Protecção antimíssil e terrorismo

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Protecção antimíssil e terrorismo
2002/09/02
PROTECÇÃO
ANTIMÍSSIL E TERRORISMO
Alexandre Reis Rodrigues
SínteseMau grado o empenhamento com que os EUA se envolveram numa guerra contra o
terrorismo, na sequência dos atentados que sofreram a 11 de Setembro, a construção de um
escudo de protecção anti-míssil ganhou um novo ímpeto e continua a ser considerada como um
elemento essencial e prioritário da estratégia americana de procura de superioridade absoluta em
todos os domínios da defesa.Porém, tudo indica que a nova face do terrorismo, tal como emergiu
dos atentados em Washington e Nova York, ocupará, pelo menos nos tempos mais próximos, o
centro das atenções na procura de medidas de prevenção e de protecção contra essa ameaça à paz
e segurança mundial. O que serão exactamente essas medidas e qual o papel que organizações
internacionais poderão desempenhar nessa luta é um assunto em aberto sobre o qual são de
esperar importantes desenvolvimentos no curto prazo.IntroduçãoQuando há cerca de um ano atrás,
pouco depois dos acontecimentos do 11 de Setembro, concluí um texto, publicado no número de
Novembro desta mesma Revista, sobre o escudo de protecção anti-míssil esperava que as
reacções internas e externas que então se verificavam contra as orientações da administração
americana em acelerar a concretização deste sistema e, em especial, a relevância que então tinha
ganho a ameaça do terrorismo internacional iriam levar a uma reconsideração da prioridade
atribuída a esse sistema.Por essa altura, ainda admitia que as reservas da parte dos europeus
quanto aos perigos de pôr em causa o Tratado Anti-Mísseis Balísticos de 1972 (Tratado ABM), com
muitos a ver nisso os riscos de uma nova corrida aos armamentos e de uma séria deterioração do
relacionamento com a Rússia, talvez fossem relevantes para o processo de decisão americano.
Esperava também que não deixaria de pesar a oposição da Rússia e da China ao abandono do
Tratado, claramente reafirmada no Tratado de Boa Vizinhança, Amizade e Cooperação, que tinham
assinado em Julho de 2001, quando admitiam a possibilidade de virem a desenvolver os seus
próprios arsenais estratégicos para garantir que o sistema americano não anulasse os seus
próprios sistemas. Finalmente, considerava que, como acima dito, os atentados ocorridos em Nova
York e Washington, iriam obrigar a administração americana a centrar a sua atenção e os seus
esforços na campanha desde logo empreendida para, numa primeira fase, irradicar a base de apoio
que a “al QAEDA” desfrutava no Afeganistão e, posteriormente, prosseguir a “guerra contra o
terrorismo internacional”, num prenúncio de que a campanha se iria provavelmente alargar a outros
países.Presumia, face a todas essas circunstâncias, que os avanços da componente de defesa
anti-míssil de teatro não seriam afectados mas que a componente de defesa territorial iria
provavelmente continuar essencialmente ao nível de investigação, certamente sem o carácter de
urgência que lhe tinha sido imprimida até então. A situação porém evoluiu de forma diferente. A
administração americana entendeu que, apesar dos obstáculos políticos que se perfilavam no
horizonte, devia fazer prevalecer a sua relutância em continuar a aceitar as restrições dos acordos
multilaterais de controlo de armamentos que contrariassem a continuação do programa de defesa
anti-míssil. Aliás, parte dessas restrições já estavam a ser violadas com a realização de testes.
Assim, em Dezembro de 2001, respeitando o prazo mínimo de seis meses para notificação de
qualquer intenção de alteração do Tratado ABM, o Presidente Bush confirmava oficialmente a
decisão, já anteriormente anunciada, de desvinculação do Tratado ABM a partir de 14 de Junho de
2002. Mau grado alguma perplexidade internacional sobre a lógica desta orientação, em face das
novas condições do ambiente de segurança, é dado um novo impulso para acelerar a criação do
escudo de protecção anti-míssil e conseguida uma plataforma de entendimento com o Presidente
Putin que desfez o essencial das preocupações dos europeus. Tudo isto sem qualquer prejuízo do
esforço militar empreendido no Afeganistão, da aceitação de algum envolvimento no esforço de
construção de um “novo país” – que inicialmente era liminarmente rejeitada - e do prosseguimento
dos preparativos para novas iniciativas da guerra contra o terrorismo, entre as quais, a intervenção
militar no Iraque constitui, presentemente, o mais polémico aspecto da política internacional
americana.É sobre estes assuntos que me proponho fazer algumas considerações com dois
objectivos principais: em primeiro lugar, fazer um ponto de situação sobre a questão do escudo de
protecção anti-míssil à luz da renovada prioridade e importância que se lhe encontra atribuída; em
segundo lugar, analisar alguns aspectos da luta contra o terrorismo internacional, designadamente
no âmbito da NATO.O actual estado do escudo de protecção anti-míssilNo âmbito dos EUAA
administração americana continua a considerar que, apesar da prioridade que o combate ao
terrorismo possa ter ganho depois do 11 de Setembro, há paralelamente que desenvolver
capacidades de defesa contra a ameaça de mísseis balísticos portadores de armamento de
destruição maciça. Uma capacidade de defesa anti-míssil parece ser tão vital como foi o guardachuva nuclear durante a Guerra Fria e em termos de prioridade não parece pesar o facto de ainda
ser em muitos aspectos uma ameaça distante ou ser uma ameaça que a concretizar-se significará
para o país atacante uma espécie de suicídio nacional.Os EUA consideram que em nenhuma
circunstância podem estar sujeitos a esse ou, aliás, qualquer outro tipo de ameaça ou de
chantagem e que a falta de uma defesa anti-míssil credível deixa-os vulneráveis perante adversários
que pensem que os mísseis balísticos são a arma de eleição para intimidar os EUA e os seus
aliados.Não faltam críticas ou discordâncias sobre esta orientação da parte dos que pensam que o
planeamento militar continua a sofrer do conceito errado de que os ataques irão ocorrer de uma
forma simétrica com as defesas existentes ou que se espera vir a ter brevemente disponível.
Esquece-se, segundo os críticos da opção da administração americana – entre os quais se
encontram muitos especialistas americanos - que quem estiver empenhado em realizar um ataque
contra os EUA escolherá as mais inesperadas formas de o levar a cabo, procurará ocultar a sua
proveniência por receio das represálias que se lhe seguiriam de imediato, e não deixará de explorar
primariamente os pontos fracos dos seus sistemas de defesa.Os próprios acontecimentos do 11 de
Setembro se encarregaram de demonstrar que mesmo um sistema de protecção anti-míssil perfeito
– que não existirá – nada poderia ter feito para os evitar. Por isso consideram esses críticos que a
defesa anti-míssil tal como está a ser concebida presentemente pelos americanos não será
relevante para a protecção dos EUA. Acrescentam ainda que o eventual sucesso dos esforços
americanos em construir o escudo de defesa – o que, de momento, ainda é uma incógnita - irá
desvalorizar os esforços feitos pelos países empenhados em dispor de capacidade de mísseis
balísticos e desse modo incentivá-los a procurar capacidades alternativas que não sejam afectadas
pelo sistema e eventualmente mais perigosas para os EUA.Nesse último campo, destacam-se, por
exemplo, os mísseis de cruzeiro que podem ser lançados por uma grande variedade de plataformas
– submarinos, aviões ou mesmo navios mercantes – e ser posicionados para atingir alvos
estratégicos, a grandes distâncias, eventualmente sendo portadores de armas de destruição
maciça. Neste caso, até se trata de um sistema alternativo menos dispendioso, menos difícil de
concretizar por ser tecnologicamente menos complexo, logo mais acessível a beligerantes com
menores capacidades económicas e recursos técnicos, incluindo organizações terroristas que
poderão recorrer a versões simplificadas mas nem por isso menos letais. [1] É ainda um sistema
mais móvel – podendo facilmente ser utilizado num contentor de dimensões padrão – mais difícil de
detectar e, principalmente, mais difícil de identificar a sua origem, o que é especialmente importante
para dificultar subsequentes retaliações. Existem, de facto, muitas razões de preocupação para com
a proliferação de mísseis de cruzeiro, que presentemente existem em 80 países, entre os quais 18
estão principalmente empenhados no desenvolvimento das versões de ataque contra alvos em terra
a grandes distâncias. Presentemente, tanto os EUA como a Rússia possuem sistemas com
alcances da ordem dos 3000 kms, seguidos de perto pela China; na maioria dos outros casos, os
alcances são da ordem das centenas de kms, mas a situação está a evoluir rapidamente. Muito
embora, os EUA já tenham vindo recentemente a público reconhecer a crescente importância deste
novo tipo de ameaça isso em nada parece afectar a decisão de continuar a avançar com a protecção
contra mísseis balísticos, sendo essa intenção um facto consumado.Perante o argumento de que
pouco interessará ter capacidade de defesa anti-míssil balístico se não existir capacidade de parar
um ataque terrorista como o que aconteceu a 11 de Setembro, a administração americana parece
considerar que também pouco interessa ter capacidade de defesa contra ataques terroristas se
paralelamente não existir capacidade de parar um ataque com mísseis balísticos. Segundo alguns
analistas, os EUA estão a seguir uma estratégia de procura de superioridade absoluta em todos os
domínios da defesa o que acabará por garantir-lhes o controlo estratégico do mundo. Resta aos
europeus congratularem-se em estar no sítio certo, ao lado da potência hegemónica, mas seria
desejável que, sem prejuízo disso, tivessem capacidade de activamente participarem na definição
em curso de uma nova arquitectura de segurança mundial, o que doutra forma acabará por ser feito
de uma forma unilateral pelos americanos. Não é que isso constitua uma ameaça para os europeus
mas constitui certamente um revés para as suas ambições. Voltaremos mais tarde a este assunto.
Para deixar bem claras as suas intenções sobre a continuação do programa de defesa anti-míssil,
a administração americana decidiu elevar o estatuto da organização responsável pelo programa ao
nível de “agência” com novas prioridades e um conjunto de competências mais abrangentes,
algumas delas até então distribuídas por vários departamentos. A nova agência de defesa antimíssil – “Missile Defense Agency” - criada pelo Secretário da Defesa em 2 de Janeiro de 2002,
encontra-se agora mandatada para desenvolver um sistema de defesa por camadas capaz de
interceptar mísseis de qualquer alcance em qualquer fase do seu voo. O objectivo é assegurar
protecção limitada contra mísseis de longo alcance entre 2004 e 2008 e desenvolver mais
avançadas capacidades contra mísseis de curto alcance. Consuma-se, assim, pela décima vez na
história dos programas de defesa anti-míssil dos EUA, o estabelecimento de uma nova orientação e
a inevitável mudança de nome da respectiva organização, para acentuar as mudanças entretanto
decididas.Comparando a forma como era descrito o programa antes da criação da nova agência (ver
Revista Militar de Novembro de 2001) com a presente situação verificam-se algumas diferenças de
terminologia, uma nova estratégia de aquisição e a adopção de uma forma de gestão englobando
todos os programas num único, para desenvolver um sistema perfeitamente integrado de defesa,
sem prejuízo de na altura própria os seus diversos elementos serem transferidos para os Ramos
para produção e entrada em funcionamento logo que praticável. [2] Deixou de se fazer a distinção
entre a defesa anti-míssil de teatro (“TMD”) e a defesa territorial (“MD”) para, em alternativa, construirse uma espécie de “sistema dos sistemas”. Porém, o essencial dos objectivos a alcançar mantémse inalterado. O sistema compreenderá quatro segmentos principais: o segmento de defesa
terminal (Terminal Defense Segment - TDS); o segmento de defesa intermédio (Midcourse Defense
Segment – MDS), o segmento de defesa inicial (Boost Defense Segment - BDS) e o segmento de
sensores (Sensor Segment). O “segmento dedefesa terminal” destina-se a interceptar mísseis de
curto e médio alcance na fase final da sua trajectória quando o míssil reentra na atmosfera, uma
fase muito curta que poderá demorar menos do que um minuto. Incluirá o sistema Patriot Advanced
Capability 3 (PAC3) que se destina essencialmente a proteger forças americanas e aliadas em
operações no exterior contra mísseis de curto alcance, mísseis anti-radiação e aviões empregando
contramedidas avançadas e com baixa assinatura radar. O sistema ainda requer aperfeiçoamentos
que serão objectos de testes em 2003 para que então possa entrar em produção normal. O sistema
THAAD (Theater High Altitude Area Defense) permitirá múltiplas oportunidades de intercepção na
protecção de forças deslocadas, centros populacionais abrangendo uma área mais alargada; tratase de um sistema ainda em desenvolvimento sendo de esperar que durante 2003 possa ser
completado o desenho do míssil e respectivo lançador. Para além destes dois sistemas baseados
em terra, que ficarão atribuídos ao Exército, continua a reconhecer-se a necessidade de um sistema
baseado no mar que substituirá o antigo sistema Navy Area que foi mandado cancelar em Dezembro
de 2001, em face dos insatisfatórios resultados nos testes, desvios exagerados nas estimativas dos
respectivos custos e prováveis atrasos.O “segmento de defesa intermédio” destina-se a assegurar
intercepções durante a trajectória dos mísseis fora da atmosfera depois do lançador se ter
extinguido e antes da reentrada na atmosfera. Este segmento inclui dois componentes: o “Groundbased Midcourse Defense” que substitui o anteriormente designado “Missile Defense” e que se
destina primariamente a interceptar os mísseis na fase descendente da sua trajectória intermédia
(em 2003 está previsto o desenvolvimento de cinco interceptores para instalação e durante 2004 a
realização de testes); o “Sea-based Midcourse Defense,” que substitui o anterior sistema “Navy
Theater Wide,” procurará assegurar a intercepção na fase ainda ascendente da sua trajectória
intermédia, continuando, como anteriormente, a constituir um desenvolvimento do sistema de
defesa instalado nos cruzadores de defesa aérea de área com o sistema AEGIS. Ambos os
sistemas têm sido objecto de testes, regra geral bem sucedidos. Em Janeiro de 2002, no 4º teste de
uma série prevista de nove, foi conseguida a primeira intercepção usando um míssil Standard SM-3
lançado de bordo do USS Lake Erie que colidiu com o alvo usando os seus sensores
infravermelhos. O cruzador detectou o míssil-alvo 8 segundos depois do lançamento e conseguiu a
sua intercepção dez segundos mais tarde. Em Março de 2002, no 4º teste bem sucedido do “Groundbased Midcourse Segment”, o protótipo de um interceptor lançado a cerca de 4800 milhas de
distância do míssil alvo e cerca de 20 minutos depois do seu lançamento, conseguiu a intercepção
10 minutos depois a 140 milhas de altitude. Apesar dos sucessos dos testes até agora alcançados
ainda há que provar que o sistema funciona de um forma fiável e que será eficaz na presença de
contramedidas de protecção do míssil atacante. A assim acontecer estima-se que este segmento
esteja disponível em 2006. Estes sistemas baseiam-se na tecnologia “hit-to-kill” em que destruição
do alvo é conseguida por directo impacto do veículo anti-míssil, no espaço, a velocidades
superiores a 2300 kms por hora, não exigindo, portanto, o recurso a explosivos. Porém, uma das
dificuldades desta técnica é conseguir que o veículo interceptor consiga identificar correctamente o
seu alvo e dirigir-se ao seu encontro, principalmente quando ele se encontrar “mascarado” entre
outros alvos falsos. Por estes motivos, a administração americana poderá estar a reconsiderar a
possibilidade, anteriormente rejeitada por mais do que uma vez – designadamente, no início do
mandato de Bush – de recorrer a interceptores com uma carga nuclear que dispensariam o impacto
directo com alvo. Esta tecnologia, já experimentada nas décadas de cinquenta e de sessenta,
constituiu a base de um sistema anti-míssil de meados da década de setenta, mas foi cancelada
mais tarde pelos receios dos efeitos colaterais de explosões nucleares no espaço. Essa foi porém a
tecnologia adoptada pelos russos, para o sistema de defesa anti-míssil que construíram à volta de
Moscovo, na década de sessenta, por, aparentemente, não acreditarem que o processo de
intercepção através de colisão fosse alguma vez viável. [3] O “segmento de defesa inicial” visa a
destruição míssil hostil, imediatamente após o seu lançamento, dirigindo um feixe laser de alta
energia contra o tanque pressurizado de combustível, causando a sua rotura e explosão. Trata-se de
um sistema que exige curtos tempos de reacção e um sistema seguro de tomada de decisão.
Utilizará um avião Boeing 747- 400F que, para esse efeito, recebeu extensas modificações
estruturais e cujo voo inaugural, nessa nova configuração, ocorreu no passado dia 18 de Julho,
depois de uma complexa evolução do projecto que se tinha iniciado em Novembro de 1996. Este
passo continuará em desenvolvimento durante 2003 e 2004 para a integração dos seus vários
componentes e actividades de teste preparatórios para a destruição de um míssil. Esta versão
geralmente conhecida por “Airborne Laser” (“ABL) é oficialmente designada por “YAL-1A” (“Prototype
Attack Laser, Model 1-A). Presentemente, ainda não está determinado o número de aviões que serão
construídos para ter esta capacidade, não se confirmando assim o número de sete anteriormente
referido. Segundo o anúncio recentemente feito pelo actual director da Agência de Defesa Anti-míssil
existe a intenção de desenvolver, neste segmento, também um sistema baseado em terra e um
outro baseado no mar. Espera-se que os sistemas deste segmento estejam prontos em 2009.O
“segmento de sensores” deve assegurar a detecção e elementos para seguimento de mísseis
balísticos em todas as fases do voo; o sistema SBIRS Low (Space Based Infrared System-Low)
melhorará as capacidades de detecção qualquer que seja o ponto de lançamento e capacidade de
seguimento sem os riscos associados à utilização de sensores baseados em terra em posições
avançadas que podem ser facilmente vulneráveis a ataques e que exigem a obtenção prévia de
acordos a negociar com a nação hospedeira.Continua em curso um importante programa de testes
que há-de finalmente ajudar a definir a configuração geral do sistema, designadamente a integração
dos diversos componentes.No âmbito NATOO Conceito Estratégico da NATO de 1999 refere no seu
artigo 56º à questão da defesa anti-míssil nos seguintes termos: “a postura de defesa da Aliança em
relação aos riscos e potenciais ameaças de proliferação de armamento nuclear, químico e biológico
e os respectivos meios de lançamento tem que continuar a ser melhorada através de medidas de
defesa anti-míssil [4] . O objectivo é conseguir reduzir a vulnerabilidade operacional das forças da
NATO mantendo paralelamente a sua flexibilidade e eficácia mesmo na presença, ameaça ou uso
de armamento NBC.” Há no texto acima transcrito uma clara distinção entre o que é a defesa de
forças - a que o conceito se refere - e a defesa de territórios e populações contra todo o espectro de
ameaças de armas de destruição maciça - que o conceito não abrange ainda. Ora, como se viu
atrás, os EUA pretendem agora não diferenciar estas duas componentes, fazendo-as avançar dentro
de um conceito integrado de defesas por camadas. O que se passará no futuro, em âmbito NATO,
para acompanhar a nova dinâmica que os EUA decidiram imprimir a este assunto sob a
administração Bush, depende da forma como os europeus olharão para toda esta situação.O facto
de ter deixado de haver oposição russa ao abandono do tratado ABM, que a continuação do
programa exigia, permitiu ultrapassar o problema das reservas que os europeus levantavam ao
conceito americano. Aliás, na realidade, até se tornou possível ir mais longe, quando os chefes de
Governo na cimeira da NATO de Roma, em Junho de 2002, aprovaram formalmente que, no âmbito
do novo NATO/Russia Council, os EUA e a Rússia explorassem oportunidades de cooperação
nessa área. Note-se que alguma cooperação já havia no âmbito do Russian-American Observation
Satellite Project (RAMOS), que constituiria como que uma componente internacional do “segmento
de sensores”. Na verdade, também já havia um entendimento da NATO com a Rússia para
conversações sobre a defesa anti-míssil, embora não fosse previsível que isso algum dia pudesse
evoluir para um sistema de defesa anti-míssil pan-europeu, conforme os russos em determinada
altura sugeriram. Escusado será identificar donde viria a oposição nessa eventualidade.Mas se com
estas evoluções se eliminou um dos obstáculos a uma postura mais favorável dos europeus para a
construção de uma capacidade de defesa anti-míssil, ficou ainda por dar resposta a outras reservas
eventualmente não menos importantes. Uma delas é que os europeus ainda não estão firmemente
convictos de que exista esse tipo de ameaça contra a Europa da parte dos chamados “estadospárias”. Mesmo no Reino Unido com Tony Blair a fazer todos os possíveis para acompanhar os EUA
e trazer consigo os seus parceiros europeus, não falta resistência e hostilidade interna,
inclusivamente de sectores do próprio Partido Trabalhista. Ainda recentemente, em Fevereiro de
2002, o governo inglês declarava considerar não existir uma significativa ameaça de mísseis
balísticos contra o seu território (Joint Memorandum to the House of Commons`s Defense
Committee from the United Kingdom Ministry of Defense and Commonwealth Office). Numa altura
em que os europeus estão ainda a gastar menos do que devem em melhorar outras mais simples
capacidades convencionais não será realista esperar que se possam envolver em programas tão
dispendiosos e sobre os quais têm dúvidas. Eventuais investimentos europeus nesse programa
constituirão um sério obstáculo à melhoria das suas capacidades operacionais em áreas de
utilização previsivelmente mais provável e isso constituirá, por certo, uma compreensível reserva a
um empenhamento profundo. Outra reserva situar-se-á na dificuldade em ver nesse sistema
qualquer capacidade de resposta contra formas menos evoluídas mas nem por isso menos
prováveis de ameaças. Se a evolução da corrente operação “Enduring Freedom”, no Afeganistão,
exigir a segunda fase que os europeus em geral não parecem apoiar – alargamento da campanha
aos chamados países do “Eixo do Mal”, a começar pelo Iraque - então poderá não haver um clima
favorável para entendimento entre os EUA e a Europa sobre o caminho a seguir em conjunto.Aliás,
não estando ainda perfeitamente definida qual a arquitectura do sistema americano – ainda
dependente dos resultados do programa de testes em curso – será, neste momento, prematuro
saber em que sector os europeus poderão participar, sendo, no entanto, desde já claro que o
espacial representa desafios talvez excessivamente grandes.Segundo Robert G. Bell, NATO
“Assistant Secretary General for Defense Suport” haverá quatro hipóteses básicas de cooperação:
divisão de tarefas em que a NATO poderia eventualmente ficar responsável pela defesa de teatro ao
nível europeu; concessão de facilidades para a instalação de equipamentos do “segmento de
intercepção intermédia”; participação, por exemplo, num programa cooperativo de desenvolvimento e
produção de componentes do sistema ou, finalmente, a constituição de um sistema adquirido,
mantido e operado pela própria da NATO, num processo semelhante ao utilizado para a criação da
capacidade NATO de aviso aéreo antecipado, que foi facultada aos EUA na sequência dos ataques
de 11 de Setembro.Em termos realistas porém o que é de esperar, na melhor das hipóteses, para o
futuro próximo, eventualmente na Cimeira de Praga, é o assumir de um compromisso, ao nível de
chefes de estado e de governo, em examinar a viabilidade de um projecto NATO de defesa de teatro
para largas áreas, o que até pode estar dentro do âmbito dos termos de referência da equipa que já
se encontra a tratar da defesa anti-míssil.Porém, num âmbito puramente bilateral há a destacar
algumas importantes iniciativas havendo vários países europeus que, no seguimento das
realizações americanas, se encontram envolvidos em programas de cooperação: a Alemanha e a
Holanda no sistema Patriot PAC-2 e em breve no PAC-3; a Alemanha e a Itália no desenvolvimento
do sistema Medium Extended Air Defense System (MEADS), presentemente em fase de desenho e
desenvolvimento para fornecer protecção a forças avançadas contra mísseis de curto e médio
alcance e aviões. Na área dos exercícios, há a mencionar a iniciativa da Holanda em conjunto com
os EUA para a realização de um exercício anual de defesa de teatro anti-míssil, já com seis edições,
e com a participação de outros países, realizado em 2001, pela primeira vez, num cenário de
operações fora de área ao nível táctico/operacional. Há também uma iniciativa em curso com
financiamento comum da NATO para examinar a possibilidade de combinar o conceito americano de
defesa por camadas com o desenvolvimento em curso do novo sistema de defesa aérea “Air
Command and Control System” (ACCS) que substituirá o sistema NADGE de defesa aérea
integrada. Fora do contexto NATO, destaca-se a colaboração americana com Israel (The Arrow
Weapon System).para defesa contra mísseis balísticos de curto e médio alcance e com o Japão
para o desenvolvimento de alguns componentes do sistema americano, o que permitiria tirar partido
das capacidades industriais do Japão e proporcionar alguma repartição de custos. Não é provável,
porém, contrariamente ao que alguns previam, que o Japão vá muito mais longe no campo da
defesa anti-míssil para não despertar novos receios da China que, como se sabe, se opõe ao
desenvolvimento do sistema.A luta contra o terrorismoA nova face do terrorismoÉ hoje consensual
dizer-se que com os ataques sofridos pelos EUA a 11 de Setembro a natureza do terrorismo alterouse radicalmente; no entanto, continua a não haver consenso sobre a forma como definir terrorismo, o
que, obviamente constitui um obstáculo de monta à definição de uma estratégia global para o
combater. A complexidade da questão, que tem sido extensivamente analisada desde há largos
anos pelos mais reputados especialistas, pode sintetizar-se, de forma simplificada, na
impossibilidade de entendimento sobre o conhecido cliché de que “aquele que para uns é um
terrorista é para outros um combatente da liberdade. [5] Aparentemente, arranjar uma definição
universalmente aceite de terrorismo será tanto ou mais difícil do que arranjar uma forma eficaz de o
combater e, finalmente, de o eliminar. Provavelmente, ambas são tarefas impossíveis, o que nem
por isso será razão para que deixemos de nos empenhar na sua solução.Para os especialistas, que
geralmente reconhecem vários tipos de terrorismo, o que aconteceu a 11 de Setembro foi a
consumação trágica da tendência, que já vinha de trás, do aparecimento de um novo tipo de
terrorismo que embora mantendo pelo menos algumas das características dos anteriores, difere
deles pela procura da maior letalidade possível e pela ainda maior dificuldade de ser controlado e
prevenido, devido à sua organização em redes transnacionais com contornos de difícil identificação.
[6] Estamos perante uma nova dimensão do terrorismo, que de um problema específico de
imposição de lei ao nível nacional – com objectivos essencialmente políticos, num âmbito regional e
com finalidades relativamente bem definidas e limitadas - passou a constituir um problema de
ameaça `a estabilidade e segurança internacional em que nenhum alvo está à partida fora de
questão.Para alguns, as origens do novo fenómeno encontram-se nas práticas económicas usadas
pelos países mais ricos do mundo, que conduziram a um nível de globalização que tem aumentado
o fosso com os países mais pobres, acentuando disparidades sociais geradoras de tensões e
conflitos. As sociedades mais evoluídas funcionam hoje num sistema em que cada vez são
menores as restrições à movimentação de pessoas e dinheiro e em que existe uma enorme
facilidade de difusão de tecnologias e de serviços; esta situação, hoje absolutamente indispensável
para os países mais evoluídos, pode, porém, ser facilmente usada pelos inimigos do sistema para
o combater por dentro e é aqui, sem dúvida, que a estratégia das organizações terroristas se está a
basear.Para outros, as raízes do actual terrorismo encontram-se na própria natureza das
sociedades donde emanam os seus agentes. Geralmente, são sociedades muito autoritárias que
têm falhado o desenvolvimento económico, social e político e que têm vindo a gerar lideres que, tão
fascinados pelas suas visões do mundo, não hesitam em sacrificar tudo e todos aos seus
irracionais projectos. Não é do âmbito deste trabalho aprofundar a questão mas tão somente fazer
notar que a nova característica global deste preocupante problema, quer quanto à sua extensão quer
quanto à sua natureza, exige uma nova forma de o encararmos. Há necessidade de uma nova
estratégia, quer para combater o fenómeno do terrorismo em geral, em especial as suas raízes,
quer para combater as organizações terroristas e as suas manifestações concretas, tanto numa
perspectiva preventiva como numa perspectiva punitiva.No primeiro caso, é preciso olhar, em
primeira instância, para todo o tipo de situações que geram frustrações, conflitos e violência e em
geral prestar mais atenção aos crónicos problemas do Mundo, entre os quais se destaca o do
conflito entre Israel e a Palestina, no qual a postura das administrações americanas pode ser a fonte
de muita da actual hostilidade árabe contra os EUA. Se renunciarmos a tentar compreender o que
leva a acções de terror, mesmo reconhecendo desde a partida que a sua prática é injustificável, não
conseguiremos racionalmente prevenir futuras repetições. O terrorismo pode apresentar-se-nos
como qualquer coisa de irracional, muito para além da nossa capacidade de compreensão, mas a
verdade é que normalmente corresponde a uma tentativa friamente calculada para atingir um
determinado objectivo, sem olhar a meios. Tentar perceber onde estão as raízes do fenómeno não é
perdoar, logo não é incompatível com uma clara condenação das políticas de massacre
indiscriminados, quaisquer que sejam os motivos invocados – pátria, religião, ideologia ou
simplesmente ódio ao que é diferente.Talvez se integre nesta perspectiva a recentemente anunciada
iniciativa americana de lançar um programa para o Médio Oriente de promoção da democracia e dos
direitos humanos, o que eventualmente poderá levar à criação de condições internas para alteração
do estilo de regime que, com tanta riqueza acumulada, já há muito deveria ter evoluído no sentido de
maior justiça social. No fundo, é a procura de um mundo mais justo que está em causa mas os
interesses de quem desempenha o papel principal não irão facilitar o progresso que se
desejaria. No segundo caso, haverá que considerar uma capacidade de resposta multi-disciplinar,
abrangendo medidas de cariz político, económico, social e judicial e em que o emprego de sanções
e mesmo da força militar poderá ter que ser também, num escalão mais elevado de
empenhamento, juntamente com as outras, uma parte indispensável, ainda que não suficiente, da
solução. O objectivo não deverá ser apenas o de reunir capacidades para punir os responsáveis
directos e indirectos por acções terroristas; será essencialmente o de conseguir formas de prevenir
esse tipo de ocorrências, residindo aí, porventura, as maiores dificuldades de reunir consenso para
eventuais acções preventivas, mesmo que não incluam a intervenção militar. Estará frequentemente
em causa, no centro da polémica, a necessidade de reunir evidências de que existe de facto uma
ameaça. Esta tem sempre duas componentes: a existência de uma capacidade material e uma
vontade/intenção de a utilizar. Ora se até apenas a primeira se tem revelado difícil de comprovar,
muito mais complexa a tarefa se tornará quando se pretender exigir demonstrar que ambas existem
em simultâneo. Estamos aqui perante o velho problema de como caracterizar o que é uma “intenção
hostil”, legitimadora de acção preventiva que nos ponha a salvo da materialização provável e
iminente dessa ameaça.O que tivemos no caso do Afeganistão foi um “acto hostil”, contra o qual
nem foi difícil mobilizar a opinião pública mundial e o empenhamento concreto, em várias áreas,
incluindo a militar, de uma ampla coligação, antes dificilmente concebível. No caso do Iraque, o que
poderemos ter para já é um conjunto de circunstâncias que para os EUA já prefiguram a existência
de “intenção hostil”, mas este parecer, como se sabe está longe de reunir consenso até dentro dos
EUA. Voltarei mais tarde ao assunto.Estima-se que as organizações terroristas continuarão, por falta
de capacidades, a limitar-se ao uso de armamento convencional mas certamente que procurarão
usar métodos cada vez menos convencionais e mais inesperados. Dentro do seu objectivo de criar
pânico e insegurança não deixarão de procurar ter uma capacidade de armamento de destruição
maciça o que tornará toda esta questão num problema de gravíssima dimensão. Muito embora não
hajam informações credíveis de que possam ter na sua posse esse tipo de armamento poderão, no
entanto, não estar longe de ter a possibilidade de fabricar as chamadas “bombas sujas”
(“radiological weapon”) , um simples engenho convencional junto com resíduos nucleares. Segundo
uma simulação feita pela “Federation of American Scientists”, a deflagração deste tipo de bombas
pode tornar inabitáveis áreas consideráveis, por permanência de níveis de radiação por largos anos,
provocando doenças cancerígenas nas pessoas expostas e obrigando à reconstrução dos edifícios
contaminados mesmo que estruturalmente nada tenham sofrido. Alegam os especialistas que há
várias evidências de tentativas de compra de material necessário para a construção destas bombas
por organizações terroristas quer proveniente da África do Sul quer da Bulgária, através da Moldávia e
Ucrânia. Mas hoje não está em causa apenas a possibilidade de ataques directos para matar
vítimas inocentes; quase tão preocupante como isso são as possibilidades que as organizações
terroristas não deixarão de encarar de atingirem o modo de funcionamento da nossa sociedade,
quer afectando os sistemas informáticos de que cada vez mais dependemos, quer contaminando
recursos vitais indispensáveis à sobrevivência.Os ataques que os EUA sofreram vieram desfazer a
convicção de que a superioridade militar mesmo quando quase absoluta garante segurança. Ora,
para evitar que este tipo de ameaça volte alguma vez a ocorrer, poderá, num contexto como o actual,
não existir senão a opção do recurso a uma acção de eliminação do mal pela raiz, através de uma
acção preventiva. As dificuldades, porém, serão grandes. Não apenas a acima referida de criar um
clima da aceitabilidade internacional para tal empreendimento mas também a da sua concretização
pois estaremos a lutar contra pessoas e organizações que tentam comportar-se como se fossem
invisíveis, que não usam uniformes, que não reconhecem as leis da guerra e para as quais os fins
justificam os meios, quaisquer que eles sejam, mesmo os mais cruéis. Nestas circunstâncias, o
combate ao terrorismo – aliás como também a luta contra a proliferação de armamentos - só pode
ter sucesso num ambiente de alargada e profunda cooperação em que a vertente de actuação militar
é apenas uma de um conjunto que tem que ser accionado de forma coordenada. No seu início é
fundamentalmente trabalho que cabe às organizações policiais resolver, assentando muito no eficaz
sistema de recolha e troca de informações e também, entre outras, no controlo de operações
financeiras que possam apoiar actividades terroristas e/ou o crime organizado, actividades que em
alguns casos parece andarem ligadas.Mas este tipo de medidas de prevenção não garantem que o
problema é irradicado, da mesma forma que também não foi possível eliminar o problema do tráfico
de drogas. Não existe nem nunca existirá um sistema de recolha de informações perfeito. Uma
operação bancária pode ser realizada em questões de minutos mas a obtenção de autorização para
a investigar pode demorar meses, anos ou nunca chegar a vir. A colaboração internacional que será
indispensável reunir será frequentemente contrária a outros interesses próprios e isso dificultará os
mecanismos de decisão e a capacidade de resposta que o problema exige. Mas não devem restar
dúvidas de que, apesar de tudo, esse terá que ser sempre um dos caminhos a explorar. Por isso
deve ser dada por bem vinda a recente iniciativa da presidência portuguesa da OSCE em trazer a
Lisboa a discussão da colaboração entre organizações internacionais no combate ao terrorismo.
Ainda que noutro âmbito, também deve ser de aplaudir a iniciativa de Paris em juntar representantes
de 72 países para tentar acertar um código de conduta contra a proliferação de mísseis balísticos,
numa conferência que pretenderia demonstrar que a abordagem multilateral deste problema é a que
melhor permitirá instaurar um clima de confiança e desarmar as tensões regionais. Tratar-se-ia de
um código apenas politicamente vinculativo para garantir maior transparência no desenvolvimento
destes programas esperando-se que o texto possa ser assinado em Outubro de 2002 em Haia,
embora sem a presença da Coreia do Norte e da Síria que não aderiram a esta iniciativa. Uma nova
perspectiva de cooperação entre os EUA e a Rússia quer no combate ao terrorismo quer na luta
contra a proliferação de armamentos, que recentemente se começou a desenhar, e o possível
encorajamento que daí pode resultar para que esse movimento alastre a outros países tornaria o
Mundo realmente diferente apesar dos interesses comerciais que, na área das indústrias de
armamento, se oporão a entendimentos.É hoje óbvio que a estratégia que os EUA seguiram durante
alguns anos contra Bin Laden, durante a administração Clinton, bem como as sanções
internacionais aplicadas contra o Afeganistão não resultaram. Como veremos seguidamente, com
mais pormenor, as sanções contra o Iraque têm igualmente revelado brechas grandes. Aliás, em
geral a experiência tem mostrado que a aplicação de sanções, tais como as aplicadas ao Iraque,
não têm permitido resolver os problemas; quando muito têm permitido controla-los. O seu sucesso
depende de uma séria e empenhada cooperação internacional, que não permita qualquer
aproveitamento menos escrupuloso das dificuldades de garantir a estanquecidade de fronteiras nos
termos estabelecidos para “furar” o esquema estabelecido, tirando daí proveito próprio.As sanções
fazem parte de uma estratégia de longo prazo, que não exija resultados imediatos. Têm, geralmente,
riscos e custos menores do que uma intervenção militar directa e podem facilitar que a solução do
problema surja internamente em vez de ser imposta do exterior. São, no entanto, uma opção que tem
o inconveniente de afectar mais a população - em especial os estratos menos favorecidos - do que
os responsáveis do regime em causa, funcionando pior em regimes ditatoriais em que não contam
as condições de vida da população e em que a opinião pública pode ser facilmente manipulada para
considerar os autores das sanções como os únicos responsáveis pela situação. [7] Um estudo do
“Harvard Center for Population and Development” concluiu que em resultado das sanções contra o
Iraque terão morrido 500.000 crianças entre 1991 e 1998, enquanto que em resultado da campanha
aérea em seis semanas terão morrido 2300 civis. Uma estimativa apresentada pelo Foreign Policy
de Março/Abril de 2002 referia que de entre as causas de morte por motivo de guerra durante o
século vinte - 100 milhões de pessoas - o genocídio e a fome foram responsáveis por 62 milhões
de mortos, as armas de pequeno calibre por 24 milhões, a artilharia e fogo naval por 17 milhões e
apenas 2 milhões devido a ataque aéreo. Ainda se mantém a ideia de que um regime de sanções é
muito mais facilmente aceite pela opinião pública do que uma intervenção militar, mesmo quando,
para qualquer dos casos, existe uma expressa decisão das Nações Unidas. No entanto, hoje, uma
intervenção militar com armamento de precisão exclusivamente direccionada para alvos
seleccionados pode ser bem mais humana do que um regime prolongado de sanções que
inevitavelmente afectam toda a população, sem que esta na maioria das vezes seja responsável
pela situação criada pelos seus lideres. [8] De facto, as grandes evoluções verificadas nas
capacidades do armamento graças ao investimento maciço dos EUA em investigação e tecnologia
e, em especial, os avanços verificados com armamento de precisão têm permitido melhorias
extraordinárias de eficácia e redução drástica dos danos colaterais e, por isso, a opção militar
tenderá a ganhar crescente aceitabilidade como a solução mais correcta.Sob essa inquestionável
supremacia americana, a evolução da situação continua a não parar de nos surpreender com
capacidades que até há bem pouco tempo eram pura ficção científica. Enquanto na Guerra do Golfo
apenas 10% das munições utilizadas tinham guiamento de precisão, essa percentagem subiu para
30% na campanha aérea do Kosovo e para 70% no Afeganistão. No Kosovo entre os 14000 ataques
aéreos só 90 provocaram situações em que houve vitimas civis e danos colaterais, cerca de 500 não
combatentes mortos. As campanhas do Golfo e do Kosovo tinham deixado a claro as limitações na
utilização de bombas guiadas através de nuvens, em situações de céu encoberto. O problema
ultrapassou-se com o recurso à utilização de um sistema de guiamento através de satélites
(Sattelite-guided Joint Direct Attack Munition) com a utilização de um “kit” de orientação das bombas
convencionais a funcionar em função de coordenadas geográficas previamente introduzidas no
sistema. Substitui-se a necessidade de ver o alvo pela necessidade de conhecer as suas
coordenadas geográficas. Com este tipo de guiamento por satélite o míssil pode aproximar-se por
qualquer lado e até fazer manobras deceptivas; torneou-se assim a limitação verificada no Kosovo
quando os sérvios aprenderam a destruir os mísseis Tomahawk ao descobrirem que seguiam
sempre a mesma trajectória por terem um guiamento óptico baseado no reconhecimento do terreno.
Refere-se, com frequência, que muitos destes desenvolvimentos resultam principalmente da
relutância das autoridades e opinião pública americanas em aceitar baixas nas suas forças neste
tipo de intervenções, aproveitando ao máximo as possibilidades oferecidas pela alta tecnologia para
fazer uma “guerra à distância”, evitando confrontos directos. Conviria, no entanto, ter presente o
quanto mais desastroso será sempre para ambas as partes situações de confronto directo.
Contrariamente ao que alguns pensam, os bombardeamentos a elevada altitude não têm em vista a
protecção dos pilotos contra o fogo das baterias de defesa anti-aérea; o que está aqui em causa é
que um bombardeamento entre os 15000 e os 23000 pés é mais rigoroso porque a arma tem
maiores possibilidades de corrigir a sua trajectória durante o voo, em função das coordenadas
geográficas introduzidas no seu sistema. Logo, tem possibilidades de ser mais preciso, provocando
menos danos colaterais. Tornou-se óbvio durante a campanha do Afeganistão a crescente
importância do papel das forças especiais mas devem desenganar-se os que pensam que isso não
tem nada a ver com tecnologia. As forças especiais foram importantes porque para além das suas
extremamente exigentes qualificações intrinsecamente militares tinham ao seu dispor os mais
avançados desenvolvimentos tecnológicos, designadamente na área da vigilância do campo de
batalha, capacidade de visão nocturna, coordenação do apoio aéreo. Nas forças especiais de que
estamos a falar a bravura, a coragem e outras perícias especiais continuam a contar como contavam
no passado mas isso não chegará para que possam desempenhar o tipo de papel essencial que
tiveram no Afeganistão e garantir o mesmo nível de sucesso de forma tão decisiva e num
relativamente curto espaço de tempo. Outro importante avanço registado na campanha do
Afeganistão situou-se na utilização prática do conceito de “network-centric warfare”, no qual todos os
sensores e armas estão ligados numa rede integrada de comunicações, comando e controlo,
permitindo reduzir drasticamente o tempo entre a detecção e a destruição de uma ameaça [9] e
conciliar a manutenção de um controlo centralizado das operações com uma aberta
descentralização ao nível de execução. Foi aliás conseguido manter o intervalo de tempo entre
detecção e destruição do alvo dentro de um período de dez minutos, concretizando-se assim a meta
que tinha sido estabelecida depois da Guerra do Golfo, como objectivo a alcançar.É sabido que
houve erros, que se verificaram ataques involuntários sobre forças amigas. Não faltaram, aliás,
grandes clamores da opinião pública contra essas falhas; pena foi que não se explicasse como teria
sido muito mais gravosa essa mesma operação se não existissem as capacidades que os EUA
criaram e de que até agora são os únicos detentores, por falta de atenção dos seus aliados
europeus. Igualmente importante foi a disponibilidade de veículos aéreos não tripulados podendo
permanecer por longos períodos em observação de área (cerca de 30 horas no caso do Global
Hawk), equipados com câmaras de alta resolução e capacidade de transmitirem imediatamente a
informação recolhida, colmatando desse modo a dificuldade anterior dos tempos mortos dos
intervalos de passagem dos satélites de observação. Ulteriores desenvolvimentos das suas
possibilidades permitiram juntar às suas capacidades de reconhecimento a capacidade de ataque
com armamento de guiamento preciso.É claro que a campanha do Afeganistão constitui um caso
único que provavelmente não se repetirá. Os EUA tiveram que seguir uma estratégia especialmente
desenhada para a circunstância de não terem acesso a bases de apoio nas proximidades. Para
essa estratégia foi ideal a combinação dos bombardeamentos de precisão com o apoio de forças
especiais, os veículos de reconhecimento não tripulados, as comunicações digitais de elevada
fiabilidade e um sistema de comando e controlo de extrema eficácia. Em muitos aspectos foi um tipo
de campanha inteiramente novo: sem batalhas, sem linhas de frente, nem marchas nem as
invasões que alguns analistas de pensamento clássico previam, nem muito menos com avanços
maciços de blindados.No entanto, o facto de as condições existentes no Afeganistão terem sido
provavelmente únicas não exclui que das lições aprendidas possam ser identificadas claras
tendências que provavelmente vão permanecer e que é preciso ter presente no processo de decisão
sobre o tipo de sistemas de forças que as exigências do futuro reclamarão prioritariamente. Muito do
que se passou corresponde, nas suas grandes linhas, ao tipo de intervenções requeridas pela
ameaça terrorista e se esse vai ser de facto um aspecto novo do emprego da força militar não resta
senão começar a reunir as capacidades necessárias para tal. Convém que nessa perspectiva se
não deixe de ter presente que a tecnologia continuará a ser cada vez mais importante, para operar à
noite, para ter comunicações rápidas e seguras e armamento que não ponha em causa uma
elevada mobilidade, em geral, para poder actuar frequentemente de forma encoberta e com
limitados apoios.A campanha de Bush e o “Eixo do Mal”Dois dias depois dos ataques terroristas
do 11 de Setembro, o Presidente Bush declarava que os EUA estavam em guerra contra o terrorismo
internacional e esclarecia que a sua luta não era apenas contra os responsáveis por esses ataques
mas sim contra o fenómeno terrorismo em si próprio. Pretendia com isto passar a incluir como
alvos dessa luta não só as organizações terroristas mas igualmente os países que as apoiarem.
Segundo o Secretário de Estado, Collin Powell, a campanha a empreender não visaria apenas a
satisfação de uma retaliação, neste caso contra a organização de Bin Laden – a al- QAEDA - mas
sim a eliminação da ameaça, actuando sobre as suas finanças, as suas infra-estruturas e utilizando
todos os recursos de recolha de informações disponíveis.Mais tarde, o Presidente Bush, voltando ao
assunto, identificava o Iraque, o Irão e a Coreia do Norte como países contra quem é preciso lutar na
guerra contra o terrorismo, agrupando-os sob a designação de “Eixo do Mal”, que teve um grande
impacto mediático, provavelmente tão grande com a expressão “Império do Mal” que Reagan tinha
usado na década de oitenta para se referir à então ainda existente União Soviética.Esta expressão
tem sido objecto de grande polémica e, regra geral, tem sido mal recebida a nível internacional,
designadamente entre os europeus. Presumo, no entanto, que vai bem ao encontro da opinião
pública americana, procurando sintetizar a ideia de que os EUA estão envolvidos numa campanha
contra um mal de que querem defender a humanidade. Esta ideia facilitará a reunião de apoios e a
criação de um ambiente favorável para as acções subsequentes que a administração pretende levar
a cabo. Para a conselheira de segurança do Presidente Bush o que “está em jogo é uma muito
poderosa causa moral para mudança de regime”. [10] São muitas, de facto, as interrogações que
esta expressão levanta, não sendo claro o critério adoptado para juntar sob a designação de um
“Eixo” dois países que lutaram a mais sangrenta guerra da década de oitenta e que se movem por
uma grande rivalidade – o Irão e o Iraque – e um terceiro – a Coreia do Norte - que se situa numa
esfera muito diferente. Os únicos pontos comuns entre eles são a grande animosidade que todos
têm contra os EUA, o estarem todos envolvidos em processos de investigação e desenvolvimento
de armamento de destruição maciça e não terem regimes democráticos. Mas se são estes os
critérios aplicáveis, então a lista teria que crescer para incluir mais alguns outros países que estão
nas mesmas condições.Não parecem ser idênticas as ligações que eventualmente os três possam
manter com organizações terroristas. A Coreia do Norte é geralmente referenciada como uma
ameaça à paz e estabilidade mundial por, entre outros motivos, continuar a procurar na exportação
de armamento e de mísseis uma das suas principais fontes de divisas sendo o Paquistão um dos
seus principais compradores. Não lhe são referidas ligações com organizações terroristas. O Irão é,
de facto, suspeito de apoiar actividades terroristas do Hammas e de outras organizações terroristas;
recentemente foi apontado como estando por detrás do envio de um carregamento de armamento,
por via marítima, para grupos terroristas palestinianos, que Israel interceptou durante o seu trânsito.
É também suspeito de envolvimento na criação de focos de instabilidade no Afeganistão para
dificultar a estabilização do país, o que alguns analistas atribuem a iniciativas dos lideres religiosos
fiéis ao Ayatullah Ali Khamenei. O poder no Irão é muito volátil, com uma acesa luta dos lideres
religiosos com os reformistas chefiados pelo Presidente Khatami. Todo este historial parece fazer
do Irão um alvo lógico dos EUA no seu combate ao terrorismo mas, para já, não será o alvo
prioritário pois o Iraque foi entretanto singularizado no grupo como o objectivo principal e mais
urgente dos EUA.O Iraque pode, realmente, constituir uma situação diferente e compreensivelmente
mais preocupante para os americanos. A começar pelo facto de viver sob um regime de feroz
ditadora de um líder a quem não interessam os meios para conseguir os seus fins, internos e
externos, nem muito menos os reveses que entretanto sofreu ao subestimar a capacidade do Irão
em repelir a invasão do seu território – o que levou 100.000 iraquianos à morte - e o empenho firme
dos EUA em libertar o Kwait. Um líder que aspira para o seu país o estatuto de potência regional e
que, na procura de alternativas para as políticas falhadas do passado, vê no antagonismo e desafio
aos EUA uma via para alcançar aquilo que não conseguiu por outras formas, isto é o apoio do
mundo árabe, geralmente descontente com a política americana em relação a Israel. Não existem
presentemente evidências de apoio iraquiano à al-QAEDA, mal grado os esforços americanos em
procurar ligações passadas; existem, no entanto, repetidos referências aos subsídios concedidos
às famílias dos terroristas suicidas palestinianos.Está, porém, confirmado por diversas fontes que o
Iraque está envolvido em programas de desenvolvimento de armamento de destruição maciça de
natureza química e biológica embora no que respeita a armas nucleares até ao momento apenas há
suspeitas. Em qualquer caso, segundo muitos analistas, as dificuldades tecnológicas que ainda
terá que ultrapassar, principalmente na área dos mísseis portadores dessas armas – ainda na fase
do muito antiquado “SCUD” – não permitem considerar por enquanto essa ameaça extremamente
preocupante. No entanto, estas dificuldades poderão ser ultrapassadas com o tempo, em especial
se dispuserem de ajuda externa, e nessas circunstâncias a situação agravar-se-á
consideravelmente.São conhecidas as formas como foi dificultada a tarefa dos inspectores das
Nações Unidas, aliás proibidos de entrar no país a partir de 1998. O seu eventual regresso, que
parecem estar agora dispostos a negociar, não pode deixar de ser encarado com reservas,
parecendo mais uma manobra para ganhar tempo e mostrar uma abertura que nada mais comprova
ter passado a existir. Aliás, sem alguma “ajuda” interna na indicação de pistas, as suas
possibilidades de sucesso serão reduzidas; por exemplo, muito do equipamento necessário para o
desenvolvimento de armas químicas tem também outros legítimos usos sendo assim fácil camuflar
a sua utilização indevida.Mais uma vez, também parece que não serão as sanções que irão deter a
actual postura do Iraque. Não faltam evidências de lacunas no seu cumprimento, com a colaboração
de vizinhos que têm nisso importantes vantagens económicas, designadamente na aquisição de
combustíveis a preços consideravelmente inferiores aos praticados no mercado legal. [11] Para que
o mundo não tenha que continuar a preocupar-se com os problemas de segurança que Saddam
Hussein representa, não restam, portanto, outras alternativas senão a sua deposição e a
subsequente alteração de regime por outro mais cooperante com os esforços de manutenção da
paz e estabilidade. Uma das teorias para que a actual administração americana estará mais
receptiva baseia-se na ideia de que tendo falhado até agora todos os esforços para deter Saddam
há que pôr termo ao problema antes que seja demasiado tarde, enquanto que está fraco. [12] É
grande, porém, a oposição internacional à eventualidade de uma campanha militar para depor
Saddam Hussein; não só da parte do mundo árabe e do mundo islâmico, mas também na Europa,
maioritariamente contra ou nada interessada numa guerra contra o Iraque e em que a excepção do
apoio que Tony Blair pretendeu dar começa agora a vacilar perante uma forte oposição interna,
designadamente de entre as fileiras do seu próprio partido, da igreja e da opinião pública. É intenso
também o debate nos EUA, com autorizadas vozes a pronunciaram-se contra essa eventualidade
[13] enquanto outras insistentemente advogam a urgência do seu desencadeamento.Entre os que
concordam e se opõem poderá haver hoje algum entendimento de que teria sido preferível ter
deixado o assunto resolvido durante a Guerra do Golfo, muito embora na altura tivesse sido achado
mais prudente não levar a humilhação até esse ponto, por preocupações de manutenção de
equilíbrio estratégico nessa tão sensível região do mundo. Parece prevalecer a ideia, pelo menos
por parte dos responsáveis da administração americana, de que em qualquer caso continuar a
deixar o Iraque desenvolver armamento de destruição maciça não constitui uma opção.O que se virá
a passar no futuro é, de momento, uma grande interrogação, sobre a qual apenas se pode
especular: em primeiro lugar, sobre se os EUA vão efectivamente recorrer a uma intervenção militar
para depor Saddam qualquer que seja a oposição internacional; em segundo lugar sobre a qual a
forma e o momento em que essa intervenção irá ocorrer. Com o que tem vindo recentemente a
público sobre a possibilidade de o ataque americano poder ter lugar até 30 de Novembro, a situação
poderá já estar clarificada na altura da publicação deste artigo. Ver-se-á então até que ponto tinham
cabimento os comentários que poderei por agora fazer.Sobre a primeira questão, o que me parece
ser mais relevante é o facto de os EUA terem enveredado por um caminho de confrontação de que
só poderá haver uma saída diferente se a situação interna no Iraque se alterar, entretanto,
radicalmente no sentido pretendido. Doutra forma, sob pena de perda de face e credibilidade, terá
mesmo que haver uma intervenção. Aparentemente, a prudência que normalmente costuma presidir
nestes tipos de situações, deixando várias hipóteses de saída em aberto, não esteve presente neste
caso. Talvez porque os EUA já não precisem presentemente de ser prudentes nem necessitem de
se preocupar com os clamores das vozes discordantes.A verdade é que o Mundo precisa de uns
EUA fortes e respeitados pela comunidade internacional e nessa perspectiva o que será desejável é
que se o regime do Iraque não mudar com o crescendo de pressão internacional e do apertar do
cerco, então os aliados europeus não podem hesitar em apoiar a intervenção americana, nem que
seja apenas em termos políticos. Terão para isso o argumento de que foram esgotadas todas as
possibilidades de uma solução pacífica. Nas actuais circunstâncias de cada vez menor margem de
manobra para Saddam usar manobras dilatórias e procurar subterfúgios, só um golpe interno de
mudança de regime poderá evitar uma intervenção militar americana. Não havendo oposição interna
organizada em ligação com as forças armadas só restará provavelmente a hipótese de que a chefia
destas reconhecendo nada poder fazer contra o poderio militar americano não se mostre disposta a
sofrer novas humilhações inúteis sem qualquer hipótese de desfecho honroso e, nessa base,
resolva assumir o controlo do país para a procura de um entendimento internacional.Sobre a forma
como se poderá concretizar a intervenção militar não têm faltado especulações, muitas delas
alimentadas por aquilo que alguns julgam ser fugas de informação mas que provavelmente
resultam de uma inteligente e muito bem articulada campanha de contra-informação que
desorientará a organização da resposta iraquiana, distraindo-a das linhas de acção mais prováveis
da estratégia americana. A controvérsia começou com o número de efectivos necessários, que tem
variado entre 250.000 e 50.000, e continuou posteriormente com referências trazidas a público de
sucessivas rejeições pelo próprio Secretário da Defesa dos planos elaborados pelo comando
militar.No que não hesitaria em afirmar, neste momento, é que uma eventual próxima campanha
americana sobre o Iraque muito pouco terá de comum com a Guerra do Golfo. Certamente que os
EUA têm várias modalidades de acção em aberto mas a que presumo ser mais provável consistirá
na destruição planificada das capacidades militares e das capacidades industriais e políticas na
procura da obtenção do controlo estratégico do país até conseguir o recuo ou a capitulação do
regime. Esta linha de acção não incluirá a invasão ou ocupação do território e não terá como
objectivo a aniquilação do Exército que aliás se presume já bastante depauperado e sem apoio
aéreo. Procurará, no entanto, eliminar qualquer possibilidade da sua utilização, ficando por este nível
o objectivo de destruição das capacidades militares. Evitará, por certo, o envolvimento directo dos
EUA na fase subsequente do longo processo de reconstrução do país, que previsivelmente ficará a
cargo de um novo regime a instalar depois da deposição do actual, eventualmente com um apoio
financeiro que ajude a recuperar a imagem americana perante a opinião pública iraquiana. É
preciso, no entanto, ter presente que os EUA estão a encarar uma possível intervenção no Iraque no
âmbito da doutrina de acção preventiva contra a proliferação da armamento de destruição maciça e
não no contexto da luta contra o terrorismo, já que não existem evidências do envolvimento do Iraque
nesses acontecimentos, logo não havendo lugar a retaliações. Há, porém, um aproveitamento do
clima internacional que se gerou à sua volta na sequência dos ataques de que foram vítimas há
cerca de um ano atrás como oportunidade de concretizar uma política que foi inicialmente
desenvolvida durante a primeira administração Clinton, por Lee Aspin, então secretário da Defesa
para combater a proliferação de armamentos. O assunto não é por conseguinte novo; o que poderá
vir a ser novo é a aplicação da mesma doutrina no campo da luta contra o terrorismo, em que por
provável maior dificuldade de reunir evidências vai ser bastante mais complexo definir os termos e
os âmbitos da sua aplicação.No âmbito da NATONum dos pontos da agenda para a Cimeira de
Praga em 21/22 de Novembro de 2002 será abordada a questão do eventual envolvimento da NATO
no combate ao terrorismo internacional e certamente analisado o papel que a organização e as
forças armadas em geral poderão vir a desempenhar para combater essa nova ameaça à paz e
estabilidade.O assunto é novo para a NATO porque enquanto até ao 11 de Setembro o tema era
considerado, regra geral, um problema quase exclusivamente do foro interno cada país, a partir daí
assumiu uma dimensão e natureza de ameaça a que a NATO não poderá deixar de procurar
arranjar uma resposta coerente com as preocupações que esses acontecimentos suscitaram. No
11 de Setembro, a NATO viu-se confrontada com a situação concreta de um dos seus países
membros ter sido alvo de acto hostil vindo do exterior, em circunstâncias que aliás se encontravam
já previstas e por isso tornou-se fácil invocar de imediato o artigo 5º da Carta e disponibilizar os
recursos que eventualmente fossem apropriados à situação. Acabou por não se verificar o seu
envolvimento directo na situação mas isso deve ser atribuído apenas ao facto de os EUA não terem
reconhecido a necessidade de um apoio material.A questão será certamente diferente e bastante
mais complexa se se puser nos termos mais abstractos do combate ao terrorismo em geral,
obrigando à definição - ainda não acordada – de terrorismo, à identificação dos inimigos da NATO
nesta área, à formulação de uma estratégia, à definição dos melhores instrumentos para a sua
concretização e, finalmente, ao estabelecimento de critérios de medida do sucesso. Em resumo,
tornar-se-á necessário clarificar, tão exactamente quanto possível, o que significará para a NATO
estar em guerra contra o terrorismo.O combate ao terrorismo, como se sabe, requer um conjunto
diversificado de medidas de natureza política, económica, judicial e sobretudo uma estreita
coordenação internacional de acções em que a NATO, por questões legais, terá quanto muito
apenas um papel restrito. O primado de actuação pertencerá, como tem acontecido até agora, às
organizações policiais e de segurança interna de cada país. Porém, nenhum país, mesmo entre os
mais poderosos, poderá sozinho esperar poder ter sucesso nessa luta. É preciso por isso criar
uma atmosfera de rejeição colectiva activa do terrorismo procurando seguir uma campanha de
negação de santuários a organizações terroristas obrigando os seus membros a viverem como
fugitivos internacionais sem nenhum lugar seguro onde se possam esconder e organizar. A NATO
poderá ter um papel essencial no objectivo atrás referido, em conjugar e coordenar esforços
individuais e em organizar um sistema eficaz de partilha de informações e de conhecimentos sobre
a forma de como lidar com situações de atentados terroristas, designadamente se envolverem a
utilização de armamento de destruição maciça, mas para isso terá que se adaptar a essa tarefa.
Esse papel não poderá deixar de incluir a utilização de forças como e aonde necessário para deter,
defender e proteger contra ataques terroristas, actuando contra esses terroristas e contra quem lhes
dá abrigo. O emprego da força militar será com certeza um elemento essencial de dissuasão pelo
menos contra os países que se mostrem dispostos a acolher organizações terroristas.A NATO tem
um potencial demasiado importante para não ser devidamente explorado na promoção de um
ambiente de maior consciencialização da necessidade de tomar medidas preventivas dado o
alargado leque de países que pode abranger, incluindo o conjunto de países da parceria para a paz
e do diálogo de Mediterrâneo, incrementando o diálogo, a transparência, o conhecimento mútuo, a
cooperação e capacidade de actuação conjunta. A forma encontrada de colaboração com a Rússia,
por exemplo, dará à NATO um novo campo de possibilidades de tornar mais efectiva a luta contra o
terrorismo e contra a proliferação de armamento de destruição maciça que se receia poder ficar
associada ao fenómeno do terrorismo.Mais concretamente, a NATO poderá desempenhar um
inestimável papel nas seguintes três áreas-chave: na gestão das informações; na assistência sobre
a forma de proteger populações e infra-estruturas, área em que tem algumas iniciativas em curso e,
finalmente, na criação de uma capacidade de dissuasão através do emprego de força militar. Este
papel deve inserir-se no âmbito mais geral de uma campanha de negação de santuários a
organizações terroristas, obrigando-os a viver como fugitivos internacionais sem nenhum lugar onde
se esconderem nem muito menos se organizarem. Defendermo-nos contra o terrorismo pode em
circunstâncias extremas significar levar a guerra até junto deles ou dos países que lhes dão guarida.
Ora isto implica dispor de capacidade expedicionária, isto é, movimentar forças rapidamente para
onde e por quanto tempo for necessário, preparadas para operar num ambiente de ameaça nuclear,
biológica ou química.A necessidade de reformas da NATONo início da década de noventa, logo
após o desmembramento da União Soviética, muitos analistas interrogavam-se sobre a
necessidade de manutenção da NATO em face do novo ambiente de segurança e alguns previam o
seu fim próximo por terem então cessado as circunstâncias que tinham determinado a sua criação.
A situação de segurança, porém, evoluiu de forma diferente do esperado e a NATO tendo sabido
adaptar-se, rápida e eficazmente, ao novo ambiente de segurança, tornou-se de novo na única
aliança de defesa capaz de ter um papel activo na manutenção da paz e estabilidade no mundo,
como aliás ficou demonstrado na crise dos Balcãs.Porém, temos hoje, de certo modo, uma
repetição da situação criada no início da década de noventa, mas agora por um conjunto variado de
razões, internas e externas, que tornam mais complexa a procura de uma saída que dê adequada
resposta às interrogações que se estão a levantar sobre o seu papel futuro e à alguma descrença
que entretanto se tende a instalar sobre as possibilidades de manter o mesmo importante papel
que desempenhou até muito recentemente. Por isso se fala hoje novamente na necessidade de
reformas na NATO. Prefiro abordar essa questão sob uma perspectiva de novos desafios que
sintetizaria nos seguintes: recuperação da sua relevância militar à luz das novas ameaças;
manutenção da sua natureza de aliança militar, reformulação da sua estratégia e adaptação dos
seus mecanismos de decisão Ninguém tem dúvidas que os europeus querem vivamente a
manutenção da NATO mas essa vontade não tem tido, salvo excepções, correspondência nos seus
esforços para a preservar como uma organização militar credível. É verdade que os europeus não se
sentem ameaçados da mesma forma que os EUA e têm mesmo dúvidas de que exista um “Eixo do
Mal” mas se querem realmente ter uma política externa relevante, com alguma influência na
evolução dos acontecimentos, então terão que também ter uma política de segurança e defesa
europeia que acompanhe esse propósito.Terão principalmente que assumir que a relevância militar
da NATO tem que assentar nas capacidades integradas de todos os seus membros, num esforço
conjunto que tem que ser uniforme, coordenado e coerente com os propósitos da Aliança o que
implica, presentemente, gastar mais e de forma mais criteriosa. Os EUA não se têm cansado de
repetir, com a concordância dos europeus, em que áreas seria especialmente necessário fazer um
maior esforço militar (transporte estratégico, munições de precisão, forças especiais e
comunicações seguras) mas, na prática, muito pouco tem acontecido nesse sentido. Não há que
estranhar, portanto, que já nem tentem obter a sua cooperação, de que aliás não precisam.O próprio
Secretário geral da NATO tem insistentemente feito repercutir estas recomendações quando avisa
que “os europeus estão a correr o risco de se tornarem militarmente pigmeus caso não se decidam
a aumentar os seus gastos com a Defesa. Lord Roberston espera que na Cimeira de Praga seja
possível obter “não um compromisso político genérico em aumentar as despesas mas um genuíno,
preciso e datado compromisso em adquirir as capacidades em falta”. Dando um exemplo da
debilidade militar europeia, Roberston lembrou que as capacidades de transporte estratégico
europeias são tão fracas que na recente deslocação de forças para o Afeganistão muitos não
tiverem outra alternativa senão alugar aviões de transporte russos e ucranianos . Alterar esta
situação é o primeiro grande desafio de que hoje depende a sobrevivência da NATO.A NATO sempre
foi uma organização que desempenhou tarefas políticas e tarefas militares mas, no passado
próximo, o seu papel político tem crescido à custa do seu papel militar. Na mais recente crise
internacional motivada pelos ataques terroristas de 11 de Setembro os EUA usaram a NATO apenas
como uma organização política, apesar dos esforços empreendidos pelo Secretário Geral para que
tivesse um papel militar activo. Restaram apenas, como notas positivas, o envio dos aviões de aviso
aéreo antecipado para colaborar no controlo do espaço aéreo americano e o emprego das forças
navais permanentes no controlo de uma área focal no Mediterrâneo Oriental, mas ambas tarefas não
tiveram lugar no local de acção.O problema que se põe é evitar que o seu actual estatuto de
organização político-militar continue a evoluir para o de uma organização apenas política. Ora isto,
como se sabe, está essencialmente dependente da forma como for resolvido o desafio anterior. Se
a sua capacidade militar for irrelevante também será irrelevante o seu papel político pois só a
primeira é que, em última instância, esgotados todos os outros meios, poderá evitar a guerra. É
esclarecedora a forma como alguns influentes sectores da administração americana, mais
desinibidos na forma de expressar a forma como olham para as capacidades militares dos
europeus, apreciam a actual situação. Cito, a título de exemplo, Richard Perle [14] : “a Europa tem
que compreender que estamos prontos a aptos a actuar sem a sua participação para combater
nesta nova guerra (contra o terrorismo). Não podemos dar-nos ao luxo de nos envolvermos em
debates prolongados e, muito honestamente, desprovidos de objectivos. O que está em jogo é
demasiado importante para não actuar e se chegamos a um ponto em que tenhamos que optar
entre não actuar para apaziguarmos os nossos aliados ou actuar para proteger os nossos cidadãos,
então vamos mesmo actuar. Os nossos aliados europeus continuam importantes em termos
políticos mas durante os últimos dez anos a Europa tem consistentemente falhado em investir em
melhorar as suas capacidades a um nível tal que se atrofiaram ao ponto de se terem tornado
virtualmente irrelevantes”. [15] O Presidente Bush diz que “A América precisa de parceiros para
preservar a paz” [16] , mas existe hoje uma óbvia preferência em procurar esse parceiros através de
coligações ad-hoc, em detrimento da própria NATO. São compreensíveis as razões desta opção:
uma coligação pode permitir uma base de apoio mais alargada do que a proporcionada pela própria
NATO, de preferência incluindo esta última; uma coligação não obriga os EUA a sujeitarem-se aos
mecanismos de decisão da NATO, deixando-os muito mais libertos para conduzir as acções sem
necessidade de submeter as suas opções ao escrutínio de todos os seus parceiros com as
formalidades que a NATO exige. O secretário da Defesa americano, Rumsfeld, é muito claro a este
propósito quando, no seu relatório anual para o presidente e Congresso, defende, como lição
apreendida das recentes intervenções militares, que “será sempre melhor fazer a guerra apoiados
numa coligação, mas sem que a sua condução seja feita por um comité. [17] É a missão que deve
determinar a constituição da coligação. Não é a coligação que deve determinar a missão”. [18] Aqui
há claramente o problema da forma unilateralista como actualmente os americanos tendem a
encarar a forma como deve ser resolvidos os problemas que se lhes levantem. Porém, é necessário
reconhecer que não é possível manter a NATO a funcionar com mecanismos de decisão que
podiam ser ao apropriados para o período de Guerra Fria mas que presentemente não serão os
adequados às exigências da nova situação de segurança nem muito menos ao número alargado de
países membros o que, por si só, tende a tornar todo o processo mais difícil. É preciso que o
processo de decisão garanta coerência e propósito militar conforme com a natureza diferente dos
conflitos de hoje.Um outro importante desafio que a NATO tem pela frente é demonstrar que uma
coligação permanente – como é a NATO – é sempre melhor do que uma coligação de ocasião,
muitas vezes construída sobre uma frágil base que se pode desmoronar perante qualquer
dificuldade. Este pode ser o caso da coligação constituída para a campanha no Afeganistão, na
eventualidade de um subsequente ataque ao Iraque. Aliás, só uma coligação permanente pode
garantir a indispensável interoperabilidade das respectivas forças. Note-se que interoperabilidade
tem a ver não só com o material mas também com doutrina, formação, treino. Esta realidade ainda é
hoje reconhecida no discurso do actual secretário da defesa quando diz que “a guerra contra o
terrorismo não seria possível sem a NATO” e no discurso do seu sub-secretário, Wolfowitz, quando
este refere “que as operações no Afeganistão beneficiaram de mais de cinquenta anos de
planeamento, treino e operações combinadas”. Para fazer com que isto não deixe de ser também
reconhecido na prática é preciso que a NATO, através de um maior esforço dos europeus, recupere
o protagonismo militar que foi a chave do seu sucesso nos seus primeiros cinquenta anos de vida e
que se adapte rapidamente aos desafios emergentes da actual situação de segurança em que se
inclui a do terrorismo internacional.
[1] Hoffman, F. G., “Homeland Security – A Competitive Strategies Approach”, March 2002, Center for
Defense Information.[2] Lieutenant General Kaddish, USAF, Statemente before de Senate
Appropriation Committee- Defese Sub Committee.[3] Graham, Bradley, “U.S. shows new interest in
nuclear-armed missile interceptors”, “The Washington Post/International Herald Tribune”, 12 April
2002.[4] “...trhough works on missile defenses”[5] Ganor, Boaz, “Is one man´s terrorist another man´s
freedom fighter?, “Defining Terrorism”.[6] Whine, Michael, “The new terrorism”, Jan 2002.[7] Por estas
razões é que o secretário de estado americano, Collin Powell, tem vindo a defender aquilo que
designa por “smart sanctions”, na procura de um sistema que penalize mais os responsáveis
políticos do que uma população não responsável.[8] Meilinger, Philip S. , “A Matter of Precision”,
Foreign Policy, Mar 2002.[9] A terminologia militar americana designa este intervalo por “sensor-toshooter time lag”.[10] Rice, Condoleezza, em entrevista à BBC, Agosto de 2002.[11] Estima-se que
presentemente o Iraque esteja a conseguir cerca de três biliões de dólares por ano, através de fugas
ao sistema de sanções.[12] Pollack, Kenneth, um prestigiado especialista sobre o Médio Oriente.[13]
A polémica acentuou-se com um artigo de Brent Scowcroft, antigo conselheiro de segurança do
tempo de George Bush no “Wall Street Journal”, “Don´t attack Saddam”.[14] Presidente do “Defense
Policy Board”, um influente orgão consultivo do Pentágono.[15] Defense Daily International, extractos
da intervenção de Richard Perle na 38º Conferência de Munique sobre Política de Segurança).[16]
Discurso de West Point, em Junho de 2002.[17] Refere-se, por exemplo, às dificuldades sentidas
durante a campanha aérea do Kosovo para obter consenso no seio do Conselho do Tratado do
Atlântico sobre as listas de alvos. [18] “Wars are best fought by coalitions of the willing – but they
should not be fought by committee. The mission must determine the coalition. The coalition must not
determine the mission”

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