Introdução - Área de Clientes

Transcrição

Introdução - Área de Clientes
Introdução
O estudo da História da Expansão Europeia abrange um vasto caudal de
diferentes questões e problemas que metodologicamente poderemos
agrupar em dois eixos temáticos. Enquanto um tem por fim analisar a
história da empresa ultramarina, o outro vocaliza o seu estudo para as
ressonânias culturais deste fénomeno. O interesse em delinear a História
dos Descobrimentos supõe acompanhar as grandes viagens que, zarpando
da Europa, cruzaram mares ignotos até avistarem novas regiões. Um dos
nomes mais evidenciados e, por isso, profusamente associado à Época dos
Descobrimentos é o do navegador Cristovão Colombo, principalmente,
quando se comemoram os 500 anos da descoberta da América. O grande
feito de Colombo sobreeleva-se na memória colectiva a qualquer outro
acontecimento histórico mais antigo ou coetâneo: antes de o mareante
genovês aflorar a América já muitos outros nautas se tinham feito ao mar,
também com o propósito de descobrir a misteriosa e faustosa Índia. A
Vasco da Gama caberia, em 1498, realizar este velho sonho europeu.
Mas o estudo da História da Expansão não se limita única e simplesmente
a uma reconstrução das sucessivas e inauditas descobertas marítimas. A
abordagem histórica alastra-se, pelo contrário, a todos os fenómenos
culturais resultantes, directa ou indirectamente, das viagens, mormente, o
que se convencionou designar por "Auto-descoberta da Europa".1 Isto é: o
impacto do descobrimento de um novo e ignorado mundo no fluir dos
meios intelectuais europeus. Com efeito, o engrandecimento geográfico do
orbe terráqueo e a entrada de novos povos e civilizações na consciência
europeia desencaderia um processo cultural não menos importante que as
consequências provocadas pela chegada dos navios europeus além-mar.
Neste contexto, desenvolveu-se científica e didacticamente nos últimos
anos na Alemanha uma área de investigação, cujo escopo é aprofundar
essencialmente quais as ressonâncias advindas das viagens marítimas na
constituição (e consolidação) do que se viria a chamar a realidade
europeia perante a dos Outros, a não-europeia.2 No que concerne ao
1. Sobre o conceito "Selbstentdeckung Europas" veja-se Karl Heinz Kohl (Ed.), Mythen der
Neuen Welt, Zur Entdeckungsgeschichte Lateinamerikas, Berlim, 1982, sobretudo, pp. 13-21.
2. Veja-se Hans-Joachim König, Wolfgang Reinhard e Reinhard Wendt (Ed.), Der europäische Beobachter außereuropäischer Kulturen, Zur Problematik der Wirklichkeitswahrnehmung, Berlim, 1989 e o aturado estudo de Donald F. Lach, Asia in the making of Europe,
2 vols, 5 books, Chicago, 1970-1977. Tendo em atenção o exemplo do continente asiático,
Lach, com um enorme corpus documental, demonstra como o crescente contacto com o
10
INTRODUÇÃO
impacto da empresa descobridora e, naturalmente, da "Cultura dos
Descobrimentos"3 poderemos ainda atestar que e, principalmente no que
tange os séculos XVI e XVII, existe um vasto leque de questões em
aberto, nomeadamente no que se relaciona à recepção dos conhecimentos
do mundo ultramarino em países da Europa Central não directamente
envolvidos na actividade marítima. Não obstante as notáveis investigações
de Eberhard Schmitt4 e de Wolfgang Reinhard,5 a quem cabe o mérito de
terem introduzido, na Alemanha, esta área historiográfica, a grande
maioria de trabalhos académicos tem ainda por mira os descobrimentos e a
sua repercussão no Ultramar. Os estudos inovadores de Urs Bitterli6
abririam então algumas portas à temática relacionada com a ressonância
de outros mundos na Europa, procurando, no entanto, em primeira linha
debuxar o modelo desenvolvido ao longo do que recentemente se tem
designado por encontros culturais. Um especial interesse pelo facto de as
viagens marítimas serem, desde muito cedo, assunto de debate dos
letrados é o tema que Dieter Wuttke desenvolveu recentemente para o
círculo de humanistas alemães,7 que apaixonadamente seguiam o divulgar
das novas geográficas, observação esta que se poderá estender também a
outros grupos de intelectuais das diversas áreas de saber dos séculos XVI
e XVII.
Neste amplo e vasto debate sobre a alteração da imagem conceptual do
orbe terráqueo, os novos conhecimentos referentes ao continente africano
não foram até agora, não obstante ocupem um lugar relevante, tema de
desconhecido traz, em vários campos temáticos, profundas alterações na arte, literatura,
filosofia, em suma, na consciência cultural europeia.
3. Sobre este conceito de "Cultura dos Descobrimentos", veja-se o notável estudo de José
Sebastião da Silva Dias, Os Descobrimentos e a Problemática Cultural do Século XVI,
Coimbra, 1973 e as pesquisas inovadoras de Luís Filipe Barreto, Descobrimentos e Renascimento, Formas de ser e pensar nos séculos XV e XVI, Lisboa, 1983; Os Descobrimentos e a
Ordem do Saber, Uma análise sociocultural, Lisboa, 1987 e Portugal - Pioneiro do Diálogo
Norte/Sul, Para um modelo da Cultura dos Descobrimentos Portugueses, Lisboa, 1988.
4. Eberhard Schmitt (Ed.), Dokumente zur Geschichte der europäischen Expansion,
Munique, 1984-1989.
5. Wolfgang Reinhard, Geschichte der europäischen Expansion, Estugarda/ Berlim/ Colónia/
Mainz, 1983-1985.
6. Veja-se Urs Bitterli, Die Entdeckung des Schwarzen Afrikaners, Versuch einer
Geistesgeschichte der europäisch-afrikanischen Beziehungen an der Guineaküste im 17. und
18. Jahrhundert, 2ª ed., Zurique, Freiburg, 1980; Die "Wilden" und die "Zivilisierten",
Grundzüge einer Geistes- und Kulturgeschichte der europäisch-überseeischen Begegnung,
Munique, 1976 e Alte Welt - neue Welt, Formen des europäisch-überseeischen
Kulturkontakts vom 15. bis zum 18. Jahrhundert, Munique, 1986.
7. Dieter Wuttke, Humanismus in den deutschsprachigen Ländern und Entdeckungsgeschichte 1493-1534, Bamberg, 1989.
INTRODUÇÃO
11
uma análise detalhada. Convém salientar alguns trabalhos percussores no
que tange o processo de recepção histórica, como sejam - para além dos já
mencionados trabalhos de Urs Bitterli - as pesquisas da escola de Viena
sob a orientação de Günther Hamann,8 nomeadamente, as teses de Sitta
Klement-Kleinschmidt9 e de Alfred Kohler.10 Uma apresentação
sistemática da imagem de África na literatura europeia do século XVI foi
o tema apresentado por William Graham Lister Randles; tendo o sudoeste
africano como objecto de estudo, Randles investiga os inícios do processo
de contacto com estas novas informações.11
O facto de as fontes concernantes à imagem de África,12 entre elas as
relações de viagens, serem de assaz significado histórico, mormente, para
os estudos etnográficos, levou autores, como Beatrix Heintze e Adam
Jones, a publicarem cuidadas edições, críticas e comentadas,13 que,
juntamente com as reflexões alusivas ao género e teor das fontes,
constituem um valioso e inestimável contributo para a história de África.14
A análise que nos propusemos fazer visa primamente esboçar o processo
de recepção e proliferação das notícias sobre África nos escritos alemães
dos séculos XVI e XVII, tendo em vista perscrutar, tanto quanto possível,
como é que este evento influenciou, e de que forma, a discussão
intelectual coeva. Não temos em mira abordar o processo da empresa
marítima em si, nem mesmo como decorreu o denominado encontro de
culturas, mas antes definir o fenómeno cultural desencadeado pela
chegada das novas geográficas. Isto é: de que maneira, e em que etapas é
que as notícias do novo mundo vieram a público e ainda como se foram
afirmando nos discursos alemães coetâneos. O objectivo fulcral deste
8. Günther Hamann, Der Eintritt der südlichen Hemisphäre in die europäische Geschichte,
Viena, 1968.
9. Sitta Klement-Kleinschmidt, Die ostafrikanische Küste zu Beginn des 16. Jahrhunderts,
entworfen nach dem Tagebuchbericht Hans Mayrs und ergänzt durch zeitgenössische
Quellen, Diss. Viena, 1972.
10. Alfred Kohler, Die Entwicklung des Afrikabildes im Spiegel der einschlägigen historisch
geographischen Quellen süddeutscher Herkunft, Diss. Viena, 1966.
11. William Graham Lister Randles, L'image du Sud-Est Africain dans la Littérature
Européenne au XVIe Siécle, Lisboa, 1959.
12. Veja-se Walter Hirschberg, Monumenta Ethnographica, Frühe völkerkundliche
Bilddokumente: Schwarzafrika (1508-1727), Graz, 1962.
13. Adam Jones, German Sources for West African History 1599-1669, Wiesbaden, 1983 e
do mesmo Brandenburg Sources for West African History 1680-1700, Estutgarda, 1985.
14. Adam Jones, Zur Quellenproblematik der Geschichte Westafrikas 1450-1900, Estugarda,
1990; veja-se também Beatrix Heintze e Adam Jones (Ed.), European Sources for SubSaharan Africa before 1900: Use and Abuse, in: Paideuma, Mitteilungen zur Kulturkunde 33,
Wiesbaden, 1987.
12
INTRODUÇÃO
trabalho visa, por isso, ir de encontro à lógica e à fundamentação, aos
comportamentos justificativos e às estruturas argumentativas apresentados
e desenvolvidos nos escritos dos séculos XVI e XVII. Empenhando-se
veemente em darem a conhecer aos seus leitores as realidades
extraordinárias recém-descobertas, estes textos expressam o vivo desejo
de integrar as novas geográficas na ordem do mundo. Aqui surge um vasto
rol de questões, nomeadamente no que respeita ao conteúdo e significado
das informações esquissadas pelos viajantes, às vias de difusão, aos
mentores da divulgação, aos círculos activantes, aos interesses
motivadores da recepção, bem como às profundas e crassas mudanças
forjadas na visão do mundo que, indubitavelmente, se iriam instaurar nas
correntes de pensamento contemporâneas.
Designar o continente africano de novo mundo e apresentar a recepção
dos conhecimentos referentes a esta parte do globo como exemplo de um
processo cultural vivido na Europa dos séculos XVI e XVII, constitui uma
tese que urge provar. Com efeito, na generalidade, o conceito de Novo
Mundo aplica-se exclusivamente à América. Mas, se olharmos para as
fontes do século XVI e ainda do século XVII, poderemos aferir que a
individualização e a compreensão deste conceito, que originariamente
seria entendido mais amplamente, é o produto de um percurso conceptual.
Na verdade foram os mesmos interesses e as mesmas iniciativas que
levaram as caravelas a partir da Europa e a navegar em diversas direcções
ao encontro de outros continentes. O novo mundo não foi somente
América. Daí que fosse mais correcto falar de Novos Mundos,15 dado que
também a Ásia e - cronologicamente - e, em especial, a África faziam
parte de uma mesma realidade histórica. O hemisfério sul do continente
africano seria para os letrados europeus tão desconhecido como o
continente que recebeu de um geógrafo alemão o nome de Américo
Vespúcio. Aliás, seria este mesmo nauta que, ao testemunhar um
desconhecimento total em relação a estas terras, o denominaria de Novo
Mundo.
África, pelo contrário e, no que respeita às regiões do norte - não podemos
esquecer a história bíblica - seria já bem familiar. Mas o que existia para
além destas regiões? Muito se viria a descobrir, mormente, que a África se
estenderia longamente para sul, que, indo contra o esperado, era habitada.
Estes seriam alguns dos dados que desencaderiam o espanto dos viajantes,
15. Sobre este conceito, veja-se Ulrich Knefelkamp e Hans-Joachim König, Die Neuen
Welten in alten Büchern, Entdeckung und Eroberung in frühen deutschen Schrift- und Bildzeugnissen, Bamberg, 1988.
INTRODUÇÃO
13
bem como dos que recebiam os seus relatos. Nasceria, assim, a ideia de
um mundo novo. Sim, como teremos ensejo de ver, os homens dos séculos
XVI e XVII nem sabiam onde localizar tais insólitas informações. Assim
e, uma vez que as viagens marítimas tinham um objectivo comum, os
resultados e as conquistas seriam, inicialmente, apreendidos e
interpretados no seu conjunto. Se se tratavam de notícias vindas da África,
da América ou do Oriente pouco interessava. Na sua globalidade seriam
uma estonteante novidade que merecia a maior atenção.
Além disso, a América não foi a única descoberta que deu azo a que os
europeus se sentissem senhores do mundo e descobrissem, com este
evento, uma nova consciência. Não é nossa intenção diminuir, de algum
modo, o significado da descoberta da América. Apenas consideramos que
quando se escreve - como J.H.Elliot - que a Europa se teria redescoberto
com a descoberta da América,16 se generaliza de alguma maneira. Não
querendo deixar de salientar quão notáveis e fundamentais nos parecem as
investigações de Elliott sobre o impacto da realidade ultramarina na
Europa, gostaríamos de realçar que as suas conclusões, como pensamos
poder comprovar, necessitam de uma contextualização.
Com efeito, não é apenas a América o propulsor deste processo de
avaliação e assimilação da consciência europeia. Daí que nos pareça ser o
momento indicado para salientar alguns aspectos geralmente focados nas
investigações sobre a descoberta da América e que merecem a nossa
atenção. Vejamos um exemplo. O historiador Anthony Pagden escreve:
"The impact of other discoveries had been to the areas they were
discoveries in. Columbus's discovery, however, like the discovery of
printing and Galileo's proof of the heliocentric theory, affected the whole
of European culture."17
A sua afirmação sobre as descobertas de Cristovão Colombo é,
naturalmente, um dado aceite; mas a ausência de referências a outras
iniciativas ultramarinas surpreende de certa forma. Aliás, a distinsão feita
em relação a este nauta não parece ter sido tão definitiva, pois, mais à
frente, no seu escrito - também nas citações - serão referenciados e
descritos acontecimentos considerados igualmente históricos, mormente, a
circum-navegação do Cabo da Boa Esperança e a viagem de Vasco da
Gama. É, por conseguinte, de admirar que Anthony Padgen associe o
início do impacto dos descobrimentos na Europa apenas à descoberta da
América:
16. J.H. Elliott, The Old World and the New 1492-1650, Cambridge, 1970, p. 72.
17. Anthony Pagden, 'The impact of the New World on the Old': The history of an idea, in:
Renaissance and Modern Studies, vol. XXX, 1986, pp. 1-11, sobretudo, p. 7.
14
INTRODUÇÃO
"A new world of European moral and social understanding had begun
with the discovery of the new world of America."18
A posição exposta por J.E. Elliot e Anthony Padgen em relação à América
deverá ser significativa e terminantemente aprofundada e até diferenciada
através de uma análise da recepção das viagens de descobrimentos na
globalidade. Os passos dados para inventar o novo mundo, América,
como descreve Edmundo O'Gorman,19 deixam-se comprovar igualmente
para outros continentes e outras regiões. E mais, não se trata apenas de um
aumento de exemplos e factos, mas antes de um inconstestável reforço
teórico da tese de Elliot, O'Gorman e também de Fraucke Gewecke:20 que
o processo dos descobrimentos, sem querer esquecer factos particulares,
não se poderá compreender se não atendermos às coordenadas europeias
determinantes de todo este fenómeno; coordenadas estas que naturalmente
se iriam adaptando e sofrendo alterações estruturais significativas ao
longo dos anos de presença além-mar. Que a adaptação - e se quisermos a
extensão - do conceito Novo Mundo a outros continentes poderá ser bem
frutuoso e de toda a utilidade comprovam-no os notáveis trabalhos de
Geoffroy Atkinson Les nouveaux horizonts de la Renaissance française21
e de Michel Mollat Les explorateurs du XIIIe au XVIe siècle. Premiers
regards sur des mondes nouveaux.22
O processo de contacto com uma realidade estranha e desconhecida seria
muito mais abrangente do que uma delimitação ao continente americano
poderia dar resposta, uma vez que, ao pôr em causa as concepções
preponderantes, iria obrigar os europeus a uma nova reorientação e
conceptualização da visão do mundo até então vigente. Poder-se-á dizer
que a descoberta de novos mundos, com as suas "novas novedades" faria
estremecer os fundamentos prevalecentes, criando a necessidade de
renovar as estruturas fundadoras do edifício conceptual no intuito de
debuxar e compreender o mundo na sua nova cosmovisão planetária. Na
verdade, com as viagens marítimas viriam à luz do dia pela primeira vez
muitos factos completamente estranhos e desconhecidos que não se
18. Idem, p. 10.
19. Edmundo O'Gorman, The Invention of America, An Inquiry into the Historical Nature of
the New World and the Meaning of its History, Westport, Connecticut, 1961.
20. Fraucke Gewecke, Wie die neue Welt in die alte kam, Estutgarda, 1986 também sobre o
impacto da descoberta da América na Europa. Veja-se ainda F. Chiapelli (ed.), First Images
of America: The Impact of the New World on the Old, Berkeley, Los Angeles, Londres, 1976.
21. Geoffroy Atkinson, Les nouveaux horizons de la Renaissance française, Genève, 1969
(1ª ed. 1935).
22. Michel Mollat, Les explorateurs du XIIIe au XVIe siècle. Premiers regards sur des
mondes nouveaux, Paris, 1984.
INTRODUÇÃO
15
tinham previsto. A estranha e estonteante novidade da existência de países
e povos além-mar surgia assim como um desafio cultural, a que os
europeus tinham de responder. Principalmente a multiplicidade e a
diversidade desta outra realidade humana exigia, dos homens dos séculos
XVI e XVII, uma nova e adequada conceptualização na geografia, na
política, na ciência histórica e, também, na antropologia. De repente,
tomava-se consciência de uma vasta multidão de povos em diferentes
estádios de desenvolvimento, deixando para trás a velha ideia de uma só
humanidade trilhando um único e similar destino. Assim mais do que
nunca urgia indagar sobre a realidade humana, sobre as suas origens e as
do mundo.
No meio de toda esta convulsão inquiridora, as realidades africanas
despertavam, como parte da novidade, assaz curiosidade e interesse. Na
reconstrução de um novo edifício geográfico, histórico e antropológico
não faltariam as informações sobre África; como peça da múltipla
variedade, também elas pertenciam à novidade que urgia conhecer.
Acompanhar o processo cultural desencadeado pelas viagens dos
descobrimentos na Europa é o escopo do presente trabalho. A partir de
uma grande variedade de escritos, fizemos uso de alguns que nem sempre
foram reconhecidos pelos historiadores como verdadeiras e autênticas
fontes. Estamos a referir-nos às relações de viagens que, dado o seu
frequente teor ficcional ou literário, só ultimamente se tornaram um
instrumento de trabalho válido para a ciência histórica. Mas, com estudos
como os de Michael Harbsmeier,23 as relações de viagens passariam a ser
consideradas como um espelho perceptivo da imagem dos seus autores e,
por isso, um inestimável documento sobre as esferas de pensar e ser
europeias. Estas também algumas das conclusões de Peter J. Brenner que
tem vindo a chamar a atenção para o valor e significado destas fontes
documentais.24
No que respeita às cosmografias e aos compêndios geográficos dos
séculos XVI e XVII, assistimos a um caso similar. Na verdade, até há
pouco estas obras seriam, por assim dizer, silenciadas dada a sua falta de
23. Michael Harbsmeier, Reisebeschreibungen als mentalitätsgeschichtliche Quellen,
Überlegungen zu einer historisch-anthropologischen Untersuchung frühneuzeitlicher
deutscher Reisebeschreibungen, in: Maçzak, Antoni/ Teuteberg, Hans Jürgen (Ed.): Reiseberichte als Quellen europäischer Kulturgeschichte, Aufgaben und Möglichkeiten der
historischen Reiseforschung, Wolfenbüttel, 1982, pp. 1-31.
24. Peter J. Brenner (Ed.), Der Reisebericht, Frankfurt/M., 1989 e Jean Ceard, Jean-Claude
Margolin (Ed.), Voyager à la Renaissance, Paris, 1987.
16
INTRODUÇÃO
autenticidade, originalidade e objectividade temática. Mas que as fontes de
'menor valor', de segundo ou terceiro grau, são inestimáveis para
desvendar compreensiva e claramente as teias coordenadoras de uma
época é, todavia, um facto adquirido, quer para a história da geografia,
como o comprovam os estudos de William Graham Lister Randles,25 quer
para a história da antropologia, como o demonstra Margaret Hodgen.26
Junto das fontes de segundo e terceiro grau - consideradas 'menos
científicas' -, como as cosmografias, teremos a oportunidade de analisar
outras obras que, provenientes de várias disciplinas, reflectem, de igual
modo e, numa fase posterior, a valorização e assimilação das novidades
ultramarinas na sua globalidade - o que tem sido até agora manifestamente
negligenciado.
Este trabalho compõem-se de três blocos temáticos. Cada um destes
apresenta um determinado tipo de fontes, de interesses e questões, o que
se reflectirá, consequentemente, na sua abordagem.
À primeira parte cabe delinear as iniciativas levadas a cabo além-Pirinéus
no anseio de tornar a nova África um tema dos escritos alemães. Importa,
assim, conhecer as vias percorridas pelas informações até chegarem à
Europa Central, como é que estas se tornavam conhecidas na Alemanha,
mormente, quais os círculos que davam continuidade à divulgação, bem
como quais os meios a que se recorria para propagar as novidades. Não
poderemos ainda descurar a actividade impressora alemã, tendo em
atenção os textos que, vindos a lume neste país, se relacionavam, de algum
modo, com os descobrimentos. Tanto um como outro aspecto ajudam a
localizar e a definir os graus de interesse e de curiosidade dos letrados
alemães pelas novas realidades africanas.
Na segunda parte iremos descrever detalhada e, tanto quanto possível,
tematicamente as relações de viagens sobre África publicadas em terras
alemãs. Graças a estes relatos de viajantes de várias nacionalidades
europeias, a estranha diversidade do continente tornar-se-ia um dado
fundamental e conhecido dos meios intelectuais germânicos. Organizados
segundo coordenadas topográficas, os seis capítulos visam dar a conhecer
a imagem específica de cada uma das regiões africanas, tal como eram
esboçadas nos séculos XVI e XVII. Este extracto adquire assim o carácter
de um breve comentário das publicações dos séculos XVI e XVII, em
língua alemã, dedicadas ao continente africano.
25. William Graham Lister Randles, De la Terre plate au globe terrestre, Une mutation
épistémologique rapide 1480-1520, Paris, 1980.
26. Margaret T. Hodgen, Early Antropology in the Sixteenth and Seventeeth Centuries,
Philadelphia, 1964.
INTRODUÇÃO
17
A terceira parte, por fim, trata da recepção, valorização e, consequente,
assimilação das informações retidas nas relações de viagens sobre o
mundo ultramarino. Tendo como manancial documental os escritos dos
séculos XVI e XVII, onde se abordam temas geográficos, antropológicos,
religiosos, históricos e outros assuntos afins, foi nosso intuito desenhar a
imagem por eles forjada de África. Isto é: na ânsia de integrar e recolocar
a novidade na ordem do saber, como se filtram as informações, com que
interesses se debatem as questões metodológicas, quem é que se debruça
sobre estas novas, como e, com que dificuldades, se ensaiam, em cada
caso particular, os primeiros passos na redefinição científica da realidade.
Bamberg, Março de 1991

Documentos relacionados