Direito Enquanto Sistema na Sociedade

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Direito Enquanto Sistema na Sociedade
PRÉMIO
DOUTOR CABRA L DE MONCA DA
uma visão jurídica da evolução
do “direito enquanto sistema na
sociedade” nas teorias sociais
manuel pinto do s santo s
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PRÉMIOS
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prémio
doutor cabral de moncada
UMA VISÃO JURÍDICA DA EVOLUÇÃO
DO “DIREITO ENQUANTO SISTEMA NA
SOCIEDADE” NAS TEORIAS SOCIAIS
MANUEL PINTO DOS SANTOS
ED IÇÃO
Fa cu ldad e d e D i r ei t o d a Un i v er s i d ad e d e C o i m bra
In stitu to Ju ríd i c o
C ON C EÇÃO GRÁ F I C A | I NF O GRA F I A
An a Pau la S ilva ı ap s i l v a@ f d . u c . p t
C ON TAC TO S
Páti o da Un ive r s i d ad e ı 3004 -54 5 C o i mb r a
in stitu toju r idic o @ f d . u c . p t
I SBN
978-989-878 7-22-4
© MAIO 2015
INSTITUTO JURÍDICO | FACULDADE DE DIREITO | UNIVERSIDADE DE COIMBRA
Uma Visão Jurídica da Evolução do
“Direito Enquanto Sistema na Sociedade”
nas Teorias Sociais
Manuel Pinto dos Santos
Resumo: O presente artigo traça a história da ideia do direito enquanto subsistema autónomo dentro da sociedade, com uma função própria.
Encontrando raízes nas construções de Max Weber e Émile Durkheim, a
teoria dos sistemas surge pela primeira vez com fulgor no panorama sociológico através de Talcott Parsons. É, no entanto, com Niklas Luhmann,
proponente de uma visão do direito enquanto sistema autónomo e autopoiético, dotado de clausura operacional, que o funcionalismo sistémico
surge como paradigma viável para uma visão do direito. O corpo do artigo
explora a teoria luhmanniana e as correcções que lhe são feitas, mais tarde,
por Günther Teubner e Jürgen Habermas, que, cada um à sua maneira,
tentaram enfrentar o problema da teoria dos sistemas em face da sociedade plural com que se depararam. Conclui-se com uma reflexão acerca do
lugar que cabe, hoje em dia, a esta teoria.
Palavras-Chave: Niklas Luhmann; Günther Teubner; Jürgen Habermas; funcionalismo sistémico; pluralismo; teoria dos sistemas.
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PR ÉMIOS | Prémio Doutor Cabral de Moncada
The Idea of “Law as a System in Society”
A Juridical Analysis
Manuel Pinto dos Santos
Abstract: This article outlines the evolution of the idea of law as an
autonomous system in society, with its very own function. With roots in
the writings of Max Weber and Émile Durkheim, Systems Theory was first
developed as such by Talcott Parsons, whose cybernetic approach gained
much praise by social theorists of his time. Drawing upon his work, Niklas
Luhmann came up with a vision of Law as an autonomous and autopoietic
system, working with operational closure. His construction became one
amongst the competing paradigms on the nature of Law, and was later
fine-tuned by Günther Teubner and Jürgen Habermas, who struggled
to adapt it to the rising pluralism that was to be found in contemporary
society. This article concludes with a reflexion on the current role and
place of this Systems Theory on the current academic landscape.
Keywords: Niklas Luhmann; Günther Teubner; Jürgen Habermas; systems theory;
Law as a social system; pluralism.
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Uma Visão Jurídica da Evolução do “Direito Enquanto Sistema na Sociedade” ...
I. Preliminares
1. A Societas pós-1789 é um quebra-cabeças. Ao fascínio humano
perante problemas aparentemente irresolúveis veio unir-se a propensão
iluminista para a análise racional e a sistematização científica; e, assim,
despontou a Sociologia enquanto disciplina autónoma. Dizemos 1789
de forma simbólica – o número expressa de maneira compacta uma
série de transformações que se começam a fazer sentir (dizem-nos os
sociólogos) quando, em 1520, Martinho Lutero advoga a liberdade de
todo o cristão para interpretar a Bíblia1. Certamente que outro símbolo.
Mas um que indica o sentido das transformações – a fragmentação da
communitas religiosa e a expressão de uma autonomia individual que
reclama o seu reconhecimento pelas outras partes. A liberdade religiosa foi
a sua face mais visível neste período – mas a transversalidade deste
claim to liberty projecta-se (e de forma eminentemente plural) até aos
dias de hoje. O problema da compossibilidade das pessoas individuais numa
sociedade pacífica. A sua expressão actual no problema do pluralismo, e a
sua expressão histórica no problema da modernidade. O motto: “Como é
possível a ordem social?”. Seria uma desilusão se a sociedade pluralista
conseguisse menos que uma pluralidade de respostas.
2. O direito, com a sua posição privilegiada na manutenção desta
ordem, não escapará certamente ao escrutínio desta ciência do social.
Arrogar a subtracção do direito ao reino do social seria solipsismo
jurídico, não importando quão sacrílego possa parecer ao jurista a
redução do edifício político-legal a mera “facticidade social”. Mas o
próprio edifício estará sempre inextricavelmente unido à ciência social;
ou não é De l’ esprit des lois também uma obra de análise social?2 E não
procura Du contrat social estabelecer fundamentos para esta modernidade
que se avizinhava? A fronteira é por vezes ténue. Certo é que nenhum
Martinho Lutero, Carta ao Papa Leão X.
Raymond Aron, As Etapas do Pensamento Sociológico, 32: “A intenção de
O Espírito das Leis (…) é com toda a evidência a intenção a que eu chamo sociológica”.
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domínio discursivo deve desprezar a compreensão do real que o outro
lhe pode providenciar.
3. Cabe-nos, neste trabalho, assumir um olhar jurídico sobre o
contributo sociológico. Analisaremos uma teoria em particular – teoria
dos sistemas – e procuraremos relevar aquilo que se mostra de utilidade
para a compreensão do sentido e posição do direito; trata-se de uma
empreitada de cariz dialógico, que tenta colocar – por a entender plena
de contributos de valor – a teoria sociológica em relação com as ciências
jusfilosóficas. Abordaremos os escritos de alguns autores célebres pela
sua proficiência no domínio da sociologia – mas procurando pôr em
relevo os seus contributos para a teoria jurídica.
4. A tensão fundamental – comum a ambos os discursos – é
entre o atomismo individual e a vida em comunidade. Não só um
comum biológico... Mas o comum da experiência cultural humana, expresso
no universo jurídico pela dicotomia suum/commune, autonomia/
responsabilidade. Também a sociologia, ciência mais jovem, procurou
alcançar a sua plenitude através do cientismo positivista de Auguste Comte3
(não muito depois da superação do normativismo legalista)... para se ver
perdida na mais abstracta metafísica. A sua viragem para a fenomenologia
mostrou-se indubitavelmente mais produtiva4, com alguns autores tidos
hoje como “clássicos” a tecerem uma série de quadros conceptuais
ainda hoje altamente relevantes na análise social. Colocando ênfase
quer numa prevalência da sociedade (Durkheim), quer na acção individual
(Weber), foram sendo construídos modelos da acção da sociedade. Uma
tentativa de compreender... e talvez prever o comportamento dos indivíduos
e da colectividade. Exploremos um pouco estas duas abordagens, na
medida em que possam vir a ser úteis na restante exposição.
4.1.1. Émile Durkheim coloca assim a tónica naquela prevalência da
sociedade. Concentrou-se naquilo que a tornava possível, no mecanismo
que permitia não se ver apenas um conjunto de indivíduos e suas relações
mas este mais-que-eles dinâmico. Encontrou a resposta naquilo a que
chamou solidariedade, categoria esta que dividiu em solidariedade mecânica
3
F. J. Pinto Bronze, Lições de Introdução ao Direito, 205.
Luís Cabral de Moncada, Filosofia do Direito e do Estado, II, 90 s: “Iluminando alguns desses factos com a luz dos outros, esforça-se por encontrar, antes
de tudo mais, não a lei do mecânico acontecer em séries de repetições indefinidas,
mas a individualidade dos todos únicos e irrepetíveis, chamados «épocas» ou os
grandes ciclos da cultura e da civilização”.
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Uma Visão Jurídica da Evolução do “Direito Enquanto Sistema na Sociedade” ...
e solidariedade orgânica, que fazia ainda corresponder, respectivamente, às
sociedades primitivas e modernas5.
Designava a primeira uma união entre indivíduos que existia
graças às semelhanças entre estes. Existiria, nas sociedades arcaicas
anteriores à divisão social do trabalho, um elevado sentimento de
pertença à colectividade derivada da pequeníssima diferenciação
existente entre os diversos indivíduos. Seria a comunhão de valores,
crenças e funções o factor que unia estes seres humanos. E a este tipo de
sociedade, diz Durkheim, (apoiando os seus escritos em investigações
de carácter histórico), corresponde um direito dito repressivo, cuja
função seria satisfazer sentimentos de vingança da colectividade contra
os indivíduos que ofendessem os seus valores. Sendo estes partilhados
por todos, aquele que fosse contra as leis – escritas ou não – seria
punido por todos, de uma forma que tendia a não ser proporcional
ao crime. Todos teriam a mesma forma de ver o crime – crime numa
perspectiva sociológica, aquilo que ofende a consciência geral (mas ainda
não a consciência jurídica geral de Castanheira Neves...6) – e a ausência de
visões alternativas do delito torná-lo-iam universalmente reprovável e,
por isso, fortemente punível7 (tome-se como exemplo uma sociedade
em que todos dependem de pão para sobreviver, e em que, portanto,
aquele que roubar o pão de outro está a roubar-lhe a subsistência. É
compreensível que a consciência geral – visto que todos os indivíduos
se encontram fortemente envolvidos pelo sistema ético vigente – veja
este delito como punível com uma pena capital).
Chegando a sociedades modernas, já com divisão social do
trabalho, temos uma solidariedade diferente, dita orgânica. Os indivíduos
da colectividade estão unidos pelas suas diferenças, que os fazem
depender uns dos outros (à semelhança dos diferentes órgãos num
corpo...). Esta nova organização social leva a uma maior diferenciação
Raymond Aron, As Etapas do Pensamento Sociológico, 314 s.
António Castanheira Neves, Metodologia Jurídica – Problemas Fundamentais,
280: “Trata-se do que se poderá considerar o consensus omnium ou a normativa
conscience publique da comunidade de que se trate e em que será lícito ver como
que o costume ético-social da mesma comunidade, posto que porventura a diferenciar-se em
função dos grupos sociais a que vai referido [...]”.
7
George Ritzer, Sociological Theory, 81: “The theft of a pig must lead to the
cutting off of the offender’s hands; blaspheming against God or gods might well
result in the removal of one’s tongue. Because people are so involved in the moral
system, an offense against it is likely to be met with swift, severe punishment”.
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dos indivíduos, que verão, consequentemente, os factos sociais por
diferentes prismas. O direito repressivo deixa de ser tão viável – embora
nunca desapareça! – uma vez que já não existe uma forma universal de
ver o mundo, um conjunto de valores supremos pelo qual todos se guiam.
Assim se chega ao direito restitutivo. Pois se temos na sociedade
uma predominância de interacções entre vários grupos que se regem
por diferentes concepções (do bom e do mau, do justo e do injusto, do
sagrado e do profano...), a função do direito passa a ser a de conciliar
estas diferenças e permitir que a sociedade seja funcional a despeito
d’(e graças a)elas. Já não se trata de punir um infractor, mas de restituir a
situação ao que seria se não se tivesse dado o crime. No conjunto dos “órgãos”
do “corpo” da sociedade, o direito fará as vezes do sistema nervoso:
conciliando as relações entre os vários órgãos (grupos), permitindo que
tudo se passe e tentando passar... despercebido8.
4.1.2. A tónica para o sociólogo francês está sempre na sociedade.
O direito consubstancia apenas a expressão mais clara da vontade da
consciência geral, ela mesma encarnação do espírito desta sociedade
que precede mesmo o indivíduo. Isto tem altas consequências na sua
forma de pensar ambos os conceitos: nunca pode um mecanismo social
ser explicado por um expediente legal; os institutos legais é que se
explicam à luz da sociedade. Os contratualistas, por exemplo, tentaram
explicar a possibilidade de uma ordem social a partir do contrato (como
que procurando no átomo a fonte das leis da física, macroscopicamente
consistentes com a sua estrutura...). Durkheim, porém, escrutina
os factos de forma diferente: se se encontra um contrato na base da
ordem social, é preciso saber qual a origem, quem permite este contrato
(porque possui o átomo estas características? O que o molda…?).
Conclui que é a sociedade que possibilita o contrato; é o contrato que é
tipificado pela vontade da consciência colectiva (o átomo não é, afinal,
o prius). As condições que permitem o livre acordo das vontades são
independentes e existem anteriormente ao acordo das mesmas. Não
é possível explicar a sociedade a partir do contrato, apesar de este lhe
ser nuclear – é preciso perguntarmo-nos “como é possível a ordem
social?” e não nos determos no contrato. É preciso ir mais longe –
“como é possível o contrato?”. E a resposta, diz-nos Durkheim, está
8
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Raymond Aron, As Etapas do Pensamento Sociológico, 318 s.
Uma Visão Jurídica da Evolução do “Direito Enquanto Sistema na Sociedade” ...
na consciência colectiva que o permite9 e que determina um conjunto
de valores comuns, cristalizados num conjunto de regras independentes
dos fins imediatos da acção e ainda passíveis de interpretação por uma
classe legal. Um sistema de normas, sem o qual os valores não estariam
em prática e os indivíduos cairiam na anomia. E não é tudo. Ao dar-se
conta da estratificação da sociedade em classes profissionais, Durkheim
tem não só noção de que a individualização é a característica dominante e
o motor da modernização, como ainda vê a décalage de uma classe jurídica,
com uma função específica, linguagem e valores próprios, dentro de uma
sociedade complexa. Conseguimos ver aqui o gérmen da ideia de direito
como sistema independente, dentro de um sistema social complexo.
4.2.1. Numa perspectiva diferente – centrando-se na acção social
individual e nas crenças de cada um – mas chegando a conclusões
que não destoam, temos Max Weber. Diagnosticando a tendência do
mundo moderno para a racionalidade com vista a fins10 (Zweckrationalität,
opondo-se à Wertrationalität), encontra o espelho desta tendência da
acção individual numa progressiva especialização na sociedade. A sua
visão da evolução do direito colocava assim a ênfase no processo de
profissionalização. Um direito que progride com os juristas – Berufmenschen
que Weber analisou com particular atenção quando se concentrou nas
profissões do mundo ocidental moderno.
Apoiando-se em dados da experiência histórica, o A. faz uma
proposta para a evolução do sistema legal ligada à maior profissionalização do
jurista. Max Weber separa as etapas históricas da formação do jurista
em três fases: uma primeira num estilo quase artesanal, no sentido em
que o direito vigente passa de mestres para discípulos num cenário de
9
Raymond Aron, As Etapas do Pensamento Sociológico, 321: “Os contratos
são celebrados entre os indivíduos, mas as condições em que são celebrados são
fixadas por uma legislação que traduz a concepção que a sociedade global forma
do justo e do injusto, do tolerável e do interdito”. Indo mais longe, Durkheim vê
a divisão do trabalho e o contrato social como mecanismos quase Darwinianos,
existentes por permitirem a subsistência de um maior número de seres humanos,
tendo origem numa “luta pela vida”. Os indivíduos que se especializaram em
determinada função deram espaço aos outros e ganharam espaço para si próprios
– torna-se possível uma maior densidade moral, nas suas palavras.
10
Max Weber, Conceitos Sociológicos Fundamentais, 47: “Age racionalmente
em ordem a fins quem orienta a sua acção por uma meta, meios e consequências
laterais e pondera racionalmente, para tal, os meios com os fins, os fins com as
consequências secundárias como, finalmente, também os diferentes fins possíveis
entre si: em todo o caso, pois, quem não actua nem afectivamente (e, sobretudo,
de modo não emotivo), nem tradicionalmente”.
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jurisprudência concreta, não formando verdadeiros profissionais legais
e não chegando nunca a constituir um verdadeiro sistema (pensemos
no direito empírico dos tabeliães...); uma posterior de aprendizagem
do direito à volta de alguns mestres notáveis (pense-se nos velhos
mestres da escola dos comentadores, que, em Bolonha, atraíam legiões
de discípulos de toda a Europa) e que também não produziria, muito
provavelmente, um sistema legal racional e organizado, mas sim uma
elite de académicos. Por fim – e algo que, quando Weber escrevia,
apenas existia no mundo moderno ocidental – a criação de escolas
especializadas em direito, onde a ênfase é colocada na teoria e na ciência
legais, e o direito apresentado de maneira sistemática e racional11.
Apenas através deste tipo de ensino se chegaria a um sistema racional e
a verdadeiros profissionais, a leis formais e abstractas, e por essa razão
Weber apenas os encontrava na civilização ocidental. A importância
deste factor para a nossa exposição está na sua intra-juridicidade: é a
evolução dos juristas e do ensino do direito que condiciona o próprio
sistema. Muito embora o A. visse o estímulo à especialização como algo
de inerente a uma sociedade de crescente “procura” de especialização
nas várias profissões, veremos mais à frente que até alguns dos mais
acérrimos defensores da autopoiésis do direito admitiam um certo
input cognitivo, desde que salvaguardada a autonomia jurídica. Notemos
também que Weber encontra nesta progressiva burocratização e na
especialização do indivíduo uma importante fonte dos problemas da
idade moderna. O grand mal do homem contemporâneo é a sua enorme
especialização, que lhe não permite a realização plena da alma...
4.2.2. Uma outra construção weberiana amplamente citada é
a sua visão de ordem legal, legitimada por uma de três vias: carismática,
tradicional e legal. Não nos cabendo explorar nesta exposição as duas
primeiras, é importante que fique claro que, no entender de Max Weber,
as sociedades modernas tendem a ser governadas por regimes de base
legal, não só por causa do destronamento da Wertrationalität a favor da
Zweckrationalität, mas também por força do seu argumento relativo à
11
David Trubek, Max Weber on Law and the Rise of Capitalism, p. 724: “The
European state separated law from other aspects of political activity. Specialized
professional or ‘status’ groups of lawyers existed. Legal rules were consciously
fashioned and rulemaking was relatively free of direct interference from religious
influences and from other sources of traditional values. Concrete decisions were
based on the application of universal rules, and decisionmaking was not subject
to constant political intervention”.
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Uma Visão Jurídica da Evolução do “Direito Enquanto Sistema na Sociedade” ...
sucessão dos líderes carismáticos, que tenderia a decair para um dos dois
outros tipos. Weber previa ainda um progressivo aumento na dificuldade
da ascensão dos ditos líderes, associada ao aumento da burocracia e do
predomínio da autoridade de base legal. A importância desta ideia para
a nossa exposição está na legitimidade do sistema de normas legais jazer
na própria ordem legal. A visão do A. parte de uma concepção da acção
individual do homem, inspirada pela razão-vernunft que a caracteriza, e
desagua na perspectiva de um direito como “conjunto de normas” que
assenta numa ordem em si mesma legal. Partindo da racionalidade do
indivíduo moderno, Weber acaba por explicar um direito de carácter
autónomo12.
5. Não sai o direito incólume deste arrancar da sociologia, do
pensamento destes dois homens que estabelecem, por um lado, uma
“sociedade” enquanto fenómeno específico e por outro um diagnóstico de
crescente racionalidade instrumental da arte dos indivíduos. À falência do
normativismo enquanto paradigma do pensamento jurídico corresponde
a emergência de novas perspectivas teóricas do direito; e no sentido
do desencantamento da communitas e da progressiva centralidade do
Homem na perspectiva do Homem, da racionalidade meio-fim e das
ideias utilitaristas de primazia do bem-estar da maioria, surge-nos um
direito orientado para fins e funções específicas. O advento do funcionalismo
jurídico, tornado possível pela (e assentando na) renúncia aos valores
absolutos de que a mundividência subjectivista desta societas de sujeitosindivíduos é lógica causa. A ontologia é substituída pela teleologia – e
não nos interessa já o que é o direito mas para que serve ele, assim como
se torna irrelevante perguntar em que se funda quando temos de saber
quais os seus efeitos. Esta emancipação da validade própria torna o direito
ferramenta útil para a sociedade lidar com a complexa realidade que lhe
está intrínseca – maxime, com o problema da modernidade. Porque o
que caracteriza a sociedade é o pluralismo de valores, entendimentos
e mundividências, esta mesma perspectiva teórica se veria fracturada
em inúmeras vertentes – que Castanheira Neves sintetiza na distinção
entre funcionalismo jurídico material e funcionalismo jurídico sistémico, modelos
de índole radicalmente diferente mas unidos pela orientação no sentido
da funcionalidade do direito.
12
Raymond Aron, As Etapas do Pensamento Sociológico, 227 s.
15
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5.1. No primeiro caso, temos uma efectiva materialização do
direito. O jurídico é convocado para realizar os objectivos que lhe são
impostos por um legislador/estratega... e para fazê-lo tendo em conta
critérios de eficácia e eficiência, com vista a determinados efeitos. A lei
como Zweckprogramm a encarnar a lei-plano e a lei-medida, aplicada na
prática de forma técnico-estratégica: a melhor decisão será aquela que melhor
realizar os fins a que o legislador se propôs. Consoante a área da vida social
a que é dado controlo sobre este direito-instrumento, teremos uma
série de diferentes funcionalismos jurídicos materiais: funcionalismo jurídico
político, law and economics, funcionalismo jurídico tecnológico. A tolerância de
diferentes orientações para o direito advém precisamente daquilo que é
a visão particular deste funcionalismo – o direito será aquilo para que se
queira que ele sirva, definindo-se e existindo apenas na medida em que cumprir os
programas de que é encarregue13.
5.2. Interpretação diferente, e aquela de que este trabalho se
ocupa, é aquela do funcionalismo sistémico, que vê o direito como
sistema autónomo dotado por sua própria posição na sociedade de
determinadas funções. A sua abordagem será portanto objectiva: o
direito é um sistema-objecto que pode ser observado num contexto
estrutural-social, e ao sujeito compete averiguar quais as funções que
ele com efeito desempenha. Note-se que dar ao direito o carácter de
estrutura em nada lhe atribui um sentido ou uma ontologia próprios...
Toda a estrutura do direito existirá apenas para servir as funções que
lhe são intrínsecas – e, portanto, este não será nunca instrumentalizável,
nem a decisão poderá jamais ser vista como mera escolha segundo
critérios de eficiência.
6. Por seu turno, a chegada do século XX traduziu-se numa viragem
no âmbito da investigação sociológica. A ciência chegara, entretanto,
à América, onde as “grandes teorias” dos “clássicos europeus” eram
vistas com desconfiança. A epistemologia dominante era a da Escola
de Chicago, que se caracterizava por uma micro-sociologia altamente
empírica e de carácter eminentemente estatístico, baseando os seus
dados em investigações de campo (abordagem que viria mais tarde a dar
origem às teorias do interaccionismo simbólico e da etnometodologia),
e, portanto, algo longínqua da imagem do “sociólogo funcionalista”,
13
16
António Castanheira Neves, «O Funcionalismo Jurídico», 223.
Uma Visão Jurídica da Evolução do “Direito Enquanto Sistema na Sociedade” ...
especulando no seu gabinete, e aproximando-se mais do trabalho
científico do antropologista. A viragem funcionalista viria apenas nos anos
trinta, quando um reavivar da teoria social vem a destronar o empiricismo
que reinava e a instaurar o paradigma do estrutural-funcionalismo.
6.1. A figura central deste movimento foi o norte-americano
Talcott Parsons, de cujo trabalho germinou este funcionalismo sistémico
que presentemente estudamos. O seu estrutural-funcionalismo, introduzido
nos círculos académicos pela obra The Structure of Social Action, tomava
como “factos” as obras de Marshall, Pareto, Durkheim e Weber,
procurando conciliá-las naquilo a que o investigador Coloradense
chamaria a Teoria Voluntarista da Acção14.
Voltando-se para o consenso como motor da sociedade, Parsons
procurou unir as ideias de liberdade individual e escolha racional de
cada um de Weber com as ideias de indivíduo posterior à sociedade de
Durkheim. Parsons parte daquilo a que chama unit-act e que constitui,
fundamentalmente, a célula, a unidade elementar da acção. Não apenas
“uma acção”, mas um verdadeiro limite inultrapassável até onde é
possível analisar uma acção. Este unit-act seria composto por um actor
que tem em vista determinados fins (herança de Weber, assim como de
Pareto) e que está condicionado por normas e valores, assim como pelas
condições materiais e situacionais à qual está sujeito15. Aquelas normas e
valores, em existindo alternativas de acção, vão levar a uma orientação
normativa em determinado sentido, que dirige um grupo para uma
igualmente determinada decisão (a herança de Durkheim!), deixando
apenas ao indivíduo a sua motivação individual (conciliando, assim,
ambas as ideias). Nota-se aqui uma tensão entre o estático do sistema,
das normas que o constituem, e a acção individual volátil; para Parsons,
a acção humana está sempre emparedada entre o mundo físico e o
mundo cultural e simbólico, mundos de não-acção a que, no entanto,
nenhum actor se furta.
Partindo do conceito de função, definida pelo A. como “um
complexo de actividades com o intuito de satisfazer uma necessidade
ou necessidades do sistema”, o autor elabora uma enumeração das
14
“Sur les cadavres des trois grands sociologues européens” vem este
“Américain balourd” erigir uma “immense et redondante platitude idèaliste”, no
dizer de Bourricaud.
15
Uma célula... Mas certamente que não um átomo, na medida em que
configura um nó de relações que permite atribuir significados. Maria José Stock,
«A Teoria da Acção Social em Talcott Parsons», 17.
17
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necessidades do sistema que se tornou quase canónica: o paradigma
AGIL16, de acordo com o qual o direito seria o subsistema societário
que lidaria com a integração dos indivíduos, estando subordinado a um
“sistema fiduciário” que conservaria os valores.
Daqui, inferia uma visão de sociedade em equilíbrio, sendo
possível encontrar-se esta mesma estrutura e funções sociais (como
num regresso aos resíduos de Pareto 17) em qualquer sociedade (em
qualquer sistema!) que se quisesse analisar. A aparente paralisia deste
paradigma valeu-lhe duras críticas; mas não era por isso que deixava de
ser, à época, notável - a começar pela forma como unia os níveis micro e
macro. Começava pela relação ego – alter ego, tida como a mais elementar
de todas, para aumentar a escala para indivíduos que interagem entre
si com o intuito de maximizar a sua gratificação, para, a uma escala maior,
colocar estes indivíduos a formar sistemas que interagiriam entre si
em graus de complexidade cada vez mais elevados, integrando sempre,
no entanto, as quatro funções fundamentais discriminadas, e de forma
cibernética. Os indivíduos, interagindo entre si, vão formar um sistema
social dividido em quatro subsistemas (fiduciário, legal, político e
económico; aos quais correspondiam, respectivamente, as funções de
latência, integração, prossecução de objectivos e de adaptação).
Repare-se na posição definida do direito – servindo os valores
e símbolos culturais, como veículo para a sua mobilização geral, e
de certa forma guiando as conquistas do goal-attainment da política
e as escolhas de adaptation da economia. As quatro necessidades
fundamentais existiriam também dentro do sistema do direito – como
em todos os sistemas – que teria as suas próprias formas de lidar com
elas, independentemente dos outros sistemas. Um direito autónomo.
Um direito sistémico, desnecessitado de justificações ontológicas
porque justificado funcionalmente. Longe dos radicalismos da Law and
Economics, ou de um funcionalismo político – o jurídico não serve a
política nem a economia, está apenas subordinado ao sistema fiduciário.
É a dinâmica interna do sistema-direito – tipificado nas suas funções
de integração que o equilibra, e a dinâmica entre os vários sistemas
16
Adaptation, Goal-attainment, Integration e Latency. Todos os fenómenos enquadráveis no conceito de “sistema” desenvolveriam estruturas que, num equilíbrio estático, responderiam a estas quatro necessidades – sendo elas condição necessária de sobrevivência
do sistema, mas não sua garantia.
17
Que o próprio Parsons dissociou em “hereditariedade e meio” e “sistemas de valor” – Maria José Stock, «A Teoria da Acção Social em Talcott Parsons», 23.
18
Uma Visão Jurídica da Evolução do “Direito Enquanto Sistema na Sociedade” ...
na sociedade que a mantém coesa. O direito cristalizaria as acções
concretas dinâmicas padronizadas em normas jurídicas, alimentadas e
estabilizadas pela cultura.
Fazer corresponder ao direito uma abstracta função de integração
é tão redutor como tentar fundá-lo no consenso, quando, sabia-se já em
Roma, o seu núcleo reside na controvérsia18. Um segundo problema –
apontado pelo próprio Luhmann – está na própria raiz da teoria. Ela faz
uma pré-ordenação d’ “o conceito de estrutura ao conceito de função”19,
não procurando explicar a origem da estrutura em-si. É de novo o problema
meta-teórico de tentar explicar o complexo com base no aparente, em
lugar de encontrar as razões profundas que causam o aparente20.
Parsons representou a ascensão – e o pico – da teoria dos
sistemas. Nunca desde ele houve um verdadeiro paradigma sociológico,
mas apesar da maior predominância actual das teorias interaccionistas e
de conflito, a ideia do sistema – e com ela, o estrutural-funcionalismo
– ainda vive. Discípulos de Parsons, como Garfinkel, desenvolveram
as suas ideias para o extremo oposto da etnometodologia. Outros, como
Robert Merton, tentaram moderá-las, criando teorias de médio alcance21.
Mas foi Niklas Luhmann, ao alterar o foco para as comunicações, que
tornou a teoria dos sistemas viável como candidata a paradigma do
século XXI.
II. Niklas Luhmann e o direito enquanto sistema social autopoiético
1. Esboço inicial – o direito no funcionalismo de Luhmann
A teoria de Luhmann manifesta uma diferença essencial face à
de Parsons. Enquanto que este focou o seu olhar na acção, partindo
do unit-act, o modelo que abordamos agora manifesta o “theoretical
shift” que ocorreu neste período, dinamizado pela crescente influência
do interaccionismo simbólico, com a preocupação cada vez maior de
desenvolver teorias da comunicação em detrimento de teorias da acção.
18
Ralf Dahrendorf, teórico do conflito, acusa Parsons de ser “conservador”, de haver “emigrado para Utopia” e de abandonar “os poderes dominantes
ao status quo” – «Out of Utopia».
19
Niklas Luhmann, «Sociologia como teoria dos sistemas sociais», 78.
20
Supra, ponto 4.1.2.
21
Peter Hamilton, «A Teoria dos Sistemas», 168 s.
19
PR ÉMIOS | Prémio Doutor Cabral de Moncada
O núcleo fundamental estará, consequentemente, nas comunicações
entre indivíduos, fundadas na utilização de símbolos interpretáveis e de
significado contingente e subjectivo.
A teoria em questão aspira a ser estritamente científica – partindo
do modelo weberiano de “ciência não-normativa” – não manifestando
como tal uma intenção de dever-ser. Diz respeito aos sistemas, tendo
como objectivo principal o entendimento da sociedade moderna
e partindo da premissa fundamental – e, também ela, weberiana –
da diferenciação funcional como característica principal da idade
moderna. Luhmann analisa o direito enquanto sistema autónomo por
ver nesta forma a única capaz de lidar com a evolução do direito em
conjunto com a evolução da complexidade da sociedade; por ver nesta
forma a única de manter a independência e auto-observação patentes
ao direito; e porque, apesar dos acoplamentos estruturais necessários
à sobrevivência de todos eles, o sistema jurídico é independente do
político e do económico. Ideias positivistas, sociológicas e naturais do
direito caem todas pela sua própria base, encontrando como números
primos tautologias, paradoxos e noções claramente distorcidas da
realidade (exemplos poderiam ser, respectivamente: “A rule of law
consiste nas rules of law”, “A ordem social apoia-se num contrato social,
o direito apoia-se na sociedade” e “O que é injusto não é direito”)22.
Luhmann compreende que o direito tem de ser visto
objectivamente; e para tal temos de tomar o ponto de vista do direito:
como é que o direito se vê a ele próprio?, e de forma mais específica,
quais são os limites do direito?, e depois, como é que o direito procede para
determinar os seus limites?23
Para resolver estes problemas, adoptou uma visão do direito
como um sistema autopoiético e auto-distintivo, produzindo ele-próprio
todas as distinções e conceitos que usa, assegurando assim a sua
unidade. Partindo do código-base binário legal/ilegal, sem qualquer
outro significado em si mesmo que não “o que é legal não é ilegal” e
“o que não é ilegal é legal”, todas as distinções e conceitos do direito
provêm do próprio direito, não dependendo de valores externos
Nobles e Schiff, Law as a Social System, 5.
Niklas Luhmann, Law as a Social System, 58: “The boundaries are defined by the object. This means, in fact, that the law itself defines what the boundaries of the law are, and what belongs to the law and what does not. Answering
the controversy this way shifts the question: how does the law proceed in determining its boundaries?”.
22
23
20
Uma Visão Jurídica da Evolução do “Direito Enquanto Sistema na Sociedade” ...
como “justo” e “injusto”, “correcto” e “incorrecto”, ou de qualquer
distinção (“valioso”, “necessário”) decorrente de sistemas económicos
ou políticos, bem como éticos, religiosos ou educacionais. Trata-se de
um sistema indispensável para simplificar a enorme complexidade do
mundo externo e para permitir a vida comum; não se trata, porém,
de um sistema simples, pois tem de evoluir por forma a responder à
progressiva complexidade do mundo e da sociedade.
Necessário será neste momento clarificar o significado de
autopoiesis, conceito que será daqui para diante fulcral, primeiramente
formulado por Varela e Maturana24. Estrutura autopoiética seria
aquela que, alimentada por um fluxo externo, produziria os próprios
componentes que assegurariam a manutenção do sistema fechado
e organizado que continua a criação destes mesmos componentes.
O exemplo paradigmático seria o da célula eucariótica, que recebe
materiais através da membrana celular que irão compor os organelos
internos que processarão mais tarde materiais que integrarão por sua
vez a célula25.
Quando falamos em sistema, referimo-nos a uma categoria
formal relativa às relações que se estabelecem ao longo do tempo. As
partes do sistema podem ser, a qualquer momento, substituídas na sua
totalidade (não se aplica o paradoxo do Barco de Teseu!) podendo dizerse que o sistema permanece em existência enquanto que a forma como as
partes se relacionam se mantiver constante. O sistema será autopoiético se
fabricar a partir de si próprio as partes que assegurarão, no futuro, a sua
manutenção26.
Humberto Varela e Francisco Maturana, Autopoiesis and Cognition: the
Realization of the Living. Estes dois cientistas referem-se, porém, à autopoiesis relativamente a sistemas biológicos – tendo vindo mesmo mais tarde a rejeitar qualquer
analogia entre o seu conceito inicial e “lo que hace al sistema social” (De Máquinas
y seres vivos, autopoiesis de la organización de lo vivo).
25
Günther Teubner enumera da seguinte forma os requisitos para que
um sistema possa ser classificado com “autopoiético” (O Direito como Sistema Autopoiético, 52):
24
“ 1. Auto-produção de todos os componentes do sistema;
2. Auto-manutenção dos ciclos de auto-produção através de uma articulação hipercíclica;
3.Auto-descrição como regulação da auto-reprodução”
26
Kris Murthy dá em Systems Philosophy and Management o produtivo
exemplo da estrutura familiar como sistema social autopoiético. A relação pais-filhos (e o processo de socialização e educação dos filhos que nela vai implicado)
gera novas relações do mesmo tipo para o futuro e durante milhares de gerações,
muito embora as partes da relação estejam constantemente a ser substituídas.
21
PR ÉMIOS | Prémio Doutor Cabral de Moncada
O conceito inicial de direito como sistema autopoiético é o ponto
a partir do qual Luhmann diverge de Parsons, criando a sua própria
teoria dos sistemas. Onde o americano tinha um conceito de equilíbrio
cibernético, com subsistemas que se organizavam uns relativamente
aos outros, através de trocas e relações mútuas graças à abertura dos
sistemas que permitia a sua constante adaptação, o alemão vê o sistema
fechado, privilegiando a sua autonomia e diferenciação face ao exterior.
Embora Luhmann não partisse, como Parsons, de analogias
orgânicas, o paralelo com a célula eucariótica poderá revelarse iluminador para esclarecer o conceito fundamental de clausura
operacional27 (operationale geschlossenheit), que no caso do direito é uma
clausura normativa; cada operação normativa do direito altera o direito
como ele é; e apenas o direito se pode alterar a si próprio28. Não se trata
de uma característica relativa a um hipotético isolamento causal, mas a
uma questão verdadeiramente identitária. Uma clausura relativamente
à forma como o direito se reproduz a si próprio. Isto está relacionado
com questões de causalidade precisamente por motivos preventivos;
num mundo complexo repleto de potenciais causas contaminadoras, os
subsistemas (neste caso, o direito) isolam-se para poderem sobreviver.
Ou antes: é por se isolarem que sobrevivem. A clausura operacional
permite que a esfera jurídica funcione sem quebrar sob as pressões
dos interesses, do mundo político, económico ou moral; mantendo
a independência das suas comunicações, a ipseidade da sua função, a
binariedade do seu código29.
É necessário um elevado grau de autonomia para um sistema
desenvolver a complexidade necessária para responder aos problemas
Várias fontes brasileiras (entre as quais Rómulo Figueira Neves, L.
Cademartoli e G. Bagenstoss), traduzem Geschlossenheit como um “fechamento”
operacional. Embora alguns portugueses também sigam esta via (Esteves, J.P.;
1993), “clausura” mostra-se um termo mais adequado ao significado de “auto-contenção” que se quer transmitir com geschlossen, para além de se encontrar mais
próximo do termo espanhol clausura e do inglês closure, ambos amplamente utilizados em traduções internacionais.
28
Niklas Luhmann, Law as a Social System, 91: “Law is also a historical machine in the sense that each autopoietic operation changes the system, changes the
state of the machine, and so creates changed conditions for all further operations”.
29
Niklas Luhmann, Law as a Social System, 108: “Only when law is differentiated from the ever-changing tidal flow of moral communication, and only
when distinctions based on law’s own criteria for validity can be made, is it possible to specify the facts which are legally relevant and separate them from general
appraisal made by persons”.
27
22
Uma Visão Jurídica da Evolução do “Direito Enquanto Sistema na Sociedade” ...
levantados pela sociedade; da mesma forma que, voltando à metáfora
orgânica, foi necessário os organismos individualizarem-se para
alcançarem uma notável complexidade. Numa palavra, sem a sua
autonomia – sem a possibilidade de utilizar, de forma não contaminada, os
seus próprios critérios – o direito ver-se-ia incapaz de realizar a sua função.
Todo o sistema social serve, neste esquema, uma necessidade humana
de redução de complexidade. Da mesma forma como o cérebro humano
organiza e selecciona a informação relevante que lhe chega do nervo
óptico, que até aí mais não representa que uma imagem bidimensional
invertida, num código de impulsos eléctricos, e a transforma, sem
esforço consciente para o indivíduo, numa perspectiva tridimensional,
coerente e interpretável, focando a atenção do sujeito nos aspectos
que, do ponto de vista evolucionário, mais atenção merecem, também
os sistemas vão tornar a realidade apreensível. Sendo o ser humano
imensamente – por motivos biológicos e antropológicos – limitado
na sua capacidade de apreender o exterior, tenderá, instintivamente,
a reduzir os estímulos que lhe chegam, de forma a poder ter uma
imagem coerente e focada nos aspectos que mais atenção merecem.
A individualização relativamente ao exterior é o primeiro passo neste
sentido: cria-se uma diferença fundamental entre o que está dentro e o
que está fora.
Esta diferença única já começa a tornar o mundo, não só mais
apreensível, como mais ordenado, e de certa forma mais improvável. O
Homem tenta suprimir o caos – talvez porque a vida é ela própria uma
improvável (e apenas aparente) falha da segunda lei da termodinâmica30.
O sistema é complexo, uma vez que nele coexistem várias possibilidades.
Menos possibilidades, no entanto, do que no mundo exterior – diz-se
por isto que o sistema é mais ordenado e menos complexo que o mundo
exterior. Um sistema numérico binário, constituído pelos números 0
e 1 exclui o número 2. É um sistema altamente ordenado, na medida
em que apenas acolhe a possibilidade de dois estados. O facto de o
sistema ser limitado – e operacionalmente fechado – não significa,
porém, que este seja incapaz de se adaptar ao meio. Um sistema social
complexo terá, como tal, de aceitar uma certa variedade de estados que
30
Peter Atkins, Galileo’s Finger, 125: “Although elaborate events may occur in the world around us, such as the opening of a leaf, the growth of a tree, the
formation of an opinion, and disorder thereby apparently recedes, such events
never occur without somehow being driven. That driving results in an even greater production of disorder elsewhere”.
23
PR ÉMIOS | Prémio Doutor Cabral de Moncada
lhe permita adaptar-se a um meio em permanente mutação, como é o
caso das sociedades humanas. Se todos os sistemas autopoiéticos são
operacionalmente fechados, a verdade é que também são cognitivamente
abertos. Queremos com isto dizer que não existem no vácuo; o sistema
social é sensível ao meio que o circunda e reage aos estímulos (mas
apenas a selectos estímulos...) que dele lhe chegam. Se é claro que a política
nunca pode ser direito, é inegável que ela o influencia e que este pode
responder aos estímulos cognitivos que desse sistema provêm, fazendo uso
das suas respostas internas (e limitadas às existentes no momento) como
réplica discreta às possibilidades ilimitadas do complexo mundo externo31.
Cada sistema distingue-se de outros pela forma como mantém a
sua clausura operacional, que pode ser conseguida através de diferentes
funções, códigos e programas, específicos de cada sistema. Ora, a função do
sistema jurídico é manter as expectativas normativas (expectativas que as
normas vigentes impõem) face aos exemplos contra-factuais. As comunicações
do direito devem permanecer viáveis, apesar de e sabendo que as normas
serão, com certeza, infringidas (para Talcott Parsons, a função era uma
vaga integração!). Também outros sistemas têm funções semelhantes; mas
o direito é único na utilização do seu código legal/ilegal, raiz de todas as
suas comunicações32. Trata-se assim da criação de normas face a factos (que
neste caso consistem num input cognitivo) externos, do ambiente, e da
comparação de novos factos com as normas pré-existentes, sendo o direito
capaz de os codificar, face às normas, como legais ou ilegais33. Temos aqui
uma operação de simplificação da realidade: o jurídico responde apenas
aos factos seleccionados pelas suas normas – há uma identificação da
realidade exterior por referência a estruturas próprias do direito, tudo
Niklas Luhmann, «L’Unité du Système Juridique», 167: “Cette clôture
n’implique, cependant, ni une absence d’environnement, ni une entière détermination par soi”.
32
António Castanheira Neves, «O Funcionalismo Jurídico», 261: “O que
especificamente se traduziria na selecção e estabilização de expectativas normativas numa sua coerente generalização temporal, material e social – expectativas,
sobretudo quanto ao comportamento dos outros, que sabemos seleccionadas e
definidas pelo programa e estruturadas pelo código binário Recht/Unrecht ou
legal/ilegal, as duas dimensões que sabemos serem os elementos constitutivos do
diferenciado sistema social que seria o direito”.
33
“Recht” e “Unrecht”, no original. Klaus A. Ziegert traduz como legal/
illegal em inglês; já Pierre Gubentif traduz para português como “de acordo com
o direito / contrário ao direito” nas suas obras.
31
24
Uma Visão Jurídica da Evolução do “Direito Enquanto Sistema na Sociedade” ...
através de comunicações internas e esta auto-referencialidade própria das
comunicações legais. Assim é o sistema autónomo.
Mas não só autónomo, o sistema deve ser estável. Para tal,
Luhmann divisa a importância dos programas, estruturas normativas
(também elas comunicações!34) que estipulam a forma como se aplica
o código. Note-se que se o código é inalterável, os programas são por
natureza contingentes, e é de certa maneira por auto-referencialidade
(comunicações do direito a influenciar comunicações do direito) que o
sistema jurídico evolui, e fá-lo de forma dinâmica. Não é uma hierarquia
de normas, nem são as pré-existentes que influenciam as seguintes:
a única grande condicionante é o momento presente, o culminar
instantâneo de miríades de comunicações e o seu auto-reconhecimento
a constituir aquilo que é o direito agora. Mesmo as leis constitucionais
aparentemente inalteráveis não são mais que areia ao vento. A única
coisa constante nelas é que são areia – é o seu código.
Os programas preenchem o vazio deste código35 aparentemente
desprovido de significado próprio para além da exclusão da mútua
compossibilidade (nada é legal e ilegal!). É graças aos programas que se
consegue funcionalizar o mundo jurídico, reduzindo a complexidade
do mundo exterior – o jurídico recolhe factos (aqui a importância das
ciências forenses e das forças policiais, que encontram a verdade dos
factos) que serão utilizados como materiais dos programas condicionais
em questão. “Se se dá como provado que o sujeito x executou o acto Ф,
codificar como ilegal” seria o exemplo de um programa. Seleccionam-se
as possibilidades que interessam ao sistema, elas mesmas recolhidas pelo
próprio sistema segundo programas próprios – autopoiesis em acção36.
Até porque, e tenhamos sempre isto em mente, “Le droit n’éxiste que
dans la communication (ou, en termes psychologiques, dans une perspective de
communication)” – Niklas Luhmann, «L’Unité du Système Juridique», 169. Comunicação que – digamo-lo com Castanheira Neves - “[...] como nos diz a hoje
tão elaborada “teoria da informação” é a transmissão de algo (seleccionado entre
alternativas) de um a outro (outro que também selectivamente reagira [sic] a esse
algo transmitido) através de um certo meio (de uma especificidade e relevância
próprias) com o resultado estrutural de constituir assim um particular comum
entre esses um e outro [...]” – «Uma perspectiva de consideração da comunicação
e do poder», 500.
35
Niklas Luhmann, Law as a Social System, 193: “One could say this in a
condensed form: codes generate programmes. Or better: codes are distinctions,
which can only become autopoietically effective as distinctions with the help of
a further distinction, namely the distinction between coding and programming”.
36
Niklas Luhmann, Law as a Social System, 206: “Only the code – which
34
25
PR ÉMIOS | Prémio Doutor Cabral de Moncada
Sistema autopoiético mas aberto – os factos provêm da realidade
externa, mas são recolhidos e interpretados segundo o critério jurídico. São
os programas ditos condicionais, porque criados para aplicação futura
mas sempre num momento presente e permanentemente amarrados
aos programas precedentes e ao inilidível código37. Não pode assim o
direito servir propósitos finais, abolir o passado por motivos de índole
política – muito embora, como vamos ver, exista um acoplamento
estrutural com esta esfera. O esqueleto fundamental será sempre se –
então, e não para que – então. Situa-se aqui a cisão fundamental entre
os funcionalismos ditos materiais e este sistémico. O direito não serve
qualquer fim de um hipotético organismo societário. Se em Parsons
existia alguma ambiguidade quanto a uma possível natureza finalística
da função do subsistema (persistindo, porém, a ideia de que se trata
de um funcionalismo sistémico), Luhmann é muito claro quando faz
referência a um zweckfrei Funktionsbegriff. O direito não consubstancia
um organismo, mas um sistema autocontido relativamente à restante
sociedade, servindo não um fim desta, mas uma sua-própria função.
Relativamente a esta função, o direito deve manter as expectativas
gerais de cada um, e deve fazê-lo através de normas, ou seja,
comunicações voltadas para o futuro. Estas comunicações (normas)
são, claramente, uma simplificação idealizada da realidade – assim terão
de ser, como tudo dentro deste sistema redutor de complexidade. A
conduta social é tipificada, havendo uma selecção – pensada, como já
dissemos, para o futuro – daquilo que é normativamente possível dentro
do sistema. Forma-se assim uma densa teia de expectativas criadas pela
lei e que a lei deve assegurar38 – e é aqui que entra a importância da
sanção39. A existência de assassínios não leva as pessoas a descrer do
allows for the attribution of the values legal and illegal, but leaves their attribution
open – can produce the uncertainty on which the proceedings feed. They, in turn,
use this uncertainty as a medium for their own autopoiesis”.
37
Importante é ainda uma referência à chamada justiça procedimental. Muito embora a distinção legal/ilegal não possa ser aplicada a si mesma, pode ser aplicada a um procedimento em particular, contribuindo, assim, para uma maior incerteza,
e, portanto, variedade. A própria demora do processo de decisão permite-lhe uma
maior flexibilidade – Niklas Luhmann, Law as a Social System, 207.
38
Niklas Luhmann, Law as a Social System, 148: “Abstractly, law deals with
the social costs of the time binding of expectations. Concretely, law deals with the
function of the stabilization of normative expectation by regulating how they are
generalized in relation to their temporal, factual, and social dimensions”.
39
Niklas Luhmann, Law as a Social System, 150: “And, of course, the ex-
26
Uma Visão Jurídica da Evolução do “Direito Enquanto Sistema na Sociedade” ...
seu direito à vida, pois os assassinos são punidos. O que é interessante
é a forma como nem todos os assassinos – aliás, é possível que
uma considerável percentagem destes – são punidos. No entanto, a
expectativa razoável de que os criminosos capturados e condenados
serão punidos cria por sua vez a expectativa de que cada um tem um
direito assegurado por lei à vida. Pode dizer-se que existe a expectativa
geral de que as expectativas da lei terão correspondência na realidade. A
ampla aceitação da existência de inúmeros exemplos contrafactuais não
arruína esta expectativa, sendo, aliás, altamente credível que este tipo
de expectativas – ambivalentes, que devem ser seguidas mas que todos
sabem que não vão ter uma total correspondência com a realidade – são
com toda a probabilidade, assim nos diz a investigação psicológica, mais
estáveis e perenes que as expectativas factuais que, por exemplo, a ciência
nos fornece. É exigida, no entanto, uma resposta adequada no caso de
uma desilusão relativamente ao esperado. E aqui o direito brilha, com
centenas de corredores, símbolos e procedimentos pré-estabelecidos
para lidar com o crime, com o ilícito civil ou administrativo, com a
lacuna no contrato ou o imprevisto internacional.
Podemos assim entender que também é função do direito
orientar a vontade dos indivíduos (e será isto integração)? Há
demasiadas estruturas com essa função, desde a religião até cartazes
publicitários, mas é inegável que essa é parte da performance jurídica.
Nem tudo aquilo de que o direito é causa será a sua função, é claro –
Nobles e Schiff perguntam sarcasticamente “is it a function of law to
provide lawyers with income?”40 – mas é sempre importante manter
uma noção de conjunto. A própria teoria de Luhmann explica o direito
como algo que apenas pode ser explicado por dentro, através de autoobservação; nunca será demais, porém, notar as limitações de qualquer
abordagem unilateral. Um mundo plural implica uma pluralidade de
mundividências.
pectation of sanctions has an effect. Today, there is general consensus that the
concept of norm cannot be defined solely by reference to the threat of sanctions,
let alone by reference to imposing sanctions. Nevertheless, the prospect of sanctions is part of the symbolic apparatus that allows one to identify whether or not
one’s expectations are in line with the law”.
40
Nobles e Schiff, Law as a Social System, 14.
27
PR ÉMIOS | Prémio Doutor Cabral de Moncada
2. O sentido e a realização do direito
Já vimos que a teoria de Parsons se mostrava pouco adequada
para explicar a evolução dos sistemas. Ideias de consenso e equilíbrio
não são as melhores para dar conta da evidente contingência do sistema legal. Já vimos que Luhmann vê nesta estrutura uma capacidade
de auto-organização, de criação dos próprios programas para
responder às exigências do mundo exterior, espelhando a sua crescente
complexidade.
Esta irritabilität do sistema perante estímulos cognitivos da sociedade pode explicar a possibilidade de progressão, mas torna difícil encontrar o seu sentido. Vemos também que a rejeição de todo o direito
natural e dos fundamentos morais do direito – que teria como base um,
neste caso, oco código binário – o deixam desprovido do sentido, do
projecto humano, da busca de justiça que encontramos irremediavelmente quando nos questionamos quanto à sua natureza última.
A resposta está, precisamente, numa exigência de justiça. Sabemos que o direito é um projecto inacabado, ao qual serão sempre
colocados novos problemas. Segundo Luhmann, todo o direito é constituído por estruturas provisórias – no sentido em que qualquer uma
delas é passível de ser alterada; não há direito sagrado41. Apesar das exigências de estabilidade, nada garante a inalterabilidade de um instituto.
O sistema, com sua clausura operacional, desenvolve estruturas de resposta aos possíveis estímulos: novos factos e problemas que apareçam;
novas formas de ver problemas antigos. A justiça, como aplicável normativamente a todo o sistema, funciona como uma exigência feita a todo
o sistema, todos os programas e estruturas42. Pede-se ao sistema que
seja justo quando se auto-organiza, quando se cria a si próprio. Espera-se que as respostas dadas à contingência do sistema sejam justas. Há
uma expectativa, relativamente a todo o sistema – e que, a despeito da
41
Niklas Luhmann, Law as a Social System, 216: “A system which runs
its internal operations on the basis of information always envisages other possibilities as well. In the case of the legal system, this orientation by contingency
increases as the system moves along elucidating positive law”.
42
Niklas Luhmann, Law as a Social System, 214: “The system itself has to
define justice in such a way that makes it clear that justice must prevail and that
the system identifies with it as an idea, principle, or value”. E ainda, 217: “No
individual operation of the system and, even less, no structure is exempt from
the expectation that it be just; otherwise the norm’s reference to the unity of the
system would be lost”.
28
Uma Visão Jurídica da Evolução do “Direito Enquanto Sistema na Sociedade” ...
possibilidade da sua frustração, representa a unidade de todo o sistema.
O que une todas as comunicações do sistema é que se espera que estas
correspondam a exigências gerais de justiça e equidade no tratamento.
Apesar da “abstracção de compromissos materiais (teleologicamente
materiais) e o abandono da referência consequencial” de que nos fala
Castanheira Neves 43, o esquema luhmanniano implica um quase-imperativo de justiça a guiar a contingência do sistema. Fora do sistema, é
certo, fora da matriz autopoiética; não estando a justiça ao alcance da
visão legal das coisas, e consistindo num esquema externo de procura
de razões e de valores; estes, porém, só válidos perante o sistema depois de convertidos em programas.
Estará então este sistema, também ele, sujeito a um escrutínio
de valoração, será também Luhmann vítima das exigências axiológicas
do direito, precisamente por tanto se furtar delas? Dificilmente é esse
o caso; o código legal/ilegal, na sua binariedade, não permite excessos
desse género. Castanheira Neves esclarece-nos de forma muito particular relativamente a este ponto: define-se a justiça pela “adequação da
complexidade do sistema jurídico”44 – ou seja, a exigência geral de justiça é aquilo que leva o sistema a aumentar a sua complexidade como
reflexo da complexidade externa45. Uma fórmula de contingência, permitindo assim ao direito uma observação de segundo grau ao nível da qual este se
autocriaria reflexiva e adequadamente.
Mas do ponto de vista metodológico, como se traduziria esta
exigência? A autopoiesis necessita de consolidar a autonomia actuante do sistema; fá-lo-á através da construção de uma dogmática46 (um
discurso!) altamente específica, que permita qualificar o jurídico em
termos jurídicos, separando assim a esfera legal das outras esferas e
optimizando a sua função essencial (e será por acaso desejável uma
linguagem jurídica própria, utilizando conceitos que não estão contaminados pela polissemia dos termos, simultaneamente jurídicos e não
António Castanheira Neves, Apontamentos Complementares de Teoria do
Direito, 1988/1989, 26.
44
António Castanheira Neves, «O Funcionalismo Jurídico», 262.
45
Niklas Luhmann, Law as a Social System, 219: “Justice can only mean an
adequate complexity of consistent decision-making”.
46
António Castanheira Neves, «O Funcionalismo Jurídico», 264: “Quanto à dogmática […] que ao pensamento jurídico caberia elaborar e em que, se
manifestariam corresponder-lhe-ia, como a qualquer outra, um Negationsverbot
e o seu objectivo seria o de garantir a autonomia actuante do sistema jurídico”.
43
29
PR ÉMIOS | Prémio Doutor Cabral de Moncada
jurídicos, que somos à falta de alternativa forçados a utilizar por cada
língua ser o leito de concubinagem de um sem-fim de sistemas de comunicações?). O princípio fundamental, diz-no-lo o autor em Rechtssystem und Rechtsdogmatik, é o da Negationsverbot – o que nos leva directos
para o esquema de decisão, também ele isolando o direito de todos os
outros sistemas, mantendo a sua diferenciação (Ausdifferenzierung), possibilitando a elaboração, tanto de dogmática como de juízos de direito
pelo próprio direito47.
No centro do sistema, e aplicando programas específicos, está
o tribunal. Luhmann vê o seu sistema como um “círculo assimétrico”,
afastando a ideia de uma hierarquia entre o poder judicial e o legislativo.
Ambos comunicam entre si – basta pensar que a legislação é constantemente invocada nas decisões judiciais, mas que são os tribunais a
interpretar a legislação – a encontrar o sentido que o legislador lhe terá
dado – e a fiscalizar a constitucionalidade das normas. Para além disso,
o legislador, ao criar novas normas, está a tentar prever o tipo de casos
que serão levados a tribunal, e terá de os ter sempre em mente quando
elaborar o texto da lei. O juiz, caso a lei não providencie uma resposta óbvia de legalidade/ilegalidade, terá de dar a sua própria resposta,
sendo lhe negada a possibilidade de pronunciar um non liquet. Podemos
ver facilmente a teia de comunicações que se desenvolve entre os dois
meios, para não falar nas necessidades de execução e aplicação da lei.
Os tribunais são, no entanto, o centro deste círculo.
Os tribunais constituem em si mesmos um subsistema do sistema legal, com as suas próprias comunicações e autodiferenciação.
Já Aristóteles escrevia acerca da “independência do juiz relativamente
às relações de família”, reportando à separação entre a esfera judicial
e os vários segmentos da sociedade. Mais tarde, os romanos separam
a criação da lex rogata pelo povo da sua aplicação pelo pretor. Há aqui
uma ligação feita às classes da sociedade – um povo legislador, uma nobre administração. Já aquando dos excessos do normativismo legalista
francês, a esfera legislativa era tida como perfeita, e a judicial estava-lhe perfeita e hierarquicamente subordinada. Este modelo foi sendo
47
O autor nota ainda o papel do Richterrecht ao lado da legislação: “The
obligation to decide and the freedom to find reasons for a decision (however
doubtful), which comes with that requirement and is produced by it, become
limited by points of view on justice. And this triad of obligation, freedom and
limitation produces law. Together with ever more legislation-type law, there develops ever more judge-made law” – Niklas Luhmann, Law as a Social System, 279.
30
Uma Visão Jurídica da Evolução do “Direito Enquanto Sistema na Sociedade” ...
enfraquecido por mudanças metodológicas graduais que foram permitindo ao juiz maiores liberdades de interpretação – e volvidos os anos,
chegamos ao realismo americano, à ideia de que direito é aquilo que os
tribunais julgam ser direito. A legislação continua, porém, a ser vista
como o subsistema em plano mais elevado. Como podemos explicar
estas divergências de perspectiva, numa palavra, como se diferenciam
os tribunais no seio do sistema legal?
Encarnam os tribunais o momento em que o direito se efectiva, se torna real. O A. explora o paradoxo da proibição da negação da
justiça – o tribunal é obrigado a chegar a uma decisão, do tipo legal/
ilegal, porque assim é obrigado por lei. As leis, na esfera legislativa,
podem mudar – estão sujeitas a pressões da economia e da política,
podendo responder a estímulos externos. Os tribunais, porém, estão
sempre amarrados à sua função de decidir – por motivos legais48. Luhmann vê aqui o “santuário” do sistema49: os tribunais têm de decidir
(apesar da possível falta de materiais legais!) sob pena de incorrerem
numa ilegalidade, sendo a “ilegalidade” pronunciada por tribunais. E
no entanto – oh prisão libertadora! – os tribunais chegarão sempre a
uma decisão, transformando um conjunto de comunicações indeterminadas num facto consumado e determinado, numa decisão jurídica,
numa condenação ou numa absolvição. Podem até os tribunais não ter
quaisquer comunicações – caso de uma lacuna legal – em que se basear,
criando uma decisão em sede própria. Mais um golpe a favor da tese
autopoiética, na medida em que são os motivos próprios do tribunal e
não quaisquer razões (ou interesses, valores morais, programas políticos) externas ao direito que, veiculadas nas normas legislativas, vêm a
ter como consequência final a decisão. Assim, dizemos que os tribunais
estão no centro deste sistema – não constituem um topo hierárquico, na
medida em que nunca dão ordens directas ao legislador, apenas “esta48
Niklas Luhmann, Law as a Social System, 289: “Courts have to decide
even when they cannot decide, or at least not within reasonable standards of
rationality. And if they cannot decide, they must force themselves to be able to
decide. If the law cannot be found, it must simply be invented”.
49
José Manuel Aroso Linhares, «A “Abertura ao Futuro” como Dimensão do Problema do Direito», 404: “O paradoxo de um sistema jurídico que só
poderá garantir a sua autonomia se contiver (se incluir, se fizer sua) – ou se, pelo
menos, não excluir – a negação desta autonomia – e com esta também a negação das convenções que a protegem. Um paradoxo constitutivo... e desde logo
porque, comprometendo o sistema (como um todo) com a preservação de um
círculo de auto-afirmação e de auto-negação (...)”.
31
PR ÉMIOS | Prémio Doutor Cabral de Moncada
belecem condições para aquilo que os tribunais podem compreender,
aceitar e praticar”. Insistem, nas palavras do A., apenas “na sua própria
existência”. São o centro organizacional, que torna tudo o resto no
sistema legal definido e definitivo; da mesma forma como um conjunto
de pontos pode existir, mas apenas constitui um círculo quando damos
como referência a distância y a um centro em O.
Aquilo que analisamos aqui é uma teoria do sistema. O autor
diz-nos que, nesta qualidade, não lhe cabe recomendar uma metodologia desejável, apenas escrutinar aquilo que de facto acontece. Luhmann
vai então estudar o momento de decisão de forma diversa da usual, tentando ir ao encontro da natureza deste processo. Diz-nos ele que a decisão tem os seus alicerces numa fundamental indecisão. Trata-se, sem
margem para dúvidas, de uma alternativa, que dará origem a dois ou mais
caminhos, que originarão eles próprios novas possíveis veredas. Aquela
decisão, em si mesma, não é uma alternativa – é a compossibilidade das
várias. Existe porque há uma indecisão – a decisão é, nas palavras do
autor, a unidade da diferença entre as alternativas. Isto é ao mesmo tempo
a óbvia raiz da controvérsia – pois se não existisse alternativa possível,
os casos não seriam decididos mas sim realizados – e o paradoxo radical
do sistema. O decisor exclui-se do reino da decisão para poder olhar
as alternativas; e decide, não olhando para o passado, que é inalterável,
mas para o futuro, que é alterado pela decisão. Este facto apresenta-se-nos
como uma violação fundamental do princípio da determinação: não é o
passado imutável que determina uma decisão necessária50. O juiz está a pensar
nas consequências da sua actuação (dentro do sistema!) quando decide,
mas os efeitos não constituem critério da dogmática jurídica51. As consequências
50
Niklas Luhmann, Law as a Social System, 283: “The decision assumes the
past as immutable and the future and it, therefore, turns around the relationship
of determination. It cannot be determined by the past but attempts to treat the
future differently; this, however, has no determining effect because there will be
more decisions lined up in the future”.
51
É importante esclarecer aqui aquilo a que nos referimos quando falamos em futuro; pois o sistema, como entidade autónoma, não está de todo comprometido com os efeitos externos da sua decisão. A nota fundamental, o futuro
que lhe interessa e que influencia (decisivamente?) a decisão é o futuro dele próprio,
como sistema. A sua autonomia e diferenciação apenas serão sustentáveis enquanto
se manifestar consistente no tratamento dos casos; pois bem, o critério que lhe
permitirá sobreviver e que o juiz terá de respeitar para o sistema se manter será
“qual o programa condicional a aplicar neste caso concreto de maneira a que, se
todos os casos concretos semelhantes forem, doravante, decididos da mesma forma, o sistema possa permanecer consistente na sua totalidade?”. A necessidade
32
Uma Visão Jurídica da Evolução do “Direito Enquanto Sistema na Sociedade” ...
são na sua grande parte imprevisíveis, para além de dependerem de
uma grande quantidade de decisões futuras. Por isto, o sistema alimenta
a ilusão de viver do passado; por ser baseado em paradoxos mistifica52
(no sentido dado à palavra por Erving Goffman no seu interaccionismo simbólico53) a sua actuação, com todo o decoro, todo o mistério à
volta do acesso à lei, toda a pompa dos textos legais e das vestes dos
juízes. Isto porque a unidade do sistema é um paradoxo; a capacidade
legal para dizer o que é legal e ilegal, mais um paradoxo54; a unidade
temporal do sistema, o paradoxo dos paradoxos.
de consistência será tratada infra aquando da referência à argumentação, mas é
essencial ter esta nota em mente quando se pensa na decisão. Castanheira Neves é
claro neste sentido: «A “estrutura final” seria porventura relevante na criação e na
interpretação das “normas”, não na decisão jurídica da sua aplicação” – «O Funcionalismo Jurídico», 241.
52
Niklas Luhmann, Law as a Social System, 283 s: “Hence a decision is a
paradox, which cannot make itself its own subject, and which, at best, can only
mystify itself. Authority, decorum, limitation of access to the mystery of law,
texts to which one can refer, the pomp of entries and exits of judges – all that
is a substitution at the moment at which one must prevent the paradox of decision-making from appearing as a paradox [..]”.
53
Erving Goffman, A Apresentação do Eu na Vida de Todos os Dias.
54
O mais admirável resumo deste paradoxo – e de certa forma, de toda
a teoria da autopoiesis – é conseguido, quase profeticamente, pela pena de Robert
Musil:
«May I tell you what I understand by ‘morality’? […] [It] is the regulation of
conduct within a society, beginning with regulation of its inner impulses, that is,
feelings and thoughts. […] The oldest reason for it is that God revealed the order
of life to us in all its details. […] But the most probable […] is that morality, like
any other form of order, arises through force and violence! A group of people
that has seized power simply imposes on the rest those rules and principles that
will secure their power. Morality thereby tends to favor those who brought it to
power. At the same time, it sets an example in so doing. And at the same time reactions
set in that cause it to change – this is of course too complicated to be described
briefly, and while it by no means happens without thought, but then again not by mean of
thought either, but rather empirically, what you get in the end is an infinite network
that seems to span everything as independently as God’s firmament. Now, everything
relates to this self-contained circle, but this circle relates to nothing. In other words: everything is moral, but morality itself is not!» (The Man Without Qualities, traduzido por
Sophie Wilkins [itálico nosso]).
Aplicando as mesmas ideias ao direito, é muito fácil fazer as ligações – e
até o problema do confronto do sistema com um mundo-da-vida (cfr. infra) parece
estar patente na resposta que Ulrich obtém de sua irmã após esta explicação.
«“How charming of morality,” Agathe said. “But do you know that I encountered
a good person today?”».
33
PR ÉMIOS | Prémio Doutor Cabral de Moncada
Podemos compreender facilmente, assim, em que medida é
que a teoria luhmanniana é, para além de sistémica, funcional. O sistema não se baseia em razão; nem sempre haverá razões suficientes; e no
entanto, é necessário decidir, pois só assim cumpre o direito a função
(co-existência, redução da complexidade!) que a sociedade lhe atribui.
Nem sempre foi assim, porém; sabemos que o jus civile apenas fornecia
protecção jurídica quando existisse uma actio previamente definida. O
autor especula que a alteração de mentalidades no que toca à proibição
da negação de justiça surge juntamente com as doutrinas Kantianas,
que anunciavam a supremacia da prática sobre a teoria55. E é, de facto,
nesta altura que o Code Civil entra em vigor, e com ele seu art.4.º56. A
ideia de funcionalidade desta teoria permeia toda a explicação que Castanheira Neves nos dá dela; a nota de condicionalidade (Konditionalprogramm e não Zweckprogramm) distingue-a decisivamente dos outros funcionalismos. Há uma possibilidade patente na decisão, sendo esta virada
para o futuro; mas os efeitos desta não constituem critérios. A dogmática,
o todo de comunicações consolidadas (muito embora as comunicações, por natureza, se refiram a um momento eminentemente presente...
as comunicações passadas determinam o momento presente no contexto
do sistema autopoiético). A nota metodológica fundamental será, mais
uma vez, a da condicionalidade, conforme os programas pré-determinados
e com destino final uma decisão dentro do código legal/ilegal. A decisão será um processo totalmente jurídico, utilizando os critérios (programas) jurídicos existentes. A teleologia, os efeitos da decisão – ambos
são factos extrajurídicos, sem lugar no sistema, e comprometeriam as
suas autonomia e diferenciação (e também a consistência...! pois um direito que sirva fins que lhe sejam externos estará condenado à contingência dos fins; isto compromete a confiança geral no direito e sua função
estabilizadora) que são condições fundamentais da sua sobrevivência.
55
Notavelmente em Grundlegung zur Metaphysik der Sitten, de 1785 e Kritik
der praktischen Vernunft, de 1788.
56
“Le juge qui refusera de juger, sous prétexte du silence, de l’obscurité
ou de l’insuffisance de la loi, pourra être poursuivi comme coupable de déni de
justice.”, mantendo-se em vigor desde 1804.
34
Uma Visão Jurídica da Evolução do “Direito Enquanto Sistema na Sociedade” ...
3. Os acoplamentos estruturais como garantes de
complexidade
Mas como se recorre a esta dogmática, àquilo a que os juristas
chamam “o sistema”57? Sabemos que os programas não se podem
aplicar indiscriminadamente, à la légalisme. E no entanto, o sistema
parece obrigar a tal: estando isolado nele próprio, não podendo recorrer
às comunicações externas como fonte de esclarecimento (o externo
serve o propósito de input cognitivo, como já vimos, e de irritieren o
sistema, pelo que vimos até agora), a proposta de Luhmann parece
condenada a ser um mero normativismo funcionalizado, agregando
características destas duas teorias mas não indo mais longe, excepto na
sua fundamentação.
Mas será mesmo assim? Mantenhamos este problema do foro
metodológico (“como se recorre à dogmática?”) presente como pano
de fundo do nosso fio de raciocínio; para lhe dar uma resposta teremos
de esclarecer o conceito (já mencionado supra) de acoplamento estrutural.
Pois quanto mais insistimos na diferenciação e autonomia do sistema,
mais premente se torna a questão de como ele se relaciona com a realidade.
A noção de sistema é aplicada por Luhmann a várias esferas que
não o direito. A economia, a política, a educação, a arte, todas estas
áreas foram abordadas pelo académico alemão em diversos estudos
complementares. E apesar da prevalência que o direito tem no seu
trabalho, apesar deste mesmo trabalho tratar fundamentalmente – e
sem essas premissas, todo ele cai pela base – na diferenciação e na
autonomia, a verdade é que nunca viu o seu objecto de estudo como
isolado. Só as comunicações jurídicas podem criar direito; o direito
evolui dentro de si mesmo através de operações de direito; mas é
impossível negar a influência mútua, o contacto existente entre os
vários sistemas, a despeito do seu isolamento operacional.
Basta focarmos a nossa atenção na relação entre direito e
economia. Luhmann nunca defenderia as tentativas teóricas da Law
and Economics58 – o direito só se explica através do direito, e, como
vimos, apenas tomando a perspectiva do objecto (uma visão jurídica)
57
Aqui num sentido diferente do de sistema social; o direito, aquando
das decisões usuais que é obrigado a fazer, não se auto-observa frequentemente
enquanto “sistema autopoiético fechado, autónomo no seu ambiente”, mas sim
como o conjunto de textos por que é constituído.
58
Propugnadas por Richard Posner, em Economic Analysis of Law.
35
PR ÉMIOS | Prémio Doutor Cabral de Moncada
nos livramos de inescapáveis subjectivismos. A visão de Parsons é
demasiado simplista; para além de que a experiência da vida real nos
mostra que nem sempre o subsistema económico se encontra numa
posição hierarquicamente inferior à do subsistema integrativo. Aquilo
que realmente vemos acontecer é um relacionamento por via de
reconhecimento e reacção: o direito, neste caso, vai reconhecer algum facto
que lhe é externo mas relevante para as suas operações, fazendo-o através
das suas próprias normas (programas). Note-se que falamos de comunicações,
sempre no seu próprio momento (num presente momentâneo). Ora, a
existência do facto e de um simultâneo reconhecimento permitem uma
sincronia; haverá uma coordenação quando surgir um padrão entre um
determinado estímulo externo e a respectiva irritação do sistema59. No tocante
à economia, vemos, por exemplo, que esta sozinha não é capaz (porque
não dispõe dos meios para tal) de estabelecer a propriedade de um bem. É a
economia que nos diz o valor do que compramos e vendemos, mas não é
ela que nos permite dizer a quem pertence. Já o direito, possuindo uma
série de programas relativos às formas de entrar na posse de um bem,
não apresenta nenhum critério que permita estabelecer qual o valor dos
bens. E isto apesar dos vários apelos (já desde Justiniano!) ao “devido
valor” e ao “preço justo” na mais variada legislação60. O direito trata,
na maior parte das vezes, o estabelecimento de um preço pelo mercado
como um evento, que lhe é externo e que influencia (irritiert) as suas
59
Niklas Luhmann, Law as a Social System, 383: “The system itself registers the irritation […] only on the video screen of its own structures”.
60
Note-se, para efeitos exemplificativos, o Art. 1542.º do Código Civil,
respeitante à extinção dos direitos de superfície por expropriação: “Extinguindo-se o direito de superfície em consequência de expropriação por utilidade pública,
cabe a cada um dos titulares a parte da indemnização que corresponder ao valor
do respectivo direito”.
Aprofundando um pouco esta questão, encontramos o Art. 22.º/1 do
Código das Expropriações, que estipula um “direito de receber o pagamento contemporâneo de uma justa indemnização”, sendo esta calculada, nos termos do
Art. 23.º/1, “com referência à data da declaração de utilidade pública, sendo actualizado à data da decisão final do processo de acordo com a evolução do índice
de preços no consumidor”. Qual o índice de referência? Responde-nos o n.º 2. do
mesmo artigo: “o publicado pelo Instituto Nacional de Estatística relativamente
ao local da situação dos bens ou da sua maior extensão”. Encontraremos melhor
exemplo de uma necessidade, da parte do sistema legal, de fornecimento de comunicações pelo sistema económico para que exista possibilidade de efectivação
do direito (neste caso, da norma respeitante à expropriação)?
36
Uma Visão Jurídica da Evolução do “Direito Enquanto Sistema na Sociedade” ...
operações. A selecção e o tratamento dos estímulos é feita através das
estruturas existentes em cada um dos sistemas: o acoplamento, quando
contínuo no tempo, é, consequentemente, apelidado de estrutural61.
Muitas vezes, um acoplamento deste tipo leva a ambiguidades
na identidade. Law is Policy é não ver a subtil distinção de operações
entre um sistema e outro; a função da política é a de chegar a decisões
colectivamente vinculantes; o seu código é governo/oposição; e a maior parte
da sua legitimidade face aos cidadãos vem precisamente do facto de
se reger pela batuta da legalidade, apesar de possuir um diferente
objectivo. O Rechtstaat é um acoplamento que pode ser visto pelas duas
perspectivas concorrentes do direito e da política: traduzindo, por um
lado, a extensão de uma pretensa rule of law a todos os domínios de um
Estado-nação; e, por outro, uma forma optimizada de alcançar decisões
consensuais62. Ambos os domínios estão fechados, comunicam entre
si (não directamente, um para o outro... mas um acerca do outro),
provocam-se mutuamente – mas cada um com suas operações. A discussão
política acerca de uma lei, os argumentos e os intervenientes constituem
assuntos de comunicação política, enquanto que os procedimentos
definidos por lei para os mesmos eventos – a forma pela qual estes
se governam – constituem elementos do sistema legal. Apesar de
intimamente entrelaçados – tocando-se mesmo, no ponto de garantia e
mútuas cedências a que chamamos Constituição63 – constituem sistemas
evidentemente autónomos, muito embora a relação entre ambos, na sua
regularidade, signifique que a existência de cada um pressuponha certos aspectos
do outro, necessite estruturalmente de certos elementos do outro sistema.
Outro exemplo (e de enorme importância) é a confiança constante
do direito na força coactiva do Estado. As comunicações próprias
do direito, e próprias deste, como, por exemplo, a rotulagem de um
determinado acto como ilegal, “irrita” a máquina do Estado, seguindose a detenção do autor do acto. Estado esse que apenas pode deter indivíduos
nas condições em que a lei lho permite. E isto acontece de forma regular –
Niklas Luhmann, Law as a Social System, 382: “[...] coupling mechanisms
are called structural couplings if a system presupposes certain features of its environment on an ongoing basis and relies on them structurally [...]”.
62
Niklas Luhmann, Law as a Social System, 362 s.
63
Niklas Luhmann, Law as a Social System, 404: “Not until de eighteenth
century […] was the form invented which guaranteed the structural coupling between the legal and political systems. It was and still is called ‘constitution’”.
61
37
PR ÉMIOS | Prémio Doutor Cabral de Moncada
é já estrutural o acoplamento entre estes dois sistemas, e este tipo de
relações, se permite um notável aumento na complexidade dos vários
sistemas na sua apreensão da realidade, também impede a queda das
estruturas no caos. Uma limpa manutenção de independência através
da interdependência64.
4. O problema da argumentação
Após uma brevíssima exposição acerca desta matéria, já
temos elementos que nos ajudarão a compreender como poderá a
inflexibilidade do sistema ser mitigada. É graças a um acoplamento,
realizado plenamente ao nível da dogmática textual, com uma esfera
de argumentação jurídica. Ora, a argumentação, sabemo-lo, não tem
lugar dentro deste sistema. Existe um código; existem programas e
uma função; e a clausura operacional assegura que nada de externo
ao sistema pode influenciar as operações que dentro dele ocorrem. A
argumentação não vai, como tal, alterar a validade legal, o signo recht
ou unrecht que um sistema aplica a um facto que lhe é apresentado. Não
alterará a lei65. E, no entanto, é evidente que o veredicto dado pelo
juiz não é, de todo, independente dos argumentos apresentados pelo
advogado.
A âncora do direito está nos textos legais; são estes que asseguram
uma observação de primeiro grau do sistema pelo próprio sistema; o direito,
enquanto sistema, observa-se como “conjunto de textos” aquando
da realização de um caso66. Os “textos” incluem ainda referências a
contextos passados (decisões) que ajudam a reduzir as possibilidades
de decisão. Encontrar os textos certos para a argumentação requer, no
64
Niklas Luhmann, Law as a Social System, 371: “The political system benefits from the difference between legal and illegal being coded elsewhere […]
[while] the legal system benefits from having peace, a clear differentiation from
authority, and with it the enforceability of decisions, secured elsewhere”.
65
Niklas Luhmann, Law as a Social System, 305.
66
Niklas Luhmann, Law as a Social System, 306. A referência feita frequentemente à intertextualidade mais não é, segundo Luhmann, que uma representação
informal do total do sistema (Dogmatik) pelo sistema (System). O recurso à analogia
juris, ao espírito do conjunto dos textos, mostra como estes sistemas-dentro-de-sistemas ganham vida quando referidas ao subsistema da argumentação.
38
Uma Visão Jurídica da Evolução do “Direito Enquanto Sistema na Sociedade” ...
estado de actual complexidade do mundo, uma grande especialidade
do jurista – algo com que Weber concordaria67.
Se a leitura dos textos é uma observação de primeiro grau, a
argumentação destes localizar-se-á já num segundo grau. Trata-se já não
de verificar os textos acumulados na dogmática mas sim de se colocar
a pergunta de como os interpretar num contexto comunicativo. É neste nível
secundário que se formam as regras acerca de como interpretar os textos
legais. Doutrinas como a exegese, o critério do legislador ideal ou ideias
de interpretação extensiva situam-se neste grau de auto-observação do
sistema; o observador olha-se a si mesmo e à sua leitura inicial (literal,
rotineira) do texto e duvida do resultado a que chega; isto porque é
certo e problema milenar que lendo apenas os textos se chegará muitas
vezes a resultados pouco satisfatórios68. É muito possível o observador
descobrir que a letra da lei o leva a conclusões que vão contra
interesses que devem ser tutelados, ou que a sua interpretação literal
poderá ter consequências que não poderiam, de todo, ser a intenção
do legislador. Há uma procura exterior à norma mas interior ao sistema
pela melhor forma de interpretar o texto; e dentro do sistema há duas
formas de corrigir a leitura inicial: ou detectando um erro (aplicando à
prévia leitura um código do tipo erro/não-erro) ou encontrando razões
melhores ou menos boas para interpretar o texto de determinada forma.
A hierarquia destas razões desvela-se através de uma observação de
terceiro grau – esta já exterior ao sistema e apoiada nos predicados da
teoria da argumentação, através de acoplamento.
A especificidade do direito e o seu contacto constante com as
realidades humanas (preservando sempre a sua autonomia) conferemlhe uma especificidade ímpar quanto ao tipo de argumentos utilizados
em sua sede; princípios gerais, ideias de “correcção”, “equidade” ou
a já escrutinada “justiça” mostram-se pouco adequados para tratar
problemas individuais e microscopicamente distintos. O sistema
apresenta assim uma alta especificidade e atenção para as diferenças
entre cada caso particular; conjura-se, aquando da argumentação, a
individualidade e irrepetibilidade do discutido69. E no entanto, os termos
67
Supra, ponto 4.2.1.
Niklas Luhmann, Law as a Social System, 307: “Here one observes oneself (or others) reading a text and one has one’s doubts”.
69
Niklas Luhmann, Law as a Social System, 310 s: “[Argumentation]
feeds off the variety of cases it is involved in, thus achieving a high degree of
68
39
PR ÉMIOS | Prémio Doutor Cabral de Moncada
utilizados, os programas empregados, mostram-se muitas vezes os
mesmos. Cláusulas gerais como a da “boa-fé”, termos como “culpa”
e “contrato” apresentam-se modeláveis, utilizam-se tanto no palco da
argumentação legal como no exterior do sistema, apresentando uma
polissemia aparentemente imperdoável num contexto de rigor como o
que arguimos ser necessário para a determinação de uma sentença (à
falta de melhor termo, e perdoe-se a polissemia!) justa.
A conciliação destas duas realidades surge através da própria
utilização deste tipo de termos em contextos diferentes, expandindo o
significado dos termos pouco a pouco através de analogias, construindo,
paulatinamente, pontes entre casos relativamente diferentes mas que
permitem decisões semelhantes. O léxico do sistema vai-se assim
expandindo pouco a pouco; prudentemente se alcançam novos
domínios com velhos termos, preservando as velhas expectativas em
domínios previamente fora do alcance da regulamentação legal70.
Há dois conceitos que se afiguram fundamentais quando
abordamos questões de argumentação dentro do sistema – ou
seja, num nível secundário de observação – muito embora não sejam
exactamente parte integrante dele – mas antes conceitos técnicos
de uma mais abrangente teoria da informação. São eles a redundância e
a informação71. Esta consiste no conteúdo novo de uma mensagem; a
primeira é definida como todas as partes da mensagem que não são
informação – a informação confere variedade a comunicações que sem
ela não passam de rotina e repetição (redundância). Note-se, porém, a
discreta importância da redundância na comunicação – é ela que nos
permite localizar a informação relevante, agrupá-la, detectar erros. A
existência de um predicado em cada frase, de um acórdão para cada
julgamento, de uma introdução para cada acórdão, de determinantes
artigos perante cada substantivo – tudo isto é redundante e necessário.
specificity, which cannot be reduced to general principles (for instance, justice). It
becomes highly sensitive towards individual problems and distinctions”.
70
Niklas Luhmann, Law as a Social System, 311: “Thus experiences from
previous cases and expectations can be preserved, reconfirmed, and carefully extended to new facts and circumstances, or, if this is not satisfying, can be used to
create rules for as yet unregulated situations”.
71
E uma terceira categoria – a variação- que se contrapõe (mas não opõe!)
à redundância, e se refere às possibilidades operativas do sistema. No fundo, a informação
que o sistema é capaz de computar, e que é condicionada tanto pelo presente estado
do sistema como pela redundância existente – Niklas Luhmann, Law as a Social
System, 320.
40
Uma Visão Jurídica da Evolução do “Direito Enquanto Sistema na Sociedade” ...
Quanto mais informação um sistema deve processar, maior a
redundância que deverá possuir – a redundância, e o seu correcto
ajustamento, é uma medida de complexidade, e portanto uma medida
de justiça. A importância desta função é proporcional às necessidade
de selecção exterior por parte do sistema, assim como uma reacção
do problema do excesso de “barulho interno” – sistemas de elevada
informação72 precisam de elevada redundância de maneira a impedir
constantes irritações (e consequentes operações) internas. Alguns
autores73 atribuem a esta função um epíteto de mão invisível do sistema
– tal o seu papel na coordenação. A consistência do sistema adquirese através da criação de suficientes redundâncias, permitindo detectar
erros, seleccionar informação relevante e responder a um número de
casos cada vez maior – responder à contingência da realidade com
a consistência do sistema. Assim se explica a solidez que o direito
apresenta à sociedade – e a confiança que esta lhe aufere – assim como
o seu desenvolvimento e ramificações, que podendo ser apresentados
como impeditivos de uma total confiança se mostram, na verdade,
como condições essenciais para tal.
Em boa verdade, aquilo a que nos referimos é à importância
da repetição dentro do sistema legal. Abordámos a temática da
argumentação, inicialmente, através de uma referência ao sistema
de textos legais. E a repetição é também de suma importância para o
uso destes textos; pois é a partir de não menos que miríades de usos
repetidos que os chamados conceitos legais se constroem. São eles as
formas de eleição para armazenar o conhecimento e os usos de gerações
de argumentos legais74; permitem distinções cada vez mais apuradas e
precisas; são “artefactos históricos” que auxiliam as comunicações. O
positivismo legalista exacerbou o uso de conceitos. A justificação para
o seu método era a tónica colocada na consistência. Mais tarde, e num
processo quase dialético, surge a jurisprudência dos interesses, procurando
justificações externas ao sistema e vendo o direito como resolução de
E já Talcott Parsons (ver supra) se referia ao direito como sistema de
“elevada informação” e não tão elevada “energia”.
73
A começar com Martin Shapiro, em Toward a Theory of Stare Decisis.
74
Niklas Luhmann, Law as a Social System, 340: “With the help of concepts, distinctions can be stored and made available for a great number of decisions. In other words, concepts compound information, thereby producing the
redundancy required in the system”.
72
41
PR ÉMIOS | Prémio Doutor Cabral de Moncada
conflitos de interesses. Conseguimos ver hoje uma síntese de ambos, pois,
através de observação secundária, conseguimos ver em tribunal tanto
a utilização de argumentos formais como substantivos, permitindo tanto
auto-referências como a referência a realidades externas75, que se
traduzem – para o sistema – numa reclamação de maior variedade em
si-próprio, numa maior adequação de complexidade à realidade. Em
maior justiça.
O direito tende para uma maior complexidade à custa de
mecanismos de selecção natural76, e não por qualquer direcção imprimida
ao direito pela sociedade. Cego para qualquer valor externo que se lhe
queira imprimir, o sistema pauta-se pela sua autonomia e diferenciação,
como já observámos inúmeras vezes, e estes conseguem-se através do
uso de um código binário e programas únicos e específicos. Porém, a simples
aplicação de programas e código levaria a um direito pouco elástico
e pouquíssimo ajustável à realidade. Mais: a obscuridade do sistema
medir-se-ia na obscuridade dos programas, e os erros humanos nunca
permitiriam uma plena confiança por parte da sociedade – que muito
embora não seja um factor tomado em linha de conta pelo sistema
(porque externo) se mostra essencial para a sua sobrevivência. A traça
não se apercebe que é a semelhança da sua tonalidade com a do tronco
da árvore que permite a sua sobrevivência77, e no entanto a selecção
dá-se nesse sentido. A argumentação permite corrigir erros que seriam
fatais para a confiança geral de que o direito manteria as expectativas
normativas; confiança estabilizada pela elevada redundância do sistema
e a referência a uma dogmática consolidada. Cabe aos argumentos uma
função essencial de clarificação destes textos, que permita encontrar a
75
Niklas Luhmann, Law as a Social System, 346:
“Accordingly, the system practises self-reference with formal argumentation and
external reference with substantive argumentation. Formal argumentation is ultimately predicated on the necessity at all levels to come to a decision and to
avoid submersion in the full complexity of the factual world. Substantive argumentation prevents the system from isolating itself in formal argumentation”.
76
Referimo-nos a um aumento de complexidade muito embora a selecção natural não tenha nada do género em vista – trata-se apenas de um efeito
secundário altamente provável de uma melhor adaptação. Nada obsta a que uma
estrutura mais simples tenha sucesso adaptativo, no entanto – Peter J. Bowler,
Life’s splendid drama: evolutionary biology and the reconstruction of life’s ancestry 1860-1940.
77
A veloz evolução de Biston Betularia, despoletada pela rápida industrialização em Inglaterra – Bruce Grant e Michael Majerus, «Fine tuning the
peppered moth paradigm».
42
Uma Visão Jurídica da Evolução do “Direito Enquanto Sistema na Sociedade” ...
interpretação que torna possível uma maior consistência futura do sistema, e uma
decisão consoante a mesma. A auto-referência necessita, no entanto,
de um contraponto de argumentação substantiva – mas é impensável
o sistema perder-se nesta, pois a sua função é seleccionar os factos, filtrá-los, de
maneira a reduzir a complexidade da realidade exterior. O sistema racionaliza
os interesses de acordo com a variedade possível dentro do sistema – i.
e., procura dentro de si as referências externas que constituem para si
informação computável, que despolete operações. E – note-se a metareferência – a própria observação que fazemos presentemente dentro
do sistema, esta análise à natureza e modo do argumento, consiste em
observação secundária do sistema dentro do próprio. A argumentação
permite, através da delineação de círculos concêntricos (observação
em primeira e segunda linha, mais uma terceira [em que ingenuamente
acabamos de entrar, ao analisar a própria teoria argumentativa como
analisada pelo direito...!] já externa ao sistema) um visível aumento
da diferenciação e da complexidade do sistema. Ora, a crescente
complexidade da galáxia argumentativa pode ser vista em paralelo com
a crescente complexidade da realidade sem perda de auto-referência78 – e,
como tal, uma adequada análise argumentativa por parte do sistema é,
para o próprio sistema, reflexo de uma elevada justiça.
5. Um direito sem porquê?
Poder-nos-íamos perguntar qual o objectivo de uma teoria
que, ao contrário dos outros modelos funcionalistas que poderíamos
analisar, não parece incluir uma intenção prática, parecendo insistir
num esquema de conhecimento do objecto pelo conhecimento em si
mesmo; ou talvez com um objectivo específico de reafirmar a autonomia
do direito perante as ameaças que o mundo contemporâneo, maxime
através dos próprios funcionalismos, lhe coloca. E, no entanto, algo
mais parece existir; não só uma teoria mas uma proposta. Castanheira
Neves refere a integração desta teoria em modelos modernos de
direito79, notavelmente por Günther Jakobs (quando argumenta que
o direito penal deve proteger a norma jurídica e não os Rechtsgüter, é
Luhmann que mobiliza. A ideia do sistema protegendo-se a si próprio de
78
79
Niklas Luhmann, Law as a Social System, 354.
António Castanheira Neves, «O Funcionalismo Jurídico», 268 s.
43
PR ÉMIOS | Prémio Doutor Cabral de Moncada
indivíduos que se declaram, através das suas acções, como estando
fora da “máquina”80 vai de encontro à proposta do A. de um direito“sistema imunitário”81 da sociedade, identificando conflitos através das
suas normas e criando novas normas que criam novas expectativas futuras a
proteger) e em Kurt Amelung (e a sua compreensão da norma penal
como servindo uma função dentro do sistema social – de forma mais
análoga ao estruturalismo Parsoniano); mas todo o esquema decisivo,
todo o plano argumentativo, apesar da sua pretensa factualidade científica,
parecem encerrar um certo dever-ser – se não mesmo um certo
pessimismo quanto ao que efectivamente é.
De facto, o A. deixa-nos presente a ideia de que apesar da sua
clausura normativa, o direito não está seguro das imprevidências da
sociedade, nem livre das falhas a que os seus inúmeros acoplamentos o
expõem. E a sociedade, para além de mais complexa, torna-se também
mais imprevidente à medida que o tempo passa; e se é função e pãonosso do sistema legal lidar com a complexidade, já a imprevidência se
torna problemática. Pois o sistema deve fixar expectativas; e cada vez
mais difícil se torna fazê-lo. O sistema encontra-se a cada momento
no fio de uma afiadíssima navalha, tendo de um lado a necessidade
de estatuir normas que respondam aos novos conflitos apresentados
pela sociedade, do outro a queda para o excesso normativo e a
correspondente perda da confiança geral e impossibilidade de correcto
funcionamento. Esta tensão atinge um tal ponto, no presente momento,
que é possível assistir ao inesperado paradoxo de uma sociedade que
arriscaria o colapso se todo o direito em vigência fosse efectivamente
sancionado – Luhmann dá o exemplo da catástrofe a que se assistiria
caso todo o mercado negro fosse abolido nos dias de hoje82. Sabemos
já que as expectativas normativas se podem manter (e mantêm!) apesar
de exemplos contrafactuais. Resta saber, perante a sociedade actual, até
onde aguenta o “elástico” das expectativas.
Porque a própria consciência da generalidade dos indivíduos, através da
sincronia entre as suas acções e as operações do sistema, se encontra (nas palavras do autor) acoplada com o sistema – Niklas Luhmann, «Die Autopoiesis des
Bewufßtseins», 402 s.
81
Niklas Luhmann, Law as a Social System, 476: “An immune system gets
along without knowledge of its environment. It only registers internal conflicts
and develops for them case-by-case solutions which can be generalized, that is,
providing surplus capacity for future conflicts”.
82
Niklas Luhmann, Law as a Social System, 478.
80
44
Uma Visão Jurídica da Evolução do “Direito Enquanto Sistema na Sociedade” ...
Mas o próprio tipo de expectativas dirigidas ao direito é hoje em
dia totalmente distinto daquilo que tradicionalmente seria de esperar.
O advento do estado social levou a uma presunção de responsabilidade da
sociedade; esta deveria resolver as falhas, as desigualdades, os problemas
dos indivíduos – compensando, prevenindo, providenciando, a nível
educativo, através dos mercados, com medidas políticas capazes de
realizar uma chamada justiça social. Uma enorme parte deste quinhão
cabe ao sistema legal – e consequentemente, é esperado que este actue
em conformidade; a Lei estará a falhar se a sociedade não for elaprópria justa. No entanto, a ideia de sociedade justa é em si mesma
contingente – estamos a falar de justiça como igualdade material
entre indivíduos? Igualdade de oportunidades? O melhor possível
para aquele que está pior? O direito (estudamo-lo agora externamente
– observação de terceiro nível) ressente-se desta contingência. A
legitimidade passa a estar associada ao procedimento – no fundo, na ideia
de que é uma determinada série de comunicações formais pré-determinadas pelo
sistema que conferem a obrigatoriedade à lei. O futuro é incerto e o direito
não providencia um guia universal, um ideal a seguir. Consiste num
sistema que, para sobreviver, se adapta (através de processos internos)
consoante os estímulos que recebe (do mundo exterior).
Há um problema que deixámos para o fim desta abordagem.
Trata-se da questão dos princípios de direito, que, podendo prestar um
enorme serviço no que toca à justificação da decisão, à legitimidade
do sistema, ao desafio de dar respostas coerentes a uma realidade em
permanente mudança, se encontra fora da máquina autopoiética do A.
A alienação é feita aquando do tratamento da argumentação; a “crença”
em princípios vista como um anacronismo, na medida em que procurar
as “razões para as razões” fora do sistema é algo de impraticável quando
se aceita a clausura normativa; sendo a sua proveniência sempre ligada
a preceitos “morais”, “éticos” ou a uma crença na “razão” – ou mesmo
justificados por uma visão utilitarista (ex: um princípio de “bemestar geral”) – é necessário fazer uma escolha entre a perspectiva de
sistema autopoiético fechado ou um direito fundado em princípios83.
Luhmann não tem dúvidas quanto à sua escolha; os princípios, na sua
indeterminação fundamental, deixando lugar a vasta interpretação e
mesmo à possibilidade de interpretações contrárias, permitindo assim
83
A inflexibilidade da autopoiesis de Luhmman é uma das maiores críticas
que Teubner lhe coloca (ver infra).
45
PR ÉMIOS | Prémio Doutor Cabral de Moncada
ao sistema que se demita de distinguir entre casos alegando uma
generalidade (ex: “proporcionalidade”) e permitindo um tratamento
difuso da dimensão temporal do sistema; séculos de casos e distinções
colocados sob um termo generalista (“boa-fé”) – não passam os
princípios, para o autor, de “fórmulas de redundância” do sistema84.
A validade da teoria científica é empiricamente associada à sua
maior ou menor aproximação relativamente ao que se verifica aquando da
observação directa do fenómeno. Pois esta teoria, aspirando a científica,
terá de passar, para sobreviver, a um reality check. E independentemente
da sua admirável construção, será necessário admitir que este sistema
legal difere substancialmente daquele que observamos quotidianamente.
Para começar, porque nos é intuitivamente difícil acreditar num direito
sem direcção. Um direito que não aspira a correcto, que procura apenas
a sua sobrevivência e autonomia (uma teoria do direito egoísta?) – será
este o projecto a que vimos assistindo desde Roma, e se sim – haverá
esperança?
Mesmo deixando as dúvidas de natureza axiológica (às quais a
teoria nem sequer tenta responder), há ainda a questão da correcção
formal. Pois a enorme quantidade de auto-referências nesta teoria – e
não só nesta, a crítica é comum a toda a explicação por autopoiesis – leva
a um fácil diagnóstico de circularidade, mesmo de solipsismo. De onde
vem a legitimidade do direito, então, e onde começa e acaba este? Esta
teoria (sociológica!) não se ocupa de responder. Procura meramente
descrever o observável – aos juristas caberá explicar.
III - Günther Teubner e o sistema hipercircular gradativo
1. Afinando a autopoiesis
Teubner começa a sua exposição pelo mesmo lugar que o A.
anterior: o direito apenas se conhece através de si-próprio; só na autoreferência pode ser autónomo, só, no fundo, não adquirindo a sua validade
de nada que lhe seja externo. A este predicado junta um segundo: não
dependendo de nada externo, a clássica relação de causa-efeito não se aplica
ao jurídico, no sentido em que este é indeterminável por fonte externa.
Apenas as máquinas ditas “triviais” operam de forma sintética e
84
46
Niklas Luhmann, Law as a Social System, 312.
Uma Visão Jurídica da Evolução do “Direito Enquanto Sistema na Sociedade” ...
previsível; o direito é imprevisível, não seguindo outra sequência linear
para além daquela que ele define para si próprio, na sua auto-reprodução.
Permanece dependente do passado; isso é indubitável – mas para onde
este o levará, ninguém o determina85.
Sabe, no entanto, que existe algo que efectivamente determina
o que é e o que não é direito – as fontes de direito. E saltando de fonte
inferior para fonte superior, nas palavras de Hofstadter, acabamos por
“bater com a cabeça no tecto”86 – voltamos às fontes inferiores, que
acabam por legitimar as superiores. Da mesma forma como são os
tribunais que legitimam as leis que lhes dão o poder de julgar, da mesma
forma como, no fim de todos os argumentos, há sempre alguém que
pergunta “é legal distinguir entre recht e unrecht?”, o sistema – na base
como no tecto – assenta em paradoxo.
Teubner apresenta-nos as três alternativas que a doutrina legal
encontrou para desfiar o paradoxo. A desconstrução, o desmascarar das
antinomias, a desmistificação dos procedimentos legais, conforme
defendem os Critical Legal Studies; a procura de consistência real por
oposição aos “paradoxos do pensamento”, na esteira de Hart; e
finalmente, a sua própria proposta: “a transferência do paradoxo do
mundo do pensamento sobre o direito para o mundo da realidade social
do direito”. De forma verdadeiramente revolucionária (e demonstrando
um certo cepticismo perante as posturas [não verdadeiramente] radicais
dos Critical Legal Studies) o autor propõe à doutrina jurídica abraçar a
circularidade, largando o tabu veiculado milenarmente por este conceito.
Não se trata aqui de aceitar o argumento circular (falho, naturalmente, por
petitio principii) mas sim de compreender a circularidade como dimensão
fundamental da prática jurídica87. Independentemente de ser aceitável
ou não raciocinar circularmente, é necessário compreender que as
85
Günther Teubner, O Direito Como Sistema Autopoiético, 33:
“São estas regras que fazem com que um sistema auto-referencial apareça como
um sistema independente em face do seu meio envolvente e imune à respectiva
influência directa: caso contrário, seria o último a determinar a continuação e
reprodução do primeiro, cujo desenvolvimento evoluiria ao sabor de contingências exógenas em vez de constituir fruto da lógica necessitante de operações
próprias endógena e recursivamente organizadas”.
Douglas Hofstaedter, Gödel, Escher, Bach: An Eternal Golden Braid, 692.
Niklas Luhmann, Soziale Systeme. Grundriß einer allgemeinen Theorie, 648
“A realidade possui, independentemente mesmo do conhecimento humano e da
sua apreensão cognitiva, uma estrutura circular”.
86
87
47
PR ÉMIOS | Prémio Doutor Cabral de Moncada
relações circulares abundam na realidade jurídica. A auto-referência é um problema
específico ao qual o direito se não pode esquivar88.
Pode parecer cruel pensar assim. Pode dar a entender que
o direito, na autonomia que lhe é própria, é menos que os outros
sistemas, porque circular e portanto falho. Nada mais falso. Pois que é
a matemática mais que um complexo circular de axiomas, mutuamente
fundados? Qual é a origem da vida senão a vida? Qual é a definição de
uma palavra que não seja...
outra palavra? Não se conhece um princípio para nada: vivemos
num mundo de fenómenos circulares, generalizados de tal forma na
nossa consciência que se torna difícil perguntar pelos princípios de cada
um (e qual o princípio da consciência?). Levar a cadeia racional até um
derradeiro final implica um desmoronar da realidade e uma paralisação
total do sujeito. É assim necessário aceitar, epistemologicamente,
que a própria realidade tem uma estrutura circular. E só assim poderá ser
cognoscível.
E esta mesma circularidade é característica, portanto, da praxis
jurídica. Mas se a ideia é tão contrária àquilo que normalmente se postula
desejável numa ordem instituída (i. e., se a justificação do direito procura
sempre fugir à circularidade), como podemos nós articulá-la com um
funcionamento prático do sistema? Pois bem, o que se pretende é uma
justificação; “porque é o sistema como o vemos?”, a resposta “porque
é circular”. Como é o sistema que vemos? Autónomo.
É precisamente na esteira da autonomia que o sistema se quer
circular. Não apenas auto-referencial mas autopoiético, não meramente
autónomo mas circular. Pois um direito que admitisse fontes externas a
si próprio, mecanismos de hetero-reprodução, estruturas-outras que
lhe dessem uma direcção... rapidamente se veria diferente de si próprio;
nunca alcançaria a estabilidade que se torna possível pela sua total
auto-contenção. Total num sentido mais abrangente que aquele que
Luhmann imprime ao seu sistema; não incluindo apenas as comunicações
mas tudo o que lhe é próprio: instituições, papéis, normas, actos jurídicos,
funções, juristas, no duplo papel de construções semânticas do sistema e de
sistemas independentes; os pilares do sistema residem na sua estrutura
88
Günther Teubner, O Direito Como Sistema Autopoiético, 33: “[...] todos
esses fenómenos representam simples ilustrações particulares e pontuais da natureza visceralmente circular da realidade do direito”.
48
Uma Visão Jurídica da Evolução do “Direito Enquanto Sistema na Sociedade” ...
interna89. Olharmos para esta na forma da estrutura clássica Parsoniana
levar-nos-ia a uma ênfase na distinção sistema/Umwelt; a relações de
input/output entre uma e outra que se mostram demasiado redutoras
para aquilo que se vê na realidade jurídica. Está aqui implícita uma
superação desta perspectiva90; a clausura auto-referencial do sistema
leva-o à autodescrição e à autoconstituição. Estes processos levam
a novos processos de autoconstituição – um hiperciclo, sem o qual a
estabilização do sistema não seria possível. O contínuo remetimento
do sistema para processos próprios e a recursividade das suas regras
de funcionamento permitem que ele se auto-reproduza – evoluindo
ao seu próprio ritmo e nos seus próprios moldes formais. E assim (só
assim poderia ser!) o direito se autodetermina.
Pretende o A. com isto estatuir um direito removido da realidade,
insusceptível às tradicionais relações de causalidade? De todo. Será isto
apenas uma reafirmação da (já tão discutida) autonomia? Não apenas.
Trata-se da afirmação de uma autonomia num sentido mais refinado,
pretendendo dar ao direito o estatuto de “máquina não-trivial” que
referimos supra, requerendo uma nova interpretação das relações entre
o direito e o não-direito.
O híper-círculo permite ainda ao A. rejeitar uma das concepções
que levantavam problemas às restantes teorias de direito autopoiético –
o carácter inflexível deste atributo. Para Teubner 91, um sistema não
terá de ser “bem que autopoiético” ou não, permitindo-se a existência
de diversos graus de autodescrição e autoprodução, configurando
uma autopoiesis gradativa, constituída na maior e menor medida em que
consiga constituir os seus próprios elementos (sob a forma se ciclos
auto-referenciais, bem entendido. A articulação dos vários ciclos –
autoprodutivos, autodescritivos, auto-referenciais – num hiperciclo
sustentável configura a etapa final e a verdadeira autopoiesis), à medida
Günther Teubner, O Direito Como Sistema Autopoiético, 66: “[...] não apenas os actos jurídicos, mas verdadeiramente todos os componentes do sistema
jurídico – estruturas, processos, limites, meio envolvente – devem simultaneamente ser auto-constitutivos e articular-se entre si de forma auto-reprodutiva (hipercírculo)”.
90
E com a superação da visão do sistema fechado que comunica com o
exterior através de relações input/output... A superação da visão do direito como receptor e executor de um programa externo (político, económico, religioso...); o funcionalismo sistémico ultrapassa assim a Zweckrationalität dos funcionalismos materiais.
91
Baseado, porém, na definição prévia de Roth, em Die Entwicklung kognitiver Selbstreferencialität im Gehirn.
89
49
PR ÉMIOS | Prémio Doutor Cabral de Moncada
que se constituem mais ciclos, à medida que a plasticidade e o feedback
dentro do sistema aumentam92.
Não só categorialmente gradativa... Mas temporalmente gradativa.
O hiperciclo constitui-se, nas suas várias manifestações (históricas,
admitindo um pluralismo de direitos), atravessando várias fases de
autonomização. Uma inicial – fase de direito socialmente difuso – na qual
o discurso jurídico não se distingue do discurso comunicativo usual;
aquilo que é direito é totalmente determinado pelo social, não existindo
fronteira alguma entre o jurídico e o não-jurídico. Existe a consciência
da necessidade de resolver uma controvérsia resultante da vida comum
recorrendo ao código legal/ilegal – mas os parâmetros da sua aplicação
são hetero-referenciais, não pertencendo a algo a que se possa chamar de
sistema jurídico. De seguida, surge uma fase intermédia de chamado
direito parcialmente autónomo; e aqui começam a surgir termos, processos,
elementos exclusivamente jurídicos; haverá auto-referência, manifestada
sob a constituição inicial de critérios jurídicos secundários93 e de uma doutrina
jurídica, alcançando esta fase mesmo estádios mais avançados que
incluem auto-organização e autoprodução de elementos. A formação total
do hiperciclo resultaria na fase autopoiética do sistema; e aqui a teia de
comunicações jurídicas é total, autónoma e auto-reprodutiva94. Será
demasiado ousado fazer corresponder a estas três fases de progressiva
autonomia... as três fases históricas do direito distinguidas por Weber
95
? Mesmo não tendo maneira de entrever os desenvolvimentos
que lhe sucederiam, não seremos capazes de encontrar aqui ligação
evidente – visto ambas as visões estarem unidas por um progressivo
desenvolvimento da doutrina jurídica, visto por um através do marcador
do ensino do direito (factor também ele de certo modo intrajurídico!),
por outro pelo cada vez maior âmbito da auto-referência?
É momento de nos perguntarmos: é isto ainda autopoiesis? O
termo aparece pela primeira vez em 1972 para se referir a um processo
de autocriação a nível celular. Já aí era contestado. Temos assistido
Günther Teubner, O Direito Como Sistema Autopoiético, 67: “O aumento
cumulativo de relações circulares faz assim da autopoiesis um processo gradativo”.
93
E é nesta articulação de normas primárias com normas secundárias –
segundo o “heart” de Hart – que podemos verificar a existência de efectivo direito
(Hart, The Concept of Law).
94
Günther Teubner, O Direito Como Sistema Autopoiético, capítulo 3.
95
Ver supra.
92
50
Uma Visão Jurídica da Evolução do “Direito Enquanto Sistema na Sociedade” ...
a progressivos entorses conceptuais a partir do momento em que o
começamos a utilizar para designar a autonomia de sistemas sociais;
agora, deixamos cair um outro pilar – já não é um conceito de tudo-ounada. O que resta?
Para Teubner, resta o essencial. Vê a sociedade como sistema
autopoiético de comunicações – e o adjectivo atribui ao sistema um
elevado grau de autonomia perante tudo o mais. As comunicações
dependem, na sua grande maioria, umas das outras. Em sociedade, cada
acto comunicativo individual aceitará inputs cognitivos provenientes
do exterior – do mundo físico, se assim o quisermos – mas estará
principalmente dependente de outras comunicações, provenientes que
sejam de passados remotos ou imediatos, e mesmo futuras. Não sendo
possível rejeitar a aplicação do termo a entidades biológicas (por ser essa
a sua origem!), teremos de ver cada indivíduo comunicante como sistema
autopoiético em si mesmo, e cada célula de cada indivíduo também.
Existe uma construção de sistemas de cada vez maior escopo, através
de unidades autopoiéticas mais pequenas. Ao mesmo tempo, porém,
existe uma diferenciação no seio da sociedade; certas comunicações
vão criando círculos entre si, dentro do sistema. A sua especificidade e
progressiva autonomia levará estas unidades (passando pelas fases atrás
discriminadas) a alcançar o estatuto de sistemas autopoiéticos de segundo grau,
entre os quais o sistema jurídico, articulados entre si num hiperciclo que
constitui o sistema autopoiético de primeiro grau.
Resta perguntarmo-nos pela relação entre o indivíduo e o sistema. Que
era já um ponto difícil na construção de Luhmann. Uma concepção
extremada (por muito que gradativa na evolução...) de direito como
sistema não sacrificará os sujeitos aos quais o próprio sistema se
dirige? Ver o humano como peça de máquina não é reduzir o humano
a... peça de máquina? E mesmo que o sistema seja compatível com
o homem-pessoa, este apenas aceita aquilo que lhe é próprio, apenas
computa-apreende aquilo para que está programado. O humano,
englobando incontáveis vertentes que lhe são próprias, para além de
constantemente imprevisível na sua acção, parece um mau candidato a
objecto de apreensão desta máquina jurídica.
Teubner vai ver nestes receios exageros com pouco fundamento.
Aquilo que é fundamental compreender é que este sistema não é algo
de físico, não é sequer uma realidade normativa ou social; o sistema
representa as relações comunicativas que se estabelecem entre os sujeitos.
51
PR ÉMIOS | Prémio Doutor Cabral de Moncada
É uma construção, uma visão das comunicações às quais atribuímos a
função do jurídico – estabilizar expectativas, resolver controvérsias. E
aqui o indivíduo, com sua consciência – ela também um sistema, nesta
teoria – ganha um novo lugar, menos o centro da mundividência96,
mais cognoscente da existência de compreensões, de visões alternativas
e concorrentes (entre as quais a jurídica). O “indivíduo” torna-se mais
independente da realidade quando a decompomos em sistemas; o seu
pensamento autonomiza-se da comunicação; une-se a ela (como a
todos os sistemas) através da observação recíproca, da interpenetração,
da co-evolução. E a comunicação deixa de decorrer directamente da
consciência humana – ganha também a sua autonomia, à medida que
se autoconstitui circularmente; não é uma construção psíquica, mas
social. E a separação do indivíduo do sistema nunca aliena o primeiro,
pois este é o fundamental centro de imputação social e principal fonte
de perturbações do segundo97.
2. O direito e os outros domínios discursivos
Um outro ponto problemático é o da produção legislativa do
direito, que almeja regular toda a sociedade e não só o sistema autónomo
em que se inscreve (embora também o faça, através da emissão de
regras secundárias que regulam o processo no sistema). A questão não se
colocaria fosse o direito vocacionado meramente para a resolução das
controvérsias sociais; nesse caso a teoria do sistema aplica-se sem qualquer
problema. Os “sensores próprios” do direito encontram o problema
real. É feita a reconstrução deste segundo parâmetros jurídicos. As
normas convenientes são mobilizadas. O tribunal encarrega-se (pelo
procedimento supra, novo ênfase na proibição do déni de justice) de
fazer o julgamento adequado. O sistema toma conta da questão. No
96
Günther Teubner, O Direito Como Sistema Autopoiético, 93 s: “No universo da autopoiesis, o indivíduo que se dizia morto ganha assim uma nova vitalidade […] o sujeito pensante autónomo não se perdeu com a autopoiesis, tendo
sido, quando muito, descentrado: dir-se-ia apenas que a autopoiesis veio apenas
aumentar os seus concorrentes [...]”.
97
Vicenzo Ferrari, «Réflexions Relativistes sur le Droit», ponto 3.1.4:
“Günther Teubner, qui vise à une intégration entre la théorie autopoiétique de
Luhmann et la théorie de la communication de Habermas, décrit le système juridique comme une sorte de sphère définie extérieurement par des règles de procédure, par des processus de décision, mais formée à l’intérieur par des actes
réflexifs de communication normative libre”.
52
Uma Visão Jurídica da Evolução do “Direito Enquanto Sistema na Sociedade” ...
entanto, o direito já não se encarrega apenas de tutelar expectativas
e resolver casos individuais. É lhe pedido que influencie o meio
social98; o sistema político instrumentaliza o direito (em particular, a
“ferramenta” legislativa) para implementar os seus próprios fins. Mas
como podemos articular Estado e direito, se ambos se situam nos seus
respectivos círculos? Como pode o jurídico legitimar o político, se
cada um tem suas próprias comunicações, e tudo o resto é noise? Um
direito fechado e uma política fechada numa sociedade fechada. Será
esta clausura superável? Ou necessita o direito actual de abdicar da
autonomia?
Estamos a abrir o pithos de Pandora. Pois o que dizemos em
relação à esfera política aplicar-se-á, mutatis mutandis, à ética, à moral,
à economia, à rational choice. Todas estas categorias se relacionam, de
uma forma ou de outra, como meio do, ou instrumentalizando o, ou
meramente reclamando pelo direito. E todo o sistema fechado que
temos vindo a construir se vê (saltando, talvez, mais um degrau de
observação) rodeado por dezenas de outros sistemas que reclamam suas
próprias autonomias e mundividências99. E ao direito é frequentemente
pedido que “sacrifique” a sua racionalidade própria, os programas que
desenvolveu à volta do código que o distingue, aos pés destes inúmeros
“deuses” modernos.
Voltamos a encontrar uma concepção weberiana – que, através
da sua análise à religião, se vê autêntico profeta de um novo politeísmo100.
Porque o monoteísmo aparente dos nossos dias tem como outra face da
moeda (no mundo ocidental!) a existência de uma pluralidade de esferas
de pensamento, cada uma dotada de uma pretensão de universalidade – tal
98
Günther Teubner, O Direito Como Sistema Autopoiético, 142 s:
“Os problemas começam apenas quando se trata de aplicar no contexto social as pretensões jurídicas, ou seja, quando se trata de implementar decisões
jurídicas concretas. É óbvio que o agente executor destas decisões (“Gerichtsvollzieher”,
“huissier”) não pode continuar a conduzir-se exclusivamente dentro dos confins
teoréticos do sistema jurídico, devendo em determinado momento saltar para
o mundo exterior”.
99
Günther Teubner, «Altera Pars Audiatur»: “Chacune de ces théories de
la réflexion partielles prétend être valable pour la société dans son ensemble, en
tant que rationalité universelle”.
100
“Die alten vielen Götter, entzaubert und daher in Gestalt unpersönlicher Mächte, entsteigen ihren Gräbern, streben nach Gewalt über unser Leben
und beginnen untereinander wieder ihren ewigen Kampf [...]”.
53
PR ÉMIOS | Prémio Doutor Cabral de Moncada
qual o direito. Nenhum destes “deuses” pode, claro, ser subestimado. Mas
haverá, certamente, conflitos entre eles. Haverá casos de acções eticamente
reprováveis e economicamente fabulosas, e da mesma forma como vimos
que a política tenta instrumentalizar o direito podemos acrescentar que
tenta fazer o mesmo com a economia – e vice-versa. Inúmeras teorias
surgem – mencionámos os Critical Legal Studies, a Law and Economics de
Posner – tentando conciliar o direito dobrando a sua espinha a um outro
“deus”. Teubner não subscreve a qualquer uma destas visões.
Importa discriminar aquilo de que falamos quando mencionamos
“deuses”. Nada de numinoso. A teoria em que nos movimentamos é
uma teoria de comunicações; e estas entidades mais não são do que os
diversos discursos que as várias áreas da vida em comum requerem. Um
discurso médico distingue-se do jurídico ou de um económico; todos
eles têm diferentes entendimentos de termos semelhantes, utilizam
diferentes códigos e programas, desempenham funções diversas e
privilegiam fins distintos. A sua formação surge da especialização que
Max Weber diagnostica – muito embora, quando este fala de luta de
deuses, se esteja a referir a uma pluralidade de esferas de valor – e que
é essencial para a vida moderna. E a questão que enfrentamos, mais
prosaica que uma autêntica luta divina (ou mesmo, de uma colisão de
esferas de valor), é a do conflito de discursos101.
O A. faz uma interessante analogia entre este tipo de conflito
e aquele que surge no direito internacional aquando da colisão de
duas distintas ordens jurídicas. E de facto, é evidente a semelhança
num nível essencial: é à primeira vista impossível atribuir uma superioridade
hierárquica a uma das ordens. O direito internacional privado aprendeu,
historicamente, a lidar com este tipo de problemas através de uma
série de reenvios – não se tendo efectivamente criado uma entidade de
nível superior que encontre soluções gerais. Similarmente, não existe
autoridade discursiva superior, nem há sistemas de tradução discursiva.
A multitude comunicativa mostra-se incapaz de intercomunicação; as
fronteiras surgem ao nível da codificação, e o direito, no fim, permanece
aquele que codifica como legal ou ilegal102. A sua clausura normativa é que
101
Günther Teubner, «Altera Pars Audiatur»: “L‘attention passe des individus aux discours: il n‘y a pas que les individus, mais aussi les discours, parmi
lesquels le droit, qui sont exposés aux collisions qu‘ils génèrent eux-mêmes”.
102
Günther Teubner, «Altera Pars Audiatur»: “La nouvelle problématique de collision ne s’associe pas à des limites territoriales, mais à des codes et à
des programmes, qui représentent des limites des discours”.
54
Uma Visão Jurídica da Evolução do “Direito Enquanto Sistema na Sociedade” ...
se mostra (aparentemente) incapaz de lidar com os desenvolvimentos
recentes da sociedade; ou, por outro lado: a sua abertura cognitiva não
é suficiente para as exigências da actualidade; ou ainda: o direito não se
mostra totalmente adaptado à complexidade actual, indo contra aquilo que
era justiça para Luhmann. Não se conseguindo criar, por respeito àquilo
que é a originalidade fundamental de cada um dos discursos, uma instância
superior, um “direito superior de conflitos”, utiliza-se o mecanismo
típico do direito internacional privado da criação de um “foro” próprio
de cada parte do conflito, tornando -se possível o reenvio entre os
vários “foros”. Resta a questão de saber qual a forma adequada de
tratar os conflitos: dentro ou fora do direito.
Abordando a tentativa de incorporação da pluralidade discursiva
pelo direito, Teubner confronta a visão de Jürgen Habermas, que advoga um modelo baseado na tradução dos discursos em “linguagem
jurídica” – entendida como um discurso orientado segundo um
critério de “consistência decisória”, que tem a vantagem, para este
estudo, de se coadunar amplamente com aquilo que Luhmann previa
serem as consequências da argumentação (parte do discurso!) jurídica.
A consistência serviria aqui como um filtro; os programas de cada
discurso seriam adaptáveis ao direito en passant um teste de consistência,
e especialmente um exame constitucional. A especificidade do direito
para resolver este tipo de questões interdiscursivas adviria da sua
racionalidade própria, de tipo procedimental103. Ora, Teubner caracteriza
a visão de Habermas como algo distorcida; na medida em que se
por um lado o direito é um discurso muito menos adequado a uma
apreciação do tipo “macro” dos sistemas que-não-ele do que estoutro
crê – e como tal, a sua racionalidade procedimental não se mostra capaz
de criar “normas” substanciais acerca de conflitos interdiscursivos, ou
sequer de clarificar muito a questão a um nível geral, portanto não
será o direito (nem sequer será o direito constitucional, ao contrário
do que defendem vários autores) o “assento de um superdiscurso”
conciliador, por um outro lado a experiência mostra-nos que ao nível
do caso particular o direito se mostra prontíssimo a uma desconstrução da
universalidade da racionalidade... a um despir do discurso em factos discretos,
103
E realizada através da situação de discurso ideal. Ver infra.
55
PR ÉMIOS | Prémio Doutor Cabral de Moncada
convertendo um discurso geral no particular, em atenção ao caso
concreto104. Absolutamente o contrário de uma
generalização de regras de conflito, uma particularização da
racionalidade para servir a justiça local.
Temos aqui não uma mera filtragem de conceitos, mas
um autêntico motor de produção jurídica assente nos mecanismos
particulares do distinguishing e do overruling relativos à jurisprudência
existente, do princípio do tratamento diferente do que é diferente,
nunca procurando deglutir por inteira a racionalidade própria de um
discurso, mas meramente assimilando pelos seus próprios critérios a
lógica intrínseca relevante para a questão concreta. O sistema jurídico
“serve-se” das ideias próprias dos restantes discursos de modo a
chegar a respostas adequadas/consistentes com o sistema, de forma
a tornar o juridicamente indecidível em decidível. Ou seja: desde que
nos abstenhamos de tentar criar leis gerais de resolução de diferendos
(não podemos utilizar a designação “litígios” quando nos referimos
a controvérsias interdiscursivas, visto que o litígio pressupõe um
entendimento ou decisão justa possível, o que não é possível no diferendo105), o
direito será capaz de se encarregar deles no caso particular, à semelhança
do que acontece no direito internacional privado (e utilizando um
sistema análogo de re-entry)106.
O significado que Teubner encontra nesta solução coaduna-se
com uma tónica na praxis jurídica como dimensão fundamental. Com
efeito, é a prática casuística que resolve o problema do pluralismo.
Mas resolve? Ou a submissão dos discursos à praxis jurídica, ainda que
apenas ao nível local, não levará a uma perda de contexto das semânticas
estrangeiras? É algo que dá que pensar. A harmonização externa
dos vários discursos levará, com efeito, a uma perda de significado
interno, como se de autênticas línguas estrangeiras em conflito se
tratassem. Será necessário o reenvio de volta para a esfera de origem
para se contrabalançar o desequilíbrio causado por esta submissão
(local!) ao direito? Aquilo que vemos hoje, na verdade, é um recurso ao
Ver infra, parte IV.
Distinção introduzida por Lyotard, em Le Différend.
106
Günther Teubner, «Altera Pars Audiatur», 115: “[Les rationalités]
peuvent y être compensées les unes par rapport aux autres dans le cas particulier,
selon la rationalité locale de l’argumentation juridique, et ceci dans une forme
«supprimant» le conflit des rationalités partielles en tant que tel”.
104
105
56
Uma Visão Jurídica da Evolução do “Direito Enquanto Sistema na Sociedade” ...
consequencialismo que sempre temos tentado evitar, em sede de teoria dos
sistemas. Fazer depender a decisão jurídica das consequências externas
da acção – será isto possível num sistema que se diz autónomo, que
se diz mesmo autopoiético? Não será reduzir essa autonomia a nada,
tendo em conta a infinidade de consequências que um juiz teria de
tomar em conta na sua decisão?
É MacCormick107 que encontra forma de mitigar esta proposta,
tornando-a aceitável. Fá-lo reclamando uma redução do campo
material das consequências a ter em conta. Ou seja, em vez de se subverter
a norma jurídica à interpretação (possivelmente abrogante!) que as
consequências requeiram, limitar-se-á à partida, na própria norma, o
campo das consequências que substancialmente devem influenciar a decisão.
Como temos estudado, leva esta opção a um aumento de redundância –
assim como a um aumento da capacidade computacional e de resposta
do sistema, o que por sua vez implica uma maior adaptação dele à
complexidade externa (tornada tão mais complexa com o aflorante
pluralismo!) e, consequentemente, uma maior justiça. É limitando as
variáveis extrajurídicas que o sistema responde à necessidade de assimilar
o consequencialismo.
Assim se mantém a autonomia do sistema de Luhmann. Mas a
posição do direito altera-se. Não se encontra já uma justiça vertical, de
um direito “ever-reaching” que, do alto, se ocupa de cada controvérsia
da sociedade (em baixo), estabilizando as expectativas no fundo, ao
sabor das expectativas, na medida em que tal se coadune com a consistência do
sistema. Não, o direito evolui e adapta-se; se não ciberneticamente, pelo
menos encontrando uma nova posição, neste novo mundo pluralista – a função
deste sistema é estabilizar expectativas, e expectativas ele estabilizará
desempenhando um papel mediador entre os vários discursos108, estabelecendo
MacCormick, «Argumentation und Interpretation in Recht: “Rule
Consequentialism” und rationale Rekonstruktion».
108
Günther Teubner, O Direito como Sistema Autopoiético, 243 s:
107
“No caso de uma resposta afirmativa, estaríamos perante uma versão contemporânea da “justitia mediatrix”, em que a justiça deixaria de desempenhar o papel de mediador “vertical” entre ratio e aequitas, entre direito positivo e direito
divino, característico de sociedades hierarquizadas e estratificadas, para passar
antes, em resposta à crescente diferenciação funcional das sociedades actuais, a
estabelecer um equilíbrio “horizontal” entre as exigências (de consistência interna) impostas por um direito positivado e as exigências de uma multiplicidade
de sistemas autopoieticamente fechados”.
57
PR ÉMIOS | Prémio Doutor Cabral de Moncada
as regras de base – pressupostos estruturais – que permitem aos outros
sistemas uma certa auto-regulação e a desoneração da responsabilidade pelo
resultado ao direito. Pois os indivíduos apenas podem encontrar ordem
social se existir estabilidade no tratamento de controvérsias inter-disciplinares.
O momento presente é de enorme complexidade; mas o sistema
autopoiético como paradigma é infinitamente elástico, na medida em
que a justificação processual do direito que mobiliza poderá ser sempre
aplicada... desde que o direito se mantenha desprovido de sentido e
conteúdo ontológico. Com estes desenvolvimentos, o sistema funciona,
no seu papel de redutor de complexidade. O sistema é legítimo, porque
o seu processo é legítimo. Mas será que é suficiente para a sociedade
actual “funcionar”? Ou devemos aspirar a um projecto um pouco mais
humano?
IV. Uma tentativa conciliadora, e um juízo crítico do sistema no
momento actual
1. A tentativa conciliadora
Desde os anos sessenta do século XX que a visão sistémica
não é paradigma sociológico. E apesar dos desenvolvimentos destes
dois autores, o seu crédito permanece baixo nos meios académicos –
apesar do manifesto interesse nestes modelos por parte de sociólogos
alemães e japoneses. Por seu turno, o funcionalismo jurídico sistémico
também colhe críticas de variados expoentes do pensamento jurídico
internacional. Arthur Kaufmann aponta a “fungibilidade” do direito,
se este não for visto como mais que um sistema com a função de
reduzir a complexidade do mundo, e rejeita-o de forma pragmática
– “os frutos do funcionalismo não são benéficos para o direito”109.
Entre nós, Castanheira Neves critica não só os moldes teóricos do
modelo (a transferência categorial do termo autopoiesis, o tipo ideal que
a autonomia do direito configuraria na versão original tudo-ou-nada de
Luhmann...) como também, e principalmente, a sua hipotética aplicação
como prática juridicional. Aqui remete principalmente para a ausência
de validade axiológica e para a ausência do sujeito neste sistema (problema
ao qual Teubner tenta dar resposta...), configurando um direito “sem
109
58
Arthur Kaufmann, Filosofia do Direito, 405.
Uma Visão Jurídica da Evolução do “Direito Enquanto Sistema na Sociedade” ...
porquê”, gravemente insuficiente (quando não cai no “absurdo”!) para
lidar com a dimensão humana da realidade110 – que o direito apenas
conseguiria assumir através da concepção jurisprudencialista...
Pinto Bronze deixa em aberto a possibilidade – que teremos
aqui de admitir – de uma alternativa conciliadora (ou antes uma “síntese
reflexiva”) da realidade humana (inter-!)subjectiva e comunicacional
com o sistema funcional111. Falamos da proposta de Jürgen Habermas
– que postula a existência, lado a lado com o “mundo” dos “sistemas
racionais” (System), um “mundo da vida” (Lebenswelt) – horizonte de
comunicações governadas por uma racionalidade prática (por oposição
à racionalidade técnica do System) e por símbolos culturalmente transmitidos
e linguisticamente organizados. Aventuramo-nos agora na obra de um
sociólogo especialmente prolífico e de obra especialmente complexa –
justifica-se, portanto, que exploremos apenas o estritamente necessário
para a compreensão desta hipótese (possivelmente) conciliadora.
Seria o “agir comunicacional”112 o motor da constituição
(também ela) circular do mundo da vida. A sua consistência (que permite
a manutenção da vida quotidiana, de um uso de símbolos semelhantes
por gerações diferentes, pela assimilação de símbolos novos sem
corromper o acervo já constituído que constitui a cultura) conseguese na dimensão semântica pela reprodução cultural, no espaço social pela
integração e no tempo histórico pela socialização (no sentido de aquisição
de competências que permitem a manutenção intergeracional dos
padrões vigentes para a vida colectiva – conseguido principalmente
pela educação). São patentes as influências de Max Weber, Karl Marx,
110
António Castanheira Neves, «O Funcionalismo Jurídico», 281: “Tudo
está em compreender que o funcionalismo sistémico se imporia com a irrenunciabilidade e a insuperabilidade de «sem porquê»”. E ainda, 315: “Pois é desligado
[...] [o direito] de uma sua compreensão de intencional projecto humano-cultural-social em que os homens assumem a sua humanidade convivente num compromisso de sentido para a praxis social”.
111
Fernando J. Pinto Bronze, Lições de Introdução ao Direito, 213: “[...] combina
uma dimensão sistémica com uma outra prática, relevando ali a invariância de uma
estrutura e aqui a variação imediatamente manifestada pelas acções comunicativas”.
112
Jürgen Habermas, The Theory of Communicative Action, I, 286:
“The actions of the agents involved are coordinated not through egocentric
calculations of success but through acts of reaching understanding. In communicative action participants are not primarily oriented to their own successes;
they pursue individual goals under the condition that they can harmonize their
plans of action on the basis of common situation definitions”.
59
PR ÉMIOS | Prémio Doutor Cabral de Moncada
Talcott Parsons (desde logo, nas dimensões que escolhe...) e da
corrente do interaccionismo simbólico neste quadro conceptual. Note-se a
aparente estabilidade deste mundo da vida, equilibrado graças aos seus
mecanismos de reprodução simbólica. A progressiva diferenciação da era
moderna, no entanto, significa que a manutenção do Lebenswelt terá de
ser conseguida – e assim se tem verificado – cada vez mais através de
consensos dos agentes comunicacionais, conseguidos de maneira arriscada
e mobilizando a dimensão do sistema113.
É fácil encontrar refracções desta ideia no quotidiano. O
problema da sociedade multicultural vem a precipitar-se em questões
como a do racismo (problema decorrente de tradições-preconceitos com
origem no Lebenswelt...) que buscam uma resposta-consenso artificial
com base no sistema e na sua racionalidade própria. Um exemplo apto
seria o das leis de discriminação positiva e quotas que surgem em diversos
países relativamente ao acesso ao trabalho e ao ensino superior.
Perde-se a decisão individual para se dar lugar a um consenso funcional.
Os significados tradicionais separam-se do seu substracto original e
concreto, para dar lugar a generalizações, princípios universais, procedimentos
de argumentação, valores abstractos... mais englobantes, mais talhados para a
vida em sociedade, menos adaptados para as formas concretas e particulares
de viver – e vemos o espreitar do problema da colonização do Lebenswelt.
Porquê um problema? O autor é defensor do projecto
(inacabado!) da modernidade, que encarna, a seu ver, os valores do
Iluminismo – fundamentalmente, a ideia da autonomia do homem como
princípio último, a visão de um homem emancipado da tradição e da
natureza e cuja única lei é aquela que ele dá a si próprio. Um homem
que quer apenas a própria vontade (nos termos de Hegel114) e que é
livre para toda a crítica. A normatividade do homem moderno será
aquela que ele se impõe a si mesmo na sua liberdade.
Ora, tendo-se visto defraudada a expectativa iluminista do autogoverno da sociedade através das instituições político-administrativas,
113
Jürgen Habermas, «O Conteúdo Normativo da Modernidade», 320:
“Porque os mundos da vida só podem oferecer um dispêndio limitado de coordenação e de compreensão mútua, num determinado nível de complexidade, a
linguagem corrente tem de ser aliviada por aquele tipo de linguagens que Parsons
pesquisou na base do exemplo do dinheiro”.
114
Georg Friedrich Hegel, Lectures on the Philosophy of History: “The will
that wills itself is the basis of all right and of all obligation, hence of all positive
laws, moral duties, and imposed obligations”.
60
Uma Visão Jurídica da Evolução do “Direito Enquanto Sistema na Sociedade” ...
o Homem vê-se preso por novas correntes. O sistema laboral, o
sistema económico, a comunicação social, todas as polities – todos
estes se impõem ao indivíduo e não lhe permitem a sua realização.
O Lebenswelt vê-se colonizado, e a resposta tendencial tem sido no
sentido de uma sobre-reacção do sistema legal, isto é, quantidades
extraordinárias de legislação e a criação de novos e cada vez mais
especializados subsistemas115. O projecto do Estado Social, que deveria
criar condições de simultânea igualdade entre sujeitos e garantir-lhes
uma esfera de desenvolvimento autónomo e auto-realização, mostrase um reduto de burocratização e regulamentação – como forma de
impedir os extremos a que a sociedade se veria sujeita, caso fosse dada rédea livre
ao Lebenswelt. A juridificação do estado social salva-nos dos conflitos das
personalidades individuais (que surgem, em grande parte, devido à
ineficácia das comunicações próprias do Lebenswelt no tratamento de
questões complexas – que necessitam da linguagem mais complexa
e sofisticada que os sistemas providenciam) – mas estando o sistema
jurídico desprovido de um medium neutro, à semelhança do capital e
do poder, (correspondentes, já desde Parsons, aos sistemas económico
e político), apoia-se n’ “uma praxis de singularização dos factos, da
normalização e do controlo, cujo poder reificante e subjectivante
Foucault registou até às ramificações mais capilares da comunicação
quotidiana”116.
Demonstrando a actualidade que a regulação política do
sistema económico não é suficiente para impedir os efeitos malignos
da externalização dos seus custos para o Lebenswelt, e tendo o Estado
Social (o hipotético regulador central...) falhado na sua missão
reguladora, Habermas conclui que não será a criação de novos sistemas nem
uma maior especificação dos existentes a resposta para o problema da crise actual
do mundo da vida... Mas sim a “construção de limiares de inibição na
permuta entre sistema e mundo da vida” e a “instalação de sensores na
permuta entre mundo da vida e sistema”117. O objectivo será construir
os sistemas inseridos no Lebenswelt, funcionando este como uma buffer
zone que evite colisões. Os impulsos (input cognitivo...) terão de partir do
Jürgen Habermas, «O Conteúdo Normativo da Modernidade», 331:
“Entretanto, uma rede cada vez mais densa de normas jurídicas, de burocracias
estatais e para-estatais, cobrem o quotidiano dos clientes potenciais e factuais”.
116
Jürgen Habermas, «O Conteúdo Normativo da Modernidade», 331.
117
Jürgen Habermas, «O Conteúdo Normativo da Modernidade», 332-333.
115
61
PR ÉMIOS | Prémio Doutor Cabral de Moncada
Lebenswelt para a estrutura auto-reguladora dos sistemas. A solidariedade
terá de se impor como meio integrativo-regulador, face ao dinheiro e ao
poder. Uma sociedade composta por sistemas que, colocados sob controlo
pelo mundo da vida, entram ocasionalmente em conflitos fronteiriços uns
com os outros – conflitos mitigados pela influência e integração do mundo da vida.
A respeito já do conflito entre sistemas, porém, Habermas
dificilmente subscreveria a ideia de Teubner relativa à necessidade de
reenvios (muito embora esta última estratégia se revele frutífera como
forma de impedir a sobrecarga do Lebenswelt)... na medida em que se
revela proponente de uma universalidade inerente ao direito, cedendolhe uma posição fulcral no projecto da modernidade e na tarefa de
conciliação dos discursos. Universalidade que face à facticidade do
pluralismo é apenas possível após um abdicar da validade material – e
manifestando-se assim um direito que, muito embora construção da
cultura ocidental, demonstra um carácter manifestamente (digamo-lo
com Aroso Linhares!) “acultural118, como única forma de acolher sob
a sua “asa” as plurais “formas de vida boa” compossíveis na societas
actual. Isto implica reconhecer uma efectiva não-existência de fronteiras
constituídas por direitos naturais no “reino” da vida social; implica ainda
que escolher uma forma jurídica de a regular não consiste em mais
que uma escolha da sociedade em particular no seu conjunto plural.
A inexistência de absolutos – porque tudo são discursos – implica a
inexistência de uma validade (materialmente!) universal (só possível
num hipotético retorno ao jusnaturalismo...). E no entanto dizemos
que há universalidade... porque admitimos a possibilidade de o procedimento
validar o discurso.
Como? É através da regra de argumentação, do seu procedimento
específico, que encontramos as rules e os warrants legítimos para reger a
pluralidade das formas de vida. É num discurso particular, guiado pelos
critérios da “situação ideal de diálogo” (a igualdade de oportunidades e a
ausência de constrangimentos) que a universalidade adquire a sua validade...
José Manuel Aroso Linhares, «O Homo Humanus do Direito e o
Projecto Inacabado da Modernidade»:
118
“No sentido desde logo de reconhecer que tais aquisições, emergindo embora
primeiro num determinado contexto civilizacional […] - por razões que podem
de resto ser tematizadas […] devem ser levadas a sério como progressos ou
desenvolvimentos racionais de uma etapa ou estádio-limite […] e então e assim
(uma vez emancipadas da «tradição» que as produziu) responsabilizadas por
uma estrutura-framework global”.
62
Uma Visão Jurídica da Evolução do “Direito Enquanto Sistema na Sociedade” ...
de carácter eminentemente procedimental119 – o único possível, na
sociedade descentrada actual. Tendo assim em mente de que se trata
de uma solução possível para um problema... averiguamos que se trata
do problema da controvérsia prática, com todas as suas idiossincrasias.
Teremos apenas de as ver iluminadas pelo farol da teoria da acção
comunicativa: como Konstrukte culturais de significado precipitado
nas comunicações presentes. Não veremos sujeitos-pessoas, mas
sujeitos-Konstrukte; Konstruct será também a societas histórico-concreta
em que os inscrevemos, como Konstruct será ainda a ordem-sistema
onde se procurará a solução. Os sujeitos, em particular, ver-se-ão
despidos da sua unicidade natural; não serão aquilo que eles próprios,
na sua história particular, se fizeram, mas sim actores fungíveis e relativos,
desempenhando o papel de partes da controvérsia, papel esse ao qual
estará atribuída determinada posição e determinadas titularidades, às quais
corresponderão – e pela primeira vez neste trabalho os vemos a tomar
parte activa no sistema – determinados direitos subjectivos, eles também
aquisições culturais, que mobilizarão os significados (historicamente
precipitados) a que o terceiro imparcial terá de recorrer como forma de
comparar as posições (no contexto de bilateralidade atributiva) das partes
conforme elas se inseriram no ordenamento concreto-contextual. Ora os direitos
subjectivos não poderão ser aqui mais que símbolos mobilizadores de
uma série de significados assimilados pela communitas, na sua expressão actualcontextual. E daí adquirem eles a sua universalidade... mas nunca uma
material validade. Esta permanece vedada ao sistema, no contexto actual
de pluralismo
2. O juízo crítico
Lembremos os mecanismos propostos por Habermas para
enfrentar a crise actual do mundo da vida. Eram eles as “barreiras de
inibição” e os “sensores”. Onde encontraremos refracções destes
mecanismos numa tentativa actual de mitigar as falhas de comunicação entre
o sistema-direito e um mundo-de-vida? Em primeiro lugar, a cada vez maior
preeminência dos mecanismos de resolução alternativa de litígios, como a
119
José Manuel Aroso Linhares, «O Homo Humanus do Direito e o Projecto Inacabado da Modernidade», 529: “Um discurso (o discurso) que, orientado
pelas condições contrafácticas da «situação ideal de diálogo» (ideale Sprechsituation), nos confronta com os desafios da «igualdade de oportunidades» e da «ausência de
constrangimentos»...”.
63
PR ÉMIOS | Prémio Doutor Cabral de Moncada
negociação, a mediação, a arbitragem e a conciliação, permitindo a resolução
de controvérsias jurídicas sem a necessidade de submissão total dos
factos da vida ao sistema, escusando uma tradução completa para a
linguagem jurídica e sem a perda da racionalidade própria do mundo
da controvérsia. A colisão entre duas esferas de liberdade pode ser
resolvida sem a transição para o nível (ou num nível mais mitigado...)
do sistema, libertando assim o indivíduo da tensão de se ver a ele
sujeito. Trata-se este mecanismo, indubitavelmente, de um de barreira;
impede-se que qualquer controvérsia tenha como destino o tribunal – e
assim se reduz sobremaneira o impacto do sistema sobre o Lebenswelt,
cada vez maior por conta dos excessos legislativos actuais. Note-se,
entre nós, a crescente importância e o expansivo âmbito deste tipo de
instituição: começando pela Lei n.° 31/86, de 29 de Agosto, regulando
o recurso à arbitragem; mais tarde o grande passo dado pela Lei n.º 78, de
13 de julho de 2001, instituindo a figura dos Julgados de Paz em Portugal,
de tramitação processual simplificada, resolução célere e uma procura
de papel activo das partes na resolução real do litígio. Mais recentemente,
a criação de sistemas de mediação pública, nomeadamente a nível de direito
do trabalho (Protocolo entre o Ministério da Justiça e a Confederação
da Indústria Portuguesa a 5 de Maio de 2006), de direito da família
(Despacho n.º 18 778/2007, de 13 de Julho) e de direito penal (Lei
n.º 21/2007, de 12 de Junho), é indicação clara da preocupação actual de
encontrar métodos extrajurídicos para resolver questões tradicionalmente
encaradas como controvérsias jurídicas – desonerando tanto o sistema
como os indivíduos120.
Necessário será ainda fazer menção aos mecanismos de
arbitragem internacional... imperativos na medida em que se torna
impossível subjugar os estados a uma autoridade mais elevada – a sua
pretensão de soberania leva-os a rejeitar a admitida sujeição a um “mero”
sistema (de índole necessariamente nacional...) que a aceitação de um
processo judicial implicaria (muito embora, por via da internacionalização
120
Já Luhmann refere este fenómeno, tão actual:
“Un bon exemple en est offert par la discussion, qui a pris naissance aux États-Unis, concernant la «déjuridicization». Il s’agit là, pour partie, de remplacer des
formes spécifiques d’action par des formes de nature différente, par exemple la
solution judiciaire de conflits par une conciliation extorquée à l’amiable, et, pour
partie, d’avoir le dessein, lié à l’opération précédente, de soustraire au droit, autant
que possible, des domaines entiers de la vie.” – «L’Unité du Système Juridique».
64
Uma Visão Jurídica da Evolução do “Direito Enquanto Sistema na Sociedade” ...
dos sistemas político e económico, os estados se vejam obrigados a
cumprir com o “jogo” destes dois discursos...) – e, como tal, o recurso a
métodos extrajurídicos para resolver os conflitos de Direito Internacional
Público. Na impossibilidade de recurso ao sistema, vemos o aflorar
destes mesmos métodos que – hoje – tentamos aplicar ao indivíduo.
A impossibilidade de acesso ao sistema conflui com a fuga (lato sensu!) ao
domínio do sistema.
A referência à colisão das múltiplas ordens nacionais não pode
deixar de nos reenviar à questão (paralela, ainda que pertencente a
diferente dimensão...) do pluralismo dos discursos e à proposta de Teubner.
Este deixa-nos um apontamento que não tomámos anteriormente
mas que se torna neste momento do maior interesse: a referência
ao recurso a processos sociais autónomos de inscrição normativa. Consistem
estes na procura da resolução de conflitos dentro do seu foro social
próprio, através da assimilação da lógica jurídica. A possibilidade de resolver
conflitos recorrendo à racionalidade própria do direito... mas sem a
necessidade de invocar o sistema. Isto através do recurso a instituições
de consultoria ou de conciliação... ou a métodos verdadeiramente autodeterminativos. Pense-se na institucionalização das comissões de ética, nas
universidades, nos hospitais, nas grandes empresas, onde se alcança
uma verdadeira justiça local, através de regulamentos e procedimentos
próprios, sanções para lá do alcance ao mesmo tempo que sempre aquém
do direito. Uma verdadeira endocitose da racionalidade jurídica num outro
discurso, dotando-o de maior autonomia e dificultando o aparecimento
de novos conflitos interdiscursivos... e, do ponto de vista jurídico, o
auxílio na construção destas pequenas contra-instituições, que na realidade
o desoneram de responsabilidades em domínios altamente específicos.
E a justiça torna-se conceito relacional, permitindo uma pluralidade de
interpretações e de coexistências121.
Conceito relacional esse que, como no-lo diz o mesmo Teubner122,
apenas ganhará com um foco cada vez maior no caso concreto... O direito,
na sua universalidade, ver-se-á sempre impotente enquanto verdadeiro
interlocutor se insistir na perspectiva macro de normalização social a que
uma perspectiva que o identifique com o projecto moderno o amarrará
121
Günther Teubner, «Altera Pars Audiatur», 121: “Les «commissions étiques»
au sens plus large sont aujourd’hui les expériences les plus interéssantes en matière de
politique de société”.
122
Ver supra.
65
PR ÉMIOS | Prémio Doutor Cabral de Moncada
sempre. Ou, por outras palavras: o direito não será nunca capaz de
conciliar as pessoas com os sistemas, bem como os sistemas entre si, se
não largar uma certa tentativa macrorreguladora – e demonstra-se sempre
perigoso regular um sistema através de outro sistema. A resposta estará
na capacidade particular do direito para dar respostas concretas a problemas
(controvérsias) concretos. Mais: de não poder deixar de dar respostas concretas
aos problemas concretos que lhe são apresentados (e, eterno retorno! O art. 4.º
do Code Civil!). É aqui que reside a sua força particular como discurso
conciliador; o potencial iluminista que Habermas atribui ao direito123
apenas se pode concretizar abdicando da ideia de porta-estandarte
iluminista e “percebendo que a prioridade do problema-controvérsia
(e deste como núcleo gerador do próprio projecto do direito) pode ser
recuperada sem pôr em causa a inteligibilidade racional das práticas e
discursos envolvidos”124.
Mais que a apologia da praxis, a necessidade de ter em conta os sujeitos
nos seus contextos concretos, de ver no caso uma controvérsia irrepetível. Isto sim
– a apreensão das realidades da vida quotidiana enquanto expressões
únicas de pessoas inseridas num determinado contexto comunitário-cultural,
com vista a resolver uma questão de direito – configura uma faceta do
tipo sensor da parte do sistema; uma forma de captar a realidade como ela é,
sem abdicar da racionalidade própria do mundo e dos indivíduos que o constituem...
e de a submeter, num diálogo de aproximação, à visão do sistema.
Um sistema, porém, sensível à real posição das partes, encarnado no
papel do terceiro imparcial... O problema do pluralismo apenas poderá
ser resolvido ao nível das fronteiras do discurso; ora, ao nível das
fronteiras, será necessária uma dinâmica de progressiva adequação das
comunicações, apenas alcançável se aquele sistema macroscopicamente
hipercircular que vimos anteriormente for capaz de, ao nível microscópico
em que a controvérsia lhe chega, for capaz de construir uma espiral
de constante aproximação125. Não será numa hipotética universalidade
que o direito se constitui como o discurso de conciliação neste mundo
Jürgen Habermas, «O Conteúdo Normativo da Modernidade», 334.
José Manuel Aroso Linhares, «O Homo Humanus do Direito e o
Projecto Inacabado da Modernidade».
125
José Manuel Aroso Linhares, «Jurisprudencialismo: Uma Resposta
Possível em Tempo(s) de Pluralidade e Diferença?», 16: “[…] e então e assim a
acentuar uma dinâmica de transformação e de irrepetibilidade, que é também de
crescimento ou de adequação progressiva […]”.
123
124
66
Uma Visão Jurídica da Evolução do “Direito Enquanto Sistema na Sociedade” ...
plural; mas na sua capacidade de olhar os sujeitos na perspectiva irrepetível que
corresponde à sua situação histórico-concreta – quaisquer que sejam os sujeitos
(dentro de uma determinada ordem jurídica) e de providenciar uma resposta,
plasmando a normatividade que lhe é própria na decisão, mobilizando uma
intenção judicativa. O discurso jurídico e a realidade da vida convergem no
caso. É ele o prius. É dos casos (das colisões de visão do mundo de cada
um... e de cada discurso, a um nível superior) que surge o problema
do pluralismo. E no caso terá ele de ser resolvido – em cada um deles.
Perguntar-se-á o leitor que sistema poderá aguentar tamanho
renversement das suas premissas iniciais. Está claro que nenhum; e é por isso
que aquilo em que desembocamos é numa mudança de paradigma, e uma
que consigo trará um novo horizonte de validade... Mas dessa não nos cabe
aqui ocuparmos, de bem documentada que está em alheios escritos. Mas
que dizer daquela clausura, que daquela autonomia, que daquela autopoiesis?
Serão anacronismos face à sociedade complexa e dinâmica que temos
hoje perante os olhos? Meras construções académicas da sociologia, sem
refracção no entendimento actual do direito?
Qualquer sistema terá sempre de ser visto como uma construção
abstracta do sujeito. A lista de axiomas que vimos anteriormente126 é
passível de ser facilmente rebatida como subjectiva – “interdependência
das partes” mais não é que um reenvio para relações causa-efeito, como
apreendidas pelo sujeito, assim como equilíbrio e fronteiras mais não são
que uma percepção e um conceito fabricado pelos sentidos. Olhar algo
como um sistema não é mais – o próprio acto de olhar o sistema como
sistema, antes ainda de o sistema assumir essa função – que reduzir a
complexidade do real, como forma de melhor o apreender.
A visão do direito como sistema tem, assim, a virtude de o tornar
apreensível enquanto totalidade autónoma. Apesar das vicissitudes
apontáveis a cada concepção em particular, a visão de sistema que a
sociologia proporciona permite um outro olhar sobre o jurídico, particularmente
enriquecedor na medida em que o coloca em relação com as outras áreas da vida.
Não pode o jurista, pela própria necessidade de ver os dois lados que o seu
papel mobiliza, deixar de se interessar por esta perspectiva alter-nativa
das ciências sociais. Não só por uma vontade de autoconhecimento... como
de autoposicionamento interdiscursivo. E porque, a aceitar uma perspectiva
que procure conciliar o jurídico com um mundo de sujeitos-pessoas e discursos
126
Ver supra, Ritzer.
67
PR ÉMIOS | Prémio Doutor Cabral de Moncada
plurais, teremos de aceitar também que a formação interdisciplinar do jurista
é fundamental para uma efectiva aproximação entre os elementos da vida e do
jurídico. E mesmo deixando essa perspectiva por uma outra, que procure
conciliar um pólo de autonomia-suum com um de responsabilidade
perante a commune, colocando a ênfase na controvérsia concreta, o estudo,
por parte daqueles que procuram aproximar a vida e a justiça, das várias
visões de vida e de justiça mostrar-se-á em cada caso fundamental para uma
efectiva realização da validade do sistema (este já outro!).
Se o sistema (aquele, autopoiético) existe? A perspectiva
existe; e ele não poderá existir como mais que uma perspectiva. Se
traduz uma realidade? É fácil concordar com a autonomia e com a
auto-referência constitutiva do jurídico; e as especificações, argumentos e
desenvolvimentos que a teoria dos sistemas trazem para o campo são
do maior interesse na explicação da subsistência do direito como discurso
autónomo e coerente. Mas o direito – digamo-lo com Castanheira
Neves – “(...) não existe só para subsistir”127. E mesmo essa subsistência
estaria muito dificilmente garantida se o direito se visse desprovido
da dimensão que esta teoria lhe nega constantemente – a dimensão
de praxis humana dotada de sentido. O direito subsistirá enquanto as
sociedades o procurarem como método justo de encontrarem justeza
na solução das suas controvérsias. E por muito belo que seja o exoesqueleto formal de que o funcionalismo sistémico o dota por via das
teorias sociais, é através do sentido normativo, da sua orientação para a
realização jurídica de uma validade que lhe é própria que o direito adquire
a sua autonomia. Haverá algum Homo mais auto-referente que o Homo...
Humanus?
127
68
Cfr. Apontamentos complementares de Teoria do Direito (1988/1989), 38.
Uma Visão Jurídica da Evolução do “Direito Enquanto Sistema na Sociedade” ...
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