tutela judicial efetiva no sistema multinível e as prerrogativas da
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TUTELA JUDICIAL NO SISTEMA MULTINÍVEL TUTELA JUDICIAL EFETIVA NO SISTEMA MULTINÍVEL E AS PRERROGATIVAS DA ADMINISTRAÇÃO* Siegfried Bross Tradução de Martim Vicente Gottschalk RESUMO Sustenta que a efetividade da tutela jurídica, num sistema organizado em diversos níveis, depende não apenas de requisitos processuais formais, mas também das condições socioeconômicas do Estado. Situa a tutela judicial na jurisprudência constitucional alemã, em que ela se sustenta como direito fundamental, com base nos princípios da dignidade humana e da separação dos Poderes. Demonstra como as exigências de tutela efetiva repercutem sobre os processos administrativos, subordinando não só o Judiciário, mas também o Executivo, aos termos da lei. Defende, por fim, a publicidade dos atos processuais, a isonomia processual entre a Administração e os administrados e, sobretudo, a existência de um Tribunal supremo que, ao zelar pela Constituição e separação dos Poderes, confira coerência ao sistema e segurança jurídica aos jurisdicionados. PALAVRAS-CHAVE Direito Constitucional alemão; tutela judicial; dignidade; Estado Social; Poder – separação, controle; Tribunal Constitucional alemão; segurança jurídica. __________________________________________________________________________________________________________________ Conferência proferida no Seminário Internacional “A Tutela Judicial no Sistema Multinível”, realizado pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, nos dias 20 e 21 de setembro de 2004, no auditório do Instituto Rio Branco, em Brasília-DF. * R. CEJ, Brasília, n. 27, p. 13-17, out./dez. 2004 13 1 CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES A tutela judicial efetiva em um sistema multinível é delineada pelo sistema em que se opera. Ela depende, em primeiro lugar, da quantidade de níveis do sistema e do grau de interdependência das relações entre estes – questões formais que devem ser resolvidas por meio de regras de resolução de conflitos. Já para aqueles sujeitos ao Direito, os destinatários da decisão estatal, interessa principalmente que sejam apenas uma vez destinatários de determinada ordem judicial e que, caso precisem de ajuda judiciária, possam acessar sem maiores dificuldades o tribunal competente. Assim, evidentemente, a tutela judicial efetiva em um sistema multinível só poderá ser garantida quando o acesso às instâncias judiciárias estiver assegurado a qualquer pessoa sem maiores ônus. Diante desse quadro, numa ordem federativa, fica desde logo claro que os tribunais que constatam os fatos e efetuam o conseqüente levantamento de provas deverão estar no nível dos estados federados e que os tribunais de níveis superiores se ocuparão exclusivamente com a estrutura da União e suas respectivas normas. Não há contradição no fato de que tanto os litígios da vida pública (versando, por exemplo, sobre proibição a associações) como os processos administrativos entre a União e os estados federados, ou mesmo entre estes, sejam julgados em primeira e última instâncias por um tribunal de nível superior. Tratase, nesses casos, de mera conseqüência do princípio federativo. Além disso, a tutela judicial efetiva, no sistema multinível de um Estado que se componha de vários estados federados, requer a presença de um tribunal superior a todos os outros: a segurança jurídica num sistema multinível torna necessária a existência de uma instância judiciária que, posicionada acima de todas as outras, gere segurança jurídica em meio ao universo das normas legais e seus correspondentes princípios constitucionais. Desse modo, a confiança gerada pelo ordenamento jurídico garantirá ao Estado uma configuração capaz de propiciar a convivência pacífica das pessoas a ele vinculadas. Se refletirmos sobre como a tutela judicial efetiva pode ser assegurada em um sistema multinível, constataremos que seria inadequa- 14 do balizarmo-nos primordialmente pelas peculiaridades de códigos processuais e outros fenômenos do quotidiano jurídico. Ao contrário, é imprescindível considerar a tutela judicial efetiva no contexto de um Estado moderno de Direito para que ela possa se realizar plenamente e seja, ao mesmo tempo, imune às vicissitudes da formação de maiorias políticas. Por esse motivo, é preciso perguntar em qual fonte se nutre a tutela judicial efetiva e onde se encontram suas origens na moderna democracia do Estado de Direito. 2 OUTROS DESDOBRAMENTOS A exigência de uma tutela judicial efetiva, como quaisquer iniciativas nesse sentido, tem diversos requisitos. É essencial a existência de um Estado de Direito com fulcro no princípio da separação de Poderes (Legislativo, Executivo e Judiciário), bem como de uma hierarquia dos Poderes estatais. Em um Estado no qual o Poder Executivo esteja inicialmente vinculado às leis e às decisões judiciais, mas em última instância possa se desvincular delas, a tutela judicial efetiva à qual me refiro fica impedida de se realizar. Não haveria hierarquia da função legislativa sobre a executiva, passando por uma função jurisdicional independente, de forma a vincular o Executivo às leis e decisões judiciais. Uma tal organização estatal não seria um Estado de Direito na concepção moderna; pelo contrário, estaria ressuscitando resquícios de épocas passadas. Porém, não basta a estrutura jurídico-organizacional do Estado com seus diversos níveis e os Poderes que os perpassam ou vinculam. A população de um Estado não é tão imune às heranças históricas, sociológicas e religiosas que se possa supor um entendimento prévio unitário perante a ordem constitucional latu sensu, em um sistema multinível. Por esse motivo, um ordenamento jurídico efetivo, pacífico e abrangente somente poderá surgir e manter-se se encontrar ressonância na sociedade e no conjunto de todas as pessoas sujeitas ao Direito. Disso depende a tutela judicial efetiva para os cidadãos. A pergunta sobre como deve ser configurada a tutela judicial efetiva não terá resposta se parte significativa da população de um Estado, por causa das disparidades econômicas, não dispuser dos recursos financeiros necessários para partici- par da vida jurídica e fazer valer seus direitos perante o tribunal. Evita-se, consciente e explicitamente, o uso da expressão “poder impor seus direitos”, pois tal pressupõe a existência de uma jurisdição independente e imune a quaisquer influências externas. Se o ordenamento jurídico pretende ser o ordenamento de um Estado de Direito e atender às modernas demandas atuais, é imprescindível seja produzida em sua esfera macro uma harmonia entre ele e as bases socioeconômicas do Estado. Quanto maior a discrepância entre os níveis macro e micro, tanto menos o ordenamento jurídico cumprirá sua função de produzir segurança jurídica, assegurar a paz social e garantir os pressupostos para o desenvolvimento do Estado num sistema de paz mundial. Nesse contexto, cabe ao Estado também a obrigação de remover as barreiras do acesso à Justiça, originadas de uma situação econômica assimétrica, mediante, por exemplo, a disponibilização de ajuda para as custas processuais, de assistência de um advogado ou por meio da organização de centros de aconselhamento jurídico. Dessa forma, também o princípio do Estado social e o princípio da isonomia garantem a tutela judicial efetiva. A questão da tutela judicial efetiva num sistema multinível, portanto, só pode ser posta de forma congruente a partir de uma visão geral desse sistema e de seu posicionamento no conjunto das interdependências mundiais. Em razão do contexto jurídico mundial (p. ex., ONU, OMC, FMI e Banco Mundial), nenhum ordenamento jurídico pode ambicionar, isoladamente, validade abrangente em seu espaço nacional. O contexto jurídico internacional é por demais variado. Por isso, deve-se lembrar que um determinado Estado somente poderá assumir compromissos de natureza internacional que, por um lado, aprimorem e reforcem a paz mundial e, por outro, não imponham à ordem interna uma reformulação tal que exclua as pessoas da participação ativa no ordenamento jurídico, por falta de condições materiais, o que inviabilizaria a tutela judicial efetiva. Ademais, deve-se lembrar que a hierarquia interna dos Poderes não deve ser diluída ou mesmo invertida por meio de compromissos de caráter internacional, pois isso acarretaria prejuízos à tutela judicial individual. R. CEJ, Brasília, n. 27, p. 13-17, out./dez. 2004 3 A SITUAÇÃO DO DIREITO CONSTITUCIONAL NA REPÚBLICA FEDERAL DA ALEMANHA Na República Federal da Alemanha, temos dois sustentáculos que possibilitam a tutela judicial efetiva como fundamento constitucional em sentido amplo. O primeiro é a dignidade humana, princípio intocável, segundo o art. 1º, inc. 1, da Lei Fundamental, combinado com o dever que tem todo o Poder Público de respeitá-la e protegê-la. Isso significa que também na comunidade estatal o indivíduo deve ser reconhecido como membro isonômico com valor próprio. No Estado, o indivíduo não deve ser transformado em mero objeto (BVerfGE 27, 1 <6>, p. ex.). A sentença “o ser humano deve sempre ser o objetivo em si” vale irrestritamente para todos os ramos do Direito, pois a dignidade inalienável do ser humano está justamente no fato de se manter reconhecido como pessoa responsável por si mesma (BVerfGE 45, 187 <228>). O outro sustentáculo é a separação horizontal dos Poderes estatais em Legislativo, Executivo e Judiciário. Sem essa separação e a instauração de uma atividade jurisdicional independente, não se pode falar em tutela judicial efetiva. Tutela judicial efetiva requer, por definição, controle de um Poder estatal por outro. A conexão da tutela judicial efetiva com a dignidade humana tem conseqüências imediatas para sua configuração em detalhes. Deve-se ter sempre presente que, na ordem de valores da Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, a dignidade humana é o valor maior (BVerfGE 6, 32 <41>; 27, 1 <6>). À luz dessa concepção, as pessoas têm o direito de ser consideradas e valorizadas socialmente (BVerfGE 27, 1 <6>). Vista dessa forma, a questão da tutela judicial efetiva tem a ver também com a igualdade de oportunidades de proteção jurídica, pois o indivíduo, ao impetrar a ação, bem como ao atuar formal e materialmente no processo concreto, o faz em bases isonômicas com os outros litigantes. Assim, o Estado moderno de Direito e o Estado social se encontram intimamente relacionados. Não é por acaso que o Tribunal Constitucional Federal, em decisão relativamente antiga, de janeiro de 1957 (Elfes-, BVerfGE 6, 32 <41>), entendeu que as leis devem estar em conformidade com os valores máximos da ordem democrático-liberal, considerada R. CEJ, Brasília, n. 27, p. 13-17, out./dez. 2004 (...) cabe ao Estado também a obrigação de remover as barreiras do acesso à Justiça, originadas de uma situação econômica assimétrica, mediante, por exemplo, a disponibilização de ajuda para as custas processuais, de assistência de um advogado ou por meio da organização de centros de aconselhamento jurídico. Dessa forma, também o princípio do Estado social e o princípio da isonomia garantem a tutela judicial efetiva. como ordenamento de valores constitucionais, e também com os conceitos constitucionais elementares nãoescritos e as resoluções básicas da Lei Fundamental, especialmente com os princípios do Estado de Direito e do Estado social. O Tribunal Constitucional Federal vai além e define que, pelos motivos expostos, as leis não devem ferir a dignidade humana, que, na Lei Fundamental, é o valor supremo (em contexto semelhante freqüentemente citado, tal como em BVerfGE 96, 375, <398>, p. ex.). Na Constituição da República Federa da Alemanha, a dignidade humana (art. 1º, inc. 1, parte 1) é reforçada, para os fins do processo judicial, por um direito processual básico especial, no art. 103, inc. 1. Segundo esse artigo, todos têm o direito de ser ouvidos, nos termos da lei, perante o tribunal. Essa posição material-processual da Lei Fundamental, que é esclarecida com freqüência na jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal (p. ex., BVerfGE 7, 53 <57>; 7, 275 <279>), constrói um ponto de junção entre a dignidade humana no processo judicial e a tutela judicial efetiva, pois, sem esta, o sistema jurídico não tem condições de assegurar aquela (BVerfGE 9, 89 <95>). O segundo sustentáculo da tutela judicial efetiva, que se refere à separação dos Poderes do Estado, é desenvolvido na Lei Fundamental da República Federal da Alemanha, no art. 19, inc. 4, partes 1 e 2. Aquele cujos direitos forem violados pelo Poder Público poderá fazer uso da via legal. Desde que não esteja definida outra competência, a via judicial ordinária permanece aberta. Por “via judicial ordinária” entende-se, na Ale- manha, o acesso aos tribunais cíveis, em oposição aos tribunais administrativos, secutritários e tributários. Já a redação do art. 19, inc. 4, parte 1, expressa inequivocamente que esse direito formal fundamental não cria posições materiais de direito para o indivíduo, mas, sim, pressupõe-nas. Isso quer dizer que, independentemente do referido artigo, existem disposições de direito material que podem vir a ser violadas pelo exercício do Poder Público (BVerfGE 15, 275 <281>; 61, 82 <110>). Do art. 19, inc. 4, parte 1, da Lei Fundamental emana mais do que simplesmente a pretensão de acesso formal aos tribunais. Esse aspecto de garantia completa da proteção judicial contra violações por parte do Poder Público (BVerfGE 8, 274 <326>; 104, 220 <231f>) assinala apenas uma faceta. Mas existem outras. A garantia de acesso à via judicial assegura também, e principalmente, que a tutela judicial seja prestada por um órgão objetivo e independente, ou seja, neutro e separado do Executivo e do Legislativo, que esteja sujeito a determinadas cautelas (p. ex., composição adequada) e decida, evidentemente, somente após ouvidas as partes (BVerfGE 30, 33 <34>). É importante observar, quanto à situação do Direito Constitucional na República Federal da Alemanha, não só que a questão da tutela judicial efetiva se aplica à tutela junto aos tribunais, mas também que os processos administrativos têm sua estrutura subordinada a exigências emanadas do mesmo art. 19, inc. 4, parte 1, da Lei Fundamental. Isso significa que um processo administrativo não pode ser instaurado de forma a frustrar ou dificultar significativamente a 15 tutela judicial (BVerfGE 22, 49 <81 f.>; 61, 82 <110>). Daí surgem exigências ao órgão administrativo, em processos administrativos, no sentido, por exemplo, de não confundir o cidadão no tocante às suas possibilidades legais de tutela judicial nem de excluir as chances de ulterior recurso ao Tribunal (BVerfGE 61, 82 <110>; 69, 1 <49>; 83, 182 <198>). Nesse contexto, considera-se extremamente importante que tribunais e órgãos administrativos não se oponham uns aos outros. Ao contrário, estão todos comprometidos com a garantia da tutela judicial aos administrados e com a realização de seus direitos subjetivos. Quanto mais os órgãos administrativos cumprirem sua obrigação, tanto menor será o ônus dos tribunais com processos dessa natureza. Da mesma forma, a instituição de uma jurisdição independente para o controle do Poder Executivo é imprescindível, pois somente por meio dessa separação de Poderes estatais, poder-se-á evitar que o indivíduo ocupe a posição de objeto no Estado. A construção formal é, portanto, condição necessária para a posição material e sua inviolabilidade. Originariamente, a pretensão de tutela judicial efetiva era derivada exclusivamente da disposição do art. 19, inc. 4, parte 1, da Lei Fundamental. A evolução posterior da jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal, porém, deslocou-a para o respectivo direito fundamental, especialmente no art. 14 e no art. 12, inc. 1, da Lei Fundamental (BVerfGE 53, 30 <65 f.>). O Tribunal decidiu, em sentença de dezembro de 1968 (Hamburger Deichordnungsgesetz – BVerfGE 24, 367 <401>), que, de acordo com a concepção da Lei Fundamental, a tutela judicial efetiva é elemento do próprio direito fundamental, o que foi confirmado posteriormente em outras decisões (BVerfGE 46, 325 <334>; 49, 220 <225>; 60, 253 <297>). Essa evolução da jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal não tem apenas significado dogmático; ela é importante justamente com relação a litígios de natureza processual civil, aos quais, por falta de participação de um Poder estatal, não se aplica o art. 19, inc. 4, parte 1, da Lei Fundamental. Porém, deve-se considerar que nem toda violação de normas processuais significa violação de direito fundamental (BVerfGE 53, 30 <65>; 60, 253 <296 ff.>). Para a relação entre os Poderes Executivo e Judiciário é especial- 16 mente importante que este não seja hierarquicamente superior àquele. O Judiciário realiza sua função de controle na mesma esfera hierárquica, pois tanto ele quanto o Executivo estão condicionados ao cumprimento de leis no exercício de suas funções estatais. Por esse motivo, no contexto do tema da tutela judicial efetiva, a relação entre os Poderes Legislativo e Executivo merece atenção especial. O legislador deverá sujeitar a Administração desde o início a restrições que, dependendo do objeto da norma, poderão ser mais ou menos rígidas. Essa problemática foi tratada pelo Tribunal Constitucional Federal em decisão datada de outubro de 1951 (Neugliederungsgesetz – BVerfGE 1, 14, <45>). Uma lei deve expressar a vontade do legislador de forma clara e inequívoca e não pode conter contradições em seus dispositivos. Fica evidente que os limites aqui podem ser flexíveis e que, em última análise, sempre restará uma “zona cinzenta”. Ao mesmo tempo, é importante a constatação de que o legislador não pode fugir de seu vínculo com os direitos fundamentais nem burlá-los por meio da criação de espaços arbitrários para a atuação do Poder Executivo. Esse ponto de vista não tem nada a ver com conceitos legais indeterminados, espaços de discricionariedade ou planejamento estratégico de decisões voltadas ao futuro. As determinações legais endereçadas ao Poder Executivo (BVerfGE 20, 150 <157>; 21, 73 <79>; 83, 130 <145>) não só facilitam sua atuação e a realização convincente da vontade do legislador diante dos administrados, como ainda se ligam a outra conseqüência necessária, própria do Estado de Direito, a de que as restrições legais impostas ao Poder Judiciário adquirem igualmente contornos bem definidos. Também a este Poder, na execução da tarefa de controlar o Executivo, é vedado afastar-se dos objetivos do legislador e projetar seus próprios valores e concepções na interpretação e aplicação das leis. Os tribunais também não devem assumir o papel de instância formuladora de normas (BVerfGE 96, 375 <394>), razão por que o aprimoramento da norma pelo juiz é permitido apenas de forma limitada. (BVerfGE 69, 315 <371>; 88, 145 <147>; 98, 280 <294>). Na República Federal da Alemanha existe, dentro da própria Administração, uma estrutura hierárquica tradicional das vias de acesso, a qual possibilita o controle interno da Administração por meio de um processo de revisão, quando legalmente prescrito como instância prévia à apelação para o tribunal competente (administrativo, securitário ou tributário). Esse sistema não entra em contradição com a tutela judicial efetiva (BVerfGE 3, 377 <381 f.>); o que é determinante é a possibilidade de acesso à via judicial caso o órgão administrativo não revise uma decisão considerada indevidamente gravosa. A obrigação de fundamentar as decisões estatais gravosas é uma característica central do princípio do Estado de Direito. Ela garante que a dignidade humana do art. 1º, inc. 1, da Lei Fundamental permanecerá intacta, pois impede que o indivíduo se torne objeto de manipulação do Estado (BVerfGE 6, 32 <44 ff.>). Além disso, a busca efetiva do direito perante os tribunais dificilmente seria possível se as decisões recorridas não viessem acompanhadas de fundamentação. Além das competências do legislador já abordadas, cabe ainda a ele, para a realização da tutela judicial efetiva, a formatação do acesso à via judicial. É importante que o legislador não dificulte, desnecessária e excessivamente, o acesso aos tribunais (BVerfGE 10, 264 <267 f.>). Porém, de acordo com a Constituição alemã, não é possível a tutela judicial contra legem (art. 19, inc. 4, da Lei Fundamental) ou afastada de direitos fundamentais especiais (BVerfGE 24, 33 <49 ff.>; 24, 367 <401>, 25, 352 <365>; 45, 297 <322, 334>; 75, 108 <165>; 95, 1 <22>). Assim, apenas dentro de estreitos limites é possível a ação de inconstitucionalidade junto ao Tribunal Constitucional Federal diretamente contra uma lei (art. 93, inc. 1, n. 4ª, da Lei Fundamental c/c parágrafo 93, inc. 3, BVerfGG). Essa limitação faz sentido, pois, do contrário, a autoridade do legislador e a sujeição do Poder Judiciário à lei (e não somente à Constituição) ficariam enfraquecidas. Como corretivo, o Tribunal Constitucional Federal, em sua jurisprudência, erigiu barreiras altas à escolha da forma da lei, quando uma situação puder ser regulada de forma normal e definitiva por meio de decisão administrativa. Trata-se de preocupação com o abuso da forma legal no Direito Público, praticado com o propósito de livrar-se de amarras constitucionais indesejáveis (BVerfGE 24, 367 <401 f.> - Hamburger Deichordnungsgesetz; 45, 297 <334 f.> - Hamburger U.-Bahn). R. CEJ, Brasília, n. 27, p. 13-17, out./dez. 2004 A pretensão de tutela judicial efetiva dirige-se também contra o Poder Judiciário. Os tribunais não devem interpretar de forma tão estrita as regras processuais, ao ponto de impossibilitarem a tutela judicial efetiva e inverterem, assim, o espírito constitucional. Essas questões surgem a propósito de prazos (BVerfGE 41, 323 <327f.>) ou de recursos contra a perda de prazo (BVerfGE 41, 23 <25>), e representam um particular desafio aos tribunais no tocante ao tratamento de regras de preclusão (como, p. ex., no processo civil para produção de provas). O princípio do Estado de Direito, a dignidade humana e a tutela judicial efetiva requerem, ainda, que os processos judiciais transcorram de forma transparente, isto é, diante dos olhos do público. O princípio de que os tribunais devem decidir os litígios publicamente e de haver necessidade de regulamentação especial e justificativa adequada para a exclusão de partes do processo destina-se a assegurar que os tribunais possam ser controlados e a impedir que os indivíduos se tornem objetos. Nesse contexto, é muito importante a veiculação pela mídia de informações sobre processos judiciais (BVerfGE 87, 331; 91, 125; 103, 44). Também, não se pode desconsiderar a importância da participação de juízes leigos. Estado de Direito, dignidade humana e tutela judicial efetiva requerem também, em um processo do qual participem órgãos públicos, a existência de um equilíbrio de forças tal que o Poder Executivo não detenha posição privilegiada sobre o administrado. Uma posição assim existiria, por exemplo, caso um órgão administrativo apresentasse apenas parte de peças importantes para o processo, ou as sonegasse por completo. Em decorrência desse privilégio, o controle judicial não seria assegurado de forma ampla e ficaria materialmente limitado, o que implicaria uma espécie de imunidade. Tais graus de discricionariedade não podem existir em um Estado de Direito moderno. Perante um tribunal no contexto de um Estado de Direito, a isonomia entre o Poder Executivo e os administrados é um postulado inarredável. O mesmo vale para o nível de execução das decisões judiciais. A tutela judicial só poderá estabelecer-se de forma efetiva se as decisões judiciais forem cumpridas, o que compreende também a execução rápida e compulsória. R. CEJ, Brasília, n. 27, p. 13-17, out./dez. 2004 O princípio do Estado de Direito, a dignidade humana e a tutela judicial efetiva requerem (...) que os processos judiciais transcorram de forma transparente, isto é, diante dos olhos do público. O princípio de que os tribunais devem decidir os litígios publicamente e de haver necessidade de regulamentação especial e justificativa adequada para a exclusão de partes do processo destina-se a assegurar que os tribunais possam ser controlados e a impedir que os indivíduos se tornem objetos. A partir da jurisprudência do Tribunal Constitucional Federal da República Federal da Alemanha, de sua abrangência e profundidade acerca da problemática da tutela judicial efetiva no Estado moderno de Direito, torna-se claro que a instituição de um Tribunal Constitucional também para essa área do Direito é imprescindível. Por motivos de segurança jurídica e de confiabilidade, tanto do ordenamento jurídico do Estado quanto da atividade jurisprudencial dos tribunais estatais, é indispensável entregar a tal instituição judiciária a defesa da Constituição e o controle superior dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário. Somente assim poderá haver efetividade, pois, dessa forma, evitam-se conclusões judiciais contraditórias. De outra maneira não poderia ser resolvida a questão sobre quais exigências devem ser impostas ao legislador na definição de regras legais, sob o ponto de vista de uma tutela judicial efetiva. 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS No moderno Estado de Direito, a pretensão dos jurisdicionados à tutela judicial efetiva tem prioridade constitucional máxima, em virtude de sua relação direta com a dignidade humana. Somente ela tem a capacidade de assegurar às pessoas, em processos judiciais (e administrativos), a condição de sujeito, de modo que não se tornem objeto da atividade do Estado. Ao mesmo tempo, não se pode ignorar que a tutela judicial efetiva possui também pressupostos extrajurídicos. Se a ordem econômica não garante adequadas condições de vida e amparo a todos os membros da sociedade, então a parte desprivilegiada da sociedade fica ex- cluída da participação eqüitativa na vida jurídica. A pretensão à tutela judicial efetiva pressupõe igualdade de oportunidades latu sensu, que nessa hipótese não estaria assegurada. A evolução de um ordenamento jurídico justo e do respectivo posicionamento jurídico do indivíduo ultrapassa a evolução das normas legais. Paralelamente, devem ser desenvolvidas as bases econômicas do Estado e de sua sociedade, sob a ótica da adequação, justiça e igualdade de oportunidades. ABSTRACT The author asserts that the effectiveness of judicial guardianship, in a multilevel organized system, depends not only on formal procedural requirements but also on the State socioeconomic conditions. He places judicial guardianship in the German constitutional jurisprudence, whereby it is considered as a fundamental right, based on the principles of human dignity and separation of Powers. Furthermore, he shows how the effective guardianship demands reflect on administrative proceedings, submitting both the Judiciary and the Executive to the terms of the law. At last, he defends the publicity of procedural acts as well as procedural isonomy between the Administration and those subject to it, and, above all, the existence of a supreme Court which, by keeping the Constitution and separation of Powers, gives coherence to the system and juridical security to persons in need of jurisdictional services. KEYWORDS – German Constitutional Law; judicial guardianship; dignity; Social State; Power separation, control; German Constitutional Court; juridical security. Siegfried Bross é Juiz do Tribunal Constitucional Federal da República Federal da Alemanha. 17