo
relógio que ele carregava, e os relógios carregados por
diferentes observadores não seriam necessariamente
concordantes entre si. [...]19 (HAWKING, 2005, p. 109)
Mas, isso só vale se os observadores estiverem com velocidades
relativas próximas à da luz, caso contrário o tempo é absoluto, ou seja, a
relatividade do tempo de que falam os físicos não tem nada a ver com a
relatividade de que falam filósofos como Kant ou Santo Agostinho.
1.2.2- O tempo e os físicos.
No parágrafo anterior, aludimos à relatividade do tempo; no entanto, não
pretendemos nos alongar nos domínios da física quântica ou da teoria restrita
de Einstein, as quais não dominamos e que, ademais, nos afastariam do nosso
objetivo primeiro, apesar de as considerarmos teorias adequadas à uma
possível leitura das várias estratégias que Dino Buzzati utiliza para construir,
em seus contos, a ideia de tempo, como, por exemplo, nos contos
"All’idrogeno", "Qualcosa era sucesso", "24 marzo 1958", "Velocità della luce",
"Smagliature del tempo", "Nessuno crederà" e "Appuntamento con Einstein".
Os três últimos contos citados merecerão uma leitura detalhada neste trabalho,
mais adiante. Por isto, faremos aqui uma breve explanação do assunto, dando
destaque, somente, aos pontos que servem de apoio à nossa tese.
19
HAWKING, Stephen; MLODINOW, Leonard. Uma nova história do tempo. Rio de Janeiro: Ediouro,
2005, p. 109.
27
Existem duas teorias da relatividade, a geral e a restrita: a Teoria da
Relatividade Geral é aquela criada por Einstein que, inserindo os efeitos
gravitacionais, concebe-se a noção de espaço-tempo curvo; a Teoria da
Relatividade Restrita é a que substitui os conceitos independentes de espaço e
tempo, da teoria proposta por Newton, pela ideia de espaço-tempo como sendo
uma unidade geométrica na qual podemos encontrar quatro dimensões: três
espaciais - altura, largura e profundidade - e uma temporal, quarta dimensão20.
A partir das descobertas de Einstein, a percepção do universo não foi
mais a mesma. A teoria da relatividade restrita abalou as estruturas da
mecânica newtoniana, onde o tempo era considerado uma grandeza absoluta.
Na teoria newtoniana, a velocidade é relativa porque, dependendo do
referencial, podemos observar diferentes velocidades. Por exemplo, se um
indivíduo caminha a certa velocidade e avista um carro em movimento terá, da
velocidade do carro, uma percepção diferente de um outro cidadão que,
parado, veja o mesmo carro movimentar-se. Então, na teoria newtoniana, a
velocidade é relativa porque depende da visão do observador.
Toda a física trabalha com a questão do observador, mas na teoria de
Newton apenas a velocidade é relativa, o tempo não. Para ele, se o indivíduo
está parado, ou em movimento, o tempo passará da mesma forma. É mais ou
menos assim: se eu e você sincronizarmos os nossos relógios e eu sair em
meu carro a 100 km/h, enquanto você fica parado, depois de meia hora o
tempo que passará para mim será exatamente o mesmo que passará para
você, ainda que eu estivesse em movimento e você não. A minha velocidade
será relativa em relação à sua, mas o tempo não. Na teoria newtoniana o
tempo será sempre fixo.
Até 1900, essa era a única verdade e tem sua origem nos estudos de
Galileu e em sua Lei dos Corpos em Queda, na qual Newton, anos depois, se
apoiou para desenvolver suas teorias. A respeito das conclusões lógicas do
físico, Elias afirma que “Newton, sem dúvida, foi o representante mais eminente
20
Todas as informações a respeito das teorias da Física nos foram fornecidas pela pesquisadora Rossana
Cavalieri Falcão, Doutora em Física pela UFRJ.
28
dessas concepções objetivistas, que começaram a declinar a partir do início da
era moderna” (ELIAS, 1998, p. 9).
Àquela época, os físicos observaram que a luz tem uma velocidade que
se mantém em qualquer referencial, ou seja, se eu estiver dentro de um trem
rápido, a 200 km/h, e, paralelo ao trem, tiver um raio de luz, a velocidade da luz
será sempre 300.000 km/s.
Não importa que velocidade o trem no qual esteja consiga atingir, a
velocidade do raio de luz será sempre a mesma.
Nenhum físico conseguia explicar essa questão da luz, até que Einstein
propôs que a velocidade da luz era absoluta, mas o tempo não. Daí, ele
concebeu o paradoxo dos gêmeos, como explica Stephen Hawking:
[...] Consideremos um par de gêmeos. Supondo que um
dos gêmeos vá viver no topo de uma montanha,
enquanto o outro permanece no nível do mar. O primeiro
gêmeo envelheceria mais rápido que o segundo. Logo, se
eles voltassem a se encontrar, um seria mais velho que o
outro. Neste caso, a diferença nas idades seria bem
pequena, mas seria muito maior se um dos gêmeos
partisse para uma longa viagem numa espaçonave na
qual ele acelerasse até uma velocidade próxima à da luz.
Quando retornasse, ele seria muito mais jovem que
aquele que permaneceu na Terra.
(HAWKING, 2005, p. 56)
Podemos observar na afirmação de Hawking, acima citada, o conceito
de Relatividade Restrita, ou seja, a velocidade da luz é absoluta em qualquer
referencial, mas o tempo passará mais lento na medida em que o referencial
que se move estiver próximo da velocidade da luz. Mas esses efeitos só podem
ser observados em velocidades muito altas.
Talvez fosse um absurdo considerar que Einstein tenha realmente dito
que “tudo é relativo”, uma vez que os estudos nos mostram que o que é relativo
é o tempo em relação à partícula observada, já que uma pessoa, a princípio,
jamais alcançaria tal velocidade.
A velocidade da luz é o limite de velocidade do universo. Apenas uma
partícula sem massa pode conseguir chegar à velocidade da luz. O fóton, que é
29
a partícula de luz, não tem massa; do contrário sua velocidade diminuiria. É
como uma onda de energia.
Para finalizar essa explanação a respeito do tempo, sob a ótica da
Física, relataremos uma pequena história, que poderá ilustrar a nossa
impossibilidade de dar um assunto por encerrado ou, no nosso caso, um tema
por esgotado.
Conta-se que Einstein, depois de conceber a fórmula primeira da Teoria
da Relatividade (E=+mc²), pensou: Não pode haver uma energia negativa,
nada tem uma energia negativa, logo, tomarei por valido apenas E=mc². Mas,
outro físico, chamado Paul Dirac, pensou: Não. Porque esquecer esse valor
negativo? Deve haver partículas com energia negativa e eu as chamarei de
antipartículas. Se existe um elétron, existirá um antielétron; se existe um
próton, existirá um antipróton e essas antipartículas terão um valor negativo.
Dirac escreveu uma teoria muito complexa a esse respeito – que chamou de
mecânica quântica relativística e une a física quântica com a relatividade – e
enviou uma carta a Einstein, sugerindo a existência dessa antipartícula para os
valores negativos da energia, ao que Einstein respondeu: Se a natureza não é
assim, a natureza é uma idiota, porque a tua teoria é tão boa que a natureza
precisa ser assim.21
Posteriormente, eles realmente encontraram essas antipartículas. Na
verdade, para cada partícula teremos uma antipartícula correspondente.
A conclusão a que chegamos, depois desta digressão através do
universo da física, e também recorrendo à afirmação de Gerd Bornhein, citada
como epígrafe, é que o estudo do tempo proporciona uma série de definições e
interpretações, sejam elas científicas, sociológicas, filosóficas, religiosas,
psicológicas ou literárias. E que, em cada uma dessas áreas, e em tantas
outras, o tempo continua sendo um objeto de estudo profícuo e intrigante, que
conduz cada um de nós, pesquisadores, a uma fascinante viagem ao encontro
do grande Titã.
21
Fato relatado pela Professora Doutora Rossana Cavalieri Falcão, pesquisadora da Comissão Nacional
de Energia Nuclear e Doutora em Física pela UFRJ.
30
Após nos aproximarmos de teorias sobre o tempo e a memória, que
servirão de base a nossa tese, passaremos à leitura dos contos selecionados
de Dino Buzzati. Antes, porém, justificaremos nossa escolha pelo gênero conto,
visto que, como informamos, Dino Buzzati é um autor multifacetado, que
transitou em diferentes gêneros. No entanto, é seu romance Il deserto dei
tartari (1940), que o consagra como escritor tornando-se a obra que mais
trabalhos mereceu, e tem merecido, dos estudiosos e críticos da sua produção
literária. Nesse romance, Buzzati dá vida à personagem Drogo, um militar de
carreira, que, designado a servir em um forte perdido em um deserto desolado,
fronteiriço ao território tártaro, passa décadas na expectativa de uma invasão
tártara. Consome sua vida se preparando para uma grande batalha, na qual ele
acredita que sua existência será submetida à prova. Ao ficar velho e doente,
Drogo é dispensado pelo novo comandante do forte e, em seu caminho de
volta à cidade, morre solitário em uma pensão. A história, na qual se destaca a
passagem do tempo, seus desdobramentos e significados, recebeu uma
versão cinematográfica, em 1976, com título homônimo, sob a direção de
Valerio Zurlini.
O filme de Zurlini também foi determinante para decidirmos pesquisar,
na obra de Buzzati, as questões relativas ao tempo, já aguçadas quando da
leitura de alguns de seus contos, nos quais as diversas alegorias sobre a
passagem do tempo nos fascinaram, conforme assinalamos na introdução a
este trabalho.
Retomados os contos lidos na especialização, e examinada mais
acuradamente a produção poética de Buzzati, constituímos o corpus de nossa
tese, a partir de uma seleção de contos.
1.3- O conto em foco.
Sobre o conto, o intelectual argentino Julio Cortázar, considerado um
dos mais inovadores e originais escritores latino-americanos do século XX, com
importante produção no gênero, afirma:
31
O excepcional reside numa qualidade parecida à do imã;
um bom tema atrai todo um sistema de relações conexas,
coagula no autor, e mais tarde no leitor, uma imensa
quantidade de noções, entrevisões, sentimentos e até
ideias que lhe flutuavam virtualmente na memória e na
sensibilidade; um bom tema é como um sol, um astro em
torno do qual gira um sistema planetário de que muitas
vezes não se tinha consciência até que o contista,
astrônomo de palavras, nos revela sua existência. 22
A definição de conto feita por Cortázar encerra plenamente os nossos
motivos para escolher estudar esse gênero, uma vez que:
[...] o conto excepcional [...] não é o conto que traz o
extraordinário anormal, [...] nem o conto que traz o
extraordinário fantástico, [...]. O conto excepcional é o
conto muito bom. Excepcional é a marca de qualidade
literária que torna alguns contos inesquecíveis para quem
os lê. 23
O termo conto admite três significados diferentes. Primeiramente, definese como conto qualquer tipo de história centrada sobre uma ou mais
personagens, narrada de forma oral ou escrita, em versos ou em prosa,
equivalendo-se a texto narrativo e opondo-se a texto poético. O termo pode ser
utilizado, ainda, para indicar o enredo ou a trama de uma narração,
distinguindo-o de fábula. Por fim, tem-se o terceiro significado, em que o termo
designa um gênero narrativo específico, que é a narração breve, em prosa,
centrada sobre um acontecimento particular e com um número limitado de
personagens. Na terceira acepção, o termo conto se aproxima ao conceito de
novela, e, muitas vezes, são usados como sinônimos.
Na tradição ocidental, a novela configura-se como gênero literário
durante a Idade Média, quando começam a ser organizadas histórias
fantásticas da vida cotidiana ou casos curiosos conforme o argumento. Assim,
a novela distingue-se da fábula e de outros tipos de histórias como uma
narração mais articulada e complexa, girando em torno de um único
acontecimento, verossímil ou imaginário, e com poucas personagens.
22
Apud. GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do conto. São Paulo: Ática, 2006, p. 66.
23
Idem, p. 66
32
Por ser uma das mais antigas formas de narrativa de que se tem
notícia, pode-se dizer que é o primogênito impresso das narrativas orais da
antiguidade. Àquela época, a perpetuação da memória dos feitos heróicos,
históricos ou fabulares se dava através da oralidade o que, posteriormente, nos
legou clássicos como A ilíada e A odisséia, de Homero. Mas, em sua maioria,
os relatos eram breves e de cunho moral, como podemos observar, por
exemplo, na coletânea de contos publicados em 11 de janeiro de 1697 por
Charles Perrault, primeiramente com o título Histórias ou contos do tempo
passado com moralidades, e, posteriormente, chamado Contos da Mamãe
Gansa, onde, pela primeira vez, apareceriam as nossas já tão conhecidas
histórias como Chapeuzinho vermelho, A Bela Adormecida, O Gato de Botas e
O Pequeno Polegar. Estas histórias tinham, inicialmente, o objetivo de entreter
a sociedade da época em rodas de salão e, só depois, passaram a também
fazer parte da literatura para a infância.
Alguns dos supracitados contos foram também reproduzidos na
coletânea de contos baseados na cultura alemã, e que foi publicada pelos
irmãos Grimm, em 1812, com o título Contos de Grimm, eternizando, assim,
todos os medos e crenças daquele povo. Outra curiosidade a respeito dos
contos compilados pelos Grimm é que não foram produzidos com o intuito de
ninar crianças, utilidade que lhes damos nos dias atuais. Eram narrativas
densas e, até certo ponto, perversas, se tomarmos em consideração, por
exemplo, o texto que originou a adaptação que temos atualmente do
Chapeuzinho vermelho, no qual avó e neta articulam os meios de afogar o
lobo, o que deu margem a inúmeras leituras, por conta das
[...] muitas interpretações de “Chapeuzinho Vermelho”
(antropológica, psicanalítica, mitológica, feminista, e por
aí afora), em parte porque a história tem várias versões:
no texto dos irmãos Grimm há coisas que não se
encontram no de Perrault, e vice-versa. 24
O mesmo acontece com os contos orientais:
Massudi, que viveu no século XI e foi um dos escritores
mais viajados do seu tempo, afirmou que as Mil e uma
Noites foram tiradas do livro persa Hezar Afsaneh (Mil
24
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. São Paulo: Companhia das Letras. 2004, p. 97.
33
Histórias). Esta última obra, segundo se afere de uma
referência qua a ela faz Firduzzi, no prefácio de
Schanameh (Livro dos Reis), é atribuída a um poeta
persa, Rasti, que teria vivido na segunda metade do
século X e, assim, o erudito Massudi parece estar com a
razão, pois as duas heroínas principais das Mil e uma
Noites, Scherazade e Dinazade, estão com seus nomes
persas nas páginas famosas de Hezar Afsaneh.25
As mil e uma noites, livro que reúne contos em encaixe, tornou-se
conhecido no Ocidente graças ao meticuloso trabalho do orientalista francês
Antoine Galland que, em sua tradução,
Aproveitou, apenas, uma quarta parte dos contos
originais. A sua escolha foi recair sobre as lendas mais
curiosas e de enredo mais palpitante. Teve o cuidado de
abolir todas as cenas que pudessem ferir os princípios
morais cristãos. Suprimiu do enredo dos contos todos os
versos, poemas e citações poéticas. Procurou fazer uma
tradução que fosse isenta de expressões chulas ou
pouco edificantes. 26
Na Itália, sobressai-se Giovanni Boccaccio (1313-1375), considerado um
dos maiores mestres nesse gênero. Sua obra-prima, Decameron, narra
histórias de dez jovens – sete moças e três rapazes –, que se refugiam "num
agradável local fora da cidade, onde passam o tempo se distraindo com
histórias que eles mesmos vão narrando, durante dez dias seguidos.” 27
Boccaccio codificou o novo gênero literário, o conto, organizando as
ações dentro de uma estrutura temporal bem definida, a cornice (moldura). A
novela introdutória do Decamerão, o racconto-cornice (conto-moldura),
descreve a peste havida em 1348, bem como o clima de catástrofe e luto dela
decorrente. Ou seja, o racconto-cornice, não é somente um expediente
destinado a introduzir as novelas, mas serve para explicar o espírito que move
dez jovens a passarem dez dias em total prazer, contando histórias entre si.
Através das cem novelas narradas, Boccaccio aborda assuntos diferentes com
25
GALLAND, Antoine. As mil e uma Noites. Trad. Alberto Diniz. 13ª edição – Rio de Janeiro: Ediouro,
2001, p. 18.
26
Idem, p. 20.
27
BOCCACCIO, Giovanni. Decamerão. Trad. Torrieri Guimarães. São Paulo: Círculo do Livro, 1987, p.
655.
34
registros linguísticos também diferentes. Compõe uma verdadeira galeria com
personagens de então.
As novelas do Decameron evidenciam o interesse e a curiosidade do
escritor florentino ao retratar os aspectos contrastantes, dramáticos e cômicos
do homem medieval. Boccaccio estabelece um modelo de narração breve
inserida em uma narrativa maior, conforme explica Giulio Ferroni: “[...] com uma
trama reduzida, uma dinâmica inventiva atraente e um aprofundamento
psicológico das personagens, porém, sempre em função da aventura” 28. Esse
modelo de novela tornou-se referência obrigatória, e não apenas para
escritores italianos.
Somente durante o século XVIII, se difundem narrações de caráter
alegórico e filosófico-moral, já não mais organizadas em um racconto-cornice.
E, por apresentarem um novo tipo de organização e, e ainda, serem reunidas
de forma aleatória, tais narrações passam a ser chamadas de conto, termo que
predominará até os dias atuais, apesar de, na Itália, alguns escritores
preferirem adotar o termo novela para designar as suas histórias breves, como,
por exemplo: Giovanni Verga (Novelle rusticane, 1883), Gabriele D'Annunzio
(Novelle della Pescara, 1902) e Luigi Pirandello (Novelle per un anno, 1922).
Convém assinalar que, enquanto a novela se baseia em um fato
concluído e apresenta uma história de caráter aventuroso, o conto pode narrar
um acontecimento inconcluso ou pobre de eventos, ou limitar-se ao registro de
acontecimentos da realidade, ou da biografia do autor, ou ainda, exprimir
reflexões e estados de espírito, conforme destaca Ferroni (2000, pp.176-780).
Essas características ganham mais força no conto do século XX, no qual o fato
em si perde importância em detrimento de uma análise psicológica, ou
também, o conto pode não apresentar uma conclusão.
Convém assinalar, ainda, que nas línguas portuguesa, italiana, francesa
e alemã, os termos conto e novela remetem ao mesmo conceito;
diferentemente, em espanhol ou em inglês, o termo novela designa romance.
28
Ibidem, p. 170.
35
Daí resultam as expressões novela curta ou short-story para designar uma
narrativa breve.
Acreditamos que todos os estudiosos do gênero conto estejam de
acordo que sua principal característica é a brevidade, o que não significa dizer
que, por ser breve, o conto desprezará as questões elementares para a boa
compreensão de uma história, quais sejam: O quê; Quem; Quando; Onde;
Como; Por quê. É bem verdade que alguns autores, dentre eles o nosso,
muitas vezes constróem contos que privam o leitor de algumas dessas
respostas, até porque a obra literária prescinde dessa rígida necessidade. No
livro In quel preciso momento, por exemplo, como veremos mais adiante,
Buzzati inseriu vários contos brevíssimos, que quisemos classificar como
fragmentários ou pensamentos interrompidos.
Para encerrar nossa reflexão sobre o conto e, particularmente, sobre o
conto breve, ou melhor, sobre o conto mínimo de Buzzati, colocamos em
destaque “Um caso interessante”29:
A moça disse:
- Gosto da vida, sabe?
- Como? Como disse?
- Disse que gosto da vida.
- Ah, sim? Explique isso, explique bem.
- Gosto, pronto, e me desagradaria muitíssimo deixá-la.
- Senhorita, explique-nos, é terrivelmente interessante...
Ei! Vocês aí, venham ouvir vocês também, a senhorita
aqui diz que gosta da vida!
Este brevíssimo conto nos remete, novamente, ao discurso sobre o
tempo, lembrando-nos de que através da literatura “tomamos consciência de
nossa humanidade” (BELLEMIN-NOëL, 1983, p. 12):
[...] a língua que se aprende nas relações quotidianas com os
pais e amigos só serve para agir: perguntar, responder, para
viver. Em suma, é só com alguma coisa como literatura [...] que
o homem se interroga sobre si mesmo, sobre seu destino
cósmico, sua história, seu funcionamento social e mental.
(BELLEMIN-NOëL, 1983, p. 12)
29
In: "Naquele exato momento", p. 53
36
É esse “interrogar sobre si mesmo”, de que fala Bellemin-Noël, com o
qual, desde as priscas eras da humanidade, nos deparamos sempre que
buscamos uma compreensão maior para aquilo que denominamos tempo.
1.4- Tempo, tempo, tempo.
No que tange à literatura, os questionamentos a respeito da efemeridade
do tempo e da busca incessante em contê-lo produziram grandes obras para a
humanidade como, por exemplo, O retrato de Dorian Gray, do escritor irlandês
Oscar Wilde, onde deparamos com Lorde Henry dizendo a Dorian que “o mais
valoroso dos seres humanos tem medo de si mesmo” 30, referindo-se
exatamente aos conceitos de pecado que guardamos na memória e à
fugacidade da juventude.
No romance em questão, todas as marcas de uma vida desregrada e
sagrada exclusivamente aos prazeres carnais eram transferidas para o retrato
de Dorian, enquanto ele continuava exibindo o viço e a beleza que só se tem
aos vinte anos.
Ao longo da narrativa, evidencia-se o estreito diálogo que existe entre
memória e tempo31. Podemos citar o momento em que a personagem guardou
o quadro no sótão, na tentativa de esconder do alcance da visão as marcas
causadas pelo tempo mal vivido.
A respeito dessa relação entre tempo e memória, Yates nos diz que:
[...] a memória pertence à mesma parte da alma que a
imaginação; é um conjunto de imagens mentais a partir
de impressões sensoriais, mas com um elemento
temporal adicionado, pois as imagens da memória não
provêm da percepção das coisas presentes, mas das
coisas passadas. [...] (YATES, 2010, p. 53-54)
30
WILDE, Oscar. O retrato de Dorian Gray. Rio de Janeiro: Edições de Ouro, 1964, p.27.
31
Sabemos que desse diálogo também tomam partido os conceitos de medo, morte e consciência que,
em capítulos posteriores, serão abordados de forma mais aprofundada.
37
Ao esconder a pintura num sótão, a personagem se recusara a acessar
a memória das coisas passadas, dos atos aviltantes que transformaram a sua
imagem em algo horrendo até mesmo para ele. Aristóteles, quando tratou da
memória e da reminiscência (lembrança), distinguiu uma da outra atribuindo à
segunda a função de recuperar o conhecimento adquirido ou mesmo a
sensação causada por ele. Então, podemos inferir que Dorian se furtava não
somente à memória de seus atos, mas, também, das sensações produzidas
por eles.
Aproveitando os questionamentos que o polêmico livro de Wilde nos
proporciona, trataremos um pouco da nossa “terceira ferida de amor-próprio”:
[...] Freud infligiu ao ser humano o que [...] ele chama de
sua “terceira ferida de amor-próprio”. Copérnico tinha-o
forçado a reconhecer que seu pequeno planeta não era
mais o centro do mundo; Darwin, que ele era apenas um
animal mais afortunado que os outros e não uma criatura
de origem maravilhosa; ele próprio demonstrou que “o eu
não é mais o senhor na sua própria casa” [...]. 32
Sabe-se que Freud partiu da literatura para elaborar seus conceitos
relativos ao inconsciente. Foi através dela que o pai da psicanálise percebeu
que a natureza humana sempre encontra meios de externar o que lhe tange a
alma, seja porque experiencia as situações ou porque as observa na vivência
alheia. Verificou que textos como os de Goethe, Shakespeare, Flaubert, Wilde
e tantos outros estavam repletos das angústias humanas, transbordavam as
inquietudes, os medos, as neuroses, dentre outros. Nota que, ainda que o
homem não perceba, o seu inconsciente sempre encontrará um meio de
demonstrar, em nível consciente, suas motivações.
Nenhuma análise deve ser estanque, limitada e castradora. Não pode
haver exclusão. Todas as possibilidades de abordagem surgem como potencial
resposta satisfatória para o questionamento inicial. Freud sabia disso e buscou
“ouvir as palavras exatas de um paciente, em saborear o discurso preciso do
escritor”33, e o resultado disso foi ele ter-se tornado um ícone da psicanálise.
32
BELLEMIN-NOËL, Jean. Psicanálise e literatura. São Paulo: Cultrix, 1983, p. 11.
33
Idem, p. 19.
38
Quando analisamos um texto literário, os mecanismos de pesquisa não
são diferentes. Jean Pouillon, em seu livro O tempo no romance, escreve a
esse respeito, quando afirma:
[...] O romance, portanto, é psicologia, e começar por
separá-los para em seguida estudar as possíveis
relações entre ambos é um absurdo. Seu objetivo é o
mesmo: compreender a realidade humana. [...]
(POUILLON, 1974, p. 32)
Podemos, então, concluir que a literatura é objeto de estudo da
psicanálise tanto quanto a psicanálise é objeto de estudo da literatura, uma vez
que “o psicólogo pretende nos transmitir a compreensão de nós mesmos” e “o
romancista a de outrem”, como escreve Pouillon (1974, p. 33).
Inicialmente, pode parecer um desvio de curso esta nossa abordagem a
respeito da psicanálise, mas, quando começarmos a tratar das divisões do
tempo dentro da literatura, nos depararemos com vários conceitos e um deles,
o que mais nos interessa, atende por tempo psicológico34, categoria à qual Reis
e Lopes atribuem a capacidade de filtrar as vivências subjetivas das
personagens, estando “diretamente relacionado com o devir existencial da
personagem”35.
A psicanálise se vale de vários métodos para avaliar as causas do
comportamento humano num sem-número de situações. Um desses meios é o
sonho, que serve como uma janela aberta para uma infinidade de símbolos os
quais representarão o estado psíquico da criatura em dado momento. Como
exemplo, recorremos, mais uma vez, a Santo Agostinho quando, no item 30 do
capítulo X das Confissões, confessa seus sonhos recorrentes e de teor
pecaminoso:
Mas na minha memória, de que longamente falei, vivem
ainda as imagens de obscenidades que o hábito
inveterado lá fixou. Quando, acordado, me vêm à mente,
não têm força. Porém, durante o sono, não só me
arrastam ao deleite, mas até à aparência do
consentimento e da ação. A ilusão da imagem possui
34
O grifo é nosso.
35
REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de narratologia. Coimbra: Almedina, 2002, p. 407.
39
tanto poder na minha alma e na minha carne, que,
enquanto durmo, falsos fantasmas me persuadem a
ações a que, acordado, nem sequer as realidades me
podem persuadir. (AGOSTINHO, 2004, p. 287)
Não podemos afirmar que Freud tenha bebido na fonte agostiniana,
mas, sim, fazer uma ideia do tipo de análise que ele talvez fizesse do relato do
Santo. De nossa parte, observamos, nesse pequeno trecho, muitos elementos
já citados por nós: a interferência da memória no inconsciente; o conhecimento
empírico de que nos fala Kant; o imagético que nutre a memória, e a nossa
incapacidade de controlar a fúria do inconsciente.
Mas os sonhos podem produzir muito mais que “confissões” hereges.
Vejamos, por exemplo, o relato de Vítor Manuel sobre a produção do poema
Kubla Khan, de Coleridge:
No verão de 1798, o poeta, adoentado, retira-se para
uma quinta solitária. Aqui, certa vez, enquanto lia um
velho livro de aventuras, o poeta tomou um calmante a
fim de debelar uma pequena indisposição. O sono
sobreveio e, durante um sonho, Coleridge assistiu ao
desenrolar de imagens relacionadas com o relato do
velho livro e acompanhadas de versos. Ao acordar, o
poeta transcreveu o poema que assim lhe fora revelado;
uma visita, porém, que interrompeu por algum tempo o
poeta, determinou uma pausa na transcrição e Coleridge
jamais conseguiu completar o poema. (AGUIAR E
SILVA, 2006, p. 556)
Servimo-nos de tais citações com o intuito de ratificar que a psicanálise
e a literatura caminham juntas em muitos aspectos. O sonho de Santo
Agostinho produziu a confissão de suas angústias inconscientes, ao passo que
o sonho de Coleridge nos prorpocionou um clássico da poesia. Em ambos os
casos temos como produto final um texto que, se por um lado é fruto da
manifestação do inconsciente, por outro é produção literária.
Aproximando-nos do nosso objetivo principal – a leitura de contos de
Buzzati –, trazemos ao nosso texto algumas correntes às quais nosso autor se
acercou, como, por exemplo, o Surrealismo, o Fantástico e o Realismo Mágico
que, acreditamos, seja a que mais se adeque à nossa análise.
O Surrealismo surgiu em Paris, no início do século XX, e tem seus
alicerces edificados sobre as teorias de Sigmund Freud, que trazia à sociedade
40
da época questionamentos acerca da vulnerabilidade humana frente às
questões da mente e sua incapacidade em dominar e compreender a realidade
e as emoções suscitadas por ela. O ideário surrealista pretendia mostrar a
ausência
da
racionalidade
humana
deixando
livre
a
manifestação,
aparentemente desconexa e sem sentido, do inconsciente na produção
artística uma vez que
Ainda vivemos sob o império da lógica, [...] Ela circula
num gradeado de onde é cada vez mais difícil fazê-la
sair. Ela se apóia, também ela, na utilidade imediata, e é
guardada pelo bom senso. A pretexto de civilização e de
progresso conseguiu-se banir do espírito tudo que se
pode tachar, com ou sem razão, de superstição, de
quimera; a proscrever todo modo de busca da verdade,
não conforme ao uso comum. Ao que parece, foi um puro
acaso que recentemente trouxe à luz uma parte do
mundo intelectual, a meu ver, a mais importante, e da
qual se afetava não querer saber. Agradeça-se a isso às
descobertas de Freud. Com a fé nestas descobertas
desenha-se afinal uma corrente de opinião, graças à qual
o explorador humano poderá levar mais longe suas
investigações, pois que autorizado a não ter só em conta
as realidades sumárias. (BRETON, 1924, p.4)
Assim lemos nas primeiras páginas do Manifesto do Surrealismo, de
outubro de 1924, lançado por André Breton, documento que pretendia resgatar
as emoções e os impulsos humanos na produção da obra de arte. Tal
movimento contou com o engajamento de vários e importantes artistas como
Salvador Dali, René Magritte e Max Ernst, na pintura; Buñuel, no cinema, e nas
letras o próprio Breton.
Muitos são os estudiosos que inserem a produção poética de Dino
Buzzati na vertente surrealista por sugerir, em algumas de suas obras, uma
sucessão de fatos aparentemente desvinculados da realidade. Ocorre que esse
não passa de um recurso utilizado pelo autor para, exatamente, discorrer sobre
a ‘realidade’, uma vez que em nenhum de seus escritos podemos encontrar a
característica básica de tal movimento como tão bem o definiu Breton (1924,
p.12):
SURREALISMO, s.m. Automatismo psíquico puro pelo
qual se propõe exprimir, seja verbalmente, seja por
escrito, seja de qualquer outra maneira, o funcionamento
real do pensamento. Ditado do pensamento, na ausência
41
de todo controle exercido pela razão, fora de toda
preocupação estética ou moral.
Outra associação, frequentemente estabelecida pelos estudiosos de
Buzzati, é a que lê sua obra pelo viés do Fantástico, vertente literária que se
apoia na dúvida e na incerteza deixadas pelo autor em sua narrativa, como
bem o escreve Todorov:
Chegamos assim ao coração do fantástico. Em um
mundo que é o nosso, que conhecemos, sem diabos,
sílfides, nem vampiros se produz um acontecimento
impossível de explicar pelas leis desse mesmo mundo
familiar. Que percebe o acontecimento deve optar por
uma das duas soluções possíveis: ou se trata de uma
ilusão dos sentidos, de um produto de imaginação, e as
leis do mundo seguem sendo o que são, ou o
acontecimento se produziu realmente, é parte integrante
da realidade, e então esta realidade está regida por leis
que desconhecemos. Ou o diabo é uma ilusão, um ser
imaginário, ou existe realmente, como outros seres, com
a diferença de que rara vez o encontra.
O fantástico ocupa o tempo desta incerteza. Assim que
se escolhe uma das duas respostas, deixa-se o terreno
do fantástico para entrar em um gênero vizinho: o
estranho ou o maravilhoso. O fantástico é a vacilação
experimentada por um ser que não conhece mais que as
leis naturais, frente a um acontecimento aparentemente
sobrenatural. (TODOROV, 1981, p.15-16)
Essa “vacilação” e o “tempo desta incerteza” não se mantêm nos contos
de Buzzati. As personagens buzzatianas não tem dúvida quanto às suas
experiências, ainda que pareçam, em uma leitura superficial, acontecimentos
fantásticos.
1.5- Um elo em várias correntes
Autor de uma obra singular, Dino Buzzati aproximou-se de várias dessas
correntes literárias e artísticas. Pode-se, então, perguntar em quê isso se
aproxima do tempo, que é nosso tema principal, e a resposta será "em tudo".
Isso porque nosso autor é rotulado por muitos estudiosos como sendo, por
exemplo, um autor com obras filiadas ao Fantástico; outros o categorizam
como pertencente ao Surrealismo. A dificuldade encontrada em encaixar a obra
42
de Buzzati em determinado estilo e de afiliá-la a escolas, ao nosso entender, se
deve ao fato de o autor reproduzir em sua obra, em especial em seus contos,
gênero que escolhemos abordar neste trabalho, o implícito da vida, sugerindo
saídas inesperadas/inesperadas ou mágicas o que, de certa maneira, gera uma
possível ambiguidade na leitura por causa das inferências que se podem fazer.
De uma forma ou de outra, o tempo articulado pelo autor em seus contos tem,
também, muito de psicológico, se pensarmos na afirmativa de Bellemin-Noël
quando explicita que “literatura e psicanálise “lêem” o homem na sua vivência
quotidiana tanto quanto no seu destino histórico”36. E, a bem da verdade,
também acreditamos “que, em última instância, toda literatura é fantástica” 37,
segundo o ponto de vista dado por Todorov, quando afirma:
[...] El que percebe el acontecimento debe optar por una
de las dos soluciones posibles: o bien se trata de una
ilusión de los sentidos, de un produto de imaginación, y
las leyes del mundo siguen siendo lo que son, o bien el
acontecimento se produjo realmente, es parte integrante
de la realidade, y entonces esta realidade está regida por
leyes que desconocemos. O bien el diablo es una ilusión,
un ser imaginário, o bien existe realmente, como los
demás seres, con la diferencia que rara vez se lo
encuentra. (TODOROV, 1981, p. 15)38
Essa afirmativa nos remete ao conto de Buzzati Appuntamento con
Einstein, no qual o protagonista teve um encontro com certo Iblìs,
supostamente mensageiro do próprio Diabo, e, ao final da narrativa, o leitor
pode cogitar a possibilidade de a personagem Einstein ter ou não, de fato,
encontrado tal ser.
Lo fantástico ocupa el tempo de esta incertidumbre. En
cuanto se elige una de las dos respuestas, se deja el
terreno de lo fantástico para entrar en un género vecino:
lo extraño o lo maravilloso. Lo fantástico es la vacilación
experimentada por un ser que no conoce más que las
36
BELLEMIN-NOËL, Jean. Psicanálise e literatura. São Paulo: Cultrix, 1983.
37
COSTA, Flávio Moreira da. Os melhores contos fantásticos. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006.
38
[...] O que percebe o acontecimento deve optar por uma das duas soluções possíveis: ou bem se trata
de uma ilusão dos sentidos, de um produto da imaginação, e as leis do mundo seguem sendo o que são,
ou bem o acontecimento se produziu realmente, é parte integrante da realidade e, então, esta realidade
está regida por leis que desconhecemos. Ou bem o diabo é uma ilusão, um ser imaginário, ou bem
existe realmente, como os demais seres, com a diferença que raras vezes o encontramos. (TN)
43
leyes
naturales,
frente
aparentemente sobrenatural.
a
un
acontecimento
El concepto de fantástico se define pues con relación a
los de real e imaginário, y estos últimos merecem algo
más que uma simple mención. [...]
(TODOROV, 1981, p. 15)39
O conto narra a história do cientista Alberto Einstein, que, em um fim de
tarde de outono, fazia um despretensioso passeio pelas ruas de Princeton,
depois do trabalho. Enquanto admirava a paisagem:
[...] D’un subito Einstein vide intorno a sé lo spazio
cosiddetto curvo, e lo poteva rimirare per diritto e per
rovescio, come voi questo volume.40
(BUZZATI, 2007, p. 249)
Primeiramente, ele ficou meio perturbado com a descoberta. Sentia um
misto de felicidade e incredulidade, que só o fato em si acalmava. Num
segundo momento, com as emoções mais controladas, sentiu-se envaidecido:
[...] E benché egli fosse un uomo saggio, che non si
preoccupava della gloria, tuttavia in quei momenti si
considerò fuori del gregge come un miserabile tra i
miserabili che si accorge di avere le tasche piene d’oro. Il
sentimento dell’orgoglio si impadronì quindi di lui. 41
(BUZZATI, 2007, p. 250)
Na sequência, com a mesma rapidez com que essa incontestável
verdade saltou aos seus olhos, ela desapareceu, deixando apenas a certeza de
sua existência. Nesse ínterim, Alberto se viu perto de um posto de gasolina,
que jamais vira nas redondezas, e percebeu que um homem negro aguardava
os clientes chegarem.
39
O fantástico ocupa o tempo da incerteza. Enquanto se escolhe uma das duas respostas, se deixa o
terreno do fantástico para entrar em um gênero próximo: o estranho e o maravilhoso. O fantástico é a
vacilação experimentada por um ser que não conhecemos mais que as leis naturais, frente a um
acontecimento sobrenatural.
O conceito de fantástico se define pois com relação ao de real e imaginário, e estes últimos merecem
algo mais que uma simples menção. (TN)
40
[...] De repente, Einstein viu em volta de si o espaço dito curvo, e podia admirá-lo frente e verso, como
vocês podem fazer com este volume. (TN)
41
[...] E ainda que ele fosse um homem sábio, que não se preocupava com a glória, naquele momento se
considerou fora do rebanho como um miserável entre os miseráveis que se dá conta de que tem os
bolsos cheios de ouro. Então o sentimento de orgulho se apoderou dele. (TN)
44
[...] Così in piedi, risultava altissimo, più bello che brutto,
di fattezze africane, formidabile; e nella vastità azzurra del
vespero il suo sorriso bianco risplendeva.42 (BUZZATI,
2007, p. 250)
Podemos observar que a marcação do tempo é feita de maneirra sutil.
Primeiramente, o narrador anuncia que a história começa num entardecer de
outono; é como se o tempo começasse a correr de fato a partir dessa “vastità
azzurra del vespero”43. E esse movimento temporal continua:
Il negro disse: <<Ho bisogno di voi per una cosa segreta.
E non la dirò che nell’orecchio>>. I suoi denti
biancheggiavano più che mai intanto si era fatto buio. Poi
si chinò all’orecchio dell’altro: <<Sono il diavolo Iblìs>>
mormorò <<sono l’Angelo della Morte e devo prendere la
tua anima>>.44 (BUZZATI, 2007, p. 250)
Fez-se noite e os dentes do Anjo da Morte brilhavam mais que nunca.
Mário Quintana já escreveu Da morte:
Um dia... pronto! Me acabo.
Pois seja o que tem de ser.
Morrer, que me importa? O diabo,
É deixar de viver!45
Assim, também Alberto Einstein não queria "deixar de viver",
principalmente porque havia acabado de fazer a descoberta das descobertas.
Resolveu, então, barganhar com Iblìs um mês a mais de vida, com o objetivo
de concluir sua recente e inacabada teoria sobre a curvatura do espaço/tempo.
O anjo da morte aceitou a proposta com um sorriso malicioso. Mas o tempo
voa.
42
[...] Assim em pé parecia altíssimo, mais bonito que feio, com feições africanas, formidável. E, na
vastidão azul do entardecer o seu sorriso branco resplandecia. (TN)
43
Vastidão azul do entardecer. (TN)
44
O negro disse: “Preciso de você para uma coisa secreta. E só posso contar no seu ouvido”. Os seus
dentes brancos iluminavam mais que nunca, uma vez que já era noite. Depois se inclinou em direção à
orelha do outro: <<Sono il diavolo Iblìs>>, murmurou, <<sou o Anjo da Morte e devo levar a tua alma>>.
(TN)
45
http://quintanaeterno.blogspot.com.br/2009/02/mario-quintana-faleceu-em-porto-alegre.html
(acesso em 31/03/2015)
45
Un mese è lungo se si aspetta la persona amata, è molto
breve se chi deve giungere è il messaggero della morte;
più corto di un respiro. Passò l’intero mese e di sera,
riuscito a restar solo, Einstein si portò sul luogo
convenuto. C’era la colonnetta di benzina e c’era la panca
con il negro, solo che adesso sopra la tuta aveva un
vecchio cappotto militare: faceva freddo, infatti.46
(BUZZATI, 2007, p. 252)
Esse trecho do conto merece duas considerações. A primeira vem do
filósofo e escritor brasileiro Luiz Felipe Pondé, quando discursa sobre o “Tempo
sagrado, Tempo profano”. Afirma Pondé que uma das diferenças que existem
entre nós e Deus é que, para Ele, o tempo não passa no sentido de consumi-lo;
para nós, seres humanos, o passar do tempo faz que nos percamos no que
chamamos de velhice. É o deixar de ser.
[...] Toda vez que o sagrado se manifesta, qualquer que
seja o código religioso, ele altera a relação do ser
humano com o tempo e com o espaço. [...] Quando você
está num momento de tempo que é considerado sagrado,
aquele momento, ele é qualitativamente diferente de
todos os momentos. [...] O que significa um momento de
tempo sagrado: significa um momento que está fora do
seu dia a dia [...] quando você está nesse momento, ele
ressignifica todos os outros momentos.47
O “diavolo Iblìs” encerra a representação do sagrado, no sentido em que
fala o supracitado filósofo, uma vez que para ele o tempo não passa. Mas, no
conto, ele detém o poder de parar o tempo do homem Alberto Einstein.
A segunda consideração que fazemos refere-se à sutil indicação de data
que acreditamos estar inserida nesse parágrafo. Quando lemos “aveva un
vecchio cappotto militare”48 e, sabendo que o “Angelo della Morte” precisava
das conclusões teóricas de Einstein para algo que deduzimos ser a construção
da bomba atômica, podemos inferir que a data provável desse encontro
inusitado esteja em algum momento entre 1905 e 1919, período no qual
46
Um mês é longo, se se espera a pessoa amada; é muito breve, se quem deve chegar é o mensageiro
da morte; é mais curto que um suspiro. Passado um mês, à tarde, quando conseguiu ficar só, Einstein foi
até o local combinado. Lá estava a coluna do posto de gasolina e o banco com o negro, só que agora ele
usava um velho casaco militar sobre o macacão: de fato fazia frio. (TN)
47
https://www.youtube.com/watch?v=9FIacd4lKPg (acesso em 15/12/2014)
48
Tinha um velho casaco militar. (TN)
46
ocorrem as descobertas e confirmações das teorias de Albert Einstein e que
antecede a Segunda Grande Guerra Mundial. Dessa forma, o “capote militar”
seria a sinalização do momento/necessidade bélica da descoberta.
Talvez seja interessante que tomemos em consideração a opinião e o
posicionamento do próprio Buzzati a respeito da guerra:
Quando dichiarano: “La guerra é la cosa più orrenda di
questa terra”, rispondo: non é vero. Ci sono delle cose
peggio della guerra: la malattia é peggio della guerra; la
prigionia é peggio della guerra… La guerra é una cosa
stupenda. Tant’é vero che tutti gli uomini che io conosco,
arrivati ad una certa etа, le cose che ricordano con
maggior trasporto nostalgia e amore, proprio, sono state
le loro esperienze di guerra. Ci sarà qualche motivo…
Vuol dire che la guerra consente all’uomo di manifestare
se stesso, e di essere giovane… Non c’é nulla che
consenta all’uomo di essere giovane come la guerra.
Molto più dell’amore49
Retornando ao conto, observamos que o cientista pedira mais um mês
de vida ao diabo Iblìs, porque sua pesquisa era muito complexa e ainda lhe
faltavam alguns dados importantes para a conclusão, ao que o diabo atendeu.
Trinta dias depois, um novo encontro, no mesmo local, e o protagonista já
estava pronto para cumprir sua parte no acordo, mas: “Va, va, vecchia
canaglia... Torna a casa e corri, se non vuoi prenderti una congestione
polmonare... Di te, per ora, non me ne importa niente.50 (BUZZATI, 2007, p.
253)
Assim termina o conto, deixando a cargo da imaginação do leitor e do
próprio protagonista os motivos que fizeram o diabo querer o fim da pesquisa
de Einstein. E, por isto, evocamos Bontempelli, que afirma: o “unico strumento
49
Quando declaram: “A guerra é a coisa mais horrenda da terra”, respondo: não é verdade. Existem
coisas piores que a guerra: a doença é pior que a guerra; a prisão é pior que a guerra... A guerra é algo
estupendo. Tanto é verdade que todos os homens que eu conheço, chegando a certa idade, se
recordam com maior nostalgia e amor, exatamente, das suas experiências de guerra. Tem algum motivo
pra isso... Quer dizer que a guerra permite ao homem manifestar a si mesmo, e de ser jovem... Não
existe nada que permita mais ao homem ser jovem do que a guerra. Muito mais que o amor. (TN)
(http://rinabrundu.com/2012/01/30/a-quarantanni-dalla-morte-tutto-sullopera-del-giornalista-dinobuzzati-traverso-and-more-o-quasi/ - acesso em 10/04/2013)
50
Vai, vai, velho patife... Volta pra casa e corre, se não quiser pegar uma pneumonia... De você, por
hora, não quero nada. (TN)
47
del nostro lavoro sarà l’immaginazione”51 (BONTEMPELLI, 2006, p.16). Conta,
também, a nossa forma de observação.
Jean Pouillon, em seu livro O tempo no romance, nos propõe três formas
de se observar um texto: a “visão “com”, onde escolhemos um único
personagem e o “focalizamos”52 estabelecendo com ele uma compreensão
empática, por assim dizer; a “visão “por detrás”, onde estabelecemos uma
espécie de focalização analítica, buscando “considerar de maneira objetiva e
direta a sua vida psíquica”53; e, por fim, o que ele chama de “visão de “fora”,
onde focalizamos o que o significado psicológico de tudo que cerca a
personagem pode representar para ela, e em que pode afetar as suas ações.
São algumas das várias possibilidades de análise que um texto nos
oferece, mas, na verdade, toda e qualquer leitura que façamos dele terá
sempre como base o nosso conhecimento enciclopédico, as nossas
experiências, os nossos vários modos de ver ou focalizar o mundo que nos
cerca, exatamente como fazemos na vida real, quando estamos na condição
de leitores dos acontecimentos que nos rodeiam. Se nos deparamos com um
texto, leremos as atitudes das personagens e as julgaremos segundo as
nossas convicções filosóficas, religiosas, sociais, por exemplo. Imprimiremos,
queiramos ou não, os nossos (pre)conceitos às personagens tal como fazemos
nas nossas relações pessoais. A diferença, muitas vezes, é que podemos
verbalizar, tornar públicas as nossas impressões sobre tal ou qual personagem,
ao passo que, com aqueles que nos cercam, as nossas percepções nem
sempre são publicadas, ou publicáveis.
Vale lembrar que essa é uma atitude inerente ao ser humano e,
portanto, não configura demérito para ninguém. Somos todos críticos e
questionadores em potencial. Isto se dá porque seremos sempre o primeiro
parâmetro que estabeleceremos para toda e qualquer comparação que
51
O único instrumento do nosso trabalho será a imaginação. (TN)
52
Optamos pelo termo focalização, proposto por Gerard Genette, por considerá-lo mais abrangente que
visão, termo proposto por Jean Pouillon.
53
POUILLON, Jean. O tempo no romance. São Paulo: Cultrix, 1974, p. 62.
48
façamos. A leitura/interpretação primeira que fazemos ocorre em nós mesmos,
conforme afirma Bellemin-Noël:
[...] O que é que eu leio quando leio? O que um escritor lê
quando escreve? A resposta é a mesma: lemos primeiro
a nós mesmos, seja qual for a obra literária, quer a
produzamos, quer a consumamos. (BELLEMIN-NOËL,
1983, p. 34. Os grifos são do autor.)
Como já foi dito, a narrativa nasce para explicar o mito que, por sua vez,
só se explica através da narrativa. Os mitos surgiram para aplacar o medo e as
angústias do homem desde muito antes de ele, o homem, se dar conta de si
mesmo.
Quando o raio, durante um temporal, caiu numa árvore provocando um
incêndio, o homem primitivo rendeu culto ao deus fogo por vários motivos. Por
não entender o fenômeno e não se saber capaz de reproduzi-lo, ele temeu e
automaticamente leu o acontecimento como sendo algo de superior e
poderoso, maior que ele. Num segundo momento, percebeu a recorrência do
evento em dadas circunstâncias de observação e, pouco a pouco, foi-se dando
conta dos benefícios e prejuízos que o fogo poderia proporcionar, mas, ainda
assim, continuava sem entender como um raio de luz vindo do céu poderia
produzi-lo. Assim, pode-se dizer, nasce um Deus.
Assim se cria um mito para justificar o que não entendemos, o que não
dominamos e, principalmente, o que não conseguimos controlar. E, dessa
forma, a narrativa do mito nasce da necessidade de perpetuarmos nossas
memórias e de codificar as nossas raízes. A narrativa é vida e,
[...] Além disso, sob essas formas quase infinitas, a
narrativa está presente em todos os tempos, em todos os
lugares, em todas as sociedades; a narrativa começa
com a própria história da humanidade; não há em parte
alguma povo algum sem narrativa; todas as classes,
todos os grupos humanos têm suas narrativas, e
frequentemente estas narrativas são apreciadas em
comum por homens de culturas diferentes, e mesmo
opostas; a narrativa ridiculariza a boa e a má literatura:
49
internacional, trans-histórica, trans-cultural; a narrativa
está aí, como a vida. [...]54
A despeito da própria vida, a narrativa também está sujeita às
intempéries do tempo, como passaremos a examinar no próximo capítulo,
tendo alguns contos de Dino Buzzati como corpus.
54
BARTHES, Roland [et al.]. Análise estrutural da narrativa. Rio de Janeiro: Vozes, 2008, p. 19.
50
CAPÍTULO II
TEMPO, MEMÓRIA, INESPERADO
Nenhuma obra de arte é realmente “fechada”, pois cada
uma delas congloba, em sua definitude exterior, uma
infinidade de “leituras” possíveis.
Umberto Eco55
Diversas são as possibilidades de se analisar o tempo dentro da
narrativa e muitos foram os teóricos, ao longo da história, a se aventurar em
tão laboriosa tarefa. Também, muitas são as formas de se observar o tempo na
composição de uma determinada obra e, por isto, para ilustrar o enfoque que
decidimos empreender nesta tese, optamos por fazer uma pequena digressão,
partindo da Sétima Arte, abordando o filme de suspense intitulado Ponto de
vista56, um longa-metragem bem ao estilo americano, que assim pode ser
resumido: Durante uma histórica conferência sobre o combate ao terrorismo
mundial, realizada na Espanha, o presidente dos Estados Unidos da América é
atingido por uma bala assassina. Oito cidadãos conseguem ver o ataque, mas
se indaga sobre o que cada um deles realmente teria visto. À medida que os
momentos anteriores ao tiro fatal são revistos, através dos olhos de cada
testemunha, a identidade do assassino ganha sua forma real. Quando o
espectador achar que descobriu a resposta, de onde partira o tiro, a chocante
verdade será revelada.
Nos primeiros oito minutos do filme, o espectador é apresentado à visão
panorâmica da ação, através da ótica de alguém que assiste à transmissão
televisiva, ou seja, descobre, através da equipe jornalística que se encontra no
local que, durante uma conferência em Salamanca, Espanha, o presidente dos
Estados Unidos da América faria um pronunciamento em praça pública e, antes
que começasse a proferir o seu discurso, é gravemente ferido por dois tiros.
Alguns minutos após os disparos, quando o presidente já se encontra na
55
ECO, Umberto. Obra aberta. São Paulo: Perspectiva, 1976, p. 67.
56
Título original: Vantage point. PONTO de vista. Direção: Pete Travis. Hollywood: Columbia Pictures,
2008 [produção]. 1 filme (90 min.), DVD.
51
ambulância a caminho do hospital, uma bomba é detonada no palanque onde
ele havia sido atingido minutos antes, ferindo e matando dezenas de pessoas,
inclusive a repórter que fazia a cobertura do evento.
Nesse momento, o narrador anuncia um retrocesso de vinte e três
minutos na narrativa e o filme recomeça, a partir da ótica da personagem de
Dennis Quaid, o guarda-costas. E o espectador revê toda a cena, mas, dessa
vez, pela perspectiva de quem está dentro da ação.
E transcorrem mais quatorze minutos de filme até que, outra vez, somos
convidados a rever a cena, agora pelo olhar da personagem Enrique, um
policial local. Passam-se mais oito minutos.
Nesse momento, contados cerca de trinta minutos de exibição,
retornamos ao início através do olhar da personagem Forest Whitaker, um
solitário e curioso turista que, no afã de registrar cada segundo de sua viagem
e devidamente equipado com sua filmadora, grava tudo ao seu redor.
O olhar dessa personagem nos conduz por cerca de doze minutos e
contempla a totalidade da ação, ou seja, início, meio e fim da história. Mas o
espectador ainda não sabe disso.
O narrador nos convidará a mais dois retornos, um sob o olhar do
próprio presidente norte-americano e outro, o último, que nos conduzirá à
conclusão da trama, sob o atento olhar dos prováveis terroristas.
A construção da narrativa em flashback não é uma novidade no cinema
– em C’eravamo tanto amati (1974), filme dirigido pelo cineasta italiano Ettore
Scola, por exemplo, as personagens Gianni, Antonio, Nicola e Luciana têm
suas histórias de juventude narradas a partir de um encontro fortuito, após três
décadas de separação – e nem na literatura, vide Os Lusíadas (c. 1556), de
Luís de Camões, em que temos um conhecimento mais amplo das
personagens por conta desse recurso. Mas, o que nos importa, no filme, são as
possibilidades de leituras que ele nos oferece a partir da “focalização” que
escolhamos para efetuar nossa análise.
52
A diegése do filme é de cerca de noventa minutos e a ação em si ocorre
num espaço de tempo de, aproximadamente, quarenta minutos. É evidente que
os recursos fílmicos diferem muito dos literários, mas nos utilizamos deles, e,
em particular, desse filme, para definir que o nosso olhar em relação à
construção do tempo nos contos de Dino Buzzati será o do guarda-costas
atento que, além de registrar o que o cerca e que é comum a todos, enxerga o
que o olhar comum não consegue perceber.
Assim como no filme, onde uma mesma situação pode ser percebida
sob várias ângulos diferentes, a construção da categoria tempo dentro de uma
obra literária também pode ser observada sob vários prismas.
Carlos Reis e Ana Cristina Lopes, no Dicionário de narratologia57,
escrevem que a “condição primordialmente temporal de toda narrativa”58 levou
vários estudiosos a se debruçarem sobre o tema tomando por base,
principalmente, autores ficcionista como Joyce e Proust, por exemplo, “que
precisamente fizeram do tempo uma categoria central de seus relatos”59. Nesse
grupo de autores incluímos Dino Buzzati.
A partir dos estudos elaborados por pesquisadores como Pouillon,
Ricoeur, Genette e outros, Reis dividiu o tempo narrativo em quatro grupos, a
saber60: o Tempo da história que se refere a ordem cronológica dos “eventos
susceptíveis de serem datados com maior ou menor rigor”; o Tempo do
discurso, que se refere a ordem e/ou velocidade que o narrador confere ao
universo diegético; o Tempo diegético ou histórico que é aquele no qual se
situam os acontecimentos em determinado momento histórico, ou seja,
contextualiza historicamente os eventos narrados; e, finalmente, o Tempo
psicológico em que “entende-se como tal o tempo filtrado pelas vivências
subjetivas
da
personagem,
erigidas
em
factor
de
transformação
57
REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de narratologia. Coimbra: Almedina, 2002.
58
Idem, p. 405.
59
Ibidem, p. 405-406.
60
Ibidem, p. 406 e seguintes.
53
e
redimensionamento (por alargamento, por redução ou por dissolução) da
rigidez do tempo da história.”
No supracitado filme, o tempo da história é de, aproximadamente,
quarenta minutos, contra os noventa minutos do tempo do discurso, como
dissemos. No conto “Cacciatori di vecchi”, de Dino Buzzati, o tempo da história
equivale a uma noite, enquanto que o tempo do discurso consome sete
páginas.
O tempo do discurso no filme é construído em flashbacks, nos quais o
narrador nos apresenta o tempo dos olhares das personagens. No conto de
Buzzati, o tempo do discurso e o da história seguem paralelamente.
Em Ponto de vista, o tempo diegético/histórico se passa algum tempo
após os atentados de 11 de Setembro de 2001, ao passo que o conto
Cacciatori di vecchi não nos oferece uma data precisa, mas a frase “[...] I
giornali, la radio, la televisione, i film gli avevano dato corda”61 nos remete a
algum período após a década de 1960.
No que tange ao tempo psicológico, o filme tem pouco a acrescentar; em
contrapartida, no conto esse tempo é determinante, uma forte presença.
Benedito Nunes62 apresenta uma lista ampliada dos conceitos de tempo:
tempo físico, caracterizado pela irreversibilidade do tempo e baseado na
relação de causa e efeito; tempo psicológico, que varia de indivíduo para
indivíduo e sua percepção se dá ora em função do passado ora em função do
futuro; tempo cronológico, caracterizado pelo tempo dos calendários – os ritos
litúrgicos, por exemplo; e nesse aspecto se liga ao tempo físico; o tempo
histórico, que demarca os eventos históricos – a revolução industrial, por
exemplo e o tempo linguístico, que depende do ponto de vista da narrativa, o
que Genette chama de “focalização”, e detalha:
Alinhamos cinco conceitos diferentes – tempo físico,
tempo psicológico, tempo cronológico, tempo histórico e
61
Os jornais, o rádio, a televisão, os filmes lhes deram trela. (TN)
62
NUNES, Benedito. O tempo na narrativa. São Paulo: Editora Ática, 1988.
54
tempo linguístico – que diversificam uma mesma
categoria, combinada à quantidade (tempo físico ou
cósmico), à qualidade (tempo psicológico) ou a ambas
(tempo cronológico), esse último aproximando-se do
primeiro pela objetividade e opondo-se à subjetividade do
segundo, cuja escala humana difere da do tempo
histórico e da do tempo linguístico, ambos de teor cultural
(NUNES, 1988, p. 23)
Todos esses “tempos” estão relacionados e constróem, juntos, a
narrativa literária, mas acreditamos também que um deles pode dar um salto
semântico e significar algo mais que uma categoria narrativa: o tempo
psicológico.
Por conta de todas essas possibilidades de leitura do tempo dentro da
narrativa e, principalmente, por adotarmos o posicionamento de lê-lo como
sendo também um catalisador em potencial do sentimento de solidão das
personagens, dedicaremos o próximo capítulo ao nosso corpus, no qual
propomos a leitura de contos de Dino Buzzati selecionados, especialmente,
dos livros Sessanta racconti, Le notte difficili e In quel preciso momento.
Antes, porém de iniciarmos a leitura proposta, convém trazer ao nosso
discurso a questão da personagem, uma categoria fundamental da narrativa.
É entorno da personagem que toda a trama se desenrola no espaço por
ela ocupado. É também através dela e de suas experiências e impressões que
o tempo se estabelece como a terceira face da pirâmide narrativa:
Personagem, Espaço e Tempo.
As personagens reproduzem tudo o que define o ser humano de forma
tão plena, que, muitas vezes, chegamos a crê-las pessoas de fato. Daí, muitas
vezes, o querer colocá-las em um divã e analisar seus medos, anseios e
angústias, como se fossem – elas e seus problemas – reais.
No Dicionário de Narratologia encontramos a definição de personagem
como sendo “o eixo entorno do qual gira a acção e em função do qual se
organiza a economia da narrativa” (REIS; LOPES, 2002, p. 314).
Nos contos de Dino Buzzati, esse eixo é diretamente influenciado pela
categoria tempo, uma vez que ele surge como o mecanismo que desperta o
55
medo, que o trás à tona, tirando-o da parte submersa do iceberg de nossa
consciência. E, por isso, muitas vezes, o tempo sobressai-se na narrativa,
sobrepujando as demais categorias do discurso para fazer surgir o medo (da
morte) que fingimos desconhecer ou preferimos não (re)conhecer. Em outros
momentos, o mesmo tempo nos assola de tal maneira que não conseguimos
dar continuidade aos nossos pensamentos ou mesmo às ações. Essa
peculiaridade também pode ser observada nos contos buzzatianos, como a
seguir demonstraremos, começando por In quel preciso momento (Naquele
exato momento).
2.1- Naquele exato momento: contos mínimos
In quel preciso momento é o livro que consideramos ilustrar a afirmação
contida no parágrafo anterior. Nesse livro, Dino Buzzati reúne uma série de
contos mínimos, que findam em seu ápice, no momento em que
deveriamcomeçar o declínio rumo ao desfecho. A construção das tramas causa
expectativa com relação à conclusão do conto que, na maioria das vezes, o
autor não oferece, dando-nos a impressão de uma série de “pensamentos
interrompidos”.
Diferente estrutura encontramos nas coletâneas Sessanta racconti e Le
notti difficili, por exemplo, onde todos os contos apresentam um início bem
marcado com a apresentação das personagens e do espaço ocupado por elas;
um meio, em que conhecemos o ápice das ações das personagens, e um fim,
onde nos é apresentada a conclusão de todas as ações praticadas pelo
protagonista. Alguns desses contos são longos como, por exemplo, “Sette
piani”, contido em Sessanta racconti, que conta quase vinte páginas contra as
dez linhas de “Imprudência gramatical”, coletado em In quel preciso momento.
Acreditamos que o “non conclude”63 é verdadeiro a partir da premissa
básica que nenhuma obra literária poderá gabar-se de possuir o ponto final, de
fato, em sua narrativa; a conclusão definitiva das interpretações possíveis.
63
Título do último capítulo do romance Uno, nessuno e centomila, de Luigi Pirandello.
56
Esse gran finale caberá ao leitor64 que, com base em suas experiências,
conhecimento de mundo e leituras anteriores, intuirá possíveis causas para os
desfechos narrados, porque “cada vez que a ponta da caneta toca o papel, no
fundo há o pensamento de quem vai ler amanhã”65.
No caso do livro In quel preciso momento, se tudo o que temos é um
“pensamento interrompido”, faz-se necessário observar a obra como um todo
harmônico onde cada conto representa, de certa forma, parte de uma mesma
história. Se assim procedermos, poderemos encontrar o fio que une de forma
plena cada um dos microcontos ao redor de um mesmo tema: o tempo. Mais,
no decorrer do livro, o autor pontua o tempo da narrativa de forma sutil,
inserindo aqui e ali contos cujos títulos constituem datas progressivas como,
por exemplo: “Janeiro de 1944”, “A invasão dos hunos – fevereiro de 1944”,
“Trombeta 1944”, “Abril de 1945” e finda com “1º de janeiro de 1962”.
Não podemos afirmar que a diegese seja de dezoito anos. Poderíamos,
talvez, divagar nessa maioridade que principia a vida adulta e consequente
maturidade para analisar as idades de nossa vida.
Já no livro Le notti difficili, Buzzati reúne contos que se enquadram na
definição canônica de “narrativa breve e concisa, contendo um só conflito, uma
única ação – com espaço geralmente limitado a um ambiente –, unidade de
tempo, e número restrito de personagens”66. A temática continua sendo a
mesma: o tempo, mas a construção da obra difere de In quel preciso momento
por conter histórias independentes, diegéticamente falando, ainda que ligadas
pela mesma temática.
Vale lembrar que, ainda que a temática seja a mesma, o autor aborda
diferentes aspectos do tempo. Construirá a abordagem do tempo sob o alicerce
da Física e das teorias de viagem tempo/espacial em alguns contos; nos falará
das questões socioeconômicas da humanidade, caso a morte fosse impedida
64
ECO, Umberto. Seis passeios pelos bosques da ficção. Trad. Hildegard Feist. São Paulo: Companhia
das Letras, 2004, p. 81.
65
Buzzati, Dino. Naquele exato momento. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986, p. 49
66
HOUAISS, Antônio [et al.]. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p.
536.
57
de atuar; abordará os temores que o passar do tempo traz para todos os que
vivem e, principalmente, encontraremos em seus contos a eterna solidão que
habita todo ser que vive, e morre.
Alguns contos compreendem outros menores, como é o caso de, por
exemplo, “Smagliature del tempo”, que é composto por três outros contos e traz
a seguinte introdução:
Il tempo, si sà, è irreversibile. Eppure, come la fatale
discesa dei fiumi consente qua e là dei rigurgiti, dei
borghi, delle controonde che potrebbero quase far
supporre eccezioni alla legge della gravità, così, nella
smisurata trama del tempo, di quando in quando si
determinano piccole crepe, intoppi, smagliature, che per
brevi istanti ci lasciano sospesi in una dimensione arcana,
agli estremi confini dell’esistenza.67
(BUZZATI, 2002, p. 271)
Nesse conto, o autor constrói três situações nas quais seria possível o
suporte da Física para a leitura de haver uma fenda na curvatura espaço/tempo
que possibilitasse, de alguma forma, uma previsão do futuro. Chamaremos a
esses pequenos contos de "contos integrantes".
O primeiro conto integrante de Smagliature del tempo se intitula “Il
martire” e narra a história de um joalheiro que viajava por uma autoestrada com
seus guarda-costas. Em dado momento da viagem, o joalheiro e os guardacostas avistaram um jovem e “egli agita le mani come invocando aiuto”68. O
carro entretanto não pára imediatamente, seguindo por mais “un trecento
metri”. Quando “provvisti di torce eletriche69”, voltaram ao local onde haviam
avistado o jovem, o encontraram estendido no chão, morto, cercado por uma
multidão de pessoas, que aparentemente não os via. Saíram dali estarrecidos e
seguiram seu caminho falando sobre o acontecimento inesperado. Horas
depois, quando retornavam pela mesma estrada, no lugar em que tinham visto
67
Sabemos que o tempo é irreversível. Contudo, como a fatal descida dos rios permite, aqui e ali,
transbordamentos, redemoinhos, repuxos que quase poderiam supor exceções à lei da gravidade,
assim, na infinita trama do tempo, de quando em vez, há pequenas fendas, obstáculos, falhas que, por
breves instantes, nos deixam suspensos numa dimensão arcana, nos extremos confins da existência.
(MORETTO, 1986, p. 252)
68
Agita os braços como se pedisse ajuda. (MORETTO, 1986, p. 252)
69
Munidos de lanternas elétricas. (MORETTO, 1986, p. 252)
58
o insólito acidente, encontraram uma lápide que registrava um acontecimento
que só se efetivaria em dezesseis anos e, no curto espaço de tempo que
levaram para buscar uma câmera fotográfica no carro, pois desejam fotografar
a inscrição, a lápide desaparecera.
Difatti, al lume delle lampadine, non si riesce più a trovare
né croce né lapide. L’erbetta stenta dal bordo, e basta.
Non un segno. Neppure orme recenti. Mi chiedo:
dovranno realmente accadere le cose viste stanotte? O è
stato un sogno? L’Anselmo Tito Gambellotti che fra sedici
anni dovrà immolare la giovinezza per la causa della
libertà (quale libertà?) quanti anni ha oggi? Se riuscissi a
rintracciarlo, potrei metterlo sull’avviso? O è stato tutto già
scritto?70 (BUZZATI, 2002, p. 273)
Já o segundo conto integrante, intitulado “La targa”, narra a história de
um homem que, enquanto dirigia seu carro, foi alertado por um outro motorista
que sua placa estava amassada. O protagonista parou o automóvel alguns
metros adiante e constatou que sua placa não estava amassada. Pensou: “Uno
scherzo, dunque. Ma il signore che mi ha avvertito non sembrava
assolutamente un tipo da scherzi. E poi, a che scopo? Evidentemente aveva
visto male.”71 (BUZZATI, 2002, p. 274)
Uma semana depois, percorrendo a mesma estrada, foi mais uma vez
abordado, dessa vez por um rapaz, que lhe disse que sua placa caíra e que
uma lanterna do carro fora quebrada. Mais uma vez ele interromperia seu
caminho para verificar a informação que, dessa vez, para sua surpresa, era
verdadeira.
No terceiro e último conto integrante, intitulado por Buzzati de “La
nonna”, é narrada a história de um homem de 34 anos, que fora passar um fim
de semana na vivenda de uns amigos e, quando saiu de seu quarto para
almoçar com eles, encontrou uma bela jovem no corredor Ela trazia “in mano
70
De fato, à luz das pequenas lanternas não conseguimos achar nem cruz nem lápide. A pobre
relvazinha da margem e pronto. Nem um sinal. Nem pegadas recentes. Pergunto-me: as coisas vistas
esta noite acontecerão realmente? Ou foi um sonho? Anselmo Tito Gambellotti, que dentro de 16 anos
deverá imolar a juventude pela causa da liberdade (que liberdade?), quantos anos tem hoje? Se
conseguisse encontrá-lo, poderia avisá-lo? Ou tudo já está escrito? (MORETTO, 1986, p. 253)
71
Portanto, uma brincadeira. Mas o homem que me avisou não parecia absolutamente ser do tipo de
quem faz brincadeiras. E além disso com que finalidade? Evidentemente ele vira mal. (MORETTO, 1986,
p. 254)
59
un pacchetto rotondo legato con un nastro azzurro”72. Cumprimentaram-se e o
protagonista “discesi in giardino col meraviglioso presentimento che tra poco, in
un mondo o nell’altro, avrei conosciuto l’adorabile creatura; e che forse la mia
vita sarebbe cambiata per sempre”.73
No jardim, o homem foi apresentado à avó de seu amigo que, para seu
embaraço, afirmou já conhecê-lo. Ele gentilmente negou tal afirmação, dizendo
não recordar-se de um possível encontro anterior com ela:
Io sì, ricordo, io sì, come fosse ieri. E sa che cosa devo
dirle? Che lei è un miracolo. Un miracolo! Lei ha fatto un
patto col diavolo, dica la verità... No, no, sto scherzando.
Ha ragione lei, di guardarmi in questo modo. Si immagini,
sono passati da allora almeno cinquant’anni... Non poteva
essere lei, uno identico, le giuro... [...] Soltanto una cosa:
la sera, senza che lui sapesse, senza dirgli una parola, gli
ho fatto trovare in camera una torta. Una torta d’arance.
Fatta apposta per lui. Era la mia specialità...74
(BUZZATI, 2002, p. 275-76)
Quando, mais tarde, ele retornou ao seu quarto não ousou “neppure
aprire il pacchetto legato con un nastro azzurro che si trovava sul comò (perché
sapevo ch’era la torta d’arance, fatta cinquant’anni prima).”75
A personagem não apresenta nenhum traço de dúvida quanto ao fato de
que aquele era o pacote sobre o qual a senhora falara há pouco. Ainda que
exista um quê de insegurança ou um questionamento acerca das experiências
inusitadas vividas pelas personagens, ao fim dos relatos todas elas aceitam o
ocorrido como se fosse natural e possível.
72
Na mão um pacotinho redondo, amarrado com uma fita azul. (MORETTO, 1986, p. 254)
73
Desci para o jardim com o maravilhoso pressentimento de que dentro em pouco, de uma forma ou de
outra, iria conhecer a adorável criatura; e que talvez minha vida mudasse para sempre. (MORETTO,
1986, p. 254)
74
Eu, sim, lembro-me como se fosse ontem. E sabe o que devo dizer-lhe? Que o senhor é um milagre.
Um milagre! O senhor fez um pacto com o diabo, diga a verdade... Não, não, estou brincando. O senhor
tem razão para olhar-me dessa maneira. Imagine, desde então passaram-se pelo menos 50 anos... Não
podia ser o senhor. O senhor ainda não havia nascido. Mas era alguém como o senhor, idêntico, juro...
[...] Somente uma coisa: à noite, sem que ele soubesse, sem dizer-lhe uma palavra, coloquei uma torta
em seu quarto. Uma torta de laranja. Feita propositalmente para ele. Era a minha especialidade...
(MORETTO, 1986, p. 254)
75
Abrir o pacotinho amarrado com fita azul que se encontrava sobre a cômoda (porque sabia que era a
torta de laranja, feita havia 50 anos) (MORETTO, 1986, p. 256)
60
Percebemos que as falhas no tempo às quais Buzzati alude seriam
aquelas que permitiriam ao homem um certo transitar para o futuro ou para o
passado, mas sempre de forma aleatória e não premeditada, incontrolável. Mas
possível.
A nosso ver, essa seria a construção de um tempo da Física, que
perpassa as pesquisas de Einstein e a sua visão da curvatura espaço/temporal,
permitindo, em teoria, tal transitar entre passado-presente-futuro.
Tal abordagem do tempo, e as possibilidades de viagem nele, também
são exploradas pelo autor no conto “Nessuno crederà”, em que é apresentada
uma clínica de vanguarda no tratamento do que ele chama de “il male del
secolo”. Ali todos os pacientes se encontravam em estado terminal, mas
misteriosamente não temiam a morte, porque:
[...] Nella trama del tempo esistono qua e là delle specie
di fessure, delle brecce. È una cosa piuttosto astrusa,
bisognerebbe che ci fosse un fisico a spiegarla e
probabilmente non capiresti lo stesso, come in fondo non
ho capito neppure io. Bene, una di quelle rarissime
smagliature si è determinata qui, dove siamo, in questo
recondito angolo delle Alpi. Sopra di noi c’è come un buco
che ci mette in comunicazione col futuro.76 (BUZZATI,
2002, p. 35-6)
Os pacientes viajavam através dessa fenda e eram transportados para
anos e anos no futuro, onde já não existia nenhum dos seus amados do
presente: nem filhos, nem netos, nem amigos ou filhos dos filhos dos amigos.
Todos já haviam morrido também. A constatação de que ninguém sobrevive
eternamente conferia aos moribundos internados naquela clínica uma
consolação e uma resignação para lidar com a doença que os ceifaria,
inevitavelmente, a vida.
76
[...] na trama do tempo existem, lá e cá, espécies de fendas, brechas. É uma coisa bastante obscura,
seria necessário um físico para explicá-la e provavelmente você também não entenderia, como, no
fundo, eu também não entendi. Bom, uma daquelas raríssimas falhas da malha produziu-se aqui onde
estamos, neste recôndito dos Alpes. Acima de nós há uma espécie de buraco que nos põe em
comunicação com o futuro. (MORETTO, 1986, p. 48)
61
Buzzati conclui o conto com a seguinte frase: “Era un sogno? O era
vero? Mai lo potrò raccontare, mai lo potrò scrivere, nessuno mi crederà.”.77
Mais uma vez poderíamos crer que tais indagações da personagem
indicassem uma ignorância com relação ao que acontecia verdadeiramente
com os pacientes daquele hospital, mas o período subsequente invalida tal
leitura, uma vez que um sonho, por mais insólito que seja, sempre poderá ser
publicado e o nível de credibilidade do leitor em relação ao relato pouco
importa ao autor.
A propósito da tristeza que acomete a todos pela expectativa da morte –
a "indesejada das gentes", nos versos de Manuel Bandeira – e da calma que os
pacientes do conto aparentavam quando retornavam do futuro, lembramos da
fala do professor Leandro Karnal ao abordar o tema A utopia da melhor idade,
no programa Café filosófico. Ele relatou que
[...] A Sibila cumana, na caverna de Cuma, ao sul da
atual Roma, uma Sibila, ou seja uma sacerdotisa de
Apolo, decidiu pedir ao Deus a suprema graça que um
Deus podia conceder. Apolo lhe pediu conceder um
desejo e ela disse que queria viver eternamente ou, pelo
menos, mil anos para cada grão de areia que ela
apresentasse na mão. Apolo concedeu e a Sibila, feliz,
começou a viver eternamente. Esqueceu-se nesse
pedido, que contém sempre uma armadilha, esqueceu-se
de pedir a juventude eterna. Resultado: viveu
eternamente, mas começou a se desmanchar em vida.
Dessa forma, quando as pessoas entravam na caverna
de Cuma, na antiguidade, segundo a tradição, posta
numa gaiola
assustadora
estava
essa
figura
encarquilhada, absolutamente destruída pelo tempo, e
que só dizia aos que entravam: Quero morrer!
Por que que ela quer morrer? Não apenas por causa da
aparência, mas porque depois de um tempo todo mundo
que dava sentido ao que eu era começa a desaparecer;
tudo aquilo que identificava o meu mundo, começa a
desaparecer. A nova linguagem do mundo, as novas
pessoas, as novas relações vão sumindo [...]78
77
“Seria um sonho? Ou seria verdade? Nunca poderei dizer, nunca poderei escrever, ninguém
acreditará.” (MORETTO, 1986, p. 256)
78
https://www.youtube.com/watch?v=_uBpH6jEAbU (acesso em 04/12/2013)
62
As nossas percepções sobre o tempo – passado, presente ou futuro –
são muito particulares, pessoais e nem sempre correspondem à realidade do
coletivo que nos circunda.
Se trouxermos essa particularidade da leitura do tempo para âmbitos da
realidade, fora da ficção literária ou cinematográfica, ou de qualquer outra
forma de representação do real, poderemos constatar que a variação de leitura
temporal é um fato na história do homem.
O calendário, nos moldes que conhecemos hoje, com sua divisão de
trezentos e sessenta e cinco dias por ano, foi concebido há mais ou menos
cinco mil e quinhentos anos a.C. pelos egípcios, com o fim de precisar as
cheias do Nilo e, assim, conseguir uma otimização da agricultura às margens
do rio.
Posteriormente, em 1582, esse calendário solar foi adaptado pelo Papa
Gregório XII e vige, até os dias atuais, como padrão para o povo cristão. Já os
judeus, por exemplo, usam o calendário lunissolar, ou seja, calculam o ano
pelos ciclos da lua, levando em consideração as estações do ano solar, assim
como os chineses. No ano cristão de 2015, os judeus estão no ano de 5775 e
os chineses em 4713. Há que se considerar, de fato, a teoria da relatividade,
uma vez que tudo é relativo nesta vida. Não temos como precisar quando/em
que ano, realmente, estamos.
Em outro conto, intitulado “Che accadrà il 12 ottobre”, o autor mantém a
sua temática do tempo, mas, dessa vez, sugere a fragilidade humana frente à
grandiosidade universal que o homem desconhece e que está longe de
conceber. Nesse conto, ocorre que, enquanto o professor de história do direito
italiano, Luigi Splitteri, estava lendo um livro, sentado na poltrona de sua sala,
uma mosca teimava em pousar em seu joelho e, ato contínuo, o homem
tentava matá-la com uma revista, um livro, um jornal.
A partir do momento em que Luigi Splitteri tenta matar a mosca, o
narrador começa a sua preleção a respeito das grandes descobertas científicas
que tratam da semelhança existente entre a estrutura dos átomos e a estrutura
do que chamamos de sistema planetário.
63
Proprio all’ultima estremità della seconda zampa destra
della mosca che starà tormentando il professore, c’è un
atomo il cui sistema solare comprende un pianeta abitato
da esseri identici a noi.79 (BUZZATI, 2002, p. 144)
Aventa a possibilidade de o planeta ao qual pertencia o professor
Splitteri também fazer parte de um sistema solar integrante de um átomo na
pata de uma mosca num universo de grau superior. E sob a mesma linha de
raciocínio, imaginou, ainda, uma terceira mosca e um terceiro grau de universo
no átomo de sua pata.
L’uomo infatti è una imprevista anomalia verificatasi nel
corso del processo evolutivo della vita, non il risultato a
cui l’evoluzione doveva necessariamente portare. È mai
concepibile infatti che l’officina della natura mettesse
determinatamente in circolazione un animale nello stesso
tempo debole, intelligentissimo e mortale cioè
inevitabilmente infelice?80 (BUZZATI, 2002, p. 145)
Nesse momento, o narrador associou a infelicidade humana à sua
fragilidade ante a morte. Discorreu sobre a velocidade do tempo no planeta do
professor, que ele chamou de A, e a do microscópico planeta que chamou de
Z. Afirmou que durante o tempo que Splitteri levaria para acender um cigarro
no planeta A teriam se passado dias ou mesmo meses no planeta Z. E, ao
seguir essa linha de pensamento, o narrador dialoga diretamente com a teoria
da relatividade e as probabilidades que ela sugere no que concerne ao tempo.
O conto termina com um dilema: "Il dilema è grave. Eppure non
possiamo risolverlo. Ci è rigorosamente negato di capire se viviamo in un
mondo o nell’altro. Per saperlo, dobbiamo aspettare il 12 ottobre. "81 (BUZZATI,
2002, p. 148)
79
Exatamente na última extremidade da segunda pata direita da mosca que está atormentando o
professor, há um átomo em cujo sistema solar compreende um planeta habitado por seres idênticos a
nós. (MORETTO, 1986, p. 144)
80
O homem é, na realidade, uma imprevista anomalia no curso do processo evolutivo da vida, não o
resultado ao qual a evolução devia necessariamente chegar. De fato, é inconcebível que a oficina da
natureza tenha posto deliberadamente em circulação um animal ao mesmo tempo fraco,
inteligentíssimo e mortal, isto é, inevitavelmente infeliz? (MORETTO, 1986, p.145)
81
O dilema é grave. Contudo não poderemos resolvê-lo. É-nos rigorosamente negado compreender se
vivemos num mundo ou no outro. Para sabê-lo, deveremos esperar o dia 12 de outubro. (MORETTO,
1986, p. 145)
64
Mais uma vez, recorreremos à Sétima Arte para ilustrar nosso discurso.
Há alguns anos, em 1997, a Columbia Pictures lançou um filme chamado Men
in black, que focaliza seres extraterrestres que coabitam conosco no planeta
Terra. Até aqui nada se acrescenta ao nosso conto, mas, quando assistimos a
última cena do filme, conseguimos visualizar precisamente o discurso do
narrador buzzatiano: o jogo de câmeras se distanciando gradativa e
verticalmente do carro e, pouco a pouco, nos dando uma visão cada vez mais
ampla da rua de onde o carro acabara de sair, do bairro, do estado, país,
continente, planeta, enfim, se estendendo para o nosso sistema solar e, num
crescente, conseguimos ver nossa galáxia e tantas outras a sua volta até que,
como num passe de mágica, percebemos que tudo aquilo que chamamos
universo, não passa de uma bola (do tipo gude) com a qual uma espécie
alienígena, ainda criança, brinca. Vale lembrar que tal bola não é a única,
existem muitas outras na algibeira do alienígena.
Percebemos que por trás desse questionamento a respeito da pequenez
humana frente a tudo que o homem ainda não conhece, também está uma
reflexão sobre o tempo no que diz respeito à fragilidade humana diante de algo
que não se pode prever (o tempo futuro) ou evitar (o que aconteceria em 12 de
outubro).
A reflexão proposta pelo conto nos remete às palavras do professor,
filósofo e escritor brasileiro Mário Sérgio Cortella, acerca da insignificância do
homem frente ao (Multi)Universo82:
Quem és tu? Tu és um indivíduo, entre outros seis
bilhões e quatrocentos milhões de indivíduos, compondo
uma única espécie, entre outras três milhões de espécies
já classificadas, que vive num planetinha que gira entorno
de uma estrelinha, que é uma entre outras cem bilhões
de estrelas, compondo uma única galáxia, entre outros
duzentos bilhões de galáxias, num dos universos
possíveis, e que um dia vai desaparecer.83
82
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/saudeciencia/66522-a-possibilidade-do-multiverso.shtml (acesso
em 04/04/2015)
83
https://www.youtube.com/watch?v=P3NpHryB-fQ (acesso em 14/03/2015)
65
Em outro conto, intitulado I vecchi clandestini, o olhar se lança ao tempo
já passado. Nele é narrada a história de Yamashita, um homem que, certo dia,
passando por uma loja que vendia objetos usados nos arredores de Kyoto, viu
um par de óculos por um preço irrisório, ainda que ‘velhos’.
De acordo com o vendedor da loja, se tratava de um par de óculos
especiais, que serviam para enxergar as pessoas quando velhas, ou seja, as
lentes tinham a propriedade de nos mostrar, por assim dizer, a baixa na carga
de vitalidade de uma pessoa. Daí, se fosse uma jovem de vinte anos, por
exemplo, mas com uma doença em estado avançado e que fatalmente a
levaria à morte, os óculos mostrariam, ao invés de uma jovem, uma velha
decrépita e cadavérica. Essa imagem seria o bastante para decretar o fim da
vida daquela pessoa.
Querendo convencer o protagonista a comprar o produto, o vendedor
sugeriu que ele saisse da loja com o objeto e buscasse ver uma determinada
moça, que estava sentada há alguns metros da loja. O homem concordou e
qual não foi sua surpresa:
Io ho preso gli occhiali, sono uscito in strada, tra parentesi
mi domandavo come mai l’ometto si fidasse tanto di me,
ho fatto una trentina di passi e ho trovato il giardino. Su
una sdraio c’era una ragazza bellissima, avrà avuto sì e
no diciotto anni. Io inforco gli occhiali e la ragazzina
diventa una spaventosa strega sdentata tutta pelle e
ossa.84 (BUZZATI, 2002, p. 300)
Buzzati faz uso de um elemento inusitado, inesperado, para abordar,
mais uma vez, a temática do tempo. Aqui o autor põe em evidência a face da
morte, invisível aos olhos comuns, mas que nos afronta de improviso. Também
insere um elemento mágico no seguinte trecho:
Poi che cosa sia sucesso lo sa soltanto il diavolo. Faccio
per tornare verso la bottega: venti passi, trenta passi,
quaranta passi, rifaccio la strada in un senso e nell’altro.
Niente. La bottega dell’occhialaio non riesco più a
trovarla. La bottega non c’è più. Come se fosse stata
84
Peguei os óculos, saí para a rua, entre parênteses, perguntava a mim mesmo como o homenzinho
confiava tanto em mim, dei uns trinta passos e encontrei o jardim. Numa espreguiçadeira, havia uma
moça belíssima, teria uns 18 anos. Coloco os óculos, e a menina fica uma assustadora feiticeira
desdentada, só pele e osso. (MORETTO, 1986, p. 277)
66
inghiottita dalla terra. Era assurdo, no? Era incredibilie,
no? Allora domando ai negozianti vicini: in questa strada
c’è un negozio di occhiali? Quelli fanno delle facce strane:
“Negozio di occhiali? In questa strada? Mai visto né
conosciuto”.85 (BUZZATI, 2002, p. 300)
Podemos observar, nesse momento, uma similitude entre esse conto e o
La giacca stregata, quando o protagonista buscou o ateliê onde adquirira o
terno e não mais o encontrou.
O professor Leandro Karnal nos diz que “somos filhos do pecado de
Adão e Eva” porque,
[...] a partir do momento que o homem pecou,
segundo a tradição judaico-cristã, o homem passou
a envelhecer, passou a morrer. Adão viveu, vocês
sabem, mais de 900 anos, Matusalém 969, mas o
homem morre. Tudo na vida passa, todos morremos
[...] A juventude absoluta de Apolo... os Deuses
gregos são idênticos aos homens, raivosos,
ciumentos,
eventualmente
generosos,
eventualmente magnânimos, mas com todos os
defeitos humanos, menos um defeito: os Deuses
nunca envelhecem. A imagem de um Apolo, de um
Deus grego que jamais envelhece, que vive para
sempre... a imagem que persegue muito aos
homens: como viver para sempre? O que seria ter
diante de si todo o tempo? Naturalmente uma
reflexão mais forte nas pessoas na medida em que
elas vão ganhando experiências [...]86
E a história se encaminha para o fim, acrescida de mais um pecado
quando Yamashita, após uma vida inteira controlando a própria face através da
ótica dos óculos mágicos, um belo dia se deparou com a face da decrepitude
característica da morte que se anunciava irreversível. Nesse momento, ele
resolveu que deveria passar adiante aquela que poderíamos chamar maldição
para outra pessoa e, na sequência, se suicidou por não querer esperar a visita
da morte, que lhe traria um fim desconhecido.
85
Mas o que acontece só o diabo sabe. Procuro voltar para a loja: 20 passos, 30 passos, 40 passos, volto
num sentido e no outro. Nada. Não consigo mais encontrar a óptica. Não existe mais. Como se tivesse
sido engolida pela terra. Era absurdo, não? Era incrível, não? Então pergunto aos comerciantes vizinhos:
nessa rua não há uma óptica? Fazem umas caras estranhas: - Óptica? Nessa rua? Nunca vi. (MORETTO,
1986, p. 277)
86
https://www.youtube.com/watch?v=_uBpH6jEAbU (acesso em 14/12/2013)
67
Lembremos que o suicído para muitas religiões é considerado um
pecado; no judaísmo, por exemplo, o suicida é enterrado de costas para
Jerusalém. O suicídio, no conto, poderia ser lido como uma forma de
Yamashita controlar e determinar como se daria esse ponto final de sua
existência. Ou seja, a forma de não ficar à mercê dos caprichos da morte.
Esse conto nos possibilita fazer, mais uma vez, uma ponte com o livro, já
citado, O retrato de Dorian Gray, e nos conduz à leitura de "Il borghese
stregato", conto publicado em Sessanta racconti.
2.2- Sessenta contos: em busca de um tempo perdido.
Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas
usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer
os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos
lugares. Fernando Pessoa87
Sessanta racconti (Sessenta contos), antologia que será focalizada
neste item, nos permitirá abordar, novamente, a questão do tempo – passado,
presente e futuro – e a frustação sentida pelo homem que dispendeu seu
tempo de vida em coisas que não o realizaram.
O primeiro conto a ser examinado é "Il borghese stregato" ("O burguês
enfeitiçado"), que tem como foco a história de Giuseppe Gaspari, um
comerciante de cerais de 44 anos, que fora ao encontro da mulher e filhas que
passavam férias em um hotel campestre.
Lá chegando, Gaspari ficou frustrado com o lugar, que pensara ser mais
sofisticado do que realmente era:
[...] Un posto da cacciatori, pensò il Gaspari,
rimpiangendo di non essere potuto mai vivere, neppure
per pocchi giorni, in una di quelle valli, immagini di felicità
umana, sovrastate da fantastiche rupi, dove candidi
87
PESSOA, Fernando. O livro do desassossego - composto por Bernardo Soares, ajudante de guardalivros da cidade de Lisboa, Richard Zenith (Org.) 3 ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
68
alberghi a forma di castello stanno alla soglia di foreste
antiche, cariche di legende.88 (BUZZATI, 2007, p. 151)
Após o almoço, o comerciante decidiu dar uma volta pelo lugarejo,
enquanto todos os demais hóspedes repousavam. Lembrou, lamentando-se,
que jamais tivera o que desejara, mas que nunca lhe faltara nada. E, também,
concluiu que nada, nunca, lhe dera plena alegria.
Durante sua caminhada, em dado momento, Giuseppe Gaspari ouviu
vozes de crianças. Resolveu, então, sair da sua trilha e se dirigiu ao local de
onde vinha o som. Imediatamente antes de mudar sua rota, ele olhou para trás
e a visão que teve do vale, estando no alto da colina, marca o momento em
que o narrador pontua a dualidade real-inusitado em sua narrativa:
A quella vista egli ebbe una gioia; e non sapeva neanche
lui il perché. Il valloncello non presentava speciale
bellezza. Tuttavia gli aveva ridestato una quantità di
sentimenti fortissimi, quali da molti anni non provava;
come se quelle ripe crollanti, quella abbandonata fossa
che si perdeva chissà verso quali segreti, le piccole frane
bisbiglianti giù dalle arse prode, egli le riconoscesse.
Tanti anni fa le aveva intraviste, e quante volte, e che ore
stupende erano state; propriamente così erano le
magiche terre dei sogni e delle avventure, vagheggiate
nel tempo in cui tutto si poteva sperare.89 (BUZZATI,
2007, p. 152)
Continuando a caminhar pelo vale, na direção das vozes infantis,
adentrou por uma trilha e viu cinco garotos que brincavam de índio. Ficou a
observá-los durante um tempo e constatou que aquele lugar havia sido
invadido por uma grande alegria, que lhe era totalmente inexplicável.
88
[...] Um lugar de caçadores, pensou Gaspari, lamentando nunca ter podido viver, nem mesmo por
poucos dias, em um daqueles vales, imagens de felicidade humana, cobertos por fantásticos penhascos,
onde cândidos hotéis em forma de castelo estão na soleira de florestas antigas, cheias de lendas. (TN)
89
Àquela visão, ele sentiu uma alegria; e nem mesmo ele sabia por quê. O pequeno vale não
apresentava especial beleza, todavia lhe tinha despertado uma quantidade de sentimentos fortíssimos,
os quais há muitos anos não sentia; como se aqueles despenhadeiros desabados, aquela cova
abandonada que se perdia em direção a sabe-se lá quais segredos, os pequenos deslizamentos de terra
sussurantes das fortes queimadas, ele reconhecesse. Há muitos anos ele as havia vislumbrado, e
quantas vezes, e que horas estupendas foram aquelas; exatamente assim eram as mágicas terras dos
sonhos e das aventuras, ansiadas no tempo em que tudo se podia esperar. (TN)
69
Podem-se notar as conjecturas da personagem com relação à sua
infância, a aludir que aquela seria a etapa da vida em que o tempo era longo e
que se podia esperar por tudo, em contraponto com a idade adulta, quando já
não se tem essa mesma perspectiva com relação à vida. Lembrava-se de
como a infância é repleta de luz e fantasia.
Até este ponto da narrativa não se observam eventos que possam ser
definidos como mágico, fantástico ou surreal. Até então, o protagonista não
exerce nenhum controle ou pseudocontrole sobre forças superiores a ele; não
há nenhuma lei natural que lhe cause estranhamento ou hesitação, assim
como não se encontra em processo de imaginação descontrolada.
Mas, a partir do momento em que divaga sobre a infância, o discurso
começa a se aproximar do surreal, segundo as acepções de Breton, quando
afirmou em seu manifesto:
Imaginação querida, o que mais amo em ti é não
perdoares.
Só o que me exalta ainda é a única palavra, liberdade. Eu
a considero apropriada para manter, indefinidamente, o
velho fanatismo humano. Atende, sem dúvida, à minha
única aspiração legítima. Entre tantos infortúnios por nós
herdados, deve-se admitir que a maior liberdade de
espírito nos foi concedida. Devemos cuidar de não fazer
mau uso dela. Reduzir a imaginação à servidão, fosse
mesmo o caso de ganhar o que vulgarmente se chama a
felicidade, é rejeitar o que haja, no fundo de si, de
suprema justiça. Só a imaginação me dá contas do que
pode ser, e é bastante para suspender por um instante a
interdição terrível: é bastante também para que eu me
entregue a ela, sem receio de me enganar (como se
fosse possível enganar-se mais ainda).
(BRETON, 1924, p. 1)
Com a mudança de trajetória na trilha que seguia, o empresário, homem
sério, de negócios, mudou também a sua percepção do entorno. Passou a
observar a paisagem de forma diferenciada, como se tivesse sido encantado
por tudo aquilo que via. Até a visão do hotel, lá embaixo, ao pé da colina, agora
lhe parecera mais aprazível.
Esse desvio de caminho levou a personagem Giuseppe Gaspari a um
mergulho profundo no mar da imaginação que, segundo Breton, abandona o
70
homem aos vinte anos. Ele se defrontara com um grupinho de cinco garotos
que brincavam de índio e, para surpresa dos meninos, se ofereceu para
participar da brincadeira.
Vale mencionar que tal brincadeira não era comum na Itália daquela
época. As crianças tendem a repetir as brincadeiras aprendidas culturalmente
ou, falando em dias de hoje, aquelas que se tornam moda através dos meios
de comunicação de massa, tais como cinema, TV, internet, principalmente.
Cabe esclarecer, como pequeno adendo: os filmes western norteamericanos, aqueles conhecidos no Brasil como faroeste, tiveram seu auge no
final da década de 1930 com as produções de John Ford. O cinema italiano já
os exibia, mas as salas de projeção eram um luxo reservado às capitais e
grandes centros. Já a televisão90 chegou à Itália na primeira metade da década
de 1950, apesar de as primeiras transmissões experimentais terem sido
iniciadas em 1939, em Turim, por uma instituição radiofônica pública do regime
fascista – EIAR –, que interrompeu seus trabalhos com o início da Segunda
Guerra Mundial. Com o fim da guerra, as transmissões foram retomadas sob a
responsabilidade da RAI - Radio Audizioni Italiane, que, em 1954, torna-se
Radio Televisione Italiana e inaugura, assim, o Programma Nazionale (Primo
Programma), hoje RAI 1.
No início, a televisão era um bem de luxo usufruído por um número
restrito de cidadãos. As transmissões diárias duravam poucas horas:
começavam ao meio-dia e terminavam por volta das 23 horas. Às vezes, a RAI
1 fazia transmissões na madrugada, como, por exemplo, quando cobria ao vivo
programas produzidos nos Estados Unidos da América.
Em 1961, nasce o Secondo Programma, a atual RAI 2, administrado
pelo Partido Socialista Italiano, um canal alternativo às transmissões do Primo
Programma, que era administrado pela Democracia Cristã.
Este adendo não pretende apresentar a história da televisão na Itália,
mas, simplesmente, colocar em relevo que, em seus primeiros anos de
existência, a televisão nesse país é, especialmente, um instrumento de
90
http://www.antebolicas.com/seccao.php?s=historia (acesso em 19/02/2014)
71
informação e educação, dedicando pequeno tempo ao entretenimento. Em
1960, por exemplo, começa a ser transmitido o programa "Non è mai troppo
tardi", um curso que objetivava ensinar a ler e a escrever aos analfabetos,
ainda numerosos no país.
Considerando que a RAI 1 foi, até 1960, totalmente "democristiana", ou
seja, foi comandada pelo governo, e transmitia somente programas culturais e
educativos, podemos entender que os programas televisivos não teriam
influenciado a brincadeira dos meninos vistos por Gaspari.
O conto “Il borghese stregato” foi publicado em 1958 na coletânea
Sessanta racconti, mas, se observarmos a história dos filmes western na Itália,
veremos que, só a partir da década de 1960, esse gênero começa a entrar e
ganhar espaço no país, com uma nova tendência cinematográfica que
chamaram de western spaghetti e que foi popularizada pelo cineasta Sergio
Leone, diretor de, por exemplo, Por um punhado de dólares (1964) e Era uma
vez no Oeste (1969).
Em 1954, quando começou a emitir sinais televisivos em escala
nacional, havia certa restrição quanto ao conteúdo a ser transmitido: não
poderia conter cenas que perturbassem a paz social, o respeito aos valores
familiares e religiosos ou incitasse o ódio entre as classes. Talvez esse controle
tenha ocorrido por conta do, ainda recente, fim da Segunda Guerra mundial.
Todos os programas veiculados deveriam respeitar a moralidade dos costumes
da nação italiana, assim como rejeitar todas as cenas com apelos eróticos ou
que maculassem a santidade matrimonial. Todas essas normas eram
garantidas pelo “Comitato per la determinazione delle direttive di massima
culturali”91, uma espécie de agência reguladora dos conteúdos veiculados pela
TV, instituído em 1947. Assim, as transmissões eram basicamente de
entrevistas, musicais e esportes e, em 1954, a TV chegava a pouco mais de
vinte mil casas por conta do custo elevado do aparelho. Era um artigo de luxo
que nem toda família italiana podia ter, daí acabou se tornando popular o
91
http://it.wikipedia.org/wiki/Storia_della_televisione (acesso em 19/02/2014)
72
hábito de várias famílias se reunirem na casa do vizinho para assistir a tal ou
qual programa como, por exemplo, o telequiz italiano “Lascia o raddoppia?”
Com tantas preocupações com relação ao conteúdo divulgado e com tão
poucos telespectadores fica difícil crer que, em um hotel localizado em uma
zona campestre, as crianças do lugarejo já houvessem assimilado a cultura de
brincar de faroeste, brincadeira pertencente à nação estadunidense.
Acreditamos poder, então, inferir que essa imagem utilizada por Buzzati
no conto em apresentação não diga respeito, essencialmente, à cultura infantil
italiana, mas, sim, faça alusão a algo mais significativo e que tange a outras
características dos Estados Unidos da América.
Fim do adendo.
Gaspari perguntou aos meninos se podia entrar na brincadeira e foi tão
veemente que os surpreendeu:
I bambini lo guardavano meravigliati. Curioso: non c’era
ombra di compatimento in lui, come negli altri uomini
grandi quando si degnano di giocare. Pareva proprio
facesse sul serio.92 (BUZZATI, 2007, p. 154)
A personagem entrara tão seriamente na brincadeira que até a
paisagem, para ela, se modificara:
Il Gaspari guardava. Non c’era più il valloncello adatto ai
giochi dei ragazzi, né le mediocri cime a panettone, né la
strada che risaliva la valle, né l’albergo, né il rosso campo
da tennis. Egli vide sotto di sé sterminate rupi, diverse da
ogni ricordo, che precipitavano senza fine verso maree di
foreste, vide piú in là il tremulo riverbero dei deserti e più
in là ancora altre luci, altri confusi segni denotanti il
mistero del mondo. E qui dinanzi, in cima alla rupe, stava
una sinistra bicocca; tetre mura a sghembo la reggevano
e i tetti in bilico erano coronati da teschi, candidi per il
sole, che sembrava ridessero. Il paese dele maledizioni e
dei miti, le intatte solitudini, l’ultima verità concessa ai
nostri sogni!93 (BUZZATI, 2007, p. 155)
92
Os meninos o olhavam maravilhados. Curioso: não tinha sinal de superioridade nele como nos outros
adultos, quando se dignam a brincar. Parecia que levava a sério de verdade. (TN)
93
Gaspari olhava. Não existia mais o vale adequado às brincadeiras dos meninos, nem os medíocres
cumes em forma de panettone, nem a estrada que circundava o vale, nem o hotel, nem a quadra de
tênis vermelha. Ele viu sob seus pés penhascos intermináveis, diferentes do que se lembrava, que se
precipitavam sem fim em direção a marés de florestas. Viu, mais além, o trêmulo reverberar dos
desertos e, mais além ainda, outras luzes, outros confusos sinais que denotavam o mistério do mundo. E
73
Quando fez o desvio de caminho para encontrar as crianças, Gaspari
começou a imaginar, começou a sair da realidade a qual se agrilhoara há anos,
mas sem romper com ela. A partir desse momento, quando a paisagem que o
cercava começou a se transformar, ele passou a vivenciar a sua imaginação e
essa vivência é bem marcada no trecho a seguir:
Una porta di legno, socchiusa (che non esisteva), era
coperta di biechi segni e gemeva ai soffi del vento. Il
Gaspari si trovava ormai vicinissimo, a due metri forse.
Cominciò ad alzare lentamente la tavola, per lasciarla
cadere sull’altra sponda.94 (BUZZATI, 2007, p. 156)
Breton escreve, em seu manifesto, que “de fato, alucinações, ilusões etc
são fonte de gozo nada desprezível” e essa fonte de gozo levou Gaspari ao
extremo da experiência imaginativa, uma vez que, ao fim do conto, a
personagem confunde a realidade com a fantasia e se vê ferida de morte por
um singelo graveto.
Ma, dalla socchiusa porta coperta di oscuri segni (che
non esisteva), il Gaspari vide uscire uno stregone,
incrostato di lebbre e di inferno. Lo vide rizzarsi, altíssimo,
gli sguardi privi di anima, un arco in mano, sorretto da una
forza scellerata. Egli lasciò allora andare la tavola, si
trasse con spavento indietro. Ma l’altro già scoccava il
colpo.
Colpito al petto, il Gaspari cadde tra i rovi.95
(BUZZATI, 2007, p. 156)
A essa altura começa a descrição da morte da personagem e
poderíamos conjecturar se tal morte é física ou moral, uma vez que a "causa
mortis", a flecha, não existe, de fato.
aqui adiante, em cima do penhasco tinha um sinistro casebre; sombrios muros tortos o sustentavam, o
teto instável era coroado por caveiras, cândidas por causa do sol, que pareciam rir. A terra das
maldições e dos mitos, as intactas solidões, a última verdade concedida aos nossos sonhos. (TN)
94
Uma porta de madeira, entreaberta (que não existia), estava coberta por ameaçadores sinais e gemia
ao assoprar do vento. Gaspari já estava muito perto, a dois metros talvez. Começou a levantar
lentamente a tábua para deixá-la cair sobre a outra margem. (TN)
95
Mas da entreaberta porta coberta por obscuros sinais (que não existia), Gaspari viu sair um bruxo
incrustado de lepra e de inferno. O viu levantar-se altíssimo, os olhos sem alma, um arco na mão,
sustentado por uma força maligna. Então, ele soltou a tábua, recuou assustado. Mas o outro já
disparava o golpe.
Golpeado no peito Gaspari caiu entre os espinheiros. (TN)
74
Nesse conto, Dino Buzzati nos permite observar o tempo de um modo
bem sutil. Ele se utiliza do recurso do inusitado para gerar o questionamento de
Giuseppe em relação ao aproveitamento de sua vida. A personagem retoma
fragmentos de seu passado com um olhar mais crítico com relação ao que de
fato era importante: si mesmo. Novamente, o tempo transcorrido, visões do
passado, avaliações sobre o presente.
Logo no segundo parágrafo, encontramos essa imagem de tempo
perdido, por vontade ou impedimento, que é ressaltada quando ele pensa:
Un posto da cacciatori, pensò il Gaspari, rimpiangendo di
non esser potuto mai vivere, neppure per pochi giorni, in
una di quelle valli, immagini di felicità umana, sovrastate
da fantastiche rupi, dove candidi alberghi a forma di
castello stanno alla soglia di foreste antiche, cariche di
legende.96 (BUZZATI, 2007, p. 151)
A sequência desse pensamento é aquela na qual ele conclui que nada,
nunca, lhe faltara, mas tudo tinha sido sempre inferior ao que desejara. E
retoma essa ideia no encerramento do conto, quando, fazendo uma espécie de
balanço de sua vida, ele conclui que o fato de ter dado vazão a sua imaginação
e vivenciado toda aquela experiência com os meninos foi, para ele, libertador.
Tão libertador que ele morreu.
Podemos inferir, primeiramente, que essa morte não se deu em âmbito
físico e, sim, no psicológico da personagem. Se pensarmos que Giuseppe era
um comerciante de cereais, de quarenta e quatro anos de idade, que afirma
que jamais nada lhe faltara, mas que tudo tinha sido sempre inferior ao que
queria, podemos também imaginar que se tratava de alguém que trabalhava
muito e que, por conta das responsabilidades junto à família, tinha pouco
tempo para desfrutar de momentos sem preocupações de ordem profissional.
Se, a isso, anelarmos a brincadeira de índio, sabendo que essa não era
uma diversão que fizesse parte do imaginário coletivo da Itália daquela época,
poderíamos supor que tenha sido essa a forma escolhida por Dino Buzzati para
falar da máquina industrial estadunidense, que escraviza e aprisiona, muito ou
96
Um lugar para caçadores, pensou Gaspari, lamentando por nunca ter podido viver, nem mesmo por
poucos dias, em um daqueles vales, imagens de felicidade humana, cobertos por fantásticos penhascos,
onde cândidos hotéis em forma de castelo estão no limiar de florestas antigas, cheias de lendas. (TN)
75
pouco, todos os que a ela se vinculam, fazendo que a produtividade e o
consumo sejam os grandes motivos para se viver. É uma verdadeira e intensa
guerra onde sobrevive o mais forte. Mas poucos não sucumbem diante dela.
Ao começar a brincar com as crianças, Gaspari rompe com esse grilhão
mercantil e sente a leveza da liberdade de quem se permite relaxar. Mas, como
o seu condicionamento empresarial era muito grande, ele mergulha na
brincadeira de corpo e alma, com vontade; e a experiência se torna tão intensa
que o leva à morte.
Fato é que, nesse conto, o tempo parece não ter maior relevância, mas,
na realidade, se faz fortemente presente através do recurso do inusitado. A
imaginação exacerbada da personagem é a alavanca, a maneira utilizada pelo
autor para abordar as prioridades humanas na utilização do tempo e, mais,
quais os resultados que essa escolha pode dar. No caso da personagem em
questão, pode-se perceber uma infelicidade e uma nota de arrependimento que
surgem na medida em que ele desperta, por assim dizer, para aquilo que
deveria ter sido importante em sua vida. Poderíamos inferir, então, que a
consciência desse fato, dessa escravidão mercantilista à qual ele havia se
vinculado por força das circunstâncias o levara a valorizar, a partir daquele
momento, as coisas mais simples que a vida pode oferecer-lhe e a liberdade de
se permitir viajar na imaginação, quando se fizesse necessário. Essa suposta
análise da personagem é feita em relação direta com o tempo vivido por ela e,
consequentemente, com o que ela priorizou: o uso de tempo vivido. Daí, o
comentário final de Giuseppe –
“ti ho vinto miserabile mondo, non mi hai
saputo tenere”97 – fazendo alusão a essa liberdade conquistada por ele em
relação às obrigações impostas pelo mundo empresarial no qual estava
inserido.
Essas escolhas da personagem nos remetem a metáfora do caminho da
vida, quando Bakhtin afirma:
[...] A realização da metáfora do caminho da vida, com
suas diversas variantes, desempenha um papel
importante em todos os tipos de folclore. Pode-se mesmo
dizer que o caminho no folclore nunca é uma simples
97
Te venci, mundo miserável, você não soube me ter. (TN)
76
estrada, mas sempre o todo ou uma parte do caminho da
vida; o cruzamento é sempre o ponto que decide a vida
do homem folclórico; a saída da casa paterna para a
estrada e o retorno à pátria são frequentemente as
etapas etárias da vida (parte moço, volta homem); os
signos do destino, etc. por isso o cronotopo romanesco
da estrada é tão concreto e circunscrito, tão impregnado
de motivos folclóricos. (BAKHTIN, 2010, p. 242)
Giuseppe Gaspari fez esse desvio de caminho, teve esse contato com o
folclórico, partiu homem e voltou menino para a sua estrada da vida.
Os questionamentos de Gaspari nos fazem lembrar de um trecho de
Epitáfio, música de Sérgio Britto, tecladista da banda Titãs – "Devia ter
complicado menos, trabalhado menos, ter visto o Sol se por. / Devia ter me
importado menos com problemas pequenos, ter morrido de amor. / Devia ter
aceitado a vida como ela é. A cada um cabe alegrias e a tristeza que vier" – e
ensejam a passagem ao próximo item.
2.3- Fantástico, Mágico ou Inesperado?
Através da história da humanidade, o homem criou relógios para marcar
o passar do tempo e vários têm sido os recursos que tem utilizado para
representá-lo. A literatura surge, então, como mais uma das tantas formas
descobertas pelo homem para expressar as suas necessidades e registrar os
acontecimentos da vida.
Aristóteles98, dissertando a respeito da origem da poesia, afirma que
Parece haver duas causas, e ambas devidas à nossa
natureza, que deram origem à poesia. A tendência para a
imitação é instintiva no homem desde sua infância. Nesse
ponto, distinguem-se os humanos de todos os outros
seres vivos: por sua aptidão muito desenvolvida para
imitação. Pela imitação adquirimos nossos primeiros
conhecimentos e nela todos experimentamos prazer.
(ARISTÓTELES, 2013, p.25)
Como habilidade inerente ao homem, a imitação nos permitiu, no que se
refere à literatura, desenhar com palavras as nossas percepções a respeito do
98
ARISTÓTELES, Poética. São Paulo: Hunter Books, 2013, p. 25.
77
mundo que nos cerca. Começamos lá atrás, na Antiguidade, com a escrita
subjetiva onde os signos eram condicionados pelo meio ao qual pertenciam.
Com a evolução do pensamento, a necessidade de comunicação para a
manutenção da própria subsistência e o desejo de expansão, também inato, o
homem desenvolveu o alfabeto, padronizando, de certa forma, a escrita.
A partir daí, terão início as grandes produções literárias que datam de
séculos antes de Cristo como a Ilíada, poema épico ambientado na guerra de
Tróia, e a Odisséia, poema que dá continuidade à Ilíada e que trata do retorno
de Odisseu à Itaca, sua cidade natal, após o fim da guerra. Ambos poemas
atribuídos a Homero.
Temos, também, as obras dos grandes filósofos gregos Platão e
Aristóteles, que revolucionaram o pensamento filosófico da Era Clássica, assim
como as dos poetas romanos Virgílio, autor da Eneida, na qual se inspirou
Dante Alighieri para escrever a Divina Comédia (1304-1321), e Horácio, autor
de Semonum liber primus. Já na era Cristã, encontramos Santo Agostinho com
suas Confissões, além de tantos outros ícones da literatura ocidental que, ao
longo da história, vêm registrando em prosa, verso e teoria as suas leituras da
vida com o passar do tempo. Tais leituras nos levaram ao que classificamos
ainda hoje como Escolas Literárias, posto que a leitura que o homem faz da
vida e de tudo que o cerca depende, primordialmente, do momento históricopolítico-psicológico no qual ele está inserido no momento da produção textual.
Retomando, existem intrínsecas relações entre as percepções do autor
em relação ao mundo que o cerca ou sua própria vida, e a sua produção
literária propriamente dita.
Em meio ao racionalismo iluminista, que rejeitava peremptoriamente o
conjunto de ideias da igreja católica, assim como toda a cultura ocultista,
mágica ou mitológica por ele considerada inferior, surge o gênero Fantástico.
Ao colocar a derrota do herói sob as forças maléficas do
desconhecido, demonstra uma filiação ideológica a um
pensamento teocêntrico e antirracionalista. De teor
retrógrado, por um lado, o fantástico incorpora, por outro,
os conhecimentos científicos em voga para, em seguida,
procurar desmontá-los com a insurgência de fenômenos
78
extranaturais, num jogo de ambiguidade insolúvel levado
ao extremo.99
Então, com base no trecho supracitado, a partir das especificidades de
cada autor, temos o que chamamos de gênero literário que se divide em: lírico,
narrativo e dramático que, por sua vez, também se dividem em outros
subgrupos. A respeito dessas nominações, Carlos Reis e Ana Cristina Lopes100
escrevem que:
[...] a moderna teoria literária tem postulado a distinção
entre
categorias
abstratas,
universais
literários
desprovidos de vínculos históricos rígidos – os modos:
lírica, narrativa e drama – e categorias historicamente
situadas e apreendidas por via empírica -, os gêneros:
romance, conto, tragédia, canção, etc. [...]
3. A capacidade de codificação do género narrativo (que
pode considerar-se uma hipercodificação, <<isto é, um
fenómeno de especificação e de complexificação das
normas e convenções já existentes e actuantes no modo
[...]>>, tal capacidade é indissociável de motivações
periodológicas e ideológicas; tanto Lukács (1970) como
Bakhtin (1979), ao estudarem géneros narrativos como
a epopeia e o romance, chamaram a atenção para as
conexões entre uma determinada solução de género e o
desenvolvimento sociocultural que mediatamente a
inspira: <<O presente na sua incompletude, como ponto
de partida e centro de orientação artístico-ideológica, é
uma grandiosa transformação na consciência criativa do
homem. No mundo europeu, esta reorientação e esta
destituição da velha hierarquia dos tempos encontram
uma expressão essencial, na esfera dos géneros
literários, nos confins da Antiguidade clássica e do
Helenismo e, no mundo moderno, na época da Idade
Média tardia e do Renascimentro>> (Bakhtin, 1979: 480).
(REIS; LOPES, 2002, p.187-88)
Todas essas considerações acerca dos gêneros literários e suas
classificações servem de aporte para nossas investigações nos textos de Dino
Buzzati e, também, nossa tentativa de ler a sua obra não como a de um
escritor do gênero Fantástico, como propõe a maioria dos estudiosos de suas
obras, e, sim, aproximá-las ao Realismo Mágico, como o entendia Massimo
Bontempelli.
99
http://www4.pucsp.br/revistafronteiraz/numeros_anteriores/n3/download/pdf/tensao.pdf (acesso
em 25/02/2015)
100
REIS, Carlos; LOPES, Ana Cristina M. Dicionário de narratologia. Coimbra: Almedina, 2002; p. 187
79
Quando se fala do Fantástico na literatura é comum encontrar definições
que o enquadrem como sendo um enredo povoado por elementos improváveis,
fantasiosos e maravilhosos que se desvinculam da realidade humana. A esse
respeito Tzvetan Todorov nos diz que:
Chegamos assim ao coração do fantástico. Em um
mundo que é o nosso, que conhecemos, sem diabos,
sílfides, nem vampiros se produz um acontecimento
impossível de explicar pelas leis desse mesmo mundo
familiar. Que percebe que o acontecimento deve optar
por uma das duas soluções possíveis: ou se trata de uma
ilusão dos sentidos, de um produto de imaginação, e as
leis do mundo segue sendo o que são, ou o
acontecimento se produziu realmente, é parte integrante
da realidade, e então esta realidade está regida por leis
que desconhecemos. Ou o diabo é uma ilusão, um ser
imaginário, ou existe realmente, como outros seres, com
a diferença de que rara vez o encontra.
O fantástico ocupa o tempo da incerteza. Assim que se
escolhe uma das duas respostas, deixa-se o gênero do
fantástico para entrar em um gênero vizinho: o estranho
ou o maravilhoso. O fantástico é a vacilação
experimentada por um ser que não conhece mais que as
leis naturais, frente a um acontecimento aparentemente
sobrenatural. (TODOROV, 1981, p. 15-16)
Em sua obra Introdução à literatura fantástica, cita alguns outros teóricos
que comungam a mesma definição para o gênero, como o filósofo russo
Vladimir Soloviov, o escritor inglês Montague Rhodes James e, mais
recentemente, a autora alemã Olga Reimann. Mas, segundo Todorov, é
necessário ir além das definições que se limitam a repetir a presença do
“mistério”, do “inexplicável”, do “inadmissível”, que invade “a vida real” ou o
“mundo real” e acrescenta que “a definição carece ainda de nitidez, e é no
referente a este ponto onde devemos ir mais à frente que nossos
predecessores,” porque:
O fantástico implica pois uma integração do leitor com o
mundo dos personagens; define-se pela percepção
ambígua que o próprio leitor tem dos acontecimentos
relatados. Terá que advertir imediatamente que, com
isso, não temos presente tal ou qual leitor particular, real,
a não ser uma “função” de leitor, implícita ao texto (assim
como também está implícita a função do narrador). A
percepção desse leitor implícito se inscreve no texto com
a mesma precisão com que o estão os movimentos dos
personagens. (TODOROV, 1981, p. 19)
80
Todorov afirma que, para um texto ser categorizado como fantástico, ele
deve cumprir três condições, a saber: primeira, o texto deve obrigar o leitor a
considerar que o universo das personagens é real; segunda, no caso de uma
leitura ingênua, o leitor real se identifica com o personagem; e, por fim, é
importante que o leitor recuse tanto a interpretação alegórica como a
interpretação “poética”101. Outra afirmação do autor é que “quanto ao fantástico
em si, a vacilação que o caracteriza não pode, por certo, situar-se mais que no
presente”.
Seja como for, não é possível excluir de uma análise do
fantástico, o maravilhoso e o estranho, gêneros aos quais
se sobrepõe. Mas tampouco devemos esquecer que,
como o diz Louis Vax, “a arte fantástica ideal sabe
manter-se na indecisão” (TODOROV, 1981, p. 25)
A semelhança que existe entre o Fantástico e o Realismo Mágico reside
no fato de que ambas as correntes têm por objeto de observação a ocorrência
de situações irreais, ou inesperadas, ou inusitadas, no universo narrado. Ao
contrário do Fantástico, a presença do irreal, ou estranho, ou inesperado, ou
inusitado, não causa vacilação e é percebida como algo habitual ou dentro da
narrativa no Realismo Mágico.
O romance Cem anos de solidão, do escritor colombiano Gabriel García
Márquez, publicado em maio de 1967, é considerado por muitos críticos
literários como um exemplo para se compreender o Realismo Mágico, que
surgiu em um dos mais conturbados períodos da América Latina. Esse gênero
inaugura uma outra forma de contar a realidade, trazendo para a narrativa um
sem-número de sortilégios que animam todas as dimensões da imaginação,
traçando um diálogo com os sonhos, mitos, magia e religião de maneira
harmônica.
Vale observar que essa nova vertente literária já se mostrava ativa na
Itália, nos anos 1920 a 1940, com o escritor Massimo Bontempelli:
[...] o romance publicado em 1930 e traduzido para o
português em 1933 com o título Vida e morte de Adria e
de seus filhos, obra que expressa a abordagem do
realismo mágico empreendida pelo escritor.
(CHIARELOTTO, 2011, p. 14)
101
Idem, p. 19-20
81
Não pretendemos discorrer sobre as origens do Realismo Mágico, mas,
apenas, pontuar a sua presença e forte influência na literatura italiana e,
principalmente, na narrativa de Dino Buzzati.
Massimo Bontempelli e Curzio Malaparte lançam a revista “900”, e, no
primeiro exemplar, em setembro de 1926, escreve Bontempelli:
Il compito più urgente e preciso del secolo ventesimo,
sarà la ricostruzione del Tempo e dello spazio. Dopo
averli ricostituiti nella loro eternità, nella loro immobilità,
nella loro gelidezza, avremo cura di ricollocarli al posto
che avevano perduto, nelle tre dimensioni infinite, fuori
dell’uomo. Quando potremo credere di nuovo in un
Tempo e in uno Spazio oggettivi e assoluti, che si
allontanano dall’uomo verso l’infinito, sarà facile
riseparare la materia dallo spirito, e riprendere a
combinare le variazioni innumerevoli delle loro armonie. A
questo punto potremo con sicurezza affrontare il secondo
còmpito, che sarà il ritrovamento dell’individuo, sicuro di
sè, sicuro d’essere sè, di essere sè e non altri, sè con
alcune certezze e alcune responsabilità, con le sue
passioni particolari e una morale universale: e in cima a
tutto ritroveremo forse un Dio, da pregare o da
combattere.[...]
Tutto questo – ricostruzione della realtà esterna e della
realtà individuale – sarebbe antipatico e scorretto
chiederlo alla filosofia. Quale atroce crudeltà pretendere
che lei torni indietro e rinunci alle sue conquiste più
eteree! Tale còmpito sarà affidato all’arte, che è operosa
e modesta, non ha nè progressi nè sviluppi, non si evolve,
ma soltanto subisce qualche capricciosa e fatale crisi di
splendore o d’abbattimento.102
(BONTEMPELLI, 1938, p. 17-18)
102
“A tarefa mais urgente e necessária do século XX será a reconstrução do tempo e do espaço. Depois
de reconstituí-los na sua eternidade, na sua imutabilidade, na sua frieza, os teremos reconduzido ao
lugar outrora perdido, nas três dimensões infinitas, fora do homem. Quando pudermos acreditar de
novo num tempo e espaço objetivos e absolutos, que se distanciam do homem em direção ao infinito,
será fácil reparar a matéria do espírito e recomeçar a combinar as inumeráveis variações das suas
harmonias.
Neste ponto poderemos seguramente enfrentar a segunda tarefa, que será a retomada do indivíduo,
seguro de si, seguro de ser ele mesmo, de ser ele mesmo e não outros, ele mesmo com algumas
certezas e algumas responsabilidades, com as suas paixões particulares e uma moral universal: e acima
de tudo reencontraremos um Deus, rezando ou combatendo. [...] Diante disso – reconstrução da
realidade externa e da realidade individual – seria antipático e incorreto requerer à filosofia. Que
crueldade atroz pretender que ela retroceda e renuncie a suas conquistas mais etéreas! Tal tarefa será
confiada à arte, que é empenhada e humilde, não tem nem avanços nem desenvolvimento, não evolui,
mas apenas sofre de uma caprichosa e fatal crise de esplendor ou abatimento.”
82
A partir da citação acima, podemos observar que a representação do
tempo e do espaço, dentro da narrativa proposta pelo Realismo Mágico, é um
fator determinante para a compreensão dessa vertente literária na qual, em
nossa opinião, Dino Buzzati ocupa lugar de relevo. Em 1950, o autor lança o já
citado livro In quel preciso momento, uma coletânea de relatos breves nos
quais a fugacidade do tempo surge como sustentáculo da narrativa. Essa
abordagem permeia toda a obra do autor e pode ser verificada com maior
frequência em seus contos.
Muitos são os críticos literários que inserem a produção poética de
Buzzati na escola Surrealista ou Fantástica, mas nós não comungamos com
essa leitura, como já destacamos, pois acreditamos que o autor tenha, de fato,
um discurso mais afinado com as definições do Realismo Mágico, pois
Nas melhores obras de Dino Buzzati o apelo ao estranho
e ao fantasmático não resultam de uma alteração dos
traços da realidade, nem de pesquisas linguísticas e
estilísticas especiais: o autor se mantém no plano de uma
língua “média”, normalmente comunicativa, e de uma
representação que não altera as relações habituais entre
as coisas.103 (FERRONI, 2001, p. 232)
Começaremos, então, a discorrer sobre essa naturalidade na inserção
do elemento inusitado/inesperado, mas que não altera a “representação” do
real na narrativa de Dino Buzzati, a partir do conto "Una goccia" ("Uma gota").
2.3.1 – Uma gota de medo.
No conto “Una goccia”, também integrante da coletânea Sessanta
racconti, observamos uma estrutura narrativa próxima à utilizada no conto “Il
borghese stregato”.
O conto narra as experiências dos moradores de determinado prédio
que, diariamente, ao anoitecer, ouviam uma gota que, aparentemente, subia as
escadas. Esse verbo – subir – pode, num primeiro momento, induzir-nos a
103
Nelle migliori opere di Dino Buzzati il richiamo dello strano e del fantasmatico non risultano da
un’alterazione dei connotati della realtà, né da particolari ricerche linguistiche e stilistiche: l’autore si
tiene sul piano di una lingua “media”, normalmente comunicativa, e di una rappresentazione che non
altera i rapporti consueti tra le cose.
83
classificar o conto como Fantástico, uma vez que nos causa dúvida, gera a
incerteza que é peculiar a esse gênero. Ocorre que, em nenhum momento, ela
surge no discurso. Em nenhum momento há a dúvida quanto ao fato de que
uma gota, de fato, sobe. E isso, sim, vem bem marcado no texto:
E allora – insistono – sarebbe per caso una allegoria? Si
vorrebbe, così per dire, simboleggiare la morte? O
qualche pericolo? O gli anni che passano? Niente affatto,
signori: è semplicemente una goccia, solo che viene su
per le scale.104 (BUZZATI, 2007, p. 161)
Esse evento não causava nenhum estranhamento aos moradores do
prédio, porque eles sabiam que se tratava de uma gota que subia as escadas.
A certeza vinha da identificação do som que uma gota faz ao cair:
[...] Tic, tic, si ode a intermittenza. Poi la goccia si ferma
e magari per tutta la rimanente notte non si fa più viva.
Tuttavia sale. Di gradino in gradino viene su, a differenza
delle altre gocce che cascano perpendicolarmente, in
ottemperanza alla legge di gravità, e alla fine fanno un
piccolo schiocco, ben noto in tutto il mondo. Questa no:
piano piano si innalza lungo la tromba delle scale lettera
E dello sterminato casamento.105 (BUZZATI, 2007, p. 161.
Os grifos são nossos.)
Já em 1926, Massimo Bontempelli106 escrevera, no primeiro caderno do
periódico 900, que, quando nós conseguirmos crer novamente em um Tempo e
um Espaço objetivo e absoluto o suficiente para distanciar-se do homem em
direção ao infinito, será fácil alcançar o reencontro do indivíduo com si mesmo.
E acrescenta:
Perché non per niente l’arte del Novecento avrà fatto lo
sforzo di ricostruire e mettere in fase un mondo reale
esterno all’uomo. Lo scopo è di imparare a dominarlo, fino
a poterne sconvolgere a piacere le leggi. Ora, il dominio
dell’uomo sulla natura è la magia. Ed ecco spiegati certi
caratteri e certe velleità magiche che vediamo spuntare
104
E então – insistem – seria por acaso uma alegoria? Se queria, por assim dizer, simbolizar a morte? Ou
algum perigo? Ou os anos que passam? Nada disso, de fato, senhores: é simplesmente uma gota, só que
ela sobe as escadas. (TN)
105
Se ouve a intermitência. Depois a gota pára e tomara que por todo o resto da noite não apareça
mais. Contudo ela sobe. De degrau em degrau, ela sobe, diferentemente das outras gotas que caem
perpendicularmente em cumprimento à lei da gravidade, e, ao fim, fazem um pequeno estouro,
peculiar em todo o mundo. Esta não: devagar se eleva ao longo das escadas E do imenso prédio. (TN)
106
BONTEMPELLI, Massimo. Realismo magico e altri scritti sull’arte. Milano: Abscondita, 2006, p. 15
84
qua e là in quella <<atmosfera in formazione>> che non
ho inventata io, non non, ma che questo <<900>> si
lusinga di poter rappresentare e favorire.
[...]
Piuttosto che di fiaba, abbiamo sete di avventura. La vita
più quotidiana e normale, vogliamo vederla come un
avventuroso miracolo: rischio continuo, e continuo sforzo
di eroismi o di trappolerie per scamparne.107
(BONTEMPELLI, 2006, p. 16)
Dino Buzzati mantém esse acordo em sua narrativa exteriorizando o
tempo vivido por suas personagens através da utilização de recursos mágicos
dentro do discurso. A transgressão da Lei da gravidade no conto "La goccia"
suscita
um questionamento a
respeito da dualidade, ou pluralidade
comportamental humana. Os moradores, que durante a noite temiam e ficavam
à espreita para ouvir a gota passar, eram os mesmos que, durante o dia, saiam
à rua como se nada houvesse acontecido, como se nada os tivesse abalado.
Essa é uma realidade peculiar ao ser humano, que tem por hábito esconder os
seus medos e fraquezas na escuridão interna de si mesmo, e revelar a força e
coragem, que não tem, à luz do dia, que brilha aos olhos dos outros.
Da gota d'água que sobe os degraus passamos a um paletó enfeitiçado,
que também nos permite reconhecer esse traço de magia presente no real,
para uma sutil abordagem a respeito do tempo que passa, inexoravelmente.
2.3.2- Um paletó enfeitiçado
O conto “La giacca stregata” ("O paletó enfeitiçado") tem como
protagonista um homem não nominado no discurso, que encomendara um
paletó a um alfaiate chamado Alfonso Corticella. Quando o protagonista
recebeu a roupa pronta em seu escritório, não tardou a experimentá-la. É
107
Porque não é à toa que a arte do séc XX terá feito um esforço para reconstruir e lançar a era de um
mundo real externo ao homem. O papel é o de aprender a dominá-lo, até poder perturbar as leis com
prazer. Ora, o domínio do homem sobre a natureza é a magia. E eis explicados certos personagens e
certos caprichos mágicos que vemos despontar aqui e ali naquela << atmosfera em formação>> que
não foi inventada por mim, não, não, mas que esse século se lisonjeia em poder representar e favorecer.
Mais que de fábula, temos sede de aventura. A vida mais quotidiana e normal, queremos vê-la como um
aventureiro milagre: risco contínuo, e contínuo esforço de heroísmo ou de armadilhas para fugir. (TN)
85
nesse ponto que o autor insere o inusitado para abordar a nossa pequena
percepção da passagem do tempo na vida real. O protagonista descobre que,
inusitadamente, seu paletó produzia dinheiro, continuamente, que podia ser
retirado do bolso quantas vezes ele quisesse.
Col pretesto di non sentirmi bene, lasciai l’ufficio e
rincasai. [...] Chiusi le porte, abbassai le persiane.
Cominciai a estrarre le banconote una dopo l’altra con la
massima celerità, dalla tasca che pareva inesauribile.
Lavorai in una spasmodica tensione di nervi, con la paura
che il miracolo cessasse da un momento all’altro. Avrei
voluto continuare per tutta la sera e la notte, fino ad
accumulare miliardi. Ma a un certo punto le forze mi
vennero meno.108 (BUZZATI, 2007, p. 307)
A metáfora do bolso do paletó pelo qual surgia dinheiro e enriquecia
aquele que o usava com a voluptuosidade com que recolhia suas cédulas, se
aplica bem ao nosso homem de negócios moderno, que se enclausura no
próprio trabalho no afã de fazer fortuna. Seu castelo é o seu escritório, onde se
sente em casa e bem à vontade para acumular o vil metal.
A respeito dessa nova forma de ver a realidade que nos cerca,
Bontempelli diz, repetimos aqui, que “il compito più urgente e preciso del secolo
ventesimo è la ricostruzione del Tempo e dello Spazio”109 (BONTEMPELLI,
2006, p. 32) que, em sua concepção, havia adoecido por causa do cansaço e
exaurimento ocasionado pela rígida filosofia que impunha a definição de mundo
como sendo uma realidade bíblica. Foram dezenove séculos de uma visão
castradora que originou “tutte le malattie spirituali che hanno fatto degli anni
che ci precedono un periodo di paurosa decadenza.”110 (BONTEMPELLI, 2006,
p. 32)
108
Com o pretexto de não sentir-me bem, deixei o escritório e voltei para casa. [...] Fechei as portas,
abaixei as persianas. Comecei a extrair as cédulas uma após a outra com a máxima rapidez do bolso que
parecia inexaurível.
Trabalhei em uma espasmódica tensão de nervos, com o medo de que o milagre parasse de um
momento para outro. Gostaria de ter continuado por toda a noite e a madrugada, até acumular bilhões.
Mas em um dado momento as forças me faltaram. (TN)
109
A mais urgente tarefa do séc. XX é a reconstrução do Tempo e do Espaço. (TN)
110
As doenças espirituais que fizeram dos anos que nos precederam um período de assustadora
decadência. (TN)
86
Podemos afirmar que a narrativa de Dino Buzzati (re)significa o real
através do elemento mágico, desde que entendamos “por signo tudo aquilo que
represente ou substitua alguma coisa, em certa medida e para certos
efeitos”111, como escreveu Décio Pignatari. Ora, nada é por acaso em literatura.
Por exemplo, para uma cachorra ser batizada com o nome de Baleia em uma
obra que se intitula Vidas secas é porque para Graciliano havia um significado
nessa nominação que ia além de seus significantes e que só poderia ser
compreendido e apreendido pela sutileza da interpretação:
Ilustrando: no soneto Manhã, de Carlos Drummond de
Andrade, comparece uma palavra aparentemente
inexplicável: “caçadores”. Examinando o poema no seu
todo, com alguma atenção, vemos que ele se refere a
cenas passadas num hospital, ou, melhor, numa
maternidade. Podemos descobrir, então, que “caçadores”
quer dizer “caça-dores” – ou seja: os médicos,
enfermeiras e enfermeiros em sua azáfama peculiar.
Refiro-me a descobrir deliberadamente, pois a disposição
de descobrir nunca pode estar ausente da análise
literária; ela comanda mesmo todo o processo (descobrir
= desencobrir, revelar). (PIGNATARI, 2004, p. 26)
O terno, no conto "La giacca stregata", encerra um significado muito
maior que o de simples vestimenta masculina; é a personificação do
enriquecimento rápido, desmedido e ilícito do protagonista, o que podemos
observar na seguinte passagem:
[...] Poi mi affrettai in un magazzino di abiti fatti per
comprare un altro vestito, di stoffa simile; avrei lasciato
questo alle cure della cameriera; il “mio”, quello che
avrebbe fatto di me, nel giro di pochi giorni, uno degli
uomini più potenti del mondo, l’avrei nascosto in un posto
sicuro.112 (BUZZATI, 2007, p. 308)
A rapidez com que a personagem enriqueceu está muito bem marcada
na frase “nel giro di pochi giorni” e, também aí, temos uma sinalização de como
será a percepção da passagem do tempo aos olhos desse homem: frenética.
Em pouco tempo ele se transformara no homem mais poderoso do mundo, e a
licitude dos meios de aquisição dessa fortuna se faz suspeita pela necessidade
111
PIGNATARI, Décio. Semiótica e literatura. São Paulo: Ateliê Editorial, 2004, p. 26.
112
[...] Depois fui rapidamente rápido a uma loja de departamentos para comprar outro terno, com o
tecido parecido, para deixar aos cuidados da empregada; o “meu”, aquele que fez de mim, em poucos
dias, um dos homens mais poderosos do mundo, o escondi em um lugar seguro. (TN)
87
de esconder a fonte de renda (o terno mágico), utilizando-se de uma fachada (o
terno similar) para a sociedade (a empregada).
Vale pontuar que, em nenhum momento, observamos, no protagonista,
aquele “tempo da incerteza” de que tanto fala Todorov. Ao contrário, há um quê
de corriqueiro, de comum no fato em si. O questionamento feito pela
personagem foi tão natural quanto o seria se feito por um amante ao questionar
a palpabilidade da emoção ao sentir o beijo do ser amado:
Non capivo se vivevo in un sogno, se ero felice o se
invece stavo soffocando sotto il peso di una fatalità troppo
grande. Per la strada, attraverso l’impermeabile, palpavo
continuamente in corrispondenza della magica tasca.
Ogni volta respiravo di sollievo. Sotto la stoffa rispondeva
il confortante scricchiolio della carta moneta.113
(BUZZATI, 2007, p. 308)
O apalpar do casaco significa tanto quanto o nosso tradicional “me
belisca, para ver se eu estou sonhando!” que muitas pessoas dizem a quem
lhes está próximo, quando em uma situação extraordinária.
Bontempelli114 já afirmava, nos idos de 1930, que “la vera norma dell’arte
narrativa è questa: raccontare il sogno come se fosse realtà e la realtà come se
fosse un sogno.”115 Mas, sempre chega a hora de despertar, e, para a nossa
personagem, esse momento chegou quando ela começou a se dar conta de
que havia algo de ruim em seu sonho de fortuna fácil.
Poteva esistere un rapporto tra la mia improvvisa
ricchezza e il colpo brigantesco avvenuto quase
contemporaneamente? Sembrava insensato pensarlo. E
io non sono superstizioso. Tuttavia il fatto mi lasciò molto
perplesso.116 (BUZZATI, 2007, p. 308)
113
Não entendia se vivia em um sonho, se eu era feliz ou se estava sufocando sob o peso de uma imensa
fatalidade. Na rua, através do sobretudo, eu apalpava continuamente o local do bolso mágico. Sempre
respirava aliviado. Embaixo do pano respondia o confortante rangido do papel moeda. (TN)
114
BONTEMPELLI, Massimo. Realismo magico e altri scritti sull’arte. Milano: Abscondita, 2006, p. 51.
115
A verdadeira norma da arte narrativa é esta: contar o sonho como se fosse realidade e a realidade
como se fosse um sonho. (TN)
116
Poderia existir uma relação entre a minha repentina riqueza e o golpe criminoso ocorrido quase ao
mesmo tempo? Parecia insensato pensá-lo. E eu não sou supersticioso. Entretanto o fato me deixou
muito perplexo. (TN)
88
Essa foi a primeira vez que a personagem se deu conta de que, talvez, o
dinheiro que lhe chegava com tamanha facilidade pudesse ter saído de algum
outro lugar e mais, que, talvez, esse dinheiro estivesse destinado a suprir
necessidades que não eram as suas.
A partir desse momento, a personagem começou a perceber essas
coincidências. Sempre que tirava um montante do bolso, imediatamente depois
lhe vinha a notícia de alguma desgraça ocorrida tendo por causa o mesmo
valor que ele havia retirado do bolso. Primeiramente, foi o assalto a um carroforte, depois um incêndio que destruiu um cofre, que continha a mesma quantia
que ele havia ganho, e levou a óbito dois bombeiros.
E a consciência começou a atormentá-lo:
Quella notte non riuscii a chiudere occhio. Era il
pressentimento di un pericolo? O la tormentata coscienza
di chi ottiene senza meriti una favolosa fortuna? O una
specie di confuso rimorso? Alle prime luci balzai dal letto,
mi vestii e corsi fuori in cerca di un giornale.117 (BUZZATI,
2007, p. 308)
A partir de então, começou a verificar que havia uma simultaneidade nos
acontecimentos: todas as vezes que ele se utilizava dos benefícios financeiros
do bolso do paletó, imediatamente soava uma espécie de campainha em sua
consciência,
que
o
levava
à
ponderação
a
respeito
de
seu
ato.
Arrependimento? Fato é que tais conjecturas não eram suficientes, ainda, para
fazê-lo parar.
Senza lasciare il vecchio appartamento (per non dare
nell’occhio), mi ero in poco tempo comprato una grande
villa, possedevo una preziosa collezione di quadri, giravo
in automobili di lusso, e, lasciata la mia ditta per “motivi di
salute”, viaggiavo su e giù per il mondo in compagnia di
donne meravigliose.118 (BUZZATI, 2007, p. 309)
117
Aquela noite não consegui fechar os olhos. Era o pressentimento de um perigo? Ou a atormentada
consciência de quem obtém, sem méritos, uma fortuna fabulosa? Ou uma espécie de confuso remorso?
Ao raiar do dia pulei da cama, me vesti e corri pra rua em busca de um jornal. (TN)
118
Sem deixar o velho apartamento, para não dar na vista, em pouco tempo comprei uma mansão,
possuia uma valiosa coleção de quadros, andava em carros de luxo, deixei meu antigo emprego
alegando “problemas de saúde”, e viajava pelo mundo para cima e para baixo na companhia de belas
mulheres. (TN)
89
Nesse ponto, podemos observar que há uma certa displicência, por
parte do protagonista, com o fator tempo. Nesse pequeno parágrafo está
registrado o passar de anos, quiçá décadas, da vida dessa personagem. Dino
Buzzati, em poucas palavras, conseguiu marcar o espaço de realização da
personagem: o velho apartamento; justificar esse espaço: para não fazer-se
notado; elencar as aquisições: uma grande casa, uma preciosa coleção de
quadros, automóveis de luxo; pontuar o rompimento com o ético, no que diz
respeito à fonte de renda legal: deixou o emprego; e, por fim, pontuar as
motivações que impediam o nosso protagonista de libertar-se da volúpia do
prazer: viajou por todo o mundo em companhia de belas mulheres.
Buzzati realiza o que Bontempelli, ao escrever sobre a missão da arte no
século XX, chamou de:
Restaurare, dunque, il tempo e lo spazio, nella loro
eternità e infinità immodificabili, matrici di tutte le leggi
fisiche e morali su cui l’uomo deve foggiare la propria
vita.119 (BONTEMPELLI, 2006, p. 33)
A essa altura, o conto já está perto do fim, assim como as
arbitrariedades do protagonista que, em um lampejo de lucidez, decidiu colocar
um ponto final naquele frenesi:
In macchina raggiunsi una recondita valle delle Alpi.
Lasciai l’auto su uno spiazzo erboso e mi incamminai su
per un bosco. Non c’era anima viva. Oltrepassato il
bosco, raggiunsi le pietraie della morena. Qui, fra due
giganteschi macigni, dal sacco da montagna trassi la
giacca infame, la cosparsi di petrolio e diedi fuoco. In
pochi minuti rimase che la cenere.120
(BUZZATI, 2007, p. 310)
Queimar o paletó parecia a coisa mais certa a ser feita naquele
momento, para interromper as ocorrências desastrosas que sucediam ao
enriquecimento ilegítimo. Mas, em nenhum momento, esse ato foi motivado
pelo arrependimento dos danos causados por esse mesmo fato: “nonostante lo
119
Restaurar, então, o tempo e o espaço na sua eternidade e infinitude imodificável, matriz de todas as
leis físicas e morais sobre as quais o homem deve forjar a própria vida. (TN)
120
De carro cheguei a um vale escondido nos Alpes. Deixei o automóvel em um espaço gramado e subi
por um bosque. Não tinha alma viva ali. Ultrapassando o bosque alcancei a encosta pedregosa da
montanha. Aqui, entre dois gigantescos pedregulhos, tirei da mochila o infame paletó, o embebi de
querosene e ateei fogo. Em poucos minutos só havia cinzas. (TN)
90
spavento provato, ridiscesi al fondo valle con un senso di sollievo. Libero,
finalmente. E ricco, per fortuna.”121 Ao contrário, o que lhe movia era a
sensação de leveza por, teoricamente, se livrar de um escolho que o impedia
de viver sua fortuna sem culpa. Era como se o casaco, e não ele, fosse o
responsável por tudo.
Depois disso, voltou para o lugar onde havia estacionado e qual não foi
a sua surpresa ao constatar que o carro já não estava mais lá. Desaparecera.
O mesmo se deu com todos os bens que adquirira através dos préstimos do
casaco.
Ele voltou a ter e ser o que era antes da aquisição do terno, mas com
um pequeno acréscimo: tinha a consciência de que havia contraído uma dívida
que, um dia, lhe seria cobrada.
E so che non è ancora finita. So che un giorno suonerà il
campanello della porta, io andrò ad aprire e mi troverò di
fronte, col suo abbietto sorriso, a chiedere l’ultima resa
dei conti, il sarto della malora.122 (BUZZATI, 2007, p. 311)
Mais uma vez, o recurso mágico para falar do real se faz presente na
narrativa. Há uma certa tradição da humanidade em responsabilizar Deus ou o
diabo por seus dissabores e, a esse respeito, mais uma vez, Bontempelli já
escrevia em 1929 que:
Il diavolo ha bisogno che l’uomo non creda a se stesso e
al mondo, alla materia e allo spirito, alla terra e al cielo;
cioè ha bisogno che l’uomo non creda alla dualità: perché
dalla dualità nasce il concetto di punto di partenza e punto
d’arrivo, di mezzo e di fine: peccato e salvazione.
[...]
La nostra è dunque un’impresa contro il diavolo. La storia
è tutta fatta da una serie di imprese contro il diavolo. C’è
dunque qualche possibilita che la nostra storia sia
un’impresa storica.123 (BONTEMPELLI, 2006, p. 34)
121
Apesar do susto, desci o vale com uma sensação de alívio. Livre, finalmente. E rico, por sorte. (TN)
122
E sei que ainda não acabou. Sei que um dia a campainha da porta tocará, eu irei abrir e estarei de
frente com o seu abjeto sorriso, a pedir o último faturamento, o alfaiate da desgraça. (TN)
123
O diabo precisa que o homem não acredite em si mesmo e no mundo, na matéria e no espírito, na
terra e no céu; isto é, ele precisa que o homem não acredite na dualidade: porque da dualidade nasce o
conceito de ponto de partida e de chegada, de meio e de fim: pecado e salvação.
[...]
91
O supracitado texto foi escrito em resposta aos que ele chamou de
“nefasti cretini d’Italia”, quando escarnearam de sua afirmação de que o grande
desafio da arte do século XX seria a reconstrução do tempo e do espaço, uma
vez que, até então, a representação artística que se tinha era de um mundo
como realidade bíblica.
A conclusão a que chegamos é que Buzzati capta e reproduz
plenamente as ideias e ideais do Realismo Mágico em sua narrativa, trazendo,
sempre, o tempo como elemento deflagrador dos questionamentos morais,
intelectuais e sociais sobre a realidade da vida humana, como seguiremos a
ilustrar no conto "Cacciatori di vecchi" ("Caçadores de velhos").
2.3.3- Caçadores do tempo perdido.
Em "Cacciatori di vecchi", temos o relato da história de uma noite na
vida de Roberto Saggini, um homem de quarenta e seis anos, bonito, com
cabelos grisalhos que, durante um passeio de carro com sua jovem namorada,
resolveu parar para comprar cigarros em uma tabacaria, enquanto a jovem
ficou a esperá-lo no carro. A saga da personagem começou no momento em
que saiu do estabelecimento.
Saggini vivia em uma época na qual aquele que completasse quarenta
anos de idade passava a ser considerado decrépito e dispensável para a
sociedade, principalmente para os jovens, como podemos observar na citação
a seguir:
[...] Un risentimento cupo eccitava i nipoti verso i nonni, i
figli verso i padri. Di più: si erano formate delle specie di
club, di compagnie, di sette, dominate da un odio
selvaggio verso gli anziani, come se questi fossero
responsabili delle loro scontentezze, malinconie,
delusioni, infelicità, così tipiche, da che mondo è mondo,
della giovinezza.124 (BUZZATI, 2007, p. 299)
O nosso negócio, então, é contra o diabo. A história é toda feita de uma série de negócios contra o
diabo. Então, há alguma possibilidade de que o nosso seja um negócio histórico. (TN)
124
[...] Um ressentimento triste incitava os netos contra os avós, os filhos contra os pais. Mais ainda:
foram formadas algumas espécies de clube, de companhia, de seitas, dominadas por um ódio selvagem
92
À medida que a noite avançava, aumentava a perseguição aos velhos e,
ao voltar à rua, viu que jovens caçadores já se encontravam nas imediações.
Precavido, Roberto Saggini voltou ao bar para pedir abrigo, mas o
estabelecimento já estava fechado. Correu para um espaço onde havia um
parque de diversões, na esperança de esconder-se em uma das tendas, em
vão. Era seguido de perto pelo perigoso Sergio Régora e seu bando de
malfeitores, dentre os quais se encontrava o próprio filho de Roberto, o jovem
Ettore.
Depois de algumas horas nessa caçada funesta, sentindo-se cansado
de tanto correr e se esconder, Roberto, em dado momento, pensando que
havia conseguido despistar seus perseguidores, saiu do local onde se
escondera. Nesse momento, foi golpeado no rosto e teve de recomeçar a fugir.
Mas, depois de tanto tempo de fuga, ele se sentia esgotado. Em sua fuga,
chegou até um despenhadeiro e, por já não ter aonde ir, voltou-se e,
finalmente, ficou frente a frente com Sergio Régora. Na impossibilidade de fugir
e sabendo o destino que teria se o enfrentasse, Roberto deu um passo para
trás e caiu da encosta.
I due si trovarono di fronte, sul breve crinale erboso.
Régora non ebbe neanche bisogno di colpirlo. Per
scansarsi, Saggini fece un passo indietro, non trovò
l’appoggio, precipitò all’indietro giù per la diruta scarpata,
tutta pietre e rovi.125 (BUZZATI, 2007, p. 303)
O meliante Sergio Régora saiu do local acompanhado por seus
asseclas. A certa altura, o grupo se separou, cada um seguindo o seu caminho,
já que o dia estava raiando.
Se n’andarono in gruppetto, commentando la caccia fra
sguaiato scoppi di risa. Quanto era durata, però. Nessun
vecchio aveva dato tanto da fare. Anche loro erano
contra os anciãos, como se eles fossem responsáveis pelos seus descontentamentos, melancolias,
desilusões, infelicidades, típicas, desde que o mundo é mundo, da juventude. (TN)
125
Os dois se encontraram de frente, no pequeno cume gramado. Régora não teve sequer a necessidade
de golpeá-lo. Para esquivar-se, Saggini deu um passo atrás, não encontrou apoio, caiu na encosta
íngreme toda de pedras e espinhos. (TN)
93
stanchi. Chissà perché, ma erano stanchissimi. Il
gruppetto si sciolse.126 (BUZZATI, 2007, p. 303)
Régora continuou apenas com sua namorada e, quando estavam
chegando a uma “piazza illuminata intensamente”127, ela foi a primeira a
perceber alterações havidas na aparência deles.
“Ma che cos’hai sulla testa?” Chiese lei.
“E tu? Anche tu.”
Si avvicinarono, esaminandosi a vicenda.
“Dio, che faccia che hai. E come mai tutto quel bianco sui
capelli?”
“Anche tu, anche tu hai una faccia spaventosa.”128
(BUZZATI, 2007, p. 304)
Nesse momento, o rapaz se aproximou de uma vitrina para se observar
e percebeu que havia se transformado em um velho de mais de quarenta anos.
Estava com os cabelos brancos, a pele enrugada e dois dentes a menos. Sua
namorada já se havia ido e, enquanto ele tentava elaborar o que estava
acontecendo, eis que ouviu gritos ao longe; eram jovens gritando: “Dàgli, dàgli
al vecchio!”
Régora cominciò a correre con tutte le sue forza. Ma
erano poche. La giovinezza, la spavalda e spietata
stagione, sembrava che dovesse durare tanto, sembrava
che non dovesse finire mai più. E a bruciarla era bastata
una notte. Adesso non restava più niente da spendere.
Adesso il vecchio era lui. E veniva il suo turno.129
(BUZZATI, 2007, p. 304)
O conflito de gerações que observamos diariamente está perfeitamente
representado nesse conto, que se inicia em uma “sera di maggio con l’aria
126
Foram embora em grupo, comentando a caça entre vulgares explosões de riso. Quanto tempo teria
durado, porém. Nenhum velho havia dado tanto o que fazer. Eles também estavam cansados. Quem
sabe por que, mas estavam cansadíssimos. O grupo se desfez. (TN)
127
Praça intensamente iluminada (TN)
128
“Mas o que você tem na cabeça?” perguntou ela.
“E você? Você também.”
Aproximaram-se examinando-se.
“Deus, que cara é essa. E como todo esse cabelo branco?”
“Você também, você também está com uma cara assustadora.” (TN)
129
Régora começou a correr com todas as suas forças. Mas eram poucas. A juventude, a desafiadora e
impiedosa estação parecia que duraria tanto, parecia que nunca mais terminaria. E para queimá-la
bastou uma noite. Agora não tinha mais nada a perder. Agora o velho era ele. E chegara a sua vez. (TN)
94
tiepida e viva della primavera”130. A juventude primaveril pela qual todo ser
humano passa e crê infinita, “strade tutte deserte”131 como representação de
todas as possibilidades de caminho a trilhar e a sensação de eternidade.
Mais uma vez o elemento mágico se faz presente na narrativa, para
colocar o real em evidência e, novamente, sem causar a dúvida ou
estranhamento característico do fantástico. Acreditamos que Roberto Saggini e
Sergio Régora sejam a mesma pessoa em diferentes fases da mesma vida. Até
as iniciais dos nomes sugerem uma ordem inversa, uma espécie de
sinalizadores do Passado e do Presente. A personagem dispendeu sua vida
promovendo caçadas aos velhos e nem sequer se deu conta de que o seu
próprio tempo havia passado, em sua narrativa. Se, na busca de um culpado,
ao perguntarmos quem causou a derrocada da personagem e obtivéssemos
por resposta: o Tempo, não seria de todo inverdade, uma vez que é ele o
catalisador da conscientização do protagonista em relação à sua própria
existência, atuando como um “inconsciente do texto”,
[...] Assim como o sonho, segundo Freud, é o guardião do
sono, poderíamos dizer que o texto é o guardião da
fantasia, que ele incorpora, anexa, manipula para fazer
dela sua substância própria, arrancando-a assim da
vivência do autor. Então, a crítica psicanalítica só tem
possibilidade de atingir seu verdadeiro objeto se colocar,
de saída, a hipótese de um inconsciente do texto.132
(BELLEMIN-NOëL, 1983, p. 94)
O tempo, nos contos de Buzzati, é esse agente silencioso e ativo em sua
inalterabilidade, uma vez que encerra a identidade narrativa que deflagra todas
as dores, angústias e questionamentos das personagens.
Podemos observar que a escolha do tempo enquanto temática principal
de sua narrativa permeia toda a sua obra abordando os mais diversificados
aspectos de dor e angústia por ele causadas. Mas, a grande marca que esse
tempo deixa é o medo de sua proximidade com a morte. Nós, seres humanos,
somos essencialmente insatisfeitos, como afirma o filósofo Luiz Felipe Pondé:
130
Em uma tarde de maio com o ar morno e vivo da primavera. (TN)
131
Todas as estradas desertas. (TN)
132
Bellemin-Noël, Jean. Psicanálise e literatura. São Paulo: Cultrix, 1983.
95
O ser humano é um ser estruturalmente marcado pela
angústia de que parece que tem alguma coisa errada
com ele, a começar pelo fato de que a gente deveria viver
mais do que vive, ter mais saúde do que tem, dar mais
certo nas coisas que a gente faz, adiar o que não é bom
e, por exemplo, finalmente encontrar aquela pessoa com
quem você possa viver para sempre e eternamente feliz
com ela.133
A passagem do tempo associada ao medo da morte é o tema do
próximo conto, "Contestazione globale" ("Contestação global").
2.3.4- Contestação global contra a "terrível senhora".
No conto “Contestazione globale”, incluído na coletânea Le notti difficili,
último livro publicado por Dino Buzzati em vida, observamos o tempo através
da dupla ótica novo/velho.
É narrada a história de um grupo de aposentados, liderados por Modesto
Svampa, que decidiu impedir que a morte, chamada por eles de “la maledetta
signora”, “la terribile signora”, “la malcapitata”134 seguisse seu tenebroso roteiro
ceifando vidas.
Dal teatro Magnum, sede dell’assemblea, il corteo mosse
verso le sette di sera. Ordinati, impassibili, stringendosi
l’uno all’altro, a passi lenti ma sicuri. Misteriosamente
spuntarono dalla fiumana cartelli e striscioni: “Basta con
la morte! Viva la vera contestazione globale! Via per
sempre la maledetta signora!”. Arrivarono fotografi,
reporters, telecronisti coi camioncini azzurri. La notizia
corse per il paese, per il mondo.135
(BUZZATI, 2002, p. 66)
133
https://www.youtube.com/watch?v=6xt-k2kkvb4 acesso em 13/03/2015.
134
A maldita senhora, a terrível senhora, a malfadada. (TN)
135
Lá pelas sete horas da noite o cortejo deixou o teatro Magnum, local da assembleia. Em ordem,
impassíveis, um ao lado do outro, com passos lentos mas firmes. Misteriosamente apareceram na
multidão cartazes e faixas: “Chega de morte! Viva a verdadeira contestação global! Fora para sempre
com a maldita senhora!” Chegaram fotógrafos, repórteres, a televisão em suas caminhonetes azuis. A
notícia correu o país e o mundo. (Tradução de Fulvia M. L. Moretto)
96
Esse conto aborda de maneira breve e pontual as agruras a que o
homem estaria fadado caso a morte, de fato, se aposentasse, e, ao mesmo
tempo, acena de maneira sutil à aceitação inevitável de sua chegada.
Causa curiosidade por se tratar de um grupo de aposentados que se
rebelam contra a morte na recusa de morrer, uma vez que o termo
“aposentado”, por si só, carrega um estigma de inutilidade e ociosidade senil
que, desde aquela época, já não correspondia à realidade. Ao longo dos anos,
a perspectiva de vida aumentou quase que proporcionalmente à vivacidade dos
idosos. Vemos, nesse conto, uma crítica social pelo aparente conflito de
gerações que se estabelece quando a morte, impedida de cumprir seu ofício,
não mata mais nenhum dos velhos e doentes, ocasionando, assim, uma
sobrecarga econômica colocada sem aviso prévio sob a responsabilidade dos
jovens.
Anos mais tarde, em 2005, o autor português José Saramago publica o
livro As intermitências da morte, que aborda o mesmo tema:
No dia seguinte ninguém morreu. O facto, por
absolutamente contrário às normas da vida, causou nos
espíritos uma perturbação enorme, efeito em todos os
aspectos justificado [...] passar-se um dia completo, com
todas as suas pródigas vinte e quatro horas [...] sem que
tivesse sucedido um falecimento por doença, uma queda
mortal, um suicídio levado a bom fim, nada de nada, pela
palavra nada. [...] A passagem do ano não tinha deixado
atrás de si o habitual e calamitoso regueiro de óbitos,
como se a velha átropos da dentuça arreganhada tivesse
resolvido embainhar a tesoura por um dia. (SARAMAGO,
2005, p. 11)
José Saramago faz uma longa abordagem sociológica a respeito da
situação difícil e insustentável na qual o mundo estaria mergulhado, caso
ninguém mais morresse. Tecendo uma crítica a vários níveis da sociedade
como o governo, a igreja, a publicidade, os hospitais e familiares dos doentes,
que já não morriam, o autor vai mais além do que o sucinto conto de Dino
Buzzati, que estabelece um diálogo entre o desejo universal de viver e a
necessidade premente de morrer, em tese, ao fim das forças físicas.
Verso le undici e mezzo arrivò in volo, da Samarcanda,
con la velocità del pensiero, la terribile signora. Aveva da
riscuotere, quella notte, nell’ospedale, una ventina di vite.
Era naturalmente camuffata da dottoressa, vestita
97
sobriamente, ma con una certa distinzione. Tentò
l’ingresso principale. Qui, per sua sfortuna, stava lo
Svampa, il quale la riconobbe al primo sguardo. Venne
dato l’allarme. La malcapitata fu respinta sotto una
pioggia di vituperi.136 (BUZZATI, 2002, p. 67)
A figura da morte, disfarçada de médica, não causou nenhum impacto
com sua chegada. Foi logo reconhecida pelo protagonista e de maneira bem
natural. Mais uma vez não se percebe a presença do estranhamento frente a
esse acontecimento mágico, muito pelo contrário. A chegada da morte é
aguardada por todos, principalmente pelos mais jovens, que se sentiam
preocupados com o colapso econômico que poderia ocorrer, caso os idosos
conseguissem mesmo impedir o trabalho da morte.
O conto termina com Svampa, já sem forças para lutar contra tamanha
pressão dos jovens e, também, sem disposição para animar seus
companheiros. Resolvendo aceitar o inevitável, chamando a morte
de
condessa, partiu com ela.
Pode-se, em um primeiro momento, considerar que a abordagem que
Buzzati faz sobre o tempo privilegie a morte ou nos leve a uma suposição de
autobiografia, ao menos no que diz respeito ao livro Le notti difficili, que foi
escrito quando o autor já tinha conhecimento de que sofria de um câncer e se
encontrava em estado terminal. Ocorre que nossa tese tem mostrado que a
tônica da abordagem do tempo na obra do nosso autor se dá muito mais para
falar da vida do que da morte propriamente dita. E essa sutileza na abordagem
do tempo de vida e morte, que habita em cada um de nós, é o que faz com que
o leiamos como um autor que se utiliza do mágico, do inusitado, do inesperado,
do incomum para tratar das banalidades às quais não atentamos no decorrer
de nossa existência e que são de primordial importância para a manutenção de
uma vida, em toda a sua plenitude, dentro daquilo que chamamos tempo, e
cujo relógio biológico trazemos conosco desde o nosso nascimento e ao qual
chamamos de memória. Daí, podermos afirmar que a grande e grave questão
136
Lá pelas onze e meia chegou voando, de Samarcanda, com a velocidade do pensamento, a terrível
senhora. Devia arrecadar naquela noite, no hospital, umas vinte vidas. E, naturalmente, vinha disfarçada
de médica, vestindo roupas sóbrias, mas com uma certa distinção. Tentou a entrada principal. Aqui,
para sua desgraça, estava Svampa, que a reconheceu ao primeiro olhar. Foi dado o alarme. A indesejada
foi afastada sob uma chuva de impropérios. (Tradução de Fulvia M. L. Moretto)
98
do homem buzzatiano não é morrer e, sim, deixar de viver. Em todos os
sentidos que se puder atribuir à palavra vida. E seja qual for a atribuição de
significado que dermos a essa palavra, teremos sempre a tangenciá-la,
obrigatoriamente, o elemento tempo, seja trazido pelas mãos de Mnemósina,
deusa da memória na mitologia grega, ou pelas de Clio, musa da história e da
criatividade, filha de Mnemósina e Zeus.
Um conto que pode ilustrar essa nossa afirmação intitula-se “Dal
medico” ("No médico") e será analisado no próximo item.
2.3.5- No médico: o morto em vida
Em "Dal medico" ("No médico") é narrada a história de um homem que,
após completar quarenta anos de idade, passou a se consultar com seu
médico a cada seis meses. Mas, um dia ele foi ao médico especialmente
porque se sentia bem, muito bem.
Após as sondagens médicas de praxe em uma consulta de rotina, o
doutor Trattori perguntou-lhe sobre as preocupações que habitualmente o
atormentavam:
Piuttosto dimmi, le tue fisime, le tue classiche fisime? Gli
incubi? Le ossessioni? Mai conosciuto uno più tormentato
di te. Non vorrai mica farmi credere...137. (BUZZATI, 2002,
p. 150)
E obteve por resposta: "Piazza pulita. Sai quello che si dice niente?
Neanche il ricordo. Come se fossi diventato un altro".138 (BUZZATI, 2002, p.
150)
A partir desse momento, o médico começou a indagar a respeito da vida
cotidiana do paciente: o que ele vinha fazendo, como estava se sentido ao
fazer o que fazia, como eram as suas noites de sono, se ele andava assistindo
137
Diga-me. As suas quimeras, as suas famosas quimeras? Seus pesadelos? As obsessões? Nunca
conheci alguém mais atormentado do que você. Não quer me fazer acreditar... . (Tradução de Fulvia M.
L. Moretto)
138
Acabou. Sabe o que significa nada? Nenhuma lembrança. Como se fosse outra pessoa. (Tradução de
Fulvia M. L. Moretto)
99
TV, torcendo por um time ou engajado em um partido político, se continuava a
dirigir, enfim, eram inúmeras as perguntas, aparentemente banais. A todas as
indagações o paciente respondeu de maneira positiva, dentro dos padrões de
normalidade pré-estabelecidos para a dualidade saúde/doença.
Depois de certo tempo, nosso protagonista se preocupou com o
tamanho do questionamento do médico e começou a inferir se não estaria
Trattori a averiguar uma possível doença detectada a partir de suas respostas.
Decidiu, então, perguntar o que ou se havia algo errado com ele. E o médico
lhe respondeu: “una cosa semplicissima. Sei morto.”139
O protagonista não conseguiu entender o que o médico queria dizer com
aquela afirmação e insistiu em perguntar se, talvez, Trattori não quisesse dizer
que ele estava para morrer de uma doença incurável. O que também não faria
muito sentido, já que o médico acabara de afirmar que ele estava com a saúde
ótima e, até onde se sabe, essa afirmativa invalida, até certo ponto, o
diagnóstico de morte. A resposta de Trattori não poderia ser mais simples:
Sano, sì. Sanissimo. Però morto. Ti sei adeguato, ti sei
integrato, ti sei omogeneizzato, ti sei inserito anima e
corpo nella compagine sociale, hai trovato l’equilibrio, la
tranquillità, la sicurezza. E sei un cadavere.140 (BUZZATI,
2002, p. 152)
A partir desse momento, o médico começou a elencar toda uma série de
pequenas feridas que culminaram com a morte do paciente, ainda em vida e
gozando de perfeita saúde:
Mica tanto traslato. La morte fisica è un fenomeno eterno
e dopo tutto eccessivamente banale. Ma c’è un’altra
morte, che qualche volta è ancora peggio. Il cedimento
della personalità, la assuefazione mimetica, la
capitolazione all’ambiente, la rinuncia a se stessi... Ma
guardati in giro. Ma parla con la gente. Ma non ti accorgi
che sono morti almeno il sessanta per cento? E di anno in
anno il numero cresce. Spenti, piallati, asserviti. Tutti che
139
Algo muito simples. Você está morto. (TN)
140
É sim. Perfeitamente sadio. Porém, morto. Você está adaptado, integrado, você se homogeneizou,
inseriu-se de corpo e alma no complexo social, encontrou o equilibrio, a tranquilidade, a segurança. E
você é um cadáver. (Tradução de Fulvia M. L. Moretto)
100
desiderano le stesse cose, che fanno gli stessi discorsi,
tutti che pensano le stesse identiche cose. Schifosa civiltà
di massa.141 (BUZZATI, 2002, p. 152)
Uma frase atribuída ao doutor Albert Schweitzer reflete bem o caso
narrado nesse conto: “A tragédia não é quando o homem morre. A tragédia é o
que morre dentro dele enquanto ele ainda está vivo.” A angústia que habitava a
vida do protagonista, que o médico chegou a chamar de “bendita”, e o
inquietava diante da vida era o que o mantinha vivo pelo simples fato de
questioná-la. A partir do momento em que ele se rendeu às mesmices da vida
cotidiana da sociedade que o cercava, a partir do momento em que ele se
enquadrara naqueles gostos, comportamentos e ideais, deixou de viver as
expectativas e passou à morte da homogeneidade.
Non rammollito. Morto. Ci sono oggi nazioni imense, tutte
fatte di morti. Centinaia di milioni di cadaveri. E lavorano,
costruiscono, inventano, si danno terribilmente da fare,
sono felici e contenti. Ma sono dei poveri morti. Fatta
eccezione per una minoranza microscopica che gli fa fare
quello che vuole, amare quello che vuole, credere in
quello che vuole. Come gli zombi delle Antille, i cadaveri
resuscitati dagli stregoni e mandati a lavorare nei campi.
E in quanto alle tue sculture, è proprio il successo che hai
e che una volta non avevi, a dimostrare che sei morto. Ti
sei conformato, ti sei dimensionato, ti sei aggiornato, ti sei
messo al passo, ti sei tagliato le spine, hai ammainato le
bandiere, hai dato le dimissioni da pazzo, da ribelle, da
illuso. E perciò adesso piaci al grande pubblico, il grande
pubblico dei morti.142 (BUZZATI, 2002, p. 153)
141
Não é bem uma imagem. A morte física é um fenômeno eterno e, afinal de contas, excessivamente
banal. Mas há outra morte, que algumas vezes é até pior. O desmoronamento da personalidade, o
hábito mimético, a capitulação ao ambiente, a renúncia a si mesmo... Olhe ao seu redor. Fale com as
pessoas. Não percebe que estão mortas, pelo menos 60 por cento? E a cada ano cresce esse número.
Apagadas, niveladas, submissas. Todos desejam a mesma coisa, dizem as mesmas coisas, todos pensam
as mesmas e idênticas coisas. Nojenta civilização de massa. (Tradução de Fulvia M. L. Moretto)
142
Não imbecilizado. Morto. Há hoje nações imensas, todas feitas de pessoas mortas. Centenas de
milhões de cadáveres. E trabalham, constróem, inventam, criam terríveis ocupações, estão felizes e
contentes. Mas são uns pobres mortos. Com a exceção de uma minoria microscópica que os obriga a
fazerem o que quer, a amarem o que quer, a acreditarem naquilo que quer. Como os zumbis das
Antilhas, os cadáveres ressuscitados pelos feiticeiros e enviados para trabalhar nos campos. E, quanto às
suas esculturas, é exatamente o sucesso que você tem, e que antigamente não tinha, que prova que
você está morto. Você transformou-se, dimensionou-se, atualizou-se, parou suas arestas, arrimou suas
bandeiras, perdeu sua loucura, sua rebelião, sua ilusão. E assim, agora agrada ao grande público, o
grande público dos mortos. (Tradução de Fulvia M. L. Moretto)
101
Ao se “tornar vítima da indigência mental e ficar impermeável à
renovação do seu conhecimento”143, como disse o filósofo Mário Sérgio
Cortella, o nosso protagonista deixou de viver sua vida de forma plena. É como
se a loucura, a rebelião e a ilusão fossem os nutrientes que garantiam a sua
vitalidade. Ao passo que, quando ele se amalgamou àquilo que a todos
agradava, deixou automaticamente de viver. Essa morte do protagonista vem
sendo anunciada desde o primeiro parágrafo do conto através das marcações
temporais feitas pelo autor.
Logo no primeiro parágrafo, o autor menciona o tempo segundo a
periodicidade com que o protagonista vai ao médico, para, na sequência,
pontuar o tempo de vida dessa personagem: quarenta anos. Sinaliza o tempo
de convivência, quando se refere ao médico como sendo um velho amigo e
situa o tempo enquanto estação do ano: outono, o que por si só já evidencia o
decantar de sua juventude, posto que o outono é a estação da colheita, logo,
por analogia ao amadurecimento, temos a velhice do corpo.
O conto trata da dualidade vida/morte quando o elemento tempo, em
muitas das suas faces, se faz presente e conduz a narrativa da primeira à
última linha. E o narrador o encerra dizendo:
Ora si è fatta veramente notte. E la bella caligine
industriale ha il colore del piombo. Attraverso i vetri, la
casa di faccia si riesce a distinguere appena.144
(BUZZATI, 2002, p. 153)
O estranhamento causado pela sensação de não pertencimento a tudo
que nos cerca tanto pode conduzir ao mergulho no lugar comum a todos, como
no conto “Dal medico”, como também pode nos levar à uma angustiante
solidão, como veremos a seguir.
143
https://www.youtube.com/watch?v=3rzvOqrtWIc (acesso em 10-03-2015) Mário Sérgio Cortela
144
Agora a noite caiu por completo. E a bela caligem industrial tem cor de chumbo. Através dos vidros,
consegue-se distinguir apenas vagamente o edifício em frente. (Tradução de Fulvia M. L. Moretto)
102
2.3.6- "Solidão" e seus integrantes.
O conto “Solitudini” (Solidão) é composto por seis contos integrantes:
"La parete", "La confessione", "L'autostrada", "Il sepolcro di Atilla", "Il
registratore" e "I giorni perduti".
O primeiro conto integrante, “La parete”, narra a história de um homem
que saira com seu irmão e um amigo para escalar um paredão de “ghiaccio,
roccia, sabbia, terra, vegetazione e infissi artificiali.”145 O protagonista descreve
as habitações incrustadas nas rochas da grande encosta:
Ai lati, sulle due precipitose quinte di roccia che
chiudevano il canalone, finestre e porte si aprivano e
chiudevano, le donne di casa dandosi un gran daffare per
pulire, lucidare, mettere ordine. Ci vedevano benissimo,
naturalmente, vicini come eravamo, ma sembrava che
non se ne interessassero affatto.146
(BUZZATI, 2002, p. 10)
A encosta era totalmente ocupada por escritórios, casas, restaurantes
onde as pessoas moravam, trabalhavam e se divertiam. Eles continuavam a
escalada, enquanto essas mesmas pessoas seguiam suas vidas indiferentes
ao fato de eles estarem subindo o paredão, ainda que elas os vissem passar.
A un certo punto ci trovammo alle prese con un
pericolosissimo muro fatto di pietroni tenuti insieme da
erbacce e radici. Tutto mollava, Stratzinger propose di
tornare. Noi due fratelli insistendo, lui disse che allora era
meglio slegarsi. Tanto, se uno cadeva, gli altri due, non
potendosi in alcun modo affrancare, lo avrebbero seguito
fatalmente nella catastrofe.147 (BUZZATI, 2002, p. 10)
145
Gelo, rocha, areia, terra, vegetação e estruturas artificiais. (Tradução de Fulvia M. L. Moretto)
146
Dos dois lados, nos dois íngremes picos de rocha que fechavam a ponta, abriam-se e fechavam-se
janelas e portas, com as donas-de-casa em grande azáfama, limpando, lustrando, arrumando. Viam-nos
com toda a nitidez, é claro, estávamos tão perto, mas parecia que, absolutamente, não despertávamos
seu interesse. (Tradução de Fulvia M. L. Moretto)
147
Em um dado momento encontramo-nos diante de uma parede perigosíssima, feita de grandes pedras
ligadas por ervas daninhas e raízes. Tudo cedia. Stratzinger propôs que voltássemos. Como meu irmão e
eu insistíssemos, disse então que era melhor nos desamarrarmos. Assim, se um de nós caísse, os outros
dois, impedidos de se libertar, seguiriam fatalmente na catástrofe. (Tradução de Fulvia M. L. Moretto)
103
Esse é o momento em que a personagem rompeu com os padrões
preestabelecidos e optou por permanecer onde estava. A partir daí, ele
começou a cair.
Purtroppo, sotto il peso, il telaio accennò a piegarsi
cedendo. Era chiaro che stava per rompersi. Non sarebbe
costato niente, a quelli là dell’aperitivo, tendermi una
mano e salvarmi. Ma oramai non si occupavano più di
me.
Mentre cominciavo a precipitare, nel silenzio sacro della
montagna, li potei udire distintamente che discorrevano
del Vietnam, del campionato di calcio, del Contagiro.148
(BUZZATI, 2002, p. 10)
O segundo conto integrante, intitulado “La confessione”, apresenta a
história da senhora Laurapaola, uma mulher que se encontrava acamada por
causa de um mal-estar que vinha sentindo há algumas semanas. O médico lhe
assegurara que não se tratava de nada grave e os familiares já não se
importavam com ela, por crê-la uma maníaca. Esse era o panorama que o
padre Quarzo encontrou, certa tarde, quando foi visitá-la, após suas rotineiras
visitas aos focômelos.
Logo de início, o padre perguntou pela “simpatica vecchietta” que
sempre o recepcionava e Laurapaola respondeu que a havia demitido porque
ela já estava muito velha e sua casa não era um asilo. A partir daí, a
protagonista começou a contar para o religioso as suas atividades durante o
último verão, ao que Quarzo ouvia sério e em silêncio. Contara sobre “il viaggio
in Spagna, le corride, il matrimonio della cognatina di Arezzo, poi la crocciera in
barca, giù fino a Cipro e all’Anatolia.”149
O padre ouvia tudo atentamente e já não se via sorriso em seu rosto:
148
Infelizmente, com o peso, o caixilho começou a dobrar-se, cedendo. Era evidente que estava a ponto
de romper-se. Não teria custado nada aos que estavam tomando aperitivos estender-me a mão, salverme. Mas agora não se preocupavam mais comigo.
Enquanto eu começava a cair, no silêncio sagrado da montanha, pude ouvi-los distintamente: falavam
do Vietnã, do campeonato de futebol, do Cantagiro. (Tradução de Fulvia M. L. Moretto)
149
[...] a viagem à Espanha, as corridas, o casamento da jovem cunhada em Arezzo, depois o cruzeiro de
navio até Chipre e a Anatólia. (Tradução de Fulvia M. L. Moretto)
104
Parlava, parlava, la nuova villa a Porto Ercole, le lezione
di yoga (“Anche spiritualmente, padre, ci si sente
trasformati, sa?”), la prossima partenza per Saas Fee,
l’ultima asta di quadri, parlava parlava, si era fatta tutta
accesa in volto.150 (BUZZATI, 2002, p. 10)
Em dado momento, interrompendo o discurso da mulher, ele disse:
<< Figliola,>> disse alla fine << lei ha parlato abbastanza,
non vorrei si stancasse>> si alzò lungo lungo. <<Ora le
darò l’assoluzione.>>
<<Come?>>
<<Non la vuole, figlia mia?>>
<<Oh no, padre... Grazie anzi... Ma non capisco...>>
<<In nomine Patris et Filii>> cominciò padre Quarzo, il
volto severo. E anche congiunse le mani.
Così Laurapaola seppe che le toccava morire.151
(BUZZATI, 2002, p. 10)
O terceiro conto integrante intitula-se “L’autostrada” e narra a história de
um homem que dirigia sozinho, pela auto-estrada do Sol, em uma tarde de
julho. Durante seu trajeto, ele começou a observar a sua volta e percebeu que,
estranhamente, os carros que passavam por ele estavam literalmente vazios.
Ele começou a se sentir desconfortável e confuso e questionou-se:
L’impressione fu paralizzante. Che mi avesse preso un
malore? Che fossi colto da allucinazioni? Col batticuore
rallentai, fermandomi sulla corsia esterna, all’estremo
ciglio. E discesi, frastornato. In quell’istante passò una
multipla carica sul tetto di bagagli, compresa una
carrozzina da neonato. Una famigliola, probabilmente,
che andava in villeggiatura. Ma la famiglia, dentro, non
c’era.152 (BUZZATI, 2002, p.13-14)
150
Falava, falava, a nova casa de campo em Porto Ercole, as aulas de yoga (“Sabe, padre, a gente se
sente transformada, até mesmo espiritualmente”), a próxima partida para Saas Fee, o último leilão de
quadros, falava, falava, falava, seu rosto refletia a animação. (Tradução de Fulvia M. L. Moretto)
151
- Minha filha – disse finalmente – já falou bastante, não quero que se canse – levantou-se, muito alto.
– Agora vou lhe dar a absolvição.
- Como?
- Não quer, minha filha?
- Oh, não, padre... Aliás, obrigada... Mas não estou entendendo...
- In nomine Patris et Filii... – começou padre Quarzo, com o rosto severo. E ela também juntou as mãos.
Foi assim que Laurapaola soube que deveria morrer. (Tradução de Fulvia M. L. Moretto)
152
A impressão foi paralisante. Estaria sofrendo de um mal súbito? Estaria tendo alucinações? Com o
coração batendo, diminuí a marcha, parei na última pista da direita. E desci atordoado. Naquele
momento passou um carro com o capô coberto de bagagens, até um carrinho de bebê. Provavelmente,
105
A personagem olhava ao seu redor e não via ninguém, nenhuma casa,
fato que o levou à seguinte conclusão: “la campagna dormiva assopita nel
sole.”153 Em meio a essas observações e questionamentos, ele percebeu um
cão e o reconheceu como sendo o seu, Moro, que havia deixado em casa há
dois dias, velho e doente:
Moro! Moro! Chiamai ancora. Ma lui non rispondeva più.
Tremolando, cominciò a girare su se stesso come fanno
appunto i cani prima di accucciarsi. Si accucciò infatti,
crollando, quase le ultime forze lo avessero lasciato.154
(BUZZATI, 2002, p. 14)
Enquanto se detinha nas lembranças de seu cão ao mesmo tempo em
que o via morrer, a personagem foi surpreendida pelo barulho de motocicletas,
atrás dele. Eram dois policiais que o advertiram a respeito do perigo de se
estacionar fora do acostamento. Perguntaram-lhe se estava se sentindo bem,
ao que o protagonista respondeu pondo termo à conversa. A partir desse
momento, é como se tudo tivesse voltado ao normal e ele pode, de novo,
observar as pessoas no interior de seus carros. Quando ele procurou o cão
com o olhar, o animal já não estava lá. A personagem encerra a narrativa com
uma observação entre parênteses:
(Poi seppi che in quell’ora precisa Moro era andato a
morire, solo soletto, sulla riva del Piave, più di duecento
chilometri lontano.)155 (BUZZATI, 2002, p. 14)
O quarto conto integrante de “Solitudini” se chama “Il sepolcro di Attila” e
narra a trajetória de vida do arqueólogo explorador Giovani Tassol, na busca do
“leggendario sepolcro di Attila”. A narrativa é completamente pontuada com os
nomes das pessoas que o ajudaram, ou não, ao longo se sua vida acadêmica e
uma pequena família saindo de férias. Mas a família não estava lá dentro. (Tradução de Fulvia M. L.
Moretto)
153
O campo dormia, entorpecido, ao sol. (Tradução de Fulvia M. L. Moretto)
154
Moro! Moro! Chamei novamente. Mas ele não respondia mais. Tremendo, começou a girar sobre si
mesmo, justamente como fazem os cães antes de se deitarem. Deitou-se realmente, quase caindo,
como se as últimas forças o tivessem abandonado. (Tradução de Fulvia M. L. Moretto)
155
(Soube mais tarde que, exatamente naquela hora, Moro fora morrer absolutamente só, na margem
do Piave, a mais de 200 quilômetros de distância) (Tradução de Fulvia M. L. Moretto)
106
pessoal e, invariavelmente, todos esses nomes são seguidos da frase entre
parênteses "(che non c’è più)":
Le vicissitudini accademiche, alleviate dal costante
generoso appoggio del magnifico rettore professore Tullio
Brosada (che non c’è più), ebbero termine con la caduta
della monarchia. Dopodiché, divenuto cattedratico, egli
organizzò la prima vera spedizione per la ricerca del
sepolcro di Attila, affiancandosi due valorosi giovani
studiosi, Max Serantini e Gianfranco Sibili (che non ci
sono più).156 (BUZZATI, 2002, p. 16)
A personagem segue a sua trajetória na busca do sepulcro de Átila
elencando todos aqueles que passaram pela sua vida e que já não mais vivem.
E, finalmente, ele encontrou o sepulcro de Átila.
Il capo dello stato gli ha fatto pervenire un caloroso radio
gratulatorio. I giovani assistenti, i tecnici, i lavoranti si
preparano a festeggiarlo là sul posto, con mezzi di
fortuna. C’è allegria.157 (BUZZATI, 2002, p. 16)
Todos comemoram sua descoberta, o felicitam, se alegram, entretanto
ele está só,
Seduto su una pietra, si guarda intorno. Alberi, alberi,
alberi. Nient’altro. È solo.
“Il registratore” é o nome do penúltimo conto integrante e narra a
lembrança de um homem não nominado. Ele se recorda de quando tentava
gravar uma música do rádio, Rei Arthur de Purcell, e sua mulher fazia tanto
barulho, de toda espécie, inviabilizando a sua gravação.
Le aveva detto (a bassissima voce) l’aveva supplicata sta
zitta ti prego, il registratore sta registrando dalla radio non
far rumore lo sai che ci tengo, sta registrando Re Arturo
di Purcell, bellissimo, puro. Ma lei dispettosa
156
As vicissitudes acadêmicas, suavisadas pelo constante e generoso apoio do magnífico reitor,
professor Tullio Brosada (já falecido) acabaram com a queda da monarquia. Depois, tendo-se tornado
catedrático, organizou a primeira verdadeira expedição em busca do sepulcro de Átila, tendo a seu lado
dois jovens corajosos e estudiosos, Max Sarantini e Gianfranco Sibili (já falecidos). (Tradução de Fulvia
M. L. Moretto)
157
O presidente enviou-lhe uma calorosa mensagem de congratulações. Os jovens assistentes, os
técnicos, os operários se preparam para festejar in loco, com os meios disponíveis... Há alegria.
Sentado numa pedra, olha ao redor. Árvores, árvores, árvores. Mais nada. Está só. (Tradução de Fulvia
M. L. Moretto)
107
menefreghista carogna su e giù con i tacchi per il solo
gusto di farlo imbestialire e poi si schiariva la voce e poi
tossiva (apposta) e poi si ridacchiava da sola e
accendeva il fiammifero in modo da ottenere il massimo
rumore.158 (BUZZATI, 2002, p. 17-18)
Ocorre que ela se cansou dele e o abadonou. Restaram-lhe apenas as
recordações daqueles incômodos que tanto lhe faziam falta.
Quel ticchettìo su e giù, quei tacchi, quelle risatine (la
seconda specialmente), quel raschio in gola, la tosse.
Questa sì, musica divina.159 (BUZZATI, 2002, p. 18)
Passava seu tempo a gravar músicas, sem importar-se com a mulher e,
por isto, só sente a falta que ela lhe faz quando é abandonado. Perdeu seus
dias com as gravações, não soube, porém, registrar que perdia, também, sua
mulher. Dias perdidos também é tema do próximo conto.
Finalmente, o sexto e último conto integrante, “I giorni perduti” ("Os dias
perdidos") nos traz a experiência vivida por Ernst Kazirra alguns dias após a
aquisição de sua “suntuosa mansão”.
Kazirra voltava para casa quando viu um homem saindo pela lateral de
seu muro, levando uma caixa nos ombros:
Non fece in tempo a raggiungerlo prima che fosse partito.
Allora lo inseguì in auto. E il camion fece una lunga
strada, fino all’estrema periferia della città, fermandosi sul
ciglio di un vallone.160 (BUZZATI, 2002, p. 18)
158
Dissera-lhe (bem baixinho) suplicara-lhe cale a boca por favor, o gravador está gravando a música do
rádio, não faça barulho, sabe que faço questão, está gravando o Rei Artur de Purcell, belíssimo, puro.
Mas ela implicante sem dar bola para nada, safada, de um lado para outro, batendo os saltos só para ter
o gostinho de enfurecê-lo, depois pigarreava e depois tossia (de propósito) e depois dava risadinhas e
acendia o fósforo fazendo o maior barulho possível [...] (Tradução de Fulvia M. L. Moretto, 1986, p. 31)
159
Aquele tac-tac de um lado para outro, aqueles saltos, aquelas risadinhas (especialmente a segunda)
aquele pigarro na garganta, a tosse. Isso sim, é música divina. (Tradução de Fulvia M. L. Moretto, 1986;
p. 31)
160
Não consegui alcançá-lo. Então tomou o carro para seguí-lo. E o caminhão rodou por muito tempo
até a extrema periferia da cidade, parando à beira de um profundo vale. (Tradução de Fulvia M. L.
Moretto, 1986, p. 32)
108
O homem tirou a caixa do caminhão e atirou-a no barranco já cheio de
outras tantas iguais. Kazirra aproximou-se dele e perguntou o que significavam
todas aquelas caixas, ao que teve por resposta:
Quello lo guardò e sorrise: <<Ne ho ancora sul camion,
da buttare. Non sai? Sono i giorni.>>
<<Che giorni?>>
<<I giorni tuoi.>>
<<I miei giorni?>>
<<I tuoi giorni perduti. I giorni che hai perso. Li aspettavi,
vero? Sono venuti. Che ne hai fatto? Guardali, infatti,
ancora gonfi. E adesso...>>161 (BUZZATI, 2002, p. 19)
Ernst olhou para o imenso monte de caixas e desceu para abrir uma
delas. Abriu a primeira e viu lá dentro o dia em que sua noiva partira e ele não
tentou impedir. Abriu a segunda e viu o dia em que seu irmão estava internado,
muito mal, aguardando a visita que ele não fizera porque estava viajando a
negócios. Abriu ainda uma terceira para lá encontrar o seu fiel mastim, que o
esperava há dois anos no portãozinho da casa velha e pobre que ele não mais
visitara.
Si sentì prendere da una certa cosa qui, alla bocca dello
stomaco. Lo scaricatore stava diritto sul ciglio del vallone,
immobile come un giustiziere.
<<Signore!>> gridò Kazirra. <<Mi ascolti. Lasci che mi
porti via almeno questi tre giorni. La supplico. Almeno
questi tre. Io sono ricco. Le darò tutto quello che vuole.>>
Lo scaricatore fece un gesto con la destra, come per
indicare un punto irraggiungibile, come per dire che era
troppo tardi e che nessun rimedio era più possibile. Poi
svanì nell’aria, e all’istante scomparve anche il gigantesco
cumulo delle casse misteriose. E l’ombra della notte
scendeva.162 (BUZZATI, 2002, p. 19-20)
161
O homem olhou e sorriu:
- Ainda tenho mais no caminhão, para jogar fora. Não sabe? São os dias.
- Que dias?
- Os seus dias.
- Os meus dias?
- Os seus dias perdidos. Os dias que você perdeu. Você esperava por eles, não esperava? Eles vieram. E o
que você fez com eles? Olhe, estão intatos, ainda cheios. E agora... (Tradução de Fulvia M. L. Moretto,
1986, p. 32)
162
Sentiu alguma coisa aqui, na boca do estômago. O carregador mantinha-se ereto à beira do vale
profundo, imóvel como um justiceiro.
- Senhor! – gritou Kazirra. – Ouça-me. Deixe-me ficar com pelo menos estes três dias. Suplico-lhe. Pelo
menos estes três. Sou rico. Dou tudo o que quiser.
109
Não podemos parar o tempo, nem fazê-lo voltar atrás. Nem os últimos
três dias, como queria Kazirra, nem o último minuto.
O Professor Doutor Clóvis de Barros Filho, professor de Ética na Escola
de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo afirma, em uma de
suas aulas163, que não há como tratar de temporalidade sem o viés da ética e
que
Os espaços sociais são, antes de mais nada, espaços de
definição de rítmos de vida. [...] não tem como ter uma
ética, senão a partir de uma temporalidade, de uma certa
percepção da cadência do mundo [...] a tua
temporalidade, enquanto percepção do passar do tempo,
vai depender demais de como você vive e de como você
convive, e é por isso que a percepção do tempo é uma
questão ética.164
Acreditamos que seja esse um dos questionamentos que Buzzati suscita
em sua narrativa. Em Solitudini, a tônica, como o título sugere, fica por conta
da solidão que, invariavelmente, nos tocará a todos mais cedo ou mais tarde. A
experiência de Stratzinger muito se assemelha à de Gaspari, posto que ambos
são vistos pelos que os cercam, porém não são percebidos por essas pessoas.
Gaspari sentia-se morrer “e nessuno di quanti passavano si accorgeva che nel
mezzo del petto egli portava confitta una freccia”165. O mesmo aconteceu com
Stratzinger que, enquanto tentava desesperadamente evitar a queda, dando
um salto para segurar-se, ouve: “Agile, però, per la sua età! commentò
sorridendo un giovanotto affacciato all’apertura della grotta”166, como se o
tempo fosse desacelerando à medida em que envelhecemos quando, na
O carregador fez um gesto com a mão direita, como se indicasse um ponto inatingível, como se quisesse
dizer que era tarde demais e que nenhum remédio seria possível. Depois esvaiu-se no ar, e, nesse
momento, desapareceu também o gigantesco monte de caixas misteriosas. E caía a sombra da noite.
(Tradução de Fulvia M. L. Moretto, 1986, p. 33)
163
https://www.youtube.com/watch?v=2jBZxv8Wfr8
164
https://www.youtube.com/watch?v=2jBZxv8Wfr8 (acesso em 14/04/2015)
165
E nenhum dos que passavam por ali se davam conta de que no meio de seu peito tinha uma flexa
(TN)
166
Ágil, porém, para a sua idade! Comentou sorrindo um jovem que estava próximo à abertura da gruta.
(TN)
110
verdade, somos nós a reduzir o rítmo e a causar espanto quando isso não
acontece.
Percebemos a futilidade de uma vida vazia de significados morais,
quando observamos os lamentos da senhora Laurapaola em contraposição à
vida que tinha, assim como percebemos a ambição que cega aquele que se
utilizava dos benefífios fornecidos pelo paletó feito pelo senhor Alfonso
Corticella. A respeito de ética e tempo, mais uma vez nos valeremos da fala do
professor Clóvis:
[...] O que pode ter a ver uma reflexão sobre a
temporalidade, a ver com a ética? [...] mas não há dúvida
que se a vida é, antes de mais nada, finita, se a vida
humana tem como principal atributo a finitude, isto quer
dizer que a temporalidade é a condição primeira de
reflexão sobre o melhor jeito de viver. Em outras palavras
eu não posso prescindir de uma reflexão sobre o tempo
se eu estou querendo discutir o melhor jeito de viver,
porque viver é, antes de mais nada, é viver uma trajetória
que termina, portanto uma trajetória finita, portanto uma
trajetória temporal definida [...]167
O melhor jeito de viver para essas personagens foi o usufruir de tudo
quanto a vida lhes poderia oferecer no que tange ao prazer em suas mais
variadas representações. E essa foi a maneira utilizada por Buzzati para falar
que essa busca pelo prazer não nos basta, porque não nos plenifica sem o
elemento ético que sempre baterá às portas de nossa consciência travestido de
memória. Mais que isso, ele afirmará que o homem se expõe tanto em tantas
aventuras e desmandos exatamente por saber que a morte está, o tempo
inteiro, à sua espreita e
La cosa maggiormente temuta qui è la cosa
maggiormente desiderata. Di là si capisce che è la morte
che dа gusto alle cose della vita. Altrimenti la vita sarebbe
la cosa più spaventosa e cretina che ci sia. Quando
l’uomo sogna l’immortalitа, sogna la propria assoluta e
cretina infelicità. Che cosa sarebbe il correre in
automobile se non ci fosse dietro la morte? L’alpinismo,
che cosa sarebbe? L’esplorazione, che cosa sarebbe?
Che senso avrebbe avuto l’andare al Polo Nord se non ci
fosse stato il pericolo di lasciarci la pelle? Sarebbe stata
167
https://www.youtube.com/watch?v=2jBZxv8Wfr8 (acesso em 14/04/2015)
111
la cosa più ebete di questa terra. Non c’é dubbio. E, nello
stesso amore, c’è fondamentalmente l’idea della morte,
intesa nella forma più semplice, cioè di atto destinato a
procreare una creatura che dovrà morire.168
E a parte que cabe à memória e à consciência de tempo mal vivido,
confere a Dorian Gray a decisão de queimar o quadro, assim como a
personagem buzzatiana queima o terno.
O que sobrou do passado para nós? [...] o passado só
existe para nós, o passado só existe em nós, o passado
só existe nas nossas lembranças, o passado só existe na
memória e é por isso que o passado, que não existe no
mundo, existe em nós [...] O passado é um não ser, mas
o passado é ser para nós quando lembramos dele [...] A
memória nada mais é do que o passado no presente.169
A propósito dessa afirmação, nos ocorre uma citação de Cícero, que
Frances A. Yates, autora já citada nesta tese, faz em seu livro A arte da
memória, quando trata do processo técnico da manutenção da memória:
A invenção é o exame aprofundado de coisas
verdadeiras (res) ou de coisas verossímeis para tornar
uma causa plausível; a disposição é arranjar em ordem
as coisas já descobertas; a elocução é adaptar as
palavras (verba) convenientes às (coisas) inventadas; a
memória é a percepção firme, pela alma, das coisas e
das palavras; a pronunciação é o controle da voz e do
corpo para se adequar à dignidade das coisas e das
palavras. (YATES, 2010, p. 25. Os grifos são nossos.)
168
O que é imensamente temido é, ao mesmo tempo, imensamente desejado. Mais tarde se entende
que é a morte que dá gosto às coisas da vida. Do contrário a vida seria a coisa mais assustadora e cretina
que poderia existir. Quando o homem sonha a imortalidade, ele sonha exatamente a absoluta e cretina
infelicidade. O que seria a corrida de carros se não houvesse a morte às costas? O alpinismo, o que
seria? A exploração, o que seria? Que sentido haveria em ir ao Pólo Norte se não existisse o perigo de
deixar lá a própria pele? Teria sido a coisa mais idiota dessa terra. Não existe dúvida. E, mesmo com o
amor, tem fundamentalmente a ideia da morte, entendida na forma mais simples, isto é , de um ato
destinado a procriar um ser que deverá morrer. (TN) http://rinabrundu.com/2012/01/30/aquarantanni-dalla-morte-tutto-sullopera-del-giornalista-dino-buzzati-traverso-and-more-o-quasi/
(acesso 21/05/2015)
169
https://www.youtube.com/watch?v=2jBZxv8Wfr8 (acesso em 14/04/2015)
112
Ora, essa lembrança que torna vivo o nosso passado no presente nada
mais é que “a recuperação do conhecimento ou da sensação ocorrida” 170 em
dado momento de nossa existência. E é essa lembrança que as personagens
acessam e que algumas tentam recuperar sem conseguir, posto que o passado
não é.171
[...] Quem pode negar que as coisas pretéritas já não
existem? Mas está ainda na alma a memória das coisas
passadas. E quem contesta que o presente carece de
espaço, porque passa num momento? Contudo, a
atenção perdura, e através dela continua a retirar-se o
que era presente. Potanto, o futuro não é um tempo
longo, porque ele não existe: o futuro longo é apenas a
longa expectação do futuro. Nem é longo o tempo
passado porque não existe, mas o pretérito longo outra
coisa não é senão a longa lembrança do passado.
(AGOSTINHO, 2004, p. 337)
Essa afirmação de Santo Agostinho nos remete à personagem Ernst
Kazirra, que teve diante dos olhos a insólita oportunidade de, literalmente, tocar
em seu passado, posto que cada um de seus dias vividos estava contido em
uma caixa, e, além disso, pôde, por alguns poucos instantes, reexperienciá-los
através de outra ótica. Mensurou diante dos olhos a personificação da
quantidade de dias perdidos nos quais poderia ter feito outras escolhas que
não aquelas que lá estavam encaixotadas, como um “presente” que não tinha
sido usado (ou vivido). E, ainda assim, não pôde impedir o esvanecimento de
seu longo passado, no presente.
Também no conto integrante “Il registratore” a personagem retoma essa
ideia de personificação do passado, mas aqui o sentido a experienciar essa
revivescência é a audição. A personagem, não nominada, tentava gravar Il Re
Arturo, de Purcell, pelo rádio, mas a sua mulher não parava de fazer barulho
causando, assim, ruído na gravação. Acreditamos que a ária172 abaixo citada,
retirada da supramencionada ópera, reflita bem o sentimento da personagem:
170
YATES, Frances A. A arte da memória. Campinas: Editora da Unicamp, 2010, p. 54.
171
AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 2004; p. 323.
172
https://www.youtube.com/watch?v=MVWseQd7EmE (acesso em 01/05/2015)
113
What power art thou
What power art thou, who from below,
Hast made me rise unwillingly and slow,
From beds of everlasting, everlasting snow
See'st thou not how stiff, how stiff and wondrous old,
Far unfit to bear the bitter cold
I can scarcely move or draw my breath,
I can scarcely move or draw my breath,
Let me, let me freeze again
Let me, let me freeze again to death
Let me, let me freeze again to death173
Assim como o Gênio do Frio, nossa personagem também foi despertada
do seu isolamento a contragosto, mesmo assim não resistiu aos encantos do
Cupido, no caso, a sua esposa e, apesar de conseguir conquistar a sua tão
desejada liberdade insular, a sua audição continuara prisioneira daqueles
“rumori, quei versi, quella tosse, quei suoni adorati, supremi. Che non esistono
più, non esisteranno mai più.”174 Mas o Gênio do Frio tinha a missão de salvar
e a nossa personagem de salvar-se.
A propósito das faces através das quais se pode observar o passado,
citaremos, mais uma vez, Jean Bellemin-Noël:
A magia, também chamada a “onipotência dos
pensamentos”. Compondo há muito com o princípio de
realidade, o adulto civilizado, cujos próprios olhos são
desprovidos de fantasia e de gratuidade, não conhece
senão dois lugares onde sopra ainda a liberdade do nãosenso, onde seu espírito crítico tolera ser neutralizado: o
humor e a arte. (BELLEMIN-NOËL, 1983, p. 33)
173
Que feitiço tens tu
Que feitiço tens tu, que de baixo,
Fizeste-me despertar involuntária e lentamente,
Do leito da neve eterna, eterna?
Não vês que, rígido e excessivamente velho,
Incapaz de suportar o frio penetrante,
Mal consigo me mover ou respirar,
Mal consigo me mover ou respirar?
Deixa-me, deixa-me congelar novamente
Deixa-me, deixa-me congelar novamente até a morte,
Deixa-me, deixa-me congelar novamente até a morte. (Texto extraído da ópera King Arthur, libreto de
autoria de John Dryden e música de Henry Purcell. Tradução de Leandro da Costa, que é formado em
Canto pela UNIRIO e integra o coro do Theatro Municipal do Rio de Janeiro, além de ser professor dos
cursos de Canto e Canto Coral nos Seminários de Música Proarte).
174
Barulhos, aqueles resmungos, aquela tosse, aqueles sons adorados, supremos. Que não existem
mais, nunca mais existirão. (Tradução de Fulvia M. L. Moretto, 1986; p. 32)
114
Essa magia que nos é proibida em função da nossa suposta maturidade
é a mesma de que se servem os grandes escritores. É através dela que
podemos viajar para o mundo da fantasia, do inusitado, da ficção sem
reservas. É essa magia de que Buzzati se utiliza para compor a sua narrativa.
No conto integrante “Il sepolcro di Attila”, o autor nos apresenta a
trajetória da vida do pesquisador Giovani Tassol. Durante toda a narrativa a
personagem elenca um sem-número de pessoas que atravessaram seu
caminho ao longo dos anos e, invariavelmente, todos já estão mortos. Essa
conscientização de solidão também se dá com a personagem do conto
integrante “L’autostrada” que, enquanto dirigia seu carro, começou a perceber
que nos outros automóveis não havia ninguém, ainda que os carros estivessem
em movimento. A sua única percepção é com relação ao seu bom e velho cão,
que deixara doente em casa.
Yates nos diz “que todas as coisas se apagam com o tempo, mas o
tempo em si é perene e imortal por causa da lembrança”175. Ora, a personagem
não tinha porque se lembrar daqueles desconhecidos que passavam na
estrada, mas esse apagar não denota o desaparecimento temporal dos fatos e
sim a sensação de solidão, ainda que em meio a uma multidão de pessoas. A
relação com o cão se dá por conta da fidelidade inigualável de que é capaz
esse animal. Essa fidelidade permitiu que a personagem o visse, o percebesse,
mas a falta de afinidade com o mundo o impedira de ver as outras pessoas.
Em Solitudini Dino Buzzati nos apresenta algumas das muitas faces da
solidão que nos habita, ainda que não queiramos admitir. Em dado momento,
todos os protagonistas, das mais variadas maneiras, sentiram a presença
desse elemento solitário chamado tempo. É a percepção do tempo o elemento
que deflagra o sentimento de solidão, de perda, de morte e o inesperado surge
como o elemento catalisador da consciência temporal nas personagens. Não
há “marcas de interlocução entre a personagem-narrador e as personagensnarratário, envolvendo o leitor no jogo ficcional, transmitindo-lhe a dúvida”176,
175
YATES, 2010, p.64.
176
GARCIA, Flavio; SANTOS, Rodrigo de Moura; BATISTA, Angélica Maria Santana, in O insólito na
narrativa ficcional: Questões de gênero literário – o Maravilhoso e o Fantástico, 2006; texto
115
ou questionamentos por parte das personagens frente às ocorrências
incomuns, tampouco há o instante de hesitação de que nos falou Todorov.
O inesperado, ou inusitado, surge na narrativa de Dino Buzzati como
algo natural e perfeitamente possível dentro da realidade na qual estão
inseridas as personagens.
apresentado no III Congresso de Letras da UERJ – São Gonçalo (http://www.flaviogarcia.pro.br/textos/
acesso em 27/04/2015)
116
CONSIDERAÇÕES FINAIS
"Compositor de destinos / Tambor de todos os ritmos..."177, o tempo dá
cadência e perpassa a farta narrativa do autor italiano Dino Buzzati, que
motivou a pesquisa que apresentamos nesta tese.
Para dar suporte à análise que empreendemos da narrativa de Buzzati,
dentre todos os autores que, ao longo da história, debruçaram-se sobre a
incansável e árdua tarefa de teorizar sobre tempo, optamos pelas reflexões
elaboradas por Norbert Elias, Santo Agostinho e Paul Ricoeur, principalmente,
sem desconsiderar, no entanto, outros estudiosos não menos importantes.
Nossa tese apresentou dois objetivos principais: o primeiro deles
propunha uma análise com vistas a comprovar a hipótese de que a categoria
tempo subjuga as demais categorias - personagem e espaço - dentro da
narrativa de Buzzati e serve de gatilho para as reflexões das personagens.
Para tanto, compusemos nosso corpus com contos nos quais esse
sobrepujamento fica evidente, como no caso de Cacciatori di vecchi, em que a
personagem se surpreende com o próprio reflexo envelhecido, por não ter
percebido a inevitável passagem do tempo.
O tempo, às vezes, passa de forma sutil na narrativa de Buzzati, como
pudemos observar, por exemplo, no conto I giorni perduti, no qual a
personagem só percebe que havia deixado de viver alguns momentos
importantes em sua vida, fazendo, muitas vezes, escolhas equivocadas,
quando já era demasiadamente tarde. Outras vezes, o tempo passa de forma
fatal, como em I vecchi clandestini.
As estratégias narrativas utilizadas por Dino Buzzati para representar as
marcas que o avançar dos anos pode deixar, sejam elas leves ou intensas, nos
aproximam das experiências reais que são comuns a todo ser humano. Ou
seja, Buzzati elabora sua narrativa de maneira que a realidade da vida comum
mantenha-se válida, mesmo quando insere um elemento mágico para provocar
177
Caetano Veloso. "Oração ao tempo". 1979. Álbum Cinema Transcendental.
117
em nós a reflexão; mais ainda, esse elemento mágico faz parte da realidade
narrada.
O segundo objetivo desta tese foi demonstrar que a narrativa de Buzzati
se avizinha aos conceitos do Realismo Mágico, como o entendia Massimo
Bontempelli, mais do que ao Surrealismo e ao Fantástico como afirma a maior
parte dos críticos e estudiosos de sua obra. Por isto, colocamos em relevo a
presença do inesperado, ou inusitado, nos contos buzzatianos, que surge sem
causar estranhamento ou dúvida nas personagens, porque essa presença se
dá para ressaltar as dores e conflitos vividos pelo homem comum em seu
cotidiano, premissas da corrente de Bontempelli.
Dino Buzzati tece seus contos de maneira leve, se consideramos o
conceito estabelecido por Italo Calvino em Lezioni Americane178; os recursos
que utiliza para a inserção do elemento mágico como representação do real
surgem de maneira a provocar questionamentos das mais variadas ordens. A
versatilidade do autor nos conduz a reflexões que vão desde os conceitos mais
complexos da física quântica até a uma simples brincadeira infantil, tratados
sempre com a mesma profundidade.
Essa leveza na representação do real também se estende à inserção do
elemento mágico na narrativa, como pudemos observar, por exemplo, no conto
Una goccia, no qual o movimento ascendente feito pela gota causa medo e
espanto nos moradores do edíficio, ao mesmo tempo que é perfeitamente
aceita por todos que a ouvem subir as escadas. O mesmo se dá no conto La
giacca stregata, em que a magia do paletó, mais que estranhamento, desperta
o sentimento de zelo na personagem que o possui.
Uma das máximas do Realismo Mágico é associar a verossimilhança ao
fantástico de modo que a fantasia se torne uma realidade e se manifeste
harmoniosamente dentro da narrativa. Dino Buzzati constrói sua narrativa
dentro dessa premissa e se mantém nela, como pudemos demonstrar através
do nosso corpus. No conto Contestazione globale esse diálogo harmonioso
entre fantasia e realidade fica evidente quando a presença da morte,
178
CALVINO, Italo. Lezioni americane. Sei proposte per il prossimo millenio. Milão: Mondadori, 1993.
118
personificada como mulher, é fato normal não apenas para Svampa e os outros
anciãos, como também para as demais personagens da história. Não há
estranhamento ou dúvida quanto ao fato de se poder impedir a atuação da
morte em seu funesto ofício de ceifar vidas.
Dino Buzzati é o artífice de obras que podem ser afiliadas à corrente do
Realismo Mágico.
Os
dezenove
contos
apresentados
nesta
tese
compuseram
a
representação do imenso jardim a que chamamos vida, mas esse jardim
construído por Dino Buzzati tem lá suas peculiaridades, suas idiossincrasias e
não pode ser apreciado e sim experienciado. É o jardim delle gobbe.179 Nele foi
plantada a grande descoberta de Einstein, a mesma que tornou possível tudo
aquilo que nessuno crederà. Aqui cultivamos l’autostrada da vida que poderá
durar bem mais que il 12 ottobre ou ser tão breve quanto a do paciente do
Doutor Carlo Trattori e tão triste como a da signora Laurapaola, mas,
invariavelmente, é nele que todas as nossas solitudini desabrocham, e,
tenhamos ou não giorni perduti, será nele que o nosso bom e velho Giacomo
nos lembrará que em cada canteiro repousa uma parte de nossa história.
E, por fim, quando alguém nos vir como vecchi clandestini, que
possamos também, como aquele que si chiamava Dino Buzzati180, ser
lembrados em outros jardins.
E, por último, confessamos a pretensão de que esta tese possa
incentivar novas leituras da obra de Dino Buzzati e, também, contribuir para os
estudos de italianística no Brasil.
179
Aludimos ao conto Le gobbe nel giardino, de Dino Buzzati.
180
Idem
119
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1.1- Obras de Dino Buzzati
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_______. Bestiario. Milão: Mondadori, 1991.
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_______. La boutique del mistero. Milão: Mondadori, 1968.
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_______. Il capitano Pic e altre poesie. Vicenza: Neri Pozza, 1965.
_______. Il colombre. Milão: Mondadori, 2002.
_______. Congedo a ciglio asciutto di Buzzati / org. Guido Piovene. "Il
Giornale", 30 de outubro de 1974. Inédito.
_______. Il crollo della Baliverna. Milão: Mondadori, 1957.
_______. Cronache terrestri / org. Domenico Porzio. Milão: Mondadori, 1972.
textos jornalísticos.
_______. Il deserto dei Tartari. Milão: Rizzoli, 1940.
_______. Dino Buzzati al Giro d'Italia / org. Claudio Marabini. Milão:
Mondadori, 1981.
_______. Due poemetti. Vicenza: Neri Pozza, 1967.
_______. Egregio signore, siamo spiacenti di... Milão: Elmo, 1960.
Ilustrações de Siné.
_______. Esperimento di magia. Pádua: Rebellato, 1958.
122
BUZZATI, Dino. La famosa invasione degli orsi in Sicilia. Milão: Rizzoli,
1945. Ilustrado pelo autor.
_______. Il grande ritratto. Milão: Mondadori, 1962.
_______. Lettere a Brambilla / org. Luciano Simonelli. Novara: De Agostinini,
1985.
_______. Il libro delle pipe. Milão: Antonioli, 1945. Com colaboração de G.
Ramazzotti
_______. Il meglio dei racconti. Milão: Mondadori, 2007.
_______. La mia Belluno / org. Comunità Montana Bellunese - Assessorato
alla cultura, 1992.
_______. I miracoli di Val Morel. Milão: Mondadori, 1971.
_______. I misteri d'Italia. Milão: Mondadori, 1978.
_______. Le montagne di vetro / org. Enrico Camanni. Turim: Vivalda, 1990.
_______. Naquele exato momento. Trad. Fulvia M. L. Moretto. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1986.
_______. As noites difíceis. Trad. Fulvia M. L. Moretto Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1986.
_______. Le notti difficili. Milão: Mondadori, 2002.
_______. Paura alla Scala. Milão: Mondadori, 1949.
_______. Poema a fumetti. Milão: Mondadori, 1969.
_______. Le poesie / org. Fernando Bandini. Vicenza: Neri Pozza, 1982.
_______. In quel preciso momento. Vicenza: Neri Pozza, 1950.
_______. Il reggimento parte all'alba. Notas de I. Montanelli e G. Piovene.
Milão: Frassinelli, 1985.
_______. Romanzi e racconti / org. Giuliano Gramigna. Milão: Mondadori,
1975.
_______. Scusi da che parte per Piazza Duomo? / Introdução em versos.
Milão: Alfieri, 1965.
_______. Il segreto del bosco vecchio. Milão; Roma: Treves; Treccani;
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_______. 180 racconti / org. Carlo Della Corte. Milão; Roma; Nápoles: Theoria,
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