Claude Eatherly: o dever e a culpa

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Claude Eatherly: o dever e a culpa
Leituras / Readings
Volume IX Nº1 Janeiro/Fevereiro 2007
Claude Eatherly: o dever e a culpa
Claude Eatherly: the Duty and the Guilt
“We got your message on the radio
Conditions normal and you´re coming home
Enola Gay
Is mother proud of little boy today?”
OMD (1980)
Para Koichi Shibata, algures em Marrocos.
Adrian Gramary
Médico Psiquiatra
1 - Um voo de reconhecimento que fez
história
Correspondência relacionada com o artigo:
Centro Hospitalar Conde de Ferreira (Porto)
e-mail: [email protected]
A história e o drama de Claude Eatherly são pouco conhecidos. Tocou-lhe a ele interpretar um papel secundário,
que para muitos poderá até ser insignificante, dentro de
uma história épica cheia de nomes maiúsculos, como é a
da Segunda Guerra Mundial. Mas o seu papel de antiherói teve um valor simbólico, talvez maior na perspectiva
actual, e suscita ainda hoje um especial interesse psiquiátrico.
No dia 6 de Agosto de 1945, à 01:45 da madrugada,
Eatherly descolava da base das Ilhas Marianas, ao
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comando do avião B-29 Straight Flush, com a missão
de Direito em horário nocturno e chega mesmo a progre-
denominada “Hiroshima A Bomb Mission”, cujo objectivo
dir no seu emprego, onde passa a ocupar o posto de
era avaliar as condições atmosféricas sobre a cidade de
director de vendas. Claude estava casado desde 1943
Hiroshima. Se as condições de Hiroshima não fossem
com a actriz Concetta Margetti; esta era a oportunidade,
favoráveis para a manobra planeada, as outras alternati-
pela primeira vez, de terem tempo para estar juntos e des-
vas escolhidas pelos comandos militares eram Kokura ou
frutar da estabilidade económica e profissional alcançada.
Nagashaki. Mas, nesse amanhecer, o céu de Hiroshima
Mas os pesadelos nocturnos, sempre à volta da explosão
tinha boas condições de visibilidade. O Go ahead! de
da bomba, não o abandonam: acorda todas as noites apa-
Eatherly foi o sinal combinado para que outro avião bem
vorado com a imagem dos rostos desfigurados das víti-
mais famoso, o Enola Gay, baptizado assim em homena-
mas de Hiroshima. Durante o dia, não deixa de ruminar
gem à mãe do seu coronel Tibbets, se dirigisse a
sobre as consequências do bombardeamento. Para acal-
Hiroshima com o objectivo de lançar a sua bomba Little
mar estes sintomas típicos de stress pós-traumático,
Boy sobre os céus da cidade japonesa. Isto terminou por
recorre aos abusos de álcool e, uma vez por outra, aos
acontecer às 8:15, hora local. O que se seguiu é por todos
hipnóticos. Nesta época, começa também a enviar cartas
conhecido.
desesperadas a Hiroshima, pedindo perdão às vítimas e
declarando a sua culpabilidade. Em 1950, faz uma pri-
2 - O dever e a culpa
meira tentativa de suicídio, ingerindo grandes quantidades de hipnóticos no quarto de um hotel. Foi encontrado
Claude Eatherly não viu a explosão e, por questões de
com vida e internado durante dois dias num hospital
segurança, não conhecia a magnitude real da missão mili-
geral. Após a alta hospitalar, aceita ser internado volunta-
tar de que fez parte: tinha sido informado de que o alvo
riamente no Hospital Militar de Waco, centro especiali-
era uma ponte, cuja destruição iria impedir as comunica-
zado no atendimento a soldados com perturbações men-
ções do inimigo. No entanto, apesar do seu papel secun-
tais, onde permaneceu durante seis semanas, sem sentir
dário, esse Go ahead! tornou-se um pesadelo para toda a
grandes melhorias.
sua vida. Quando, na base de Tinian, onde os soldados
Já de volta a casa, muda de emprego e aceita realizar tra-
esperavam a desmobilização, soube das consequências
balhos manuais nos campos petrolíferos, à espera que o
da missão, o comandante Eatherly passou dias sem falar.
cansaço físico lhe permita conciliar melhor o sono. Foi,
O seu estado foi diagnosticado como “battle fatigue”, uma
nessa altura, que decidiu, após longas reflexões, consa-
situação de que o próprio Eatherly já tinha sofrido em
grar a sua vida ao objectivo pacifista e anti-nuclear: na
1943, após treze meses de intenso e ininterrupto serviço
sua condição de “herói de Hiroshima” pensa ser a pessoa
no Pacífico Sul. Quando regressou aos Estados Unidos,
mais adequada para tentar convencer as pessoas dos ris-
foi internado durante duas semanas numa clínica militar
cos da guerra nuclear.
de Nova Iorque para se recuperar do seu estado.
O primeiro dado surpreendente que encontramos nesta
3 - A procura da “graça da culpa”
história é a recusa de Eatherly em receber louvores numa
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homenagem oficial organizada na sua vila de origem, Van
Mas, surpreendentemente, nessa altura, o nome de
Alstyne, em reconhecimento pelo seu papel durante a
Eartherly começa a aparecer implicado em diferentes
guerra. Os seus conterrâneos da pequena vila texana, no
delitos ao longo dos Estados Unidos, o primeiro dos quais
entanto, mostraram compreensão pela atitude do piloto.
aconteceu em 1953, quando é detido por falsificar um
Tentando fugir do fantasma da sua culpa, decidiu afastar-
cheque de uma quantia insignificante, cujo objectivo era
se, após o seu licenciamento em 1947, saindo dos
enviar dinheiro a uma fundação para órfãos de Hiroshima.
Estados Unidos. Regressa pouco tempo depois, altura em
Foi julgado e ficou em liberdade, com suspensão de pena
que tenta uma vida de cidadão comum: começa a trabal-
por bom comportamento. O seguinte episódio foi um
har numa empresa petroleira de Houston, inicia o curso
assalto em Dallas, em que fugiu sem levar o dinheiro. O
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julgamento é suspenso quando o advogado explica que o
Anders, primeiro marido da pensadora alemã Hanna
cliente sofre de perturbações psiquiátricas. Passa outros
Arendt, teve a capacidade de intuir a significação ética e
quatro meses em Waco. Os psiquiatras reconhecem que
política do caso de Eatherly (como Zola no caso Dreyfuss
o comandante Eatherly sofre de perturbações psiquiátri-
ou Thoreau no caso John Brown), interpretando a sua
cas provocadas pela guerra, que o incapacitam para tra-
figura trágica como o símbolo da nova situação moral em
balhar, e tem alta do hospital com uma reforma mensal de
que foi colocado o homem após o desenvolvimento tecno-
132 dólares. Os seus delitos parecem tentativas desespe-
lógico das armas nucleares. “A guerra – escreve Anders
radas para que lhe seja reconhecido o direito a um cas-
numa das suas cartas – atingiu certo carácter espectral,
tigo real pela sua culpa.
pois os inimigos já não entram em confronto directo, e a
Após seis meses a trabalhar como vendedor de máquinas
magnitude dos efeitos da nossa acção excede em muito
de coser, faz uma nova tentativa de suicídio, desta vez
as nossas faculdades psíquicas, em particular, a nossa
cortando os pulsos. Neste contexto, a mulher ameaça
imaginação. O que realmente podemos fazer, é maior do
Eatherly com o divórcio se ele não aceitar ser tratado,
que podemos imaginar; podemos produzir coisas que
motivo que o leva a aceder ficar internado mais uma tem-
ultrapassam a capacidade de reprodução da nossa imagi-
porada em Waco. O psiquiatra assistente, Dr. McElroy,
nação”.
escreve a seu respeito: “Evidente mudança de personali-
potencial efeito dos nossos actos ultrapassa em muito a
3
Dito por outras palavras, segundo Anders, o
dade. Doente totalmente alheio da realidade. Medos,
capacidade que temos para os representar mentalmente.
conflitos internos, perda dos sentimentos, ideias fixas”.1 O
Para Anders, Eatherly foi o primeiro homem “inocente-
doente é submetido a choques insulínicos quatro ou cinco
mente culpável” da era atómica. Para ele, a doença de
vezes por semana. Ao fim de vários meses de tratamento,
Eatherly era uma prova da sua sensibilidade moral, da
os pesadelos parecem ter desaparecido e tem novamente
sua capacidade para manter viva a sua consciência ape-
alta. Mas, quando regressa a casa, apercebe-se que o
sar de ter sido uma simples peça do aparelho técnico-mili-
seu matrimónio está definitivamente acabado. A mulher
tar. Assim, com grande agudeza, o filósofo interpreta os
pede inicialmente a separação e depois o divórcio, solici-
actos ilícitos de Eatherly como uma tentativa por parte
tando ao juiz que o comandante não tenha contacto com
deste de demonstrar, a si próprio e aos outros (que preci-
os filhos.
pitadamente o tinham recebido como um herói), a sua cul-
Entre 1954 e 1959, a vida de Eatherly transforma-se num
pabilidade. Usando as palavras do filósofo, o comporta-
saltitar entre tribunais e hospitais. Repetem-se os com-
mento de Eatherly era um pedido desesperado da “graça
portamentos ilícitos absurdos (assaltos a bancos e agên-
da culpa”. 4 Eatherly exprime isto com nitidez numa das
cias de correios sem levar o dinheiro) seguidos de inter-
suas cartas: “Tenho a impressão de que na cadeia senti-
namentos hospitalares em Waco, até que os médicos
me sempre mais feliz, o castigo permitia expiar a minha
decidem o seu internamento definitivo nesta instituição.
culpa” 5
4 - A intervenção de Günther Anders
5 - Eatherly versus Eichmann
O acidentado percurso de Eatherly passa a ser conhecido
Anders coloca a atitude ética de Eatherly no pólo oposto
mundialmente em meados da década dos 50, fazendo
da de Eichmann, o executor da Solução Final, cuja estra-
parte da lenda alguns dados falsos, como o seu suposto
tégia de defesa, durante o seu julgamento, foi o argu-
pedido de entrada num convento. É nessa época que a
mento do cumprimento do dever. Recorda a primeira mul-
sua história desperta o interesse do filósofo alemão
her de Anders, Hanna Arendt, no seu livro “Eichmann
Günther Anders, paladino da causa anti-nuclear. Ambos
em Jerusalém”, que, durante o seu julgamento em Israel,
mantêm uma correspondência regular durante vários
o tenente-coronel das SS terá declarado que sempre
anos consecutivos, recolhida no livro “Além dos limites
tinha vivido de acordo com os preceitos morais de Kant,
da consciência”.2
em especial com a definição kantiana do dever. Perante a
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incredulidade geral, Eichmann terá improvisado, de forma
obstante, Bertrand Russell, pacifista impenitente, no seu
algo precipitada, uma definição aproximada e rudimentar
prefácio ao livro, não consegue subtrair-se a este erro
do imperativo categórico, princípio supremo da morali-
quando diz “ninguém que tenha lido sem preconceitos as
dade para o filósofo de Königsberg: “Com as minhas pala-
cartas de Eatherly poderá duvidar da sua saúde mental”.11
vras acerca de Kant, quis dizer que o princípio da minha
vontade deve ser tal que possa transformar-se em princípio das leis gerais”. Lembremos a primeira formulação
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7 - As respostas do Coronel Tibbets e de
Harry Truman
real do imperativo categórico, tal como aparece na
“Fundamentação da Metafísica dos Costumes”: “Age
Um facto relevante a ter em conta é que nenhum dos ele-
unicamente de acordo com a máxima que te faça simulta-
mentos da tripulação do Enola Gay apresentou qualquer
neamente desejar a sua transformação em lei universal”.
quadro psiquiátrico de relevo. Eles, que tiveram uma res-
Hanna Arendt responde com ironia que talvez Eichmann
ponsabilidade mais directa no lançamento da bomba e
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esqueça que “o imperativo categórico não é aplicável ao
puderam contemplar, com os seus óculos de protecção
roubo e ao assassinato, uma vez que o ladrão e o assas-
especial, o cogumelo atómico elevando-se no ar, não des-
sino não podem desejar viver num sistema jurídico que
envolveram quadros de stress pós-traumático. Pelos vis-
outorgue aos outros o direito de os roubar ou assassi-
tos, o coronel Tibbets até terá compartilhado com algum
nar”. Eu ainda acrescentaria que Eichmann parece
jornalista a sua perplexidade e incompreensão perante a
esquecer intencionalmente a terceira formulação do impe-
reacção de Eatherly. Para ele nunca houve dúvidas: limi-
rativo categórico, que enuncia o famoso conceito do
tou-se, também ele - esta vez sem invocar Kant - a cum-
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Reino dos Fins, e que diz: “Age de tal forma que trates a
prir o seu dever. E até teve o duvidoso bom humor de se
humanidade, na tua pessoa ou na pessoa de outrem,
lembrar de baptizar o avião com o nome da sua mãe e a
sempre como um fim e nunca apenas como um meio”.
bomba com o de Little Boy (rapazinho).
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Na mesma linha, temos as famosas declarações de Harry
6 - O caso Eatherly e a antipsiquiatria
Truman, o presidente que autorizou o bombardeamento
de Hiroshima. Anders relembra as declarações de
O caso Eatherly tinha todos os ingredientes necessários
Truman, durante uma entrevista realizada por altura do
para servir de paradigma para a antipsiquiatria, que o uti-
seu 75º aniversário, quando explicou que de tudo o que
lizou, durante os anos 60 e 70, como mais um exemplo da
tinha feito na vida “só se arrependia de não se ter casado
construção médico-psiquiátrica da doença mental, da
antes”.12 No seu livro “Elementos de Filosofia Moral”,
interpretação da doença mental como reflexo da doença
James Rachels também nos recorda que Truman afirmou
da sociedade e da instrumentalização política do poder
ter dormido “como um bebé” após assinar a ordem de
psiquiátrico. Com a perspectiva actual, parece evidente
bombardear Hiroshima.13 No seu diário escreveu: “Disse
que, para a cúpula militar americana, o caso Eatherly era
ao secretário da Guerra, o Sr. Stimson, para a usar (a
como uma pedra no sapato e, provavelmente, a forma
bomba) de maneira a que objectivos militares, soldados e
como foram realizados os seus internamentos e as limita-
marinheiros sejam os alvos e não mulheres e crianças
ções que lhe foram impostas na comunicação com o exte-
(…) Ele e eu estamos de acordo. O alvo será puramente
rior terão respondido, em parte, aos interesses políticos
militar.”14 Como sugere Rachels, só como operação de
da guerra fria. O próprio Eatherly escreveu numa das
maquilhagem histórica é possível compreender estas fra-
suas cartas: “A verdade é que a sociedade não pode acei-
ses, pois Truman sabia que as bombas iriam destruir cida-
tar a minha culpa sem reconhecer ao mesmo tempo em si
des inteiras, atingindo população civil, hospitais, escolas
mesma uma culpa maior”. Mas ninguém iria discutir hoje
e não apenas alvos militares. É claro que ele tinha a
que Eatherly estava doente e precisava de tratamento,
convicção de ter feito a escolha certa: pensava que estava
independentemente da compreensão ética ou psicopato-
a poupar vidas humanas (“americanas e japonesas”
lógica do seu comportamento e do seu sofrimento. Não
escreveu no seu diário), pois os custos de uma eventual
10
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,
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invasão do Japão seriam elevadíssimos e não aceitava a
11. Anders G, op. cit., prefácio.
hipótese de uma rendição japonesa não incondicional. No
12. Anders G, op. cit., p.179.
entanto, alguns leitores poderão duvidar se Truman estava
13. Rachels J, op. cit., p.172.
a pensar em poupar vidas humanas ou vidas humanas nor-
14. Rachels J, op. cit., p.172.
teamericanas (ou, no melhor dos casos, aliadas).
15. Cardona G, Solar D (1983) : La Guerra en el Pacífico. In VV
Sem entrar em discussões históricas, a perspectiva psi-
AA: Siglo XX. Historia Universal. Nº 18. Madrid. p. 100.
quiátrica actual, com a teoria da “atribuição de significado”16 permite explicar, pelo menos parcialmente, as
16. Vaz Serra A (2003): O Distúrbio de Stress Pós-traumático.
Vale e Vale Editores. Coimbra. p.127.
diferentes reacções individuais perante um aconteci-
17. Anders G, op. cit., p.86.
mento traumático. A perspectiva de Anders é diferente:
partindo da reflexão ética e política sobre um caso que ele
julgava paradigmático faz-nos reflectir sobre os novos
desafios éticos que surgiram com o nascimento da era
atómica. Embora possamos não concordar com algumas
das suas conclusões, os comentários das suas cartas,
como aquela famosa frase dirigida a Eatherly “só os anor-
mais não se comportam de forma anómala em situações
que não são normais” (complementada pelo famoso aforismo de Lessing “quem perante certas coisas não perde
a cabeça é porque não tem nada a perder”), têm a virtude
de nos fazer pensar sobre as implicações éticas do comportamento do homem em situações limite e sobre o muitas vezes difícil equilíbrio entre o dever e a responsabilidade moral.
Bibliografia
1. Anders G (2003): Más allá de los límites de la conciencia.
Correspondencia entre el piloto de Hiroshima Claude Eatherly y
Ghünter Anders. Paidós. Barcelona. p. 20 (Tradução espanhola
do original alemão “Off limits für das Gewissen” publicado em alemão, em 1995, em “Hiroshima ist überall”, por Verlag C. H. Beck,
Münich)
2. Ibidem
3. Anders G, op. cit., p.100.
4. Anders G, op. cit., p.35.
5. Anders G, op. cit., p.144.
6. Arendt H (2004): Eichmann en Jerusalén. DeBolsillo.
Barcelona. p.199.
7. Kant I (2006): Fundamentação da Metafísica dos Costumes.
Lisboa Editora. Lisboa. p.21.
8. Arendt H, op. cit., p.199-200.
9. Rachels J (2004): Elementos de filosofia moral. Gradiva.
Lisboa. p.190.
10. Anders G, op. cit., p.76.
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