Notas e referências

Transcrição

Notas e referências
TODAS AS PARTES
EM UM VOLUME
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A REDE
Augusto de Franco, 2012.
Versão Beta, sem revisão.
A versão digital desta obra foi entregue ao Domínio Público, editada
com o selo Escola-de-Redes por decisão unilateral do autor.
Domínio Público, neste caso, significa que não há, em relação a versão digital desta
obra, nenhum direito reservado e protegido, a não ser o direito moral de o autor ser
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na sua forma original ou modificada – copiada, impressa, editada, publicada e
distribuída com fins lucrativos (vendida) ou sem fins lucrativos. Só não pode ser
omitida a autoria da versão original.
FRANCO, Augusto de
A REDE / Augusto de Franco. – São Paulo: 2012.
80 p. A4 – (Escola de Redes; 7)
1. Redes sociais. 2. Organizações. 3. Escola de Redes. I. Título.
Escola-de-Redes é uma rede de pessoas dedicadas à investigação sobre redes sociais e
à criação e transferência de tecnologias de netweaving.
http://escoladeredes.net
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Sumário
Introdução | 9
No multiverso das interações | 12
Mundos que se descobrem em rede | 15
É o social, estúpido | 23
O nome está dizendo: redes sociais | 26
É comunicação, não informação | 29
É interação, não participação | 35
Padrões, não conjuntos | 43
Conhecimento é relação social | 46
A chefia é contra a liderança | 49
Nenhuma hierarquia é natural | 52
Poder é uma medida de não rede | 54
Autorregulação é sem administração | 56
9
Pessoas, não indivíduos | 59
As redes sociais já são a mudança | 61
Aranhas não geram estrelas-do-mar | 63
Epílogo | 66
Notas e referências | 69
10
Introdução
O ERUDITO GERSHOM SCHOLEM (que ficou mais conhecido nos meios
acadêmicos – tão laicos quanto pouco ilustrados – em virtude de sua bela
amizade com Walter Benjamin), no seu monumental estudo sobre o
misticismo judaico, Major Trends in Jewish Mysticism (1941) (1),
comentando a formidável abstração que os cabalistas do século 13
denominaram Ein-Sof (o nada primordial do qual emana a “seiva” que
percorre a “árvore” numérica que constitui a estrutura do universo,
criando, formando e produzindo a existência), lança mão de uma metáfora
luminosa: ele “é – diz – o abismo que se torna visível nas fendas da
existência”. E relata em seguida que “alguns cabalistas que desenvolveram
esta idéia, por exemplo, Rabi Iossef ben-Shalom de Barcelona (1300),
sustentam que em toda transformação da realidade, em toda mudança da
forma, ou toda vez que o status de uma coisa é alterado, o abismo do
nada é cruzado e por um fugaz momento místico torna-se visível. Nada
pode mudar sem entrar em contato com esta região do Ser absoluto puro
que os místicos chamam de Nada”.
Realmente impressionante. Sem pretender elaborar alguma teosofia das
redes, podemos fazer agora um paralelo meramente literário e apenas
evocativo de uma imagem para efeitos heurísticos. Esse mundo oculto dos
11
cabalistas provençais, catalães e castelhanos e, depois, safeditas (o mundo
– ou árvore – das Sefirot) é como se fosse o mundo das fluições (o espaçotempo dos fluxos) onde as redes sociais existem, o multiverso das
conexões também ocultas que produzem o que chamamos de ‘social’.
Há fendas. Há um abismo que não se deixa ver a menos no instante fugaz
em que uma fenda se abre. E nada pode mudar na estrutura e na dinâmica
do mundo (manifesto, vamos dizer assim – ou produzido) sem que haja
uma mudança correspondente nas configurações daquele mundo oculto,
ou seja, nos fluxos que o caracterizam ou no ritmo da fluição. Seria algo
mais ou menos assim, para lançar mão de uma metáfora menos esotérica
– mas não tanto – usada pelos físicos contemporâneos, como a vibração
de uma corda ou de uma membrana.
Mas, não! Ainda não é bem isso. Há fendas, sim, mas por trás das fendas
não há uma ordem implícita, pré-existente em alguma esfera oculta: a
ordem está sempre sendo criada no presente da interação!
Que fendas seriam essas? Onde estaria esse abismo?
Abismo. Fenda. Quando a fenda se abre, “vemos” fluzz (*). Mas o que
vemos quando “vemos” fluzz?
Espiar de fora para dentro do abismo nada-revela (e esse, por incrível que
não-pareça, é um dos sentidos daquele nada primordial: porque no
princípio era a rede). Nada se pode ver a não ser que se mergulhe na
fluição, como fez o sufi Mojud, “O homem cuja história era inexplicável”
(2); quando perguntado de que maneira havia alcançado tanta sabedoria,
12
ele não-explicou dizendo assim: “Eu me atirei num rio... [e] simplesmente
deixei”.
Goethe (1821) terminou com o seguinte verso o poema Eins und Alles,
“tudo deve cair no nada, se quiser persistir em ser” (3). Tem que pular
dentro – se abismar – para ver.
13
No multiverso das interações
A fonte que só existe enquanto-fluzz só pode ser conhecida quando
interagimos, quer dizer, enquanto estamos nela
NO PRINCÍPIO ERA A REDE. Mas o mundo das redes não é um mundo: é
um multiverso de interações. Multiverso das interações significa, como
disse Heráclito, que “não se pode entrar duas vezes no mesmo rio”; ou,
talvez corrigindo antecipatoriamente seu “discípulo” Crátilo, que
“descemos e não descemos nos mesmos rios”.
Em outras palavras, não existe uma mesma realidade para todos: são
muitos os mundos. Tudo depende das fluições em que cada um se move,
dos emaranhamentos que se tramam, das configurações de interações
que se constelam e se desfazem, intermitentemente.
Na verdade, quem se move é essa rede que nos envolve, como aquele “rio
que deflui silencioso dentro da noite” no verso de Manuel Bandeira (1948)
(4). Como aquele rio que corre no “lado de dentro” do abismo.
O ritmo da fluição está implicado no modo de interagir. Diferentemente
do que se pensava, não é o conteúdo do que flui a variável fundamental
para explicar a fenomenologia de uma rede e sim o modo-de-interagir e
suas características.
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Quanto mais distribuída for a topologia de uma rede, mais-fluzz ela será.
Quer dizer, mais interatividade haverá. E mais evidentes serão essas
características (invisíveis do “lado de fora” do abismo) do seu modo-deinteragir.
Conhecer as redes é interpretar modos-de-interagir (reconhecendo
padrões). O que só se pode conseguir interagindo (estabelecendo
conexões). Eis o principal fundamento de uma teoria do conhecimento
fluzz – que é também uma teoria conectivista da aprendizagem e uma
teoria da ação comunicativa por acoplamento estrutural e coordenação de
coordenações (Maturana e Varela). Com efeito, Francisco Varela (1984)
escreveu que “não há informação transmitida na comunicação. A
comunicação ocorre toda vez em que há coordenação comportamental em
um domínio de acoplamento estrutural... cada pessoa diz o que diz e ouve
o que ouve segundo sua própria determinação estrutural... O fenômeno da
comunicação não depende do que se fornece, e sim do que acontece com o
receptor” (5). Na verdade, depende do que acontece com os interagentes.
A comunicação vareliana é uma interação: se A se comunica com B,
significa que B muda com A, que muda com B, que muda novamente com
A, que muda outra vez com B... e assim por diante, recorrentemente,
como em uma coreografia. Mas tudo isso “multiplicado” pelo número de
nodos em interação, pois que se trata sempre de um multi-acoplamento,
não ocorre aos pares, mas entre todos os que compõem cada um dos
muitos mundos que se configuram.
Goethe – em um insight heraclítico – escreveu que “a fonte só pode ser
pensada enquanto flui” (6). Alguém é nodo de uma rede nisi quatenus
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interage. A fonte que só existe enquanto flui (fluzz) só pode ser conhecida
enquanto interagimos, quer dizer, enquanto estamos nela.
Bem, isso muda tudo.
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Mundos que se descobrem em rede
O social não é o conjunto das pessoas, mas o que está entre elas
A GRANDE NOVIDADE DO TEMPO em que vivemos não é o surgimento de
uma sociedade em rede (que, de resto, sempre existiu desde que existem
seres humanos em interação), mas a generalização do entendimento de
que sociedade = rede social.
Na verdade, não existe nada como ‘a’ sociedade: as sociedades são
sempre configurações concretas e particulares que, olhadas de certo
ponto de vista, revelam seres humanos em interação; quer dizer, a
compreensão do social surge quando se constela a percepção de que não
existem unidades humanas separadas. De que o social não é o conjunto
das pessoas, mas o que está entre elas. E de que cada mundo social é
também (um modo de ser) humano. A medida que esses mundos sociais
vão se descobrindo em rede, como se diz, “as fichas vão caindo”. Vários
aspectos surpreendentes dessa descoberta já podem ser registrados. O
primeiro deles é que redes mais distribuídas do que centralizas são
possíveis, sim, no “mundo real”.
As redes sociais viraram moda nos últimos anos. Sites de relacionamento e
serviços de emissão e troca de mensagens na Internet como, dentre
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centenas de outros, MySpace, Facebook, Orkut e Twitter, que se
autodenominaram (ou foram denominados) – impropriamente – ‘redes
sociais’, proliferaram na primeira década do século 21, registrando
milhões de pessoas.
É fácil. Em geral não demora nem cinco minutos. Então muitos desses
milhões de usuários de tais serviços acreditaram na conversa e acharam
que, pelo fato de terem feito login e senha em um ou em vários desses
sites, estavam “participando de redes sociais”.
Fosse lá alguém dizer-lhes que redes sociais não são redes digitais ou
virtuais, mas, como o nome está dizendo, são sociais mesmo: um novo
padrão de organização, mais distribuído do que centralizado.
As pessoas não entendiam as redes, antes de qualquer coisa porque não
sabiam a diferença entre descentralizado e distribuído. Não percebiam
que descentralizado não é sem centro e sim com muitos centros. Sem
centro é distribuído.
A figura abaixo mostra os famosos diagramas de Paul Baran (1964) (7).
Note-se que os nodos estão no mesmo lugar, o que muda nos três
desenhos é a topologia, a configuração dos fluxos.
A maioria das pessoas que se registraram nas tais “redes sociais”,
entretanto, nunca tinha ouvido falar disso. De milhões de pessoas
registradas em sites de relacionamento e plataformas interativas, quantas,
na hora de elaborar um texto, vídeo ou programa, organizar um evento,
implementar ou executar um projeto, produzir algum bem, vender algum
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produto ou prestar um serviço, atuavam em rede? E quantas abriram mão
de dirigir, participar ou trabalhar em alguma organização hierárquica
(quer dizer, mais centralizada do que distribuída)?
Diagramas de Paul Baran
Mesmo os que já tinham ouvido falar das redes sociais como novo padrão
de organização distribuído – mesmo estes – tentavam escapar dessa
evidência aproveitando a profusão dos sites de relacionamento e
plataformas interativas na Internet. A maioria fazia um blog ou se
registrava em alguma "rede social" e pronto: de vez em quando ia lá,
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postava um texto, um vídeo ou um comentário e dizia que "pertencia" a
uma (ou várias) rede(s). No restante do tempo, porém, essas pessoas
continuavam estudando, trabalhando, produzindo ou prestando serviços
em organizações hierárquicas (fosse uma burocracia escolar ou
acadêmica, uma empresa, uma organização não-governamental ou uma
instituição estatal). Havia exceções, é claro. Mas, na maior parte dos
casos, era assim.
Inclusive acadêmicos, militantes sociais e consultores que falavam tanto
em redes sociais, por algum motivo tinham imensa dificuldade de articulálas. Provavelmente porque não conseguiam experimentá-las. Bastava ver
como essas pessoas se relacionavam com as outras pessoas que lhe eram
próximas: será que elas participavam de redes nos seus locais de moradia,
estudo, trabalho, lazer ou em torno de seus temas de interesse?
Em suma, as pessoas tendiam (e, em grande parte ainda tendem) a se
organizar – reproduzindo o que é de praxe - segundo um padrão de
organização centralizado ou multicentralizado. Para manter centralizações
e filtros que caracterizam uma organização hierárquica, os mais
inteligentes em geral argumentavam que “tem que haver uma transição”,
ou que “uma organização em rede distribuída (em um mundo como o
nosso) é uma utopia”. E argumentava assim inclusive boa parte dos que
investigavam as redes sociais e publicavam sobre o assunto.
Com o surgimento de novos mundos-fluzz, as coisas, entretanto,
começam a se passar de outro jeito. A idéia de que redes sociais (mais
distribuídas do que centralizadas) não são possíveis no “mundo real” (seja
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lá o que se entende por isso) como forma de (auto) organização da ação
coletiva, foi sendo abandonada. Essa idéia, como se sabe, está baseada no
velho preconceito de que nada que agregue uma pluralidade de seres
humanos poderia funcionar sem administração (baseada em comando-econtrole), sem organização (a partir de modelos de ordem aplicados top
down), sem liderança (ou melhor, monoliderança).
Foi ficando cada vez mais claro que, em qualquer lugar, pode-se “fazer
redes”. Sim, em qualquer lugar: na vizinhança, na empresa, na ONG,
entidade ou organização da sociedade civil, em um órgão governamental
et coetera. Pouco importa se a estrutura dessas localidades ou
organizações é vertical, hierárquica, centralizada: as pessoas que estão lá
não são e não há como impedir que elas se conectem horizontalmente, de
modo distribuído, umas com as outras. E não importa se todas as pessoas
não estiverem dispostas a fazer isso. E não importa se a maioria das
pessoas em cada uma dessas territorialidades ou organizações for contra
isso. A partir de três pessoas já é possível começar uma rede distribuída.
Fazendo isso, articulando uma rede distribuída, cria-se uma “zona
autônoma” (em relação ao poder centralizado). Se for uma rede
distribuída (a rigor, mais distribuída do que centralizada), coisas
surpreendentes começarão a acontecer (na medida do grau de
distribuição e de conectividade alcançados). Uma nova fenomenologia
certamente acompanhará a nova topologia. Pode-se apostar que isso fará
diferença. E que a diferença será notável.
Nos novos mundos altamente conectados do terceiro milênio começa a
brotar a consciência de que fazer rede é fazer amigos. Amigos políticos, no
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sentido original, grego, do termo ‘político’, que se refere à interação e à
inserção na comunidade política; i. e., à polis – que não era a cidadeEstado e sim a koinonia política (como assinalou Hannah Arendt em “A
condição humana” (1958): “a polis não era Atenas, e sim os atenienses”)
(8). Isso é uma subversão completa das identidades organizacionais
abstratas, construídas top down para alocar uma pessoa em um degrau da
escada. Para que ela pise na cabeça de quem está no degrau de baixo e
tente ultrapassar quem está no degrau de cima, agarrando-se a ele e
puxando-o para baixo, como fazem os caranguejos em uma lata...
Essa é a grande descoberta da democracia como movimento de
desconstituição de autocracia, instaurada na experiência local dos gregos
para evitar a volta da tirania dos Psistrátidas (que, como qualquer poder
vertical, se baseava na inimizade política). Tratava-se de preservar a
liberdade. Mas como escreveu a mesma Arendt, em “A questão da
guerra” (1959): [para os gregos] “a liberdade... é um atributo do modo
como os seres humanos se organizam e nada mais” (9). Dizendo de outra
maneira (e pulando algumas passagens da argumentação): a falta de
liberdade é uma função direta dos superávits de ordem top down.
Antes era mais difícil reconhecer isso: todas as organizações verticais se
baseiam na inimizade política: quanto mais centralizadas, mais “se
alimentam” de inimizade e de seus bad feelings acompanhantes, como a
desconfiança. Ora, é isso que torna imperativa a necessidade de controle
e, por decorrência, a exigência de obediência.
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Fazer amigos é uma subversão de todos os mecanismos de comando-econtrole. Fazer amigos que se conectam em rede distribuída dentro de
uma organização hierárquica vai desabilitando ou corrompendo os scripts
dos programas verticalizadores que rodam nessa organização. Redes
distribuídas, mesmo com pequeno número de nodos, funcionam, assim,
dentro de uma organização hierárquica, como espécies de vírus; ou
melhor, de anti-virus (pois em relação à rede-mãe – aquela rede que
existe independentemente de nossos esforços conectivos voluntários, à
rede que existe desde que existam seres humanos que se relacionam
entre si – são os programas verticalizadores que devem ser encarados
como vírus).
Trata-se de uma infecção antiga, resistente, resiliente, que permanece na
medida em que nós nos transformamos em vetores de contaminação por
meio de nossas formas de relacionamento. Cada piramidezinha que
construímos, nos espaços privados e públicos que habitamos, na nossa
família, escola, igreja, entidade, corporação, empresa, partido ou governo,
vai viabilizando a prorrogação da infestação do poder vertical. Pelo
contrário, cada rede que articulamos vai dificultando a propagação desse
vírus ou a replicação desse meme, por meio da criação de zonas
autônomas, mesmo que sejam temporárias (e são, como percebeu Hakim
Bey) (10), criando condições para que a confiança possa transitar (ou para
que o capital social possa fluir, se preferirmos usar essa metáfora), para
que a competição possa ser convertida em cooperação; enfim – em um
sentido ampliado do termo – para a manifestação da amizade (ou para
fazer “downloads” daquela emoção que Maturana (11) chamou... vejam
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só!, de amor, mas a palavra parece ser forte demais – um verdadeiro
escândalo – e acaba chocando as pessoas que se imaginam preocupadas
com coisas “mais sérias”.
Mas não se trata de converter as almas por meio do proselitismo, do
discurso ético normativo, exalçando as vantagens da cooperação sobre a
competição, como imaginavam os adeptos das concepções 2.0. Trata-se
de adotar padrões de organização que viabilizem a conversão de
competição em cooperação. Parodiando Arendt, “a cooperação... é um
atributo do modo como os seres humanos se organizam e nada mais”. Se
nos organizamos segundo um padrão de rede distribuída, isso começa a
ocorrer “naturalmente”; quer dizer, é uma fenomenologia que se
manifesta em função da topologia (e não das boas intenções dos sujeitos).
Uma organização hierárquica de seres animados pelas melhores
intenções, cheios de amor-prá-dar, não se constitui como um ambiente
favorável à cooperação. Em outras palavras, o capital social de uma
organização rigidamente centralizada será sempre próximo de zero,
mesmo que tal organização seja composta por clones de Francisco de
Assis ou por réplicas perfeitas de Mohandas Ghandi.
Essas descobertas foram conseqüências da formidável irrupção-fluzz que
começou a alterar radicalmente nossos flowscapes conceituais e
organizacionais. Mas tem mais.
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É o social, estúpido!
As redes sociais não surgiram com as novas tecnologias de informação e
comunicação
QUANDO MARSHALL MCLUHAN AFIRMOU, em uma palestra proferida em
1974, que “é o ambiente que muda as pessoas, não a tecnologia” ainda
não haviam surgido constructs – como o de capital social como rede social
– capazes de justificar adequadamente tal afirmação (12). Como se sabe, a
idéia de que capital social nada mais é do que rede social, ainda que tenha
sido formulada em 1961, por Jane Jacobs, ficou praticamente
desconhecida por mais de duas décadas (13). Os esforços pioneiros de
Coleman (1988) (14) não resgataram essa descoberta surpreendente,
segundo a qual a influência do ambiente depende de padrões
conformados pela interação (e a própria natureza do que chamamos de
ambiente nada mais é do que a de um “campo”, em um sentido deslizado
daquele em que a palavra é empregada em física: como campo de forças).
Mas a hipótese de McLuhan revelou-se correta e pode ser justificada
desse ponto de vista (e talvez só assim possa ser justificada). O ambiente
muda as pessoas porque o comportamento individual é sempre função,
em alguma medida, das relações entre as pessoas. E, além disso, porque
as próprias pessoas se constituem, como tais, na interação (um indivíduo
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isolado da espécie humana, se pudesse subsistir, não poderia ser uma
pessoa).
Conquanto ainda esteja bastante difundida a idéia de que redes são um
novo tipo de organização surgida com as novas tecnologias de informação
e comunicação (TICs), tal idéia vem se revelando inconsistente, sobretudo
porque deixa de ver o fundamental: redes são um padrão de organização
que pode ser ensaiado com diferentes mídias e tecnologias (até com sinais
de fumaça, tambores, conversações presenciais, cartas escritas à mão em
papel e transportadas à cavalo et coetera).
Ou seja, é o social que determina comportamentos, não o tecnológico.
Pode-se usar tecnologias interativas de um modo que não altere em nada
ou quase nada os padrões de interação. Por exemplo, computadores
conectados à internet na maioria das escolas não viabilizam, por si só,
mudanças no padrão de interação entre os alunos, que continuam
organizados como rebanho, cada qual com sua supermáquina conectada,
mas todos virados para um professor que centraliza a rede.
Na formulação, a várias mãos, da Declaração de Independência dos
Estados Unidos (1776), a tecnologia utilizada (midia) foi a carta escrita em
papel, o cavaleiro (carteiro) e o cavalo, mas o padrão de interação foi, ao
que tudo indica, o de rede distribuída. Hoje, mais de dois séculos depois, o
processo de elaboração de uma diretiva estratégica no Pentágono, a
despeito de usar sofisticados meios de comunicação interativos, revela um
padrão de interação centralizado.
26
Ao contrário do que parece, as redes sociais não surgiram com as novas
tecnologias de informação e comunicação. Ainda que tecnologias mais
interativas em tempo real (ou sem-distância) possam facilitar a adoção de
padrões mais distribuídos do que centralizados de organização – e
possam, além disso, acelerar a interação – é o modo como as pessoas
interagem (social) e não o recurso (tecnológico) que determina o
comportamento coletivo. A fenomenologia é sempre função da topologia,
seja qual for a tecnologia empregada.
Acelerando a interação, entretanto, alguns fenômenos que só seriam
perceptíveis em linhas temporais muito longas, podem ser captados mais
rapidamente. É o caso do swarming de pessoas: enxameamentos cívicos
levando a grandes manifestações de massa podem ser observados, caso
haja possibilidade de conexão em tempo real (por telefone móvel ou email, por exemplo), em horas ou até minutos (15). Sem tais recursos
tecnológicos, esses fenômenos (ou seus similares ou correspondentes)
poderiam levar dias ou até anos para se engendrar. Mas isso não significa
que eles ocorrem por causa da tecnologia. Se as pessoas não puderem
interagir uma-a-uma (P2P), se não estiverem conectadas segundo um
padrão distribuído, de pouco adiantarão as mais avançadas tecnologias
interativas. O mesmo vale para outros fenômenos típicos das redes: eles
dependem do padrão de interação (dos graus de distribuição e
conectividade) e não das tecnologias (dos recursos, dos dispositivos, das
mídias).
27
O nome está dizendo: redes sociais
Redes sociais são pessoas interagindo, não ferramentas
EMBORA TENHA SE ALASTRADO COMO UMA PRAGA a idéia de que as
redes sociais são a mesma coisa que as mídias sociais, redes digitais,
ambientes virtuais, sites de relacionamento (como Facebook ou Orkut) ou
plataformas interativas (como Ning ou Elgg), tal idéia se revelou
equivocada, sobretudo porque elide o fato de que redes sociais são
pessoas interagindo, não ferramentas.
Essa discussão ganhou força nos últimos tempos com a busca por
ferramentas digitais – plataformas interativas na Internet – mais
adequadas ao netweaving, quer dizer, para servir de instrumentos de
articulação e animação de redes sociais (16).
Três hipóteses surgiram para explicar por que as plataformas interativas
disponíveis, que foram desenvolvidas para a gestão de redes sociais (ou
até mesmo para serem, elas próprias, “redes sociais”) não eram boas
ferramentas de netweaving:
Em primeiro lugar porque seus desenvolvedores confundiam midias
sociais com redes sociais, tomavam a ferramenta (digital) pela rede
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(social), quando, como vimos, redes sociais são pessoas (conectadas,
interagindo), não ferramentas!
Em segundo lugar porque, sob o influxo da chamada Web 2.0, as
plataformas disponíveis eram (e ainda são, em grande parte) baseadas na
participação (p-based) e não na interação (i-based). Assim, não se regiam
pela lógica das redes mais distribuídas do que centralizadas, quer dizer,
pela lógica da abundância (17), mas sim pelo regime da escassez (e ao
aceitarem tal condicionamento, de ter que funcionar em condições de
escassez quando já há abundância, reproduziam desnecessariamente
escassez, rendendo-se a um tipo de "economia política" onde a política é
um modo de regulação não-pluriárquico). Não é outro o motivo pelo qual
ativavam mecanismos de contagem de cliques, instituíam votações e
atribuições de preferências baseadas na soma aritmética, que significam
regulações majoritárias da inimizade política. Ora, isso ensejava a
formação de oligarquias participativas que tentavam organizar a autoorganização (como ocorreu, por exemplo, na Wikipedia).
Em terceiro lugar - e como conseqüência do seu fundamento p-based - as
plataformas de articulação e animação de redes sociais (que já se
encaravam, algumas delas pelo menos, como se fossem as próprias redes
sociais), ainda estavam voltadas para organizar conteúdos (encarando,
inevitavelmente, o conhecimento como um objeto e não como uma
relação social). Esse é um problema porquanto a gestão do conteúdo, do
conhecimento-objeto, ao tentar traçar um caminho para os outros
acessarem tal conteúdo, cava sulcos para fazer escorrer por eles as coisas
que ainda virão (na e da interação), com isso repetindo passado e
29
trancando o futuro (como fazem, secularmente, as burocracias sacerdotais
do conhecimento, mais conhecidas pelo nome de escolas e não é por
acaso que boa parte dessas plataformas tenha sido pensada por
professores ou construída para atender a objetivos educacionais,
entendidos como objetivos de ensinagem e não de aprendizagem). Mas
para uma plataforma i-based - adequada ao propósito de servir de
ferramenta para o netweaving - não se trataria de pavimentar uma
estrada para os outros percorrerem e sim de possibilitar que cada um
pudesse abrir seu próprio caminho (posto que redes são múltiplos
caminhos).
Ademais, ao contrário do que acreditavam os supostos especialistas em
redes sociais na Internet, não é o conteúdo do que flui a variável
fundamental para explicar a fenomenologia de uma rede e sim o modode-interagir.
Mas para compreender essas observações é necessário entender quais
são, afinal, as diferenças entre comunicação e informação e entre
interação e participação. São questões fundamentais porque, de certo
modo, entende-las é entender as redes.
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É comunicação, não informação
Redes sociais não são redes de informação
QUANDO NORBERT WIENER (1950) escreveu, em Cibernética e Sociedade,
que “um padrão é uma mensagem e pode ser transmitido como tal”, abriu
uma linha de reflexão segundo a qual todas as coisas – inclusive as
pessoas, que, segundo ele, não passam “de redemoinhos em um rio de
água sempre a correr” – são como que singularidades em um continuum,
campo, tecido ou espaço (18). A hipótese é fértil, inclusive pelo seu poder
heurístico. Mais do que isso, entretanto: é uma hipótese-fluzz.
Mas por essa porta aberta à imaginação criadora, também passou um
pensamento rastejante: como transmissão de mensagem evoca sempre
informação, uma visão de que tudo poderia ser reduzido, em última
instância, à informação, acabou se estabelecendo. Redes, pensadas mais
como redes de máquinas que trocam conteúdos entre si, foram assim
concebidas como redes de informação.
Uma das descobertas tão recentes quanto surpreendentes nesta ante-sala
da época-fluzz em que vivemos é que, ao contrário do que pensavam os
teóricos da informação, redes sociais não podem ser reduzidas à redes de
informação. Ainda que toda influência seja um padrão, ela não pode ser
31
reduzida a um código. É o padrão de interação que é relevante e não a
transmissão-recepção da mensagem entendida como um conteúdo de
arquivo.
Redes sociais são redes de comunicação, é óbvio. Mas ainda que o
conceito de informação seja bastante elástico, isso não é a mesma coisa
que dizer que elas são redes de informação. Redes são sistemas
interativos e a interação não é apenas uma transmissão-recepção de
dados: se fosse assim não haveria como distinguir uma rede social
(pessoas interagindo) de uma rede de máquinas (computadores
conectados, por exemplo).
Ao tomar as redes sociais como redes de informação, imaginando que
tudo não passa de bytes transmitidos e recebidos, freqüentemente
deixávamos de ver que a comunicação modifica os sujeitos interagentes (e
só acontece quando tal modificação acontece). Humberto Maturana e
Francisco Varela explicaram isso muito bem em um box (ao que tudo
indica atribuído ao segundo) do livro A Árvore do Conhecimento (1984)
intitulado “A metáfora do tubo para a comunicação” (19):
“Nossa discussão nos levou a concluir que, biologicamente, não há
informação transmitida na comunicação. A comunicação ocorre
toda vez em que há coordenação comportamental em um domínio
de acoplamento estrutural. Tal conclusão só é chocante se
continuarmos adotando a metáfora mais corrente para a
comunicação, popularizada pelos meios de comunicação. É a
metáfora do tubo, segundo a qual a comunicação é algo gerado em
32
um ponto, levado por um condutor (ou tubo) e entregue ao outro
extremo receptor. Portanto, há algo que é comunicado e transmitido
integralmente pelo veículo. Daí estarmos acostumados a falar da
informação contida em uma imagem, objeto ou na palavra
impressa.
Segundo
nossa
análise,
essa
metáfora
é
fundamentalmente falsa, porque supõe uma unidade não
determinada estruturalmente, em que as interações são instrutivas,
como se o que ocorre com um organismo em uma interação fosse
determinado pelo agente perturbador e não por sua dinâmica
estrutural. No entanto, é evidente no próprio dia-a-dia que a
comunicação não ocorre assim: cada pessoa diz o que diz e ouve o
que ouve segundo sua própria determinação estrutural. Da
perspectiva de um observador, sempre há ambigüidade em uma
interação comunicativa. O fenômeno da comunicação não depende
do que se fornece, e sim do que acontece com o receptor. E isso é
muito diferente de ‘transmitir informação’.”
Além disso, há características da interação que não se resumem àquela
transmissão-recepção de conteúdos evocada pelo uso corrente do
conceito de informação. Em uma rede social é como se as pessoas
estivessem emaranhadas e a modificação do estado de uma pessoa eminteração com outra acaba alterando o estado dessa outra sem que,
necessariamente, tenha havido a transmissão voluntária (e, talvez nem
mesmo involuntária) de uma mensagem da primeira para a segunda. Por
exemplo, uma pessoa tende a se adaptar ao comportamento das outras,
tende a imitar padrões de comportamento reconhecidos nas outras e
33
tende, inclusive, a cooperar com elas (voluntária e gratuitamente). Uma
pessoa pode ficar alegre ou triste, saudável ou doente, esperançosa ou
descrente, em função da estrutura e da dinâmica desse emaranhado em
que está imersa. Ao contrário do que se acredita, nada disso depende
diretamente de um conteúdo transferido e recebido, intencionado na
transmissão e interpretado na recepção, mas é função de outras
características do modo-de-interagir como a freqüência e a recursividade,
as reverberações e os loopings, os laços de retroalimentação etc.
É mais ou menos como o que revelou a investigação de Deborah Gordon
(1999), professora de ciências biológicas em Stanford, que pesquisou
durantes dezessete anos colônias de formigas no Arizona. Ela descobriu
que “a decisão de uma formiga quanto a uma tarefa é baseada em sua
taxa de interação”. Mas “o que produz o efeito é o padrão de interação,
não um sinal na própria interação. As formigas não dizem umas às outras
o que fazer por meio da transferência de mensagens. O sinal não está no
contato, ou na informação química trocada no contato. O sinal está no
padrão de contato” (20). Ou seja, não se trata de uma comunicação de
conteúdo, de um código, mas da freqüência e das circunstâncias em que
se dão os contatos.
Em uma rede estamos sofrendo a influência de um campo, mas tal
influência é sistêmica e o comportamento adotado por um agente
dificilmente pode ser atribuído à ação e muito menos à intenção única e
exclusiva de outro agente. Quer dizer, quando ficamos alegres em virtude
desse efeito sistêmico do campo em que estamos imersos (a rede) é como
se tal fato fosse inexplicável, o que significa apenas que não conseguimos
34
explicá-lo com base nos nossos esquemas explicativos habituais, focados
nos indivíduos e não na rede, apontando um sujeito particular que nos
sugestionou positivamente ou exerceu essa influência sobre nós de outra
forma conhecida. Mas não é assim que a coisa funciona.
Quando foi observado que os habitantes da famosa Roseto, na
Pensilvânia, se mostravam mais saudáveis, do ponto de vista
cardiovascular, do que as pessoas das comunidades vizinhas, muito
semelhantes à Roseto, em vários aspectos, isso não pôde ser atribuído a
nenhum fator particular (genética, alimentação, exercícios físicos, atenção
à saúde preventiva ou cuidados médicos), mas foi associado corretamente
à comunidade. O mistério só foi resolvido quando dois pesquisadores
(Stewart Wolf e John Bruhn) resolveram observar como as pessoas
interagiam (“parando para conversar na rua ou cozinhando umas para as
outras nos quintais”). “Elas eram saudáveis – conta Malcolm Gladwell
(2008) – por causa do lugar onde viviam, do mundo que haviam criado
para si mesmas…” (21). Sim, interação e lugar. Em outras palavras,
conversações e comunidade. Em outras palavras, ainda: rede social!
É claro que, a despeito do que foi dito aqui, ainda se pode afirmar que
tudo se reduz, em última instância, à informação: em qualquer interação,
em termos físicos, partículas mensageiras de um dos quatro campos de
forças se “deslocaram”, se espalharam ou se aglomeraram (o simples fato
de ver alguém, por exemplo, implica “deslocamentos” de bósons – no
caso, de fótons, partículas mensageiras do campo eletromagnético) e isso
pode, corretamente, ser interpretado como informação. Mas o significado
da palavra informação – tal como é tomado no dia-a-dia ou mesmo como
35
às vezes é usado pelos chamados “cientistas da informação” – não ajuda
muito a entender os fenômenos que acontecem nas redes sociais e que
lhes são próprios.
36
É interação, não participação
Redes sociais são ambientes de interação, não de participação
A AFIRMAÇÃO SÓ É VÁLIDA, claro, para redes distribuídas, quer dizer, mais
distribuídas do que centralizadas. Quanto mais distribuída for a topologia
de uma rede, mais ela poderá ser i-based (interaction-based) e menos pbased (participation-based). Tudo que fluzz é i-based, não p-based.
A palavra participação designa uma noção construída por fora da
interação. Participar é se tornar parte ou partícipe de algo que não foi
reinventado no instante mesmo em que uma configuração coletiva de
interações se estabeleceu, mas algo que foi (já estava) dado ex ante.
Como se a gente sempre participasse de algo “dos outros”. Não é por
acaso que a expressão 'democracia participativa' foi aplicada para
designar diversas formas de arrebanhamento, inclusive uma variedade de
experiências assembleísticas adversariais, onde a tônica era a luta, a
disputa por maioria ou hegemonia e se praticava a política como “arte da
guerra” lançando-se mão de modos de regulação de conflitos que geram
artificialmente escassez (como a votação, o rodízio, a construção
administrada de consenso e, inclusive, sob alguns aspectos, o sorteio).
37
Mas isso não significa exatamente, como pode parecer à primeira vista,
que interagir, então, diga respeito somente à atuação em algo "nosso"
enquanto participar diga respeito à atuação em algo "dos outros".
Não, não é bem assim, a menos que esse "nosso", aqui, não seja tomado
em um sentido proprietário (como eufemismo, para dizer "meu") em
contraposição ao "dos outros" (“deles”). O "nosso" conformado na
interação não se pré-estabelece, não conforma uma identidade
identificável com um grupo determinado de agentes antes da interação,
ao contrário do "nosso" (na lógica coletiva de um "eu" organizacional já
construído) quando esse "nosso" foi instituído por um grupo que, ao fazêlo, estabeleceu uma fronteira (dentro ≠ fora) independentemente da
interação fortuita que já está acontecendo e que ainda virá. Neste caso, a
organização será um congelamento de fluxos, uma cristalização de uma
situação pretérita, um pedaço do passado cortado que se enxerta
continuamente no presente para manter as configurações que, em algum
momento, atribuíram a determinadas pessoas certos papéis que se quer
reproduzir (essa é a triste história da liderança, ou melhor, da
monoliderança, dos líderes que, tendo liderado algum dia, querem se
prorrogar, eternizando uma constelação passada para continuar
liderando).
Assim, quando fazíamos uma organização ou lançávamos um movimento
e chamávamos uma pessoa para nela entrar ou a ele aderir, estávamos
chamando-a à participação. Estávamos abrindo a (nossa) fronteira para
que o outro pudesse entrar. Em uma rede (mais distribuída do que
centralizada), as fronteiras são sempre mais membranas do que paredes
38
opacas, não precisam ser abertas, não se estabelecem antes da interação
e todos os que estão em-interação estão sempre "dentro" (aliás, estar
"dentro", neste caso, é sinônimo de estar interagindo, mesmo que alguém
só tenha começado ontem e os demais há anos). Estarão “dentro”
também os que ainda virão, quando passarem a interagir, sem a
necessidade de serem recrutados, provados, aprovados, admitidos e
iniciados pelos que já estão.
A diferença parece sutil, mas é brutal no que diz respeito ao
funcionamento orgânico. O participacionismo (que contaminou a
chamada Web 2.0) instituiu modos de regulação que produzem
artificialmente escassez (e, portanto, centralizam a rede, gerando
oligarquias participativas compostas pelos que mais participam, pelos que
são mais votados ou preferidos de alguma forma – mais ouvidos, mais
lidos, mais comentados, mais adicionados, mais seguidos –, os quais
acabam adquirindo mais privilégios ou autorizações regulatórias do que os
outros). Formam-se neste caso inner circles, instâncias mais estratégicas
do que as demais (os outros clusters e as pessoas comuns, não-destacadas
da “massa”), que passam, estas últimas, para efeitos práticos, a serem
consideradas táticas (para os propósitos dos estrategistas, dos que
possuem mais atribuições): e não é a toa que os membros do “círculo
externo” freqüentemente são chamados de “público”, “usuários”, (meros)
“participantes”, com permissões mais restritas e poderes regulatórios
diminutivos (22).
Em um sistema-fluzz, baseado na interação, a regulação é pluriárquica,
quer dizer, é sempre feita com base na lógica da abundância: ou seja, as
39
definições dependem das iniciativas das pessoas que queiram tomá-las ou
a elas queiram aderir, jamais impondo-se, o que pensam alguns, aos
demais (por critérios de maioria ou preferência verificada). Assim, em um
sistema baseado na interação, nunca se decide nada em nome do sistema
(a organização em rede), ninguém fala por ele, ninguém pode representálo ou receber alguma delegação do coletivo (porque, na ausência de
representação, esse “eu = ele” coletivo não pode expressar-se (por
hipóstase) como um ser de vontade ou que seja capaz de acatar qualquer
vontade, ainda que fosse a vontade de todos). E não há deliberação
porque não há necessidade de deliberar nada por alguém ou contra
alguém ou a favor de alguém (que tivesse que delegar ou alienar seu
poder a outrem).
Em uma organização i-based, nunca se fala em nome da organização,
nunca se promove nada por ela e nem mesmo seus fundadores podem
empenhar, emprestar, parceirizar a sua marca para coisa alguma, ainda
que seja para propor uma atividade totalmente dentro do escopo da
organização. Em outras palavras, não há um ativo organizacional que
possa ser apropriado (nem mesmo como patrimônio simbólico) por
alguém em particular, porque as dinâmicas pluriárquicas não permitem.
Dessarte, não há um "nós" organizacional que estabeleça uma fronteira
entre os "de dentro" e os "de fora". Todos que estão fora podem entrar.
Todos os que estão dentro podem sair (e podem voltar a qualquer
momento; e sair de novo, quantas vezes quiserem). Entrar não significa
pertencimento a algum corpo separado do meio por fronteiras
impermeáveis, nem adesão (ou profissão de fé) a algum codex e sair não
40
significa discordância, “racha”, deserção, traição, divórcio ou qualquer
tipo de ruptura. E quem compõe tal organização afinal? Ora, quem nela
quiser se conectar e interagir, aqui-e-agora. Quem saiu não é mais, mas
não porque tenha se desligado e sim porque não está interagindo. Quem
não entrou não é ainda, mas não porque não tenha sido aprovado e aceito
e sim porque, igualmente, não está interagindo.
Porque rede é fluição. Nodo de uma rede é tudo o que nela interage. Essa
foi a grande descoberta-fluzz do tempo vindouro que está vindo.
É certo que, mesmo nas redes mais distribuídas do que centralizadas, a
freqüência e outras características da interação, vão ensejando a
formação de laços internos de confiança, de sorte que nem todos são
iguais no que tange ao que correntemente se chama de liderança.
Algumas pessoas podem ter oportunidades de serem mais avaliadas pelas
outras e até de obterem uma adesão maior às suas iniciativas do que as
outras, em virtude da sua interação, quer dizer, do seu modo-de-interagir
e do seu, vá lá, histórico de interação (mas não de qualquer atribuição
diferencial que tenham recebido de fora ou de cima ou mesmo em virtude
da adoção de modos de regulação geradores de escassez que
recompensem algum esforço de participação voltado a "ganhar" as
demais pessoas, conquistando hegemonia ou maioria). Nas redes (mais
distribuídas do que centralizadas) não se quer regular a inimizade política
e sim deixar que a amizade política auto-regule o funcionamento do
sistema. Não há um corpo docente, uma burocracia coordenadora e, nem
mesmo, um time ou equipe de facilitadores (cuja formação seja baseada
em critérios de mérito ou conhecimento, antiguidade, popularidade ou
41
outra característica qualquer que não possa ser verificada e checada
intermitentemente na interação).
Esse é o motivo pelo qual nas redes sociais (mais distribuídas do que
centralizadas) não se deve (e enquanto elas forem mais distribuídas que
centralizadas, não se pode) montar uma patota dirigente, coordenadora,
facilitadora ou erigir uma igrejinha de mediadores. A construção de um
“nós” organizacional infenso à interação ou protegido contra a
imprevisibilidade da interação para manter sua identidade ou integridade
(e, supostamente, para assegurar – como guardiães – que a organização
não se desvie de seus propósitos, não viole seus princípios e não fuja do
seu escopo), ao gerar uma identidade compartilhada por alguns “mais
iguais” que outros, centraliza a rede, deixando-a à mercê do
participacionismo; quando não de coisa pior.
Sim, é difícil não tentar organizar a auto-organização. E é dificílimo não
tentar reunir alguns para, como se diz, “colocar um pouco de ordem na
casa”. Mas aqui vale aquela frase brilhante de Frank Herbert, uma pérola
garimpada em “O Messias de Duna” (1969): “Não reunir é a derradeira
ordenação” (23). Para quê re-unir o que já está unido = conectado
(interagindo)? E se é assim, por que reunir apenas alguns para organizar
mais, quando se pode ensejar a ordenação emergente de muitos mais?
A tentação de estabelecer uma fronteira opaca, o medo de se deixar
abrigar (ou de se proteger do “mundo externo”, do outro, em geral das
outras organizações) apenas por uma membrana (permeável aos fluxos e,
portanto, vulnerável à interação) assolou constantemente as (pessoas das)
42
organizações, mesmo aquelas que queriam transitar para um padrão de
rede distribuída.
Talvez isso tenha ocorrido, em parte, em virtude de uma confusão entre
interação e troca de conteúdo. Boa parte das pessoas que tratavam do
assunto, inclusive das que se dedicam a investigar ou experimentar redes
sociais, confundia interação com troca de informação e gestão de
conteúdo (sobretudo tomando por conteúdo conhecimento). Como
imaginavam, essas pessoas, – com certa razão – que o conhecimento é
cumulativo, queriam bolar uma, como se diz?, “arquitetura da
informação”, urdir schemas classificatórios, desenhar árvores para mapear
relações (que ainda não se efetivaram) e organizar os escaninhos para
depositar o conhecimento que ia sendo construído coletivamente. Na falta
de mecanismos de busca semântica, queriam “colocar as coisas nos
lugares certos” para facilitar a navegação dos demais. Mas ao fazerem
isso, animados pela boa intenção de organizar o (acesso ao) conhecimento
para os demais, acabavam erigindo uma escola (como ocorre, de certo
modo, com uma parte dos que adotam plataformas wikis e plataformas
ditas educacionais), quer dizer, uma burocracia do ensinamento,
inevitavelmente centralizada.
Tudo isso era assim até que começou a procura por mecanismos que
dessem conta do formigueiro e não das formigas: como se sabe, é o
formigueiro que se reproduz (como padrão), não as formigas. Por isso a
comparação com o formigueiro, que causa repugnância a alguns (que
alegam que as formigas não têm consciência e não podem fazer escolhas
racionais) não é despropositada. A pesquisadora Deborah Gordon (1999)
43
descobriu que o formigueiro é i-based, ou seja, que além de nele não
haver nada que se possa chamar de administração, a auto-organização é
feita a partir da freqüência e de outras características da interação das
formigas entre si e com o seu ecossistema e não de algum conteúdo que
elas tenham trocado entre si (nem mesmo se tal conteúdo fosse uma
substância química, como se supunha) (24).
44
Padrões, não conjuntos
Os fenômenos que ocorrem em uma rede não dependem das
características intrínsecas de seus nodos
QUEM QUER ENTENDER REDES deveria começar refletindo sobre a frase
do físico Marc Buchanan (2007), em O átomo social (25):
“Diamantes não brilham por que os átomos que os constituem
brilham, mas devido ao modo como estes átomos se agrupam em
um determinado padrão. O mais importante é freqüentemente o
padrão e não as partes, e isto também acontece com as pessoas”.
A idéia de que a fenomenologia de uma rede é função das características
de seus nodos (das suas idéias, conhecimentos, habilidades, valores ou
preferências) ainda faz parte de uma herança cultural não-fluzz difícil de
ser questionada. Dizer que a fenomenologia de uma rede é função da sua
topologia é um verdadeiro choque para essa cultura que encara as
sociedades humanas como coleções de indivíduos e não como sistema de
relações entre pessoas, como configurações de fluxos ou interações.
Sim, rede = interação. O comportamento coletivo não depende dos
propósitos dos indivíduos conectados (ou de suas outras características,
45
individualizáveis). Ele é função dos graus de distribuição e conectividade
(ou interatividade) da rede.
Mas por que demoramos tanto para perceber isso? Talvez porque,
enquanto olhávamos os nodos (as árvores), deixávamos de ver a rede (a
floresta, ou melhor, não propriamente o conjunto das árvores, mas as
relações que constituem o ecossistema sem o qual as árvores – nem
algumas poucas, nem muitas milhares – podem existir). Talvez porque
fomos induzidos a fazer a busca errada: enquanto procurávamos um
conteúdo não podíamos mesmo encontrar um padrão de interação. Talvez
porque, influenciados pela máquina econômica construída pelo
pensamento hobbesiano-darwiniano, enquanto tentávamos prever o
comportamento coletivo a partir das preferências individuais, escapavanos aquilo que exatamente faz do sistema algo mais do que a soma de
suas partes: o social. Fixávamo-nos em objetos capturáveis, não em
relações, não em fluxos. Fluzz, para nós, permanecia escondido.
Conjuntos de nodos são apenas conjuntos de nodos. Não são redes. A
representação estática chamada grafo, disseminada pela SNA (Análise de
Redes Sociais) não ajuda muito a compreensão da rede: pontos (vértices)
ligados por traços (arestas) passam uma imagem abaixo de sofrível
daquele emaranhado dinâmico de interações que constitui a essência do
que chamamos de rede, sempre fluindo e alterando sua configuração.
Ademais, os nodos não são propriamente pontos de partida nem de
chegada de mensagens, como se fossem estações ligadas por estradas por
onde algum objeto ou conteúdo vai transitar. Eles também são caminhos.
Aliás, nas redes sociais, os nodos não existem como tais (como pessoas)
46
sem os outros nodos a ele ligados, constituindo-se, portanto, cada um em
relação aos demais, como caminhos de constituição disso que chamamos
de ‘eu’ e de ‘outro’.
Assim, não é o conteúdo do que flui pelas suas conexões que pode
determinar o comportamento de uma rede. É o fluxo geral que perpassa
esse tecido ou campo, cujas singularidades chamamos de nodos, que
consubstancia o que chamamos de rede. Esse fluxo geral não tem nada a
ver com mensagens contidas em sinais emitidos ou recebidos: são
padrões, modos-de-interagir. Se há uma mensagem (um conceito mais
informacional do que comunicacional), esses padrões é que são a
mensagem.
47
Conhecimento é relação social
O conhecimento presente em uma rede não é um objeto, um conteúdo
que possa ser arquivado e gerenciado top down
A IDÉIA DE CAPTURAR OBJETOS para colocá-los na máquina, a idéia de
salvar (arquivar) configurações do passado, constituiu o caminho para a
construção de conhecimento nas sociedades pré-fluzz. As teorias do
conhecimento pressupostas por essa idéia podiam ser, na melhor das
hipóteses, construtivistas, mas não podiam ser conectivistas. Não é por
acaso que construtivismo gerava escolas (burocracias do ensinamento)
enquanto que conectivismo vai gerando inevitavelmente não-escolas
(redes de aprendizagem).
A idéia de construção do conhecimento – de depositar “tijolo por tijolo
num desenho lógico”, como diz a canção (26) – decorre de uma
epistemologia não-fluzz. Essa idéia, ao se aplicar, requer uma espécie de
congelamento de fluxo (ou de materialização do passado) para ir
combinando objetos, como em uma espécie de lego. Ela permitiu a ereção
de aberrações como os knowledge management systems, originalmente
pensados para abastecer de informações estratégicas o topo de
pirâmides. Era compatível, portanto, com estruturas centralizadas e não
com redes distribuídas.
48
Mas o conhecimento presente em uma rede mais distribuída do que
centralizada não pode ser gerido top down, simplesmente porque não há
um nodo ou cluster capaz de capturá-lo com antecedência, domesticá-lo
ou codificá-lo (transformando-o em ensino) para facilitar o acesso a ele
dos demais.
É um conhecimento-fluzz, quer dizer, é uma relação social, móvel e
sempre em mutação. Como no sistema imunológico dos mamíferos e de
outros animais, é um conhecimento que está distribuído por toda a rede.
Um nodo interagente conhece porquanto (e enquanto) está interagindo e
não porque foi alocado em uma posição para receber uma instrução de
outrem (escola). É um conhecimento novo a cada vez. Como naquele rio
heraclítico, ninguém pode aprendê-lo mais de uma vez.
É por isso que as plataformas hierárquicas de transmissão do
conhecimento foram estruturadas para avaliar e validar o conhecimento
ensinado e não o conhecimento aprendido. E é por isso que todas elas
exigem tribunais epistemológicos, corpos (docentes) de guardiães do
passado (que são sempre coaguladores: sacerdotes, professores,
doutores, mestres e outros titulados) encarregados de dizer quais
conhecimentos podem ou não transitar.
A chamada “arquitetura de informação” das plataformas digitais p-based
segue o mesmo caminho. Tudo se resume a abrir caixinhas para depositar
e salvar conteúdos, escaninhos para coagular, guardar e ordenar o
passado com o intuito declarado de facilitar a busca futura, quando, na
verdade, seu objetivo é outro: selecionar e pavimentar caminhos para o
49
futuro que sejam produzidos pela dependência da trajetória (ou pela
repetição de passado).
50
A chefia é contra a liderança
Hierarquia não é o mesmo que liderança
TODA HIERARQUIA SE ERIGE pela materialização e repetição de passado.
Na tradicionalidade, essa operação (de ereção de hierarquias) legitimavase pela unção ou delegação proveniente de alguma instância extrahumana (divina), que se transferia pelo “sangue” (ou pela genética: as
linhas sucessórias parentais, familiares, da nobreza: os herdeiros
carregavam o múnus originário, que podia ser delegado, em graus
subordinados, a quem a eles se submetesse). Era um objeto (como se os
superiores possuíssem um estoque de “células-tronco” para construir o
“corpo” hierárquico) (27). A própria palavra hierarquia (hieros + arché)
designava esse poder sagrado.
Na modernidade, tentou-se substituir tal legado legitimatório pelo
reconhecimento de determinadas características intrínsecas do sujeito
que lhe confeririam a capacidade de exercer poder sobre os outros: sua
vocação administrativa ou seu carisma, sua gravitatem ou sua liderança.
Essas “explicações” impediam a percepção de que hierarquia é sinônimo
de centralização. Olhavam sempre para o indivíduo que, em virtude de ter
sido escolhido (the chosen one) ou por força de suas qualidades inatas ou
51
adquiridas (pelo “sangue” ou no “berço”), tinha o dever ou o direito de
mandar nos outros (sim, em última instância era disso que se tratava), mas
não olhavam para a rede, para a configuração do emaranhado de
conexões em que o chefe ou líder se inseria.
A liderança considerada por essas justificativas não é aquela que emerge
espontaneamente na rede, quando alguém toma uma iniciativa que é
seguida por outros, em circunstâncias sempre temporárias, mas a
“liderança” que se quer permanente de alguém que, tendo liderado algum
dia, tenta congelar a configuração que permitiu essa eventualidade para
enxertá-la continuamente no presente de sorte a poder liderar para
sempre, em todas as circunstâncias. Isto é: monoliderança, na verdade o
contrário da liderança, a qual, como fenômeno emergente, é sempre
multiliderança (possibilidade, aberta a qualquer um, de liderar em
determinadas circunstâncias fortuitas).
A liderança é fluzz, ela flui como um rio. Os líderes que se sucedem,
aparecem, desaparecem e reaparecem como “remoinhos num rio de água
sempre a correr” (para usar a bela imagem de Wiener) (28). A
monoliderança – na verdade uma justificativa para a centralização e para
a chefia – é sempre uma tentativa de represar o curso.
Redes mais distribuídas do que centralizadas (caracterizadas pela
abundância de caminhos) são ambientes favoráveis à emergência da
multiliderança. A monoliderança – do líder providencial e permanente, a
prevalência do mesmo líder em todos os assuntos e atividades – constituise, porém, contra a liderança e só pode se constituir assim em estruturas
52
mais centralizadas do que distribuídas, ou seja, em estruturas onde foi
introduzida a escassez de caminhos.
53
Nenhuma hierarquia é natural
A escassez que gera hierarquia é aquela introduzida artificialmente pelo
modo de regulação
A HIPÓTESE DE QUE FOI A ESCASSEZ (natural, de recursos) que gerou a
hierarquia e que, assim, a hierarquia tenha brotado espontaneamente do
caos, foi tão sedutora para alguns quanto enganosa para todos. Até hoje
ainda há os que se põem a promover um deslizamento (para o natural) do
conceito (social) de hierarquia, com base na suposta evidência de que ela
é encontrada em toda parte – do mundo físico (e. g., sistemas
termodinâmicos) ao mundo biológico (e. g., sistemas vivos aninhados) – e
que isso seria uma prova de que a hierarquia é natural e, dessarte,
também naturalmente se manifestaria no mundo social.
Mas a escassez que gera hierarquia é introduzida artificialmente, sempre
pela supressão de caminhos. Não há uma escassez em si. O conceito é
relacional: escassez, quando há, é sempre em relação a algo ou alguém
que carece de determinados recursos em determinado ambiente. Ao fluir
com o curso, ao se deixar levar pela “vida nômade das coisas” (uma boa
definição de fluzz), tal escassez não se configura. A escassez só surge com
o represamento do rio.
54
Nos sistemas naturais não pode haver o conceito de escassez porque não
há um indivíduo que reclame uma necessidade contra o ecossistema na
medida em que cada parte do ecossistema se insere na lógica da
abundância que regula o sistema. Nos sistemas sociais (ou anti-sociais,
seria melhor dizer), a escassez é introduzida pelo modo de regulação de
conflitos. Toda vez que se regula conflitos de modo autocrático, gera-se
escassez que permite a ereção de estruturas hierárquicas. E toda vez que
se erige um sistema hierárquico pela eliminação de caminhos, geram-se
modos de regulação não-pluriárquicos que se mantêm pela reprodução da
escassez.
55
Poder é uma medida de não-rede
Centralização (hierarquização) não é o mesmo que clusterização
TAMBÉM ERA MUITO COMUM a confusão entre hierarquização (que é
uma centralização) e clusterização (ou aglomeramento provocado pela
dinâmica de uma rede). Isso dificultava a compreensão do fenômeno do
poder nas redes sociais. Desse ponto de vista, aliás, seria o exato
contrário: o poder não surge da clusterização e sim – juntamente com a
exclusão de nodos e a obstrução de fluxos – do desatalhamento
(supressão dos atalhos) entre clusters (aglomerados).
O poder (como poder de mandar alguém fazer alguma coisa contra sua
vontade, como, ao fim e ao cabo, se manifesta qualquer poder) é uma
medida de não-rede (em termos de rede distribuída); quer dizer, é uma
medida direta do grau de centralização (ou uma medida inversa do grau
de distribuição) de uma rede. Ele ocorre (ou sobrevém) não quando os
nodos se aglomeram em função da sua interação e sim, ao contrário,
quando impedimos que tal aglomeramento se dê livremente (em virtude
da dinâmica da interação), mas colocamos obstáculos, construímos
cancelas ou selecionamos caminhos por onde ela (a interação) deve
passar: sejam muros, cercas, paredes, escadas, portas e fechaduras, ou
56
firewalls. Todo poder nasce de um impedimento imposto à livre fluição.
Todo poder é uma introdução artificial (uma fabricação) de escassez de
caminhos. Todo poder é uma tentativa de evitar a abundância de
caminhos. Todo poder – necessariamente hierárquico – é uma reação à
distribuição (29).
A tendência nas redes sociais mais distribuídas do que centralizadas é que
os clusters não fiquem isolados, mas interligados, interagindo entre si.
Simplesmente porque eles acabarão, mais cedo ou mais tarde, fazendo
isso – desde que não se o impeça. Fundamentalmente, porque eles podem
fazer isso!
A clusterização em redes sociais tende a aumentar à medida que essas
redes vão aumentando seu grau de distribuição e conectividade (quer
dizer, de interatividade). Esse é um indicador da transição para a
sociedade em rede, na qual vão se alterando as configurações congeladas
pelas fortíssimas centralizações impostas pelo sistema de equilíbrio
competitivo entre menos de duas centenas de Estados-nações em um
mundo de quase 7 bilhões de habitantes. Em termos políticos (ou
geopolíticos), a clusterização sócio-territorial que conforma e dá
identidade a miríades de novas comunidades (de aprendizagem, de
projeto e de prática – clusters de convivência enfim) é uma expressão do
localismo cosmopolita que floresce à medida em que a globalização do
local encontra a localização do global. Isso está na origem dos Highly
Connected Words que emergem em uma época-fluzz.
57
Autorregulação é sem-administração
Em redes distribuídas não se pode diferenciar papéis ex ante à interação
A IDÉIA DE QUE QUALQUER ORGANIZAÇÃO exige diferenciação de papéis
pré-definíveis foi aceita como um axioma universal na administração. Em
alguns casos citavam-se exemplos retirados da biosfera para mostrar que
se trata de uma verdade evidente por si mesma (por exemplo,
freqüentemente ainda se dá o exemplo das formigas, que já nasceriam
com funções especializadas: forrageiras, operárias, soldados – conquanto
essa crença já tenha sido desmascarada pela ciência).
Não é por acaso que as teorias da administração sejam teorias de
comando-e-controle. A administração, qualquer administração, é sempre
uma administração da escassez. É uma espécie de economia política
aplicada. Só há necessidade de administrar um sistema se esse sistema foi
construído a partir da seleção de caminhos para normatizar o fluxo: por
aqui pode passar, por ali não pode; para chegar aqui tem que vir por ali,
para sair lá tem que passar por aqui. Ora, é mesmo impossível fazer isso
sem comando e controle.
O fluxo quer fluir. Fluirá por onde houver caminho. Para proibir a livre
fluição é preciso obstruir caminhos, derrubar pontes, fechar atalhos entre
58
clusters (nas organizações hierárquicas isso acontece inclusive pela
segregação espacial dos seus membros, alocados em andares diferentes
de um prédio fechado pela introdução de muros, cercas, cancelas, roletas,
elevadores programados, cartões magnéticos com permissões exclusivas,
que abrem algumas portas e outras não, ou pelas permissões
diferenciadas conferidas aos usuários para acessar sites, baixar
programas, enviar ou receber mensagens, interagir em plataformas etc.).
Tudo comando-e-controle.
Redes distribuídas são estruturas sem-administração, que se regulam por
emergência (quanto mais distribuídas o forem). Nas novas organizaçõesfluzz, mais distribuídas do que centralizadas, os papéis ou funções se
definem e redefinem continuamente a partir da interação. Uma pessoa
que se dedicava às relações institucionais de uma empresa passará a fazer
parte da concepção de seus produtos; outra, encarregada do
relacionamento com os clientes, será chamada a compor um think tank de
inovação. Mais do que isso, com a perfuração dos muros que separavam a
organização de grande parte dos seus stakeholders, consumidores
também contribuirão para o processo produtivo, acionistas se oferecerão
para compartilhar a gestão e as comunidades afetadas de alguma forma
pela atuação de uma empresa assumirão solidariamente riscos e
oportunidades associados ao empreendimento. E isso é apenas o começo.
Nessas circunstâncias não pode haver um departamento capaz de impor,
de antemão e de cima para baixo, os caminhos que devem ser seguidos
pelos fluxos que atravessam todos os demais departamentos de uma
organização.
Aliás,
antigos
departamentos
59
serão
substituídos,
crescentemente, por instâncias surgidas da clusterização. Múltiplas
lideranças se revezarão no netweaving de todos os processos. O velho
indivíduo, substituível peça da máquina (por outro indivíduo substituível),
vai sendo substituído pela pessoa, insubstituível porquanto única naquilo
que faz, do jeito que faz, enquanto nodo da rede em que interage.
60
Pessoas, não indivíduos
Não podem existir pessoas (seres humanos) sem redes sociais
FOI (E AINDA ESTÁ) MUITO DIFUNDIDA a idéia de que redes sociais são
formadas a partir de escolhas racionais feitas pelos indivíduos. Segundo
essa idéia as redes seriam voluntariamente construídas com propósitos
definidos e baseados nos interesses dos indivíduos. Quem pensava assim,
evidentemente, avaliava que podem existir seres humanos sem redes,
quer dizer, que primeiro existem os indivíduos (já plenamente humanos)
para, depois, se esses indivíduos resolverem se conectar, só então
surgirem as redes sociais.
Nos novos mundos-fluzz, entretanto, o conceito de indivíduo – uma
caracterização biológica ou uma abstração econômica e estatística – tende
a perder sentido para dar lugar à pessoa, que é, afinal, quem existe de
fato como ser humano concreto.
Mas pessoa já é rede. Ninguém nasce com tal condição, não basta ser um
indivíduo da espécie, em termos biológicos, para ser humano. Dizer que,
para os seres humanos, no princípio era a rede, significa dizer que é
necessário “nascer” (com-viver) em uma rede (social) para se tornar
humano. Aquele que é geneticamente humanizável só consuma tal
61
condição a partir do relacionamento com seres (que já foram)
humanizados.
Redes sociais não são redes de indivíduos de uma espécie biológica, nem
redes de outras entidades abstratas que possam ser identificadas
indistintamente, numeradas e somadas para qualquer efeito (como, por
exemplo, os habitantes, os consumidores, os contribuintes, os eleitores),
mas redes de pessoas. Não existem as redes dos pensionistas do sistema
previdenciário, dos mutuários do sistema habitacional ou dos torcedores
de determinado clube esportivo (a não ser quando interagem em torcidas
organizadas), assim como não existe a sociedade composta pelos que
estão na fila para comprar ingressos para um torneio. As redes (sociais)
não somam suas partes (individuais) porque elas não são propriamente
constituídas por essas partes, mas pelas relações que se efetivam, pela
configuração móvel das interações que se processam ou pelo emaranhado
que se trama a cada instante.
62
As redes sociais já são a mudança
As redes sociais distribuídas não são instrumentos para realizar a
mudança: elas já são a mudança
TAMBÉM ERA MUITO COMUM a idéia de que as redes são uma espécie de
instrumento para se fazer alguma coisa. Quando o assunto entrou na
moda, as pessoas acharam que estavam diante de uma nova forma de
organização recentemente descoberta e queriam logo usar as redes com
algum objetivo instrumental, ainda quando desejassem colocá-las a
serviço de uma causa que, a seu ver, não poderia ser mais nobre: a grande
transformação social.
Mas a emergência da concepção-fluzz de que, na sociedade, não há o que
transformar, é realmente surpreendente. Trata-se, para cada sociedade,
de ser o que é – ou seria, se não houvesse obstrução de fluxos, exclusão
de nodos ou desatalhamento de clusters.
Dizendo de outro modo: trata-se, para as redes sociais, de serem o que
podem ser. Uma rede social não pode ser nada mais do que uma rede
distribuída. Os caminhos que seguirá dependerão da sua dinâmica, dos
fenômenos particulares que nela ocorrerão a partir da livre interação.
Toda tentativa de predeterminar esses caminhos é, na verdade, uma
63
tentativa de impedir que a rede escolha seus caminhos. O que vai
acontecer depois vai acontecer depois e não pode ser determinado por
quem está antes.
Por isso se diz que as redes sociais distribuídas não são instrumentos para
realizar a mudança: elas já são a mudança.
Isso vai contra o modelo transformacional da mudança próprio das
estruturas de comando-e-controle que queriam levar as sociedades
humanas para algum futuro pré-concebido. Quando se pensava assim,
tudo virava instrumento para pré-determinar caminhos e isso, por si só, já
introduzia escassez de caminhos e centralização (hierarquia) bloqueando a
única mudança que poderia fazer a diferença (ao instalar a dinâmica da
inovação permanente): a mudança de hierarquia para rede.
64
Aranhas não geram estrelas-do-mar
É inútil erigir uma hierarquia para realizar a transição de uma
organização hierárquica para uma organização em rede
NO VELHO MUNDO FRACAMENTE CONECTADO dos milênios passados
erigia-se sempre uma hierarquia para realizar qualquer mudança social,
assim no que era chamado de ‘a sociedade’ como em qualquer
organização particular. Diante dos sinais de que a estrutura e a dinâmica
das sociedades estavam adquirindo, cada vez mais, as características de
uma rede, os chefes de organizações hierárquicas começaram a tentar
fazer reengenharias para se adequar à mudança. O primeiro impulso foi o
de controlar as redes sociais (em geral confundidas com as mídias sociais)
para usá-las de acordo com seus velhos propósitos: para ter mais
influência, para ter mais votos, para vender mais, para extrair mais
sobrevalor dos funcionários, para derrotar mais facilmente a concorrência
ou os inimigos. Isso, entretanto, não aumentou a capacidade de
adaptação das organizações hierárquicas porque o problema não estava
em descobrir uma nova combinação dos seus recursos materiais e
organizacionais, humanos e sociais e sim na sua própria natureza de
organização hierárquica.
65
Novos
departamentos
hierárquicos
encarregados
de
adequar
a
organização às novas possibilidades que iam se tornando disponíveis em
uma sociedade em rede (nuvens de computação, plataformas interativas,
trabalho remoto, marketing viral, sistemas de co-working e co-creation
voltados à inovação, peer production, crowdsourcing, crowdfunding,
crowdbuying, etc) não foram capazes de atingir o coração do problema,
que é o seguinte: em uma sociedade em rede as organizações também
devem ser redes. Fica faltando sempre um... crowdweaving. Porque o
problema é: como fazer a transição de pirâmide (mainframe) para rede
(network)?
Mas é inútil erigir uma hierarquia para realizar a transição de uma
organização piramidal para uma organização em rede. Aranhas não
podem gerar estrelas-do-mar, para usar as boas metáforas de Brafman e
Beckstrom (2006) (30). Deveria ser óbvio, tautológico ou quase. Se
queremos redes devemos articular redes, não erigir hierarquias. Semente
de rede é rede. Desistam os que pretendem fazer isso: uma hierarquia não
pode gerar uma rede.
A manutenção das hierarquias não ocorre em função de qualquer
discordância consciente das redes por parte dos agentes de um sistema
hierárquico. Uma vez erigidas, as hierarquias tendem a se manter e
reproduzir por força de circularidades inerentes às suas interações
recorrentes. É uma espécie de mecanismo de segurança do sistema contra
sua dissolução. É uma maneira de se proteger do caos representado pela
ausência de ordem top down. É uma forma de ficar do “lado de fora” do
66
abismo, posto que cair no abismo é o maior temor de toda estrutura mais
centralizada do que distribuída.
67
Epílogo
Ficamos do “lado de fora” do abismo quando nos protegemos da
interação
CAIR NO ABISMO é entrar naquela região desconhecida onde novos
padrões são continuamente gerados. É ser colhido pela corrente
alucinante na qual fluzz vai quebrando as circularidades inerentes aos
padrões conversacionais ou interativos que se prorrogam (e que só se
prorrogam enquanto tais circularidades se mantêm).
Quando nos abrimos à interação com o outro-imprevisível despencamos
no abismo. Quando erigimos fronteiras opacas, que nos separam dos
outros, evitamos a queda e ficamos do “lado de fora” do abismo. Nos
“salvamos” protegendo-nos da interação.
Aí, é claro, reproduzimos o velho mundo. Sim, o velho mundo é um
conjunto de arquivos salvados: os mesmos programas são postos a rodar,
continuamente. Enquanto protegidos da livre interação, esses programas
não se modificam.
Todas as tentativas políticas e espirituais de mudar o mundo e reformar o
ser humano basearam-se na instauração de uma nova ordem, seja a
ordem “descoberta” pela observação de supostas leis da história, seja a
68
ordem revelada por alguma instância extra-humana. Todas, de certo
modo, demonizavam o caos e tinham horror à queda no abismo. Todas
queriam nos salvar mantendo-nos seguros no “lado de fora” do abismo.
Ofereciam-nos, como compensação pela aventura perdida, a segurança de
regras que disciplinam a interação.
Líderes, condutores, reformadores, sempre apelaram para nossa
consciência, acreditando que a mudança se daria quando alcançássemos
determinada visão, vivêssemos uma experiência extraordinária ou nos
convencêssemos individual e coletivamente de certas realidades. Esses
salvadores, via de regra ligados a estruturas hierárquicas (fossem partidos,
corporações, igrejas, escolas de pensamento, ordens, congregações,
seitas, sociedades ou fraternidades) queriam nos inserir nessas estruturas
centralizadas, sob a justificativa de que era necessário reunir condições
favoráveis, recursos de monta, grandes contingentes de filiados, eleitores,
seguidores ou adeptos, para poder implementar a mudança que
anunciavam.
Entretanto, os agentes de um sistema hierárquico, pensem ou acreditem
no que quiserem, são sempre agentes da manutenção e reprodução do
sistema. Não é mudando (ou “fazendo”) suas cabeças, incutindo novos
valores, disseminando novas crenças, que vamos conseguir realizar a
transição do padrão centralizado para o padrão de organização em rede
(mais distribuído do que centralizado). Todo proselitismo é inútil nessa
matéria. Não se trata de convencimento, nem mesmo de consciência. Eles
não podem mudar seu comportamento enquanto não mudarem o modo
como se relacionam com os demais agentes. E esse modo de se relacionar
69
não pode mudar enquanto permanecerem como válidas apenas certas
configurações de caminhos pelos quais a organização hierárquica se
constitui disciplinando a interação.
Para libertar a interação desses constrangimentos é necessário quebrar as
rotinas, violar as fronteiras e pular as cancelas internas e externas, tomar
iniciativas que não foram planejadas pelos chefes ou inspiradas pelos
líderes, esquivar-se do seu comando, livrar-se de sua influência,
colocando-se fora da possibilidade de controle; enfim... é necessário
desobedecer! (31).
Obediência é sempre manutenção de uma ordem. Desobediência é
sempre introdução de des-ordem. Em uma organização hierárquica
desobediência é, simplesmente, fazer redes (mais distribuídas do que
centralizadas). Sim, o único caminho para a rede é a rede.
É paradoxal porque, como redes são múltiplos caminhos, esse único
caminho já são múltiplos caminhos; ou seja, qualquer rede distribuída é
caminho.
Enquanto esperamos uma grande mudança no mundo a partir da
mudança de consciência de seus agentes, o mundo único persiste.
Persistia, enquanto se conseguia impedir o surgimento de outros mundos
em rede. Agora, porém, isso já não é mais possível.
70
Notas e referências
(1) SCHOLEM, Gershom (1941). As grandes correntes da mística judaica. São
Paulo: Perspectiva, 1972.
(*) A palavra ‘fluzz’ nasceu de uma conversa informal do autor, no início de
2010, com Marcelo Estraviz, sobre o Buzz do Google. O autor observava que
Buzz não captava adequadamente o fluxo da conversação, argumentando que
era necessário criar outro tipo de plataforma (i-based e não p-based, quer dizer,
baseada em interação, não em participação). Marcelo Estraviz respondeu com a
interjeição ‘fluzz’, na ocasião mais como uma brincadeira, para tentar traduzir a
idéia de Buzz+fluxo. Ulteriormente a idéia foi desenvolvida no livro-mãe desta
série: Fluzz: vida humana e convivência social nos novos mundos altamente
conectados do terceiro milênio (2011) e passou a não ter muito a ver com o
programa mal-sucedido do Google. Fluzz (o fluxo interativo) é um conceito
complexo, sintético, que talvez possa ser captado pela seguinte passagem do
livro citado: “Tudo que flui é fluzz. Tudo que fluzz flui. Fluzz é o fluxo, que não
pode ser aprisionado por qualquer mainframe. Porque fluzz é do metabolismo
da rede. Ah!, sim, redes são fluições. Fluzz evoca o curso constante que não se
expressa e que não pode ser sondado, nem sequer pronunciado do “lado de
fora” do abismo: onde habitamos. No “lado de dentro” do abismo não há
espaço nem tempo, ou melhor, há apenas o espaço-tempo dos fluxos. É de lá
que aquilo (aquele) que flui sem cessar faz brotar todos os mundos... Em outras
palavras, não existe uma mesma realidade para todos: são muitos os mundos.
71
Tudo depende das fluições em que cada um se move, dos emaranhamentos que
se tramam, das configurações de interação que se constelam e se desfazem,
intermitentemente”. Cf. FRANCO, Augusto (2011). Fluzz: vida humana e
convivência social nos novos mundos altamente conectados do terceiro milênio.
São Paulo: Escola-de-Redes, 2011. Versão digital preliminar sem revisão
disponível em:
<http://www.slideshare.net/augustodefranco/fluzz-book-ebook>
(2) Cf. Histórias da Tradição Sufi. Rio de Janeiro: Edições Dervish, 1993.
O HOMEM CUJA HISTÓRIA ERA INEXPLICÁVEL
Era uma vez um homem chamado Mojud. Ele vivia numa cidade onde
havia conseguido um emprego como pequeno funcionário público, e tudo
levava a crer que terminaria seus dias como Inspetor de Pesos e Medidas.
Um dia, quando estava caminhando pelos jardins de uma antiga
construção próxima à sua casa, Khidr, o misterioso guia dos sufis,
apareceu para ele, vestido em um verde luminoso. Então Khidr disse:
- Homem de brilhantes perspectivas! Deixe seu trabalho e se encontre
comigo na margem do rio dentro de três dias.
E assim dizendo, desapareceu.
Excitado, Mojud procurou seu chefe e lhe disse que ia partir. Todos na
cidade logo souberam desse fato e comentaram:
- Pobre Mojud. Deve ter ficado louco.
Mas como havia muitos candidatos a seu posto logo se esqueceram dele.
72
No dia marcado Mojud encontrou-se com Khidr, que disse:
- Rasgue suas roupas e se jogue no rio. Talvez alguém o salve.
Mojud obedeceu, embora se perguntasse se não estaria louco.
Como ele sabia nadar, não se afogou, mas ficou boiando à deriva por um
longo trecho antes que um pescador o recolhesse em seu bote, dizendo:
- Homem insensato! A corrente aqui é forte. Que está tentando fazer?
- Na realidade eu não sei - respondeu Mojud.
- Você está louco - disse o pescador. - Mas o levarei à minha cabana de
junco próximo ao rio e veremos o que se pode fazer por você.
Quando o pescador descobriu que Mojud era bem instruído, passou a
aprender com ele a ler e a escrever. Em troca Mojud recebeu comida e
ajudou o pescador em seu trabalho.
Alguns meses depois Khidr reapareceu, desta vez junto à cama de Mojud,
e disse:
- Levante-se e deixe o pescador. Será provido do necessário.
Vestido como pescador, Mojud imediatamente deixou a cabana e
perambulou sem rumo até encontrar uma estrada. Ao romper da aurora
viu um granjeiro montado num burro.
- Procura trabalho? - perguntou o granjeiro. - Estou precisando de um
homem que me ajude a trazer algumas compras.
73
Mojud o acompanhou. Trabalhou para o granjeiro durante quase dois
anos, quando aprendeu muito sobre agricultura, mas pouco sobre outras
coisas.
Uma tarde, quando estava ensacando lã, Khidr fez nova aparição e disse:
- Deixe esse trabalho, dirija-se à cidade de Mosul e empregue as suas
economias para tornar-se mercador de peles.
Mojud obedeceu.
Em Mosul tornou-se conhecido como mercador de peles, sem voltar a ver
Khidr durante os três anos em que exerceu seu novo ofício. Tinha reunido
uma considerável quantia e estava pensando em comprar uma casa
quando Khidr lhe apareceu e disse:
- Dê-me seu dinheiro, afaste-se desta cidade rumo à distante Samarkanda
e lá passe a trabalhar para um merceeiro.
Foi o que Mojud fez.
Logo começou a demonstrar sinais incontestáveis de iluminação. Curava
os enfermos e servia a seu próximo tanto no armazém como nas horas de
lazer. Seu conhecimento dos mistérios da vida se tornou cada vez mais
profundo.
Sacerdotes, filósofos e outros o visitavam e indagavam:
- Com quem você estudou?
- É difícil dizer - respondia Mojud.
Seus discípulos perguntavam:
74
- Como iniciou sua carreira?
- Como um pequeno funcionário público - respondia.
- E você deixou seu emprego para dedicar-se à automortificação?
- Não. Simplesmente o deixei.
Eles não podiam compreendê-lo.
Pessoas o procuravam para escrever a história de sua vida.
- O que você foi, em sua vida? - perguntavam.
- Eu me atirei num rio, me tornei pescador e, no meio de uma noite,
abandonei uma cabana de junco. Depois disso me converti em ajudante
de um granjeiro. Enquanto estava ensacando lã, mudei de idéia e fui para
Mosul, onde me tornei vendedor de peles. Lá economizei algum dinheiro,
mas o dei. Caminhei para Samarkanda, onde trabalhei para um
merceeiro. E aqui estou agora.
- Mas esse comportamento inexplicável não esclarece de modo algum
seus estranhos dons e maravilhosos exemplos - diziam seus biógrafos.
- Assim é - dizia Mojud.
Então os biógrafos teceram uma história maravilhosa e excitante em
torno da figura de Mojud, porque todos os santos devem ter suas
histórias, e a história deve estar de acordo com a curiosidade do ouvinte,
não com as realidades da vida.
75
E a ninguém é permitido falar de Khidr diretamente. É por isso que esta
história não é verídica. É a representação de uma vida. A vida real de um
dos maiores santos sufis.
(3) GOETHE, Johann Wolfgang von (1811). Memórias: Poesia e Verdade. Brasília:
Hucitec, 1986.
(4) BANDEIRA, Manoel (1948). O rio (Belo Belo) in Bandeira: Antologia Poética.
São Paulo: José Olympio, 1954.
(5) MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco (1984). A Árvore do
Conhecimento. Campinas: Psy II, 1995.
(6) GOETHE, Johann Wolfgang von (1811): Op. cit.
(7) BARAN, Paul (1964). “On distributed communications: I. Introduction to
distributed communications networks” (Memorandum RM-3420-PR August
1964). Santa Monica: The Rand Corporation, 1964.
(8) ARENDT, Hannah (1958). A condição humana. Rio de Janeiro: Forense, 2001.
(9) ARENDT, Hannah (1959). “A questão da guerra” in O que é política?
(Fragmentos das “Obras Póstumas” (1992), compilados por Ursula Ludz). Rio de
Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
(10) BEY, Hakim (Peter Lamborn Wilson) (1984-1990). TAZ. São Paulo: Coletivo
Sabotagem: Contra-Cultura, s/d.
(11) MATURANA, Humberto (1993). La democracia es uma obra de arte. Bogotá:
Cooperativa Editorial Magistério, 1993.
76
(12) McLuhan em uma palestra pública – intitulada “Viver à velocidade da luz” –
em 25 de fevereiro de 1974, na Universidade do Sul da Flórida, em Tampa,
explicando o que entendia por seu famoso aforismo “o meio é a mensagem”:
“Significa um ambiente de serviços criado por uma inovação, e o ambiente de
serviços é o que muda as pessoas. É o ambiente que muda as pessoas, e não a
tecnologia. (Mc Luhan por McLuhan, de David Staines e Stephanie McLuhan
(2003). São Paulo: Ediouro, 2005. Título original: Understanding me: lectures
and interviews. <http://trick.ly/4ra>
(13) JACOBS, Jane (1961). Morte e vida das grandes cidades. São Paulo: Martins
Fontes, 2000.
(14) COLEMAN, James (1988). “Social Capital in the creation of Human Capital”,
American Journal of Sociology, Supplement 94, 1998.
(15) Vf. Swarming civil espanhol in UGARTE, David (2004). 11M: Redes para
ganar una guerra. Barcelona: Icaria, 2006.
(16) Cf. FRANCO, Augusto (2009). Redes são ambientes de interação, não de
participação. Slideshare [4.425 views em 22/01/2011]
<http://www.slideshare.net/augustodefranco/redes-so-ambientes-de-interaono-de-participao>
(17) Cf. FRANCO, Augusto (2009). A lógica da abundância. Slideshare [2.171
views em 22/01/2011]
<http://www.slideshare.net/augustodefranco/a-lgica-da-abundncia>
(18) Cf. WIENER, Norbert (1951). Cibernética e sociedade: o uso humano de
seres humanos. São Paulo: Cultrix, 1993.
77
(19) MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco (1984): Op. cit.
(20) GORDON, Deborah (1999). Formigas em ação: como se organiza uma
sociedade de insetos. Rio de Janeiro: Zahar, 2002.
(21) GLADWELL, Malcolm (2008). Fora de série (Outliers). Rio de Janeiro:
Sextante, 2008.
(22) Cf. UGARTE, David (2007). O poder das redes. Porto Alegre: EdiPUCRS,
2008.
(23) HERBERT, Frank (1969). O Messias de Duna. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
1985.
(24) GORDON, Deborah (1999): Op. cit.
(25) BUCHANAN, Marc (2007). O átomo social. São Paulo: Leopardo, 2010.
(26) BUARQUE, Chico (1971). “Construção” in Construção (Álbum LP).
Phonogram-Philips, 1971.
(27) Cf. Os ‘me’ in Nota (6) ao Capítulo 8 (infra).
(28) WIENER, Norbert (1950): Op. cit.
(29) Cf. FRANCO, Augusto (2009). O poder nas redes sociais. Slideshare [1.890
views em 22/01/2011]
<http://www.slideshare.net/augustodefranco/o-poder-nas-redes-sociais-2aversao>
78
(30) BRAFMAN, Ori e BECKSTROM, Rod (2006): Quem está no comando? A
estratégia da estrela-do-mar e da aranha: o poder das organizações sem líderes.
Rio de Janeiro: Elsevier-Campus, 2007.
(31) FRANCO, Augusto (2010): Desobedeça. Slideshare [5.157 views em
22/01/2011]
<http://www.slideshare.net/augustodefranco/desobedea>
79
80
Os novos mundos altamente
c o n e c t a d o s do t er ce ir o mil ên io
81
82
Os novos mundos altamente
c o n e c t a d o s d o t e rc ei r o m i l ên i o
83
84
Os novos mundos altamente
c o n e c t a d o s d o t e rc ei r o m i l ên i o
85
HIGHLY CONNECTED WORLDS
Augusto de Franco, 2012.
Versão Beta, sem revisão.
A versão digital desta obra foi entregue ao Domínio Público, editada
com o selo Escola-de-Redes por decisão unilateral do autor.
Domínio Público, neste caso, significa que não há, em relação a versão digital desta
obra, nenhum direito reservado e protegido, a não ser o direito moral de o autor ser
reconhecido pela sua criação. É permitida a sua reprodução total ou parcial, por
quaisquer meios, sem autorização prévia. Assim, a versão digital desta obra pode ser –
na sua forma original ou modificada – copiada, impressa, editada, publicada e
distribuída com fins lucrativos (vendida) ou sem fins lucrativos. Só não pode ser
omitida a autoria da versão original.
FRANCO, Augusto de
HIGHLY CONNECTED WORLDS / Augusto de Franco. – São Paulo: 2012.
72 p. A4 – (Escola de Redes; 8)
1. Redes sociais. 2. Organizações. 3. Escola de Redes. I. Título.
Escola-de-Redes é uma rede de pessoas dedicadas à investigação sobre redes sociais e
à criação e transferência de tecnologias de netweaving.
http://escoladeredes.net
86
Sumário
Introdução | 9
Inumeráveis interworlds | 11
Highly Connected Worlds | 13
Interworlds | 17
Pessoa já é rede | 23
Gholas sociais | 27
Pessoas são portas | 31
Anisotropias no campo social | 35
Deformando a rede-mãe | 38
Perturbações no campo social | 45
Destruidores de mundos | 49
Hifas por toda parte | 54
A perfuração dos muros | 57
87
A construção de “membranas sociais” | 60
Notas e referências | 65
88
Introdução
E naquele instante ele viu o planeta inteiro: cada vila, cada cidade,
cada metrópole, os lugares desertos e os lugares plantados.
Todas as formas que se chocavam em sua visão traziam
relacionamentos específicos de elementos interiores e exteriores.
Ele via as estruturas da sociedade imperial refletidas
nas estruturas físicas de seus planetas e de suas comunidades.
Como um gigantesco desdobramento dentro dele,
ele via nessa revelação o que ela devia ser:
uma janela para as partes invisíveis da sociedade.
Percebendo isso, notou que todo sistema devia possuir tal janela.
Mesmo o sistema representado por ele mesmo e o universo.
Começou a perscrutar as janelas, como um voyeur cósmico.
Frank Herbert em Os filhos de Duna (1976)
MUITOS MUNDOS, ISSO MESMO. Não existe um mundo que se possa
dizer o mundo, a não ser por efeito de hierarquização.
Pensar e falar do mundo é tentar impingir um só mundo. Pois os mundos
são muitos. Um só mundo é uma invenção do broadcasting. Broadcasting
89
– um para muitos – é, obviamente, centralização, quer dizer, hierarquia.
Tirem as TVs e as rádios, os jornais e revistas, as agências de notícias,
talvez o cinema e não sobrará mais um só mundo. Sem o broadcasting já
teremos múltiplos mundos: cada qual configurado pelas nossas conexões.
Com a internet esses mundos se multiplicam velozmente, mas não por
difusão e sim por interconexão. Desse ponto de vista, interconnected
networks (internet) é, na verdade, interconnected worlds. E fluzz é o vento
que varre esses inumeráveis interworlds (*).
No mundo hierárquico, não há interface para fluzz. Mas quando fluzz for
do regime dos múltiplos mundos interconectados, esses mundos serão os
novos Highly Connected Worlds do terceiro milênio (**).
90
Inumeráveis interworlds
Não havendo um mundo isolado dos demais, o tamanho do mundo de
cada um será função do “vento” (fluzz) que varre seus interworlds
PENSE EM UM MUNDO SEM TV E RÁDIO, sem jornais e revistas, sem
agências de notícias, sem editoras e distribuidoras de livros de domínio
privado e sem cinema. Não, não estamos propondo uma volta à Idade
Média. Teremos telefone, Internet, redes P2P, redes Mesh e qualquer
mídia (sobretudo interativa) não baseada no padrão um-para-muitos
(incluído spaming). Neste caso não haverá mais um (mesmo) mundo para
todos. Sem o broadcasting esvai-se a ilusão de um mesmo mundo para
todos em termos sociais. Ficará claro que cada um tem o seu (próprio)
mundo (em termos sociais). Mas ninguém estará aprisionado no seu
mundo, pois poderá se conectar com outros mundos (os mundos das
outras pessoas). Teremos uma rede de mundos: muitos mundos
interconectados. Quanto maior a interatividade de uma rede de mundos,
mais-fluzz ele – o mundo social configurado por essa rede – será.
Mas... atenção! Quanto mais-fluzz for um mundo, menor (não em termos
geográficos ou populacionais e sim em termos sociais) ele será. Mundos
grandes, nesse sentido, quer dizer, com altos graus de separação, são
mundos menos-fluzz. A interatividade reduz o tamanho do mundo e isso
91
não é uma função do número de seus elementos (pessoas e aglomerados
de pessoas) e sim dos seus graus de distribuição e conectividade.
Onde fluzz está mais “ativo”, os mundos se contraem. Há um
amassamento. Small-world networks são efeitos de crunching (um
neologismo cunhado a partir da palavra crunch).
Não havendo um mundo isolado dos demais, o tamanho do mundo de
cada um será função do “vento” (fluzz) que varre seus interworlds. Os
interworlds serão inumeráveis; portanto, a rigor, o mundo de cada um é,
potencialmente, uma série de inumeráveis mundos em interação. Sim,
tudo depende da interatividade. O que significa dizer que não depende da
capacidade ou do esforço de cada um de se fazer ver por muitos. Assim,
nos novos Highly Connected Worlds, gente famosa (poderosa, rica, super
certificada ou titulada, admirada por qualquer outra qualidade intrínseca
massivamente reconhecida ou atribuída externamente à interação), tende
a não ser mais tão relevante. Com isso vai também por água abaixo essa
desastrosa idéia de sucesso, que predominou nos séculos passados,
baseada na capacidade de alguém de se destacar dos demais.
Impelido por fluzz, ninguém se deixará desvalorizar facilmente no circo
global montado para selecionar (e apresentar apenas) algumas atrações e
para polarizar sobre elas a atenção dos demais. Cada qual pode ser a
atração no seu próprio mundo e nos mundos conectados a esse mundo.
Uma aldeia global montada para subordinar os vários mundos a apenas
alguns, dando a impressão de que só estes últimos existem, está com os
dias contados. Teremos inumeráveis aldeias globais.
92
Highly Connected Worlds
Seu mundo-fluzz é sua timeline
O ESTILHAÇAMENTO DO MUNDO ÚNICO é uma mudança de época jamais
presenciada pelas chamadas civilizações (patriarcais, guerreiras, quer
dizer, hierárquicas). Os padrões de vida e convivência social estão
mudando. Isso significa que você também está mudando. Porque estão
mudando seus relacionamentos recorrentes: sim, seu mundo-fluzz é sua
timeline. Não, por certo, a timeline do Twitter, mas aquela que rola no
espaço-tempo dos fluxos e que não pode ser captada por quaisquer das
ferramentas digitais p-based disponíveis.
Essa mudança é a rede. À medida que aumenta a interatividade da rede
na qual você está imerso, fenômenos surpreendentes começam a
acontecer. Com a queda brusca dos graus de separação, chegará
rapidamente o dia em que você chamará um taxi em uma cidade de dez
milhões de habitantes e o motorista dirá: “O senhor não é o Steven
Strogatz, que investiga redes sociais e que descobriu que o mundo está
ficando pequeno mais rapidamente do que imaginávamos?”.
Isso, é claro, se você for de fato o Steven Strogatz. Mas, de certo modo, se
você é o motorista que se relaciona (ou que se relaciona com quem se
93
relaciona, ou que se relaciona com quem se relaciona com quem se
relaciona) com Steven Strogatz, sobretudo se ele (ou quem se relaciona
com ele) está na sua timeline e você (ou quem se relaciona com você) na
dele, você será um pouco Steven Strogatz (na medida inversa do seu grau
de separação dele): eis o ponto! Tal mudança vai muito além do que
imaginávamos porque você está fazendo parte de um organismo capaz de
inteligência e, quem sabe, de outros atributos ou qualidades que sequer
conseguimos imaginar.
Os Highly Connected Worlds tendem a ser organismos humanos coletivos.
Atenção: superorganismos humanos, não organismos super-humanos!
Eles são os campos para o nascimento do ‘indivíduo social’. Steven
Strogatz fará parte de você e você fará parte dele porque ambos farão
parte de um mesmo organismo, não em termos metafóricos, como
quando usávamos a palavra ‘organismo’ para designar o que
imaginávamos que fosse ‘a sociedade’. Não. Trata-se de um organismo
mesmo. E humano.
O indivíduo social está nascendo agora. Mas ele já estava presente, como
prefiguração, desde o início, quando se constituíram os primeiros seres
humanos. Para lembrar a bela Canción Tonta de García Lorca (1924), nós,
os humanos, só o éramos enquanto estávamos “bordados en la
almohada” da rede-mãe (1).
O indivíduo-social não pôde se consumar como humanidade enquanto
algo estava impedindo: a escassez de conexões, uma escassez
artificialmente introduzida por modos de regulação não-pluriárquicos.
94
Fluzz não podia passar. Mas fluzz é empowerfulness. Se fluzz não pode
soprar o corpo não se vivifica.
Essa mudança, todavia, é diferente – e única – em cada mundo. Não, não
é sempre a mesma coisa. Depende de “onde” (ou como) o fluxo (o)corre.
Manoel de Barros (1993) inventou “que um rio que flui entre dois jacintos
carrega mais ternura que um rio que flui entre dois lagartos” (2). Pois é.
No limite, você fará seu mundo. Quer dizer, você (ou você e sua timeline –
o que tende a ser a mesma coisa) será o mundo e os mundos serão tantos
quanto as identidades coletivas que forem usinadas por fluzz.
Isso significa que os Highly Connected Worlds tendem a ser inumeráveis,
assim como serão inumeráveis os interworlds, miríades de interfaces
conectando miríades de mundos e “explodindo como uma ramada de
neurônios”, para lembrar um artigo seminal de Pierre Lèvy (1998) (3).
Em termos tecnológico-sociais, o grande desafio hoje, ao contrário do que
reza a metafísica que esse Mark Zuckerberg – o chefe do Facebook – quer
nos empulhar – para torná-la, a sua plataforma proprietária única, a
própria rede e não mais uma ferramenta –, é construir os inumeráveis
interworlds que serão as novas internets.
O Facebook tem 800 milhões de usuários? É ruim. Seria melhor ter 800 mil
plataformas com mil usuários cada uma, conversando entre si... Tudo que
não precisamos agora é reeditar a ilusão hierárquica de um mundo único.
Uma sociedade em rede é uma configuração de miríades de Highly
Connected Worlds interagentes. Essa é a única mudança verdadeiramente
95
sustentável: tudo que é sustentável tem o padrão de rede porque rede é
redundância de processos e abundância (diversidade) de caminhos.
A mudança-que-é-a-rede é fractal, não unitária. A mudança não é a
emergência de muitos mundos locais (que, de resto, sempre existiram),
mas os múltiplos caminhos (que não puderam existir nas civilizações
hierárquicas) entre o local e o global. E ela não se consumará sem essas
“zonas de transição” que são interworlds.
96
Interworlds
A nova internet – interconnected networks – são os incontáveis
interconnected worlds
COMEÇA ASSIM: NÃO UMA INTERNET: miríades de internets. Bem, agora
já está melhorando. Mas, como? Não estamos correndo o risco de perder
todas as referências – e, com isso, o sentido – com esse estilhaçamento?
A preocupação com a fragmentação é uma herança típica de um mundo
pouco-fluzz. A totalidade não está dada, tem que ser consumada. E serão
sempre totalidades, no plural. Eins und Alles.
Que se dane se você não terá mais uma grande narrativa, um esquema
explicativo geral. Não havendo um mundo (único), para que precisamos
disso? Por certo, você fica incomodado com a fragmentação desses
inumeráveis mundos que se fazem e liquefazem. Mas esse seu mal-estar
baumaniano (de Zygmunt Bauman) é pura falta de Pó de Flu (aquele “Floo
Powder” inventado por Ignatia Wildsmith, da série Harry Potter de J. K.
Rowling, usado para conexão à Rede do Flu); ou seja, é falta de
interworlds. Trata-se de referenciar o bem-estar na (fluição da) relação,
não na (solidez da) coisa.
97
Ainda existem vários obstáculos à uma comunicação, por assim dizer,
“isotropicamente distribuída” (capaz de manter as mesmas propriedades
em todas as direções): a centralização da rede em servidores, provedores,
roteadores, cabos, satélites, torres, mainframes transceptores de ondas
eletromagnéticas, geradores de energia, resfriadores, protocolos de
reconhecimento, trânsito e integração de mensagens; a variedade de
línguas e a falta de tradutores-transdutores universais móveis que operem
em tempo real; a falta de programas de busca inteligente e de criação de
ambientes favoráveis à emergência de conteúdo novo por combinação
não-humana (polinização mútua) de mensagens; a separação entre os
dispositivos tecnológicos e o corpo humano; e a insuficiente interação
entre pessoas e não-pessoas (desde a comunicação com outros seres
sencientes ou coletivamente inteligentes, animados e inanimados, até a
parceria simbiótica com uma variedade de seres vivos).
Para começar: fluzz é obstruído pela centralização das comunicações (pela
difusão centralizada um-para-muitos chamada broadcasting), mas
também pela Internet descentralizada. O grande desafio hoje é construir
os interworlds que são as novas internets. Trata-se de um desafio ao
mesmo tempo social e tecnológico.
Rolou por décadas uma discussão fora de lugar sobre as ameaças da
tecnologia. Muitas pessoas tinham medo de que a tecnologia fosse nos
dominar, nos afastar das outras pessoas, prejudicar nossa saúde física ou
mental ou, até mesmo, inviabilizar a vida humana no planeta.
98
Mas, em termos sociais, não há nenhum problema com a tecnologia. O
problema é com a tecnologia que introduz artificialmente escassez
centralizando a rede social e ensejando o controle.
Por certo, os sistemas de dominação não teriam podido se manter sem o
controle dos insumos básicos: a terra, a água, os alimentos e as fontes de
energia. Mas a escassez foi introduzida por um tipo determinado de
tecnologia urbana, hidráulica e agrícola: sem essa escassez (programada,
em certa medida) de recursos sobrevivenciais, esses sistemas de
dominação não teriam podido se reproduzir.
Assim, durante milênios fomos submetidos a tecnologias que viabilizavam
o controle. Por exemplo, o modelo hidráulico redistribuidor de água em
canais de irrigação, construídos e controlados pela tecnologia faraônica,
criava o perigo ao adensar povoamentos em locais de risco, em uma
proporção que ia muito além daquela exercida pela natural atração das
terras mais férteis. O objetivo era o controle. Se o povo não vivesse sob a
ameaça (do perigo), como poderia ser recompensado pela sua
aquiescência, sendo salvo do perigo? E como poderia ser castigado por
sua desobediência à ordem, sendo abandonado ao perigo? (4)
Agora precisamos de tecnologia para viabilizar e acelerar a distribuição da
rede social. Quanto menor a possibilidade de comando-e-controle, maisfluzz será essa tecnologia. Isso vale para tudo: energia e matéria, átomos e
bits. E vale também para a comunicação.
Assim como fluzz é obstruído pela centralização das comunicações e pela
Internet descentralizada, ele também é obstruído por todas as
99
separações: desde aquelas impostas pela barreira da língua (que separa
pessoas que falam idiomas diferentes), passando pela busca burra (que
separa quem procura de quem gera conhecimento), pelos dispositivos
tecnológicos interativos separados do corpo humano e, inclusive, no
limite, pela separação entre pessoas e não-pessoas.
A barreira da língua é uma das principais remanescências do mundo único
hierárquico. É curioso que, mesmo tendo sido imposto um mundo único,
persistam várias línguas (cerca de 7 mil idiomas). Isso porque o mundo
único
não
é
monocentralizado
e
sim
multicentralizado
(ou
descentralizado) em algumas identidades imaginárias (que chamamos de
nações, povos ou culturas sócio-territoriais, dominados hoje por menos de
duas centenas de Estados).
A metáfora bíblica sobre isso é esclarecedora. Na mesma Babel – não em
várias – as pessoas não podiam se comunicar umas com as outras. Não era
um problema de saber interpretar um código, de falar a mesma língua. O
que houve em Babel foi a impossibilidade de um conversar, não porque as
pessoas falassem vários idiomas e sim porque não conseguiam coordenar
mutuamente suas atitudes (o linguajear, na expressão de Maturana, que
pressupõe e exige cooperação) e, desse modo, não se entendiam (sem um
acoplamento estrutural não pode haver comunicação). É a pirâmide (a
topologia centralizada da rede social babeliana) que impede esse (assim
como qualquer outro) conversar. Tal problema só tem solução social, não
tecnológica.
100
A solução para Babel é a rede social distribuída. No entanto, o problema
da remanescência de várias línguas, entendidas como idiomas, como
códigos que podem ser traduzidos, tem solução tecnológica. Dispositivos
móveis com programas de tradução simultânea, capazes de receber e
emitir dados e voz, são partes (por aproximação, assimilação ou simbiose)
dessas interfaces complexas que chamamos de interworlds.
A falta de programas i-based de navegação inteligente, da busca
(semântica) à polinização (criativa, ensejadora de múltiplos significados),
também é um obstáculo à interação entre os mundos. Mas tal desafio
pode ser superado caso não se insista em recriar monstruosos sistemas de
gerenciamento do conhecimento (top down) e em arquivar significados
únicos de modo centralizado (como faz, por exemplo, a Wikipedia).
Repetindo: toda tecnologia é bem-vinda, inclusive aquela que modifica os
corpos humanos, desde que possibilite mais distribuição. Há muito tempo
estamos modificando nossos corpos: tomamos inibidores seletivos da
recaptação da serotonina (e. g., fluoxetina) e da fosfodiesterase-5 (e. g.,
sildenafila), injetamos insulina transgênica, fazemos implantes (dentários,
auditivos e inclusive de chips capazes de devolver a visão), inserimos
nanopartículas para corrigir rugas na pele, usamos próteses de todo tipo e
instalamos órgãos ou partes de órgãos internos artificiais. Por que não
poderíamos inserir em nossos corpos outros dispositivos capazes de
ampliar e acelerar a comunicação?
Pode-se argumentar que não temos como saber se, no longo prazo, tudo
isso prejudicará a saúde. Mas também não temos como atestar isso em
101
relação à maioria dos medicamentos que tomamos ou das intervenções
médicas que realizamos. Todas essas substâncias e procedimentos, em
certa medida, provocam doenças ou desencadeiam novos padrões de
saúde ou ensejam novos reequilíbrios saúde-doença. Sim, saúde não é
ausência de doenças, mas a estabilidade relativa de um sistema que, se
estiver vivo, estará necessariamente afastado do equilíbrio, convivendo,
portanto, com alterações que convencionamos chamar de doenças (e que
só são chamadas assim do ponto de vista de um padrão de saúde,
baseado em indicadores cujos parâmetros de normalidade são variáveis
com época, lugar, cultura, conhecimento). Só seres inanimados estão
livres de doenças (ainda que as infestações de vírus em seres cibernéticos
também possam vir, coerentemente, a ser encaradas como doenças).
Por outro lado, do ponto de vista biológico, já existe a parceria simbiótica
do corpo humano com outros seres vivos. Somos, na verdade, colônias de
bactérias, comunidades de micro-organismos. Somos os planetas onde
vive boa parte dos seres vivos. Tal parceria está presente no interior de
nossa unidade vital: a célula nucleada é o resultado da associação com um
procarionte que passou a compor o novo organismo por endossimbiose.
Mas todas as tecnologias que podem apoiar, vamos dizer assim, o
surgimento das múltiplas internets distribuídas, não são, elas próprias, os
interworlds que conectam os mundos em rede aqui chamados de Highly
Connected Worlds. Esses interworlds são sociais – fundamentalmente, são
redes sociais – não dispositivos tecnológicos. Ou seja, no limite, os
interworlds são pessoas.
102
Pessoa já é rede
Em cada pessoa há algo de seu próximo.
Moises Cordovero (1522-1570) em Tomer Dvora (1588)
Toda pessoa é uma pequena sociedade.
Novalis em Pólen (1798)
Uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas.
(“Umuntu ngumuntu ngabantu”: Máxima Zulu)
Você, o indivíduo, é a massa, o resultado da massa. Em nós, como você
descobrirá se entrar nisso profundamente, estão os muitos e o particular.
Jiddu Krishnamurti em Ojai 1st Public Talk (1944).
Todas as pessoas são feitas de todas as outras pessoas.
http://twitter.com/augustodefranco (08/07/10)
Toda pessoa é uma nova porta que se abre para outros mundos.
John Guare em "Six degrees of separation" Peça na Broadway (1990)
103
NOS NOVOS MUNDOS ALTAMENTE CONECTADOS do terceiro milênio,
vida humana e convivência social se aproximarão a ponto de revelar os
“tanques axlotl” onde somos gerados como seres propriamente humanos.
Todos compreenderemos a nossa natureza de “gholas sociais”.
Os tanques onde somos formados como pessoas são clusters, “regiões” da
rede social a que estamos mais imediatamente conectados.
Um tipo especial de ghola: não um clone de um indivíduo, mas um “clone”
de uma configuração de pessoas. Toda pessoa, como dizia Novalis (1798),
é uma pequena sociedade; quer dizer, pessoa já é rede! Pessoa é um ente
cultural que replica uma configuração. É um ghola social.
Em um mundo fracamente conectado, os caminhos são individuais. Cada
pessoa vive sua vida, faz suas escolhas, estabelece suas rotinas e toma
suas iniciativas sob a influência das demais, é claro, mas como se fosse
uma unidade separada. Convive, por certo, com as demais, mas essa
convivência é vivida como distinta daquela outra vida, que seria a sua
própria vida. Pode viver a ilusão de que vive sua vida, fazendo suas
escolhas, estabelecendo suas rotinas e tomando suas iniciativas de modo
autônomo. Pode alimentar a crença de que já surgiu no mundo como
pessoa, quer em virtude de uma instância super-humana que assim a
tenha criado, quer por força da genética (o “sangue”) e das experiências
particulares pelas quais passou logo após seu nascimento (o “berço”).
Em mundos altamente conectados tende a se esvair essa separação entre
vida humana e convivência social. Nossas escolhas racionais raramente
são nossas: reproduzimos padrões, imitamos comportamentos e
104
cooperamos com outras pessoas sem ter feito individualmente e
conscientemente tais
escolhas.
Adotamos
princípios, escolhemos
carreiras, compramos produtos e priorizamos atividades em função do
que fazem as pessoas que se relacionam conosco ou que estão ligadas a
nós em algum grau próximo de separação, muitas vezes pessoas que nem
conhecemos (como os amigos dos amigos de nossos amigos).
Vivemos então, cada vez mais, a vida do nosso mundo constituído pela
convivência e não apenas a nossa vida individual. Isso ocorre na razão
direta da interatividade do mundo em que estamos imersos. O fluxo da
nossa timeline pode chegar a atingir tal intensidade ou densidade que, no
limite, não podemos mais afirmar inequivocamente que há um eu que
deseja, julga, raciocina, escolhe e almeja de forma autônoma em relação à
nuvem de conexões que nos envolve. Ao mesmo tempo, sentimos e
sabemos que continuamos sendo uma pessoa, única, totalmente
diferenciada. Mas ao viver a nossa vida (a vida humana única dessa pessoa
que somos), vivemos, na verdade, a convivência (social, também única,
desse mundo construído pelo emaranhado de conexões onde estamos
fluindo e que nos constitui como seres propriamente humanos).
O social passa ser o modo de ser humano nas redes com alta tramatura
dos novos mundos-fluzz. Em outras palavras, passamos a constituir um
organismo humano “maior” do que nós. Passamos a compartilhar muitas
vidas, com tudo o que isso compreende: memórias, sonhos, reflexões de
multidões
de
pessoas,
que
ficam
distribuídas
por
todo
esse
superorganismo humano. Podemos, como nunca antes, ter acesso
imediato a um conjunto enorme de informações e, muito mais do que
105
isso, podemos gerar conhecimentos novos com uma velocidade espantosa
e com uma inteligência tipicamente humana (não de máquinas,
computadores ou alienígenas), porém assustadoramente “superior” a que
experimentamos em todos os milênios pretéritos.
E tudo isso pode ocorrer sem a necessidade de termos consciência
(individual) do que está se passando. Ao viver a vida da rede, apenas
vivemos a convivência: não precisamos mais tentar capturá-la e introjetála, circunscrevê-la ou mandalizá-la para conferir-lhe a condição de
totalidade, erigindo um grande poder interior de confirmação para nos
completar da falta dos outros e nos orientar nos relacionamentos com
eles. Tal necessidade havia enquanto podia haver a ilusão da existência do
indivíduo separado de outros indivíduos; ou quando um (ainda) não era
muitos. Toda consciência é consciência da separação, inclusive a
consciência da unidade, da totalidade, ou da unidade na totalidade, é uma
resposta à separação. No abismo em que estamos despencando ao entrar
em fluzz, não há propriamente isso que chamávamos de consciência.
Como epígrafe de um dos capítulos de "Os filhos de Duna", o escritor de
ficção Frank Herbert (1976) colocou na boca de Harq al-Ada, cronista do
Jihad Butleriano (a guerra ludista contra as máquinas inteligentes) (5):
"O pressuposto de que todo um sistema pode ser levado a funcionar
melhor através da abordagem de seus elementos conscientes revela
uma perigosa ignorância. Essa tem sido frequentemente a
abordagem ignorante daqueles que chamam a si mesmos de
cientistas e tecnólogos".
106
Gholas sociais
Um ghola não é um borg
NO UNIVERSO FICCIONAL DE DUNA, obra monumental de Frank Herbert
(1965-1985), os tanques axlotl são mulheres tleilaxu que sofreram um
coma cerebral químico induzido, a par de outras intervenções genéticas,
para servir como usinas de gholas (espécies de clones de uma pessoa
morta a partir de seu material genético). Os Tleilaxu (ou Bene Tleilax) são
uma sociedade fechada de religiosos muito avançados tecnologicamente.
No entanto, os gholas são réplicas que não manifestam automaticamente
as qualidades dos originais. Para tanto eles devem passar por um processo
longo de aprendizagem e devem viver certas experiências (sobretudo de
relacionamento íntimo com seus treinadores) para despertar suas
habilidades.
A leitura das diversas camadas da escritura de Herbert (literal, alegórica
ou metafórica, simbólica etc.) permite um paralelo (meramente evocativo
e para efeitos heurísticos) entre o processo biológico-cultural de clonagem
e aprendizagem de um ghola e o processo social de geração de uma
pessoa (que seria, então, uma espécie de “ghola social”).
107
Os “tanques axlotl” onde somos gerados como seres propriamente
humanos seriam os clusters onde convivemos com outras pessoas (seres
que já foram humanizados pelo mesmo processo) a partir do nascimento.
De sorte que não somos humanos apenas por força da genética, da
reprodução ou da hereditariedade biológica (que replicamos como
indivíduos da espécie homo) e sim em virtude da rede social em que comvivemos, cuja configuração particular replicamos como pessoas, ou seja,
“gholas sociais”. Aquele que é geneticamente humanizável só consuma tal
condição a partir do relacionamento com seres humanizados. Somos
(enquanto entes culturais) filhos da rede social. E não podemos ser
humanos sem esse tipo de relacionamento. Como reza a máxima Zulu,
“uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas”.
Tudo isso é para dizer que um ghola (social) não é um borg. Mas por que é
tão importante dizer isso?
No universo ficcional de Star Trek os Borgs são uma “raça” alienígena de
ciborgues, humanoides de várias espécies assimilados e melhorados com a
injeção de nanossondas e a aplicação de implantes cibernéticos que
alteram sua anatomia e seu funcionamento bioquímico, ampliando suas
habilidades mentais e físicas.
Quando encontram suas presas - quaisquer membros de outras
civilizações, aos quais andam a cata – os Borg recitam, com algumas
variações, a seguinte litania:
108
“Nós somos os Borg. A existência como vocês conhecem acabou.
Adicionaremos suas qualidades biológicas e tecnológicas à nossa.
Resistir é inútil”.
Não existe uma rede social Borg, com algum grau significativo de
distribuição, porque não existe pessoa-Borg. Transformados em indivíduos
substituíveis, os borgs são replicados em série por uma estrutura
fortemente centralizada em sua rainha (sim, o regime é monárquico
absoluto), a única que pode pensar livremente (se é que isso é possível
sem o conversar). Seus cérebros são conectados a uma mente coletiva (a
Coletividade Borg) controlada por um hub central (Unimatrix Um). O
objetivo declarado do povo Borg (que só é um povo naquele particular
sentido original da palavra latina ‘populus’: “contingente de tropas”) é
“aperfeiçoar todas as espécies trazendo ordem ao caos”.
Uma interpretação possível para a metáfora é a seguinte: de certo modo
qualquer pessoa, transformada em peça substituível por uma organização
centralizada (hierárquica), é – em alguma medida – um borg.
Sim, o paralelo é mais fértil do que parece. Dizer que um ghola (social) não
é um borg (biotecnológico), seria como colocar na boca do primeiro – no
dealbar de uma época-fluzz – uma paródia da “saudação” borg como a
seguinte:
Nós somos gholas sociais. Novas possibilidades de existência, até
agora desconhecidas de todos nós, estão sendo abertas. Nossas
qualidades biológico-culturais estão se combinando em novos
padrões sociais. É só preciso deixar-ir.
109
A rigor, como uma configuração de pessoas está sempre ligada a outras
configurações, todas as pessoas estão de algum modo emaranhadas no
espaço-tempo dos fluxos (quem sabe não era isso que chamávamos de
humanidade, uma prefiguração). Assim, no limite, todas as pessoas são
feitas de todas as outras pessoas.
110
Pessoas são portas
“Toda pessoa é uma nova porta que se abre para outros mundos”
PESSOAS SÃO PORTAS. Abrem caminhos. Na verdade, são caminhos.
Atalhos entre clusters. Pontes. É sempre por meio de uma pessoa que
podemos interagir com quem está em outros mundos.
Isso significa que os interworlds são realmente as pessoas, não um novo
ambiente tecnológico, mas um novo ambiente social com novos recursos
tecnológicos. Esta é uma típica compreensão-fluzz: pessoa não é o
individual e sim o social. Surpreendentemente, em mundos altamente
conectados as novas internets são... as pessoas!
Não, não é somente uma imagem poética. É uma nova compreensão das
potencialidades humanas. Pessoas interagindo são seres humanos. A
partir de certo grau de interatividade, são organismos sociais, quer dizer,
superorganismos humanos.
Quando a tecnologia fornecer os meios para manter as pessoas
continuamente conectadas e para acelerar a interação, ela o fará a partir
dessa possibilidade social. Aliás, foi assim que nasceu a velha Internet:
como percebeu Castells, sua estrutura interativa só foi projetada assim
111
porque as pessoas que a projetaram a projetaram assim (6). E as pessoas
que projetaram a Internet só a projetaram assim – com possibilidade de
interatividade – porque havia tal possibilidade social. Da mesma forma
estão nascendo as novas internets: seja com o aperfeiçoamento dos
dispositivos móveis interativos, seja com implantes bioeletrônicos ou
cibernéticos, enquanto a topologia da rede for mais distribuída do que
centralizada não produziremos borgs, mas gholas-sociais.
Há sempre um risco. O risco de ser borg. A fronteira entre um borg e um
ghola-social é móvel, nebulosa e quase sempre invisível. A hierarquia
produz borgs. As redes humanas distribuídas geram gholas-sociais. Mas a
maioria dos padrões de interação se configura no intervalo entre
centralização máxima e distribuição máxima.
Evitar o risco é refugiar-se na vida individual, escolhendo racionalmente as
interações, sendo seletivo nos relacionamentos, fechando-se ao outro.
Esse é o fracasso de todas as chamadas “pessoas de sucesso”. Fecham-se
à interação com o outro-imprevisível e, ao fazer isso, a despeito de serem
muito conhecidas, obstruem conexões com a nuvem que as envolvem,
desatalham clusters (ao se recusarem a servir como pontes), excluem
outras pessoas do seu espaço de vida e simultaneamente se excluem de
outros mundos, isolando-se do superorganismo humano e deixando de
contar com uma parte (justamente aquela parte inusitada, que os
marqueteiros, os políticos profissionais e os psicólogos sociais tanto
procuram e não conseguem encontrar) das imensas potencialidades do
social.
112
São raríssimas as pessoas de sucesso que se deixam abordar por qualquer
um do povo. Seus endereços, e-mails e telefones são mantidos em sigilo.
Seus ambientes de trabalho são protegidos por porteiros, agentes de
segurança, secretários e assessores. Seus sites e blogs são fechados à
comentários ou mediados. Sua participação nas mídias sociais é sempre
para usá-las como broadcast, para fazer relações públicas e propaganda
de si-mesmas (para ficarem mais famosas e auferirem os benefícios
econômicos, sociais e políticos conferidos diferencialmente a quem
alcançou tal condição).
Isso acaba se manifestando no que acreditam que seja sua vida pessoal,
como indivíduos, supostamente autônomos, tão importantes que não
podem ficar vulneráveis aos paparazzi do relacionamento. Como
consequência começam a desenvolver aquela sociopatia mais conhecida
pelo nome de fama. Na verdade ficam doentes por déficit de
interatividade.
Quem não quer ser porta, não acha caminhos. O sucesso é o melhor
caminho para perder caminhos. A perda de caminhos é também uma
medida de não-rede, ou seja, uma expressão do poder. A contraparte de
querer ser muito importante é a falta de importância para a rede (e não
importa para nada se essas pessoas de sucesso têm milhares ou milhões
de followers nas mídias sociais mais frequentadas ou se seu blog tem
milhares ou milhões de pageviews).
E o risco? Bem, nos Highly Connected Worlds a pessoa é compelida a
correr o risco, a fluir com o curso. Não pode se proteger, se sedentarizar
113
em seu mundo, se agarrar às coisas para tentar permanecer como é ou a
ser mais-do-mesmo (do que já é) em vez de surfar nos interworlds,
navegar, ser nômade, fluzz.
“Se não posso achar o caminho farei um”, escreveu Sêneca (7). Nos novos
mundos-fluzz, seria o caso de dizer: como não há caminho, serei um (uma
porta para outros mundos)
114
Anisotropias no campo social
Os deuses eram ventos.
Arturjotaef em Numância (2010)
Ama-gi é uma palavra suméria para expressar alforria...
Traduzida literalmente significa “retorno à mãe” – na medida em que
os ex-escravos eram “devolvidos às suas mães (i. e., libertados)”.
Acredita-se ser a primeira expressão escrita do conceito de liberdade.
Wikipedia (2010)
NÃO HÁ NADA A FAZER. DEIXEM FLUZZ SOPRAR para ver o que acontece.
(Na verdade, dizer ‘deixem fluzz soprar’ é apenas uma maneira de dizer,
pois fluzz já é o sopro).
Quando fluzz soprar, prá que ensino, prá que escola? Quando fluzz soprar,
para que religião, para que igreja? Quando fluzz soprar, para que
corporação, para que partido? Quando fluzz soprar, para que nação, para
que Estado?
115
Oh!
É
claro
que
todas
essas
instituições
perdurarão:
como
remanescências. Não serão mais prevalecentes. Aliás, como já se
prenuncia, elas se contaminarão mutuamente: nações serão religiões,
escolas serão igrejas, Estados serão corporações... e tudo será, afinal, o
que é – sempre a mesma coisa: programas verticalizadores que “rodam”
na rede social instalando anisotropias no espaço-tempo dos fluxos.
O cordobés Lucius Annaeus Sêneca (c. 3 a. E. C. – 65) escreveu que “se um
homem não sabe a que porto se dirige, nenhum vento lhe será favorável”
(8). Mas é o contrário. Pouco importa onde está Ítaca. É o vento, soprando
livre sobre a superfície das águas, que constitui o não-caminho (ou
desconstitui todos os caminhos).
Como cantou Konstantinos Kaváfis, “se partires um dia rumo a Ítaca, faz
votos de que o caminho seja longo, repleto de aventuras... Melhor muitos
anos levares de jornada e fundeares na ilha, velho enfim, rico de quanto
ganhaste no caminho, sem esperar riquezas que Ítaca te desse. Uma bela
viagem deu-te Ítaca... Tu te tornaste sábio, um homem de experiência, e
agora sabes o que significam Ítacas” (9).
Manobrando o leme para seguir uma rota já traçada não há como viver
em processo de Ítaca. É preciso deixar-se ao sabor do vento.
Quando o sopro não percorre livremente os mundos é porque houve
direcionamento de fluxo. Pré-cursos foram estabelecidos. Velas foram
orientadas para capturar e condicionar o vento. Em geral isso é feito por
essas intervenções antrópicas resultantes do congelamento de fluxos que
chamamos de instituições (hierárquicas): escolas, ensino, religiões, igrejas,
116
corporações, partidos, nações, Estados. São artifícios para exercer a Força,
ou seja, para impor caminhos.
A pergunta é: quando fluzz soprar, para que forçar? Por isso se diz: não há
nada a fazer (quando fluzz soprar). Não há nada a fazer significa que é
preciso deixar-ir. Ter um comportamento fluzz é deixar-ir. Fluzz não é a
força. Fluzz é o curso.
Impor caminhos é deformar um tecido, perturbar um campo. Se pessoas
interagindo com pessoas são redes, o tecido deformado é sempre uma
rede que se tornou mais centralizada ou menos distribuída. Se o campo
social é composto pelo emaranhado de conexões, a perturbação é sempre
um desemaranhar, de sorte que alguns mundos perderão contato com
outros; ou melhor, deixarão de estar sujeitos às mesmas interações. Se
isso acontece é porque interworlds foram aniquilados.
Quando forçamos um caminho exterminamos mundos (para nós, é claro –
mas o que dá no mesmo, se não podemos mais interagir com eles).
Perdemos então as oportunidades – de que fala o belo poema de Kaváfis –
de “entrar pela primeira vez um porto para correr as lojas dos fenícios e
belas mercancias adquirir” ou de peregrinar naquelas “muitas cidades do
Egito... para aprender”.
117
Deformando a rede-mãe
Na ausência do poder as redes tendem a permanecer distribuídas
A INVESTIGAÇÃO DAS REDES SOCIAIS leva-nos a uma nova hipótese
antropológica: uma outra visão da natureza humana (seja lá o que isso
for), que se afasta do que foi concebido como Homo economicus, para se
aproximar – como sugeriram Christakis e Fowler – do que eles chamaram
de Homo dictyous (do latim homo, “humano”, e do grego dicty, “rede”)
(10).
Indivíduos biológicos da espécie humana se tornam Homo dictyous (seres
humanos), quando interagem. Mas quando interagem constituem rede.
Logo, sem essa rede não podemos ser humanos.
Em outras palavras: se, como pessoas, já somos rede – do contrário não
poderia haver a realidade biológico-cultural que chamamos de ‘ser
humano’ – então, para nós, humanos, no princípio era a rede. Isso significa
que somos “filhos” da rede. Logo, podemos dizer que a rede é a nossa
“mãe”. Ou seja, que existe uma rede-mãe.
A interpretação que revela tal sentido é alegórica ou metafórica. Mas a
metáfora da rede-mãe pode revelar mais coisas do que imaginamos. Ela
118
sugere que, deixados a si mesmos, os humanos farão (ou melhor, serão)
redes em vez de se engalfinharem em uma guerra de todos contra todos
transformando sua vida em uma realidade “solitária, miserável, sórdida,
brutal e curta”, como queria o agourento Hobbes (1651) (11).
Os pensadores e os economistas que cunharam e trabalharam com a
concepção
do
homo
economicus
simplesmente
partiram
desse
fundamento hobbesiano para reificar a existência da abstração chamada
indivíduo. Trata-se de uma visão da natureza humana – na verdade quase
uma tara – baseada no egoísmo, para a qual, como escreveu Hobbes, na
ausência de “um poder que domestique os homens... não há sociedade; e o
que é pior do que tudo, [há] um medo contínuo e perigo de morte
violenta” (12). Vivendo nesse “mundo cão brutal em que a preocupação
com o bem-estar dos outros não existe” (13) existiria, entretanto,
paradoxalmente, o indivíduo enquanto unidade isolada dos outros
indivíduos. Evidentemente, diante de tantos atos gratuitos de colaboração
que praticamos e presenciamos no dia-a-dia, essa construção intelectual
só pode se revelar uma perversão. Daí a tara individualista, tão frequente
e inadequadamente denominada de liberalismo (econômico).
Não há nenhuma evidência científica de que os seres humanos
abandonados à sua própria sorte (como se pudesse haver outra sorte...)
poriam fim à sua convivência. As evidências apontam justamente o
contrário. Não havendo motivo para guerrear, as pessoas – seguindo o
fluxo da vida – viveriam sua convivência – ou seja, viveriam em rede.
Como disse Lynn Margulis (1986): “A vida não se apossa do globo pelo
combate, mas sim pela formação de redes” (14).
119
A alegação de Hobbes de que é o poder que evita a destruição coletiva
deve ser invertida. Quando há poder, aí sim, é porque houve motivo para
guerrear e a convivência fica ameaçada.
Na ausência de um poder que as domestique (para insistir na expressão de
Hobbes), pessoas interagindo com pessoas tendem a configurar redes
distribuídas em pequenos grupos, só não o fazendo, em grupos maiores,
em virtude da falta de condições biológicas ou tecnológicas de
interatividade ampliada e à distância. Não haveria motivo para obstruírem
fluxos, separarem clusters ou excluírem nodos dessas redes (que é,
exatamente, o que faz o poder), a menos que queiramos lançar mão de
uma hipótese religiosa para vaticinar que o homem é inerentemente
competitivo (ou em parte competitivo, por sua própria natureza – seja lá o
que isso for). Tal hipótese é absurda neste contexto porque pressupõe
que possam existir seres humanos (entes biológico-culturais) como entes
(biológicos) isolados.
Mas
não
existe
no
ser
humano
nenhum
atributo
cultural
(comportamental) que se possa dizer inerente. A “natureza” do Homo
dictyous – se é que se pode afirmar que exista uma ‘natureza da cultura’ –
é relacional.
Todo poder acarreta anisotropias no espaço-tempo dos fluxos
(verticalizando a rede). E é por isso que o poder se define como uma
medida de não-rede (em termos de rede distribuída) (15). Na ausência do
poder (centralização) a rede tende a permanecer distribuída. Podemos
dizer que o bios (Basic Input-Output System) pré-gravado lá no firmware
120
da rede-mãe não é um programa verticalizador (centralizador) pelo
simples motivo de que não há qualquer razão para sê-lo. Nesse caso, o
que precisa ser explicado é o processo de centralização, não o estado de
distribuição. São os obstáculos colocados à livre convivência que precisam
ser justificados, não a convivência.
Por certo a rede-mãe não permanece com topologia distribuída na
presença de programas verticalizadores. Aqui é um daqueles casos – mais
comuns do que se pensa – em que o software modifica o hardware (como
quando aprendemos uma língua e alteramos para tanto nossas conexões
neuronais). Programas verticalizadores deformam a rede-mãe, sejam
programas meméticos (como os que chamamos de deuses – quando lhes
atribuímos atributos super-humanos), sejam programas organizacionais
(que rodam comandos de ordem, hierarquia, disciplina e obediência –
como escolas, igrejas, partidos, corporações, Estados e outras instituições
assemelhadas com todos os seus aparatos). No interior e no entorno
dessas organizações hierárquicas o campo social é profundamente
perturbado. O espaço-tempo dos fluxos é deformado obrigando as
fluições a percorrerem caminhos estranhos. A interação é disciplinada
sem qualquer outra razão que a de manter tais estruturas monstruosas
funcionando e se reproduzindo. A imagem da Fig. 2 é aterrorizante.
Lembra à primeira vista aquelas naves de alienígenas predadores do filme
de Roland Emmerich (1996) Independence Day. Talvez não por acaso:
organizações hierárquicas de seres humanos geram seres não-humanos.
Mas se trata apenas de uma outra maneira de representar o diagrama (B)
de Paul Baran (1964) exposto na Fig. 1.
121
Fig. 1 | Diagramas de Paul Baran
Fig. 2 | Organograma de uma organização hierárquica
122
Se o fluxo deixar de ser aprisionado, orientado, conduzido, compelido a
escorrer pelas valetas cavadas para pré-traçar caminhos (eliminando
outros caminhos), a rede-mãe volta à sua topologia distribuída. É curioso
que a primeira expressão escrita do conceito de liberdade – a palavra
suméria Ama-gi – signifique literalmente “retorno à mãe”.
Por isso se diz: quando fluzz soprar, prá que ensino, prá que escola?
Quando fluzz soprar, para que religião, para que igreja? Quando fluzz
soprar, para que corporação, para que partido? Quando fluzz soprar, para
que nação, para que Estado?
Um sinal de que fluzz está soprando é que tais instituições estão se
misturando e se confundindo, quer dizer, está ficando cada vez mais claro
que elas são aspectos das mesmas deformações ou do mesmo tronco de
programas verticalizadores que “rodam” na rede social provocando
anisotropias no espaço-tempo dos fluxos.
É assim que as perturbações no campo social que geram religiões revelamse as mesmas que geram nações. De sorte que, nos múltiplos mundos
altamente conectados que estão emergindo, os nômades optarão por essa
ou aquela nação por mera preferência individual, como há bastante
tempo já fazemos com as religiões que professamos quando nos
convertemos depois de adultos. Alguém preferirá ser brasileiro por
simpatia ou por outras razões afetivas, empáticas ou culturais; outro, por
razões análogas, preferirá se identificar com uma região ou cidade: será
californiano ou cidadão-cultural de Lyon.
123
Da mesma forma, ao renunciar a igrejas muitas pessoas retirarão também
seus filhos das escolas (compreendendo que as duas coisas são – na
condição de centros de deformação da rede-mãe ou de fontes de
perturbação no campo social – basicamente a mesma coisa). O
movimento do homeschooling já começou e avançará para o
communityschooling (na linha do unschooling). Comunidades de
aprendizagem em rede tendem a florescer e se multiplicar nos Highly
Connected Worlds substituindo as atuais burocracias do ensinamento
(chamadas de escolas).
Ainda: Estados (nacionais) dividirão com corporações (transnacionais) o
controle dos fluxos econômicos e políticos mundiais globalizados e essa
pulverização (dos 193 exemplares atuais do modelo europeu de Estadonação – um anacrônico fruto da guerra, da paz de Westfalia – para
milhares de centros com autonomia crescente), dará margem à
configuração de novos modelos glocais de governança baseados no
localismo cosmopolita de miríades de cidades como redes de
comunidades interdependentes.
É claro que todas as velhas instituições perdurarão vestigialmente, como
remanescências do mundo único. Não serão destruídas, simplesmente se
tornarão inadequadas por não suportarem a fluição de alta intensidade
que atravessará os interworlds dos mundos altamente conectados do
terceiro milênio.
124
Perturbações no campo social
A nuvem que envolve-e-se-move-com uma pessoa conectada tem a
capacidade de “sentir” perturbações no campo social
WALTER ROBINSON (2008), também conhecido por Ritoku – um zenbudista que dá aulas de filosofia na Universidade de Indiana – escrevendo
“Morte e Renascimento de uma Mente Vulcana”, observa que “Vulcanos
têm “sete sentidos”, que incluem os cinco sentidos conhecidos pelos
humanos e um sexto sentido animal, que é “a habilidade de sentir a
presença de distúrbio em campos magnéticos” (16).
A metáfora, se não cai como uma luva, serve aos propósitos da presente
digressão. Por certo, admitir a hipótese e trabalhar com o modelo de
perturbações no campo social pode ser mais fácil do que sentir essas
perturbações. Não é preciso ir muito longe para saber se um campo social
foi deformado: basta entrar em uma organização hierárquica; por
exemplo, basta visitar uma instituição estatal ou uma grande empresa
para constatar com que intensidade o “campo gravitacional” em torno dos
chefes modifica a estrutura do espaço (no caso, do espaço-tempo dos
fluxos). Os fluxos se abismam nesses buracos negros. Eles são sumidouros,
engolidouros, alçapões de fluxos.
125
Tão forte às vezes é a gravitatem dos hierarcas que a deformação do
campo social sob sua influência alcança até mesmo os stakeholders
externos da organização, transbordando para seu entorno. É por isso que
uma grande empresa ou corporação, em uma pequena localidade na qual
não existam outras organizações de mesmo porte, em vez de – como se
acreditava – impulsionar seu desenvolvimento, faz o contrário: extermina
o capital social local (quer dizer, centraliza a rede social). Existem
exemplos à farta.
Nas organizações altamente centralizadas, as pessoas perdem a
capacidade de ser elas mesmas (à medida que cresce sua porção-borg
diminui a sua dimensão de pessoa, quer dizer, sua porção ghola-social).
Vestem sempre uma espécie de farda; mesmo nas organizações civis que
não usam uniformes elas se uniformizam interiormente. E até
exteriormente: não raro preferem roupas que escondem o corpo e os tons
de cinza para o vestuário. No exercício continuado da servidão voluntária,
autolimitam suas potencialidades escondendo-se na penumbra das
rotinas e optando por não se aventurar na claridade do ato inédito. Fazem
tudo – sobretudo o que delas não é explicitamente exigido, eis o ponto! –
para se submeter ao sistema e aos seus chefes.
E há uma reverência indevida, uma espécie de sujeição, quase uma
genuflexão psicológica quando alguém se dirige a algumas dessas
encarnações de Dario (aquele monstro Darayavahush, um rei-borg que,
após perpetrar um golpe de Estado, dominou os persas entre 521 e 486 a.
E. C. exigindo-lhes prosternação física à sua passagem).
126
Ésquilo (427 a. E. C.), em Os Persas – talvez a primeira obra escrita em que
se menciona a democracia dos atenienses como realidade oposta a
daqueles povos que têm um senhor – descreve bem a deformação do
campo social sob o domínio da sombra de Dario (17). O regime
monstruoso não tinha, ao contrário do que se propagou, grandes
vantagens militares. Os persas foram rechaçados pelos irreverentes,
insolentes e mais livres atenienses e seus aliados na planície de Maratona
(em 490). Sim, mas o que é realmente monstruoso é que tal programa
(que poderia ser chamado, em homenagem a Ésquilo, de A Sombra de
Dario) – instalado quase três milênios antes de Dario – continue a rodar...
quase três milênios depois!
Todavia, essas deformações já começam a ser sentidas. Um sexto sentido
humano-social está surgindo nos Highly Connected Worlds. Não é
propriamente um sentido individual. A nuvem que envolve-e-se-movecom uma pessoa conectada tem a capacidade de “sentir” perturbações no
campo social. Uma rede altamente distribuída rechaçará de pronto,
mesmo que seus membros não tenham consciência disso, quaisquer
tentativas de comando-e-controle. Eis porque burocratas sacerdotais do
conhecimento ou ensinadores, codificadores de doutrinas, aprisionadores
de corpos, construtores de pirâmides, fabricantes de guerras e condutores
de rebanhos não se dão muito bem em redes sociais distribuídas e, nem
mesmo, nas mídias sociais, quer dizer, nas plataformas interativas que são
utilizadas como ferramentas de netweaving dessas redes. Porque são,
todos, netavoids.
127
Esta é uma das razões – até agora muito pouco compreendida – pelas
quais o comando-e-controle, além de não poder se exercer, também não
se faz necessário em uma rede distribuída (na medida, é claro, do seu grau
de distribuição). Dizer que o emaranhado “sente” quer dizer que ele
detecta distorções. Mais do que isso: primeiro ele encapsula e depois
acaba metabolizando as fontes de perturbações que causam anisotropias
no espaço-tempo dos fluxos. E são esses incríveis seres sociais que
chamamos de pessoas que sentem isso: ainda quando não saibam explicar
os motivos dessa sensação, elas (as pessoas) percebem que “alguma coisa
está errada” quando aparece um daqueles netavoids, ou um arrivista (ou
mesmo um troll, nas mídias sociais).
É a rede-mãe se defendendo. Mas ela nem sempre consegue fazer isso.
128
Destruidores de mundos
Persistimos erigindo organizações que não são interfaces adequadas
para conversar com a rede-mãe
DARAYAVAHUSH É UM DESTRUIDOR DE MUNDOS. Joseph Campbell diria
que ele representa “uma força monstruosa, a força do Império, que se
baseia na intenção de conquistar e comandar” (18). Como aquele Darth
Vader do primeiro episódio da série que veio à luz – Uma Nova Esperança
(1977) –, na decifração de Joseph Campbell (1988), ele não é uma pessoa.
É um programa malicioso que se instalou na rede. Um programa
verticalizador.
Não, não estamos tratando propriamente da figura histórica de Dario, o
homem que governou a Pérsia. Todos os hierarcas – inclusive o próprio
Dario – replicam o mesmo padrão Darth Vader porque estão
emaranhados
em configurações
deformadas da rede-mãe, com
deformações semelhantes. Qualquer um, inserido em sistemas com tais
configurações, manifestará – em alguma medida – características de
Darayavahush. E será em alguma medida destruidor de mundos. Na
verdade, aniquilará interfaces (interworlds) estreitando o fluxo das
interações, impedindo que pessoas se conectem livremente com pessoas.
129
É por isso que organizações hierárquicas têm tanta dificuldade de gerar
pessoas.
Sim, gerar pessoa é um processo contínuo que não se dá no nascimento e
nem apenas logo após o nascimento, mas prossegue por toda a vida (a
com-vida, quer dizer, aquela ‘vida social’ que se realiza quando vivemos a
convivência). É algo assim como o que certas tradições espirituais
chamaram de formação da alma humana: um veículo para “atravessar a
morte” (em vez de tentar evitá-la, querendo ser imortal: o motivo da
criação dos deuses à imagem e semelhança dos hierarcas) aceitando o
fluxo transformador da vida.
Para continuar com o paralelo, se a alma humana é formada com a
energia da compaixão, obtida nos atos gratuitos de valorizar a vida,
compartilhar o alimento, aliviar os sofrimentos e promover a liberdade,
Darth Vader não tem alma porque, ao invés de formá-la, criou um veículosubstituto para escapar de fluzz: sua nave-simulacro é feita com a energia
da violência, obtida nos atos instrumentais de tirar a vida, se apoderar dos
recursos vitais, infligir sofrimentos e, sobretudo, eliminar caminhos (pela
imposição da ordem).
Nas
organizações
hierárquicas,
um
processo
intermitente
de
despersonalização é posto em marcha quando obstruímos fluxos,
separamos clusters e excluímos nodos. O resultado de tal processo
poderia ser interpretado, lançando-se mão de nossa metáfora, como uma
perda de contato com a rede-mãe. É por isso que nossas organizações de
todos os setores têm tanta dificuldade de contar com (a adesão voluntária
130
das) pessoas. A reclamação geral é sempre a de que “as pessoas não
participam”. Imaginam alguns que o motivo dessa dificuldade seria a
visão, a missão, a causa da organização ou do movimento, avaliadas então
como incapazes de empolgar mais gente, porém a verdadeira razão está
na deformação da rede. As pessoas sentem – mesmo quando não
conseguem explicitar racionalmente seus motivos – que não lhes cabe
entrar em um espaço já configurado de uma determinada maneira. Não
querem ‘participar’ (tornar-se partes ou partícipes de alguma coisa) nos
termos estabelecidos por outrem, senão ‘interagir’ nos seus próprios
termos. Mesmo assim, persistimos erigindo organizações que não são
interfaces adequadas para conversar com a rede-mãe. Porque
continuamos criando obstáculos à livre conversação entre pessoas.
Pessoas conversam com pessoas. Redes conversam com redes.
Organizações hierárquicas não podem conversar com redes.
Organizações hierárquicas (ou com alto grau de centralização) têm
imensas dificuldades de provocar mudanças sociais no ambiente onde
estão imersas. A rede social que existe independentemente de nossos
esforços conectivos – ou que existiria se tais esforços não fossem
verticalizadores; quer dizer, o que chamamos aqui de rede-mãe – não
recebe bem a influência dessas organizações e continua funcionando mais
ou menos como se nada tivesse acontecido.
É o que ocorre quando ouvimos relatos de organizações sociais
profundamente dedicadas ao trabalho comunitário. Seus dirigentes
reportam que estão lutando há anos, com grande afinco, em uma
131
determinada localidade, mas a impressão que têm é a de que seus
esforços não adiantam muito. O povo não reconhece o seu papel, as
relações não mudam, parece que tudo continua como d’antes...
Se formos analisar as circunstâncias da atuação dessas organizações de
base, veremos que elas terão um alto grau de centralização (ou um grau
de enredamento insuficiente). É um problema de comunicação. A rede
social que existe de fato naquela localidade não está reconhecendo as
mensagens emitidas pela organização. É muito provável que essa
organização esteja estruturada e funcione como uma pequena fortaleza,
um castelinho, uma igrejinha... É muito provável que ela faça parte da
‘nova burocracia das ONGs’, ou seja, que tenha dono, chefe, diretoria – às
vezes até familiar – com baixíssimo grau de rotatividade (menor ainda do
que o dos partidos e organizações corporativas). É muito provável que
seus chefes queiram se eternizar no poder (no caso, um micro-poder, é
verdade, mas todo poder hierárquico, vertical, seja grande ou pequeno, se
comporta mais ou menos da mesma maneira, sempre a partir do poder de
excluir o outro...) porque precisem (ou imaginem que precisem) auferir o
crédito ou obter o reconhecimento social pela sua atuação.
Se essa organização que não consegue boa comunicação com a rede-mãe
for uma corporação ou partido, será bem pior. Ela estará estruturada a
partir de um impulso privatizante, seja com base no interesse econômico,
seja com base no interesse político de um grupo particular que quer
manobrar o coletivo maior em prol de sua própria satisfação. A rede social
não-deformada é sempre pública. Mas as interfaces hierárquicas que
construímos para conversar com ela ou para tentar manipulá-la são
132
sempre privadas, mesmo quando urdimos teorias estranhas para legitimar
a privatização, como aquela velha crença de que existem interesses
privados que, por obra de alguma lei sócio-histórica, teriam o condão de
se universalizar, quer dizer, de universalizar o seu particularismo quando
satisfeitos.
Só há uma maneira de conseguir uma boa comunicação com a rede-mãe.
Copiando-a o mais fielmente que conseguirmos; ou seja, construindo
interfaces – redes voluntárias – com o maior grau de distribuição que for
possível. Quanto mais distribuídas forem as redes que construirmos para
copiar a rede-mãe melhor será a comunicação com ela.
Nos novos mundos altamente conectados que estão emergindo ficará
cada vez mais difícil recrutar, arrebanhar, enquadrar ou aprisionar pessoas
em organizações erigidas com base na seleção de caminhos válidos (ou na
normatização de caminhos inválidos). Desde que tenham essa
possibilidade, as pessoas perfurarão os muros, abrirão continuamente
seus próprios caminhos mutantes e – na sua jornada para Ítaca –
peregrinarão para aprender naquelas “muitas cidades do Egito...”
133
Hifas por toda parte
Toda rede miceliana é um clone fúngico,
o filho distante de uma única linhagem genética.
Acima do solo, os fungos produzem esporos que flutuam no ar...
Quando pousam, os esporos crescem onde quer que seja possível.
Fazendo brotar redes tubulares, as hifas...
os fungos produzem quantidades copiosas de esporos,
os quais se disseminam, espalhando sua estranha carne...
Lynn Margulis e Dorion Sagan em O que é vida? (1998)
Jericó estava fechada por causa dos israelitas.
Ninguém saía ninguém entrava...
O Senhor disse então a Josué:
“No sétimo dia... os sacerdotes tocarão as trombetas...
Quando ouvirdes o som da trombeta,
o povo lançará um grande grito;
o muro da cidade virá abaixo, o povo subirá,
cada um à sua frente.
Josué 6: 1-5
134
ENQUANTO ISSO, PORÉM, CRESCEM SUBTERRANEAMENTE AS HIFAS, por
toda parte. Os alicerces das organizações hierárquicas vão sendo
corroídos e seu muros, antes paredes opacas para se proteger do outro,
vão agora virando “membranas sociais”, permeáveis à interação e
vulneráveis ao outro-imprevisível. Pessoas conectadas com pessoas vão
tecendo articulações que estilhaçam o mundo-único-imposto em miríades
de pedaços, não pelo combate, mas pela formação de redes. E outras
identidades – mais-fluzz – vão surgindo nos novos mundos altamente
conectados do terceiro milênio.
Não se decepcione: provavelmente você não vai ver nada mesmo! As hifas
crescem, em geral, abaixo do solo. Os esporos espalham-se pelo ar, mas
são tão pequenos que a gente nem percebe.
Quando você notar as consequências, aí não adiantará mais se
desesperar. Pois se o processo, por enquanto, ainda é lento e invisível (em
parte “aéreo”, em parte “subterrâneo”), seus desfechos poderão ser bem
concretos e fulminantes nos mundos em que ocorrerem.
Nos Highly Connected Worlds não há como fechar nada. Trancar, chavear,
cerrar as fronteiras, isolar por meio de paredes opacas não é a solução
para manter a identidade ou preservar a integridade de nenhum
aglomerado. Quando os fluxos aumentam de intensidade, os muros não
conseguem mais contê-los.
Parece que a vida “sabia” disso: tanto é assim que não encerrou seu
“átomo” (a célula) em nenhuma estrutura fechada, separando-o do meio
com paredes opacas: antes, construiu membranas – uma interface de
135
sustentabilidade, um convite à conexão. Um convite ao sexo, já que
estamos agora explorando um paralelo biológico: nos fungos – que são
“organismos realmente fractais”, como percebeu a bióloga Lynn Margulis
(1998) – o ato sexual (chamado de conjugação) é uma conexão (19).
Muros caindo por toda parte anunciarão “membranas sociais” surgindo
por toda parte. Ou não: o que não virar “membrana social” será
escombro.
O que as hifas – esses filamentos ou tubos finos que formam a estrutura
em rede dos fungos – têm a ver com isso? Ora, tudo. Pois são elas (ou o
processo espelhado, em termos biológicos, pela clonagem fúngica) que
estão operando tal mudança.
136
A perfuração dos muros
Quando a porosidade aumentar, os muros vão começar a ruir
EIS COMO PAREDES OPACAS vão se tornando inadequadas para conter o
fluxo: elas vão sendo perfuradas por hifas. Essa possibilidade existe
concretamente desde que os subordinados em uma organização
hierárquica não podem mais ser proibidos de se conectar com quem está
do lado de fora do muro pelas polícias corporativas (os departamentos de
segurança, os departamentos de pessoal e, inclusive – e hoje
principalmente –, os departamentos de tecnologia da informação).
O aprisionamento de corpos e sua contenção física em prédios fechados,
com salas e andares isolados um dos outros, controlados por portarias ou
por barreiras eletrônicas que não deixam passar quem não tem o código
válido no seu cartão magnético funcional, já não resistem adequadamente
a aglomeração física não-prevista pelos protocolos de segurança; por
exemplo, dos amigos que se encontram após o expediente em bares,
restaurantes, shoppings e em suas próprias casas, ou até mesmo dos
fumantes que são obrigado a se encontrar na rua, do lado de fora das
sedes, por imposição legal. E muito menos é capaz de resistir à
comunicação à distância, por celular, e-mail, pelos programas de
137
mensagens e comunicação instantânea ou pelos sites de relacionamento
na Internet.
É inútil proibir e não há como manter uma vigilância eficaz. Os
departamentos de tecnologia da informação (TI) podem tentar barrar
(como ainda insistem em fazer) o acesso às chamadas mídias sociais e aos
vários serviços de comunicação web na sua própria rede de
computadores, mas qualquer um que tenha um celular (3G, equivalente
ou sucedâneo), ou melhor, um dispositivo móvel de interação conectado à
Internet ou conectável a outros dispositivos por rádio (incluindo bluetooth
quando seu alcance for ampliado) já pode – ao mesmo tempo em que
trabalha (ou finge que trabalha) em uma empresa fechada – desenvolver
outros projetos conjuntos com pessoas de outras empresas fechadas,
inclusive concorrentes (20).
Tudo isso aumenta a porosidade dos muros. À medida que a porosidade
aumentar, os muros vão começar a ruir.
Só então as organizações fechadas se darão conta de que estão
irremediavelmente vulneráveis à interação e correrão desesperadas atrás
das membranas. Aí já poderá ser tarde: uma membrana é um dispositivo
ultracomplexo, que só pode ser construído pela dinâmica de um
organismo vivo em interação com o meio, com outros organismos e partes
de organismos.
Uma empresa que não aprendeu a se desenvolver conversando com as
outras empresas por medo de perder mercado ou de ter roubadas as suas
138
inovações ou seus funcionários, não conseguirá, da noite para o dia, fazer
uma reengenharia de suas, por assim dizer, boundary conditions.
Uma corporação que insistiu em manter intranets mesmo depois de ter
sido inventada a Internet, dificilmente estará preparada para operar, em
tempo hábil, tal mudança.
139
A construção de “membranas sociais”
Deixar a interação pervadir um sistema não significa propriamente fazer,
mas – ao contrário – não-fazer: não proibir, não-selecionar caminhos...
A DERRUIÇÃO DOS MUROS não esperará que os sacerdotes toquem as
trombetas em Jericó (se bem que na saga bíblica de Josué foi o grito em
uníssono do povo que derrubou as muralhas que trancavam a cidade). De
qualquer modo, não há mais tempo para aprender a construir verdadeiras
membranas. Na verdade, membranas não podem ser construídas, stricto
sensu, como um ato voluntário de alguém que segue uma planta, um
projeto, um esquema. As membranas são “construídas” pela interação
biológica, elas surgem em função da autopoese: da produção contínua da
vida por ela mesma.
No caso das membranas celulares (plasmalemas), sua estrutura e
funcionamento complexos dependem da dinâmica de rede, de redes
dentro de redes, com canais proteicos (proteínas de transporte – espécies
de atalhos entre clusters) que atravessam suas camadas, passando por
numerosos arranjos moleculares (21) até chegar, na interface com o
citoplasma, a um emaranhado de “hifas” composto por filamentos e
microtúbulos de citoesqueleto... tudo isso fluindo (imerso em fluido
extracelular). E tudo isso com a função de ser uma porta seletiva que a
140
célula usa para captar os elementos do meio exterior que são necessários
ao seu metabolismo e para liberar as substâncias que a célula produz e
que devem ser enviadas para o exterior (excreções que devem ser
libertadas e secreções que ativam várias funções de seus, por assim dizer,
“stakeholders externos”).
Esse produto de bilhões de anos de evolução biológica funciona, é claro,
como um sistema não-hierárquico, sem-administração, auto-organizado
para permitir o que chamamos de vida e não pode ser substituído por
cancelas corporativas que sigam protocolos alfandegários burros,
destinados a disciplinar a interação.
Seria inútil simular, nas organizações que voluntariamente construímos,
mecanismos semelhantes às membranas celulares. E nem seria o caso de
tentar fazê-lo, abusando do paralelo biológico. O que se deve captar aqui
é o padrão, não reproduzir o mecanismo ou simular o organismo. E o
padrão é o padrão de interação em rede.
“Membranas sociais”, seja o que forem (e como forem), serão sempre
redes (mais distribuídas do que centralizadas), interfaces. A única soluçãofluzz parece ser articular comunidades móveis (no ecossistema composto
pelos stakeholders da organização) e deixar a interação configurar tais
interfaces, esperando que elas cumpram funções equivalentes, no mundo
social, às que são desempenhadas pelas membranas celulares no mundo
biológico.
Na verdade, ao estabelecer contornos, estabelece-se a estrutura e a
dinâmica do que está dentro dos contornos. Membranas são o que são (e
141
como são) porque os meios que elas conectam são o que são (e como
são). Mas tais meios são, eles próprios, constituídos pela interação, quer
dizer, não se constituem como tais antes da interação. A membrana é um
sistema complexo porque é, simultaneamente, uma interseção de
conjuntos, uma zona de transição entre um ser e os outros seres nos quais
se insere (ou, mais genericamente, com os quais interage), uma forma de
ligação ou uma espécie de conjunção.
Ainda não sabemos muito sobre membranas e, sobretudo, sobre
“membranas sociais”. Algumas coisas, porém, já sabemos. Sabemos, por
exemplo, que deixar a interação pervadir um sistema não significa
propriamente fazer, mas – ao contrário – não-fazer: não-proibir, nãoselecionar
caminhos
(estabelecendo
apenas
alguns
caminhos,
proclamando-os como válidos e exterminando todos os demais caminhos,
decretando-os inválidos); fundamentalmente, não gerar artificialmente
escassez (22).
Sabemos também que as interfaces devem ser sociais stricto sensu e não
organizacionais (em termos das teorias da administração baseadas em
comando-e-controle). Ou seja, devem ser baseadas na livre conversação
entre pessoas e na sua espontânea clusterização e não na designação, ex
ante à interação, de caixinhas departamentais para alocar essas pessoas.
Simples assim? É, mas a conversação é algo bem mais complexo do que
parece. E os novos procedimentos e mecanismos, os novos processos de
netweaving e as novas tecnologias interativas que inventamos para
viabilizar e potencializar a conversação, alteram completamente o
multiverso das interações que chamamos de social.
142
“Membranas sociais” são interworlds. Ao constituí-las multiplicamos os
mundos, dando origem – se quisermos fazer uma comparação
quantitativa para efeitos ilustrativos – a bilhões de organizações (em vez
de milhões que existem atualmente). Uma mesma pessoa participará de
muitas
organizações,
comporá
numerosas
empresas,
entidades,
movimentos, enfim, redes – pois tudo isso é válido, claro, na medida em
que tudo for rede. Para tanto, não será necessário fazer quase nada
adicionalmente ao que já se faz hoje. Bastará não proibir a conexão, não
querer disciplinar a interação.
Um bom exemplo, hoje, são as plataformas interativas digitais, chamadas
de “redes sociais”. A quantas “redes sociais’” alguém pertence (ou seja,
em quantas mídias sociais está registrado)? O número é grande e só tende
a crescer.
Os emaranhados se adensarão a tal ponto, as timelines ficarão tão
caudalosas, que as identidades organizacionais não se manterão por
muito tempo. Despencaremos da escala de décadas e anos (que é a vida
média da imensa maioria das organizações que ainda temos) para a escala
de meses e dias (ou, quem sabe, de horas e minutos).
Não é bem como disse Andi Warhol (1968) – “no futuro todo mundo será
famoso por quinze minutos” – mas é parecido (23). Não é bem como ele
disse porque ninguém será muito famoso, no sentido de visto por todo
mundo, porque não haverá mais o mundo único forjado pelo
broadcasting. Mas é parecido porque no futuro (um conceito que também
será aposentado, de vez que não haverá mais um futuro único, um mesmo
143
futuro para todos), as organizações serão sempre transitórias, estarão
sempre fluindo para configurarem outras organizações e uma mesma
configuração não poderá perdurar por muito tempo.
É assim porque redes são móveis. Novamente as mídias sociais oferecem
uma boa imagem do que ocorre. Sites de relacionamento e plataformas
interativas nunca são as mesmas ao longo do tempo e a velocidade com
que mudam (em anos, dias ou horas) é função da sua interatividade. O
exemplo mais flagrante é o twiver (as centenas de milhões – que logo
serão bilhões, se considerarmos os sucedâneos do Twitter – de timelines
fluindo no twitter-river).
Onde e quando tudo isso vai acontecer? Vai acontecer nos Highly
Connected Worlds do terceiro milênio. Para aqueles mundos que já estão
no terceiro milênio.
144
Notas e referências
(*) A palavra ‘fluzz’ nasceu de uma conversa informal do autor, no início
de 2010, com Marcelo Estraviz, sobre o Buzz do Google. O autor
observava que Buzz não captava adequadamente o fluxo da conversação,
argumentando que era necessário criar outro tipo de plataforma (ibased e não p-based, quer dizer, baseada em interação, não em
participação). Marcelo Estraviz respondeu com a interjeição ‘fluzz’, na
ocasião mais como uma brincadeira, para tentar traduzir a idéia de
Buzz+fluxo. Ulteriormente a idéia foi desenvolvida no livro-mãe Fluzz: vida
humana e convivência social nos novos mundos altamente conectados do
terceiro milênio (2011) e passou a não ter muito a ver com o programa
mal-sucedido do Google. Fluzz (o fluxo interativo) é um conceito
complexo, sintético, que talvez possa ser captado pela seguinte passagem:
“Tudo que flui é fluzz. Tudo que fluzz flui. Fluzz é o fluxo, que não pode ser
aprisionado por qualquer mainframe. Porque fluzz é do metabolismo da
rede. Ah!, sim, redes são fluições. Fluzz evoca o curso constante que não se
expressa e que não pode ser sondado, nem sequer pronunciado do “lado
de fora” do abismo: onde habitamos. No “lado de dentro” do abismo não
há espaço nem tempo, ou melhor, há apenas o espaço-tempo dos fluxos. É
de lá que aquilo (aquele) que flui sem cessar faz brotar todos os mundos...
Em outras palavras, não existe uma mesma realidade para todos: são
145
muitos os mundos. Tudo depende das fluições em que cada um se move,
dos emaranhamentos que se tramam, das configurações de interação que
se constelam e se desfazem, intermitentemente”.
(**) Este texto foi originalmente escrito em 2010 e publicado em 2011 no
livro Fluzz: vida humana e convivência social nos novos mundos altamente
conectados do terceiro milênio. São Paulo: Escola de Redes, 2011.
(1) Cf. LORCA, Frederico Garcia (1924). “Canción Tonta” in Canciones
(Obras Completas I). Madrid: Aguilar, 1978.
(2) BARROS, Manoel (1993). Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010.
(3) LÉVY, Pierre (1998). “Uma ramada de neurônios” in Folha de São Paulo:
15/11/1998. Cf. ainda Caderno Mais da Folha de S. Paulo: 15/11/2002 (p.
5-3). O texto está disponível em:
<http://escoladeredes.ning.com/profiles/blogs/uma-ramada-deneuronios>
(4) Cf. FRANCO, Augusto (1998). O Complexo Darth Vader. Slideshare [469
views em 23/01/2011]
<http://www.slideshare.net/augustodefranco/o-complexo-darth-vader>
(5) HERBERT, Frank (1976). Os filhos de Duna. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1985.
(6) CASTELLS, Manoel (2001). A Galáxia da Internet: reflexões sobre a
Internet, os negócios e a sociedade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
146
(7) Trata-se de uma tradução forçada do provérbio “Viam aut aut faciam
inveniam” cuja localização não foi possível determinar. Cf. a bibliografia de
SENECA, Lucius Annaeus (c. 3 a. E. C. – 65) em:
<http://www.egs.edu/library/lucius-annaeus-seneca/biography/>
(8) SENECA, Lucius Annaeus (c. 3 a. E. C. – 65). Cf. Wikiquote:
<http://pt.wikiquote.org/wiki/S%C3%AAneca>
Não foi possível determinar a localização desta citação. Cf. a bibliografia
de SENECA:
<http://www.egs.edu/library/lucius-annaeus-seneca/biography/>
(9) KAVÁFIS, Konstantinos (1911). Ithaca. Kaváfis não publicou nenhum
livro em vida. Estão disponíveis online as traduções de José Paulo Paes e
Haroldo de Campos em:
<http://www.org2.com.br/kavafis.htm>
(10) CHRISTAKIS, Nicholas e FOWLER, James (2009): Connected: o poder
das conexões. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.
(11) HOBBES, Thomas (1651). Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
(12) HOBBES: Op. cit.
(13) CHRISTAKIS, Nicholas e FOWLER, James: Op. cit.
147
(14) MARGULIS, Lynn e SAGAN, Dorion (1986). Microcosmos: four billion
years of microbial evolution. Los Angeles: University of California Press,
1997.
(15) Cf. FRANCO, Augusto (2009). O poder nas redes sociais. Slideshare
[1893 views em 23/01/2011]
<http://www.slideshare.net/augustodefranco/o-poder-nas-redes-sociais2a-versao>
(16) ROBINSON, Walter (2008). “Morte e renascimento de uma mente
vulcana” in EBERL, Jason & DECKER, Kevin (2008). Star Treck e a filosofia: a
ira de Kant. São Paulo: Madras, 2010.
O sétimo sentido seria “o senso de unicidade com Tudo, isto é, Universo, a
força criativa, ou o que alguns humanos poderiam chamar de Deus.
Vulcanos não veem, contudo, isso como uma crença, seja religiosa ou
filosófica. Eles tratam isso como um simples fato que insistem não ser
mais incomum ou difícil de entender do que a habilidade de ouvir ou ver”
[como escreveu o criador da série Star Trek, Gene Roddenberry (1979)].
Vulcanos chamam essa filosofia de “Nome”, querendo dizer “uma
combinação de uma diversidade de coisas para fazer com que a existência
valha a pena” (Episódio “Por trás da cortina”: The Original Series)”. Cf.
RODDENBERRY, Gene (1979). The Motion Picture. New York: Pocket
Books, 1979.
(17) Em Os Persas, Ésquilo descreve os reveses de Xerxes, filho de Dario. Já
morto na ocasião, Dario vai então aparecer na peça como uma sombra
148
para advertir aos persas que jamais movam novamente uma guerra aos
gregos. Depois de dar adeus aos anciãos e de recomendar que, mesmo
“em meio a desgraças, alegrem-se na fruição do mundo... a Sombra de
Dario esfuma-se no túmulo”.
(18) CAMPBELL, Joseph (1988). O poder do mito (entrevistas concedidas a
Bill Moyers: 1985-1986). São Paulo: Palas Athena, 1990.
(19) MARGULIS, Lynn & SAGAN, Dorion (1998). O que é vida? Rio de
Janeiro: Zahar, 2002.
(20) A quase totalidade dos procedimentos e mecanismos de obstrução de
fluxos, estabelecidos nas organizações a pretexto de segurança, não se
justifica (em mais de 90% dos casos, não há nada de realmente decisivo,
estratégico ou sigiloso que deva ser protegido ou não-compartilhado,
fechado e trancado em vez de permanecer aberto e disponível). Isso vale
para os protocolos de segurança impostos pelas áreas chamadas de
“tecnologia da informação”. Não há qualquer ganho em proibir o acesso
dos funcionários de uma organização ao Youtube ou ao Messenger, ao
Slideshare ou ao 4shared, ao Facebook ou ao Twitter. Não há nenhuma
razão para impor programas de e-mail proprietários, lentos, pesados e
com limitações enervantes de poucos megabytes no lugar de adotar
correios eletrônicos web mais eficazes, rápidos, com alta capacidade e,
além de tudo, gratuitos (como o gmail ou o ymail). Não há nenhum motivo
para editar hierarquias de permissões diferenciais e preferências de
acesso a conteúdos que, se fossem realmente secretos (como listas de
espiões ou processos de fabricação de artefatos de destruição em massa),
149
não poderiam mesmo estar em rede. E não há explicação plausível para a
manutenção de intranets, sobretudo em uma época em que já existe a
Internet.
(21) Por exemplo, cabeças hidrofílicas com caudas hidrofóbicas em
conjugação com fosfolípidos, aglomerados de proteínas globulares,
glicoproteínas, glicolipídios, colesterol, proteínas extrínsecas etc.
(22) Cf. FRANCO, Augusto (2009). A lógica da abundância. Slideshare
[2.172 views em 23/01/2011]
<http://www.slideshare.net/augustodefranco/a-lgica-da-abundncia>
(23) WARHOL, Andi (1968). Cf. “15 minutes of fame” em
<http://en.wikipedia.org/wiki/15_minutes_of_fame>
150
O mundo não vai virar uma aldeia global, não
há um pensar global e um agir local, e
sustentabilidade não tem nada a ver com
guardar recursos para as gerações futuras
151
152
O mundo não vai virar uma aldeia global, não
há um pensar global e um agir local, e
sustentabilidade não tem nada a ver com
guardar recursos para as gerações futuras
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O mundo não vai virar uma aldeia global, não
há um pensar global e um agir local, e
sustentabilidade não tem nada a ver com
guardar recursos para as gerações futuras
155
PARA ENTRAR NO TERCEIRO MILÊNIO
Augusto de Franco, 2012.
Versão Beta, sem revisão.
A versão digital desta obra foi entregue ao Domínio Público, editada
com o selo Escola-de-Redes por decisão unilateral do autor.
Domínio Público, neste caso, significa que não há, em relação a versão digital desta
obra, nenhum direito reservado e protegido, a não ser o direito moral de o autor ser
reconhecido pela sua criação. É permitida a sua reprodução total ou parcial, por
quaisquer meios, sem autorização prévia. Assim, a versão digital desta obra pode ser –
na sua forma original ou modificada – copiada, impressa, editada, publicada e
distribuída com fins lucrativos (vendida) ou sem fins lucrativos. Só não pode ser
omitida a autoria da versão original.
FRANCO, Augusto de
PARA ENTRAR NO TERCEIRO MILÊNIO / Augusto de Franco. – São Paulo: 2012.
30 p. A4 – (Escola de Redes; 10)
1. Redes sociais. 2. Organizações. 3. Escola de Redes. I. Título.
Escola-de-Redes é uma rede de pessoas dedicadas à investigação sobre redes sociais e
à criação e transferência de tecnologias de netweaving.
http://escoladeredes.net
156
Sumário
Introdução | 9
Miríades de aldeias globais | 13
Pensar e agir glocalmente | 18
Aprender a fluir com o curso | 22
Notas e referências | 27
157
158
Introdução
À velocidade da luz não existe futuro previsível...
Não há, literalmente, futuro possível.
Você já está ali, no momento que chama de situação.
É por isso que em nossa época não existem objetivos...
Para onde vamos? Estamos todos vestidos e sem ter aonde ir.
Marshall McLuhan na Universidade York, em Toronto (1979)
PARA O MUNDO ÚNICO BROADCAST que remanesce o terceiro milênio
ainda não começou. Grandes “verdades” do final século 20 não foram
ainda revistas, conquanto não faltem evidências de seu envelhecimento.
Três exemplos eloquentes:
O mundo virou uma aldeia global? Não. Está virando miríades de
aldeias globais.
Pensar globalmente e agir localmente? Não. Pensar e agir glocalmente!
Sustentabilidade é resguardar recursos para as futuras gerações? Não.
É aprender a fluir com o curso...
159
Mundo. Tempo. A ilusão do mundo único é a ilusão do tempo único. Se os
mundos são vários, o tempo de cada mundo é diferente. Por certo, o
broadcasting sintoniza, ou melhor, uniformiza. Mas não iguala, em cada
mundo, o ritmo da fluição que transforma futuro em passado.
Se frequentemente temos a impressão de que o terceiro milênio ainda
não começou – já que as promessas de uma Nova Era que foram a ele
associadas não se realizaram – surge a pergunta: quando então ele vai
começar? Ora, levando-se em conta a existência de vários mundos, a
pergunta não tem sentido. Quando? – em um multiverso – sempre quer
dizer: para quem?
Um ano antes da sua morte, em palestra na Universidade York, em
Toronto, McLuhan (1979) disse que “à velocidade da luz não existe futuro
previsível”. E foi além: “Não há, literalmente, futuro possível. Você já está
ali, no momento que chama de situação. É por isso que em nossa época
não existem objetivos... Para onde vamos? Estamos todos vestidos e sem
ter aonde ir” (1). Talvez McLuhan tenha antevisto ou pressentido a
interação em tempo real ou sem distância nos novos mundos-fluzz (*)
quando apontou a “velocidade da luz” como fator que impossibilita o
futuro. Mas a questão não é que não exista futuro possível e sim que não
é mais possível, nos novos mundos altamente conectados que estão
emergindo, um mesmo futuro.
Não há um futuro universal porque não há um universo em termos sociais,
como acreditaram as narrativas iluministas. Como observou David de
Ugarte (2010), com a desconstituição “dos sujeitos com os quais se
160
compunha a narração histórica: as classes, as nações, os grupos de
interesse, o marco do mercado... morre esse futuro que se pretendia ‘o’
futuro” (2). Mas a questão é que todas essas narrativas pressupunham um
mesmo mundo e tentavam explicar a constituição dos sujeitos em função
de expectativas imaginadas a partir dessa abstração totalizante em que
acreditavam.
Dependendo do mundo em que se convive, “o que aconteceu [em alguns
mundos] ainda está por vir” [em outros] e para quem já vive no multiverso
dos Highly Connected Worlds “o futuro não é mais como era
antigamente”, como cantou Renato Russo (1986) (3). Com o
estilhaçamento do mundo único, o futuro também se esporaliza.
Não há mais uma saída (aliás, quando houve, não foi propriamente uma
saída senão uma permanência, um confinamento em um mundo, para
manter esse mundo contra os outros mundos possíveis). As tentativas de
transformar o mundo herdeiras do iluminismo universalista eram
tentativas contra-multiversalistas de mudá-lo para mantê-lo (como mundo
único) ou então para substituí-lo por outro mundo (também único).
Um outro mundo é possível – bradam os militantes antiglobalização que
continuam habitando o século passado. Mas um outro mundo não é mais
possível. E, se fosse, não seria desejável. Outros mundos – isto sim, no
plural – são possíveis. A saída é a entrada em outros mundos. É a
libertação deste mundo único no qual você foi aprisionado. É a sua
desistência de procurar um líder para lhe arrebanhar e guiar nessa
161
caminhada: você (esse complexo ser social que é a sua pessoa) é a saída,
ou melhor, a porta de entrada para outros mundos.
Para quem já entrou no terceiro milênio soam anacrônicas, em boa parte,
as verdades consideradas progressistas e politicamente corretas do século
passado, voltadas à mudar o mundo (quer dizer, a preservar o mundo
único), como – para citar apenas algumas como exemplos – a de que o
mundo ia virar uma aldeia global, a de que era preciso pensar globalmente
para agir localmente, a de que sustentabilidade era resguardar ou poupar
recursos para as futuras gerações. A despeito dos generalizados consensos
que se formaram em torno dessas ideias, elas são, todas, regressivas – isto
é: contra-fluzz – posto que nascidas do pavor da imprevisibilidade da
interação (**).
162
Miríades de aldeias globais
Não é que haja uma rede cobrindo o mundo. É que mundos são redes
TOM WOLFE (2003), na introdução da coletânea de palestras e entrevistas
de Marshall McLuhan, publicadas postumamente no volume intitulado
Undestanding me, escreveu sobre a euforia, que “beirava o espiritual”,
dos visionários do ciberespaço no Vale do Silício dos anos 90: “eles diziam
a todo mundo no Vale que o que estavam fazendo era muito mais do que
desenvolver computadores e criar um novo meio de comunicação
maravilhoso, a Internet. Muito mais. A Força estava com eles. Estavam
tecendo sobre a Terra uma rede inconsútil que tornaria insignificantes
todas as fronteiras nacionais e divisões raciais, transformando
literalmente a natureza da besta humana”. Esses visionários foram
inspirados, segundo Wolfe, “por um literato canadense que morreu quinze
anos antes que a Internet viesse a existir. Seu nome, desconhecido fora do
Canadá até a publicação do livro Para entender os meios de comunicação,
em 1964, era Marshall McLuhan” (4).
McLuhan ficou famoso pela previsão de que “o mundo estava se tornando
rapidamente uma ‘aldeia global’ como resultado da difusão da rede
inconsútil da televisão por toda a Terra” (5). No entanto, Wolfe teve
163
argúcia suficiente para perceber que havia uma visão espiritual de futuro
por trás das suas predições. A nova era anunciada – na qual todos
estariam, segundo o próprio McLuhan, “irrevogavelmente envolvidos uns
com os outros e seriam responsáveis uns pelos outros” – era algo mais
sublime do que uma simples utopia secular. Segundo McLuhan, “o
conceito cristão de corpo místico, de todos os homens como membros do
corpo de Cristo – isto se torna tecnologicamente um fato sob as condições
eletrônicas” (6).
Wolfe identifica aí a influência decisiva de Teilhard de Chardin sobre
McLuhan. Embora tenha falecido em 1955, antes mesmo da difusão da
televisão por todo mundo e quando os computadores ainda eram
paquidermes enjaulados em grandes centros de pesquisas e megaempresas, Chardin (1955) percebeu que a tecnologia estava criando um
“sistema nervoso para a humanidade, uma membrana única, organizada,
inteiriça sobre a Terra”, uma “estupenda máquina pensante” (7). Teilhard
de Chardin escreveu que “a era da civilização terminou e a da civilização
unificada está começando” (8) Essa membrana inteiriça (que Chardin
chamava de noosfera) – conclui Tom Wolfe – era, naturalmente, a ‘rede
inconsútil’ de McLuhan. E essa ‘civilização unificada’ era a sua ‘aldeia
global’.
Interessantíssima a sacada da membrana envolvendo a Terra (mais pelo
paralelo com uma membrana). Recentemente Don Tapscott (2006)
encarou a Internet como uma pele que cobre o planeta (9). Mas há um
problema com a idéia de que essa membrana seria “inteiriça”. Sim, todo
problema foi a idéia de alguma coisa “unificada” – termo que Chardin não
164
só afirmou como quis enfatizar. A unificação – se é que a palavra seria
adequada – não é unitária, porém fractal. Pois o mundo não virou, não
está virando, nem vai virar uma aldeia global, mas miríades de aldeias
globais.
A emergência da sociedade-rede vem acompanhada de um processo de
globalização do local e, simultaneamente, de localização do global. O
futuro mundo das redes distribuídas – se vier – não será, como previa
McLuhan, uma aldeia global, senão miríades de aldeias globais. A aldeia
global midiática (e “molar”), de Marshall McLuhan, sugere o mundo
virando um local. A sociedade-rede (“molecular”) – percebida por Levy,
Guéhenno, Castells e vários outros — sugere cada local virando o mundo,
fractalmente. Não o local separado, por certo, mas o local conectado que
tende a virar o mundo todo, desde que a conexão local-global passou a ser
uma possibilidade (10).
Em outras palavras: o mundo das redes distribuídas não vem como um
mundo único. Não é que haja uma rede (ou várias redes) cobrindo o
mundo. É que mundos são redes.
A idéia de um mundo único – ao contrário do que vaticinaram à farta os
prosélitos da Nova Era e continuam propagando militantes ambientalistas
e espiritualistas – é regressiva. Para que haja um mundo único em termos
sociais é necessário centralizar a rede (mantendo instâncias centralizadas
de difusão um-para-muitos). Para que haja um mundo único em termos
políticos também é necessário centralizar a rede (construindo
monstruosidades como um Estado planetário ou um governo mundial).
165
Para que haja um mundo único em termos de consciência unificada
(noosféricos como queria Chardin), seria preciso admitir a existência de
algum ente sobre-humano, seja um deus ou uma consciência coletiva (que
fosse capaz de ser consciente de si mesma e, neste caso, não seria
humana).
Um superorganismo coletivo está nascendo, sim, mas trata-se de um
superorganismo humano – um simbionte social –, não de um organismo
super-humano. Sua inteligência se compõe por emergência, a partir da
interação e não pode ser instalada em qualquer mainframe. É uma
inteligência tipicamente humana e não extra-humana, de um deus, de um
alienígena, de uma máquina ou da Matrix. Se esse superorganismo for
capaz de algo como uma consciência, também se tratará de uma
consciência humana composta por emergência e não de uma
superconsciência, de um olho que tudo vê e se vê ou sabe que está vendo.
Nem o velho deus hebraico (segundo a interpretação mais arguta do
esoterismo judaico) possuía tal consciência, de vez que foi levado a criar o
mundo para poder se ver no espelho da sua criação.
O modelo é autorregulacional. Assim como não há uma instância
centralizada de regulação da biosfera, assim também não pode haver uma
instância centralizada de regulação de uma sociosfera, até porque não
pode existir apenas uma sociosfera. As conexões P2P (quando o “P”
significa “pessoa”) que compõem as sociosferas não centralizam; pelo
contrário, distribuem.
166
Os visionários do ciberespaço, herdeiros do sonho mcluhiano da aldeia
global (segundo Tom Wolfe), acreditando que a Força estava com eles,
usaram-na para construir seus mainframes: seus programas e produtos
proprietários, suas caixas-pretas para trancar – esconder dos outros em
vez de compartilhar – os algoritmos que inventavam, seus bunkers
organizativos e suas fortunas pessoais.
Todavia, há uma diferença entre o que fizeram Vinton Cerf e Robert Kahn
(1975) com o Protocolo TCP/IP, Tim Berners-Lee e Robert Cailliau (1990)
com a World Wide Web, Linus Torvalds (1991) e a multidão com o Linux e
Rob McColl (1995) e a multidão com o Apache, e o que fizeram Bill Gates e
Paul Allen com a Microsoft (1975) e o Windows (1985), Steve Jobs e Steve
Wozniak com a Apple (1976) e o Mac OS (1984), Larry Page e Sergey Brin
(e Eric Shmidt) (1998) com o Google, Mark Zuckerberg e Dustin Moskovitz
(2004) com o Facebook e Evan Willians e Biz Stone (e Jack Dorsey) (2006)
com o Twitter. Estamos verificando agora em que medida eles estavam no
contra-fluzz ou com-fluzz, o curso que não pode ser aprisionado por
qualquer mainframe.
167
Pensar e agir glocalmente
Não pode haver um pensar global: seriam pensares, e eles seriam tantos
quantos os locais onde foram pensados
THINK GLOBAL, ACT GLOBAL. A frase “pensar globalmente, agir
localmente” já foi atribuída ou reivindicada – de 1915 a 1989 – por mais
de dez pessoas, desde a urbanista Patrick Geddes, passando pelo
microbiologista René Dubos, pelo teólogo Jacques Ellul e pelo
futurologista Buckminster Fuller, até chegar a Harlan Cleveland.
Tanta disputa pela fórmula ou tanta vontade de atribuir ou reivindicar a
sua paternidade, revela, é óbvio, uma concordância generalizada com a
síntese que ela pretende representar. Mas revela também uma
compreensão pouco-fluzz do mundo. Não há uma esfera global que, uma
vez percebida por inteiro ou entendida em sua totalidade, forneça
elementos para orientar a ação local.
Ninguém percebe ou entende alguma coisa fora de um local e se este local
puder se conectar a outros locais, ele então já é global (um local que foi
globalizado). Na verdade, global é uma abstração para indicar a
possibilidade de conexão com outros locais, não uma instância autônoma
concreta. Se estivermos usando a expressão global para falar da Terra,
168
então estamos falando de um local (o planeta: um global que só existirá
concretamente se for localizado).
Do ponto de vista da rede social, local é um cluster, não uma porção do
planeta físico. Desse ponto de vista, o local não está dado de antemão,
mas é constituído pela interação dos que o reconhecem como um local.
Um local em interação com outros locais é uma realidade glocal, que se
constitui quando a globalização do local encontra a localização do global.
Essa é apenas outra maneira de falar da conexão local-global, ou seja, da
interação entre diversos locais.
Os muitos mundos interagentes são realidades glocais. Se estão brotando
inumeráveis interworlds, então se trata de pensar e agir glocalmente, não
de pensar globalmente e agir localmente (ou vice-versa). Em suma, não
pode haver um pensar global: seriam pensares, e eles seriam tantos
quantos os locais onde foram pensados. Se for, entretanto, resultado da
interação com os outros locais, todo pensar será glocal e toda ação
também será glocal.
Não, não é a mesma coisa. Não é um jogo de palavras. Não pode haver um
pensar global – nem no sentido da percepção de uma esfera inteiriça ou
unificada (como queria Teilhard de Chardin) ou da percepção da aldeia
global (como queria Marshall McLuhan), nem mesmo no sentido de uma
percepção totalizante ou holística – porque isso pressupõe uma apreensão
por cima ou por fora da interação. A aldeia global de McLuhan será local,
está claro, mas nunca um único e mesmo local (pois local já pressupõe
muitos locais, cada qual – aí sim – único; do contrário desconstitui-se o
169
próprio conceito de local). Quem a perceber estará expressando a
percepção do emaranhado de conexões no qual está envolvido. Como os
emaranhados são diversos, cada percepção será também diversa.
Teremos tantas aldeias globais quanto os mundos a partir dos quais elas
são vistas como resultado de configurações particulares de interação. Ou
seja, teremos miríades de aldeias globais.
Não é a toa que a visão de McLuhan beire o espiritual (como percebeu
indiretamente Tom Wolfe) ou esteja na fronteira entre ciência e religião,
como a visão de Chardin. A rigor ela pressupõe um ser capaz de exercer a
supervisão de todas as interações, alguém, portanto, não-humano; ou
algo como uma consciência coletiva que conseguisse apreender a
totalidade, uma superconsciência ou uma consciência do que há de
comum a todas as consciências. Mas se existisse um deus ex-machina
quem teria acesso a ele: os sacerdotes? E se existisse uma consciência
coletiva com características de uma Unimatrix One, quem conseguiria vêla e receber seus “comunicados”: os borgs?
Há aqui uma confusão de conceitos, um deslizamento epistemológico para
o qual contribuiu o ambientalismo – essa espécie de religião laica de
nossos dias – ao apelar para ações locais que teriam o condão de salvar o
planeta (supostamente ‘o’ global). Como se existissem diretivas globais a
ser materializadas por diversas implementações locais. Mas quem emitiria
tais diretivas, já que ninguém vive no global? Os representantes dos
locais? Ora, mas neste caso sua percepção ou seu entendimento só
poderiam ter surgido nos diversos locais em que eles vivem e convivem e,
portanto, seriam locais (não globais). Além disso, como e por quem seriam
170
escolhidos tais representantes? Nunca surgiram respostas aceitáveis para
essas perguntas.
Por outro lado, o que seria o planeta? A geosfera e a biosfera? E as
socioesferas? A pergunta sobre as socioesferas (no plural) é relevante,
pois a combinação de expressões locais de vida e convivência social – por
mais numerosas que fossem – não poderia gerar nem ‘o’, nem ‘um’,
global. No limite teríamos, no início da segunda década deste século, sete
bilhões de expressões locais, que poderiam se combinar de trilhões de
maneiras diferentes; na verdade tais combinações seriam, por assim dizer,
praticamente inumeráveis.
Sim, mundos são redes. Senão o que seriam? A população do planeta?
Mas população é um dado estatístico, um número. A soma dos indivíduos
da espécie biológica homo não significa nada em termos humanos. E não
se pode somar pessoas.
171
Aprender a fluir com o curso
A idéia de salvar alguma coisa, arquivá-la (com quem estoca recursos)
para prorrogar a sua durabilidade, é uma idéia contra-fluzz
O AMBIENTALISMO – ainda preso às subculturas do platonismo que
pontificaram no século 20 – difundiu uma idéia de sustentabilidade
segundo a qual o uso dos recursos naturais deve suprir as necessidades da
geração presente sem afetar a possibilidade das gerações futuras de suprir
as suas.
O crédito por tal definição – que apareceu no Relatório Brundtland (1987)
– ainda é muito disputado, se bem que sua autoria seja geralmente
atribuída ao ecologista Lester Brown. O significativo é que ela foi aceita
como um consenso universal e foi tomada, axiomaticamente, como uma
verdade evidente por si mesma, passando a idéia – pouco-fluzz - de que a
sustentabilidade é uma espécie de poupança: tratar-se-ia, para efeitos
práticos, de resguardar recursos para as futuras gerações.
O ambientalismo reduziu assim a sustentabilidade à sua dimensão
ambiental, o que – até certo ponto – é explicável: foi observando os
sistemas vivos (organismos, partes de organismos e ecossistemas) que
percebemos um padrão de autorregulação e adaptação às mudanças, uma
172
capacidade desses sistemas de mudar de acordo com a mudança das
circunstâncias conservando, porém, a sua organização interna.
Mas em vez de se concentrar no padrão e tentar descobrir como
reinventá-lo em nossas atividades humanas e organizações sociais, o
ambientalismo imaginou que tudo se arranjaria a partir da compreensão
do funcionamento dos ecossistemas. Não seria então o aprendizado
coletivo, resultante da experimentação de novas formas de organização e
convivência com as diferenças humanas, como resposta aos desafios de
conservar a adaptação a um ambiente que muda continuamente – ou
seja: o aprender a fluir com o curso –, que tornaria nossas sociedades mais
sustentáveis e sim uma consciência que surgiria pelo conhecimento da
natureza e se imporia como novo padrão ético universal. Eis um novo
platonismo que, como qualquer platonismo, despreza a política, ou seja, a
interação entre os humanos ou as redes sociais.
No entanto, a mais forte evidência que temos sobre a sustentabilidade –
proveniente, aliás, da observação sistemática dos sistemas vivos – é a de
que tudo que é sustentável tem o padrão de rede (11). Ou seja, a de que só
sistemas dinâmicos complexos que adquiriram características adaptativas
– apresentando a estrutura de rede distribuída – podem ser sustentáveis.
Se foi observando os ecossistemas que logramos captar as características
de um sistema sustentável, isso não deveria ter levado a uma visão
reducionista da questão, que disseminou uma crença segundo a qual o
que está em risco é apenas a vida como realidade biológica e tentando
173
dirigir todas as nossas iniciativas de sustentabilidade para, supostamente,
“salvar o planeta”.
Sobre isso, a pergunta fundamental foi feita recentemente por Humberto
Maturana (2010) e seus colaboradores: o que queremos mesmo sustentar
(do latim sustentare: defender, favorecer, apoiar, conservar, cuidar) (12)?
A vida (em termos biológicos) é de suprema importância, é a única
realidade realmente sustentável que conhecemos, mas ela já vem se
arranjando há uns quatro bilhões de anos sem a nossa, digamos,
inestimável ajuda. Seria preciso ver então o que mais queremos sustentar,
de preferência aquilo que de fato depende de nós.
Ocorre que, por meio do que chamamos de social, estamos construindo
mundos humanos, que têm como base o mundo natural, mas que não são
consequências do mundo natural. A tentativa humana de humanizar o
mundo ou, para usar uma expressão poética, de humanizar a “alma do
mundo” por meio do social, é uma espécie de “segunda criação”. Para
quem pensa assim, a vida (o simbionte natural) é um valor principal, mas
não o único: certos padrões de convivência social, além da vida (biológica)
― como a cooperação ampliada socialmente ou a vida em comunidade, as
redes voluntárias de interação em prol da invenção de futuros comuns ou
compartilhados e a democracia na base da sociedade e no cotidiano das
pessoas ― também constituem valores inegociáveis, quer dizer, valores
que não podem ser trocados pelo primeiro. De nada adiantaria, desse
ponto de vista, trocar a livre convivência pela sobrevivência sob um
império milenar de “seres superiores” (como um IV Reich, por exemplo).
174
Surpreendentemente, aquilo que devemos preservar é, justamente, o que
pode nos preservar como sociedade tipicamente humana. Cooperação,
voluntariado, redes e democracia (em suma, tudo o que produz, relacionase ou constitui o que foi chamado de capital social) são os elementos da
nova criação humana ― e humanizante ― do mundo (o simbionte social),
que lograram se configurar como padrões de convivência social e que vale
realmente a pena preservar. E são esses os elementos que podem garantir
a sustentabilidade das sociedades humanas e das organizações que as
compõem (13).
Eis a razão pela qual a sustentabilidade das sociedades humanas não pode
ser alcançada apenas com a adoção de princípios ecológicos (como
querem os defensores ambientalistas ou ecologistas da sustentabilidade,
ainda afeitos a uma visão pré-fluzz de que existe algo como uma
consciência capaz de mudar comportamentos), porque, no caso das
sociedades, trata-se de outros mundos (humano-sociais) que têm como
base o mundo natural, mas que não são consequências dele.
A idéia de salvar alguma coisa, arquivá-la (como quem estoca recursos)
para
prorrogar
sua
durabilidade
(outra
confusão
ao
definir
sustentabilidade que foi muito comum no velho mundo fracamente
conectado) é uma idéia contra-fluzz. Sustentabilidade não é durar para
sempre. Nada dura para sempre. E a espécie humana também não durará.
Ao que tudo indica desaparecerá bem antes da biosfera (pelo menos a
biosfera deste planeta, a única que conhecemos por enquanto). Mas a
própria biosfera (da Terra e, se houver, de outros lugares do universo)
também desaparecerá. O sol deixará de ser uma estrela amarela em 5
175
bilhões de anos (com 4 bilhões de anos a nossa biosfera já esgotou quase
a metade do seu tempo de vida). A Via Láctea está em rota de colisão com
a galáxia de Andrômeda, a 125 quilômetros por segundo e o desastre
ocorrerá nos próximos 10 bilhões de anos. Este universo, surgido no Big
Bang, será extinto no Big Crunch ou virará um cemitério gelado se sua
expansão não for revertida.
Enquanto isso, nem mesmo a vida, nem a convivência social,
permanecerão como são – ou desaparecerão prematuramente! Mas
poderão ser sustentáveis na medida em que aprenderem a fluir com o
curso, quer dizer, a mudar em congruência dinâmica e recíproca com a
mudança das circunstâncias. Sim, sustentável não é o que permanece
como é (ou está), mas o que muda continuamente para continuar sendo
(o que pode vir-a-ser).
Se um ente ou processo durar (como é), certamente não será sustentável.
Se não aceitar a morte, se buscar uma maneira de se esquivar do fluxo
transformador da vida, nada poderá ser sustentável. Se não aceitar o fluxo
transformador da convivência social nenhum dos mundos que cocriamos
poderá ser sustentável.
Tais mundos sociais que constituímos quando vivemos a nossa
convivência não serão sustentáveis na medida em que quisermos
permanecer no “lado de fora” do abismo. Esse horror ao caos que
caracteriza todas as organizações hierárquicas nada mais é do que o medo
de perder uma ordem pregressa ao se abandonar à livre-interação.
176
Notas e referências
(*) A palavra ‘fluzz’ nasceu de uma conversa informal do autor, no início
de 2010, com Marcelo Estraviz, sobre o Buzz do Google. O autor
observava que Buzz não captava adequadamente o fluxo da conversação,
argumentando que era necessário criar outro tipo de plataforma (ibased e não p-based, quer dizer, baseada em interação, não em
participação). Marcelo Estraviz respondeu com a interjeição ‘fluzz’, na
ocasião mais como uma brincadeira, para tentar traduzir a idéia de
Buzz+fluxo. Ulteriormente a idéia foi desenvolvida no livro-mãe Fluzz: vida
humana e convivência social nos novos mundos altamente conectados do
terceiro milênio (2011) e passou a não ter muito a ver com o programa
malsucedido do Google. Fluzz (o fluxo interativo) é um conceito complexo,
sintético, que talvez possa ser captado pela seguinte passagem: “Tudo que
flui é fluzz. Tudo que fluzz flui. Fluzz é o fluxo, que não pode ser
aprisionado por qualquer mainframe. Porque fluzz é do metabolismo da
rede. Ah!, sim, redes são fluições. Fluzz evoca o curso constante que não se
expressa e que não pode ser sondado, nem sequer pronunciado do “lado
de fora” do abismo: onde habitamos. No “lado de dentro” do abismo não
há espaço nem tempo, ou melhor, há apenas o espaço-tempo dos fluxos. É
de lá que aquilo (aquele) que flui sem cessar faz brotar todos os mundos...
Em outras palavras, não existe uma mesma realidade para todos: são
177
muitos os mundos. Tudo depende das fluições em que cada um se move,
dos emaranhamentos que se tramam, das configurações de interação que
se constelam e se desfazem, intermitentemente”.
(**) Este texto foi originalmente escrito em 2010 e publicado em 2011 no
livro Fluzz: vida humana e convivência social nos novos mundos altamente
conectados do terceiro milênio. São Paulo: Escola de Redes, 2011.
(1) MCLUHAN, Marshall (1979). “O homem e os meios de comunicação” in
McLUHAN, Stephanie & STAINES, David (2003). McLuhan por McLuhan
(Understandig me). Rio de Janeiro: Ediouro, 2005.
(2) Cf. UGARTE, David (2010). Los futuros que vienen. Madrid: Grupo
Cooperativo de las Índias, 2010. “Descomposición es descomposición
también, y sobre todo, de los sujetos con los que se componía la narración
histórica: las clases, las naciones, los grupos de interés, el marco de
mercado… con ellos muere ese futuro que se pretendía el futuro y que es
precisamente aquel por el que los universalistas se afanan. Ese futuro
universal es hoy un enfermo crónico en fase terminal. Nacido en el siglo
XVIII, tuvo su crisis adolescente con el Romanticismo, su madurez con el
progresismo decimonónico y su primera crisis grave con los genocidios
cometidos por el estado alemán durante la Segunda Guerra Mundial”.
(3) RUSSO, Renato (1986). “Índios” in Dois: Emi, 1986.
(4) WOLFE, Tom (2003). “Introdução” in McLUHAN, Stephanie & STAINES,
David (2003): Op. cit.
(5) MCLUHAN, Marshall apud WOLFE: Ed. cit.
178
(6) Idem.
(7) CHARDIN, Teilhard (1955). O fenômeno humano. São Paulo: Cultrix,
1989.
(8) CHARDIN: Op. cit.
(9) TAPSCOTT, Don e WILLIAMS, Anthony (2006). Wikinomics: como a
colaboração pode mudar o seu negócio. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,
2007.
(10) FRANCO, Augusto (2003). A revolução do local: globalização,
glocalização, localização. Brasília/São Paulo: AED/Cultura, 2003.
(11) Cf. FRANCO, Augusto (2008). Tudo que é sustentável tem o padrão de
rede: sustentabilidade empresarial e responsabilidade corporativa no
século 21. Curitiba: Escola-de-Redes, 2008.
(12) Comunicação pessoal ao autor feita por alunos do curso BiologiaCultural ministrado pela Escola Matriztica de Santiago em 2010.
(13) FRANCO, Augusto (2008). Tudo que é sustentável tem o padrão de
rede: ed. cit.
179
180
A livre aprendizagem
na sociedade em rede
181
182
A livre aprendizagem
na sociedade em rede
183
184
A livre aprendizagem
na sociedade em rede
185
NÃO-ESCOLAS A livre aprendizagem na sociedade em rede
Augusto de Franco (em interação com Nilton Lessa), 2012.
Versão Beta, sem revisão.
A versão digital desta obra foi entregue ao Domínio Público, editada
com o selo Escola-de-Redes por decisão unilateral do autor.
Domínio Público, neste caso, significa que não há, em relação a versão digital desta
obra, nenhum direito reservado e protegido, a não ser o direito moral de o autor ser
reconhecido pela sua criação. É permitida a sua reprodução total ou parcial, por
quaisquer meios, sem autorização prévia. Assim, a versão digital desta obra pode ser –
na sua forma original ou modificada – copiada, impressa, editada, publicada e
distribuída com fins lucrativos (vendida) ou sem fins lucrativos. Só não pode ser
omitida a autoria da versão original.
FRANCO, Augusto de
NÃO-ESCOLAS / Augusto de Franco (em interação com Nilton Lessa) – São
Paulo: 2012.
48 p. A4 – (Escola de Redes; 11)
1. Redes sociais. 2. Organizações. 3. Escola de Redes. I. Título.
Escola-de-Redes é uma rede de pessoas dedicadas à investigação sobre redes sociais e
à criação e transferência de tecnologias de netweaving.
http://escoladeredes.net
186
Sumário
Introdução | 9
A emergência da livre-aprendizagem | 11
Aprendizagem, não ensino | 15
Autodidatismo, não heterodidatismo | 19
Alterdidatismo, não heterodidatismo | 25
Não-escolas: a escola é a rede | 31
Matar a escola = matar o Buda | 34
Notas e referências | 44
187
188
Introdução
FASCINANTE! Escolas, igrejas, partidos, Estados, empresas hierárquicas:
construímos tais instituições – que continuam reproduzindo o velho
mundo; sim, são elas que fazem isso – como artifícios para escapar da
interação, para ficar do “lado de fora” do abismo, para nos proteger do
caos...
As escolas (e o ensino) tentam nos proteger da experiência da livre
aprendizagem. As igrejas (e as religiões) tentam nos proteger da
experiência de deus. Os partidos (e as corporações) tentam nos proteger
das experiências da política (pública) feitas pelas pessoas no seu cotidiano.
Os Estados tentam nos proteger das experiências glocais (de localismo
cosmopolita). E as empresas (hierárquicas) tentam nos proteger da
experiência de empreender.
Por isso que escolas são igrejas, igrejas são partidos, partidos são
corporações que geram Estados, que também são corporações, que viram
religiões, que reproduzem igrejas, que se comportam como partidos...
Porque, no fundo, é tudo a mesma coisa: artifícios para proteger as
pessoas da experiência de fluzz (*). (Não é a toa que todas essas
instituições hierárquicas exigem “monogamia” dos que querem manter
189
capturados, como se dissessem: “- Você é meu! Nada de transar com
estranhos”).
Uma vez desconstituídos tais arranjos feitos para conter, contorcer e
aprisionar fluxos, disciplinando a interação, uma vez corrompidos os
scripts dos programas verticalizadores que rodam nessas máquinas (e que,
na verdade, as constituem), o velho mundo único se esboroa.
Isso está acontecendo. Não-escolas, não-igrejas, não-partidos, nãoEstados-nações e não-empresas-hierárquicas começam a florescer. Com
tal florescimento, a estrutura e a dinâmica das sociosferas estão sendo
radicalmente alteradas neste momento, mas não por formidáveis
revoluções épicas e grandes reformas conduzidas por extraordinários
líderes heroicos, senão por pequenas experiências, singelas, líricas, vividas
por pessoas comuns! Aquelas mesmas experiências de interação das quais
fomos poupados. É como se tudo tivesse sido feito para que não
experimentássemos padrões de interação diferentes dos que deveriam ser
replicados. Mas nós começamos a experimentar. E “aqui estamos – como
escreveu Hakim Bey (1984) em Caos – engatinhando pelas frestas entre as
paredes da Igreja, do Estado, da Escola e da Empresa, todos os monólitos
paranoicos”.
Neste texto vamos examinar o ensino e a escola para contemplar as
possibilidades da livre-aprendizagem na sociedade-em-rede (**).
190
A emergência da livre-aprendizagem
As instituições e os processos educativos foram pensados para um tipo
de sociedade que está deixando de existir
Não é novidade para ninguém que, no mundo atual, qualquer pessoa que
saiba ler e escrever e tenha acesso à Internet pode aprender muito mais
do que podia há dez anos. Sim, isso é fato. Uma criança com noções
rudimentares de um ou dois idiomas falados por grandes contingentes
populacionais (como o inglês ou o espanhol, por exemplo), já é capaz de
aprender muito mais – e com mais velocidade – do que um jovem com o
dobro da sua idade que, há dez anos, estivesse matriculado em uma
instituição de ensino altamente conceituada. Diz-se agora que, se souber
ler (e interpretar o que leu), escrever, aplicar conhecimentos básicos de
matemática na solução de problemas cotidianos e... banda larga, qualquer
um vai sozinho.
A novidade é que isso não depende, nem apenas, nem principalmente, da
tecnologia stricto sensu e sim de novos padrões de organização social que
estão se configurando na contemporaneidade. Uma sociedade em rede
está emergindo e, progressivamente, tornando obsoletos as instituições e
os processos hierárquicos da velha sociedade de massa, inclusive as
instituições e processos educacionais. Novas tecnologias de informação e
191
comunicação – que permitem a interação horizontal ou entre pares
(pessoa-com-pessoa) em tempo real – estão acelerando esse processo.
Mas novas tecnologias sociais, tão ou mais importantes do que essas
(chamadas TICs), também estão contribuindo para mudar radicalmente as
condições de vida e convivência social neste dealbar do século 21.
Tudo isso vai mudar, em parte já está mudando, a maneira como
executamos as nossas atividades empresariais, governamentais e sociais.
Vai mudar a maneira como nos organizamos para produzir e comercializar,
governar e legislar e conviver com as outras pessoas na sociedade. E –
como não poderia deixar de ser – isso também está mudando a forma
como aprendemos.
O problema é que as instituições e os processos educativos que foram
pensados para um tipo de sociedade que está deixando de existir (à
medida que emerge uma nova sociedade cuja morfologia e dinâmica já
são, em grande parte, as de uma rede distribuída) ainda remanescem e
continuam aplicando seus velhos métodos. Em que pese o papel
fundamental que cumpriram nos últimos séculos, essas instituições e
processos já começam hoje a ser obstáculos à criatividade e à inovação.
O que tivemos, pelo menos nos dois últimos séculos, foi, em grande parte,
uma educação massiva e repetitiva, voltada para enquadrar as pessoas em
um tipo insustentável de sociedade (instalando nas suas mentes
programas maliciosos, elaborados para infundir noções de ordem,
hierarquia, disciplina e obediência) e para adestrar a força de trabalho,
para que os indivíduos pudessem reproduzir habilidades requeridas pelos
192
velhos processos produtivos e administrativos e executar rotinas
determinadas.
Agora estamos, porém, vivendo a transição para outra época, para uma
nova era da informação e do conhecimento, na qual as capacidades
exigidas são outras também. Nesta nova sociedade do conhecimento, o
que se requer é que as pessoas sejam capazes de criar e de inovar,
mudando continuamente os processos de produção e de gestão para
descobrir maneiras melhores de fazer e organizar as coisas.
E isso elas só conseguirão na medida em que tiverem autonomia para
aprender o que quiserem, da forma como quiserem e quando quiserem e
para se relacionar produtivamente com outras pessoas de sua escolha,
gerando cada vez mais conhecimento – o principal bem, conquanto
intangível, deste novo mundo que já está se configurando.
Faz-se necessário, pois, libertar o processo educativo das amarras que
tentam normatizá-lo de cima para baixo, em instituições organizadas
igualmente de cima para baixo, hierarquizadas, burocratizadas e fechadas,
desenhadas para guardar em caixinhas o suposto conhecimento a ser
transferido, de uma maneira pré- determinada, para indivíduos que
preencherem determinadas condições (e, não raro, à revelia do que eles
próprios desejariam de fato aprender). Ora, já se viu que o conhecimento
é uma relação social e não um objeto que possa ser estocado,
transportado, transferido ou transfundido de um emissor para um
receptor. O processo de geração e compartilhamento do conhecimento
ocorre na sociedade e torna-se cada vez mais difícil, custoso e
193
improdutivo quando tentamos parti-lo em pedaços para arquivá-lo nos
escaninhos de uma organização separada da sociedade por paredes
opacas e impermeáveis.
O que de tão importante se descobriu nos últimos anos é que, em última
instância, quem é educadora é a sociedade, a cidade, a localidade onde as
pessoas vivem e se relacionam. Na verdade, foi uma redescoberta
democrática: Péricles, no século 5 a. E. C., já havia percebido este papel
educador da polis enquanto comunidade política, quando declarou –
segundo Tucídides – na oração fúnebre proferida no final do primeiro ano
da guerra do Peloponeso, “que a cidade inteira é a escola da Grécia e creio
que qualquer ateniense pode formar uma personalidade completa nos
mais distintos aspectos,dotada da maior flexibilidade e, ao mesmo tempo,
de encanto pessoal”.
Portanto, sistemas educativos devem ser, sempre, sistemas sócioeducativos configurados em localidades, em sócio-territorialidades, quer
dizer, em redes sociais que se conformam como comunidades
compartilhando agendas de aprendizagem.
194
Aprendizagem, não ensino
As escolas foram urdidas para nos proteger da experiência da livre
aprendizagem
- PSIU! CALE A BOCA. Comporte-se! Pare de conversar. Pare de perguntar.
Em vez de conversação, silêncio. A quem é inferior (ignorante) cabe
apenas ouvir o superior (aquele que sabe). Isto foi, é e sempre será escola:
um artifício para proteger os alunos da experiência de fluzz.
Sim, escolas não são comunidades de aprendizagem. São burocracias do
ensinamento. Não são redes distribuídas de pessoas voltadas à busca e ao
compartilhamento do conhecimento. São hierarquias sacerdotais cujo
principal objetivo é ordenar indivíduos capazes de reproduzir atitudes de
disciplina e obediência. Não são ambientes favoráveis à emergência de
dinâmicas interativas, mas à imposição de relações intransitivas.
Estruturas centralizadas, baseadas na separação de corpos: docente
(hierarquia-ensinante) x discente (massa-ensinada).
A arquitetura traduz o conceito. Na chamada educação formal, escolas são
construções que aprisionam crianças e jovens em salas fechadas,
obrigados a sentar enfileirados, como gado confinado ou frangos de
granja; pior: nas “salas de aula” ficam alguns – a maioria – olhando para a
195
nuca dos outros. São campos de concentração e adestramento, onde o
aluno tem de saltar obstáculos, vencer as provas. São prisões temporárias
em que se tem de cumprir a pena, pagar a dívida. Não é por acaso que a
maior recompensa na escola é passar de ano. Ano após ano. Até sair. Ufa! Livre afinal.
Por que construímos tal aberração?
Fomos levados a acreditar que o ensino era o antecedente da
aprendizagem. Em termos lógicos formais: ensino => aprendizagem;
donde, formalmente: não-aprendizagem => não-ensino. Mas ao que tudo
indica o ensino surgiu – como instituição – de certo modo, contra a
aprendizagem. E não-ensino, dependendo das circunstâncias, pode até
aumentar as possibilidades de aprendizagem. O que é sempre um perigo
para alguma estrutura de poder.
Onde começou o ensino? Qual é a origem do professor? Ora, ensino é
ensinamento. Mas ensinamento é, originalmente, (reprodução de)
estamento (ou da configuração recorrente de um cluster enquistado na
rede social). Alguém tem alguma coisa que precisa transmitir a outros.
Precisa mesmo? Por quê? Alguém conduz (um conteúdo determinado,
funcional para a reprodução de uma estrutura e suas funcionalidades). E
alguém recebe tal conteúdo (tornando-se apto a reproduzir tal estrutura e
tais funcionalidades). Eis a tradição!
Os primeiros professores – parece evidente – foram os sacerdotes. A
primeira escola já era uma burocracia sacerdotal do conhecimento (uma
estrutura hierárquica voltada ao ensinamento). Isso significa que só há
196
ensinamento se houver hierarquia (uma burocracia do conhecimento).
Sim, todo corpus sacerdotal é docente. A tradição é tão forte que há até
bem pouco a doutrina oficial católica romana (e ela não é a única) ainda
dividia a igreja em docente (ensinante: os hierarcas) e discente (ensinada:
os leigos). E as escolas, que também se estruturaram, em certo sentido,
como igrejas (mesmo as laicas), consolidaram sua estrutura com base na
separação de corpos entre docentes e discentes.
O que se ensina é um ensinamento. Quando você ensina, há sempre um
ensinamento. Mas quando você aprende há apenas um aprendizado, não
há um “aprendizamento”, quer dizer, um conteúdo pré-determinado do
aprendizado. O que se aprende é o quê? Ah! Não se sabe. Pode ser
qualquer coisa. Não está predeterminado.
Eis a diferença! Eis o ponto! A aprendizagem é sempre uma invenção. A
ensinagem é uma reprodução. Mas como escreveu o poeta Manoel de
Barros (1986) no Livro sobre Nada: “Tudo que não invento é falso” (1).
O professor como transmissor de ensinamento e a escola como aparato
separado (sagrado na linguagem sumeriana) surgiram, inegavelmente,
como instrumentos de reprodução de programas centralizadores
(verticalizadores) que foram instalados para verticalizar (centralizar) a
rede-mãe.
As escolas foram urdidas para nos proteger da experiência da livre
aprendizagem. Toda verdadeira aprendizagem é livre. E toda livre
aprendizagem é desensino. Aprender sem ser ensinado é subversivo. É um
197
perigo para a reprodução das formas institucionalizadas de gestão das
hierarquias de todo tipo.
Por isso o reconhecimento do conhecimento é, até hoje, um
reconhecimento não do conhecimento-aprendido, mas do conhecimentoensinado, dos graus alcançados por alguém no processo de ordenação a
que foi submetido.
Mas como tuitou Pierre Lévy (2010), as universidades não têm mais o
monopólio da distribuição do conhecimento; restou-lhes tentar reter em
suas mãos o monopólio da distribuição do diploma.
198
Autodidatismo, não heterodidatismo
Eu busco o conhecimento que me interessa do meu próprio jeito
NA TRANSIÇÃO DA SOCIEDADE HIERÁRQUICA para a sociedade em rede
estamos condenados a nos tornar buscadores cada vez mais autônomos. É
assim que transitaremos do heterodidatismo para o autodidatismo:
quando pudermos dizer: eu busco o conhecimento que me interessa do
meu próprio jeito.
Aprender a aprender é a condição fundamental para a livre aprendizagem
humana em uma sociedade inteligente. É ensejar oportunidades aos
educandos de se tornarem educadores de si mesmos (aprendendo a andar
com as próprias pernas ao se libertarem das muletas do heterodidatismo).
O educando-buscador será um educador não-ensinante. Porque será um
aprendente (2).
Nos Highly Connected Worlds, todos seremos, em alguma medida,
autodidatas. Um autodidata é alguém que aprendeu a aprender. Uma
criança, ou mesmo uma pessoa adulta ou idosa, navegando, lendo e
publicando na web, é, fundamentalmente, um autodidata.
Todo aprendizado depende da capacidade de estabelecer conexões e
199
reconhecer padrões. Cada vez mais será cada vez menos necessário que
alguém ensine isso. Quando as possibilidades de conexão aumentam,
também aumentam as possibilidades de reconhecer padrões (porque
aumenta a frequência com que, conhecendo uma diversidade cada vez
maior de padrões, nos deparamos com homologias entre eles); quer dizer
que, a partir de certo grau de conectividade, o heterodidatismo não será
necessário.
Nos dias de hoje, uma criança com acesso à Internet já é capaz de
aprender muito mais – e com mais velocidade – do que um jovem com o
dobro da sua idade que, há dez anos, estivesse matriculado em uma
instituição de ensino altamente conceituada. Se souber ler (e interpretar o
que leu), escrever, aplicar conhecimentos básicos de lógica e matemática
na solução de problemas cotidianos e... banda larga, qualquer um vai
sozinho. Ora, isso é terrível para os que querem adestrar as pessoas com o
propósito de fazê-las executar certos papéis predeterminados. Isso é um
horror para os que querem formar o caráter dos outros e inculcar seus
valores nos filhos alheios.
Colecionadores de diplomas e títulos acadêmicos não terão muitas
vantagens em uma sociedade inteligente. Suas vantagens proveem da
idéia de que a sociedade é burra (e eles, portanto – que compõem a
burocracia sacerdotal do conhecimento – são os inteligentes). Para se
destacar dos demais – quando o desejável seria que se aproximassem
deles – os “sábios” precisam que a sociedade continue burra.
Nos novos mundos altamente conectados do terceiro milênio quem
200
organiza o conhecimento é a busca. Mas os caras ainda insistem em
querer organizar o conhecimento para você (isto é o hetero-didatismo).
Toda organização do conhecimento para os outros corresponde a
necessidades de alguma instituição hierárquica e está sintonizada com
seus mecanismos de comando-e-controle. Toda organização do
conhecimento de cima para baixo procura controlar e direcionar o acesso
à informação por algum meio. Os organizadores do conhecimento para os
outros ainda entendem conhecimento como “informação interpretada”.
Interpretada, é claro, do ponto de vista de seus possíveis impactos sobre a
estrutura e a dinâmica das organizações hierárquicas de que fazem parte.
Pretendem, assim, induzir comportamentos adequados à reprodução da
estrutura e da dinâmica dessas organizações hierárquicas. Por meio da
urdidura de sistemas de gestão do conhecimento – desde os velhos
currículos escolares aos modernos knowledge management systems, por
exemplo – querem codificar, disseminar e direcionar a apropriação de
conhecimentos para formar agentes de manutenção e reprodução de
determinado padrão organizacional.
Mas já vivemos em um momento em que não se pode mais trancar o
conhecimento – esse bem intangível que, se for aprisionado (estocado,
protegido, separado), decresce e perde valor e, inversamente, se for
compartilhado (submetido à polinização ou à fertilização cruzada com
outros conhecimentos) cresce, gera novos conhecimentos e aumenta de
valor (e é isto, precisamente, o que se chama de inovação). E estamos nos
aproximando velozmente de uma época em que será cada vez menos
necessária uma infraestrutura hard instalada para produzir conhecimento
201
(e inclusive outros produtos tangíveis, como estão mostrando as
experiências nascentes de peer production ou crowdsourcing).
Novos ambientes interativos surgidos com a Internet já estão mostrando
também a improdutividade (ou a inutilidade mesmo) de classificar o
conhecimento a partir de esquema classificatório construído de antemão.
Por exemplo, nos primeiros tempos do Gmail havia a recomendação: não
classifique, busque! Hoje continua lá, literalmente: “O foco do Google é a
pesquisa, e o Gmail não é exceção: você não precisa perder tempo
classificando seu e-mail, apenas procure uma mensagem quando precisar
e a encontraremos para você”.
É claro que as buscas atuais (na Internet, por exemplo) ainda são feitas em
mecanismos fechados que não permitem que o usuário redefina ou
modifique os algoritmos de acordo com suas percepções e necessidades.
Mas a tendência é que a busca seja cada vez mais programável e cada vez
mais semântica (3).
A busca semântica substituirá boa parte dos esforços feitos até agora para
“organizar” o conhecimento. Mas é o perfil da busca – bottom up – que
vai dizer qual o conhecimento que é relevante e não a decisão de um
centro de comando-e-controle que queira dizer às pessoas – top down – o
que elas devem conhecer.
Todos esses esforços por manter padrões verticais de um tipo de
sociedade que já está fenecendo vão ser implacavelmente punidos pelas
estruturas e pelas dinâmicas horizontais emergentes das novas sociosferas
que estão florescendo. Nesses mundos altamente conectados toda a
202
gestão de organizações (inclusive a gestão do conhecimento) é regulada
por meio de outros processos em rede.
O autodidata é um buscador, mas quem busca é a pessoa. A pessoa é o
indivíduo conectado e que, portanto, não se constitui apenas como um
íon social vagando em um meio gelatinoso e exibindo orgulhosamente
suas características distintivas e sim também como um entroncamento de
fluxos, uma identidade que se forma a partir da interação com outros
indivíduos. A pessoa como continuum de experiências intransferíveis e, ao
mesmo tempo, como série de relacionamentos, aprende por estar imersa
(conectada) em um ambiente educativo entendido como ambiente de
aprendizagem.
Headhunters inteligentes não estão mais se impressionando tanto com a
coleção de diplomas apresentados por um candidato a ocupar uma vaga
em uma instituição qualquer. Querem saber o que a pessoa está fazendo.
Querem saber o que ela pode ser a partir do que pretende (do seu projeto
de futuro) e não o que ela é como continuidade do que foi (da repetição
do seu passado). Está certo: como se diz, o passado “já era”. O novo posto
pretendido não será ocupado no passado e sim no futuro. Então o que é
necessário avaliar é a linha de atuação ou de pensamento que está sendo
seguida pelo candidato.
Em breve, as avaliações de aprendizagem serão feitas diretamente pelos
interessados em se associar ou em contratar (lato sensu) uma pessoa.
Redes de especialistas de uma área ou setor continuarão avaliando os
especialistas da sua área ou setor. Mas essa avaliação será cada vez
203
horizontal. E, além disso, pessoas avaliarão outras pessoas a partir do
exame das suas expressões de vida e conhecimento, pois que tudo isso
estará disponível, será de domínio público e não ficará mais guardado por
uma corporação que tem autorização exclusiva para acessar e licença
oficial para interpretar tais dados.
Cada pessoa poderá ter, por exemplo, a sua própria wikipedia. Ao invés de
aceitar apenas as oblíquas interpretações doutas, passaremos a verificar
diretamente a wikipedia de cada um – o arquivo-vivo que contém as
definições dos termos habituais, os pontos de vista, as referências, os
trabalhos e as conclusões sobre os assuntos da sua esfera de
conhecimento e de atuação. Quem gostar do que viu, que contrate ou se
associe ao autor daquela wikipedia. Ponto final.
204
Alterdidatismo, não heterodidatismo
“Eu guardo o meu conhecimento nos meus amigos”
DE CERTO PONTO DE VISTA, nos Highly Connected Worlds qualquer um vai
sozinho, desde que tenha aprendido o fundamental. O fundamental, como
vimos, é aprender a aprender. O fundamental não pode estar baseado na
transferência
de
conteúdos
temáticos
secundários
e
sim
na
disponibilização de ferramentas de auto-aprendizagem e de comumaprendizagem. Os que se metem a organizar processos educativos para os
outros deveriam começar perguntando o que é necessário para que uma
pessoa e uma comunidade possam fazer o seu próprio itinerário de
aprendizagem.
Do ponto de vista do aprendizado – do sujeito aprendente e não do objeto
ensinado –, três condições caracterizam a inteligência tipicamente
humana (quer dizer, sintonizada com o emocionar humano): estabelecer
conexões; reconhecer padrões; e linguajear e conversar (no sentido que
Humberto Maturana confere a essas noções) (4).
A partir daí estamos falando de humanos (e é necessário fazer essa
ressalva porquanto máquinas também podem aprender) e podemos então
listar as ferramentas de autoaprendizagem ou “alfabetizações” (em um
205
sentido ampliado): a alfabetização propriamente dita, na língua natal (ler e
escrever e interpretar o que leu); e as outras “alfabetizações”, como, por
exemplo, em uma segunda língua da globalização (pelo menos ler, em
inglês ou espanhol); matemática (dominar as operações matemáticas
elementares e aplicar esses conhecimentos básicos na vida cotidiana);
lógica (aprender a argumentar e identificar erros lógicos em argumentos
simples); digital (navegar e publicar na Internet e operar as ferramentas
digitais de inserção, articulação e animação de redes).
Estes – ao que parece – são os requisitos e as ferramentas
contemporâneas da inclusão educacional. Quem dispõe deles pode
caminhar sozinho; ou seja, de posse de tais instrumentos, cada um, em
função de suas opções pessoais, pode traçar seus próprios itinerários de
formação e compartilhá-los com suas redes de aprendizagem. Esses são os
requisitos para o autodidatismo.
No entanto, de outro ponto de vista – o do alterdidatismo – a rigor,
ninguém pode continuar caminhando sozinho. Aprender a aprender está
intimamente relacionado a aprender a interagir em rede. Mesmo que a
escola básica se dedicasse precipuamente a isso, mesmo assim não se
poderia abrir mão da educação em casa (a primeira rede social na qual o
ser humano se conecta), nem da educação comunitária (a expansão dessa
rede, envolvendo os vizinhos, os amigos e conhecidos mais próximos).
O aprender a conviver (com o meio natural e com o meio social) talvez
requeira outras “alfabetizações”: por exemplo, a alfabetização em
sustentabilidade (incluindo alfabetização ecológica e alfabetização para o
206
empreendedorismo e para o desenvolvimento humano e social
sustentável local ou comunitário); e a alfabetização democrática (em um
sentido deweyano do termo: para a vida comunitária e para as formas de
relacionamento que ensejam a regulação social emergente; i. e., as redes
sociais distribuídas). Mas essas “alfabetizações” não são temas
curriculares ou disciplinas. São drives capazes de gerar agendas
compartilhadas de aprendizagem.
Não é por acaso que a educação para a sustentabilidade, quer dizer, para
a vida (em um sentido ampliado, envolvendo os ecossistemas, inclusive o
ecossistema planetário) e para convivência social, não compareçam nos
currículos escolares. Elas não são propriamente objetos de ensino e sim de
aprendizagem-na-ação compartilhada. Ninguém é capaz de aprender
essas coisas apenas tomando aulas ou lendo textos. É necessário vivê-las,
experimentá-las, ou melhor, convivê-las (e é por isso que são drives
geradores de agendas compartilhadas de aprendizagem).
É compartilhando essas agendas de aprendizagem que o educador se
torna um educando (um aprendente da interação educadora). Nesse
aprender-fazendo esvai-se a distinção entre professor e aluno: todos
passam a ser agentes comunitários de educação.
Portanto, quando se diz (do ponto de vista do autodidatismo) que
qualquer um vai sozinho, e quando se diz (do ponto de vista do
alterdidatismo) que, a rigor, ninguém pode caminhar sozinho, está-se
dizendo a mesma coisa: que o heterodidatismo no qual se baseiam os
sistemas de ensino é uma muleta que deve ser abandonada.
207
Na transição da sociedade hierárquica para a sociedade em rede estamos
condenados a nos tornar polinizadores cada vez mais interdependentes. É
assim que transitaremos do heterodidatismo para o alterdidatismo:
quando pudermos dizer: eu guardo o meu conhecimento nos meus
amigos.
A escola que já se prefigura no final desse trajeto é uma não-escola. A
escola é a rede. Nela, todos seremos alterdidatas. Um alterdidata é
alguém que aprendeu a conviver com o meio natural e com o meio social
em que vive.
Aprender a conviver com o meio natural e com o meio social é ensejar
oportunidades aos educadores de se tornaram educandos da interação
comunitária na nova sociedade em rede (desaprendendo ensinagem ao se
libertarem das muletas do heterodidatismo). O educador-polinizador será
alguém que desaprendeu a ensinar. Porque será um aprendente.
Dominar a leitura e a escrita, saber calcular e resolver problemas, ter
condições de compreender e atuar em seu entorno social, ter habilidade
para analisar fatos e situações e ter capacidade de acessar informações e
de trabalhar em grupo, são geralmente apresentados como objetivos do
processo educacional básico. No entanto, para além, muito além, de tudo
isso, os novos ambientes educativos em uma sociedade-rede tendem a
valorizar outras competências ou habilidades, como a de identificar
homologias
entre
configurações
recorrentes
de
interação
que
caracterizam clusters (e, consequentemente, reconhecer potenciais
sinergias e aproveitar oportunidades de simbiose), saber não apenas
208
acessar, mas produzir e disseminar informações e conseguir não somente
trabalhar em grupo, mas fazer amigos e viver e atuar em comunidade.
De certo modo, tudo o que parece realmente necessário para a
convivência ou a vida em rede, como a educação para a democracia, a
educação para o empreendedorismo e para o desenvolvimento ou a
sustentabilidade, não comparece nos currículos das escolas. Não pode ser
por acaso. Isso talvez corrobore a constatação de que a escola é uma das
instituições que mais resistem ao surgimento da sociedade- rede.
Por quê? Ora, porque embora se declarem instituições laicas, as escolas
são, no fundo, igrejas; ou seja, ordens hierárquicas (sacerdotais) que
decidem o que as pessoas devem (saber) reproduzir. Graus de
aprendizagem (na verdade, de ensino) são ordenações: medem a sua
capacidade de replicar uma determinada ordem. Não é por acaso que a
educação a distância encontrou fortíssima resistência na academia. Pelos
mesmos motivos, processos e programas educacionais extraescolares são
duramente
combatidos
pelas
corporações
de
professores,
que
argumentam – sem se darem conta de que, com isso, estão apenas
revelando seu caráter sacerdotal – que não se pode deixar a educação nas
mãos de leigos...
No entanto, neste momento estão sendo elaboradas e testadas
metodologias compatíveis com processos de inteligência coletiva (“learn
from your neighbours” - Steve Johnson; “I store my knowledge in my
friends” - Karen Stephenson) baseadas na idéia de cidade educadora
reconceitualizada como cidade-rede de comunidades que aprendem.
209
Novas práticas estão surgindo a partir de experiências voltadas ao
estímulo ao autodidatismo, adaptadas às novas formas de interação
educativa
extraescolares,
como
o
homeschooling
e,
sobretudo,
communityschooling, porém na linha do unschooling. Novas teorias da
aprendizagem, como o conectivismo, estão tentando mostrar como as
redes sociais devem constituir o padrão de organização das novas
comunidades de aprendizagem capazes de disseminar e empregar
ferramentas de autoaprendizagem e de comum-aprendizagem (5).
210
Não-escolas: a escola é a rede
Nós produzimos nosso conhecimento comunitariamente (em rede)
NOS HIGHLY CONNECTED WORLDS a educação não pode ser mais nada
disso que andaram falando nos últimos quatro séculos do mundo único.
Simplesmente porque não haverá ‘a’ educação.
O conceito de educação – ao contrário do que parece – é um conceito
totalizante e regressivo. Não é a toa que tenha surgido juntamente com o
conceito de sociedade. Não pode existir ‘a’ educação, assim como não
pode existir ‘a’ sociedade. Não há uma educação e sim uma diversidade de
processos de aprendizagem. Não há uma sociedade e sim uma diversidade
de sociosferas.
O consenso que se generalizou sobre ‘a’ educação é paralisante. A crença
de que a educação vai resolver todos os problemas está tão generalizada
que as pessoas sequer percebem que, se isso fosse verdade, países como
a Bulgária ou Cuba seriam considerados desenvolvidos.
Quando os processos de aprendizagem forem libertados – ou quando a
geração de sociosferas (uma espécie de “lei do ventre livre” social) for
libertada: no fundo é a mesma coisa! – a educação na sociedade
211
terminará.
A escola que já se prefigura no final desse trajeto é uma não-escola. A
escola é a rede. Nela, todos seremos autodidatas e alterdidatas: quando
pudermos dizer: nós produzimos nosso conhecimento comunitariamente
(em rede).
Um autodidata-alterdidata é alguém que aprendeu a aprenderconvivendo. Como buscadores e polinizadores, não seremos ensinados
nem ensinadores. Porque todos seremos aprendentes.
Sociosferas em que as redes são as escolas serão aquelas “sociedades
desescolarizadas”, como queria o visionário Ivan Illich (6). A sociedade
sem escola de Illich poderia ser renomeada como a sociedade-escola,
desde que ficasse claro que se trata da sociedade- rede; ou seja, estamos
falando das comunidades educadoras que se formam na sociedade-rede.
Nesse sentido, não são os aparatos educativos hierárquicos, enquistados
na sociedade, que educam basicamente: na medida em que a sociedade
de massa vai dando lugar à sociedade em rede, são as próprias sociosferas
(glocais) que educam, por meio das comunidades (clusters) que
necessariamente se formam em seu seio.
Comunidades educadoras são, antes de qualquer coisa, comunidades de
aprendizagem, quer dizer, comunidades-que-aprendem. Isso vale para
tudo, não apenas para as escolas como aparatos da educação formal.
Também virarão não-escolas os centros de pesquisa e investigação, as
sociedades filosóficas e os grupos criativos que usinam novas ideias e
212
inauguram novas maneiras de pensar (a escola na sua acepção de think
tank ou escola de pensamento).
213
Matar a escola = matar o Buda
Quando o mestre está preparado, o discípulo desaparece
É DIFÍCIL ENTENDER A NATUREZA de uma não-escola. No mundo único as
pessoas buscavam um sistema produtor de respostas capazes de fazer
sentido global para elas. Eram atraídas por religiões, igrejas e seitas
(religiosas e laicas), sociedades filosóficas e escolas de pensamento
(mesmo aquelas que, baseadas na conversação, se intitulavam
comunidades). Elas forneciam a proteção contra a pergunta-disruptiva por
meio de uma meta-explicação coerente, a segurança de uma grande
narrativa totalizante ou de esquemas explicativos gerais que permitiam
que alguém se identificasse e comungasse com outros que palmilhavam o
mesmo caminho e tivesse, assim, uma justificativa ética para se fechar à
interação com o outro-imprevisível. Mas tudo isso é escola!
É muito difícil não construir um esquema organizador para as conversas
mantidas por qualquer grupo. Mas a tarefa em uma não-escola não é criar
uma espécie de wikipedia, nem mesmo uma contextopedia, com os
significados que foram sendo construídos via consenso-administrado a
partir do debate ou da conversação. Não há significados gerais universais.
Não há significados sempre válidos para os mesmos contextos (inclusive
214
porque, a rigor, nunca se repetem "mesmos contextos"). Há significâncias
atribuídas por sujeitos em interação e válidas para os momentos de
interação em que tais sujeitos estão envolvidos. São significados-fluzz, que
mudam continuamente com o fluxo e o máximo que podemos fazer é
mapear as relações entre esses significados mutantes. Sim, reconheçamos
que não é fácil para nós aceitar o presente, não é fácil resistir à tentação
de arquivar o passado em caixinhas, sobretudo se as plataformas que
utilizamos são p-based (baseadas em participação) e não i-based
(baseadas em interação).
Mas já não se trata mais de sistematizar conteúdos ou de interpretar e
sintetizar respostas cognatas ou convergentes. Trata-se agora apenas de
linkar para facilitar a busca. Quem organiza o conhecimento é a busca.
Quem produz (novo) conhecimento (como relação sempre inédita, não
como conteúdo arquivável) não é a gestão, mas a interação.
Na configuração de novos ambientes interativos de produção de
conhecimento não deve haver "progresso", no sentido de constituição de
um corpo coerente, que vai se tornando cada vez mais redondo e polido
(até que a epistemologia consiga espelhar a ontologia). Não se trata de
construir um códex, uma doutrina, um ensinamento, uma teoria
explicativa de tudo, uma nova plataforma de visão de mundo. Isso é o que
diferencia
as
novas
escolas-não-escolas
dos
mundos
altamente
conectados, de uma escola, quer dizer, de uma igreja (7).
Sim, as escolas como centros de pensamento também são igrejas. Elas
surgem quando criamos programas de separação entre os de dentro e os
215
de fora a partir de um conteúdo, de uma mensagem, de uma doutrina, de
um conjunto de ideias que alguns compartilham e outros não. Se fizermos
isso, erigiremos uma escola; quer dizer, uma igreja.
Se você junta os que compartilham qualquer corpo de ideias (mesmo que
sejam ideias tão heterodoxas e libertárias como estas que estão sendo
expostas aqui e agora) e, a partir daí, constrói um coletivo, você está
fazendo uma escola. Não importa o que você pense, valorize, fale ou
pregue: você ensina, quer dizer, escorre por um sulco já cavado pelo
ensinamento!
Há uma coerência interna e há completude em boa parte das escolas de
pensamento que floresceram nos milênios passados. É como um mundo
que foi construído (e ninguém se engane: há sabedoria nesse mundo; a
questão é que sabedoria não pode ser um critério aceitável para validar
sistemas hierárquicos). E ocorre que existem múltiplos mundos. Se você
exige que uma pessoa viva na coerência do mundo que você construiu
como condição para se deixar alterar por essa pessoa (ou seja, interagir
com ela), então você não está realmente aberto à interação (com o outroimprevisível): você quer participação dos outros no seu espaço, o que é
uma forma de exigir (sem aparentemente fazer qualquer exigência formal)
que os outros vivam na mesma coerência em que você vive. Mas essa é a
definição de seita, de escola.
Não é um problema de comunicação, de adaptar a linguagem ou adotar
uma postura tática para se fazer entender pelos "de fora". Nada disso. O
problema aqui é a rede (ou melhor, a falta dela)
216
Esse comportamento em geral não é intencionalmente constituído e
reproduzido. Ele é uma decorrência do padrão de organização adotado.
Faça uma rede aberta de conversações e ele se esfuma; ou seja, a escola
desaparece para surgir em seu lugar uma rede de livre aprendizagem.
Assim como desaparecerá o codex, o corpo doutrinário referencial único:
ou seja, o legado fundante da escola de pensamento desaparecerá para
dar lugar a miríades de construções conceituais por ele inspiradas.
O problema é que toda ereção de um sistema implica uma armadilha.
Você fica rodando dentro dele. E para dialogar com as pessoas que vivem
nele, você também precisa também rodar dentro dele. A palavra "rodar",
aqui, é empregada no sentido contemporâneo de "rodar um programa"
(software). Sim, porque o sistema sobre o qual falamos, é um programa de
atribuições de significados e, mais do que isso, de construção dos
processos particulares pelos quais se atribui significados. Para interagir
com quem está dentro do sistema você precisa se plugar e "carregar" o
programa (em você). Ao carregar o programa, você carrega também sua
linguagem (script) e, além disso, seu linguajeado e, às vezes, até mesmo
seu gestual.
Pode-se retrucar que isso ocorre, em maior ou menor medida, com
qualquer
construção
conceitual
que
apresente
os
critérios
epistemológicos de coerência interna e completude. É verdade. Mas
quando o sistema valida seus argumentos internamente, estando os
critérios de validação tão implicados no que se quer validar e vice-versa
(ou seja, estando a epistemologia tão fundida à ontologia), a
verificabilidade fica subordinada (sub-ordenada) pela explicação auto-
217
referente. É por isso que, em ciência, não se pode abrir mão do critério da
verificabilidade, que deve ter o mesmo status epistemológico dos critérios
da coerência interna e da completude (as quais, sozinhas, não bastam).
Assim, os resultados de uma explicação devem sempre poder ser
verificados por sujeitos que adotam outros esquemas explicativos.
Um bom exemplo de escola de pensamento é a escola freudiana nos seus
primórdios. Uma pessoa deve poder verificar os efeitos do que a
explicação freudiana atribui a determinado complexo sem ter que adotar
a explicação freudiana. Se sou obrigado a me tornar freudiano para
perceber os fenômenos psíquicos que poderiam ocorrer com quaisquer
seres humanos independentemente da explicação freudiana (e da
existência de Freud), então estou preso a um sistema incapaz de interagir
com outras explicações (externas às circularidades freudianas). E corro o
risco de recair no dogmatismo dos primeiros freudianos: uma pessoa deve
poder contestar a existência de um complexo sem ser acusada de estar
fazendo isso justamente por estar possuída por tal complexo. Em alguma
medida, isso ocorre com todos os sistemas autorreferentes, sobretudo na
sua "primeira-infância".
Eric Raymond (2001), no Hacker Howto (8) aconselhava o estudo do Zen
aos hackers, sem dúvida um formidável software de desconstituição de
certezas, compartilháveis por uma ou várias comunidades. Talvez seja o
caso, porém, de voltar ao Tao, para limar as aderências doutrinárias que o
Zen adquiriu: ao se fundir ao budismo foram introduzidos conteúdos...
Sim, continua sendo o Zen, mas só depois de você matar o Buda.
218
Qualquer comunidade de pensamento precisa matar o seu fundador (que
é, inclusive, a melhor forma de amá-lo). Quando esse fundador é uma
pessoa, precisa se livrar das aderências de um modo-de-argumentar, de
uma autêntica maneira particular de pensar, falar e escrever que fazia
sentido para aquele ser humano unique que a fundou. E o passo seguinte
dessa ação de amar tão profundamente o fundador ao ponto de matá-lo é
não constituir um grupo proprietário em torno de suas ideias, de abrir
mão de erigir um corpo docente (uma escola) a partir de um corpo teórico
para propagar um ensinamento que possa ser diferencialmente
ministrado por "representantes autorizados", ainda que tudo isso seja – o
que será pior – chancelado pelo próprio fundador. Isso é uma condição de
contorno opaca quando precisamos de membranas.
Não afirmamos que se deva matar o fundador apenas no sentido de matar
a sua imagem idealizada e introjetada, tal como alguns interpretam o lema
killing the buddha (como disse a pessoa-zen Lin Chi: “Se o Buda cruzar seu
caminho, mate-o”). Trata-se de desabilitar um programa verticalizador
que roda na rede gerando instituições que congelam fluxos. Trata-se de
'matar a escola' (no caso, constituída sobre um legado de pensamento
transformado em ensinamento).
Não tem nada a ver com querer ver morto algum fundador por achar que
ele já está caduco ou ultrapassado. É o contrário. Quando se diz "matar o
Buda" isso significa uma admiração suprema pelo Buda, como
prefiguração do Buda que está-em-devir em cada um de nós e que só vai
despertar quando o Buda que está fora desaparecer como referência
(externa porém introjetada em uma espécie de falsa conniunctio). Mas,
219
particularmente, no contexto desta discussão, significa matar a escola
como ordenação do ensinamento abrindo possibilidades de formação de
múltiplas comunidades de aprendizagem para além do círculo restrito dos
que se matriculam em um curso ou seguem um programa privando da
convivência de um grupo determinado.
Ocorre que com a acelerada emergência, agora, dos Highly Connected
Worlds, vida humana e convivência social tendem a se aproximar a ponto
de revelar ou deixar entrever um superorganismo humano. Isso nos obriga
a mudar nossas interpretações. E é um choque para as chamadas
tradições espirituais (todas estas são artifícios para administrar
espiritualidades conformes ao mundo patriarcal e não por acaso são
baseadas nas escolhas do indivíduo, são ministradas por escolas burocracias sacerdotais do ensinamento - e mantêm a relação mestrediscípulo). Agora será preciso mostrar que quando o mestre está
preparado, o discípulo desaparece e, portanto, chegar à condição de
mestre é chegar à condição do aprendente: aquele que matou o mestre
não apenas quando matou a imagem idealizada do mestre dentro de si
(introjetada), mas quando matou a escola. E tudo isso para quê? Ora, para
que o Buda morto não renasça nas mãos dos que o mataram.
Em outras palavras, não há como construir a base ideológica (ou de
mundivisão) para uma grande narrativa em uma época em que não cabem
mais os esquemas totalizantes de apreensão do mundo e de interação
com o mundo. Não é mais possível a existência de uma (única) matriz ética
para a humanidade. Em uma época em as redes cobrem o planeta como
uma pele e em que, por um processo fractal, uma pluralidade de mentes
220
globais está surgindo, não se trata mais de forjar um grupo para usinar um
modelo e espalhá-lo e sim de surfar nas ondas interativas que estão
fertilizando os diversos modelos que emergem de uma diversidade de
comunidades de prática, de aprendizagem e de projeto que estão
brotando e submetendo seus programas à esse tipo de polinização
complexa. Essa visão é chave para não irmos parar de volta em algum
lugar do passado: o processo é fractal! Não é possível salvar o mundo de
uma vez: só é possível salvá-lo um instante de cada vez... (9) Mesmo
porque não existe mais um mundo: os mundos já são – e serão, cada vez
mais – múltiplos.
Sim, não estamos mais na época do anúncio de uma nova proposta que,
se abraçada por muitos no seu refletir-agir, vai supostamente salvar o
planeta (harmonizar biosfera com antroposfera), redimir a humanidade ou
nos levar para um porvir radiante. Não sabemos qual é o futuro.
Sobretudo porque esse futuro (um futuro), felizmente, morreu. Não
podemos pretender levar ninguém para lugar algum. A época em que
vivemos é a época da desistência (10). A hora que vivemos é, portanto, a
hora de abrir mão dessas pretensões de conduzir povos, orientar nações,
mobilizar pessoas em torno de um objetivo comum para transformar a
sociedade (e ‘a’ sociedade, como vimos, é uma abstração regressiva).
Fomos contaminados por um padrão transformacional de mudança e
queremos então transformar a sociedade. Mas... transformar para chegar
aonde? E transformar o quê? E transformar em quê? E transformar por
quê?
221
Atravessados por essa pulsão transformacionista, legiões de militantes
que continuam habitando os séculos passados vivem querendo fazer
mudanças (que eles não podem, honestamente, saber quais são) em
nome de uma causa. Mas é inútil. As mudanças em sistemas complexos (e
as sociedades humanas são sistemas complexos) ocorrem, em boa parte,
espontaneamente (se entendermos por isso que ocorrem em virtude de
fluições que não alcançamos compreender e determinar). Estamos
lidando com uma ordem de fenômenos que não podemos manejar (e é
bom para a liberdade – para a livre aprendizagem humana – que não
possamos fazer isso). A livre aprendizagem humana só pode ocorrer em
redes de aprendizagem, quando nos libertarmos das escolas.
Se quisermos uma rede de aprendizagem – i. e., uma não-escola – não
podemos constituir um grupo que saia pelo mundo propagando um
legado baseado nas ideias de algum fundador. Para ser uma rede, o
legado tem que ser open, para poder ser desenvolvido, alterado,
modificado, sem necessidade de ordenação ou chancela. Para poder ser
rede a membrana deve deixar entrar e sair outros conteúdos dentro do
escopo estabelecido (posto que se será uma rede voluntariamente
construída haverá um escopo delimitado e algumas regras ou acordos de
convivência, mas isso nada tem a ver com a adesão a um conteúdo
substantivo). Sempre sem exigências, é claro. Mas sabendo que sem
interagir com o outro imprevisível, com aquele que não planejamos
interagir, não pode haver rede (social distribuída).
Em suma, uma escola deve ser uma não-escola para ser rede. Não basta
fluir na sintonia interna dos que acolhem o outro que reconhecem como
222
desejoso de conservar o que querem conservar, do lugar onde estão,
desde que esse conservar seja referente a um compartilhar um
determinado conteúdo. Dizendo a mesma coisa de outra forma, não é o
desejo (dos sujeitos) de conservar determinado corpo teórico, nem
mesmo o desejo de conservar um modo de convivência explicitável e
explicável (pelos sujeitos) que constitui a comunidade humana (ou a rede).
A rede acontece quando você interage. Tudo que podemos fazer para
ensejar a interação é evitar a produção artificial de escassez (é mais um
não-fazer). Não adianta sistematizar conteúdos e esperar que,
sintonizando-se com tais conteúdos, as pessoas passarão a conviver em
rede. Isso ainda está no terreno do proselitismo (uma dimensão de
ensino, de propagação de ensinamento, não de aprendizagem). As regras
ou acordos de convivência estabelecidos por uma rede voluntariamente
construída não são o mesmo que a adesão a um conteúdo substantivo (e,
portanto, ninguém pode ser expulso de uma não-escola por estar em
desacordo ou dessintonia com um conteúdo e ninguém terá como
condição para ser admitido estar de acordo com tal conteúdo, como
fazem as religiões, as seitas iniciáticas e as escolas de pensamento,
inclusive as escolas budistas que aconselham matar o Buda).
223
Notas e referências
(*) A palavra ‘fluzz’ nasceu de uma conversa informal do autor, no início
de 2010, com Marcelo Estraviz, sobre o Buzz do Google. O autor
observava que Buzz não captava adequadamente o fluxo da conversação,
argumentando que era necessário criar outro tipo de plataforma (i-based
e não p-based, quer dizer, baseada em interação, não em participação).
Marcelo Estraviz respondeu com a interjeição ‘fluzz’, na ocasião mais
como uma brincadeira, para tentar traduzir a idéia de Buzz+fluxo.
Ulteriormente a idéia foi desenvolvida no livro-mãe Fluzz: vida humana e
convivência social nos novos mundos altamente conectados do terceiro
milênio (2011) e passou a não ter muito a ver com o programa
malsucedido do Google. Fluzz (o fluxo interativo) é um conceito complexo,
sintético, que talvez possa ser captado pela seguinte passagem: “Tudo que
flui é fluzz. Tudo que fluzz flui. Fluzz é o fluxo, que não pode ser
aprisionado por qualquer mainframe. Porque fluzz é do metabolismo da
rede. Ah!, sim, redes são fluições. Fluzz evoca o curso constante que não se
expressa e que não pode ser sondado, nem sequer pronunciado do “lado
de fora” do abismo: onde habitamos. No “lado de dentro” do abismo não
há espaço nem tempo, ou melhor, há apenas o espaço-tempo dos fluxos. É
de lá que aquilo (aquele) que flui sem cessar faz brotar todos os mundos...
Em outras palavras, não existe uma mesma realidade para todos: são
224
muitos os mundos. Tudo depende das fluições em que cada um se move,
dos emaranhamentos que se tramam, das configurações de interação que
se constelam e se desfazem, intermitentemente”.
(**) Este texto foi originalmente escrito em 2010 e publicado em 2011
como capítulo 7 do livro Fluzz: vida humana e convivência social nos novos
mundos altamente conectados do terceiro milênio. São Paulo: Escola de
Redes, 2011.
(1) BARROS, Manoel (1986). Livro sobre Nada in Poesia Completa. São
Paulo: Leya, 2010.
(2) O termo ‘aprendente’, conquanto seja uma tentativa de escapar de
categorias
mais
educando/educador,
problemáticas
mestre/aprendiz,
como
que
docente/discente,
introduzem
relações
dicotômicas e não expressam adequadamente relações sociais envolvidas
em aprendizagem, também não é muito adequado. São sempre pessoas
aprendendo na interação. Essas observações forem feitas por Nilton Lessa,
à quarta versão do texto “Buscadores e Polinizadores”. Cf. FRANCO,
Augusto (2010). Buscadores & Polinizadores. Slideshare [2.865 views em
23/01/2011]
<http://www.slideshare.net/augustodefranco/buscadores-polinizadores4a-verso>
(3) Cf. Observações de Nilton Lessa à FRANCO, Augusto (2010).
Buscadores & Polinizadores: ed. cit.
(4) Cf. FRANCO, Augusto (2001). Uma teoria da cooperação baseada em
225
Maturana. Aminoácidos 4. Brasília: AED, 2002.
(5) Cf. e. g., a Biblioteca do Conectivismo da Escola-de-Redes:
<http://escoladeredes.ning.com/group/bibliotecadoconectivismo>
(6) ILLICH, Ivan (1970). Sociedade sem escolas. Petrópolis: Vozes, 1985.
(Na verdade o título dessa tradução, para ser fiel ao original, deveria ser
“Desescolarizando a sociedade”)
(7) Este parágrafo e vários dos seguintes da mesma seção (“Mata a escola
= matar o Buda”) foram elaborados originalmente durante uma polêmica
conversação, ocorrida entre 27 de abril e 24 de maio de 2010, na Escolade-Redes, com Ignácio Munõz Cristi e outros interlocutores sobre “redes
sociais entendidas como redes fechadas de conversações no espaço
social”. Para conhecer a íntegra da discussão acesse:
<http://escoladeredes.ning.com/group/biologiacultural/forum/topics/red
es-sociais-entendidas-como>
(8) RAYMOND, Eric (2001). How To Become A Hacker. Disponível em:
<http://www.catb.org/~esr/faqs/hacker-howto.html>
(9) BRABO, Paulo (2007). “Microsalvamentos: como salvar o mundo um
instante de cada vez” in <http://www.baciadasalmas.com>
(10) Cf. as conversações do grupo da Escola-de-Redes intitulado “A
desistência como ativismo”:
<http://escoladeredes.ning.com/group/desista>
226
O reflorescimento da espiritualidade
nos novos mundos altamente conectados
do terceiro milênio
227
228
O refloresc imento da espiritualida de nos
novos mundos altamente conectados do
terceiro milênio
229
230
O refloresc imento da espiritualida de nos
novos mundos altamente conectados do
terceiro milênio
231
SEM RELIGIÃO E SEM IGREJA
Augusto de Franco, 2012.
Versão Beta, sem revisão.
A versão digital desta obra foi entregue ao Domínio Público, editada
com o selo Escola-de-Redes por decisão unilateral do autor.
Domínio Público, neste caso, significa que não há, em relação a versão digital desta
obra, nenhum direito reservado e protegido, a não ser o direito moral de o autor ser
reconhecido pela sua criação. É permitida a sua reprodução total ou parcial, por
quaisquer meios, sem autorização prévia. Assim, a versão digital desta obra pode ser –
na sua forma original ou modificada – copiada, impressa, editada, publicada e
distribuída com fins lucrativos (vendida) ou sem fins lucrativos. Só não pode ser
omitida a autoria da versão original.
FRANCO, Augusto de
SEM RELIGIÃO E SEM IGREJA / Augusto de Franco – São Paulo: 2012.
44 p. A4 – (Escola de Redes; 12)
1. Redes sociais. 2. Organizações. 3. Escola de Redes. I. Título.
Escola-de-Redes é uma rede de pessoas dedicadas à investigação sobre redes sociais e
à criação e transferência de tecnologias de netweaving.
http://escoladeredes.net
232
Sumário
Introdução | 9
Espiritualidade, não religião | 11
Os deuses não existem | 16
Ecclesias, não ordens sacerdotais | 26
Não há uma ordem preexistente | 30
Não existe mais caminho | 36
Notas e referências | 39
233
234
Introdução
FASCINANTE! Escolas, igrejas, partidos, Estados, empresas hierárquicas:
construímos tais instituições – que continuam reproduzindo o velho
mundo; sim, são elas que fazem isso – como artifícios para escapar da
interação, para ficar do “lado de fora” do abismo, para nos proteger do
caos...
As escolas (e o ensino) tentam nos proteger da experiência da livre
aprendizagem. As igrejas (e as religiões) tentam nos proteger da
experiência de deus. Os partidos (e as corporações) tentam nos proteger
das experiências da política (pública) feitas pelas pessoas no seu cotidiano.
Os Estados tentam nos proteger das experiências glocais (de localismo
cosmopolita). E as empresas (hierárquicas) tentam nos proteger da
experiência de empreender.
Por isso que escolas são igrejas, igrejas são partidos, partidos são
corporações que geram Estados, que também são corporações, que viram
religiões, que reproduzem igrejas, que se comportam como partidos...
Porque, no fundo, é tudo a mesma coisa: artifícios para proteger as
pessoas da experiência de fluzz (*). (Não é a toa que todas essas
instituições hierárquicas exigem “monogamia” dos que querem manter
235
capturados, como se dissessem: “- Você é meu! Nada de transar com
estranhos”).
Uma vez desconstituídos tais arranjos feitos para conter, contorcer e
aprisionar fluxos, disciplinando a interação, uma vez corrompidos os
scripts dos programas verticalizadores que rodam nessas máquinas (e que,
na verdade, as constituem), o velho mundo único se esboroa.
Isso está acontecendo. Não-escolas, não-igrejas, não-partidos, nãoEstados-nações e não-empresas-hierárquicas começam a florescer. Com
tal florescimento, a estrutura e a dinâmica das sociosferas estão sendo
radicalmente alteradas neste momento, mas não por formidáveis
revoluções épicas e grandes reformas conduzidas por extraordinários
líderes heroicos, senão por pequenas experiências, singelas, líricas, vividas
por pessoas comuns! Aquelas mesmas experiências de interação das quais
fomos poupados. É como se tudo tivesse sido feito para que não
experimentássemos padrões de interação diferentes dos que deveriam ser
replicados. Mas nós começamos a experimentar. E “aqui estamos – como
escreveu Hakim Bey (1984) em Caos – engatinhando pelas frestas entre as
paredes da Igreja, do Estado, da Escola e da Empresa, todos os monólitos
paranoicos”.
Neste texto vamos examinar as religiões e igrejas para contemplar as
possibilidades de reflorescimento da espiritualidade nos novos mundos
altamente conectados do terceiro milênio (**).
236
Espiritualidade, não religião
Formas pós-religiosas de espiritualidade, livres das ordenações das
burocracias sacerdotais
NOS NOVOS MUNDOS ALTAMENTE CONECTADOS que estão emergindo,
formas pós-religiosas de espiritualidade vão florescer. Elas serão maisfluzz, quer dizer, mais expressões do curso que flui nas relações entre os
humanos e dos humanos com o seu habitat do que tentativas de sintonia
com um todo cósmico extra-humano. Elas serão espiritualidades
consumáveis na interatividade ("terrestres" no sentido de serem
realizáveis sem produzir anisotropias no espaço-tempo dos fluxos).
Por isso se diz: quando fluzz soprar, prá que religião, prá que igreja?
Humberto Maturana (1993) reinterpretou a origem das crenças místicas
que estão na base das experiências que dão significado à vida humana a
partir da hipótese de que havia (ou poderia e, então, poderá novamente
haver) uma "espiritualidade" inerentemente terrestre (como a que
apresentavam
supostamente
as
sociedades
agricultoras-coletoras
incidentes na Europa pré-patriarcal) (1).
O relevante nesse esforço de modificação do passado (quer dizer, de
modificação do passado que só não-passou porque continua dentro da
237
nossa mente, ou melhor, continua se propagando através da cultura, dos
programas que "rodam" na rede social e por isso se replicam) é que essa
"espiritualidade" ou experiência mística não gerou propriamente religiões.
A visão de Maturana sobre o que chamamos de religião é precisa: "uma
religião é um sistema fechado de crenças místicas, definido pelos crentes
como o único correto e plenamente verdadeiro" (2).
Com efeito, para ele,
"No processo de defender o seu viver místico, os patriarcas indoeuropeus criaram uma fronteira de negação de todas as
conversações místicas diferentes das suas. E estabeleceram, de fato,
uma distinção entre o que passou a ser legítimo e ilegítimo, crenças
verdadeiras e falsas. No âmbito espiritual, realizaram a praxis de
exclusão e negação que, operacionalmente, constitui as religiões
como domínios culturais de apropriação das mentes e almas dos
membros de uma comunidade pelos defensores da verdade ou das
"crenças" verdadeiras... [Quando se forma uma comunidade de
crentes] o corpo de crenças adotadas pelos novos crentes - qualquer
que seja sua complexidade e riqueza - não constitui uma religião.
Isso só ocorre se os membros dessa comunidade afirmarem que suas
crenças revelam ou envolvem alguma verdade universal, da qual
eles se apropriaram por meio da negação de outras crenças... A
apropriação de uma verdade mística ou espiritual que se sustenta
como verdade universal constitui o ponto de partida ou de
nascimento de uma religião" (3).
238
Se Maturana pode imaginar uma matriz assim, projetando-a no passado,
também podemos fazer o mesmo, projetando-a no futuro. No mundo que
criou, Maturana está absolutamente certo do ponto de vista dos novos
mundos que quisermos cocriar.
A dimensão mística (ou espiritual) faz parte de qualquer cultura que se
possa chamar propriamente de humana. Como bem define Maturana, "a
experiência mística - repito: a experiência na qual uma pessoa vive a si
mesma como componente integral de um domínio mais amplo de relações
de existência... depende da rede de conversações em que ela está imersa,
e na qual vive a pessoa que tem essa experiência" (4).
Não há, portanto, qualquer problema com a espiritualidade. O problema é
com a religião. Não precisamos para nada de uma pós-espiritualidade e
sim de novas formas (pós-religiosas) de espiritualidade.
Podemos erigir igrejas, em um sentido amplo do termo (tão amplo que
abarque até mesmo as escolas), sem ter religião (e podemos, ainda,
codificar religiões laicas). Mas igreja, stricto sensu, só surge realmente
quando erigimos um corpo separado de intérpretes, ou seja, uma
burocracia sacerdotal que, por algum motivo, seja ordenada para fazer
alguma intermediação entre o leigo (o não ordenado) e a revelação ou a
fonte prístina da doutrina codificada (como nas religiões baseadas em
escrituras).
Todas as chamadas tradições espirituais que surgiram na civilização
patriarcal são míticas-sacerdotais-hierárquicas-autocráticas. E não é a toa
que se possa falar de uma tradição: há um fundo comum a todas elas.
239
Todas - não apenas as templárias - replicam anisotropias no espaço-tempo
dos fluxos (privilegiando, de alguma forma, a direção vertical).
As doutrinas da tradição verticalizaram o mundo "povoando” todo o
universo simbólico - ou aquilo que foi chamado de "mundo da psique" com formas que não concorrem para o estabelecimento de um cosmos
social que mantenha as mesmas propriedades em todas as direções, mas,
pelo contrário, que privilegiam a direção vertical. Não é por outro motivo
que achamos que deus está em cima e que o céu está em cima; o caminho
evolutivo é sempre pensado como uma subida e o regressivo como uma
descida. São camadas e camadas de interpretações simbólicas,
depositadas uma sobre a outra, milênio após milênio.
Basta entrar em um templo de qualquer ordem espiritual tradicional para
se perceber com que profundidade o universo simbólico está marcado
pela direção vertical. Nessas construções – sobretudo da tradição
ocidental, herdeira do simbolismo templário babilônico, i. e., sumério – o
caminho que nos conduz para deus, representado em geral por um
triângulo, passa entre as duas colunas que se elevam do piso plano. E
então encontramos o triângulo com o vértice para cima, sobre o
quadrado, o pentagrama verticalmente orientado e muitas outras
"orientações" que "norteiam" o desenvolvimento dos rituais e das práticas
mágicas. O conteúdo ideológico que esses símbolos encarnam está
inegavelmente associado à idéia de um poder vertical, do qual a pirâmide
é o mais expressivo exemplo. E há ainda as escadas, muitas escadas,
introduzidas por primeiro pelos templos sumérios - os zigurates: pirâmides
240
feitas de escadas, com degraus representando graus de subida; ou de
descida.
Se houver uma mística (ou espiritualidade) não-patriarcal (nem matriarcal,
é óbvio) ela será terrestre (horizontal, ou melhor, multidirecional). Tomase aqui "terrestre" como isotrópico (nada de privilegiar a direção vertical:
as fluições devem manter as mesmas propriedades em todas as direções).
Ora, isso casa perfeitamente com a idéia de “formas pós-religiosas de
espiritualidade” (uma feliz expressão de William Irwin Thompson) (5).
Essas formas também não podem ser codificadas como doutrinas e nem
servir de base para a ereção de igrejas (de qualquer tipo, stricto ou lato
sensu). É a espiritualidade da vida cotidiana, da pessoa comum, do
conectado a uma rede de conversações, do livre-interagente (não
exatamente do participante) com o outro-imprevisível (e, portanto, aberta
ao compartilhamento fortuito e não fechada no cluster dos que professam
a mesma fé).
241
Os deuses não existem?
Os deuses das religiões foram problemáticos porque foram hierárquicos
e autocráticos como as religiões que os construíram
OS PROBLEMAS COM AS IGREJAS (e religiões) erigidas no contra-fluzz não
têm nada a ver com os deuses. Têm a ver, isto sim, com os deuses das
igrejas (e das religiões). Deuses existem desde que existe sociedade
humana, muito antes de erigirmos igrejas e constituirmos religiões. E
igrejas e religiões seriam – e foram, e são, e serão – sempre problemas
(para a rede-mãe), mesmo sem quaisquer deuses.
“Quem mandou dizer ao povo que os deuses não existem?” A pergunta
teria sido feita – em tom de reprimenda – por Robespierre aos seus
correligionários. Mas se isso não for uma lenda, se ele fez realmente tal
pergunta, foi movido por maus motivos: não lançar desesperança sobre as
massas... Faz parte da mentalidade de comando-e-controle. Agora, porém,
podemos refazer a pergunta de outra forma: quem disse que os deuses
não existem?
Quanto mais investigamos as redes, mais evidências surgem de que os
deuses existem. Se não existissem, como explicar que tantas pessoas, ao
longo da história (e inclusive na pré-história), tenham pautado seus
242
comportamentos em sintonia ou obediência ao que acreditavam ser a
natureza, a essência ou os ditames divinos? Eles existem, sim, como
modelos mentais, quer dizer, sociais (6).
Os deuses, se já não se pode acreditar que sejam criadores do cosmos
natural, sem dúvida são criadores de cosmos sociais. Eles são matrizes de
programas que rodam na rede social. Congregam modelos do que será
constelado no espaço-tempo dos fluxos e do que virará fenômeno social e,
até, do que se codificará como norma, do que se congelará como
instituição e do que se materializará como cidade, rua, praça. Sim, Zeus
Agoraios estava de fato presente naquela praça do mercado da velha
Atenas chamada Ágora. Mas o que significa dizer isso?
Até a democracia nascente – laica por essência – tinha lá os seus deuses:
por exemplo, o Zeus Agoraios e a deusa Peitho. Mas quando os gregos do
século de Péricles invocam Zeus Agoraios eles conferem às conversações
entre os homens livres na praça do mercado (o espaço público nascente) o
caráter de algo digno de ser abençoado e protegido por um deus, abrindo
uma brecha na tradição centralizadora (hierarquizante) segundo a qual os
deuses tratavam desigualmente os humanos, ungindo os hierarcas e seus
representantes (reis e sacerdotes) para conferir-lhes a autorização (divina)
de exercer o poder sobre os demais e guiá-los por algum caminho.
Quando os gregos invocam Peitho, a persuasão deificada, eles confrontam
a idéia autocrática de que a política era uma continuação da guerra por
outros meios. Como escreveu Hannah Arendt (c. 1950) (7):
243
“No que dizia respeito à guerra, a polis grega trilhou um outro
caminho na determinação da coisa política. Ela formou a polis em
torno da ágora homérica, o local de reunião e conversa dos homens
livres, e com isso centrou a verdadeira coisa política’ — ou seja,
aquilo que só é próprio da polis e que, por conseguinte, os gregos
negavam a todos os bárbaros e a todos os homens não-livres — em
torno do conversar-um-com-o-outro, o conversar-com-o-outro e o
conversar-sobre-alguma-coisa, e viu toda essa esfera como símbolo
de um peitho divino, uma força convincente e persuasiva que, sem
violência e sem coação, reinava entre iguais e tudo decidia. Em
contrapartida, a guerra e a força a ela ligada foram eliminadas por
completo da verdadeira coisa política, que surgia e [era] válida entre
os membros de uma polis; a polis se comportava, como um todo,
com violência em relação a outros Estados ou cidades-Estados, mas,
com isso, segundo sua própria opinião, comportava-se de maneira ‘a
política’. Por conseguinte, nesse agir guerreiro, também era abolida
necessariamente a igualdade de princípio dos cidadãos, entre os
quais não devia haver nenhum reinante e nenhum vassalo.
Justamente porque o agir guerreiro não pode dar-se sem ordem e
obediência e ser impossível deixar-se as decisões por conta da
persuasão, um âmbito não-político fazia parte do pensamento
grego”.
Os deuses da democracia grega eram deuses da conversação, quer dizer,
deuses-fluzz, deuses da interação. É claro que havia um âmbito a-político
e não democrático na Grécia e, assim, havia também outros deuses
244
hierárquicos e autocráticos (por exemplo, todos os deuses associados à
guerra e à jornada do herói, aos vaticínios e ao destino).
Mas como? Se a democracia é laica, por que teria ela seus deuses? Pois é.
Laico não quer dizer propriamente ateu (sem deus) e sim sem religião
(institucionalizada); ou seja, ser laico significa não fazer parte da
burocracia sacerdotal instituída para intermediar a relação do homem
com a divindade, isto é: para separar o ser humano da divindade; ou,
como disse Jung, para proteger o homem da experiência de deus, abrindo
sulcos para fazer escorrer por eles as coisas que ainda virão; ou ainda – o
que é a mesma coisa – pavimentando com a crença um caminho para o
futuro (e consequentemente, eliminando outros caminhos, reduzindo
nosso estoque de futuros possíveis, exterminando mundos).
Não, não há nenhum problema com os deuses. Os deuses das religiões
foram problemáticos porque foram hierárquicos e autocráticos como as
religiões que os adotaram (na verdade, que os construíram para seus
propósitos). A questão relevante agora não é a de saber se existem ou não
existem deuses (uma controvérsia tola), mas a de saber em que medida
algum deus (um programa capaz de rodar na rede-mãe e de ensejar algum
tipo de experiência mística ou espiritual, permitindo que uma pessoa viva
a si mesmo como componente integral de um domínio mais amplo de
relações de existência) favorece a reprodução de uma sociedade
hierárquica ou a emersão de uma sociedade-em-rede.
Os deuses pré-patriarcais foram naturais e não geraram religiões. Os
deuses patriarcais foram sobrenaturais e geraram, estes sim, instituições
245
hierárquicas: escolas (e ensino), igrejas (e religiões) e, sobretudo, Estados.
(Quem sabe os deuses pós-patriarcais serão sociais e não gerarão nenhum
desses tipos de deformações na rede-mãe – o que não significa, como
veremos adiante, que não possam inspirar novas formas mais interativas
de espiritualidade).
Não é por acaso que as primeiras formas de Estado erigidas nas cidades
antigas – as cidades-Estados da velha Mesopotâmia – tinham seus deuses.
Cada uma tinha lá o seu deus ou a sua deusa. Um eco empalidecido dessa
tradição são os nossos santos e santas padroeiros de cidades. Na
Antiguidade, porém, as cidades não eram apenas consagradas ou
dedicadas ao um deus ou deusa, senão que pertenciam aos deuses. Uruk e
Ur eram de Innana, Nippur e Lagash de Ninurta
A cidade-Estado-Templo sumeriana era uma habitação para um deus. Os
seres humanos viviam nelas de favor. E para trabalhar para os deuses,
para ser seus escravos (os feitores, é claro, eram os sacerdotes). Adorar
(ter uma devoção) era a mesma coisa – inclusive etimologicamente – que
trabalhar (a palavra hebraica ‘avod’, que pode ser traduzida por devoção,
adoração e também por trabalho, ecoa esse perverso sentido ancestral).
Os deuses em questão não eram os seres espiritualizados que foram
idealizados depois. Eram apenas os superiores. Sobre-humanos sim,
porém belicosos, intrigantes, genocidas, carnívoros... Está claro que eram
– ou se manifestavam como – programas verticalizadores do cosmos
social. Não eram sobre-humanos no sentido de serem mais perfeitos do
246
que os humanos e sim no sentido de que não eram humanos, sua
“presença” não era humanizante.
Depois, por algum motivo, eles se hospedaram no subsolo de nossa
consciência social (?), naquela região misteriosa que foi chamada de
inconsciente coletivo (!). Eles eram mais ou menos assim como os vírus
que hoje tentam invadir nossos websites. É curioso que alguns sistemas de
segurança anti-spam, lançando mão de um Teste de Turing reverso –
Completely Automated Public Turing test to tell Computers and Humans
Apart (CAPTCHA) – sugestivamente perguntam: “Você é humano?” e
então mandam a gente copiar algumas letras com formatação desfigurada
(coisa que, por enquanto, os robôs virtuais ainda não conseguem fazer, só
os humanos). Nenhuma organização hierárquica passaria nesse teste!
Deuses sobre-humanos (ou não humanizados) levam necessariamente a
sistemas de dominação. Todo relacionamento vertical recorrente
(estrutura centralizada) materializa um sistema de dominação. Osho
acertou em cheio o coração do problema quando disse: “não tenho
nenhum Deus; desse modo, não tenho nenhum programa para você no
qual você possa ser transformado em um escravo”. Ele decifrou o enigma
quando identificou os deuses das religiões com um programa, um
programa verticalizador.
Portanto, o problema não são os deuses e sim esses deuses criados à
imagem e semelhança dos hierarcas, que talvez os tenham criado assim ao
não aceitarem o fluxo transformador da vida, para tentar evitar a morte; e
ao não aceitarem fluzz – o fluxo transformador da convivência social –,
247
para tentar perenizar os mundos que construíram em detrimento de
outros mundos possíveis.
Sim, o problema são os deuses autocráticos, feitos à imagem e
semelhança dos sistemas de dominação. Esses deuses serão hierárquicos,
por certo, mas, do ponto de vista das redes distribuídas, não haveria
nenhum problema com deuses humanizados que não exigissem culto,
obediência ou subordinação (como Jesus de Nazareh, por exemplo, aquele
judeu marginal que humanizou IHVH, desde que não se tivesse tentado
instrumentalizar suas experiências de vida e convivência social para
codificar doutrinas, constituir religiões e erigir igrejas). Mas, como?
Atribuir a uma pessoa, com exclusividade, um caráter divino, como
fizeram, por alguma razão, seus primeiros discípulos, não seria um
contrassenso nos mundos altamente conectados em que cada pessoa é
uma singularidade em um mesmo tecido (social), possuidora, portanto, do
mesmo status (humano) de todas as outras? Ora, William Blake, um poeta
– porque os poetas são pessoas-fluzz – já resolveu essa questão para nós
quando escreveu: “Jesus é o único Deus. Assim como eu, assim como
você”.
Desse mesmo ponto de vista, não haveria nenhum problema com deuses
pós-patriarcais que fossem sociais (como o que foi chamado de Espírito
Santo e que a comunidade dos amantes celebra dizendo: “Ele está no
meio de nós”) – para seguirmos a numinosa compreensão, manifestada
algures por Leo Jozef (Cardeal) Suenens, quando escreveu: “É precisam
que sejam muitos para ser Deus”.
248
Deuses divididos? Osíris foi – em uma de suas “não-vidas” – um deus
dividido, acorde às necessidades de descentralização da teocracia
faraônica.
Deuses
pós-religiosos
serão
fractalizados,
acorde
às
contingências de distribuição dos Highly Connected Worlds. Sim, os deuses
se modificam quando modificamos o hardware. E consequentemente
muda também o que chamamos de espiritualidade.
Em um mundo
distribuído não
pode haver culto organizado
centralizadamente (por igrejas). Libertada do culto (e das suas ordenações
religiosas), a espiritualidade também se distribui por todas as pessoas,
cada qual podendo livremente vivê-la de acordo com suas conexões. Cada
pessoa (que quiser) pode experimentá-la nas contingências do seu fluir,
em sintonia com as redes sociais em que está imersa; i. e., convivendo-a.
No mundo único as pessoas viveram oprimidas por ideias totalizantes e
uniformizantes, fossem, por um lado, provenientes da crença religiosa em
um deus único (e incognoscível), fossem – pelo lado oposto –
provenientes da crença tola de que deus não existe, ditada por uma
ciência promovida a pansofia. Isso gerou um sem número de problemas,
sobretudo psicológicos, quando as pessoas passaram a reprimir sua
espiritualidade por medo do vexame e da reprovação dos bem-pensantes.
Tal “verdade” supostamente libertadora, revelada por uma ciência
deslizada do seu escopo, baseada em uma espécie de religião laica
iluminista, era, na verdade, opressiva. Libertadas desse bom-senso ateísta
as pessoas podem ter sua própria experiência de deus (ou de qualquer
ente ou processo que queiram escolher para representar ou simbolizar um
249
domínio mais amplo de relações de existência no qual se sintam inseridas
e possam viver tal inserção), interagindo.
Tal inserção, é claro, também pode ser vivida sem conotação mística.
Como disse Ilya Prigogine (1986) em entrevista a Renée Weber, em
Diálogos com cientistas e sábios: “Pessoalmente, sinto que chegamos hoje
à percepção de estarmos entranhados no mundo como um todo. Estamos
descobrindo um vínculo sem recorrer a nenhum misticismo externo,
estranho” (8). O que diminuirá, nos Highly Connected Worlds, são as
chances de vivermos esse vínculo permanecendo do “lado de fora” do
abismo, precavidos contra o caos ou protegidos da interação.
Deuses interativos, porém, não estarão no futuro, como aquele da
tradição hebraica que não podia ser nomeado a não ser pela expressão
Ehie Asher Ehie – traduzível por “Eu serei o que serei” (o hebraico aceita)
posto que estava no futuro. Esse deus da utopia (e da profecia), do nãolugar (porque o lugar do seu tempo nunca chega) – e refletindo sobre o
qual o marxista heterodoxo, materialista e ateu, Ernst Bloch (1968) em O
ateísmo no cristianismo, usinou a pérola: “Deus não existe, porém existirá”
(9) – não pode interagir com as pessoas e, assim, não pode ser um deusfluzz; ou, o que é a mesma coisa, não pode ensejar uma experiência
mística ou espiritual fluzz.
Formas pós-religiosas de espiritualidade serão predominantemente ibased e, portanto, tenderão a ser vividas no presente (o que significa que
não nos jogarão naquela corrente alucinante da utopia e da profecia que
tudo arrasta para o futuro, alienando-nos do presente).
250
Tudo indica, porém, que as religiões (e as igrejas ou as ordens sacerdotais)
remanescerão por muito tempo ainda. Mas a despeito de continuarem
rodando na rede social, esses programas podem agora ser hackeados
pelos novos hereges que já estão no meio de nós. Sim, como disse Bloch,
“o melhor da religião é que ela produz hereges” (10).
251
Ecclesias, não ordens sacerdotais
Seus irmãos e irmãs estão espalhados em múltiplos mundos. Para achálos você tem que remover o firewall e expor-se à interação
MAS O QUE COLOCAREMOS NO LUGAR das igrejas (e das religiões)? Ora,
nada. O velho mundo único já colocou muitas instituições para fazer as
vezes de igrejas: as escolas (e o ensino), os partidos (e as corporações), o
Estado-nação (e seus aparatos). Mutatis mutandis, todas essas funcionam
mais ou menos da mesma maneira, como ordens sacerdotais. E todas elas
vão continuar existindo, com uma estrutura e uma dinâmica parecidas
com as que têm hoje, para quem não entrar nos Highly Connected Worlds.
Mas quem assumir a condição de nômade, viajante dos interworlds, pode
– se quiser – fundar sua própria igreja-não-igreja. Nos mundos altamente
conectados ninguém pode impedir, nem conseguirá dissuadir, que as
pessoas fundem suas próprias não-igrejas. Elas não serão ordens
sacerdotais, por certo, mas poderão ser ecclesias, no sentido de
aglomerados dos que querem conviver sua espiritualidade, ou seja, dos
que querem compartilhar as formas semelhantes como vivem um domínio
mais amplo de relações de existência celebrando suas afinidades e
amorosidades mutuas. O número dessas novas igrejas-não-igrejas tende a
aumentar. Simplesmente porque – nos mundos em que se constituírem –
252
também não haverá tantas restrições de ordem moral e cultural para sua
existência.
Ecclesias como assembleias de amantes, como redes (abertas) de
buscadores que se dispõem a polinizar mutuamente os modos pelos quais
vivem sua mística ou sua espiritualidade, vão proliferar no lugar de igrejas
como ordens sacerdotais (fechadas) que se proclamam o único caminho, a
única porta, a única esperança de salvação e que disputam entre si o
tempo todo oferecendo-nos um formidável (e deplorável) contraexemplo
de fraternidade. As velhas igrejas – essas armadilhas construídas para
arrebanhar ovelhas e apascentá-las – continuarão existindo, é claro, mas
perderão relevância.
Na medida em que um superorganismo humano começa a se manifestar
nos mundos altamente conectados e que novos fenômenos – como o
clustering, o swarming, o cloning, o crunching e tantos outros que estão
implicados no que chamamos de inteligência coletiva (e, quem sabe, no
que ainda vamos chamar de emoção coletiva) – começam a irromper,
haverá um motivo adicional para compartilhar. Você pode preferir o olhar
do investigador que analisa tais fenômenos tentando manter os
protocolos científicos de isenção e objetividade. Mas você também pode
simplesmente viver e celebrar seu vínculo com essas novas ‘Entidades’
sociais – a palavra, assim com maiúscula, foi usada por Jane Jacobs em
1961 (11) – que se formam em uma dimensão mística. Se você buscava
um domínio mais amplo de relações de existência para dar sentido à sua
vida e vivê-la em sintonia com essa realidade (avaliada por você, não
importa, como transcendente ou imanente), ei-lo: o simbionte social!
253
O fundamental aqui é que não haja fechamento. Nos múltiplos mundos
interconectados estão outras pessoas que se sentem (e sentem a
transcendência ou a imanência) como você e podem se sintonizar com
você. Seus irmãos e irmãs estão espalhados em múltiplos mundos. Para
achá-los você tem que remover o firewall e expor-se à interação. Bem, ao
fazer isso é possível que mais cedo ou mais tarde você perceba que tudo
foi apenas um não-caminho. E descubra que seus irmãos e irmãs são todas
as pessoas que estão em todos os mundos.
Se você quiser fazer isso agora, possivelmente será encarado como
herege. Aos olhos do mundo único será um herege, assim como são
hereges os que abandonaram a escola, rejeitaram o ensino, rasgaram seus
diplomas e títulos e se transformaram em catalisadores de processos de
aprendizagem em comunidades livres de buscadores e polinizadores,
estruturadas em rede. Assim como são hereges os que, desistindo dos
partidos, não desistiram de fazer política (pública) nas suas localidades, na
base da sociedade e no cotidiano dos cidadãos. Assim como são hereges
os que renunciaram ao Estado-nação (e às suas pompas, e às suas glórias),
refugando também as noções regressivas de patriotismo e nacionalismo, e
viraram cidadãos transnacionais de suas glocalidades...
Os anunciadores de uma nova ordem não são hereges no sentido em que
a palavra está sendo usada aqui (quase aquele sentido em que Ernst Bloch
empregou-a ao dizer que “o melhor da religião é que ela produz hereges”).
São replicadores ou trancadores. No último meio século tivemos ondas e
ondas de supostos hereges vaticinando um mundo novo. No fundo, o
254
porvir radiante que anunciavam não era mais do que a revivescência de
uma ordem ancestral hierárquica.
255
Não há uma ordem preexistente
A ordem está sempre sendo criada no presente da interação
O REFLORESCIMENTO DAS IDÉIAS ESPIRITUALISTAS que ocorreu na New
Age provocou uma bateria de ondas que continuam até hoje quebrando
nas praias dos buscadores de todos os matizes, mais de quarenta anos
depois (se bem que, agora, já com intensidade bastante reduzida). As
pessoas que, nas mais diversas situações, procuravam um sentido para
suas vidas, tanto em experiências meditativas de recolhimento individual,
quanto em ensaios coletivos de novos padrões de convivência social,
queriam, no fundo, viver sua espiritualidade em uma época ainda préfluzz, mas que já anunciava tempos vertiginosos, de alta interatividade. E
saíam então para todo lado em busca de novos caminhos, guias e mestres.
Grande parte desses exploradores, porém, não empreendia livremente ou
sem pré-conceitos suas buscas. Estavam impregnados das ideias –
assopradas e reforçadas pelos gurus que se apresentavam em profusão –
de “um novo reino de velhos magos”. Na base das mais diversas
doutrinas, seitas, sociedades e ordens espiritualistas e ocultistas que
ofereciam naquele mercado seus produtos e serviços, havia, entretanto,
uma mesma visão básica, a qual aderiam tanto físicos e biólogos de
256
vanguarda interessados no diálogo entre ciência e religião quanto
roqueiros, quase todos sem prestar muita atenção aos seus pressupostos:
a idéia de que havia uma ordem implícita (ou implicada) pré-existente em
alguma esfera da realidade, oculta ou não acessível imediatamente.
Eles queriam então ter acesso a essa ordem pura, queriam estabelecer
uma sintonia com esse modelo não-manifestado, queriam atingir estados
superiores de consciência para contemplar essa espécie de Unimatrix One
e, para tanto, lançavam mão dos mais variados exercícios reflexivos,
técnicas meditativas, rituais teúrgicos, práticas mágicas e processos de
iniciação.
Ainda vivemos nas bordas dessas vagas, embora a New Age não tenha
acontecido segundo o que foi previsto. O mundo único não se reencantou
com o reflorescimento de espiritualidades ancestrais. Ainda bem. Porque
o que está acontecendo nos múltiplos mundos altamente conectados é
muito, muito mais profundo, mais abrangente e mais surpreendente do
que tudo que anunciaram os gurus da nova era.
Depois dos gurus, vieram alguns hereges dizendo: não há uma ordem; se
há, foi inventada por alguém e não quero me subordinar a ela. Os
pioneiros da Internet e os visionários do ciberespaço dos anos 90 foram
impelidos por esse vento libertário, em parte sob a influência de obras
disruptivas como TAZ – Zona Autônoma Temporária (12) e CAOS – Os
panfletos do Anarquismo Ontológico (13), dois escritos seminais de Hakim
Bey (1984-85) e dos romances de ficção científica Neuromancer (14) de
William Gibson (1984) e Ilhas na Rede (15) de Bruce Sterling (1988) que,
257
entre outros, deram origem aos cyberpunks. Talvez pouca gente suspeite
disso, mas essa influência foi decisiva para a criação das ferramentas
interativas que existem hoje (inclusive para a Internet e a World Wide
Web), conquanto não se possa dizer que ela tenha durado muito. Tais
pioneiros e visionários, em boa parte, logo entraram no contra-fluzz ao
fecharem suas descobertas (construindo programas proprietários e
escondendo seus algoritmos) para acumular suas fabulosas fortunas ou ao
se deixarem contaminar pelas ideias contraliberais que impulsionaram os
movimentos antiglobalização no dealbar dos anos 2000 sob a bandeira de
que “um outro mundo é possível”. Se um herege inventa a sua própria
ordem e quer que as pessoas passem a segui-la – quer transformando-as
em usuários cativos de seus produtos, quer arrebanhando-as em seus
movimentos supostamente transformadores – aí já deixa de ser herege e
passa a ser um sacerdote, um burocrata a serviço da reprodução do
sistema que criou.
No entanto, a despeito dessas ondas regressivas que apenas revelavam a
resiliência do velho mundo único, de suas estruturas e de suas dinâmicas,
o vento continuou a soprar.
É claro que a maioria dos replicadores dos padrões ancestrais de
espiritualidade hierárquica não ouviu Jiddu Krishnamurti que, a pedido de
sua biógrafa Mary Lutyens, comentou, em 1980, a sua famosa declaração
de 1929: “A verdade é uma terra sem caminhos”:
"A Verdade é uma terra sem caminho. O homem não chegará a ela
através de organização alguma, de qualquer crença, de nenhum
258
dogma, de nenhum sacerdote ou mesmo um ritual, e nem através
do conhecimento filosófico ou da técnica psicológica. Ele tem que
descobri-la através do espelho das relações, por meio de
compreensão do conteúdo da sua própria mente, mediante a
observação, e não pela análise ou dissecação introspectiva” (16).
Talvez àquela altura Krishnamurti ainda não pudesse conceber a mente
como uma nuvem social, nem perceber que o fundamental não é o
conteúdo e sim o processo interativo, distinguindo os programas que
rodam na rede da topologia dos emaranhados onde estamos (e somos).
Ainda assim, começaram a aparecer os que, rejeitando os títulos de
mestre ou guru, recomendavam simplesmente não-fazer nada. Já eram
estes os precursores dos novos mundos-fluzz. Porque quando se espia “do
outro lado”, não se vê ordem alguma – somente o nada, o abismo, fluzz.
Fluzz significa que não há uma ordem preexistente em algum mundo
invisível (da emanação, da criação ou da formação). A ordem está sempre
sendo criada no presente da interação. É mais ou menos assim como
imaginou Ilya Prigogine (1984), destoando inclusive de outros cientistas
envolvidos com tais especulações (de David Bohn a Paul Davies, passando
por Fritjof Capra): o universo é criativo e “se cria à medida que avança”
(17).
Novamente é o caso de dizer: bem, isso muda tudo.
Jack Kerouac e seus beatniks dos anos 50-60, Swami Satchidananda em
Woodstock, os hippies dos anos 70 e os “hippies” tardios dos 80, talvez
tenham pressentido isso, mas não podiam ter um entendimento do que
259
estava vindo. O próprio Peter Lamborn Wilson (Hakim Bey) e os
cyberpunks talvez tenham apenas sentido o sopro, sem chegarem a ver de
onde (e para onde) ele soprava. Pierre Levy (2000), em uma corajosa
jornada introspectiva, cujas notas estão no diário de bordo O fogo
liberador (18) (uma obra de inspiração heraclítica), empreendeu
explorações em antigas tradições espirituais (como o budismo e a cabala)
para tentar captar-lhe o sentido. Mas não havia sentido: “o vento sopra
onde quer; você o escuta, mas não pode dizer de onde vem, nem para
onde vai” (Jo 3: 8).
Pessoas como Paul Baran (On distributed communications), Vinton Cerf
(TCP/IP), Tim Berners-Lee (WWW), Linus Torvalds (Linux) e Rob McColl
(Apache), embora aparentemente nunca tenham feito tais explorações,
contribuíram objetivamente para que hoje pudéssemos reconfigurar a
busca (e talvez tenham causado um impacto mais profundo do que
aqueles provocados pelos empreendimentos proprietários fechados dos
Gates, dos Jobs, dos Pages, dos Stones e dos Zuckerbergs e de muitos
outros trancadores de códigos que vieram ou ainda virão).
Sim, reconfigurar a busca. Em mundos altamente conectados a busca não
existe sem a polinização. Não há um mainframe (como se fosse um
diretório de registros akashikos) onde você possa buscar respostas para
suas perguntas. Se houver, tais respostas não lhe servirão. Serão respostas
do
passado
que
foi
arquivado.
Revelarão
ordens
pregressas.
Conhecimento morto. A busca, qualquer busca, inclusive a busca
espiritual, é sempre uma interação. Nos Highly Connected Worlds toda
busca é P2P: no seu mundo e nos interworlds pelos quais você está
260
navegando. A mesma busca, quando repetida, fornece respostas
necessariamente diferentes. E deixa o rastro da pergunta. De sorte que as
respostas são, no limite, combinações das perguntas que estão sendo
feitas. Perguntas interagindo e se polinizando mutuamente para criar
ordens inéditas.
O buscador é um polinizador. É um criador de mundos. O buscadorpolinizador é uma pessoa-fluzz. Uma pessoa-fluzz é mais ou menos o que
deveria ser uma pessoa-zen nas condições de um mundo de alta
interatividade. Mas enquanto víamos a pessoa-zen como um indivíduo-nocaminho (conquanto ela não fosse isso realmente, posto que a
descoberta-zen é a descoberta do ‘não-caminho’), a pessoa-fluzz não pode
ser vista assim: ela é enxame. O enxame muda continuamente sua
configuração, o que significa que os caminhos também mudam
continuamente com a interação: o que era caminho em um momento já
não é mais no momento seguinte. A pessoa, como disse Protágoras (c. 430
a. E. C.) – ou a ele se atribui – “é a medida de todas as coisas, das coisas
que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são”. Assim
seja (ou não-seja). Let it be (ou not to be – o que é a mesma coisa).
Os hereges nômades que já experimentam esses novos padrões de
interação viajando pelos interworlds e “audaciosamente indo onde
ninguém jamais esteve” começam a gritar para os que teimam em juntar e
colar os cacos de céu velho que estão despregando para prorrogar a
vigência do mundo único: “– Parem com isso! Não existem mestres. Não
existem guias. Não existe caminho”.
261
Não existe mais caminho
O objetivo é ser pessoa, nada além disso
FLUZZ TAMBÉM É: TUDO ESTÁ CONECTADO. E se tudo está conectado por
que os seres humanos não estariam?
É como se todo o mundo percebido e sentido fosse internalizado por essa
interface (individual) com a mente (social) que chamamos de cérebro.
Assim também a rede social. A máxima de Novalis (1798) “cada ser
humano é uma pequena sociedade” (19) pode significar, por um lado, que
os humanos importam a estrutura da rede social a que estão conectados.
Algo se passa como se a rede fosse espelhada dentro da pessoa em
interação. As personalidades das pessoas conectadas são como que
simuladas internamente por um sujeito que, não raro, conversa com elas.
Essa imagem espelhada é atualizada toda vez que há interação. E há
espelhamento, é claro, porque há separação.
Eis, talvez, o motivo pelo qual nunca estamos realmente sozinhos. Há um
burburinho de fundo, permanentemente presente. Como borgs ouvimos,
o tempo todo, as “vozes da Coletividade”. Mas, diferentemente de um
Borg, como “ghola social”, cada pessoa internaliza de um modo diferente,
unique. Sem essa imagem peculiar dos outros dentro de nós não podemos
262
ser pessoas, quer dizer, não podemos ser humanos. As imagens da
“mesma” rede são tantas quanto os seus nodos. Imagens de imagens,
redes dentro de redes. E o que se chama de ‘eu’ ou ‘você’ também são
vários. Chegar a um só (aquela individuação junguiana) é final de percurso,
não condição de partida.
Todavia nos novos mundos altamente conectados, o caminho da
individuação (não só aquele sobre o qual escreveu Jung, mas o caminho
da iluminação de todas as tradições espirituais hierárquicas) não pode
mais ser percorrido como uma jornada interior (no sentido psicológicoespiritual individual). ‘Pessoa já é rede’ significa que eu e você
compartilhamos o mesmo indivíduo-social. Eu e você são variações de um
mesmo substrato: singularidades em um tecido. Mas significa também,
paradoxalmente, que ‘eu sou um outro’, qualquer-outro, não apenas
como complexo psicológico (como representação interiorizada), mas na
rede, como realidade social.
Nos mundos pouco conectados dos milênios pretéritos, trabalhava-se com
os materiais alquímicos das representações introjetadas, percorrendo-se
interiormente nebulosas estações arquetípicas em direção à totalidade. A
vida humana (do buscador) era, de certo modo, apartada da sua vida
social (do polinizador). O caminho era “pessoal” no sentido de individual e
exigia consciência, confirmação intermitente de que eu vi o que vi, senti o
que senti, pensei o que pensei, sei o que sei, passei o que passei, vivi o
que vivi... até me iluminar (ou não)! Mas isso só ocorre enquanto
prevalece a separação entre eu e o outro.
263
Entretanto, quando vida humana e convivência social se aproximam,
novos
caminhos
se
abrem,
continuamente.
Aquele
pelo
qual
procurávamos no meio de nós (no sentido de no nosso interior) passa a
estar entre nós. Uma nova topologia distribuída dos caminhos espirituais
elimina os caminhos únicos (mesmo quando únicos para cada pessoa). Os
caminhos são múltiplos, inclusive para a mesma pessoa. O que significa
dizer que não existe mais caminho. Como captou o poeta: "Todos os
caminhos, nenhum caminho. Muitos caminhos, nenhum caminho. Nenhum
caminho, a maldição dos poetas" (20).
E não só os poetas percebem, mas também outras inquiring minds, de
exploradores heterodoxos, como a do físico David Bohm (1970-1992),
dedicado, nos últimos anos de sua vida, a compreender e promover a
interação que chamava de diálogo: ele chegou à conclusão de que “não
existe um ‘caminho’... no dialogo compartilhamos todas as trilhas e, por
fim, percebemos que nenhuma delas é fundamental. Percebemos o
significado de todos os caminhos e, portanto, chegamos ao ‘não-caminho’.
No fundo, todos os caminhos são os mesmos...” (21).
Se o objetivo é ser pessoa, nada além disso, qualquer relação humana é
caminho. A espiritualidade-fluzz não é percorrer uma trilha, completar um
percurso, mas deixar-se-ir ao encontro dos demais, abrindo as próprias
fronteiras ao outro-imprevisível. Ora, isso significa que você não precisa
mais de uma igreja – como cluster fechado dos que professam a mesma fé
(a fé de que estão no mesmo caminho) – quer dizer, de um partido.
264
Notas e referências
(*) A palavra ‘fluzz’ nasceu de uma conversa informal do autor, no início
de 2010, com Marcelo Estraviz, sobre o Buzz do Google. O autor
observava que Buzz não captava adequadamente o fluxo da conversação,
argumentando que era necessário criar outro tipo de plataforma (ibased e não p-based, quer dizer, baseada em interação, não em
participação). Marcelo Estraviz respondeu com a interjeição ‘fluzz’, na
ocasião mais como uma brincadeira, para tentar traduzir a idéia de
Buzz+fluxo. Ulteriormente a idéia foi desenvolvida no livro-mãe Fluzz: vida
humana e convivência social nos novos mundos altamente conectados do
terceiro milênio (2011) e passou a não ter muito a ver com o programa
malsucedido do Google. Fluzz (o fluxo interativo) é um conceito complexo,
sintético, que talvez possa ser captado pela seguinte passagem: “Tudo que
flui é fluzz. Tudo que fluzz flui. Fluzz é o fluxo, que não pode ser
aprisionado por qualquer mainframe. Porque fluzz é do metabolismo da
rede. Ah!, sim, redes são fluições. Fluzz evoca o curso constante que não se
expressa e que não pode ser sondado, nem sequer pronunciado do “lado
de fora” do abismo: onde habitamos. No “lado de dentro” do abismo não
há espaço nem tempo, ou melhor, há apenas o espaço-tempo dos fluxos. É
de lá que aquilo (aquele) que flui sem cessar faz brotar todos os mundos...
Em outras palavras, não existe uma mesma realidade para todos: são
265
muitos os mundos. Tudo depende das fluições em que cada um se move,
dos emaranhamentos que se tramam, das configurações de interação que
se constelam e se desfazem, intermitentemente”.
(**) Este texto foi originalmente escrito em 2010 e publicado em 2011
como capítulo 7 do livro Fluzz: vida humana e convivência social nos novos
mundos altamente conectados do terceiro milênio. São Paulo: Escola de
Redes, 2011.
(1) MATURANA, Humberto (1993). Amar e brincar: fundamentos
esquecido do humano. São Paulo: Palas Athena, 2004.
(2) Idem.
(3) Idem-idem.
(4) Idem-ibidem.
(5) THOMPSON, William (2001). Transforming History: a curriculum for
cultural evolution. Ma: Lindisfarne Books, 2001.
(6) Cf. FRANCO, Augusto (2009). Modelos mentais são sociais. Slideshare
[1.022 views em 23/01/2011]
<http://www.slideshare.net/augustodefranco/modelos-mentais-sosociais>
(7) ARENDT, Hannah (1959). “A questão da guerra” in O que é política?
(Fragmentos das “Obras Póstumas” (1992), compilados por Ursula Ludz).
Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
266
(8) Cf. WEBER, Renée (1986). Diálogos com cientistas e sábios. São Paulo:
Cultrix, 1991 [cf. a entrevista com Ilya Prigogine no capítulo intitulado “O
reencantamento da natureza”].
(9) BLOCH, Ernst (1968). El ateísmo en el cristianismo: la religión del éxodo
y del Reino. Madrid: Taurus, 1983.
(10) Idem.
(11) JACOBS, Jane (1961). Morte e vida de grandes cidades. São Paulo:
Martins Fontes, 2009.
(12) BEY, Hakim (1985-1991). BEY, Hakim (Peter Lamborn Wilson) (19841990). TAZ – Zona Autônoma Temporária. São Paulo: Coletivo Sabotagem:
Contra-Cultura, s/d.
(13) BEY, Hakim (1985). CAOS: Terrorismo poético e outros crimes
exemplares. São Paulo: Conrad, 2003.
(14) GIBSON, William (1984). Neuromancer. São Paulo: Aleph, 2008.
(15) STERLING, Bruce (1988). Piratas de dados [Péssima tradução do título
Islands in the Net]. São Paulo: Aleph, 1990.
(16) Cf.: <http://www.jkrishnamurti.org/pt/about-krishnamurti/the-coreof-the-teachings.php>
(17) Cf. a entrevista concedida em 1984 por Ilya Prigogine à Renée Weber
em WEBER: Op.cit.
(18) LÉVY, Pierre (2000). O Fogo Liberador. São Paulo: Iluminuras, 2001.
267
(19) NOVALIS (George Friedrich Philipp, Freyherr (Barão) von Hardenberg)
(1798). Pólen. Fragmentos, diálogos, monólogos. São Paulo: Iluminuras,
2011.
(20) BARROS, Manoel (2010). Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010.
(21) BOHM, David (1996). Diálogo: comunicação e redes de convivência.
São Paulo: Palas Athena, 2005.
268
A publicização da política
nos novos mundos altamente
conectados do terceiro milênio
269
270
A publicização da política
nos novos mundos altamente
conectados do terceiro milênio
271
272
A publicização da política
nos novos mundos altamente
conectados do terceiro milênio
273
A NOVA POLÍTICA
Augusto de Franco, 2012.
Versão Beta, sem revisão.
A versão digital desta obra foi entregue ao Domínio Público, editada
com o selo Escola-de-Redes por decisão unilateral do autor.
Domínio Público, neste caso, significa que não há, em relação a versão digital desta
obra, nenhum direito reservado e protegido, a não ser o direito moral de o autor ser
reconhecido pela sua criação. É permitida a sua reprodução total ou parcial, por
quaisquer meios, sem autorização prévia. Assim, a versão digital desta obra pode ser –
na sua forma original ou modificada – copiada, impressa, editada, publicada e
distribuída com fins lucrativos (vendida) ou sem fins lucrativos. Só não pode ser
omitida a autoria da versão original.
FRANCO, Augusto de
A NOVA POLÍTICA / Augusto de Franco – São Paulo: 2012.
66 p. A4 – (Escola de Redes; 13)
1. Redes sociais. 2. Organizações. 3. Escola de Redes. I. Título.
Escola-de-Redes é uma rede de pessoas dedicadas à investigação sobre redes sociais e
à criação e transferência de tecnologias de netweaving.
http://escoladeredes.net
274
Sumário
Introdução | 9
Máquinas para privatizar a política | 11
Autocratizando a democracia | 16
Não-partidos | 20
Estado | 24
A nação como comunidade imaginária | 27
A falência da forma Estado-nação | 36
O reflorescimento das cidades | 40
As cidades na glocalização | 43
Comunitarização | 50
Cidades Inovadoras | 55
Notas e referências | 59
275
276
Introdução
FASCINANTE! Escolas, igrejas, partidos, Estados, empresas hierárquicas:
construímos tais instituições – que continuam reproduzindo o velho
mundo; sim, são elas que fazem isso – como artifícios para escapar da
interação, para ficar do “lado de fora” do abismo, para nos proteger do
caos...
As escolas (e o ensino) tentam nos proteger da experiência da livre
aprendizagem. As igrejas (e as religiões) tentam nos proteger da
experiência de deus. Os partidos (e as corporações) tentam nos proteger
das experiências da política (pública) feitas pelas pessoas no seu cotidiano.
Os Estados tentam nos proteger das experiências glocais (de localismo
cosmopolita). E as empresas (hierárquicas) tentam nos proteger da
experiência de empreender.
Por isso que escolas são igrejas, igrejas são partidos, partidos são
corporações que geram Estados, que também são corporações, que viram
religiões, que reproduzem igrejas, que se comportam como partidos...
Porque, no fundo, é tudo a mesma coisa: artifícios para proteger as
pessoas da experiência de fluzz (*). (Não é a toa que todas essas
instituições hierárquicas exigem “monogamia” dos que querem manter
277
capturados, como se dissessem: “- Você é meu! Nada de transar com
estranhos”).
Uma vez desconstituídos tais arranjos feitos para conter, contorcer e
aprisionar fluxos, disciplinando a interação, uma vez corrompidos os
scripts dos programas verticalizadores que rodam nessas máquinas (e que,
na verdade, as constituem), o velho mundo único se esboroa.
Isso está acontecendo. Não-escolas, não-igrejas, não-partidos, nãoEstados-nações e não-empresas-hierárquicas começam a florescer. Com
tal florescimento, a estrutura e a dinâmica das sociosferas estão sendo
radicalmente alteradas neste momento, mas não por formidáveis
revoluções épicas e grandes reformas conduzidas por extraordinários
líderes heroicos, senão por pequenas experiências, singelas, líricas, vividas
por pessoas comuns! Aquelas mesmas experiências de interação das quais
fomos poupados. É como se tudo tivesse sido feito para que não
experimentássemos padrões de interação diferentes dos que deveriam ser
replicados. Mas nós começamos a experimentar. E “aqui estamos – como
escreveu Hakim Bey (1984) em Caos – engatinhando pelas frestas entre as
paredes da Igreja, do Estado, da Escola e da Empresa, todos os monólitos
paranoicos”.
Neste texto vamos examinar os partidos e o Estado-nação para
contemplar as possibilidades do surgimento de uma nova política nos
novos mundos altamente conectados do terceiro milênio (**).
278
Máquinas para privatizar a política
Os partidos são artifícios para nos proteger da experiência de política
pública
NO VELHO MUNDO FRACAMENTE CONECTADO as pessoas erigiam
corporações – grupos privados hierarquizados – para fazer valer seus
interesses. Simplesmente parecia ser a coisa “lógica” a ser feita em um
mundo regido pela “lógica” da escassez. Assim também surgiram os
partidos como um tipo especial de corporação: eles foram constituídos
para fazer prevalecer os interesses de um grupo sobre os interesses de
outros grupos e pessoas com base em (ou tomando como pretexto) um
programa, um conjunto de ideias a partir das quais fosse possível
conquistar e reter o poder para tornar legítimo o exercício (ilegítimo do
ponto de vista social, quer dizer, do ponto de vista das redes sociais
distribuídas) de comandar e controlar os outros.
Partidos são organizações pro-estatais. Não é a toa que decalcam o
padrão de organização piramidal do Estado. Mas, ao contrário do que se
pensa, os partidos vieram antes do Estado e nesse sentido são também
organizações proto-estatais. Os primeiros partidos foram religiosos: as
castas sacerdotais que erigiram o Estado.
279
Sim, o Estado é, geneticamente, um ente privado. Estado como esfera
pública só surgiu (isso deveria ser uma obviedade, conquanto não soe
como tal) quando se constituiu uma esfera pública, com a invenção da
democracia. Antes disso – por três milênios ou mais – os Estados foram o
resultado da privatização dos assuntos comuns das cidades pelos
autocratas. E depois disso, por quase dois milênios, os Estados
continuaram sendo organizações privadas (só nos últimos dois ou três
séculos eles se constituíram, aqui e ali e, mesmo assim, em parte, como
instâncias
públicas,
mais
ou
menos
democratizadas;
embora
continuassem infestados por enclaves autocráticos privatizantes).
Os partidos são artifícios para nos proteger da experiência de política
pública. São um modo político de nos proteger da experiência de fluzz.
Para tanto – em um regime de monopólio (nas ditaduras) ou de oligopólio
(nas democracias formais) – eles privatizam a política pública. Sua
existência legal indica que as pessoas, como tais, não precisam fazer
política pública no seu cotidiano e na base da sociedade (nas suas
comunidades): alguém fará tal política por elas! Mesmo nas democracias
dos modernos entende-se que as pessoas não devem fazer política
pública, a menos que entrem em um partido: uma espécie de agência de
empregos estatais, uma organização privada autorizada a disputar com
outras organizações privadas congêneres o acesso às instituições estatais
reconhecidas legalmente como públicas e, portanto, encarregada com
exclusividade de fazer política pública. Enxugando de toda literatura
legitimatória as teorias liberais sobre o papel dos partidos na democracia,
o que sobra é mais ou menos isso aí.
280
Ora, por mais esforço que se faça para justificar esse acesso diferencial ao
exercício da política pública, parece óbvio que o sistema de partidos
privatiza a política. Ao se conferir aos partidos – com exclusividade – o
condão
de
transformar
politics
em
policy,
as
pessoas
viram
automaticamente clientela do sistema.
As teorias liberais da democracia, é claro, não concordam com isso. Mas
as teorias liberais da democracia são próprias de um mundo de baixa
conectividade social, em que somente eram concebíveis as formas
políticas representativas de regulação de conflitos. Para os defensores
dessas teorias, só existem, basicamente, os indivíduos. E a democracia é,
via de regra, baseada em uma teoria das elites (mais Platão, menos
Protágoras). Sua análise é coerente com que eles pensam. E eles pensam
mais ou menos assim: é melhor o Estado-nação com todos seus enclaves
autocráticos – e, inclusive, é melhor o império – garantindo a ordem, do
que a barbárie da anarquia. No fundo essa é mais uma variação, em linha
direta, da visão hobbesiana. Abandonados à nossa própria sorte, sem
sermos domesticados por um poder acima de nós, nos engalfinharíamos
em uma guerra de todos contra todos. Então o Estado tem, para eles, um
papel civilizador (assim como, para alguns, também tem esse papel a
religião: pois se não houver um deus – dizem – tudo é permitido, tudo
seria possível em termos morais). O que se requer, apenas, é que esse
Estado seja legitimado pelos cidadãos em eleições limpas e periódicas e
que os governos eleitos respeitem as regras do direito (interpretadas
também, é claro, pelas tais “elites civilizadoras”).
281
Essa é a visão da democracia dos modernos na sua versão liberal, baseada
no indivíduo. Mas tal visão não está mais adequada aos mundos
altamente conectados que estão emergindo. Por muitas razões (dentre as
quais a principal é que o indivíduo é uma abstração) a democracia não
pode ser o resultado de um pacto feito e refeito continuamente pelos
indivíduos que se ilustraram e que se comprometeram a manter uma
ordem capaz de garantir aos (e exigir dos) demais indivíduos que eles
continuem a conformar sua liberdade aos limites impostos pelos sistemas
de poder que formalmente permanecerem legitimados por eleições e
respeitarem as leis. Isso, é claro, deve ser garantido, mas não para ser
reproduzido indefinidamente como é e sim para possibilitar que os
cidadãos continuem - com liberdade - inventando novas formas de regular
seus conflitos.
Em mundos altamente conectados essa forma representativo-políticoformal da democracia (a democracia no sentido "fraco" do conceito: como
sistema de governo ou modo político de administração do Estado) deverá
dar lugar a novas formas mais substantivas e interativas (a democracia no
sentido "forte" do conceito, das pessoas que se associam para conviver
em suas comunidades de vizinhança, de prática, de aprendizagem ou de
projeto).
A democracia no sentido “forte” do conceito é uma democracia
+democratizada, que recupera a linha da "tradição" democrática – uma
imaginária linhagem-fluzz – que começa com o “think tank” de Péricles –
do qual “participava”, entre vários outros, Protágoras –, passa por
Althusius (1603), por Spinoza (1670-1677) e pelos reinventores da
282
democracia dos modernos, por Rousseau (1754-1762), por Jefferson
(1776) e por aquela “network da Filadélfia” que conectava os redatores
americanos da Declaração de Independência dos Estados Unidos e pelos
Federalistas (1787-1788), pelos autores europeus (desconhecidos) da
Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789), por Paine (1791),
por Tocqueville (1835-1856), por Thoreau (1849) e por Stuart Mill (18591861), até chegar às formas radicais antecipadas pela primeira vez por
Dewey (1927-1939): a democracia na base da sociedade e no cotidiano do
cidadão, a democracia como expressão da vida comunitária (1). Esta
última será uma espécie de metabolismo das redes mais distribuídas do
que centralizadas, algo assim como uma pluriarquia.
É claro que os chamados cientistas políticos, em boa parte, não acreditam
nisso. O que não significa nada, de vez que não existe uma ciência política.
Se existisse uma ciência política, em qualquer medida para além de uma
ciência do estudo da política, não poderia haver democracia (pois neste
caso os governantes deveriam ser os cientistas e decairíamos na república
platônica dos sábios: uma autocracia). A despeito do que pensam os que
foram ordenados nas academias da modernidade para legitimar a política
realmente existente, há um argumento fatal contra suas (des)crenças: se a
democracia não pudesse ser reinventada novamente (pois ela já o foi uma
vez, pelos modernos) ela também não poderia ter sido inventada (pela
primeira vez, pelos atenienses).
283
Autocratizando a democracia
É um absurdo pactuar que o acesso ao público só se dê a partir da guerra
entre organizações privadas
A DEMOCRACIA FOI A MAIS FORMIDÁVEL antecipação de uma época-fluzz
que já ocorreu nos seis milênios considerados de “civilização”. Foi uma
invenção fortuita e gratuita de pessoas que logrou abrir uma fenda no
firewall erigido para nos proteger do caos, para que não caíssemos no
abismo.
Na verdade as pessoas que inventaram a democracia não tinham a menor
consciência das implicações e consequências do que estavam fazendo.
Talvez tivessem motivos estéticos. Ou talvez quisessem, simplesmente,
abrir uma janela para poder respirar melhor. Em consequência, abriram
uma janela para o simbionte social poder respirar, sufocado que estava,
há milênios, em sociedades de predadores (e de senhores). Não é por
acaso que no primeiro escrito onde aparece a democracia (dos
atenienses) – em Os Persas, de Ésquilo (427 a. E. C.) – ela tenha sido
apresentada como uma realidade oposta à daqueles povos que têm um
senhor.
284
Era tão improvável que isso acontecesse, na época que aconteceu, como
foi o surgimento e a continuidade da vida neste planeta, perigosamente
instável em virtude da composição atmosférica tão improvável que
alcançou. Com efeito, um gás instável (comburente), corrosivo e
extremamente venenoso como o oxigênio, que chegou a alcançar a
impressionante concentração de 20%, é uma loucura em qualquer
planeta: mas foi assim que o simbionte natural – essa surpreendente capa
biosférica que envolve a Terra – conseguiu respirar.
Do ponto de vista social, a democracia é um erro no script da Matrix. Não
se explica de outra maneira. Não era necessária. Nem foi o resultado de
qualquer “evolução” social. Não surgiu dos interesses privatizantes de
qualquer corporação. Surgiu em uma cidade no mesmo momento em que
nela se conformou um espaço público.
Isso significa que, geneticamente, a democracia é um projeto local e não
nacional. O grupo de Péricles (às vezes chamado indevidamente de
“partido democrático”) não foi constituído para tentar converter os
espartanos ou qualquer outro povo da liga ateniense à democracia (e nem
para empalmar e reter indefinidamente o poder em suas mãos, como
grupo privado) e sim para realizar a democracia na cidade, na base da
sociedade e no cotidiano do cidadão enquanto integrante da comunidade
(koinonia) política.
Foram os modernos que tentaram transformar a democracia em um
projeto inter-nacional (ou seja, válido para um conjunto de naçõesEstado). Mas ela só pode se materializar plenamente – como percebeu
285
com toda a clareza John Dewey (1927) – no local: é um projeto vicinal,
comunitário, que tem a ver com um modo-de-vida compartilhado (2). E é
mais o “metabolismo” de uma comunidade de projeto do que o projeto
de alguns interessados em conduzir uma comunidade para algum lugar
segundo seus pontos de vista particulares ou para satisfazer seus
interesses (outra definição de partido).
A democracia surgiu como uma experiência de redes de conversações em
um espaço público, quer dizer, não privatizado pelo Estado (no caso,
representado pelos autocratas que governaram Atenas). Não teria surgido
sem a formação de uma rede local distribuída em Atenas e em outras
cidades que experimentaram a democracia. Quando surge, a democracia
já surge como movimento de desconstituição de autocracia e não como
modelo de sociedade ideal. As instituições democráticas foram criadas –
casuisticamente mesmo – para afastar qualquer risco de retorno ao poder
do tirano Psístrato e seus filhos a partir da experimentação de redes de
conversações em um espaço (que se tornou) público (3). Sim, público não
é um dado, não é uma condição inicial que possa ser estabelecida ou
decretada por alguma instância a partir ‘de cima’ (como uma norma
exarada ex ante pelo Estado-nação). Público é o resultado de um
processo. Só é público o que foi publicizado. Depois, é claro, pode-se
pactuar politicamente o resultado que se estabeleceu a partir do processo
social, gerando uma norma, sempre transitória, válida para o âmbito da
instância de governança vigente.
Mas não se pode pactuar que o acesso ao público só se dê a partir da
guerra (ou da política como continuação da guerra por outros meios – o
286
que é mesma coisa) entre organizações privadas. Um pacto absurdo como
esse – baseado na perversa fórmule inversa de Clausewitz-Lenin (4) – é
contraditório nos seus termos e investe contra o próprio sentido de
público. Por isso, diga-se o que se quiser dizer, do ponto de vista da
democracia (uma realidade coeva à da esfera pública), partidos são
instituições contra-fluzz, regressivas na medida em que concorrem para
autocratizar a democracia.
Não é necessário argumentar muito para mostrar como tudo isso está no
contra-fluzz. Esse tipo de organização partidária e de regime
partidocrático a ela associado não tem muito a ver com a construção de
uma governança democrática e sim com a manutenção de uma
governabilidade autocrática, quer dizer, com a capacidade de manter as
regras de uma luta, de um combate permanente entre grupos privados,
assegurando que o vencedor tenha o direito de privatizar a esfera pública
de modo a prorrogar o seu poder sobre a sociedade (no fundo há sempre
uma disputa pelo butim, na base do spoil system). Tal como o Estadonação, partidos são instituições guerreiras: ainda quando não se
dediquem ao conflito violento, operam a política como arte da guerra,
como uma continuação da guerra por outros meios. Nesta exata medida,
são organizações antidemocráticas. Só pessoas tontas – e pelo visto destas
há muitas – podem acreditar que o resultado desse embate constante,
dessa interação adversarial permanente, conseguirá constituir um sentido
público (5).
287
Não-partidos
Redes de interação política (pública) exercitando a democracia local na
base da sociedade e no cotidiano dos cidadãos
NADA DEVE IMPEDIR QUE PESSOAS se associem livremente para fazer
política pública. Se houver algo impedindo isso, então estamos em uma
autocracia ou em uma democracia formal de baixa intensidade,
fortemente perturbada pela presença de instituições hierárquicas que
deformam o campo social. Partidos são, obviamente, uma dessas
instituições, conquanto não consigam – na vigência de regimes
democráticos formais – impedir totalmente que as pessoas exerçam a
política; não, pelo menos, nos âmbitos de suas redes de relacionamento,
nos círculos com graus de separação mais baixos.
Dentro de certos limites – impostos pelo grau de autocratização das
democracias realmente existentes na atualidade – é possível democratizar
a política na base da sociedade, inventando e experimentando novas
formas de interação política realmente inovadoras. Nas autocracias isso
não é possível, razão pela qual as democracias formais – com suas
conhecidas mazelas e limitações – são infinitamente preferíveis a todas as
formas de regimes autoritários, por mais que se lhes tentem louvar as
supostas virtudes sociais. Essa nova política possível, entretanto, será
288
necessariamente uma política pública, não de grupos privados de
interesses – ou não será de fato nova. Se tentarmos reeditar a disputa
adversarial de interesses de grupos privados, decairemos fatalmente na
velha política (6).
O simples fato de algumas pessoas já terem desistido dos partidos e
arregaçado as mangas para fazer o que acham que deve ser feito em suas
localidades – articulando redes de interação política (pública) e
exercitando a democracia local na base da sociedade e no cotidiano dos
cidadãos – já é um sinal de que a dinâmica da sociosfera (em que
convivem) está sendo alterada.
Nos Highly Connected Worlds as pessoas (que quiserem) poderão
constituir não-partidos, comunidades políticas para tratar dos seus
assuntos comuns, regulando seus conflitos de modo cada vez mais
democrático ou pluriarquico. Isso significa que evitarão modos de
regulação de conflitos que produzam artificialmente escassez (como a
votação, a construção administrada de consenso, o rodízio e, até mesmo,
o sorteio), guiando-se – cada vez mais – pela “lógica da abundância”. É
claro que isso só se aplica em redes mais distribuídas do que centralizadas
e na medida do grau de distribuição e conectividade (quer dizer, de
interatividade) dessas redes.
Dizendo a mesma coisa de outra maneira: se você não produz
artificialmente escassez quando se põe a regular qualquer conflito, produz
rede (distribuída); do contrário, produz hierarquia (centralização).
289
Os problemas que se estabelecem a partir de divergências de opinião são
– em grande parte – introduzidos artificialmente pelo modo-de-regulação.
E somente em estruturas hierárquicas tais problemas costumam se
agigantar a ponto de gerar conflitos realmente graves, capazes de
ameaçar a convivência. Porque nessas estruturas o que está em jogo não
é a funcionalidade do organismo coletivo e sim o poder de mandar nos
outros, quer dizer, a capacidade de exigir obediência ou de comandar e
controlar os semelhantes.
Quanto mais distribuída for uma rede, mais a regulação que nela se
estabelece pode ser pluriarquica. Uma pessoa propõe uma coisa. Ótimo.
Aderirão a essa proposta os que concordarem com ela. E os que não
concordarem? Ora, os que não concordarem não devem aderir. E sempre
podem propor outra coisa. Os que concordarem com essa outra coisa
aderirão a ela. E assim por diante.
Em redes distribuídas nunca se admite a votação como método de regular
majoritariamente qualquer dilema da ação coletiva. E quando houver
discordâncias de opiniões, como faremos? Ora, não faremos nada! Por
que deveríamos fazer alguma coisa? Viva a diversidade! Se você
estabelece a prevalência de qualquer coisa a partir da votação (ou de
outros mecanismos semelhantes de regulação de conflitos), cai em uma
armadilha centralizadora ou hierarquizante. Produz “de graça” escassez
onde não havia.
Vamos imaginar que exista alguém que não esteja muito contente com a
maneira como as coisas estão acontecendo em uma comunidade. O que
290
essa pessoa pode fazer, além de externar sua opinião e colocá-la em
debate? Ora, no limite, essa pessoa descontente pode configurar uma
nova rede, se inserir em outra comunidade, ir conviver em outro mundo.
Como os mundos são múltiplos, ela não está mais aprisionada e não
precisa ficar constrangida a permanecer no mesmo emaranhado onde não
se sente confortável.
Evidentemente a pluriarquia não pode ser adotada em organizações
centralizadas, erigidas no contra-fluzz, como as escolas, as igrejas, os
partidos e as corporações. Com mais razão ainda não pode vigir nos
Estados e seus aparatos, que – mais do que organizações hierárquicas –
são troncos geradores de programas centralizadores.
A despeito disso, porém, não-partidos tendem a florescer nos mundos
altamente conectados que estão emergindo. Ignorando solenemente as
restritivas disposições estatais e as crenças religiosas (sim, religiosas,
mesmo
quando
travestidas
de
científicas)
em
uma
suposta
competitividade inerente ao ser humano, difundidas pelas escolas e
academias, pessoas vão se conectando voluntariamente com pessoas para
tratar cooperativamente de seus assuntos comuns em todos os lugares,
sobretudo nas vizinhanças – conjuntos habitacionais, ruas, bairros – e nas
comunidades de prática, de aprendizagem e de projeto que se formam
nas cidades inovadoras que não querem mais permanecer eternamente
na condição de instâncias subordinadas ao Estado-nação.
291
Estado
Um delírio de raiz belicista
AS PREFERÊNCIAS QUE LEVAM ALGUÉM a querer morar ou trabalhar em
Barcelona, São Francisco, Curitiba, Milão ou Genebra, não são, em geral,
relacionadas às características das nações que abrigam essas cidades e sim
à dinâmica singular que cada uma delas apresenta. Quem optou por
Barcelona, certamente não optaria genericamente pela Espanha. Quem
gosta de viver em São Francisco, frequentemente tem motivos muito
claros para não querer morar em outros lugares dos Estados Unidos.
Não é assim? Tanto faz morar em Curitiba ou Pernambuco, só porque
ambas estão no Brasil? Tanto faz morar em Milão ou Consenza, só porque
ambas estão na Itália? Tanto faz morar em Genebra ou Berna, só porque
ambas estão na Suíça? É claro que não! Há uma diferença de capital social
(ou seja, uma diferença de topologia e de conectividade, na estrutura e na
dinâmica, de suas redes sociais) entre essas cidades, que faz toda a
diferença em termos de condições e estilo de vida e convivência social.
O fato é que vivemos em cidades, moramos, estudamos, trabalhamos e
nos divertimos em localidades. Ninguém convive no país. A nação não é
uma comunidade concreta. É uma comunidade imaginária, de certo modo
292
inventada e patrocinada pelo Estado e seus aparatos, inclusive pela
publicidade massiva das empresas estatais (que se enrolam nas bandeiras
nacionais para tentar estabelecer uma vantagem competitiva bypassando
o mercado ou para fazer propaganda dos governantes que nomearam
seus dirigentes). E a pátria (e o patriotismo), ou é a remanescência de um
delírio de raiz belicista (aquele mesmo que acompanhou a instalação
desse fruto da guerra chamado Estado-nação moderno) ou – para lembrar
a já batida sentença de Samuel Johnson (1709-1784) – é um refúgio de
canalhas (7) que se escondem por trás do nacionalismo para proteger
seus interesses ou levar vantagem sobre os concorrentes, em geral no
campo econômico, por certo, mas também no político.
Mas as profundas mudanças sociais que estão ocorrendo nas últimas
décadas estão criando condições favoráveis à independência das cidades
do ponto de vista do desenvolvimento local. Fala-se aqui – entenda-se
bem – das cidades como redes de múltiplas comunidades, e não
propriamente das instâncias locais do Estado (central ou regional), das
prefeituras e das outras instituições privatizadoras da política que querem
“representá-las” ou comandá-las.
O mundo humano-social, ao contrário do que pensam os governantes, não
é um conjunto de Estados, nações ou países. É uma configuração móvel e
complexa de infinidades de fluxos entre pessoas e grupos de pessoas,
agregadas, por sua vez, em múltiplos arranjos locais e setoriais: famílias,
vizinhanças, comunidades, cidades, regiões, organizações (dentre as quais,
algumas poucas – que não chegam a duas centenas – são Estados).
293
Depois que se generalizou a forma Estado-nação, as cidades passaram a
ser localidades de um país (devendo-se entender por isso que elas
passaram a ser instâncias subnacionais). Para todos os efeitos, são
encaradas, pelos aparatos estatais que comandam os países, como
instâncias subordinadas (ordenadas a partir de cima). E conquanto
tenham alguma autonomia formal, figurando como sujeitos de pactos
federativos em muitas Constituições modernas, as cidades são realmente
subordinadas do ponto de vista político, jurídico, fiscal, energético,
econômico etc. Seu funcionamento depende, em grande parte, de
decisões tomadas sem a sua participação. Normas, repasses de recursos e
investimentos, são determinados por outras instâncias, de cima e de fora.
E na medida em que tudo isso gera dependência, não interdependência,
são construções contra-fluzz.
294
A nação como comunidade imaginária
A nação não é uma comunidade concreta. É uma comunidade
imaginária, de certo modo inventada pelo Estado e seus aparatos
AS NAÇÕES SÃO APRESENTADAS como grandes comunidades, no sentido
alemão seiscentista do termo, ou naquele sentido, que lhe atribuía
Althusius (1603), da grande comunidade territorial de herança (8) e não
no sentido que lhe atribuímos hoje, da pequena comunidade como
cluster, de escolha de uma (“porção” da) rede social para conformar um
campo de convivência, em uma atividade compartilhada, de prática, de
aprendizagem ou de projeto. Dewey (1927) em “O público e seus
problemas”, faz uma correta distinção entre a grande comunidade e a
pequena comunidade do ponto de vista da democracia (substantiva) como
modo de vida comunitário. Não é na grande comunidade (nação) que essa
democracia pode se materializar plenamente e sim na pequena
comunidade local; para usar suas próprias palavras: “a democracia há de
começar em casa, e sua casa é a comunidade vicinal” (9).
Essas
grandes
comunidades-nacionais
são,
é
claro,
instituições
imaginárias. Como tal são abstratas. Ninguém convive ou interage
concretamente com a população de um país. Ser brasileiro, italiano ou
argentino não é, stricto sensu, pertencer a uma comunidade concreta,
295
porquanto, para os nossos ‘compatriotas’ (e essa palavra já é horrível),
não estamos incluídos, como pessoas, no seu modo-de-vida, quer dizer,
não fomos voluntariamente aceitos e acolhidos por eles no seu campo de
convivência. Who cares? Somente comunidades humanas podem incluir
seres humanos, mas quem é incluído é sempre a pessoa com suas
peculiaridades e não o indivíduo como um número em uma estatística ou
uma variável censitária.
No entanto, para fazer parte da grande “comunidade” nacional basta
nascer naquele território delimitado como seu (a partir da conquista ou da
guerra) e, em geral, manter “laços de sangue” ou hereditários com os
nacionais (ou seja, trata-se do reconhecimento de uma herança genética,
condição a partir da qual – acredita-se, e não sem razão – a transmissão
não-genética de comportamentos que chamamos de cultura pode ser
viabilizada, inoculando-se tal cultura (como quem “carrega” um programa)
nos novos membros (descendentes dos nacionais), a partir da família e,
em seguida, da vizinhança, da escola, da igreja, das organizações sociais,
das empresas e das instituições nacionais estatais e não-estatais). Note-se
que essa identidade abstrata nacional é construída a partir de uma visão
de passado: origem comum (em geral forjada), raça (uma identificação
inconsistente do ponto de vista científico), língua, costumes, credos,
cultura enfim e história (escrita sempre da frente para trás) (10).
Percebe-se que não há aqui qualquer escolha humana. Não há
acolhimento (quer dizer, inclusão). Funciona mais ou menos assim como
na propriedade de um rebanho animal: as crias do gado pertencem
automaticamente ao dono da boiada, aumentam o número de cabeças do
296
seu patrimônio. Pois bem. No caso do pertencimento à grande
“comunidade” nacional quem faz às vezes do dono é o Estado-nação.
É o Estado que interpreta o que é a nação. É o Estado que delimita quem
pode ou não pode ser incluído na nação e estabelece condições de
pertencimento ou inclusão. Mas o Estado não é uma comunidade e sim
um sistema de organizações que gera programas verticalizadores (ou,
talvez melhor, do ponto de vista da rede social, o inverso: uma matriz de
programas verticalizadores que gera um sistema de instituições), cuja
função precípua é obstruir, separar e excluir. A partir do monopólio
legalizado da violência, é o Estado que diz: isso você não pode fazer; por
tal ou qual caminho você não pode trafegar sem autorização; aqui você
não pode entrar ou daqui você deve sair. Ponha-se na rua, quer dizer, fora
do meu território!
Não importa se, por exemplo, uma comunidade concreta de espanhóis
queira acolher um africano, incluindo-o no seu campo de convivência para
a realização de um projeto comum. Se o africano em questão não atender
a certas condições e não preencher certos requisitos ditados pelo Estado,
nada feito. E mesmo que cumpra todas as exigências, ele sempre será, aos
olhos do Estado-nação espanhol, um estrangeiro, ou seja, um estranho,
alguém que deve ser impedido de circular livremente, separado dos
“verdadeiros” espanhóis e excluído de certos direitos – o principal dos
quais o de pertencer plenamente à comunidade política que define os
destinos coletivos dos espanhóis. Sim, será um excluído político porque
será – aos olhos da autocrática realpolitik estatal – sempre alguém cujo
modo-de-ser ameaça, independentemente do que faz ou venha a fazer,
297
simplesmente por ser diferente, por ser um outro, o modo-de-ser
estabelecido como desejável pelo imaginário nacional historicamente
construído pelo mega-programa Estado e que é reinterpretado de tempos
em tempos pelos condomínios privados de agentes políticos – estes sim,
bem concretos – que assumem as funções de governo.
De certo ponto de vista, o que chamamos de Estado como fonte ou
geratriz de programas verticalizadores que “rodam” na rede social, faz
parte da ideologia dos governos. No que tange a função de legitimação
dessa ideologia, foi necessário promover uma fusão entre o Estado e a
nação. Sem isso o aparato hierárquico estatal não conseguiria infundir na
grande “comunidade” nacional as noções abstratas de identidade que
alimentam o aparato, para as quais o drive principal foi, invariavelmente, a
guerra (que permite a formação de identidade a partir do inimigo). Sim, os
Estados – qualquer Estado, inclusive a forma atual Estado-nação – são
frutos da guerra e se alimentam (internamente) do “estado de guerra” ou
(na fórmule inversa de Clausewitz-Lenin) da prática da política como uma
continuação da guerra por outros meios. São produtos, portanto, não da
cooperação (ou da amizade política) que supostamente aglutinaria a
nação – e de todo aquele blá-blá-blá da “vontade de viver juntos” – e sim
da competição (ou da inimizade política).
Por isso que todo Estado é hobbesiano. Todo Estado é fruto do realismo
político. Todo Estado é autocrático (inclusive naqueles que denominamos
de “Estados democráticos e de direito” os enclaves autocráticos são tão
onipresentes que a estrutura e a dinâmica da entidade como um todo não
podem acompanhar o comportamento democrático das sociedades que
298
dominam). Ao criarmos a identidade imaginária “Atenas” para colocá-la
no lugar da identidade concreta “os atenienses”, já não estamos mais no
campo da democracia e sim no da autocracia. E os próprios gregos do
século de Péricles fizeram isso, quando se comportaram de modo apolítico no enfrentamento violento com outras cidades-Estado da região.
Não é a toa que os governantes vivem apelando para um sentimento
nacional. Falam da França, da América ou do Brasil como se essas
“entidades” existissem e tivessem vontade própria, a fim de extrair o
combustível do “fervor patriótico” para se manter no poder, para
reproduzir o sistema de instituições estatais que quer impor sua
legitimidade à sociedade com o fito de torná-la seu dominium (ao modo
feudal mesmo) e para continuar produzindo inimizade no mundo.
Ora, você pode dizer: eu não quero “viver junto” com quem eu não quero,
apenas pelo fato de ser brasileiro, na medida em que isso signifique “nãoquerer viver junto” com um inglês pelo fato de ele ser inglês (e não
brasileiro). Por que deveria? Quem disse que somos inimigos? A quem
interessa manter esse tipo de rivalidade subjetiva? Do ponto de vista
genético – a ciência biológica já mostrou – somos mesmo, todos nós, uma
única grande família. Do ponto de vista cultural parece claro, a não ser
que nos deixemos intoxicar pela estiolante ideologia multiculturalista, que
culturas que não se polinizam mutuamente – por meio de saudável
miscigenação – tendem a apodrecer.
Não existe um Brasil, mas milhares, talvez milhões. Stricto sensu a “nação
brasileira” não é, nem nunca será, uma comunidade e sim uma interação
299
de miríades de comunidades que falam a mesma língua (com vários
sotaques e regionalismos), têm alguns costumes parecidos (e muitos
costumes locais bem diferentes), várias histórias reais (e não apenas uma
única narrativa, como aquela que é ensinada nas escolas). A nação só é
una do ponto de vista das instituições estatais (por meio das quais se
materializam os poderes da República, as forças armadas, a moeda) e
daquilo que antigamente se chamava, de um jeito meio sem-jeito, de
“aparelhos ideológicos de Estado”. Além, é claro, do governo central, que
precisa espichar essa unidade para além da herança cultural.
Mas há uma idéia e, mais do que isso, uma prática de bando na raiz dessa
unidade. Como no surgimento da noção de cidadania (que nada tinha de
universal, pelo contrário), trata-se de proteger “os de dentro” contra “os
de fora”, impedir que eles – os outros – venham vender na nossa feira,
que concorram conosco em igualdade de condições, que adquiram nossas
terras, que roubem nossas riquezas naturais (que certamente o próprio
Deus nos concedeu, lavrando a escritura no cartório do céu: em nome do
Estado, é claro), que tomem nossos empregos, que exerçam plenamente a
cidadania
política
(disputando
conosco
o
poder
associado
à
representação). Sim, é um sentimento de bando que se manifesta aqui,
justificado pelo pressuposto antropológico de que o ser humano, por
inerentemente competitivo, é hostil por natureza e que, portanto, os
seres humanos, deixados a si mesmos, como escreveu Hobbes (1651),
engalfinhar-se-iam em uma guerra de todos contra todos. Ah... A menos
que haja um Estado para impedir, entenda-se bem, não o conflito em si e
a guerra, mas o conflito no interior do próprio bando e a guerra entre “os
300
de dentro”. Tudo isso, é claro, para poder promover o conflito e a guerra
com “os de fora”. Foi assim que nasceu o Estado, e inclusive, como já foi
assinalado, a forma atual Estado-nação e a ordem internacional do
equilíbrio competitivo.
Então, quando alguém fala do Brasil, ou em nome do Brasil, podemos
procurar que certamente vamos achar os interesses particularistas, bem
concretos, que se escondem sob essa “nacionalização” abstrata do
discurso. É alguém tentando se proteger do mercado. É alguém tentando
proteger a sua indústria ou o seu negócio. É alguém tentando se proteger
da concorrência comercial ou política. É alguém tentando proteger o seu
emprego. É alguém tentando proteger suas condições de vida. É alguém
tentando desqualificar os oponentes para ficar no poder. É alguém
tentando manter nas mãos do seu bando as instituições estatais que
aparelhou. É sempre alguém no contra-fluzz, tentando se proteger do
outro.
“O Brasil” é um construct. Se somos brasileiros, na maior parte do tempo,
nos nossos trabalhos, nos nossos estudos e pesquisas, nos nossos
relacionamentos, “o Brasil” não gera preferências significativas (11).
Na aceitação da legitimidade do outro e na sua incorporação em nosso
espaço de vida, não deveríamos dar a mínima se uma pessoa é brasileira,
italiana, argentina, francesa ou norte-americana. Qualquer preferência,
baseada nesses critérios, para acolher ou rejeitar uma pessoa em uma
comunidade, é uma canalhice. Sim, nunca é demais repetir o dito de
Johnson: “o patriotismo é o último refúgio dos canalhas”. Uma pessoa
301
decente não deveria se deixar drogar com esse tipo de ideologia que
obstrui, separa a exclui para atender a exigências hierárquicas que, ao fim
e ao cabo, são desumanizantes.
Nos últimos séculos o fervor patriótico que alimentava as “comunidades”
nacionais foi sendo obrigado a dividir espaço com o consumismo, apátrida
por natureza, internacionalizante, sim, mas não glocalizante. E não
necessariamente mais humanizante. Ocorre que o processo de
globalização (ou de planetarização) começou a quebrar as fronteiras
nacionais (aquelas que são vigiadas pelo Estado nacional) em todos os
campos, ensejando que culturas não-nacionais pudessem emergir das
múltiplas interações cruzadas de pessoas de diferentes nacionalidades.
Praticamente nenhum Estado-nação, nem mesmo o mais autocrático
deles, consegue mais fechar suas fronteiras, em termos culturais, isolando
seu “rebanho” do resto do mundo. A telefonia móvel e a Internet (a
despeito daquele vergonhoso acordo do Google com os ditadores
chineses, que não deve ser esquecido, conquanto o próprio Google tenha
sido levado a revê-lo, muitos anos depois) aceleraram esse processo. De
sorte que existe hoje um contingente crescente de pessoas que não estão
nem aí para identidades nacionais e que estão se inserindo em múltiplas
comunidades
transnacionais,
compostas
por
pessoas
de
várias
nacionalidades, a partir de suas próprias escolhas.
No segundo capítulo do seu excelente Transforming History intitulado
“Cultural History and Complex Dynamical Systems”, William Irwin
Thompson (2001), escreveu que “toda nossa matriz de identidade
baseada em uma cultura de desejo de compra econômica e fervor
302
patriótico está mudando para uma nova cultura planetária...”. Mas em
seguida adverte que “explosões reacionárias [atuando “como a Inquisição
e a Contra-Reforma, que procuraram travar e reverter as forças
modernizadoras da Renascença e da Reforma”] podem prejudicar muito e
atrasar a transformação cultural por séculos a fio” (12).
Pois é precisamente neste ponto de bifurcação que nos encontramos hoje.
Todavia, para além, talvez, do que avalia Thompson, não são apenas “o
fundamentalismo religioso e as reações terroristas nacionalistas da direita
à planetização” (13) que estão tentando enfrear a emergência de uma
nova identidade transcultural. Hoje o próprio conceito de nação,
interpretado e materializado por uma forma já decadente de Estado – o
Estado-nação e as ideologias nacionalistas nele inspiradas ou por ele
infundidas na sociedade – constitui um obstáculo à transição histórica
atualmente em curso (cujo sentido é a glocalização).
303
A falência da forma Estado-nação
A maior parte dos Estados-nações não deu certo
DO PONTO DE VISTA DO ‘DESENVOLVIMENTO COMO LIBERDADE’ – para
usar a feliz expressão de Amartya Sen (2000) –, é forçoso reconhecer que
a imensa maioria dos Estados-nações do mundo não deu muito certo (14).
O chamado mundo desenvolvido restringe-se a uma lista que não chega a
três dezenas de países: quer se considere o desenvolvimento humano
medido pelo IDH – Índice de Desenvolvimento Humano do PNUD, quer se
considere o desenvolvimento econômico, medido pelo CGI – Índice de
Competitividade Global do Fórum Econômico Mundial, quer se considere
o desenvolvimento tecnológico e a sintonia com as inovações
contemporâneas, medido pelo IG – Índice de Globalização, da AT
Kearney/Foreign Policy. Desenvolvidos (nesses três sentidos) são os países
que apresentam IDH igual ou superior a 0,9, CGI maior ou igual a 4,6 e que
figuram nos primeiros vinte ou trinta lugares da lista do IG, daqueles que
têm ambientes mais favoráveis à inovação.
Um cruzamento desses três índices revela a lista – aborrecidamente
previsível – dos países que deram certo. Pasmem, mas são menos de 30!
Em ordem alfabética (em dados do final da década passada): Alemanha,
304
Austrália, Áustria, Bélgica, Canadá, Coréia do Sul, Dinamarca, Espanha,
Estados Unidos, Finlândia, França, Holanda, Hong Kong, Irlanda, Islândia,
Israel, Itália, Japão, Luxemburgo, Noruega, Nova Zelândia, Portugal, Reino
Unido, Cingapura, Suécia e Suíça. (A essa lista poder-se-ia, com boa
vontade, acrescentar mais alguns, como, por exemplo – e entre outros –, a
República Checa, a Estônia, a Eslovênia e, na América Latina, o único
candidato de sempre: o Chile).
Significativamente, a imensa maioria dos países dessa lista dos mais
desenvolvidos tem regimes democráticos. Significativamente, também,
não figuram nessa lista dos mais desenvolvidos: i) países com regimes
ditatoriais, ainda que apresentem altos índices de crescimento econômico
(como China ou Angola); ii) protoditaduras (como Rússia ou Venezuela); e,
nem mesmo, iii) democracias formais parasitadas por regimes
neopopulistas manipuladores (como Argentina e outros países da América
Latina).
Em outras palavras, do ponto de vista do ‘desenvolvimento como
liberdade’, os Estados-nações existentes no mundo atual, em sua maioria,
não são instâncias benéficas.
Os números são assustadores. Em dados de 2011: entre 51% (Democracy
Index 2011 Economist Intelligence Unit) e 57% (Freedom in the World
2012) da população mundial (quase 4 bilhões de pessoas) não vivem em
regimes free. O que é mais assustador? Esta porcentagem já foi menor!
(15).
305
Quase quatro milhões de seres humanos (a maioria da humanidade) não
têm plena liberdade para criar, para inventar, para inovar, para se
desenvolver e para promover, com alguma autonomia, o desenvolvimento
das localidades onde vivem e trabalham. E não há qualquer processo
“natural”, de “evolução”, sempre ‘para frente e para o alto’, como
imaginam alguns crédulos. Em 1975, 30 nações tinham governos eleitos
pela população. Em 2005, esse número tinha subido para 119 (16). Mas
nos últimos anos o crescimento da democracia e da liberdade política está
sofrendo forte desaceleração e isso não tem a ver somente com o
requisito democrático da eletividade, mas, sobretudo, com o da
rotatividade (ou alternância), para não falar dos outros princípios (como a
liberdade, a publicidade, a legalidade e a institucionalidade e, como
consequência de todos esses, a legitimidade).
Bem mais da metade dessas pessoas vivem em cidades que poderiam “dar
certo”, não fosse pelo fato de estarem subordinadas a Estados-nações que
sufocam seu desenvolvimento. Sim, 87% dos Estados-nações do globo não
podem ser considerados desenvolvidos dos pontos de vista humano,
social e científico-tecnológico. No entanto, nesses 168 países “atrasados”
(por assim dizer) e com poucas chances de se inserir adequadamente na
contemporaneidade, existem milhares de cidades promissoras, que
caminhariam celeremente para alcançar ótimas posições nos rankings da
inovação e da sustentabilidade, bastando para tanto, apenas, que
lograssem se libertar do jugo dos países – das estruturas centralizadoras
dos governos centrais e dos outros aparatos de controle e dominação dos
Estados-nações – que as estrangulam.
306
O fato é que o Estado-nação não é boa instância – e não é uma boa
fórmula política – do ponto de vista do desenvolvimento.
As cidades, pelo contrário, sempre o foram, pelo menos até agora. E não
há nenhuma razão pela qual as cidades devam continuar mantendo uma
atitude genuflexória em relação ao Estado-nação, a não ser a
concentração de poder nas instâncias nacionais, inclusive o poder de
retaliação dos governos e legislativos centrais. Os prefeitos, como se diz,
andam de “pires na mão” e ajoelham-se perante os executivos nacionais,
em parte porque dependem de recursos que foram centralizados pelas
instâncias nacionais e, em parte, porque têm medo de serem
discriminados e perseguidos – o que, convenha-se, é um motivo odioso e
antidemocrático. Mas isso acontece porquanto suas cidades não estão
preparadas para enfrentar os desafios de caminhar com as próprias
pernas.
307
O reflorescimento das cidades
Cidades transnacionais, cidades-pólo tecnológicas, redes de cidades e
cidades-redes
NÃO É POR ACASO QUE AS CIDADES sempre estiveram na ponta da
inovação, seja no aspecto social e político, como a Atenas no século de
Péricles (ou, mais amplamente, no período considerado democrático: 509322 antes da Era Comum), seja no aspecto econômico e científicotecnológico, como Bruges (no final do século 12), pólo da nascente ordem
comercial moderna, logo seguida por Veneza, que foi, talvez, o primeiro
centro globalizado da Europa (do final do século 14 até o ano de 1500), ou
Antuérpia (na primeira metade do século 16) e depois Gênova (na
segunda metade), que se tornaram centros financeiros, seguidas por
Amsterdã (na passagem do século 17 para o 18), ou por Londres, que se
transformou na primeira democracia de mercado e onde o valor agregado
industrial, impulsionado pelo vapor, ultrapassou, pela primeira vez na
história, o da agricultura, ou por Boston (no início do século 20), com a
fabricação de máquinas, passando a Nova Iorque que predominou
durante quase todo o século passado, com o uso generalizado da
eletricidade e chegando, afinal, à Califórnia atual, com Los Angeles e às
cidades do Vale do Silício.
308
Hoje o dinamismo das cidades inovadoras já se vê por toda parte.
Frequentemente não são mais os países (Estados-nações) que constituem
referências para o desenvolvimento e sim as cidades, sejam cidades
transnacionais (Barcelona, Milão, Lion, Roterdã), sejam cidades-pólo
tecnológicas (Omaha, Tulsa, Dublin e, talvez, Bangalore e Hyderabad, no
chamado terceiro mundo), sejam, por último, as coligações de numerosas
cidades em extensas regiões do planeta, que começam a adotar uma
lógica própria e diferente daquela do Estado-nação.
Na verdade, cidades que se afirmaram como unidades econômicas – não
necessariamente políticas – relativamente autônomas, já vêm surgindo ao
longo dos últimos séculos (como Veneza e outros centros mais ao norte da
Europa: e. g., Riga, Tallin e Danzig). São prefigurações do que Kenichi
Ohmae (2005) chamou de ‘Estado-região’, que constitui hoje o palco
privilegiado da economia global e que está levando a “um inevitável
enfraquecimento do Estado-nação em favor das regiões” (17).
Algumas dessas regiões, que tendem a substituir o Estado-nação, são
coligações de cidades (como a área metropolitana de Shutoken, formada
por Tóquio, Kanagawa, Chiba e Saitama, com um PNB de 1,5 trilhão de
dólares; ou a área de Osaka, com 770 bilhões, em dados de 2005). Parece
óbvio que essas regiões, que representam unidades econômicas mais
pujantes do que a imensa maioria das nações do mundo, figurando então
(2005) em terceiro e o sétimo lugares, respectivamente, no ranking
mundial, mais cedo ou mais tarde, entrarão em choque com o
centralizado sistema político do velho Estado-nação japonês, que não lhes
permite uma dose de autonomia correspondente ao seu peso econômico.
309
Ainda que algumas dessas regiões emergentes coincidam com pequenos
países (como Irlanda, Finlândia, Dinamarca, Suécia, Noruega e Cingapura),
em geral elas se formarão a partir do protagonismo de cidades e
desenharão uma nova configuração geopolítica do mundo. Ou seja, ao
que tudo indica, a estrutura e a dinâmica do Estado-nação não serão
preservadas, a não ser em alguns casos.
Mas quer falemos de Bangalore e Hyderabad, quer falemos de Dalian ou
da ilha de Hainan na China, ou, quem sabe, de Vancouver e da British
Columbia, da Grande São Paulo ou de Kyushu no Japão – mesmo em um
sentido predominantemente econômico quantitativo, como o empregado
por Ohmae – ainda estamos falando de cidades (ou de arranjos de
cidades).
Sim, continuamos falando de cidades. E é por isso que, nos exemplos
colhidos na história e nas nossas tentativas de projeção para as próximas
décadas, não aparecem, em maioria, as capitais dos países, as localidadessedes dos seus governos centrais. Falamos de Milão e não da Itália (ou
Roma). Falamos de Bangalore e não da Índia (ou Nova Delhi). Os que
falam da Índia (e do Brasil e da Rússia e da China – repetindo a ilusória
hipótese dos BRICs, inventada por Jim O’Neill) são aqueles autores,
professores, consultores e policymarkers intoxicados de ideologia
econômica e siderados pelo crescimento (ou expansão, mudança
quantitativa) e não pelo desenvolvimento (mudança qualitativa). Com
frequência são também pessoas que não se dão muito bem com a idéia de
democracia.
310
As cidades na glocalização
Estados são artifícios para proteger as pessoas da experiência do
localismo cosmopolita
O REFLORESCIMENTO DAS CIDADES – na verdade, das localidades em
geral – é uma das consequências do processo de glocalização atualmente
em curso. O mundo não está apenas se globalizando, mas também se
localizando cada vez mais. Isso quer dizer, em outras palavras, que o
mundo único está desparecendo para dar surgimento a muitos mundos.
E está havendo uma mudança social que favorece o florescimento das
localidades em geral – e das cidades em particular – como protagonistas
do desenvolvimento. Essa mudança, que está ocorrendo simultaneamente
na dimensão global e na dimensão local, está tornando inadequada,
insuficiente e impotente, a forma Estado-nação. O tão citado juízo do
sociólogo americano Daniel Bell parece ser definitivo: o velho Estadonação tornou-se não só pequeno demais para resolver os grandes
problemas, como também grande demais para resolver os pequenos.
Em outras palavras, as inovações (sociais, políticas, culturais e
tecnológicas) introduzidas com o atual processo de glocalização, têm
surgido simultaneamente na dimensão global (como resultado de
311
mudanças sociais macroculturais) e na dimensão local (como resultado de
mudanças sociais na estrutura e na dinâmica de comunidades).
Entretanto, o Estado-nação tornou-se uma instância intermediária
resistente a tais mudanças. Ou seja, a mudança que tem ocorrido nas duas
pontas – no global e no local – ainda não atingiu plenamente o meio, a
forma Estado-nação, que, sentindo-se ameaçada, está resistindo
ferozmente para não ser desabilitada como fulcro do sistema de
governança. A primeira década do terceiro milênio pode ser caracterizada
como uma década de crise do Estado-nação e de consequente
recrudescimento do estatismo.
Os Estados-nações criarão, por certo, muitos obstáculos à emergência das
cidades como sujeitos autônomos do seu próprio desenvolvimento. Mas
não conseguirão resistir por muito tempo à convergência de múltiplos
fatores que estão preparando o seu declínio. Como previu Castells (1999),
“as estratégias do Estado-nação para aumentar a sua operacionalidade
(através da cooperação internacional) e para recuperar sua legitimidade
(através da descentralização local e regional) aprofundam sua crise, ao
fazê-lo perder poder, atribuições e autonomia em benefício dos níveis
supranacional e subnacional” (18).
Nenhum Estado hoje consegue mais se livrar dos conflitos com seus níveis
subnacionais, diante das exigências crescentes de mais autonomia local.
Mas a despeito de todos os conflitos políticos e fiscais entre diferentes
níveis de governo dentro de um mesmo Estado, que só tendem a se
aprofundar e generalizar nos próximos anos, nunca é demais repetir que
se fala aqui das cidades como redes de múltiplas comunidades
312
interdependentes e não da réplica Estatal montada nas cidades, da
instância municipal do Estado ou do governo local.
Os que preconizam o declínio do Estado-nação diante dos novos arranjos
locais ou regionais que emergem no mundo globalizado, fazem-no quase
sempre de um ponto de vista estrita ou predominantemente econômico.
É o caso, por exemplo, de Ohmae (entre outros). Mas é preciso ver que o
fenômeno da glocalização é mais abrangente e não pode ser plenamente
captado pelo olhar econômico. Estamos diante de mudança sociais mais
profundas, que dizem respeito aos padrões de vida e de convivência social
e não apenas diante de alterações na estrutura e na dinâmica do capital e
do capitalismo. O que está mudando não é somente o modo de produzir e
consumir e sim o modo de ser coletivamente. ‘Uma sociedade-rede está
emergindo’ – muitos repetem o dito, mas parecem não extrair dele todas
as consequências e essa surpreendente afirmação vai se tornando banal.
O problema com a visão econômica é que ela é reducionista. Imagina que
a configuração do mundo depende do modo de produção e, assim, se
esforça para antecipar a nova forma do capitalismo que virá (ou
sobrevirá), mas se esquece de perguntar sobre a nova forma de sociedade
que emergirá. Isso talvez seja uma evidência da resiliência da crença
economicista de que existe alguma coisa como uma “estrutura”
econômica que determina, em alguma medida ou instância, uma suposta
“superestrutura” da sociedade.
Mas mercados não vêm de Marte. Constituem um tipo de agenciamento
operado por seres humanos, terráqueos mesmo, cujo comportamento
313
depende das interações que efetivam com outros seres humanos; ou seja,
tudo isso depende do “corpo” e do “metabolismo” da sociedade (i. e., de
sociosferas), vale dizer, da rede social.
Não é nas novas formas econômicas que vamos encontrar o “mapa” das
novas cidades. Esse “mapa” não poderá ser outra coisa senão as novas
configurações das redes que configuram a cidade-rede. Tivemos até agora
vários tipos de “mapas”, dos quais podemos citar alguns exemplos: as
cidades-assentamento “horizontais” que se formaram após o final do
período neolítico na Europa Antiga e no Oriente Médio (como Jericó, a
partir, talvez, do 6º milênio a. E. C.); as cidades-Estado da antiguidade (as
cidades monárquicas, muradas e fortificadas, que surgiram na
Mesopotâmia a partir do 4º milênio, como Uruk, Ur, Lagash etc., e que se
replicaram no período considerado civilizado); as cidades – burgos –
organizadas em torno do comércio nos períodos feudais; uma grande
variedade de cidades correspondentes aos Estados principescos e reais;
até chegar às cidades como instâncias subnacionais (ou domínios do
Estado-nação). E tivemos também algumas exceções, como Atenas – a
polis do período democrático – e outras poleis na Ática. São exceções
porque a polis grega democrática não era propriamente uma cidadeEstado semelhante às suas contemporâneas e sim uma comunidade
(koinonia) política. Por último, ao que parece, teremos agora, no ocaso do
Estado-nação, novos tipos de cidades: as cidades-redes (e as redes de
cidades configurando novas regiões).
Ao que parece, não é muito útil tentar pegar no passado um modelo como
prefiguração para explicar o fenômeno atual da emergência da cidade-
314
rede. Assim como a globalização da época das navegações não diz muita
coisa sobre a globalização atual, também não teremos um novo
venezianismo (por exemplo, não tivemos um novo brugesismo – de
Bruges – a não ser o próprio venezianismo, o original, dos séculos 14 e 15).
Não teremos novas “ligas hanseáticas”, nem um neo-antuerpismo ou um
neogenovismo; assim como nenhum país ou região poderá cumprir no
mundo atual o papel que foi desempenhado, em suas épocas, por
Amsterdã, Londres, Boston, Nova Iorque ou Los Angeles e adjacências.
Por quê? As explicações são várias: porque a ordem comercial
contemporânea não tem mais mono-pólos (como foram Bruges e Veneza),
de vez que a globalização hoje é policêntrica; porque o capital financeiro
transnacional não exige mais centros fixos (como a Antuérpia ou a Gênova
do século 16); porque as chamadas democracias de mercado não
precisam estar mais ancoradas em impérios militares (como a Inglaterra
dos séculos 18 e 19); porque as “máquinas que fabricam máquinas” da
nova indústria do conhecimento não requerem mais uma infra-estrutura
tão pesada que só possa ser reunida em uma localidade com alta
capacidade hard instalada (como Boston, nos Estados Unidos no início do
século 20); porque o acesso à eletricidade é praticamente universal (e a
conexão banda larga segue o mesmo caminho) e a energia e a inteligência
não precisam estar mais espacialmente tão concentradas (como estiveram
em Nova Iorque ou em Los Angeles e nas cidades do Vale do Silício
durante o século 20).
Não é o mercado que determina. Não é o Estado que decide. São os
fenômenos que ocorrem na intimidade da sociedade e que têm a ver com
315
o grau de conectividade e de distribuição da rede social que acarretam a
estrutura e a dinâmica dos novos agrupamentos humanos que se
estabelecem sobre o território e, inclusive, daqueles que não estão
estabelecidos sobre um território (como os agrupamentos virtuais). É claro
que o mercado pode induzir e o Estado pode restringir (em geral
colocando obstruções) as fluições que configuram a forma e o
funcionamento
das
sociedades.
Mas
nenhum
desses
tipos
de
agenciamento pode determinar o que acontece.
O problema do Estado – dos pontos de vista da democracia e do
desenvolvimento (ou da sustentabilidade) – não é que ele se assenta
territorialmente e sim que ele se constitui como um mainframe de
programas verticalizadores. A Matrix como mainframe, do filme dos
irmãos Wachowski, não precisava se assentar em um território
determinado para executar o seu papel verticalizador. Aliás, no filme, o
centro de vida alternativa e de resistência ao poder vertical – Zion – era
territorialmente (e mais do que isso, subterraneamente) situada,
enquanto que a Matrix era virtual, ou melhor, virtualizante...
O territorial não leva necessariamente à verticalização (ou centralização),
nem o virtual nos salva da dominação do poder vertical. Porque as
disposições que configuram o que se manifestará no mundo físico ou no
mundo virtual estão no espaço-tempo dos fluxos e não no espaço-tempo
físico ou no chamado mundo digital (19). Mas o agarramento ao território,
esse agrilhoamento tamásico contra-fluzz – posto que estabelecido para
tentar impedir a vida nômade das coisas – tem sido fonte, em grande
316
parte, do poder de separar os seres humanos: uma tentativa de matar no
embrião o simbionte social.
Os Estados foram erigidos para nos proteger da experiência do localismo
cosmopolita, uma experiência glocal. Sob seu domínio, uma pessoa não
pode ser cidadã do seu próprio mundo e não pode interagir livremente
com outros mundos. Não, ela deve ser aprisionada no mundo único que
foi territorialmente repartido por organizações erigidas em função da
guerra e separadas por fronteiras, fechadas e burras. Em geral não pode
atravessar essas fronteiras sem a permissão do poder estatal. Em uma
parte dos casos, o poder estatal não concede tal licença a seus súditos,
trancafiando-os no próprio território-penitenciária, como se tivessem sido
condenados por algum crime gravíssimo. Em outra parte dos casos, não
deixa entrar (ou cria toda sorte de empecilhos para a entrada) em seus
territórios de certas categorias de estrangeiros.
317
Comunitarização
As novas Atenas serão zilhões de comunidades
ECOANDO O OPERATING MANUAL FOR SPACESHIP EARTH de Buckminster
Fuller (1968), McLuhan (1974) afirmou que “a espaçonave Terra não tem
passageiros, só tripulação” (20). Como poderíamos considerar alguém
“estrangeiro” se pertencemos todos à mesma família (em termos
genéticos, praticamente toda a população da Terra é prima em um grau
inferior ao 50º), habitando um planeta tão minúsculo, no qual somos
todos tripulantes (quer dizer, todos nós somos o pessoal necessário para o
bom funcionamento da nave)?
Na modernidade, em um padrão descentralizado, 193 Estados-nações
impõem modelos autocráticos de governança baseados no equilíbrio
competitivo. A ilusão (e a impostura) de que sete bilhões de pessoas
possam ser administradas por menos de duzentas unidades centralizadas
– e, em grande parte (a maior parte) autocratizadas – é aceita como se
fosse normal. Como se fosse possível disciplinar toda a diversidade da
interação ensejada por bilhões de interworlds em duas centenas de
organizações, em sua ampla maioria, capengas, autoritárias e corruptas,
318
controladas por grupos privados que satisfazem seus interesses à custa do
público, quando não por sociopatas, ladrões e facínoras de todo tipo.
Tudo indica que não poderemos mais ser arrebanhados e aprisionados ou
dominados por 193 organizações hierárquicas, eivadas de enclaves
autocráticos resilientes – constituídos como barreiras, para tentar obstruir
fluzz –, como são os Estados nações da atualidade. Nem por algumas
dezenas ou centenas de milhares de Estados-locais (ou instâncias locais de
um Estado central) chamados de cidades (indevidamente, posto que a
cidade são sempre redes de comunidades). As novas Atenas serão zilhões
de comunidades.
Comunitarização é a nova palavra de des(ordem), quer dizer, de uma nova
ordem emergente, bottom up. O reflorescimento das cidades é um
sintoma do fortalecimento das comunidades que as constituem. São essas
comunidades que comporão outras unidades celulares da nova
arquitetura de governança do mundo glocalizado. É por isso que as
cidades (e as coligações de cidades em novas regiões econômicas e
geopolíticas) – e não mais, em geral, os Estados-nações – são hoje
instâncias intermediárias nessa transição para outra etapa do sistema
global, no rumo da efetivação de uma verdadeira ecumene planetária.
Mas – repetindo o mantra – o modelo é fractal e não unitário. Isso
significa duas coisas. No plano global, uma ecumene planetária não poderá
ser uma réplica global do Estado-nação; nada assim tão monstruoso como
um governo mundial ou um parlamento mundial, que apenas transferiria,
para o seu interior, o modelo perverso de equilíbrio competitivo ainda
319
reinante no cenário internacional. Tal ecumene, não será uma
administração, um sistema executivo de comando-e-controle, nem
mesmo uma grande instância de representação baseada na alienação da
autonomia das localidades ou comunidades que a constituem. Ela se
formará por emergência, tal como ocorre na regulação da capa biosférica
que envolve o planeta (o simbionte natural). E, no plano local, a
identidade da cidade-rede também se forma por emergência, na sinergia
de múltiplas identidades que, ao se identificarem entre si, também se
identificam com ela (ou parte dela) por herança ou projeto compartilhado
a posteriori, e não por uma decisão consciente (e a priori) de algum centro
diretor ou coordenador.
Cada cidade tem muitas comunidades (ou seja, em princípio, cada cidade
pode ter múltiplas identidades). Cada comunidade se desdobra, por sua
vez, em muitas outras comunidades (aumentando ainda mais a
diversidade das identidades). Isso poderia ser um problema, porque, a
rigor, uma comunidade nuclear de convivência cotidiana com grau
máximo de distribuição e conectividade, capaz de ensejar pleno
relacionamento entre todos os seus membros (e, consequentemente,
usinar uma identidade inequívoca) é uma rede muito pequena, não
chegando, talvez, a duas centenas de pessoas. Só não estamos diante de
um problema insolúvel porquanto há também muita superposição. Uma
pessoa participa ao mesmo tempo de várias comunidades desse tipo
(familiar, funcional, de prática, de aprendizagem, de projeto etc.) e não
está condenada a conviver em um único círculo restrito de
relacionamentos. Assim, o padrão de interação é complexo, dando
320
margem à formação de circularidades inerentes que – se compartilhadas
por múltiplas redes urbanas – podem configurar a cidade-rede.
Ademais, as cidades já existem, para além de eventos sócio-territoriais,
geograficamente localizados, como “regiões” do espaço-tempo dos fluxos.
Não se trata de fabricar novas cidades, seguindo um projeto, uma planta,
uma maquete. Toda vez que se tenta fazer isso, aliás, os resultados são
péssimos:
criam-se
arquiteturas
verticalizadoras
e
dinâmicas
autocratizantes (como é o caso das chamadas “cidades-planejadas”, seja a
nova capital do Egito criada por Amenófis IV para o deus Aton ou Brasília),
para não falar do dispêndio desnecessário de recursos. Verdadeiras
cidades só passarão a existir (em termos sociológicos, por assim dizer),
várias décadas depois da instalação dessas experiências arquitetônicas e
de planejamento urbano de eternos “aprendizes de feiticeiros”, que
retornam de tempos em tempos. Padrões de comportamento social
peculiares já se reproduzem nas cidades por efeito de herança cultural, às
vezes milenar e isso não pode ser substituído por iniciativas conscientes
de um número limitado de planejadores urbanos, mesmo quando estão
imbuídos das melhores intenções.
Assim como não se trata de planejar novas cidades (como complexos
urbanos instalados ex ante à dinâmica social), também não se trata – na
recusa à verticalização do mundo imposta pelo Estado e à chamada
“sociedade de controle” – de urdir novas comunidades a partir de um
plano de um grupo privado. Grupos marginais, muitas vezes com forte
potencial transformador – pois que a inovação, na razão direta do grau de
conectividade e distribuição das redes sociais, costuma partir da periferia
321
do sistema e não do centro – surgem mesmo nos momentos de crise dos
velhos padrões de ordem.
Mas o que não se pode pretender é constituir comunidades desse tipo
como proposta política para estabelecer um caminho de mudança,
forjando estudadamente uma identidade e buscando ganhar almas por
meio do proselitismo ou da aplicação de outros programas proprietários.
Comunidades se formam a partir de identidades, é certo. Mas identidades
também são programas que “rodam” em redes sociais. Ora, programas
que podem favorecer a emergência das cidades como protagonistas do
desenvolvimento são programas de capital social. E capital social é um
bem público.
Em uma sociedade em rede não é privatizando capital social que vamos
conseguir contribuir para a emersão de uma nova esfera pública (social)
nas cidades ou localidades, capaz de substituir a limitada esfera pública
atual, contraída pela invasão dos programas proprietários do Estadonação (que, ao contrário do que se afirma, são privatizantes e quase
sempre desestimulam ao invés de induzir o desenvolvimento).
322
Cidades inovadoras
Cidades inovadoras – como redes de comunidades – em rota de
autonomia crescente em relação aos governos centrais que as tinham
por seus domínios
NAS GRANDES TRANSFORMAÇÕES MOLECULARES – aquelas que têm
consequências duradouras – o velho é substituído pelo novo não porque
foi destruído, mas porque se tornou obsoleto. Os velhos padrões nunca
são eliminados de uma vez ou para sempre, mas continuam existindo,
como remanescências, vestigialmente. Ao que tudo indica, os Estadosnações continuarão existindo por muito tempo, assim como ainda existem
hoje algumas comunidades de herança (do tempo medieval) e velhas
tribos indígenas primitivas (da era paleolítica). Ao contrário do que
previram os críticos da globalização, apavorados ante a perspectiva de
uma uniformização ou homogeneização que seria imposta ao mundo
inteiro, o cenário da glocalização é o de um conjunto de mundos variados,
que estarão não apenas em locais diversos, mas também em tempos
diferentes. Mas nessa nova configuração os Estados-nações não terão
mais o protagonismo, hoje quase único e exclusivo, da governança do
desenvolvimento, baseado nos monopólios da regulação e da violência
que ainda se esforçam por deter em suas mãos. Sim, os Estados-nações
continuarão existindo, mas já terão perdido o monopólio da governança
323
do desenvolvimento, pelo simples fato de que não conseguirão mais
impedir a emergência da inovação.
Na verdade, em uma sociedade em rede é muito difícil construir
monopólios de um novo fator cada vez mais decisivo nos processos de
produção e de regulação: o conhecimento. O conhecimento é um bem
intangível que, se for aprisionado (estocado, protegido, separado),
decresce e perde valor e, inversamente, se for compartilhado (submetido
à polinização ou à fertilização cruzada com outros conhecimentos) cresce,
gera novos conhecimentos e aumenta de valor (aliás, é isso, precisamente,
o que se chama de inovação). Os Estados e as empresas tradicionais
(sempre associados nessa coligação que formou o capitalismo que
conhecemos) continuarão tentando aprisionar o conhecimento ou regulálo top dow a partir das leis de patentes, do domínio privado sobre
produtos do conhecimento (como o direito autoral), do segredo e da falta
de transparência (ou accountability) e dos sistemas de ensino (as
burocracias escolares e as hierarquias sacerdotais que constituem as
academias). Mas não poderão mais evitar que novos conhecimentos se
formem à margem das instituições que regulam e à sua revelia. E, o que é
mais importante, não poderão mais competir com a produção em larga
escala de conhecimentos e, inclusive (uma consequência), de produtos
comerciais – como os chamados peer production e crowdsourcing – e com
as outras formas não-mercantis de inovação, como as que serão acionadas
na emergência das novas cidades.
Ainda que se constitua como instância autorizada de fabricação,
interpretação e aplicação das leis e ainda que continue detendo os
324
monopólios da regulação macro-econômica, da emissão de moeda e do
uso da violência, o velho Estado-nação ficará falando sozinho enquanto as
cidades inventam novas instituições e novos procedimentos adequados à
governança do seu próprio desenvolvimento. E isso ocorrerá não porque o
Estado-nação não queira mais barrar tais avanços e sim porque não terá
os meios para fazê-lo.
O próprio sistema político baseado na verticalização do Estado-nação já
está sentindo a mudança. Já é mais importante, hoje, ser prefeito de São
Paulo do que governador da grande maioria dos estados brasileiros. Seria
mais importante ser administrador de Shutoken do que chefe de governo
do Japão. E amanhã, em tudo o que disser respeito ao desenvolvimento,
os governantes mais importantes não serão mais os chefes do governo ou
do Estado (nacional) e sim os administradores de cidades inovadoras e de
regiões formadas por coligações de cidades. Quem sabe na futura China
(ou no que ela vier a se transformar), os participantes do sistema de
governança de Dalian terão mais importância do que têm hoje os seus
ditadores (em um cenário, é claro, em que não houver mais ditadores).
De qualquer modo, as cidades serão independentes na razão direta da sua
capacidade de inovação. O processo de independência das cidades é um
processo de inovação. As cidades que quiserem ser independentes estão
condenadas a inovar permanentemente.
Não há uma definição de cidade inovadora a não ser aquela, quase
tautológica, de que é uma cidade que inova ao criar ambientes favoráveis
à inovação (e não uma cidade em que o governo local quer pegar a
325
bandeira da inovação com objetivos de marketing político). São esses
ambientes que caracterizam a cidade inovadora como uma cidade aberta,
conectada para dentro e para fora, ágil na regulamentação (sobretudo,
mas não apenas, no que tange aos empreendimentos empresariais e
sociais) e educadora. Para tanto, é necessário que as cidades que queiram
ser inovadoras construam sistemas locais de governança que favoreçam
ao invés de dificultar a regulação emergente, a partir da comunitarização.
O mercado nos forneceu um modelo relativamente eficaz de regulação
emergente, tão sedutor que muitas pessoas deixaram-se intoxicar por
uma visão mercadocêntrica do mundo, que poderia ser resumida na
pergunta: ora, se deu certo para as unidades econômicas, por que não
daria também para as unidades políticas e sociais? Foi assim que os
modernos avacalharam o conceito de público. E a rigor também
desaproveitaram o que havia de tão revelador na autorregulação
mercantil: o próprio mecanismo da autorregulação ou o processo da
emergência. Por medo do risco, da incerteza no tocante aos seus
investimentos, em vez de constituírem empresas-fluzz e de articularem
seus negócios em rede, erigiram empresas monárquicas, às quais logo
associaram ao Estado hobbesiano gerando o capitalismo que conhecemos.
326
Notas e referências
(*) A palavra ‘fluzz’ nasceu de uma conversa informal do autor, no início
de 2010, com Marcelo Estraviz, sobre o Buzz do Google. O autor
observava que Buzz não captava adequadamente o fluxo da conversação,
argumentando que era necessário criar outro tipo de plataforma (ibased e não p-based, quer dizer, baseada em interação, não em
participação). Marcelo Estraviz respondeu com a interjeição ‘fluzz’, na
ocasião mais como uma brincadeira, para tentar traduzir a idéia de
Buzz+fluxo. Ulteriormente a idéia foi desenvolvida no livro-mãe Fluzz: vida
humana e convivência social nos novos mundos altamente conectados do
terceiro milênio (2011) e passou a não ter muito a ver com o programa
malsucedido do Google. Fluzz (o fluxo interativo) é um conceito complexo,
sintético, que talvez possa ser captado pela seguinte passagem: “Tudo que
flui é fluzz. Tudo que fluzz flui. Fluzz é o fluxo, que não pode ser
aprisionado por qualquer mainframe. Porque fluzz é do metabolismo da
rede. Ah!, sim, redes são fluições. Fluzz evoca o curso constante que não se
expressa e que não pode ser sondado, nem sequer pronunciado do “lado
de fora” do abismo: onde habitamos. No “lado de dentro” do abismo não
há espaço nem tempo, ou melhor, há apenas o espaço-tempo dos fluxos. É
de lá que aquilo (aquele) que flui sem cessar faz brotar todos os mundos...
Em outras palavras, não existe uma mesma realidade para todos: são
327
muitos os mundos. Tudo depende das fluições em que cada um se move,
dos emaranhamentos que se tramam, das configurações de interação que
se constelam e se desfazem, intermitentemente”.
(**) Este texto foi originalmente escrito em 2010 e publicado em 2011
como capítulo 7 do livro Fluzz: vida humana e convivência social nos novos
mundos altamente conectados do terceiro milênio. São Paulo: Escola de
Redes, 2011.
(1) Para uma explicação abrangente dessa imaginária linhagem-fluzz da
“tradição”
democrática
confira
FRANCO,
Augusto
(2007-2010).
Democracia: um programa autodidático de aprendizagem. Slideshare
[1022 views em 29/01/2011]
<http://www.slideshare.net/augustodefranco/democracia-um-programaautodidatico-de-aprendizagem>
(2) Cf. DEWEY, John (1927). O público e seus problemas in (excertos)
FRANCO, Augusto & POGREBINSCHI, Thamy (orgs.) (2008). Democracia
cooperativa: escritos políticos escolhidos de John Dewey. Porto Alegre:
CMDC / EdiPUCRS, 2008.
(3) Cf. FRANCO, Augusto (2007-2010). Democracia: um programa
autodidático de aprendizagem. Op. cit. Cf. também MATURANA,
Humberto (1993). La democracia es una obra de arte: Ed. cit.
(4) Chama-se de formule inversa de Clausewitz-Lenin (com base nas
anotações marginais de leitura do segundo ao tratado Da Guerra, do
primeiro) à inversão do postulado clausewitziano “a guerra é uma
328
continuação da política por outros meios”. Como, para Lenin, a luta de
classes era uma espécie de guerra permanentemente presente, então ele
avaliou que se poderia afirmar que, inclusive em tempos de paz, “a
política é uma continuação da guerra por outros meios”.
(5) De um ponto de vista político, não há problema com a competição
entre grupos privados quando seus objetivos são privados. O problema
surge quando se quer gerar um sentido público por meio da competição
entre grupos privados (como os partidos). Foi assim que, decalcando a
racionalidade do mercado, os modernos cometeram uma confusão brutal
entre tipos diferentes de agenciamento que levou à irresponsável
identificação entre democracia e capitalismo (e tão perdidos ficaram em
sua confusão que agora não sabem nem explicar direito a onda de
capitalismo autoritário que nos atinge nos últimos anos, sobretudo a
partir da China). Para acompanhar uma discussão inovadora sobre a
questão do público cf. o tópico “Sobre a questão do publico”:
<http://escoladeredes.ning.com/group/redesnapoltica/forum/topics/sobr
e-a-questao-do-publico>
(6) É por isso que têm se revelado vãs todas as tentativas de fundar um
novo partido para reformar a política, a partir de novas ideias e,
supostamente, da inauguração de novas práticas. Em pouquíssimo tempo
esse novo partido será capturado pelo oligopólio dos velhos partidos e se
comportará como eles. Quando não há má intenção (e tudo então não
passa de pretexto para construir uma nova caciquia ou para legalizar uma
329
nova quadrilha para assaltar o público), parece evidente que há falta de
inteligência mesmo nos que vivem insistindo em percorrer essa via.
(7) "Patriotism is the last refuge of a scoundrel" ("O patriotismo é o último
refúgio dos canalhas”). Cf. BOSWELL, James & CROKER, John (1791). The
life of Samuel Johnson, LL. D. New York: George Dearborn Publisher, 1833.
Disponível em Google Books:
<http://books.google.com/books?id=TmShu9cK3IUC&pg=PP1#v=onepage
&q&f=false>
(8) Cf. ALTHUSIUS, Johannes (1603). Política. Liberty Fund (2003). Rio de
Janeiro: Topbooks, s/d.
(9) DEWEY, John (1927). O público e seus problemas: Ed. cit.
(10) Dentre todos, talvez a língua continue sendo a obstrução mais efetiva
à interação entre diferentes povos, mas tudo indica que esse “muro”
também está com seus dias contados. Os avanços, verificados nos últimos
anos, no desenvolvimento de programas de tradução e a construção de
sistemas simultâneos de tradução de idiomas, compostos por softwares
aplicativos, suportados por hardwares e conectados a dispositivos de
reconhecimento de voz em computadores e aparelhos telefônicos, logo
anulará essa desculpa da Babel para o viver separado do diferente. Como
observou Humberto Maturana, lembrado por Carlos Boyle em um recente
post no site da Escola-de-Redes, Babel não fracassou em virtude das
diferentes línguas que falavam seus construtores e sim porque eles não se
entendiam entre si (ou seja, o que faltou foi cooperação, de vez que o
330
linguagear pode se exercer mesmo entre duas pessoas que falam línguas
diferentes, que acabarão, de um modo ou de outro, se entendendo).
(11) A não ser quando a seleção brasileira de futebol joga com a da
Argentina. Aí, em uma caricatura degenerada de primitivos seres tribais,
nos pintamos de verde-amarelo, nos enrolamos na bandeira e gritamos
irracionalmente a plenos pulmões que o legítimo gol feito pelo genro de
Maradona não valeu, pois que ele estava impedido e acusamos de ladrão
o juiz. E os argentinos fazem a mesma coisa. Sim, é do jogo, pode-se dizer.
Mas em geral esquece-se de perguntar: de que jogo (o esporte
competitivo como “uma guerra sem mortes” como bem o definiu George
Orwell)? De que vale esse tipo de polarização que passa por cima de
qualquer senso de urbanidade e justiça? E o quê de bom poderá advir
dessa patriotice?
(12) THOMPSON, William (2001). Transforming History: a curriculum for
cultural evolution. Ma: Lindisfarne books, 2001.
(13) Idem.
(14) SEN, Amartya (1999). Desenvolvimento como liberdade. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999.
(15) Segundo o Democracy index 2011: a report from the Economist
Intelligence Unit, temos: 25 full democracies - 15% dos países - 11,3% da
população mundial; 53 flawed democracies - 31,7% dos países - 37,1% da
população mundial; 37 hybrid regimes - 22,2% dos países - 14,0% da
população mundial; 52 authoritarian regimes - 31,1% dos países - 37,6%
331
da população mundial. Segundo o Freedom in the World 2012 da
Freedom House, temos: 87 Free Countries - 45% dos países; 60 Partly Free
Countries - 31% dos países; 48 Not Free Countries - 24% dos países. Os
critérios são diferentes, mas os resultados são semelhantes. O mais
assustador é que se observa um declínio da democracia. Segundo dados
da Freedom House, comparando 2006 com 2011 temos: Países Livres:
2006 = 90 - 47% / 2011 = 87 - 45%. Países Parcialmente Livres: 2006 = 58 30% / 2011 = 60 - 31%; Países Não Livres: 2006 = 45 - 23% / 2011 = 48 24%; Democracias Eleitorais: 2006 = 123 - 64% / 2011 = 117 - 60%.
Segundo dados da Economist Intelligence Unit , comparando 2008 com
2011 temos (para o mesmo total de 167 países e, assim, as porcentagens
são as mesmas): Full Democracies: 2008 = 30 / 2011 = 25 - 15% dos países
- 11,3% da população mundial; Flawed Democracies: 2008 = 50 / 2011 =
53 - 31,7% dos países - 37,1% (Idem); Hybrid Regimes: 2008 = 36 / 2011 =
37 - 22,2% - 14,0%; Authoritarian Regimes: 2008 = 51 / 2011 = 52 - 31,1%
- 37,6%. O fato é que - em 2011 - segundo dados da Economist
Intelligence Unit, 51% da população mundial não vive em democracias
(nem full, nem flawed); e segundo dados da Freedom House 57% da
população mundial não vive em regimes free (o que perfaz um total de
3,95 bilhões de pessoas). Os dados da Freedom House para 2008 (universo
de 193 países) mostram também a queda (comparada com 2011): Free
Countries = 89 - 46% / Partly Free Countries = 62 - 32%; Not Free Countries
= 42 - 22%.
332
(16) Cf. Democracy índex 2011. Democracy under stress. A report from
The Economist Intelligence Unit < http://goo.gl/11FjX>. Cf. também
Freedom in the World 2012. Freedom House < http://goo.gl/Pd4MY>
(17) OHMAE, Kenichi (2005). O novo palco da economia global: desafios e
oportunidades em um mundo sem fronteiras. Porto Alegre: Bookman,
2006.
(18) CASTELLS, Manuel (1999). Para o Estado-rede: globalização
econômica e instituições políticas na era da informação” in BRESSER
PEREIRA, L. C., WILHEIM, J. e SOLA, L. Sociedade e Estado em
transformação. Brasília: ENAP, 1999.
(19) FRANCO, Augusto (2008). Escola de Redes: Novas visões sobre a
sociedade, o desenvolvimento, a internet, a política e o mundo
glocalizado. Curitiba: Escola-de-Redes, 2008.
(20) Cf. FULLER, Buckminster (1968). Manual de Operação da Espaçonave
Terra. Brasília: Editora da Universidade de Brasília, 1983 e MCLUHAN,
Marshall (1974) in McLUHAN, Stephanie & STAINES, David (2003): Op. cit.
333
334
335
336
337
338
339
OS MANTENEDORES DO VELHO MUNDO
Augusto de Franco, 2012.
Versão Beta, sem revisão.
A versão digital desta obra foi entregue ao Domínio Público, editada
com o selo Escola-de-Redes por decisão unilateral do autor.
Domínio Público, neste caso, significa que não há, em relação a versão digital desta
obra, nenhum direito reservado e protegido, a não ser o direito moral de o autor ser
reconhecido pela sua criação. É permitida a sua reprodução total ou parcial, por
quaisquer meios, sem autorização prévia. Assim, a versão digital desta obra pode ser –
na sua forma original ou modificada – copiada, impressa, editada, publicada e
distribuída com fins lucrativos (vendida) ou sem fins lucrativos. Só não pode ser
omitida a autoria da versão original.
FRANCO, Augusto de
OS MANTENEDORES DO VELHO MUNDO / Augusto de Franco – São Paulo:
2012.
46 p. A4 – (Escola de Redes; 14)
1. Redes sociais. 2. Organizações. 3. Escola de Redes. I. Título.
Escola-de-Redes é uma rede de pessoas dedicadas à investigação sobre redes sociais e
à criação e transferência de tecnologias de netweaving.
http://escoladeredes.net
340
Sumário
Introdução | 9
Ensinadores | 12
Mestres e gurus | 19
Codificadores de doutrinas | 23
Aprisionadores de corpos | 25
Construtores de pirâmides | 28
Fabricantes de guerras | 32
Condutores de rebanhos | 34
Notas e referências | 38
341
342
Introdução
A Força era um conceito complexo e difícil.
A Força estava enraizada no equilíbrio de todas as coisas,
E todo movimento dentro de seu fluxo
arriscava um desequilíbrio nessa harmonia.
Terry Brooks em Star Wars Episódio I: A Ameaça Fantasma (1999)
A força (Te) não é (um querer) induzir alguém
(ou alguma coisa) a seguir um caminho prefigurado
e sim (um deixar) fluir com o curso (Tao).
O autor em Desobedeça (2010)
CONHECIMENTO ATESTADO POR TÍTULOS, fama, riqueza e poder são
indicadores de sucesso adequados às sociedades hierárquicas. São coisas
que só alguns podem ter, não todos. São coisas que alguns podem ter em
detrimento dos outros. Assim o sábio se destaca dos ignorantes (ou o
titulado do não titulado, até na cadeia), o famoso não se mistura com o
zé-ninguém, o rico vive entre os ricos para ficar mais rico e não se
relaciona com o pobre (que – como sabemos – só continua pobre porque
343
seus amigos são pobres) e o poderoso só consegue exercer seu poder
porque os que (acham que) não têm poder lhe prestam obediência. Os
critérios de sucesso competitivo são, na verdade, mais do que indicadores:
são ordenações da sociedade hierárquica.
O fato é que, os que tiveram sucesso ou venceram no mundo do
comando-e-controle, em grande parte, venceram aplicando esquemas de
comando-e-controle. Venceram – e foram reconhecidos como vencedores
– porque aplicaram esquemas de comando-e-controle; ou seja, porque
replicaram um determinado padrão de ordem (e, para tanto, é como se
tivessem recebido uma ordenação).
Dentre os que fazem sucesso na sociedade hierárquica e de massa
encontram-se, é claro, pessoas esforçadas, criativas ou inovadoras,
talentos extraordinários e gênios incontestes. Mas estão lá também – em
número tão grande para derrubar o mito de que o sucesso é um prêmio
pelo talento – os agentes reprodutores desse tipo de sociedade, como,
por exemplo, os colecionadores de diplomas, os vendedores de ilusões, os
marqueteiros de si mesmos, os aprisionadores de corpos, os ensinadores
ou burocratas sacerdotais do conhecimento, os codificadores de
doutrinas, os aprisionadores de corpos, os construtores de pirâmides, os
fabricantes de guerras e os condutores de rebanhos.
Não se trata de inculpar esses tipos por todo mal que assola a
humanidade. Eles são apenas agentes inconscientes da reprodução do
sistema. Eles não existem propriamente como indivíduos. Não adianta
para nada tentar nomeá-los: eles são legião (Mc 5: 9), entidades
344
inumeráveis configuradas nas redes sociais, quando campos perturbados
pela presença da hierarquia aglomeram e enxameiam no contra-fluzz (*).
345
Ensinadores
Os primeiros ensinadores – os sacerdotes – ensinavam para reproduzir
(ou multiplicar os agentes capazes de manter) seu próprio estamento
ENSINADORES SÃO OS QUE COMPÕEM a burocracia privatizadora do
conhecimento: aquela casta sacerdotal que constitui as escolas e
academias.
Os ensinadores surgiram naquela noite dos tempos que o matemático
Ralph Abraham (1992) chamou de “precedente sumeriano” (1).
É surpreendente constatar, como fizeram Joseph Campbell, Samuel Noah
Kramer e outros renomados sumeriologistas, que os elementos centrais
da nossa cultura, dita civilizada, compareciam em uma espécie de modelo
ou protótipo ensaiado em complexos do tipo cidade-templo-Estado como
Eridu, Nippur, Uruk, Kish, Acad, Lagash, Ur, Larsa e Babilônia. Esse modelo
já estava em pleno funcionamento, segundo interpretações de relatos que
não puderam ser contestadas, a partir do quarto milênio. Em particular a
obra de Kramer (1956): “A história começa na Suméria”, revela as raízes
sumerianas do atual padrão civilizatório (2).
Joseph Campbell (1959), em “As Máscaras de Deus”, redigiu uma espécie
de termo de referência para esta investigação (3):
346
“Um importante desenvolvimento, repleto de significado e
promessas para a história da humanidade nas civilizações por vir,
ocorreu... [por volta] (de 4.000 a. C.), quando algumas aldeias
camponesas começaram a assumir o tamanho e a função de cidades
mercantis e houve uma expansão da área cultural... pelas planícies
lodosas da Mesopotâmia ribeirinha. Esse é o período em que a
misteriosa raça dos sumérios apareceu pela primeira vez em cena,
para estabelecer-se nos terrenos das planícies tórridas do delta do
Tigre e do Eufrates, que se tornariam em breve as cidades reais de
Ur, Kish, Lagash, Eridu, Sipar, Shuruppak, Nipur e Erech... E então, de
súbito... surge naquela pequena região lodosa suméria – como se as
flores de suas minúsculas cidades subitamente vicejassem – toda a
síndrome cultural que a partir de então constituiu a unidade
germinal de todas as civilizações avançadas do mundo. E não
podemos atribuir esse evento a qualquer conquista da mentalidade
de simples camponeses. Tampouco foi a consequência mecânica de
um mero acúmulo de artefatos materiais, economicamente
determinados. Foi a criação factual e claramente consciente (isto
pode ser afirmado com total certeza) da mente e ciência de uma
nova ordem de humanidade que jamais havia surgido na história da
espécie humana: o profissional de tempo integral, iniciado e
estritamente arregimentado, sacerdote de templo”.
Respeitados estudiosos confessam até hoje sua perplexidade diante da
constelação desse ‘precedente sumeriano’ (para insistir na feliz expressão
do matemático Ralph Abraham). É o caso, por exemplo, da antropóloga e
347
assirióloga Gwendolyn Leick, que leciona em Richmond (Londres). No seu
“Mesopotâmia: a invenção da cidade” (2001), ela declara que “muito se
tem escrito sobre o “súbito” aparecimento dos sumérios na Mesopotâmia
e suas possíveis origens... [mas] a questão da origem dos sumérios
continua aguardando solução, e tudo o que podemos dizer é que, no início
do Primeiro Dinástico, sua língua foi escolhida para ser vertida em escrita.
Talvez os sumérios se tivessem tornado politicamente dominantes e
exercido o controle dos centros de formação de escribas nas primeiras
cidades” (5).
Essa casta ou estamento – composta pela burocracia sacerdotal que
administrava
as
nascentes
cidades-templo-Estado
sumerianas
–
configurou o primeiro padrão de transmissão de ensinamento. Ensinavam
como um imperativo para reproduzir seu próprio ensinamento; quer dizer,
ensinavam para reproduzir (ou multiplicar os agentes capazes de manter)
seu próprio estamento.
Por quê? Ora, porque o livre aprendizado na rede social de então não
seria capaz de cumprir tal função, que nada tinha a ver com sua
sobrevivência ou com sua convivência. Não se tem notícia de escola,
ensino ou professores em sociedades de parceria. Quando a rede social foi
subitamente centralizada pela configuração particular que se constelou
com o surgimento do complexo cidade-templo-Estado, os programas
verticalizadores que começaram a rodar nessa rede eram replicados em
outras regiões do espaço e do tempo pela transmissão-recepção de seus
códigos – e já havia programas elaborados, como os que os sumérios
denominavam ‘me’ (6) – aos membros do mesmo grupo social.
348
Ou seja: já havia um ensinamento (secreto, por certo, acessível somente
aos membros do estamento). Já havia ensinantes (os primeiros
professores, membros da casta sacerdotal) e ensinados (os futuros
administradores em formação).
Essa hipótese é fortalecida pela investigação das origens da Kabbalah. O
símbolo central desse sistema de sabedoria – a chamada “Árvore da Vida”
– foi, sem dúvida, herdado do simbolismo templário do complexo TemploEstado sumeriano, o qual deve ter passado ao judaísmo posterior por
intermédio da Golah – a organização dos cativos (sequestrados nas elites
de Jerusalém) na Babilônia sob o reinado de Nabucodonozor e seu
sucessor.
Não se sabe a origem da 'árvore da vida', mas ela aparece nas imagens da
tamareira gravadas nas mais antigas tabuinhas sumerianas encontradas
pelos escavadores. E aparece também – com o mesmo esquema, que
depois foi transmitido pela tradição (cabalística) – na forma de uma nave,
ladeada por dois seres alados (com cabeças de águia). Uma nave – talvez
como as naves dos templos, até hoje – que não sai do lugar, mas por meio
da qual se pode “viajar” para os céus caso se tenha acesso ao
“combustível” adequado: ao “fruto da vida” e à “água da vida”...
O mesmo schema básico da árvore da vida, representada em vários
mundos que se interceptam (os da emanação, da criação, da formação e
do produzir) compõe o que foi chamado de “Escada de Jacó”, uma escada
pela qual os mensageiros – ou as mensagens – podem subir e descer
estabelecendo os fluxos entre o céu e a terra. Isto é anisotropia: o céu, é
349
claro, fica em cima; a transmissão, é claro, é top down. E o esquema é
mais centralizado que distribuído (7).
Essa ideologia de raiz babilônica (suméria) que, quase dois milênios
depois, foi se chamar de Kabbalah (cabala), na Idade Média europeia, fez
uma operação tremenda de “engenharia memética” no símbolo original,
ressignificando a árvore da vida como uma “árvore do conhecimento”,
quer dizer, tomando a vida pelo conhecimento da vida e do que com ela
foi feito... Isso significa obstruir o acesso à vida, facultando-o somente aos
que possuem o conhecimento (aquilo que a cabala chamou de
“ensinamento” e que é transmitido então em uma cadeia, tida por
ininterrupta, que começa com o arquimensageiro Raziel, passa para Enoc
– o escriba, não por acaso – e daí para os patriarcas e para os sacerdotes).
Kabbalah vai designar, então, essa tradição sacerdotal: condução
(transmissão-recepção) do ensinamento original por parte daqueles que
são capazes de reproduzir esse mesmo padrão de ordem sagrada, isto é,
separada do vulgo, do profano, daquele que não foi ordenado.
Isso tudo não somente fez, mas faz ainda, parte de uma experiência
fundante de verticalização do mundo, que prossegue enquanto a tradição
permanece ou se refunda toda vez que o meme é replicado. Do ponto de
vista da memegonia, aqui pode estar a origem da relação mestre-discípulo
ou professor-aluno.
Não foi a toa que uma mente arguta como a de Harold Bloom (1975) –
ecoando, aliás, o que dizia o erudito Gershom Scholem – percebeu que
Kabbalah era uma ideologia de professores. Na origem de tudo está... uma
350
Instrução: “o Ein-Sof instrui a Si mesmo através da concentração... Deus
ensina a Si mesmo o Seu próprio Nome, e, dessa forma, começa a criação”
(8).
Nessa memegonia, Deus é o primeiro professor e o ato de ensinar está na
raiz do ato de criar o mundo. O conhecimento (via ensinamento) – e não a
existência e a vida – é o objetivo: a origem e o alvo. Deus cria o mundo
para se conhecer. Mas para se conhecer ele ensina, não aprende. Logo,
seus “delegados”, ou intermediários (os sacerdotes), também ensinam.
Todo corpus sacerdotal é docente.
É por isso que há uma enorme dificuldade de conciliar visões próprias de
sistemas tradicionais de sabedoria com a visão-fluzz das redes de
aprendizagem. A tradição - dita espiritual - com raras exceções (como o
Tao, mas não o taoismo; como o Zen - esse formidável sistema de
desconstituição de certezas -, mas não o budismo) em geral replicou
atitudes míticas, sacerdotais, hierárquicas e autocráticas. Maturana
levantou a hipótese da "brecha" (na civilização patriarcal e guerreira) para
mostrar como pôde ter surgido a democracia (9).
Mas, na verdade, não foi só a democracia que penetrou pela "brecha":
vertentes utópicas, proféticas, autônomas e democráticas floresceram ao
longo da história e continuam florescendo - intermitentemente - toda vez
que comunidades conseguem estabelecer uma interface para conversar
com a rede-mãe (10). Essas duas vertentes permaneceram e ainda
permanecem em permanente tensão.
351
O professor como transmissor de ensinamento e a escola como aparato
separado (sagrado na linguagem sumeriana) surgiram, inegavelmente,
como instrumentos de reprodução de programas centralizadores que
foram instalados para verticalizar a rede-mãe.
De certo modo, os deuses do panteão patriarcal e guerreiro foram os
primeiros programas meméticos centralizadores (11). O tardio IHVH
bíblico – ensinador – encarna uma rotina desses programas (e é
representado por uma das sefirot – um evento – na 'árvore da vida'
ressignificada, no mundo da emanação).
Como os deuses do panteão patriarcal e guerreiro da Mesopotâmia do
período Uruk (c. 4000-3200) – período sucedido, logo em seguida, não por
acaso, pela escrita (no Primeiro Dinástico I: c. 3000-2750) – foram criados
à imagem e semelhança dos homens que começaram a se organizar
segundo padrões hierárquicos, tudo isso é muito relevante para
entendermos que a transmissão do ensinamento já foi fundada, de certo
modo, em contraposição ao livre aprendizado humano na rede social
muito menos centralizada (ou até, quem sabe, distribuída) dos períodos
pré-históricos anteriores (desde, pelo menos, o Neolítico).
Para essas sociedades de dominação, nada de aprender (inventar). Era
preciso ensinar (para replicar). E por isso ensinadores são mantenedores
do velho mundo.
352
Mestres e gurus
Todos são mestres uns dos outros enquanto se polinizam mutuamente
HÁ TAMBÉM OS QUE – por fora dos sistemas formais de ensino – ainda se
intitulam (ou são por alguém intitulados de) mestres ou gurus. Alguns são
ordenados para tanto, quer dizer, têm reconhecida, sempre por uma
organização hierárquica, sua capacidade de reproduzir uma determinada
ordem top down. E querem então imprimi-lo, emprenhá-lo, ou seja,
enxertar suas ideias-implante em você, para que você se torne também
um transmissor desse “vírus”.
É claro que existem outras interpretações do papel do mestre. Osho, por
exemplo, tentando explicar a correta intolerância de Krishnamurti com os
que se anunciam ou eram anunciados como mestres ou gurus coloca
outra perspectiva ao dizer que “um mestre não o ensina, ele simplesmente
torna o seu ser disponível para você e espera que você também faça o
mesmo”.
E aí vem a justificativa: “A menos que algum raio do além entre em seu
ser, a menos que você prove algo do transcendental, até mesmo o desejo
de ser liberado não aparecerá em você. Um mestre não lhe dá a liberação,
353
ele cria um desejo apaixonado pela liberação”. A justificativa é que “será
muito difícil, quase impossível, fazer isso por conta própria” (12).
Mas quem disse que isso teria que ser feito “por contra própria”? Ao
tentar justificar sua crítica a Krishnamurti, Osho enveredou por um viés
psicológico individual. Ele não teria se curado do trauma de ter sido
“educado por pessoas muito autoritárias... professores, talvez, mas não
mestres”. Então Osho afirma que tudo isso “foi demais [para Krishnamurti]
e ele não pode esquecê-los e não pôde perdoá-los” (13).
No fundo, tudo isso soa mais como uma tentativa de salvar uma função
pretérita, resgatar um papel arcaico que, em alguma época, funcionou de
fato assim como ele, Osho, diz, porém em mundos de baixa conectividade
social.
Já foi dito aqui que na medida em que vida humana e convivência social se
aproximam (nos mundos altamente conectados) somos obrigados a
mudar nossas interpretações. E que isso entra em choque com as
tradições espirituais que diziam que quando o discípulo está preparado o
mestre aparece. De certo modo é justo o contrário: o discípulo desaparece
quando desaparece a escola (quer dizer o ensinamento) e com ele vai-se
também o mestre.
Isso – para alguns – é um escândalo. Nos Highly Connected Worlds quem
lhe reconhece é o simbionte social, se você se sintonizar suficientemente
com a rede-mãe. Não é um representante da tradição, não é um membro
de uma casta sacerdotal ou de alguma hierarquia docente, nem mesmo
um indivíduo que despertou antes de você – a não ser que essa pessoa
354
(uma pessoa) seja a porta para que você possa entrar em outros mundos.
Mas neste caso essa pessoa – eis o ponto! – pode ser qualquer pessoa que
esteja conectada a esses mundos onde você quer entrar.
Se alguém pudesse recuar antes (e o que seria antes?) daquela noite dos
tempos em que a rede-mãe começou a rodar programas verticalizadores e
pudesse dizer como uma comunidade conseguia entrar em sintonia com o
simbionte natural (que talvez se confundisse – em sociedades de parceria,
pré-patriarcais, quem sabe em algum momento do Neolítico – com a redemãe: síntese simbolizada na figura da grande mãe ou da deusa), talvez
pudesse nos sugerir algum processo para reinventarmos tal sintonia com o
simbionte social (o superorganismo humano). Mas, fosse qual fosse, sua
resposta seria enxame (múltiplos caminhos em efervescência) e não
indivíduo no caminho em busca da unidade perdida ou da sua origem
celeste.
Não vale fazer recuar a noite dos tempos em que surgiram os sistemas
míticos-sacerdotais-hierárquicos-autocráticos para colocá-los na origem
de tudo com o fito de transformar a origem terrestre do humano em uma
origem celeste. Essa operação ideológica, urdida por esses mesmos
sistemas, legitima o mestre como um veículo, um emissário, um
representante da suposta origem celeste (ainda quando existam mestres
que reneguem tudo isso).
No enxame você já é um mestre, todos são mestres uns dos outros
enquanto não apenas buscam, mas se polinizam mutuamente e isso quer
dizer que não existe um, não existe aquele mestre.
355
Mestres – como ensinadores – são mantenedores do velho mundo.
Mesmo quando recusam tal papel, eles abrem caminho para os
codificadores de doutrinas, aqueles cavadores de sulcos para fazer
escorrer por eles as coisas que ainda virão.
356
Codificadores de doutrinas
Eles produzem narrativas para que você veja o mundo a partir da sua
ótica, quer dizer, para que você não veja os múltiplos mundos existentes
CODIFICADORES DE DOUTRINAS são todos aqueles que querem
pavimentar, com as suas crenças religiosas (e sempre o são, mesmo
quando se declaram laicas), uma estrada para o futuro. Eles produzem
narrativas ideológicas totalizantes para que você veja o mundo a partir da
sua ótica, quer dizer, para que você não veja os múltiplos mundos
existentes, mas apenas um mundo (o mundo arquitetado e administrado
por eles: uma prisão para a sua imaginação).
Quando são (explicitamente) religiosos, os codificadores de doutrinas
fornecem a justificativa para a ereção de igrejas e seitas. Quando são
políticos, urdem a base conceitual para a formação de correntes e grupos
de opinião onde a (livre) opinião propriamente dita não conta para quase
nada: o que conta é a ortodoxia de uma opinião oficial ou canônica, a qual
tentam autenticar apelando para a revelação ou para a ciência. Em todos
os casos são engenheiros meméticos, manipuladores de ideias que
inventam passado para legitimar certos caminhos (e deslegitimar outros)
para o futuro. Fazem isso para controlar o seu futuro, para levá-lo (a sua
alma ou o seu corpo) para algum lugar supostamente melhor, para um
357
paraíso no céu ou na terra, quando, eles mesmos, não podem conhecer tal
caminho (simplesmente porque não existe um caminho).
Codificadores de doutrinas abrem espaço para a ereção de igrejas, muitas
vezes em contraposição à experiência fundante ou à suposta revelação
que tomam como referência. É assim que os franciscanos, hoje “puxando
dinheiro com rodo” (como dizia Frei Mateus Rocha, nos idos de 1970) (14),
executam exatamente o contrário do que pregava il poverello d’Assisi
(1182-1226). Tanto faz se tais igrejas são religiosas ou laicas: Paulo de
Tarso (com o cristianismo) e Inácio de Antioquia (com a igreja católica)
cumprem funções análogas às de Lenin (com o materialismo dialético e o
materialismo histórico) e Stalin (com o PCUS) ou Trotski (com a Quarta
Internacional).
Os codificadores de doutrinas também são ensinadores e, de certo modo,
gurus (no sentido em que a palavra é empregada atualmente). São os
abastecedores dos ensinadores que, em geral, transmitem ensinamentos
que já foram codificados por eles. São, portanto, os verdadeiros
fundadores de escolas, conquanto frequentemente dizendo-se a serviço
de um fundador já desaparecido (ou nunca aparecido).
358
Aprisionadores de corpos
O fundamental para os aprisionadores de corpos é manter seus
trabalhadores fora do caos criativo
APRISIONADORES DE CORPOS são aqueles que, não contentes em usar,
comprar ou alugar, sua inteligência humana (que não tem preço), querem
também mantê-lo cativo, fisicamente, nos seus prédios ou cercados. São
feitores: antes usavam o chicote; hoje usam o relógio ou o livro de ponto,
o crachá magnético ou o banco de horas. Nas empresas ou organizações
hierárquicas, sejam privadas ou públicas, sequestram seu corpo para
manter você por perto, para poder vigiá-lo, para terem certeza de que
você está de fato trabalhando para eles (que coisa, heim?). Não
precisavam fazer isso se o seu objetivo fosse o de articular um trabalho
coletivo compartilhado. Mas o objetivo deles não é, na verdade,
compartilhar nada com outros seres humanos e sim controlá-los-ecomandá-los, em certo sentido desumanizá-los, embotando sua
inteligência, castrando sua criatividade, alquebrando sua vontade, para
poder usá-los como objetos, para terem-nos disponíveis, sempre à mão,
tantas horas por dia: querem um rebanho de servos de prontidão para
lhes fazer as vontades. Se quisessem que as pessoas trabalhassem comeles e não para-eles não seria necessário – na imensa maioria dos casos –
359
aprisionar os seus corpos: bastaria estabelecer uma agenda conjunta, com
tarefas e prazos.
Mais de 90% dos empregadores são aprisionadores de corpos. Chefes de
repartições governamentais, administradores de empresas e “donos” de
ONGs costumam ser aprisionadores de corpos. Se as pessoas não tivessem
que dormir e as leis permitissem, gostariam que elas ficassem à sua
disposição o tempo todo: – 24 horas: tum, tum, tum...
Ainda quando dizem o contrário, eles não querem que você empreenda,
seja criativo, construa produtos ou processos inovadores e realize coisas
maravilhosas e sim que você trabalhe. Querem trabalho = repetição e
execução de ordens. Se quisessem criação, inovação, não lhe imporiam
agendas estranhas (que você não teve oportunidade de coconstruir), não
lhe retalhariam o tempo em unidades controláveis, com horários rígidos
de entrada e saída em algum espaço murado. Dariam a seus
colaboradores (a todos) as melhores condições para inovar (alugariam,
quem sabe, uma casa em uma ilha paradisíaca, em uma chácara aprazível
ou mesmo em um bosque urbano, um horto, cultivariam jardins... em
suma, não organizariam e decorariam seus locais – de trabalho – de modo
tão horrendo, sem cores, sem arte, tudo cinza, quadrado, como uma
prisão mesmo, ou um convento) e, sobretudo, não reduziriam sua
mobilidade: uma dimensão essencial da sua liberdade para criar.
O fundamental para os aprisionadores de corpos é manter seus
trabalhadores fora do caos criativo, protegê-los do seu próprio espírito
360
empreendedor. Então, para esterilizá-lo, colocam você na pirâmide. Sim,
aprisionadores de corpos são também construtores de pirâmides.
361
Construtores de pirâmides
O indivíduo não é o átomo social; para ser social é preciso ser molécula
OS CONSTRUTORES DE PIRÂMIDES também surgiram naquela noite dos
tempos em que a rede-mãe passou a rodar programas verticalizadores.
Talvez os primeiros construtores de pirâmides tenham sido mesmo os...
construtores de pirâmides, não apenas as do Egito, mas também os
zigurates mesopotâmicos. Mas todas as pirâmides que vêm sendo
construídas ao longo do chamado período civilizado evocam o mesmo
padrão vertical surgido pela perturbação do campo social introduzida pela
hierarquia. Não são, entretanto, apenas arquitetos, engenheiros e mestres
de obra que projetam, comandam e controlam o trabalho de erigir
construções físicas. Construtores de pirâmides são os que erigem
organizações hierárquicas de todo tipo para mandar nos outros e obrigálos a fazer (ou deixar de fazer) coisas contra a sua vontade ou sem o seu
assentimento ou consentimento ativo.
São os chefes de instituições hierárquicas. São organizadores de pessoas
como se pessoas fossem coisas. Toda organização hierárquica é uma
arquitetura com pessoas, uma construção forçada, coisificante, onde as
pessoas são tratadas como tijolos ou outro material qualquer: – Então
362
colocamos uma aqui, outra em cima dessa, outra abaixo, bem ali; ôpa!
Cuidado, não está encaixando bem; então quebra um pedaço aqui,
desbasta ali, martela com força que entra...
Replicadores e trancadores são construtores de pirâmides. Replicadores
são todos os que se dedicam a repetir uma ordem pretérita. São,
portanto, ensinadores (“estações repetidoras” do que foi forjado, em
geral, pelos codificadores de doutrinas). Para exercer tal papel,
entretanto, eles constroem, invariavelmente, estruturas centralizadas ou
verticalizadas – sejam escolas, sociedades, maçonarias e assemelhadas,
partidos ou corporações ou qualquer outra burocracia que viva da
repetição e da inculcação de um conjunto de ideias ou visões de mundo
urdidas para prorrogar passado – e, nesse sentido, são construtores de
pirâmides.
Trancadores são os que privatizam bens que poderiam ser comuns (ou
que não poderiam ser trancados, como o conhecimento). Trancadores de
conhecimento são, por exemplo, os que defendem o domínio privado
sobre o conhecimento, como as leis de patentes e o famigerado copyright.
Um dos tipos contemporâneos de trancadores – relevante pelo efeito
devastador que sua atividade provoca na antessala de uma época-fluzz –
são os trancadores de códigos, que estão entre os mais bem-sucedidos
inventores de softwares proprietários da atualidade Ao construírem
caixas-pretas para esconder seus algoritmos (como fazem os donos do
Google ou do Twitter) ou para montar seus alçapões de dados (como faz o
dono do Facebook), eles acabam tendo que construir pirâmides para
363
proteger suas operações centralizadoras da rede social. Não é por acaso
que as plataformas que desenham a partir de uma instância proprietária
tentem disciplinar a interação. Essa é a razão pela qual as plataformas
ditas interativas de que dispomos não são suficientemente interativas (ibased), posto que baseadas na adesão e, no máximo, na participação
(envolvendo sempre algum tipo de escolha de preferências geradora de
escassez) e no arquivamento de passado (para aumentar o repositório ao
qual, a rigor, só os proprietários dessas plataformas têm pleno acesso na
medida em que só eles podem programá-las sem restrições).
E essa é também a razão pela qual tais plataformas deseducam (se se
pode falar assim) seus usuários (a palavra – ‘usuário’ – já é horrível do
ponto de vista da interação) para as redes distribuídas. Então uma pessoa
entra em alguma dessas plataformas e tende a achar que a sua página é o
seu espaço proprietário a partir do qual ela vai interagir. Em vez de entrar
em um fluxo, ela se aboleta no seu bunker (às vezes chamado de ‘Minha
Página’) e é induzida a achar que ali pode colocar todos os seus vídeos,
suas fotos, seus eventos e seus posts, independentemente do que está
rolando na rede que usa tal plataforma como ferramenta de netweaving
e, não raro, sente-se até ofendida quando alguém lhe lembra de que o
concurso de Miss Universo não tem muito a ver com astrofísica.
A solução para tal problema não é “fugir para trás”, voltando aos blogs,
como sonham alguns. Ainda que a blogosfera seja de fato, no seu
conjunto, uma rede distribuída, os blogs, em si, não se estruturam de
modo distribuído. Em geral são organizações fechadas, que não admitem
interação a não ser com aprovação prévia dos seus donos (por meio da
364
chamada “mediação de comentários”). Mesmo quando são abertos a
qualquer comentário, os blogs são piramidezinhas, espécies de reinados
do eu-sozinho. Não são bons instrumentos de netweaving de redes sociais
distribuídas na medida em que não são, eles próprios, redes distribuídas.
Não existem tecnologias de netweaving capazes de colocar um conjunto
de blogs em um meio eficaz de interação. Ademais, a mentalidade dos
bloggers não acompanhou a inovação que, objetivamente, sua atividade
representa. E muitos daqueles que fazem o proselitismo das redes
distribuídas nos seus blogs, organizam, lá no seu quadrado, suas igrejinhas
hiper-centralizadas, algumas vezes quase-monárquicas (15). Ou seja, são
também construtores de pirâmides.
O que está por trás disso tudo é a idéia de que o indivíduo é o átomo
social, quando, na verdade, para ser social, é preciso ser molécula. Pessoas
são produtos de interação e não unidades anteriores à interação.
365
Fabricantes de guerras
O único inimigo que existe é o fazedor de inimigos
FABRICANTES DE GUERRAS são, stricto sensu, os chefes militares e, lato
sensu, os que pervertem a política como arte da guerra e os que se
entregam à competição adversarial tendo como objetivo destruir seus
concorrentes. São, todos, predadores. O predador (humano) é uma
máquina de converter o semelhante em inimigo. Mas é preciso considerar
que não existem inimigos naturais ou permanentes: toda inimizade é
circunstancial e pode ser desconstituída pela aceitação do outro no
próprio espaço de vida, pelo acolhimento, pelo diálogo, pela cooperação.
Assim, o (único) inimigo que existe mesmo é o fazedor de inimigos.
Na civilização patriarcal e guerreira viramos seres cindidos interiormente.
O predador é um produto dessa quebra da unidade sinérgica do simbionte
(que poderemos ser no futuro, se anteciparmos esse futuro). Preda
porque quer recuperar, devorando, suas contrapartes, em um ritual
antropofágico em busca da unidade perdida (aquela origem que é o alvo,
para usar a expressão de Karl Kraus). É por isso que nos apegamos tanto à
guerra do bem contra o mal. Mas o problema, como disse Schmookler, é
que “o recurso da guerra é em si o mal” (16).
366
Toda vez que você quer triunfar sobre o mal, combater o bom combate,
derrotar o “lado negro da Força”, você fabrica guerra. Estatistas,
hegemonistas, conquistadores, vencedores são – todos – fabricantes de
guerras. Toda vez que você olha o mundo como um terreno inóspito,
como uma ameaça, como algo a enfrentar, você fabrica guerra.
Estrategistas de qualquer tipo, sejam ou não justificáveis seus esforços –
chamem-se Winston Churchill ou Michel Porter –, são fabricantes de
guerras. Boa parte dos incensados consultores de empresas da atualidade
são fabricantes de guerras: apenas deslizam conceitos da arte da guerra
para as estratégias empresariais que transformam o concorrente em
inimigo.
É claro que tudo isso revela uma não-aceitação da democracia. A guerra é
sempre um modo autocrático de regulação de conflitos, seja a guerra
declarada ou aberta, seja a guerra fria, seja a política praticada como arte
da guerra, seja a concorrência empresarial adversarial que trata o outro
como inimigo.
367
Condutores de rebanhos
O modo intransitivo de fluição que gera o fenômeno da popularidade do
líder de massas é uma sociopatia
CONDUTORES DE REBANHOS são, em geral, os líderes que alcançaram
popularidade pelo broadcasting para guiar as massas. Algumas vezes esses
líderes são carismáticos e se dedicam a mesmerizar multidões em
comícios, reuniões e manifestações. Ou pela TV e pelo rádio. Quase
sempre são pessoas “pesadas”, que usam sua gravitatem em benefício
próprio ou de um grupo, para reter em suas mãos o poder pelo maior
tempo que for possível, transformando os outros em seus satélites. E
odeiam os princípios de rotatividade ou alternância democrática.
Considere-se que, do ponto de vista social (ou coletivo, da rede), o modo
intransitivo de fluição que gera o fenômeno da popularidade do líder de
massas é uma sociopatia.
O liderancismo é uma praga que vem contaminando as organizações de
todos os setores: segundo tal ideologia, a liderança só é boa se não puder
ser exercida por todos, só por alguns. Assim, não se deve estimular a
multi-liderança, senão afirmar a precedência da mono-liderança, do líder
providencial e permanente, a prevalência do mesmo líder em todos os
368
assuntos e atividades, como se essa – a liderança – fosse uma qualidade
rara, de origem genética ou fruto de uma unção extra-humana.
Condutores de rebanhos se dirigem sempre às massas – não às pessoas –
com o objetivo de comandá-las e controlá-las, sejam ditadores ou
manipuladores. São marqueteiros de si-mesmos e, como tais, vendedores
de ilusões (diga-se o que se quiser dizer, o marketing é uma atividade
muito problemática, que não visa formar novas identidades a partir da
construção de pactos com os stakeholders de uma determinada iniciativa
e sim disseminar, via de regra por broadcasting, alguma ilusão).
Sacerdotes (stricto sensu), pastores e políticos profissionais são também
vendedores de ilusões assim como todos os que prometem e não
cumprem, no sentido de que vendem e não-entregam (o que vendem).
Mas reserva-se a categoria de condutores de rebanhos para os que
pretendem liderar massas, comovê-las e mobilizá-las para que lhes sigam.
Na coletânea Histórias do Sr. Keuner, que reúne textos de Bertold Brecht
escritos entre 1926 e 1956, encontra-se a deliciosa parábola “Se os
Tubarões Fossem Homens” (17):
“Se os tubarões fossem homens, eles fariam construir resistentes
caixas do mar para os peixes pequenos... A aula principal seria
naturalmente a formação moral dos peixinhos. Eles seriam
ensinados de que o ato mais grandioso e mais belo é o sacrifício
alegre de um peixinho, e que todos eles deveriam acreditar nos
tubarões, sobretudo quando esses dizem que velam pelo belo futuro
369
dos peixinhos. Se encucaria nos peixinhos que esse futuro só estaria
garantido se aprendessem a obediência...
Se os tubarões fossem homens, eles naturalmente fariam guerra
entre si a fim de conquistar caixas de peixes e peixinhos
estrangeiros. Cada peixinho que na guerra matasse alguns peixinhos
inimigos da outra língua... seria condecorado com uma pequena
ordem das algas e receberia o título de herói...
Também haveria uma religião ali. Se os tubarões fossem homens,
eles ensinariam essa religião. De que só na barriga dos tubarões é
que começaria verdadeiramente a vida. Ademais, se os tubarões
fossem homens, também acabaria a igualdade que hoje existe entre
os peixinhos, alguns deles obteriam cargos e seriam postos acima
dos outros. Os que fossem um pouquinho maiores poderiam
inclusive comer os menores... E os peixinhos maiores que deteriam
os cargos velariam pela ordem entre os peixinhos para que estes
chegassem a ser professores, oficiais, engenheiros de construção de
caixas e assim por diante. Curto e grosso, só então haveria
civilização no mar, se os tubarões fossem homens”.
Não poderia haver um fecho melhor para a reflexão deste texto. Brecht,
provavelmente, criou a metáfora entre tubarões e peixinhos no contexto
da luta de classes entre patrões e trabalhadores. No entanto, ela é tomada
aqui para fazer referência aos mantenedores do velho mundo único que
surgem em configurações deformadas do campo social. Que tipos de
370
configurações ensejam a reprodução de tubarões em vez de, por exemplo,
golfinhos?
Como já foi dito, frequentemente as características das funções
agenciadoras do velho mundo se misturam, incidindo, em maior ou menor
grau, em uma mesma configuração de pessoas. É assim que ensinadores
replicam ensinamentos forjados por codificadores de doutrinas que, por
sua vez, constroem pirâmides para aprisionar corpos e tudo isso é feito
em nome da necessidade de derrotar um inimigo que ameaça alguma
identidade imaginária que foi artificialmente construída, não raro exigindo
que grandes contingentes de pessoas fossem arrebanhadas (e
despersonalizadas) por condutores de rebanhos para enfrentar tal
inimigo, ele próprio construído sempre para justificar alguma hierarquia
que foi erigida. Tudo isso é usar a Força para enfrear e represar fluzz.
Conquanto resilientes, essas velhas funções do mundo único exercidas,
invariavelmente, para exterminar outros mundos, não têm conseguido
barrar os novos papéis-sociais-fluzz que começam a emergir.
371
Notas e referências
(*) A palavra ‘fluzz’ nasceu de uma conversa informal do autor, no início
de 2010, com Marcelo Estraviz, sobre o Buzz do Google. O autor
observava que Buzz não captava adequadamente o fluxo da conversação,
argumentando que era necessário criar outro tipo de plataforma (ibased e não p-based, quer dizer, baseada em interação, não em
participação). Marcelo Estraviz respondeu com a interjeição ‘fluzz’, na
ocasião mais como uma brincadeira, para tentar traduzir a idéia de
Buzz+fluxo. Ulteriormente a idéia foi desenvolvida no livro-mãe Fluzz: vida
humana e convivência social nos novos mundos altamente conectados do
terceiro milênio (2011) e passou a não ter muito a ver com o programa
malsucedido do Google. Fluzz (o fluxo interativo) é um conceito complexo,
sintético, que talvez possa ser captado pela seguinte passagem: “Tudo que
flui é fluzz. Tudo que fluzz flui. Fluzz é o fluxo, que não pode ser
aprisionado por qualquer mainframe. Porque fluzz é do metabolismo da
rede. Ah!, sim, redes são fluições. Fluzz evoca o curso constante que não se
expressa e que não pode ser sondado, nem sequer pronunciado do “lado
de fora” do abismo: onde habitamos. No “lado de dentro” do abismo não
há espaço nem tempo, ou melhor, há apenas o espaço-tempo dos fluxos. É
de lá que aquilo (aquele) que flui sem cessar faz brotar todos os mundos...
Em outras palavras, não existe uma mesma realidade para todos: são
372
muitos os mundos. Tudo depende das fluições em que cada um se move,
dos emaranhamentos que se tramam, das configurações de interação que
se constelam e se desfazem, intermitentemente”.
Este texto foi originalmente escrito e publicado em 2011 no livro Fluzz:
vida humana e convivência social nos novos mundos altamente
conectados do terceiro milênio. São Paulo: Escola de Redes, 2011.
(1) ABRAHAM, Ralph (1992) in ABRAHAM, Ralph, McKENNA, Terence &
SHELDRAKE, Rupert (1992). Caos, criatividade e retorno do sagrado:
triálogos nas fronteiras do Ocidente, São Paulo: Cultrix, 1994.
(2) KRAMER, Samuel (1956). A história começa na Suméria. Lisboa:
Europa-América, 1977.
(4) CAMPBELL, Joseph (1959): As máscaras de Deus (Volume I). São Paulo:
Palas Athena, 1998.
(3) ABRAHAM. Ralph, McKENNA, Terence & SHELDRAKE, Rupert (1992).
Caos, criatividade e o retorno do sagrado: triálogos nas fronteiras do
Ocidente. São Paulo: Cultrix, 1994.
(5) LEICK, Gwendolyn (2001): Mesopotâmia: a invenção da cidade. Rio de
Janeiro: Imago, 2003.
(6) Os ‘me’ continuam sendo um enigma para os historiadores. A
antropóloga e assirióloga Gwendolyn Leick (2001), no seu livro
“Mesopotâmia: a invenção da cidade” (ed. cit.), escreve: “Eridu, como a
manifestação primária do Apsu, também era considerada o lugar do
373
conhecimento, a fonte da sabedoria, sob o controle de Enki. Numerosas
narrativas foram elaboradas em torno desse conceito. Eridu, como
respositório de decretos divinos é descrita em uma narrativa suméria
chamada “Enki e Inanna”. Enki, escondido no Apsu, está na posse de todos
os ‘me’, termo sumeriano que abrange todas aquelas instituições, leis,
formas de comportamento social, emoções e símbolos de carga que, em
sua totalidade, eram vistos como indispensáveis ao funcionamento regular
do mundo. Esses ‘me’ pertenciam a Eridu e a Enki. Entretanto, Inanna,
deusa da cidade de Uruque, deseja obter os ‘me’ para si própria e levá-los
para Uruque. Com esse fim, ela desfralda velas para chegar a Eridu de
barco, sempre o caminho mais fácil para ir de uma cidade da
Mesopotâmia a outra. Enki toma conhecimento da chegada de Inanna e
preocupa-se com as intenções dela. Instrui o seu vizir para a receber com
todas as honras e preparar um banquete, no qual ambas as deidades
bebem muita cerveja. Enki não tarda em adormecer, deixando o caminho
livre para Inanna carregar os preciosos ‘me’ em seu barco, um por um, e
zarpar. Quando Enki desperta da ébria sonolência e dá-se conta do que
aconteceu, procura usar sua magia em uma tentativa de recuperar os
‘me’. Inanna consegue rechaçar os demônios perseguidores e chegar sã e
salva a Uruque. O desfecho da história não é claro, pois nenhuma das
versões existentes do texto está suficientemente preservada, mas parece
que uma terceira deidade logra a reconciliação entre Inanna e Enki. Esta é,
obviamente, uma típica história de Uruque, concentrando-se nas deusas
locais e em seu poder superior. Ao libertar os ‘me’ das profundezas do
Apsu, Inanna podia não só ampliar seus próprios poderes, mas também
fazer valer os seus decretos entre os humanos. A lista dos ‘me’ inclui a
374
realiza, as funções sacerdotais, os ofícios e a música, assim como as
relações sexuais, a prostituição, a velhice, a justiça, a paz, o silêncio, a
calúnia, o perjúrio, as artes dos escribas e a inteligência, entre muitos
outros”.
Muitos anos antes, o famoso sumeriologista Samuel Noah Kramer (1956),
em From the Tablets of Sumer (ed. cit.) já havia observado:
“Finalmente chegamos aos ‘me’, as leis divinas, normas e regras que,
segundo os filósofos sumérios, governam o universo desde os dias da sua
criação e o mantêm em funcionamento. Neste domínio possuímos
considerável documentação direta, particularmente em relação ao ‘me’
que governam o homem e a sua cultura. Um dos antigos poetas sumérios,
ao compor ou redigir um dos seus mitos, julgou que vinha a propósito dar
uma lista dos ‘me’ relacionados com a cultura. Divide a civilização,
segundo o conhecimento que dela tinha, em uma centena de elementos.
No estado atual do texto são apenas inteligíveis cerca de sessenta e alguns
são palavras mutiladas que, sem contexto explicativo, apenas nos dão
uma vaga idéia do seu real sentido. Mas ainda subsistem os suficientes
para nos mostrar o caráter e a importância da primeira tentativa
registrada de análise da cultura, que resultou em uma lista considerável de
o que é hoje geralmente designado por “elementos e complexos culturais”.
Estes compõem-se de várias instituições, certas funções de hierarquia
sacerdotal, instrumentos de culto, comportamentos intelectuais e afetivos
e diferentes crenças e dogmas. Eis a lista das partes mais inteligíveis e
seguindo a própria ordem escolhida pelo antigo escritor sumério: 1 –
Soberania; 2 – Divindade; 3 - A sublime e permanente coroa; 4 - O trono
375
real; 5 - O sublime cetro; 6 - As insígnias reais; 7 - O sublime santuário; 8 O pastoreio; 9 - A realeza; 10 - A durável senhoria; 11 - A “divina senhora”
(dignidade sacerdotal); 12 – O ishib (dignidade sacerdotal); 13 – O lumah
(dignidade sacerdotal); 14 – O gutug (dignidade sacerdotal)…” [A lista
segue até o número 67].
Essas “fórmulas divinas” (os ‘me’) reforçam a idéia da existência de uma
espécie de protótipo. Os ‘me’ parecem ser códigos replicativos para criar e
reproduzir um determinado tipo de civilização (ou padrão societário). A
existência material ou ideal dos ‘me’ como conhecimentos armazenáveis
em objetos que podiam ser transportados, evidencia que os sumérios não
apenas desenvolveram historicamente o que chamamos de civilização.
Eles também sistematizaram teoricamente um modelo dessa civilização
para ser replicado em outros locais.
Mas o mais relevante é a ordem em que aparecem tais “elementos
culturais”. Os seres humanos e suas características próprias e qualidades
distintivas só vão surgir lá pelo quadragésimo lugar. O schema é mítico,
sacerdotal, hierárquico e autocrático. Aliás, pode-se dizer que essas
“fórmulas divinas” são fórmulas da autocracia em “estado puro”.
E havia um ensinamento organizado sobre tudo isso. Pois bem. Tal
ensinamento a ser replicado foi o motivo de haver um ensino. Para mais
informações pode-se ler os textos indicados por LEICK (2001) e por
KRAMER (1956). Ou pode-se tentar decifrar o material disponível:
376
Inana and Enki: cuneiform source translation at ETCSL (The Electronic Text
Corpus of Sumerian Literature, University of Oxford, England) in ETCSL
translation:
http://etcsl.orinst.ox.ac.uk/cgi-bin/etcsl.cgi?text=t.1.3.1#
Cf. ainda: “What are ‘me’ anyway?” in Sumerian Mythology FAQ:
http://home.comcast.net/~chris.s/sumer-faq.html#A1.5
(7) Existem outras maneiras não verticais de representar essa árvore das
Sefirot. Cf. o blogpost “Sobre Kabbalah e redes: um abstruso paralelo
heurístico”:
http://escoladeredes.ning.com/profiles/blogs/sobre-kabbalah-e-redes-um
(8) BLOOM, Harold (1975). Cabala e crítica. Rio de Janeiro: Imago, 1991.
(9) MATURANA, Humberto & VERDEN-ZÖLLER, Gerda (1993). Amor y
Juego: fundamentos olvidados de lo humano – desde el Patriarcado a la
Democracia. Santiago: Editorial Instituto de Terapia Cognitiva, 1997.
(Existe tradução brasileira: Amar e brincar: fundamentos esquecidos do
humano. São Paulo: Palas Athena, 2004).
(10) FRANCO, Augusto (2008). Escola de Redes: Novas visões sobre a
sociedade, o desenvolvimento, a internet, a política e o mundo
glocalizado. Curitiba: Escola-de-Redes, 2008.
(11) FRANCO, Augusto (2008): O Olho de Hórus. Disponível em
http://escoladeredes.ning.com/profiles/blogs/o-olho-de-horus
377
(12) OSHO (Bhagwan Shree Rajneesh) (1978). A revolução: conversas
sobre Kabir. São Paulo: Academia de Inteligência, 2008.
(13) Idem.
(14) Comunicação pessoal ao autor de José Rocha: Frei Mateus Rocha
(1923-1985). Para saber quem foi José Rocha cf. POLETTO, Ivo (org.)
(2003). Frei Mateus Rocha: um homem apaixonado pelo absoluto. São
Paulo: Loyola, 2003.
(15) Agregadores de blogs que foram inventados com base em RSS não
resolvem o problema. O fato de se ter vários blogs em uma mesma
página, atualizando automaticamente as primeiras palavras das postagens
mais recentes de cada blog, não garante, nem favorece muito, qualquer
tipo de interação mais efetiva. Esses softwares produzem apenas índices
ilustrados dos blogs que foram agregados por iniciativa única e exclusiva
do administrador da página. Caso haja reciprocidade, ou seja, se todos os
agregados por um blog também agregarem os demais nos seus blogs,
essas ferramentas são boas para formar um grupo seleto (e
necessariamente pequeno, por motivos óbvios) de pessoas que se leem.
Também podem ser bastante úteis no caso de uma corporação (onde,
porém, o acesso à página agregada é, via de regra, fechado, pois, afinal,
uma corporação precisa se proteger da concorrência...) ou de uma
comunidade já existente. Mas, em geral, não são ferramentas eficazes de
netweaving, pois ninguém fica sabendo – a não ser que abra
seguidamente, várias vezes por dia, todos os blogs – o que cada um está
dizendo, no seu próprio blog, sobre o que outros postaram, nos deles.
378
Ademais, não são viáveis para organizar o compartilhamento de agendas
(a única coisa que pode realmente “produzir” comunidade). As velhas
listas de e-mails com seus fóruns derivados são mais eficazes para esse
propósito.
(16) SCHMOOKLER, Andrew (1991): “O reconhecimento de nossa cisão
interior” in ZWEIG, Connie e ABRAMS, Jeremiah (orgs.). Ao Encontro da
Sombra: o potencial oculto do lado escuro da natureza humana. São
Paulo: Cultrix, 1994.
(17) BRECHT, Bertold (1926-1956). Histórias do Sr. Keuner. São Paulo:
Editora 34, 2006.
379
380
Como se tornar um netweaver
381
382
Como se tornar um netweaver
383
384
Como se tornar um netweaver
385
NETWEAVER HOWTO
Augusto de Franco, 2012.
Versão Beta, sem revisão.
A versão digital desta obra foi entregue ao Domínio Público, editada
com o selo Escola-de-Redes por decisão unilateral do autor.
Domínio Público, neste caso, significa que não há, em relação a versão digital desta
obra, nenhum direito reservado e protegido, a não ser o direito moral de o autor ser
reconhecido pela sua criação. É permitida a sua reprodução total ou parcial, por
quaisquer meios, sem autorização prévia. Assim, a versão digital desta obra pode ser –
na sua forma original ou modificada – copiada, impressa, editada, publicada e
distribuída com fins lucrativos (vendida) ou sem fins lucrativos. Só não pode ser
omitida a autoria da versão original.
FRANCO, Augusto de
NETWEAVER HOWTO / Augusto de Franco – São Paulo: 2012.
64 p. A4 – (Escola de Redes; 15)
1. Redes sociais. 2. Organizações. 3. Escola de Redes. I. Título.
Escola-de-Redes é uma rede de pessoas dedicadas à investigação sobre redes sociais e
à criação e transferência de tecnologias de netweaving.
http://escoladeredes.net
386
Sumário
Introdução | 9
Mentiras pregadas em nome da ciência | 11
Os indicadores de sucesso | 20
Hubs | 25
Inovadores | 28
Netweavers | 32
Netweaver howto | 34
Eles já estão entre nós | 46
Notas e referências | 54
387
388
Introdução
Sem dúvida, bebidas alcoólicas, tabaco etc.
são coisas que um santo deve evitar,
mas santidade também é algo que os seres humanos devem evitar.
George Orwell em Reflexões sobre Gandhi (1948)
A resiliência das velhas funções, agenciadoras de um tipo de mundo
(erigido para exterminar outros mundos) que teima em não desaparecer,
não está conseguindo impedir o surgimento de novos papéis sociais que
antecipam uma nova época.
Caminhando fora dos trilhos estabelecidos, emergem a cada dia novos
atores do mundo glocalizado. Sim, eles já estão entre nós. Não são
conhecidos porquanto não são pessoas que ficaram famosas segundo o
que até então era considerado indicador de sucesso: pelo seu poder, pela
sua riqueza ou pelo seu conhecimento atestado por títulos. Quem são?
Ora são os múltiplos anônimos conectados, habitantes de uma
diversidade incrível de Highly Connected Worlds, que não foram
produzidos por broadcasting. São como aquele personagem do romance
389
“Distraction” de Bruce Sterling (1988) que, para se identificar, afirmou:
“Não temos raízes. Somos pessoas da rede. Temos antenas”.
Tais papéis inéditos que estão sendo produzidos pela (ou em) rede são
também múltiplos. Por enquanto só conseguimos divisar alguns. Três
exemplos marcantes são os hubs, os inovadores e os netweavers. Esses
novos papéis sociais são funções-fluzz (*)
390
Mentiras pregadas em nome da ciência
Os sobreviventes não são selecionados por seu sucesso evolutivo
OS PRINCIPAIS INDICADORES DE SUCESSO do mundo hierárquico, no
dealbar do século 21, ainda são a fama, o conhecimento atestado por
títulos, a riqueza e o poder.
A fama parece ser o principal indicador. Quem colecionou muitos
diplomas, acumulou riqueza ou conseguiu deter em suas mãos algum
poder de mandar nos outros, não se sentirá plenamente bem-sucedido se
não for conhecido por muita gente ou, pelo menos, por uma parcela
ponderável de seus pares.
Como critério de sucesso, a fama é inquestionável, indiscutível mesmo. Se
você virou uma celebridade, é sinal de que progrediu na vida. Deixou de
ser qualquer um. Destacou-se e continuará sendo destacado. Merecerá
tratamento especial aonde for. Não entrará na fila. Não receberá senhas.
O maitre logo lhe arranjará uma mesa, mesmo que o restaurante esteja
lotado. Não ficará aguardando atendimento nos bancos das repartições
públicas ou nos sofás das antessalas das organizações. E todos o
observarão com admiração, alguns deixarão escapar suspiros à sua
passagem, muitos o cumprimentarão como se o conhecessem de longa
391
data; outros, mais afoitos, lhe pedirão autógrafos ou implorarão sua
licença para tirar uma foto ao seu lado.
Mas a fama não é necessariamente um prêmio pelo talento e sim o
resultado direto da exposição em algum meio de comunicação
centralizado, do tipo broadcasting (de mão única, um-para-muitos).
Qualquer pessoa que aparece regularmente na televisão (não importa se
apresentando um noticiário ou um programa de auditório ou atuando em
uma novela) fica famosa. Qualquer pessoa que atua com certo
protagonismo em um filme fica famosa. Qualquer pessoa que escreve
durante algum tempo em um grande jornal ou revista fica famosa.
Artistas, desportistas e até cientistas só ficam famosos porque são
transmitidos por broadcasting (do contrário ninguém os reconheceria na
rua). Mesmo os grandes teatros, estádios e auditórios de conferências,
nos quais um é visto por muitos, já são uma forma de “broadcasting”
(conquanto não permitam uma visualização tão massiva).
O mesmo ocorre com quem acumulou riqueza ou detém algum cargo de
poder. Mesmo estes fazem certo esforço financeiro para sair na revista
Caras ou nas chamadas colunas sociais. Por quê? Ora, porque estão
fazendo sucesso, estão seguindo os conselhos da mamãe para se destacar
dos demais. Encaram isso como um investimento, pois aprenderam desde
pequenos que só é possível fazer negócios – comerciais ou políticos – a
partir de relacionamentos (é isso que a ridícula literatura empresarial mais
recente chama de networking). Aprenderam que é preciso ser conhecido
como alguém que se destacou dos demais para ser incluído nos círculos de
392
relacionamentos daqueles que se destacaram dos demais (porque têm
fama, riqueza ou poder). Estão apenas pagando a joia, o preço para entrar
no clube. E a partir daí podem até ostentar alguns distintivos dos bemsucedidos, como fumar charutos e jogar golfe.
Quando questionadas, as pessoas que acreditam nesse tipo de coisa – e
são muitas – costumam dizer que a vida é assim mesmo. É uma luta. E que
é preciso vencer na vida: bah! A expressão, convenhamos, é muito
escrota: vencer quem? Por acaso estamos em uma guerra?
O problema é que estamos. E aí, como se diz, tudo é sacrificado em nome
da vitória, a começar pela verdade.
Para difundir a ideia de que a vida é uma guerra permanente recorre-se à
mentira. Para legitimar essa mentira alguns dizem que não somente a vida
humana é assim, mas a vida em geral. E aí dão os exemplos mais furados,
supostamente embasados na biologia da evolução, de que sempre vence
o mais forte ou o mais esperto e que a natureza seleciona os
sobreviventes por seu sucesso. Essa crença, entretanto, nada tem de
científica. Como escreveu a notável bióloga Lynn Margulis (1998), não é
que “os sobreviventes sejam selecionados por seu sucesso, mas sim que os
seres que não conseguem reproduzir-se antes de morrer são excluídos por
seleção” (1). Simples assim. Quase (tauto)lógico. Ou seja, a natureza não
premia apenas alguns, os mais destacados. E não há nada como uma “luta
pela vida” nos cinco reinos de organismos vivos – nem no reino das
bactérias, nem no dos protoctistas (como as amebas e conchas), nem no
393
dos fungos (como os cogumelos), nem no das plantas, nem no dos animais
– com uma única exceção: os humanos.
O problema com essas leituras ideológicas do darwinismo (e com o
próprio darwinismo) é que, em algum momento do passado, projetamos
sobre a natureza a competição que observamos nos mercados (e na
política autocrática a eles associada) na antessala do nascente capitalismo
concorrencial europeu (sobretudo o inglês). Já se disse sobre isso que
selvagem não era bem a selva, mas a concorrência nesse capitalismo
inaugural (que, aliás, foi chamado, não por acaso, de “capitalismo
selvagem”) e que a “lei da selva” não saiu propriamente da selva para a
sociedade sob o influxo desse mercado nada-livre, mas, ao contrário, da
segunda para a primeira.
Capitalismo, ao contrário do que se pensa, não é livre mercado. Na sua
origem e em grande parte do seu desenvolvimento, ele foi – como já
dissemos e repetimos aqui – uma espécie de conúbio entre empresas
monárquicas e Estado autocrático hobbesiano (de lá para cá, o Estado se
democratizou um pouco, porém as empresas – em sua maioria –
continuaram monárquicas, mas isso não vem ao caso agora). O fato é que,
independentemente das atuais leituras do darwinismo urdidas para
legitimar a idéia de sucesso competitivo-excludente, o darwinismo foi
capturado por uma corrente de pensamento hobbesiana e transformado,
desde o princípio, em “darwinismo social”.
Como percebeu com argúcia Matt Ridley (1996), “Thomas Hobbes foi o
antepassado intelectual de Charles Darwin em linha direta” (2). Segundo
394
Hobbes (que tantos citam e poucos leem) na falta de um poder que
domestique ou apazigue os homens, “não há sociedade; e o que é pior do
que tudo, [há] um medo contínuo e perigo de morte violenta. E a vida do
homem é solitária, miserável, sórdida, brutal e curta” (3). E isso ocorre,
segundo ele, não por razões culturais, que emanassem da forma como a
sociedade se organiza, mas intrínsecas: uma espécie de inclinação
“genética” – e Hobbes (1651) só não disse isso porquanto Mendel (1864)
ainda não havia nascido. Sim, foi exatamente o que ele escreveu, sem
meias-palavras, no famoso capítulo XIII do “Leviatã”: “Na natureza do
homem encontramos três causas principais de discórdia. Primeiro, a
competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória” (4). Para ele o
egoísmo e seus bad feelings acompanhantes (como a desconfiança) não
eram culturais, mas tinham sua origem na própria natureza humana (seja
lá o que isso for).
Muito tempo depois surgiu toda uma linhagem de tarados individualistas
mais intelectualizados (como Ayn Rand e Ludwig von Mises) construindo
suas ortodoxias com base nesse pressuposto metafísico, segundo o qual o
homem é inerentemente competitivo, que o egoísmo é a força motriz da
criatividade e que a cooperação e o altruísmo são um atraso de vida.
Trata-se, é claro, de uma impostura antropológica que não pode ser
justificada pela ciência. Mas muitos – com estruturas mentais um pouco
mais simples do que Rand e von Mises – ainda tentam embasá-la com
hipóteses científicas para aumentar-lhe a verossimilhança. Dizem então
que basta olhar o comportamento dos outros seres vivos para perceber
que essa é “a ordem natural das coisas”.
395
E citam exemplos. As abelhas têm sua rainha. Os formigueiros têm seus
chefes. Os pássaros que voam em bando seguem sempre o seu líder. Ou
seja, por toda parte que se olhe, sempre há os que dirigem e os que são
dirigidos. E os que dirigem foram os que conseguiram se destacar dos
demais, por serem mais bem-dotados (!), mais capazes de desenvolver
suas próprias potencialidades como indivíduos e, sobretudo, mais aptos a
enfrentar a luta pela vida saindo-se vitoriosos. Um leão protege o seu
território (e suas fêmeas) afugentando os outros leões na base de rugidos,
patadas e mordidas. Em várias espécies animais o macho-alfa impõe seu
domínio pela força, pela destreza ou pela esperteza, batendo a
concorrência. E o mais forte vence, fere, mata ou devora o mais fraco.
Sim, é “a natureza, vermelha em dentes e em garras” (5) como cantou o
poeta Tennyson (1849) no poema In Memorian A. H. H.
De sorte que se disseminou a crença segundo a qual no mundo humano,
semelhantemente ao que ocorre no mundo animal (e nos outros reinos de
organismos vivos), ter sucesso é sempre se destacar dos demais, vencêlos, sobretudo em contextos em que há escassez – tudo isso baseado no
egoísmo.
Ora, se ter sucesso em condições de escassez (e dependendo do modo de
olhar sempre encontraremos escassez de algum recurso em toda parte) é
se destacar dos demais, isso significa que há uma economia política do
sucesso, ou seja, a escassez precisa ser administrada. Se todos tivessem
sucesso, cada qual naquilo que realiza de uma maneira peculiar (e que só
ele pode realizar daquela maneira), o sucesso não seria um prêmio pela
vitória. Vitória é o triunfo em uma luta, aquele triunfo que recebiam os
396
generais romanos, atributo da sua glória, conquanto a glória (escoimada
da ideologia que a acompanhava) não passasse de uma metáfora para a
fama possível naquela época: não havia TV e os caras precisavam desfilar
em carro aberto com a coroa de louros nas praças e estádios para serem
vistos (e isso não deixava de ser uma difusão por broadcasting, pois que
um era visto por muitos).
Mas essa escassez – segundo a qual no pódio só cabem alguns – é gerada
artificialmente pela construção de um pódio em que só cabem alguns. Eis
o ponto! Não precisava ser assim. Da mesma forma, não há nenhuma lei
natural segundo a qual os jogos precisem ser, quase todos, baseados no
padrão perde-ganha; ou, como observou George Orwell (1945), como uma
espécie de “guerra sem mortes” (6). A invenção da escassez replica um
padrão piramidal de organização: poucos em cima e muitos na base. Com
aqueles degrauzinhos dispostos em diferentes níveis, os pódios são
pirâmides.
Se as mentes simples que gostam de sacar exemplos do mundo natural se
esforçassem um pouco mais para acompanhar as descobertas científicas,
veriam que não há pódios nos reinos de organismos vivos (com exceção
do humano). E não há porque não é necessário. Há quatro bilhões de anos
a vida vem trabalhando com redundância (e, portanto, com abundância):
mesmo quando os recursos sobrevivenciais se esgotam para uma
população, a evolução compensa essa (aparente) escassez desenvolvendo
novas habilidades na espécie atingida, novas sinergias entre várias
espécies e simbioses entre espécies diferentes gerando novas espécies
adaptadas às condições mutantes.
397
O padrão jamais é o da luta, tal como nós, os humanos, a concebemos. O
padrão jamais é de competição, como a praticamos. Não há nenhum
triunfo e os indivíduos de qualquer espécie não-humana, por mais que
tenham conseguido superar grandes dificuldades para sobreviver ou se
reproduzir, não desfilam em carro aberto como os generais romanos.
Maturana já nos mostrou que animais não-humanos não competem por
alimentos, simplesmente seguem seu impulso de se alimentar, não
importando para nada se outro exemplar da espécie ficou sem alimento;
ou seja, não é constitutiva da sua ação (nem da sua emoção, no caso dos
mamíferos), a diretiva de vencer o outro (não sendo essencial para quem
come o fato de que o outro deixe de comer) (7).
Da mesma forma, não há liderança nos reinos de organismos (com
exceção dos humanos, no reino animal). A abelha rainha não lidera as
outras abelhas. As colônias de formigas não têm chefe (nem coordenador,
nem facilitador). Como escreveu a cientista Deborah Gordon (1999) –
professora de ciências biológicas em Stanford, que pesquisou durante 17
anos colônias de formigas no Arizona –, “o mistério básico que cerca as
colônias é que nelas não há administração... Não há nenhum controle
central. Nenhum inseto dá ordens a outro ou o instrui a fazer coisas de
determinada maneira... De fato, não há entre elas líderes de qualquer
espécie”. E não há, ademais, qualquer programação genética capaz de
determinar um tipo de comportamento especializado em relação aos
demais indivíduos da espécie: “as formigas não nascem para executar
certa tarefa; a função de cada uma delas muda juntamente com as
condições que encontra, incluindo as atividades de outras formigas” (8).
398
Outra hipótese perversa, supostamente científica – que também tem sido
instrumentalizada para legitimar a idéia de sucesso competitivoexcludente – é a de que existe uma escala evolutiva segundo a qual alguns
seres vivos seriam mais “evoluídos” do que outros. E assim como o
homem seria mais evoluído do que o macaco ou do que uma fischerella
(uma cyanobactéria), assim também, entre os próprios seres humanos,
alguns seriam mais “evoluídos” do que outros: ou seja, a evolução natural
se espelharia ou teria uma espécie de continuidade em uma evolução
cultural (frequentemente chamada de “espiritual”) baseada em fatores
naturais diferenciados (daí as perversões que levaram alguns a justificar a
superioridade do “macho branco no comando”: os caucasianos seriam
superiores aos negros, amarelos e pardos, os machos seriam superiores às
fêmeas, os arianos seriam superiores às demais “raças” humanas e outras
barbaridades).
Nada disso! Novamente aqui é Lynn Margulis (1998) que vem puxar a
orelha dos impostores:
“Todas as espécies existentes são igualmente evoluídas. Todos os
seres vivos, desde a minúscula bactéria até o membro de um comitê
do Congresso, evoluíram do antigo ancestral comum que
desenvolveu a autopoese e que, com isso, tornou-se a primeira
célula viva. A própria realidade da sobrevivência prova a
“superioridade”, já que todos descendemos de uma mesma forma
originária metabolizadora. A delicada explosão da vida, em uma
sinuosa trajetória de quatro bilhões de anos até o presente,
produziu-nos a todos” (9).
399
Os indicadores de sucesso
Destacar-se dos demais, triunfar, vencer na vida, subir ao pódio onde
cabem apenas alguns poucos
MALCOLM GLADWELL (2008) escreveu um livro de quase trezentas
páginas, intitulado Outliers, para chegar à conclusão que “o outlier, no fim
das contas, não está tão a margem assim”. Ou seja, os bem-sucedidos são
frutos de uma constelação particularíssima e imprevisível de fatores,
alguns conhecidos, outros desconhecidos. Como ele próprio escreve,
“advogados celebridades, prodígios da matemática e empresários de
software parecem, à primeira vista, estar fora da experiência comum. Mas
não estão. Eles são produtos da história, da comunidade, das
oportunidades e dos legados. Seu sucesso não é excepcional nem
misterioso. Baseia-se em uma rede de vantagens e heranças, algumas
merecidas; outras, não; algumas conquistadas, outras obtidas por pura
sorte – todas, porém, cruciais para torná-los o que são” (10).
Sim, ele tem razão: nem excepcional, nem misterioso. No entanto, a
combinação ideal, a “fórmula” do sucesso é desconhecida e varia de
acordo com as condições de trajetória, tempo e lugar para cada indivíduo.
400
“Os mitos dos melhores e mais brilhantes e do self-made man
afirmam que, para obtermos o máximo em potencial humano, basta
identificarmos as pessoas mais promissoras. Olhamos para Bill
Gates e dizemos, em um espírito de autocongratulação: “Nosso
mundo permitiu que aquele adolescente de 13 anos se tornasse um
empresário tremendamente bem-sucedido”. Mas essa é a lição
errada. O mundo só deixou que uma pessoa de 13 anos tivesse
acesso a um terminal de tempo compartilhado em 1968. Se um
milhão de adolescentes tivesse recebido uma oportunidade idêntica,
quantas outras Microsofts existiriam hoje? Quando compreendemos
mal ou ignoramos as verdadeiras lições do sucesso, desperdiçamos
talentos... Agora multiplique esse potencial perdido por cada campo
e profissão. O mundo poderia ser bem mais rico do que este em que
nos acomodamos” (11).
No segundo capítulo do livro, Gladwell conta a história de Bill Gates,
sublinhando o fato de que ele foi matriculado em uma escola particular
que criou um clube de informática. Essa escola especial investiu, em 1968,
três mil dólares na compra de um terminal de tempo compartilhado ligado
a um mainframe no centro de Seattle. Assim, Gates, quando ainda estava
na oitava série, passou a viver em uma sala de computador (20 a 30 horas
por semana). De sorte que, “quando deixou Harvard após o segundo para
criar sua própria empresa de software, Gates vinha programando sem
parar por sete anos consecutivos... Quantos adolescentes tiveram esse
mesmo tipo de experiência?” É o próprio Bill Gates que responde: “Se
existiram 50 em todo mundo, eu me espantaria. Houve a C-Cubed e o
401
trabalho para a ISI com a folha de pagamento. Depois a TRW. Tudo isso
veio junto. Acredito que meu envolvimento com a criação de softwares
durante a juventude foi maior do que o de qualquer outra pessoa naquele
período, e tudo graças a uma série incrivelmente favorável de eventos”
(12).
Todos os outliers que Gladwell analisou no livro “foram favorecidos por
alguma oportunidade incomum [como, no caso de Gates, estar na escola
Lakeside em 1968]. Golpes de sorte não costumam ser exceção entre
bilionários de software, celebridades de rock e astros dos esportes. Pelo
contrário, parecem constituir a regra” (13).
Responsabilizar a sorte não acrescenta muito conhecimento sobre o
fenômeno. Se continuarmos focalizando o indivíduo, a equação não terá
solução. Ou melhor, não conseguiremos nem equacionar o problema (já
que solução mesmo dificilmente haverá), o que poderia acrescentar, aí
sim, algum conhecimento novo. Mas Gladwell erra um pouco o alvo. Não
é que tudo se baseia – como ele diz, falando metaforicamente – “em uma
rede de vantagens e heranças” e sim que tudo depende (muito mais do
que pensamos) de uma rede mesmo, de uma rede social propriamente
dita. Quando ele afirma que o sucesso dos bem-sucedidos não foi criado
só por eles, mas “foi o produto do mundo onde cresceram”, deixa de ver
que esse mundo não é o mundo físico, nem ‘o mundo’ como noção
abstrata usada para designar a totalidade da existência e sim o mundo
social, quer dizer, a rede social a que estão conectados seus outliers. Eis o
erro: ver o indivíduo e não ver a rede; ver a árvore, mas não ver a floresta
(e sobretudo não ver a incrível rede miceliana, o clone fúngico que está
402
por baixo da floresta e sem a qual ela não poderia existir); ver o organismo
vivo, mas não ver o ecossistema em que ele está inserido. É a estrutura e o
metabolismo da rede social que podem revelar as condições para o papel
mais ou menos relevante assumido, em cada tempo e lugar (ou seja, em
cada cluster), pelos seus nodos.
Em uma sociedade cuja topologia e dinâmica se aproximam, cada vez
mais, das de uma rede distribuída – a chamada sociedade em rede,
emergente nas últimas décadas – isso ficará cada vez mais evidente. Os
critérios de sucesso nesse tipo de sociedade tendem a deixar de ser
baseados em características puramente individuais e em noções
competitivo-excludentes (se destacar dos demais, triunfar, vencer na vida,
subir ao pódio onde cabem apenas alguns poucos) para passar a ser
função de um corpo e de um metabolismo coletivos: a própria rede.
Não se trata de coletivos indiferenciados, segundo uma velha perspectiva
coletivista, própria dos condutores de rebanhos (sejam ditadores ou
manipuladores de massas, de direita ou de esquerda, contra os quais os
individualistas têm razão nas críticas que fazem) e sim de arranjos de
pessoas. A pessoa é o indivíduo conectado e que, portanto, não se
constitui apenas como um íon social vagando em um meio gelatinoso e
exibindo orgulhosamente suas características distintivas e sim também
como um entroncamento de fluxos, uma identidade que se forma a partir
da interação com outros indivíduos.
É por isso que o tipo de educação que recebemos para nos destacar dos
semelhantes é terrivelmente prejudicial em uma sociedade em rede, na
403
qual estão abertas infinitas possibilidades de polinização mútua e de
fertilização cruzada que impulsionam a inovação e o desenvolvimento
pessoal e coletivo.
Essa idéia é desastrosa, porquanto, sob sua influência, desperdiçamos as
potencialidades criativas e inovadoras das múltiplas parcerias e sinergias
que o relacionamento horizontal entre as pessoas proporciona. Guiados
por ela, perdemos talentos, bloqueamos a dinamização de inusitadas
capacidades
coletivas,
matamos
no
embrião
futuros
gênios
e
exterminamos o mais precioso recurso para o desenvolvimento de
pessoas e comunidades: o capital social (que é uma metáfora, construída
do ponto de vista dos recursos necessários ao desenvolvimento, para
designar nada mais do que a própria rede social).
Assim, antes de qualquer coisa, tanto a idéia quanto a própria palavra
‘sucesso’ deverão ser abolidas. Trata-se agora, outrossim, de reconhecer
papeis relevantes.
404
Hubs
Qualquer iniciativa na rede social que não conte com seus principais
hubs encontrará mais dificuldades para “conversar” com a rede-mãe
DENTRE OS NOVOS PAPÉIS relevantes em uma sociedade em rede o mais
evidente é o hub. Todas as pessoas são hubs ou têm uma porção-hub. Sem
tal característica não poderíamos ser humanos, quer dizer, não seríamos
pessoas porque não poderíamos interagir com outras pessoas. No
entanto, se olharmos o aglomerado da rede social em que estão
conectadas, algumas pessoas – nem sempre as mesmas em todas as
situações – desempenham o papel social de hubs stricto sensu.
Os hubs – como a palavra está dizendo – são os conectores, os nodos da
rede social muito conectados, são os entroncamentos de fluxos. Um hub
não é necessariamente alguém com grande popularidade ou notoriedade
e sim alguém com muitas relações, que pode acessar — e ser acessado
por — outros nodos com baixo grau de separação. Quando uma pessoa
perde sua porção-hub, provavelmente alguma patologia psíquica nela vai
se manifestar, como – veremos mais adiante – soe acontecer com os
muito famosos.
405
Não é a fama que faz um hub. Pessoas famosas, celebridades, costumam
ser, em geral, inacessíveis. Não são, portanto, conectores. Qualquer
iniciativa na rede social que não conte com seus principais hubs
encontrará mais dificuldades para “conversar” com a rede-mãe (que é
uma metáfora para designar o acesso ao mundo social, sempre oculto, já
que não aparece como objeto porquanto fractalizado e em fluição, quer
dizer, sendo criado a cada instante).
Também não é o conhecimento que faz um hub, a não ser que se queira
relacioná-lo ao conhecimento das pessoas, quer dizer, aos contatos de
confiança. Às vezes um hub é o chaveiro do bairro, em quem as pessoas
confiam que sua segurança residencial não será colocada em risco — e
aqui é evocada uma imagem do filme The Matrix: aquele “O Chaveiro”,
interpretado pelo ator Randall Duk Kim, era um programa confiável; um
hub, de certo modo, também é um programa que “roda” na rede. Tocouse agora em um ponto importante da dinâmica das redes: confiança. Para
que um hub possa cumprir sua função é necessário que as pessoas
confiem nele.
Em vez de conhecimento individual, um hub precisa do reconhecimento
social. Trata-se de um reconhecimento diferente daquele que se
manifesta em relação a uma celebridade: não é um reconhecimento das
massas, do grande público, das multidões e sim o reconhecimento
realizado um a um, molecular. Assim, pode-se dizer que o hub é
“produzido” socialmente pela rede.
406
Em mundos altamente conectados um hub tende a cumprir um papel
socialmente mais relevante do que os que colecionaram muitos títulos
acadêmicos, acumularam muita riqueza ou conquistaram muito poder.
407
Inovadores
Em mundos altamente conectados um inovador tende a cumprir um
papel social mais relevante do que o dos colecionadores de diplomas
A RIGOR – E EM UM SENTIDO GERAL – todas as pessoas são inovadoras.
Se não fossem, se não tivessem a capacidade de modificar passado, de
introduzir uma nova rotina ou uma nova dinâmica que rompe com a
repetição de passado, não poderiam ter (novas) ideias: estariam
psicologicamente mortas.
Chama-se, porém, de inovadores, stricto sensu, àqueles que cumprem o
papel social de introduzir inovações que modificam a maneira como uma
rede se configura, provocando desequilíbrios que alteram os ritmos e os
caminhos das fluições.
Inovadores são muito diferentes dos hubs. Em geral não são conhecidos —
e não conhecem — muita gente, nem são, na maior parte dos casos,
muito conectados. Às vezes, são até bastante isolados. Podem vir a ser
amplamente reconhecidos, mas isso depende de fatores, via de regra,
fortuitos. A característica principal do inovador é emitir mensagens na
rede que acabam produzindo mudanças de comportamento dos agentes
(considerando a rede social como um sistema de agentes).
408
Quando esse processo ocorre, o inovador não sabe bem nem por quê nem
o quê aconteceu. Formaram-se laços de realimentação de reforço
(feedback positivo) e a mensagem emitida pelo inovador acabou sendo
reforçada e amplificada, adquirindo condições de se disseminar pela rede.
Tais mensagens podem ser ideias, modos de fazer ou estilos (como a
moda, por exemplo), atitudes que contenham novos padrões. Sim, não
custa repetir: um padrão é uma mensagem e pode ser transmitido como
tal, como já dizia, há tanto tempo, Norbert Wiener (1950) (14).
O inovador — tal como o hub — também é “produzido” socialmente pela
rede. Ninguém vira inovador apresentando sua inovação na TV, nos
jornais ou anunciando-a em um evento massivo. A inovação é uma
perturbação no tecido social que vai se espalhando molecularmente,
ponto a ponto. Pequenas perturbações, mesmo que partam da periferia
do sistema (quer dizer, de regiões pouco clusterizadas da rede social), são
capazes de se disseminar se conseguirem atingir uma espécie de tipping
point (a coisa parece funcionar da mesma forma que a propagação
epidemiológica), mas para cada configuração de rede e, a rigor, para cada
tipo de mensagem, pode-se ter um “ponto de desequilíbrio” diferente, a
partir do qual a mensagem passa a se disseminar exponencialmente.
Nem sempre, porém, os inovadores veem os resultados de sua inovação.
Muitas vezes, eles desencadeiam mudanças de comportamento que só
vão aparecer muito tempo depois, quando não se pode mais atribuir a um
inovador particular a paternidade da inovação, pois é próprio da dinâmica
da rede social que muitas mensagens se misturem, combinem-se e se
transformem em outras mensagens.
409
Uma longa jornada ainda será percorrida antes de se assumir mais
amplamente esses novos paradigmas, o que não significa que eles já não
estejam vigendo. Quem já está nos novos Highly Connected Worlds se
comporta mais ou menos assim. Basta ver o que começa a ocorrer nos
meios científicos: no passado, um pesquisador, para ser reconhecido,
precisava se submeter ao conselho editorial de uma publicação autorizada
pelas instituições acadêmicas e esperar alguns meses (às vezes muitos)
para ter seu trabalho publicado (ou rejeitado). Hoje, boa parte desse
pessoal publica, em seus próprios blogs, as descobertas que vai fazendo,
imediatamente e sem pedir licença a ninguém. Há que se convir que essa
é uma mudança é tanto!
Acontecerá com os inovadores o que já acontece com algumas atividades
intelectuais ou exercidas livremente na área do conhecimento; por
exemplo, com os escritores.
Escritor é quem escreve. O escritor é reconhecido pelos que leem o que
ele publica e não em virtude de ter obtido um título acadêmico ou uma
licença de uma corporação de escribas para escrever ou, ainda, um
atestado concedido por uma burocracia qualquer. Assim, em mundos
altamente conectados um inovador também tende a cumprir um papel
social mais relevante do que o dos que colecionaram muitos títulos
acadêmicos.
A rede é uma ótima oportunidade para se quebrar o poder das
burocracias do conhecimento. Na verdade, para quebrar o poder de
qualquer burocracia.
410
“Quebrar” (to crack) é a primeira medida para desobstruir o que foi
entupido. Quanto mais ocorrem eventos de desobstrução, mais a
sociedade vai se comportando como uma entidade que aprende, pois o
que é chamado de aprendizagem é sempre a abertura de novos caminhos.
E mais, a sociedade vai se desenvolvendo, pois o que chamamos de
desenvolvimento é a mesmíssima coisa: a abertura de novas
oportunidades de conexão (15).
Este, porém, é o papel dos netweavers.
411
Netweavers
Todas as pessoas têm uma porção-netweaver. Se não fosse assim, não
poderiam ser seres políticos
NETWEAVERS SÃO OS “TECELÕES” (para aproveitar o que poderia ter sido
uma feliz expressão de Platão, no diálogo O político, se ele não estivesse
se referindo a um sujeito autocrático), e os animadores de redes
voluntariamente construídas. Na verdade, eles constroem interfaces para
conversar com a rede-mãe. Os netweavers não são necessariamente os
estudiosos das redes, os especialistas em Social Network Analysis ou os
que pesquisam ou constroem conhecimento organizado sobre a
morfologia e a dinâmica da sociedade-rede. Os netweavers, em geral, são
políticos, não sociólogos. E políticos no sentido prático do termo, quer
dizer, articuladores políticos, empreendedores políticos e não cientistas
ou analistas políticos.
Os políticos tradicionais, entretanto, não são netweavers e sim,
exatamente, o contrário disso: eles hierarquizam o tecido social,
verticalizam as relações, introduzem centralizações, obstruem os
caminhos, destroem conexões, derrubam pontes ou fecham os atalhos
que ligam um cluster a outros clusters, separando uma “região” da rede de
outras “regiões”, excluem nodos; enfim, introduzem toda sorte de
412
anisotropias no espaço-tempo dos fluxos. Fazem tudo isso porque o tipo
de poder com o qual lidam — o poder, em suma, de mandar alguém fazer
alguma coisa contra sua vontade — é sempre o poder de obstruir, separar
e excluir. E é o poder de introduzir intermediações ampliando o
comprimento da corrente, dilatando a extensão característica de caminho
da rede social ou aumentando seus graus de separação, ou seja,
diminuindo a conectividade (e a interatividade). Não é por outro motivo
que os políticos tradicionais funcionam, via de regra, como despachantes
de recursos públicos, privatizando continuamente o capital social. Pode-se
dizer que, nesse sentido, os políticos tradicionais são os anti-netweavers,
visto que contribuem para tornar a rede social menos distribuída e mais
centralizada ou descentralizada, isto é, multicentralizada. Também não é à
toa que todas as organizações políticas — mesmo no interior de regimes
formalmente democráticos — têm topologia mais centralizada do que
distribuída. Essa também é uma maneira de descrever, pelo avesso, o
papel dos netweavers.
Todas as pessoas têm uma porção-netweaver. Se não fosse assim, não
poderiam ser seres políticos (e a democracia jamais poderia ter sido
inventada e reinventada).
Mas em sentido estrito, chamamos de netweavers aqueles que se
dedicam a tecer redes. Esse talvez seja o papel social mais relevante em
mundos altamente conectados. O que significa que, em um mundo
hierárquico, o netweaver é necessariamente um hacker (embora não seja
apenas isso).
413
Netweaver howto
Há dez anos Eric Raymond concluiu a última versão do seu H4ck3r
Howto. Entrando em uma época-fluzz, vamos precisar de um N3tw34v3r
Howto
EM “COMO SE TORNAR UM HACKER” (texto que ficou conhecido em
alguns meios como Hacker Howto), Eric Raymond (1996-2001) escreveu
uma espécie de manual autodidático de aprendizagem sobre hacking.
Para ele, o “hacking é uma atitude e uma habilidade na qual você tem que
basicamente ser autodidata. Você verá que, embora hackers de verdade
queiram lhe ajudar, eles não o respeitarão se você pedir "mastigado" tudo
que eles sabem. Aprenda algumas coisas primeiro. Mostre que você está
tentando, que você é capaz de aprender sozinho. Depois faça perguntas
aos hackers que encontrar” (16).
Raymond afirma que o termo “hacker” tem a ver “com aptidão técnica e
um prazer em resolver problemas e superar limites”. Para ele, se você quer
saber como se tornar um hacker, o relevante é o seguinte:
“Existe
uma
comunidade,
uma
cultura
compartilhada,
de
programadores experts e gurus de rede cuja história remonta a
decadas atrás, desde os primeiros minicomputadores de tempo
compartilhado e os primeiros experimentos na ARPAnet. Os
414
membros dessa cultura deram origem ao termo "hacker". Hackers
construíram a Internet. Hackers fizeram do sistema operacional Unix
o que ele é hoje. Hackers mantém a Usenet. Hackers fazem a World
Wide Web funcionar. Se você é parte desta cultura, se você
contribuiu a ela e outras pessoas o chamam de hacker, você é um
hacker.
A mentalidade hacker não é confinada a esta cultura do hacker-desoftware. Há pessoas que aplicam a atitude hacker em outras
coisas, como eletrônica ou música – na verdade, você pode
encontrá-la nos níveis mais altos de qualquer ciência ou arte.
Hackers de software reconhecem esses espíritos aparentados de
outros lugares e podem chamá-los de "hackers" também – e alguns
alegam que a natureza hacker é realmente independente da mídia
particular em que o hacker trabalha. Mas no restante deste
documento, nos concentraremos nas habilidades e dos hackers de
software, e nas tradições da cultura compartilhada que deu origem
ao termo ‘hacker'” (17).
É claro que a maioria dessas habilidades e atividades que caracterizam o
“hacker-de-software” hoje não se colocariam mais assim. A comunidade
restrita dos programadores que cultivavam a cultura hacker explodiu para
além dos limites de uma igrejinha. Essas habilidades e atividades estão
agora distribuídas praticamente por todas as redes que usam a Internet.
No entanto, o mais relevante é que Raymond considerava que hacker é
todo aquele que pratica uma “arte criativa” e, assim, não se reduz ao que
415
faz o hacker-de-software, mas está baseada em quatro coisas: uma
atitude geral, um conjunto de habilidades, uma cultura e uma
mentalidade hacker.
Segundo Raymond, a atitude hacker poderia ser assim resumida:
“Hackers resolvem problemas e constroem coisas, e acreditam na
liberdade e na ajuda mútua voluntária. Para ser aceito como um
hacker, você tem que se comportar de acordo com essa atitude. E
para se comportar de acordo com essa atitude, você tem que
realmente acreditar nessa atitude... Assim como em todas as artes
criativas, o modo mais efetivo para se tornar um mestre é imitar a
mentalidade dos mestres – não só intelectualmente como
emocionalmente também” (18).
É significativo que Raymond tenha insistido nesse ponto, aduzindo à
explicação acima o moderno poema zen: “To follow the path: look to the
master, follow the master, walk with the master, see through the master,
become the master” (Para seguir o caminho: olhe para o mestre, siga o
mestre, ande com o mestre, veja através do mestre, torne-se o mestre)
(19).
“Então - recomenda Raymond – se você quer ser um hacker, repita as
seguintes coisas até que você acredite nelas”. E aí elenca cinco crenças
básicas que, segundo seu ponto de vista, são acordes à atitude hacker: o
mundo está repleto de problemas fascinantes esperando para serem
resolvidos (20); não se deve resolver o mesmo problema duas vezes (21);
416
tédio e trabalho repetitivo são nocivos (22); liberdade é uma coisa boa
(23); e atitude não substitui competência (24).
No seu conjunto essas crenças configuram um bom libelo contra o
trabalho (que ele chama de trabalho repetitivo: “tédio e trabalho
repetitivo não são apenas desagradáveis, mas nocivos também”) e a favor
da diversão (sem negar a necessidade do esforço e da concentração: “o
trabalho duro e a dedicação se tornará uma espécie de um intenso jogo,
ao invés de trabalho repetitivo”); um estímulo à criatividade; uma aposta
no auto-aprendizado; um certo desprezo em relação ao desejo de obter
aprovação social ou buscar a fama; um elogio à capacidade de viver com o
necessário e de compartilhar gratuitamente (segundo Raymond, “é quase
um dever moral compartilhar informação, resolver problemas e depois dar
as soluções”); e – o mais importante – uma valorização da liberdade.
Sobre isso ele escreveu:
“Liberdade é uma coisa boa. Hackers são naturalmente antiautoritários. Qualquer pessoa que lhe dê ordens pode impedi-lo de
resolver qualquer que seja o problema pelo qual você está fascinado
– e, dado o modo em que a mente autoritária funciona, geralmente
arranjará alguma desculpa espantosamente idiota para fazer isso.
Então, a atitude autoritária deve ser combatida onde quer que você
a encontre, para que não sufoque a você e a outros hackers...
Pessoas autoritárias prosperam na censura e no segredo. E
desconfiam de cooperação voluntária e compartilhamento de
informação – só gostam de "cooperação" que eles possam controlar.
Então, para se comportar como um hacker, você tem que
417
desenvolver uma hostilidade instintiva à censura, ao segredo, e ao
uso da força ou mentira para compelir adultos responsáveis. E você
tem que estar disposto a agir de acordo com esta crença” (25).
Raymond lista em seguida as três habilidades básicas do hacker-desoftware: aprender a programar, aprender a mexer com Unix e aprender a
usar a World Wide Web e escrever em HTML.
Sobre a cultura hacker, Eric Raymond observa:
“Como a maioria das culturas sem economia monetária, a do hacker
se baseia em reputação. Você está tentando resolver problemas
interessantes, mas quão interessantes eles são, e se suas soluções
são realmente boas, é algo que somente seus iguais ou superiores
tecnicamente
são
normalmente
capazes
de
julgar.
Consequentemente, quando você joga o jogo do hacker, você
aprende a marcar pontos principalmente pelo que outros hackers
pensam da sua habilidade (por isso você não é hacker até que outros
hackers lhe chamem assim). Esse fato é obscurecido pela imagem
solitária que se faz do trabalho do hacker; e também por um tabu
hacker-cultural que é contra admitir que o ego ou a aprovação
externa estão envolvidas na motivação de alguém. Especificamente,
a cultura hacker é o que os antropólogos chamam de cultura de
doação. Você ganha status e reputação não por dominar outras
pessoas, nem por ser bonito, nem por ter coisas que as pessoas
querem, mas sim por doar coisas. Especificamente, por doar seu
tempo, sua criatividade, e os resultados de sua habilidade” (26).
418
Para Raymond existem basicamente “cinco coisas que você pode fazer
para ser respeitado por hackers”: escrever open-source software, ajudar a
testar e depurar open-source software, publicar informação útil, ajudar a
manter a infraestrutura funcionando e servir à cultura hacker em si.
Sobre esse último ponto, vale a pena ler o que ele escreveu:
“Você pode servir e propagar a cultura em si (por exemplo,
escrevendo um apurado manual sobre como se tornar um hacker).
Você só terá condição de fazer isso depois de ter estado por aí por
um certo tempo, e ter se tornado conhecido por uma das primeiras
quatro coisas. A cultura hacker não têm líderes, mas têm seus heróis
culturais, "chefes tribais", historiadores e porta-vozes. Depois de ter
passado tempo suficiente nas trincheiras, você pode ser tornar um
desses. Cuidado: hackers desconfiam de egos espalhafatosos em
seus "chefes tribais", então procurar visivelmente por esse tipo de
fama é perigoso. Ao invés de se esforçar pela fama, você tem que de
certo modo se posicionar de modo que ela "caia" em você, e então
ser modesto e cortês sobre seu status” (27).
Por último, sobre a mentalidade hacker, Raymond diz que, para entrar
nessa mentalidade “há algumas coisas que você pode fazer quando não
estiver na frente de um computador e que podem ajudar... [coisas que]
estão ligadas de uma maneira básica com a essência do hacking”: ler
ficção científica, estudar o Zen ou fazer artes marciais, desenvolver um
ouvido analítico para música, desenvolver sua apreciação por trocadilhos
e jogo de palavras e aprender a escrever bem em sua língua nativa (28).
419
Raymond nos deu algumas preciosas dicas – embora tenha, aqui e ali,
corretamente, extrapolado isso – para que pudéssemos programar em
ambientes digitais ou virtuais. A ele certamente ocorreu, mas disso
aparentemente não tirou muitas consequências, que hackers não são
programadores; são, mais, desprogramadores. Você pode hackear uma
escola, uma igreja, um partido, uma organização estatal, uma empresa,
sem nunca ter encostado em um computador ou em um dispositivo móvel
de navegação. A rigor, você pode (e deveria, se quisesse mesmo viver em
outro mundo) hackear sua família.
Não se trata, portanto, apenas de elaborar e modificar softwares e
hardwares de computadores, desenvolvendo funcionalidades novas ou
adaptando as antigas à revelia (ou não) dos seus proprietários. Nem se
trata de invadir para bagunçar, violar, roubar senhas, tirar do ar, como se
diz que fazem os hackers sem ética, ou sem a ética-hacker, os dark-side
hackers como os crackers.
Há dez anos Eric Raymond concluiu a última versão do seu H4ck3r Howto.
Mas agora, entrando em uma época-fluzz, vamos precisar de um
N3tw34v3r Howto.
Se você quiser se dedicar ao netweaving, comece esquecendo toda essa
bullshit sobre ética como conjunto de normas sobre o que fazer ou nãofazer válidas para qualquer interação e estabelecidas antes da interação.
O que caracteriza o netweaver é o que ele faz e não um conjunto de
crenças ou valores, por mais excelsos, solidários ou do-bem que possam
ser estimados.
420
Todo netweaver é um hacker no sentido ampliado do termo (para além do
“hacker-de-software”). Mas nem todo hacker é netweaver. O netweaver é
um hacker-fluzz. Para se tornar um netweaver, não é necessário seguir o
caminho (mesmo porque não existe o caminho), mas jogar-se no nãocaminho: naquele sentido poético do “perder-se também é caminho” de
Clarice Lispector (1969) (29); nem, muito menos, é o caso de olhar o
mestre, seguir o mestre, andar com o mestre, ver através do mestre e
tornar-se o mestre, como sugere o poema Zen reproduzido por Raymond;
senão de fazer exatamente o contrário: matar o mestre!
O netweaver não é um indivíduo excepcional, destacando-se dos demais
no velho mundo único por seu espírito criativo e por sua dedicação
concentrada em inovar: ele é uma função social dos mundos altamente
conectados. Nos Highly Connected Worlds não se trata mais de constituir
uma tribo dos diferentes (diferentes dos outros, dos que não-são) ou uma
comunidade dos iguais (que se reconheçam mutuamente: como disse
Raymond, “você não é hacker até que outros hackers lhe chamem assim”).
Não há uma atitude geral fundante, um conjunto de habilidades certas,
uma cultura adequada comum e uma mentalidade distinta baseada em
um sistema de crenças. São muitas comunidades, muitas tribos, com as
mais variadas atitudes e habilidades, miscigenando suas culturas
enquanto seus agentes nômades viajam pelos interworlds. E pouco
importa as crenças de cada uma das pessoas ou aglomerados de pessoas
que se dedicam ao netweaving. Para orientar e multiplicar os hackers, de
certo modo, Eric Raymond quis fazer uma escola (ainda que baseada na
autoaprendizagem e no reconhecimento mútuo). Para ensejar o
421
florescimento do novo papel social do netweaver, trata-se, pelo contrário,
de apostar que sua livre interação enxameie não-escolas.
Não pode haver, portanto, um receituário procedimental elencando
habilidades técnicas para alguém se tornar netweaver. Você não precisa
saber programar. Você não precisa só usar o Linux (nem entrar na igreja
do software livre, que – convenhamos – em alguns países da América
Latina está mais para partido). Você não precisa saber escrever em
HTML5. Para fazer hacking (no sentido ampliado do termo) – como uma
das dimensões do netweaving – você precisa estar disposto a
desprogramar hierarquias (hackeando aquelas instituições erigidas no
contra-fluzz, como, por exemplo, escolas, igrejas, partidos, Estados e
empresas-hierárquicas). E para fazer netweaving não há nenhum
conteúdo substantivo (filosófico, científico ou técnico) que você tenha que
adquirir: basta desobedecer, inovar e tecer redes. Isto sim, você vai ter
que aprender: a tecer redes – da única maneira possível de se aprender
isso: interagindo com outras pessoas sem erigir hierarquias (sem mandar
nos outros e sem obedecer a alguém). Isto é netweaving!
Não é algum conteúdo que determina seu comportamento. Para se tornar
netweaver não se trata de saber, mas de ser. Se você é um hacker – tão
convicto e habilidoso como o próprio Raymond, ou Torvalds, ou Stallman,
ou Cox, ou Tanenbaum – mas constrói suas patotas e igrejinhas, ou monta
empresas-hierárquicas, ou, ainda, erige quaisquer outras organizações
centralizadas e nelas convive com as outras pessoas o tempo todo, então
você não poderá ser um netweaver, mas não por motivos éticos ou
morais, por estar sendo incoerente com suas crenças e sim porque, nestas
422
condições, você dificilmente conseguirá aprender a articular e animar
redes (distribuídas).
Enfatizando, não é porque você violou princípios ou não observou valores.
Não é porque você não compartilhou o que sabe, nem porque transgrediu
a “cultura da doação” para ganhar mais dinheiro. Aliás, como disse o
próprio Raymond “não é inconsistente usar suas habilidades de hacker
para... ficar rico, contanto que você não esqueça que é um hacker”. Um
netweaver também pode ser – ou ficar – rico. Esse não é o ponto. O que
um netweaver não pode é não ser um netweaver; ou seja, o que faz o
netweaver não é um conjunto de conhecimentos adquiridos (ou de
opiniões proferidas, habilidades técnicas exercitadas, capacidades
cognitivas desenvolvidas) ou valores abraçados e sim o que o netweaver
faz. Se não faz rede, não é netweaver (ainda que, pelo visto, possa ser
hacker).
A parte hacking do netweaving é aquela que desprograma, que corta (to
hack) ou quebra (to crack) as cadeias de scripts dos programas
verticalizadores que perturbam o campo social centralizando a rede-mãe e
gerando aglomeramentos no contra-fluz (que aparecem então como
instituições hierárquicas). Hackeando tais instituições pode-se introduzir
funcionalidades diferentes das originais como, por exemplo: a
experimentação da livre aprendizagem em vez da transmissão do
ensinamento (essa é uma espécie de “virus” não-escola, poderíamos
chamar
assim
tais
experiências,
em
termos
metafóricos);
o
compartilhamento da espiritualidade espontânea em vez do seu
enquadramento e cerceamento por meio das práticas religiosas e dos
423
rituais das igrejas (“virus” não-igreja); o exercício voluntário e cooperativo
da política pública e da democracia comunitária em vez da disciplina e da
fidelidade partidárias (“virus” não-partido); a vivência do localismo
cosmopolíta em vez do refúgio no nacionalismo e no patriotismo
insuflados pelo Estado (“virus” não-Estado-nação); a associação de
empreendedores para polinizarem mutuamente seus sonhos em vez da
montagem de estruturas para arrebanhar trabalhadores e subjugá-los em
prol da realização do sonho único de alguém (“virus” não-empresahierárquica).
Todo resto pode ser abandonado. Nada de religião: para o netweaving
você pode fazer todas essas coisas usando o Linux, mas também o
Microsoft Windows ou o Mac OS ou o Chrome OS; ou, mesmo, não usar
nada disso. Você pode empregar uma das dezenas de plataformas p-based
disponíveis, como o Elgg e também o Ning, o Grouply, o Grou.ps (ou,
melhor ainda, pode ajudar a desenvolver uma plataforma i-based) ou
pode tentar se virar com sites de relacionamento como Orkut ou
Facebook. Você pode usar o identi.ca ou ir se arranjando com o Twitter.
Ou então você pode sair do mundo virtual ou digital e promover
atividades presenciais de netweaving, como rodas de conversação,
desconferências ou Open Spaces, World Cafés etc. Para os “netweaversde-software” (por assim dizer) o principal desafio é desenvolver
tecnologias interativas (i-based) de netweaving: ferramentas digitais
adequadas à articulação e animação de redes sociais. E há muitos outros
desafios tecnológico-sociais que estão colocados para todos os
netweavers (e não apenas os que mexem com softwares) para intensificar
424
a interatividade. Mas nenhuma ferramenta, nenhuma técnica ou
metodologia e nenhuma dinâmica é realmente essencial. O essencial é
articular e animar redes distribuídas de pessoas. Ou seja, o grande desafio
é social mesmo.
Enfatizando, mais uma vez: de nada adianta você só usar free software e
as mais avançadas técnicas dialógicas de conversação se você continua se
organizando hierarquicamente, se sua organização é centralizada ou
fechada (e, portanto não-free) e se você privatiza o conhecimento que
poderia ser comum, vedando o acesso público (e, dessarte, seu conteúdo
também será não-free).
Desprogramar sociosferas – a parte hacker do netweaver – não basta: é
necessário reprogramá-las, construindo seus próprios mundos. Eis porque,
por meio do netweaving, mundos-bebês estão agora em gestação.
425
Eles já estão entre nós
Nos Highly Connected Worlds o que vale são suas antenas
NETWEAVING É CRIAÇÃO DE NOVOS MUNDOS. Não é uma tribo especial –
a décima-terceira tribo (dos hackers) de Israel ou dos sionistas digitais –
que pode fazer netweaving, não é um cluster de gênios, uma fraternidade
de seres notáveis, dotados de faculdades e qualidades excepcionais,
super-humanas. É você! Se você não fizer, nada se modificará em seu
mundo (ou melhor, você não poderá sair do mundo que lhe impuseram e
no qual você está aprisionado). Para tanto, você não precisa ser mais do
que você é. Você só precisa ser o que você pode ser como revelação ou
descoberta do que você é.
Quando foi a Oslo, receber o Prêmio Nobel da Paz, Albert Schweitzer
(1952) disse em seu discurso que “nos tornamos tanto mais desumanos
quanto mais nos convertemos em super-homens”. É isso. Trata-se de ser
mais humano, não mais-do-que-humano.
Durante milênios fomos contaminados com a idéia perversa de que não
devemos ser o que somos. Tudo que nos diziam é que devíamos nos
superar, nos destacar dos semelhantes, separarmo-nos da plebe que
habita a planície ou chafurda no pântano e subir aos píncaros da glória
426
para ter sucesso na vida. Quem ficasse para trás era um looser. Ou alguém
que não desenvolveu suas potencialidades, que bloqueou sua “evolução”
mental ou espiritual ou que não foi capaz de se transformar ou de se
aperfeiçoar.
Mas você não tem que se transformar no que você não é. Não há nada
errado com você. Você não veio com defeito de fábrica, que precise ser
consertado por alguma instituição hierárquica. Você não precisa ser
reformado pelo Estado e seus aparatos, como querem os autocratas de
todos os matizes. Você não precisa ser educado – quer dizer, ensinado,
adestrado, domado – para aplacar uma suposta besta-fera que existe no
seu interior. Não há nada no seu interior humano além da composição
fractal de todos os outros humanos que fazem com que você seja uma
pessoa. O humano é um maravilhoso encontro fortuito do simbionte
natural (em evolução) com o simbionte social (em prefiguração).
Ser humano é algo muito, mas muito mais importante do que qualquer
coisa, mais importante do que um deus (e conta-se que teve até um deus
que, percebendo isso, quis se tornar humano), um santo ou um herói;
mais importante do que qualquer título, propriedade, cargo ou índice de
popularidade: nada disso importa se você não conseguir formar sua alma
humana, quer dizer, se não conseguir tornar-se pessoa.
Tornar-se pessoa. Pessoa comum. Não santo. Pois há também o caminho
excepcional dos santos (que são pessoas incomuns). George Orwell (1948)
nas suas inquietantes Reflexões sobre Gandhi elaborou, talvez, a mais
profunda (e corajosa) crítica à disciplina religiosa tomando como exemplo
427
a “disciplina que Gandhi impôs a si mesmo e que – embora ele possa não
insistir com seus seguidores que observem cada detalhe – acreditava ser
indispensável se quiséssemos servir a Deus ou à humanidade. Em primeiro
lugar, não comer carne e, se possível, nenhum alimento animal sob
qualquer forma... Nada de bebida alcoólica ou tabaco, nenhum tempero
ou condimento, mesmo do tipo vegetal... Em segundo lugar, se possível,
nada de relação sexual... E, por fim – este o ponto principal –, para quem
busca a bondade não deve haver quaisquer amizades íntimas e amores
exclusivos” (30). Então vem a crítica cortante de Orwell:
“O essencial no fato de sermos humanos é que não buscamos a
perfeição, é que às vezes estamos propensos a cometer pecados em
nome da lealdade, é que não assumimos o ascetismo a ponto de
tornar impossível uma amizade, é que no fim estamos preparados
para ser derrotados e fragmentados pela vida, que é o preço
inevitável de fixarmos nosso amor em outros indivíduos humanos.
Sem dúvida, bebidas alcoólicas, tabaco etc. são coisas que um santo
deve evitar, mas santidade também é algo que os seres humanos
devem evitar. Para isso há uma réplica óbvia, porém temos de ser
cautelosos em fazê-la. Nesta época dominada por iogues, supõe-se
com demasiada pressa não só que o “desapego” é melhor do que a
aceitação total da vida terrena como também que o homem comum
só a rejeita porque ela é muito difícil: em outras palavras, que o ser
humano mediano é um santo fracassado. É duvidoso que isso seja
verdade. Muitas pessoas não desejam sinceramente ser santas, e é
428
provável que as que alcancem a santidade, ou que a ela aspirem,
jamais tenham sentido muita tentação de ser seres humanos” (31).
Ter percebido que esse “homem comum”, esse “ser humano mediano”
não é “um santo fracassado” foi a grande sacada de Orwell,
desmascarando o que nos impuseram as igrejas ao colocarem como ideal
a superação do humano, o seu aperfeiçoamento, a sua “espiritualização”,
como se houvesse alguma coisa errada com os que vivem sua vida e sua
convivência sem se submeterem a alguma disciplina religiosa, ascética,
mesmo quando voltada ao bem da humanidade (como os santos, os
bodisatvas e os mahatmas – que, talvez, não tenham conseguido chegar a
ser pessoas comuns).
Sim, tornar-se pessoa. Pessoa comum. Não herói. Herói também é uma
pessoa incomum. É outra escapada da humanidade. É alguém que
supostamente “superou” sua condição humana. Toda cultura hierárquica
é construída a partir do mito do herói, um Hércules que vence desafios
insuperáveis (pelas pessoas comuns) e realiza missões impossíveis (para as
pessoas comuns). Não é por acaso que, frequentemente, o herói é um
guerreiro que demonstrou bravura em batalha e foi agraciado pelos seus
superiores (fabricantes de guerras) com medalhas (um reconhecimento da
organização montada pelos construtores de pirâmides). Depois tal cultura
apenas se deslocou para as outras pirâmides e apareceram os heróis
empresariais (como muitos capitães de indústria, badalados nas revistas
de negócios), os heróis políticos (como os condutores de rebanhos,
glorificados pelos seus índices de popularidade), até chegar aos heróis da
filantropia (que também são premiados pelo volume da caridade que
429
praticam). E há ainda os heróis revolucionários, aqueles “guias geniais dos
povos” (muitos deles genocidas como Stalin ou Mao – este último, aliás, o
campeão em número de mortes infligidas a outros seres humanos em
toda história e pré-história humana). Até Julian Assange do Wikileaks é
heroificado: positivamente (pela sua luta contra a opacidade dos Estadosnações) ou negativamente (pelo seu irresponsável anarquismo, capaz de
colocar em risco a moral de quadrilha e o pacto de silêncio entre os
Estados-nações chamado de “ordem internacional”).
Sob esse influxo verticalizante as pessoas tendem a achar que não podem
fazer nada de muito significativo, pois são apenas... pessoas comuns, não
heróis. Elas são induzidas a achar que são heróis fracassados, que não são
boas o suficiente para realizar grandes feitos, promover magníficas
transformações. Nesse modelo épico são levadas a acreditar que somente
formidáveis revoluções e mega-reformas conduzidas por extraordinários
líderes heroicos são capazes de fazer a diferença, desprezando aquelas
seminais experiências líricas vividas por pessoas comuns.
Como já sabiam as pessoas-zen, não é fácil ser uma pessoa comum, ao
contrário do que parece. No mundo único fomos induzidos a conquistar
algum diferencial para nos destacarmos das pessoas comuns. Quando
interagimos com alguém em qualquer ambiente hierárquico somos
avaliados por esses diferenciais e começamos então a cultivá-los. Como
reflexo dos fluxos verticais que passamos a valorizar, nossa vida também
se verticaliza. É como se importássemos a anisotropia gerada na rede-mãe
pela hierarquia. Nessa ânsia de subir, começamos a imitar os de cima e a
desprezar os de baixo.
430
O caso limite é a chamada celebridade (e os psicólogos, psicanalistas e
psiquiatras que tratam das patologias incidentes em quem se mantém
nessa condição têm muito a contar sobre a perturbação da personalidade
que pode levar, em determinadas circunstâncias, quando combinada com
outros fatores, ao surgimento de pulsões autodestrutivas, às drogas e à
violência). Mesmo que tais consequências extremas não aconteçam, há
sempre um isolamento (aquele cruel isolamento de que reclamam todos
os grandes líderes hierárquicos e os condutores de rebanhos), causado
pelo represamento de fluzz.
Em certa medida, em sociedades e organizações hierárquicas viramos
(todos nós, não apenas as celebridades) seres da aparência, deformados
pelo broadcasting, usando nossas antenas quase que somente para
difundir as características de nossa persona (como queremos que os
outros nos vejam) e não para captar outros padrões de convivência. É
assim que não desenvolvemos nossas características-hub e, em
consequência, perdemos interatividade, sobretudo porque não queremos
nos manter abertos à interação com o outro imprevisível por medo de nos
confundirmos com qualquer um, com seres de menor importância do que
nós (porque têm menos títulos, menos riqueza, menos poder ou menos
popularidade do que nós). Para nos protegermos da livre interação
passamos a conviver apenas com aqueles que se parecem conosco e
ficamos cada vez mais parecidos com eles, por um mecanismo que já foi
explicado pelo físico Mark Buchanan (2007) em O átomo social (32). Como
resultado, ficamos cada vez mais aprisionados em nosso submundo do
mundo único: ainda que morando em uma megalópole de dez milhões de
431
habitantes, frequentamos os mesmos clubes, moramos nos mesmos
bairros, gozamos nossas férias nas mesmas localidades e fazemos os
mesmos roteiros de viagem, jogamos os mesmos jogos, usamos as
mesmas roupas e conversamos as mesmas conversas.
É claro que, nessas circunstâncias, temos muitas dificuldades de ser
pessoas-fluzz. Ficamos cada vez mais opacos, duros e quebradiços, porque
não queremos ser membrana, não queremos que o fluxo nos atravesse.
Como consequência, perdemos caminhos para outros mundos. E isso
significa que não fazemos novas conexões (reduzindo nosso número de
amigos), mas significa também que não conseguimos nem “ver” as
conexões (perdemos nossas antenas porque ficamos concentrados em
cavucar nossas raízes, até sermos enterrados junto com elas).
Quando se coloca em processo de fluzz uma pessoa deixa de lutar para
subir, para ter sucesso, para se igualar ou imitar os ricos, os poderosos, os
muito titulados e os famosos. Libertando-se da exigência de ser uma VIP
(very important person), ela começa a revalorizar seus relacionamentos
horizontais. Nessa jornada terapêutica, vai se curando das sociopatias
associadas às perturbações no campo social introduzidas pela hierarquia e
vai caminhando, no seu próprio passo e do seu próprio jeito, em direção
ao supremo objetivo de virar uma pessoa comum.
O vento continua soprando... e a cada dia surgem miríades de pessoas
desconhecidas que, simplesmente, já não ligam para nada disso, para
nenhum desses indicadores de sucesso da sociedade hierárquica, sejam
432
materiais ou espirituais. Elas não têm medo de entrar na orgia fúngica,
lançando suas hifas para todo lado (e não apenas para cima).
Essas pessoas desobedecem. Não dão a mínima para os que querem
avaliá-las pelas suas raízes, pela sua descendência (seu patrimônio
genético ou seu “sangue”) e pelo ambiente em que nasceram e foram
criadas na primeira infância (o seu “berço”), pelos seus certificados,
diplomas e títulos (conferidos por alguma burocracia sacerdotal
trancadora de conhecimento) ou pelos seus graus (conferidos por algum
mestre ou confraria), pela sua riqueza acumulada, pelo seu poder
conquistado ou pela sua popularidade. Elas sabem que nos Highly
Connected Worlds o que vale são suas antenas.
Essas pessoas comuns antenadas, esses múltiplos anônimos conectados,
criadores de uma diversidade incrível de mundos, estão aí do seu lado.
Sim, eles já estão entre nós.
433
Notas e referências
(*) NETWEAVER HOWTO é originalmente parte do livro-mãe Fluzz: vida
humana e convivência social nos novos mundos altamente conectados do
terceiro milênio (2011). O livro Fluzz nasceu a partir de reflexões
intermitentes do autor durante a última década. Talvez tenha surgido do
espanto com a palavra ‘Entidade’, tal como foi usada – com maiúscula –
por Jane Jacobs (1961), em Morte e Vida das Grandes Cidades
Americanas: “As inter-relações que permitem o funcionamento de um
distrito como uma Entidade não são nem vagas nem misteriosas.
Consistem em relacionamentos vivos entre pessoas...” Difícil saber agora,
quase cinco anos após sua morte, tudo que ela queria realmente dizer
com ‘Entidade’ (com maiúscula) e ‘relacionamentos vivos’ (que parece ser
diferente de relacionamento ‘entre vivos’). De qualquer modo, isso foi
interpretado aqui como ‘viver a convivência’. Quando vivemos nossa
convivência (social) produzimos um novo tipo de vida (humana). Esta é a
idéia básica.
A palavra ‘fluzz’ nasceu de uma conversa informal do autor, no início de
2010, com Marcelo Estraviz, sobre o Buzz do Google. O autor observava
que Buzz não captava adequadamente o fluxo da conversação,
argumentando que era necessário criar outro tipo de plataforma (i-based
434
e não p-based). Marcelo Estraviz respondeu com a interjeição ‘fluzz’, na
ocasião mais como uma brincadeira, para tentar traduzir a idéia de
Buzz+fluxo. Ulteriormente a idéia foi desenvolvida e recebeu outros
significados, que não têm muito a ver com o programa malsucedido do
Google, como se pode ver neste livro.
O livro original, publicado em formato digital no início de 2011, foi
fragmentado em várias partes autônomas, no estilo shortbook ou booklet
(contendo em média, 20 mil palavras). Este é o oitavo volume da série,
intitulado Netweaver Howto: como se tornar um netweaver.
(1) MARGULIS, Lynn & SAGAN, Dorian (1998). O que é vida? Rio de Janeiro:
Zahar, 2022.
(2) O caso de Hobbes é notável, pois além de esse pensador ter lançado os
fundamentos para uma justificação filosoficamente elaborada da
autocracia, também derruiu os pressupostos cooperativos de qualquer
idéia democrática, tendo influência marcante sobre grande parte dos
pensadores de outras disciplinas científicas que surgiram ulteriormente –
como a biologia da evolução e a economia – até, praticamente, o final do
século 19. A esse respeito vale a pena ler a brilhante passagem de Matt
Ridley (1996) no livro As origens da virtude: “Thomas Hobbes foi o
antepassado intelectual de Charles Darwin em linha direta. Hobbes (1651)
gerou David Hume (1739), que gerou Adam Smith (1776), que gerou
Thomas Robert Malthus (1798), que gerou Charles Darwin (1859). Foi
depois de ler Malthus que Darwin deixou de pensar sobre competição
entre grupos e passou a pensar sobre competição entre indivíduos,
435
mudança que Smith fizera um século antes. O diagnóstico hobbesiano –
embora não a receita – ainda está no centro tanto da economia quanto da
biologia evolutiva moderna (Smith gerou Friedman; Darwin gerou
Dawkins). Na raiz das duas disciplinas está a noção de que, se o equilíbrio
da natureza não foi projetado de cima, mas surgiu de baixo, não há motivo
para pensar que se trata de um todo harmonioso. Mais tarde, John
Maynard Keynes diria que “A Origem das Espécies” é “simples economia
ricardiana expressa em linguagem científica”. E Stephen Jay Gould disse
que a seleção natural “era essencialmente a economia de Adam Smith
vista na natureza”. Karl Marx fez mais ou menos a mesma observação: “É
notável”, escreveu ele a Friedrich Engels, em junho de 1862, “como Darwin
reconhece, entre os animais e as plantas, a própria sociedade inglesa à
qual pertence, com sua divisão de trabalho, competição, abertura de
novos mercados, ‘invenções’ e a luta malthusiana pela existência. É a
‘bellum omnium contra omnes de Hobbes’”. Cf. RIDLEY, Matt (1996). As
origens da virtude: um estudo biológico da solidariedade. Rio de Janeiro:
Record, 2000.
(3) HOBBES, Thomas (1651). Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
(4) Idem.
(5) TENNYSON, Alfred (Lord) (1849). In Memorian A. H. H. Canto 56: “Who
trusted God was love indeed / And love Creation's final law / Tho' Nature,
red in tooth and claw / With ravine, shriek'd against his creed”. Cf. o link
abaixo:
<http://en.wikipedia.org/wiki/In_Memoriam_A.H.H.>
436
(6) Literalmente: “It is war minus the shooting”. Cf. ORWELL, George
(1945). The Sporting Spirit. London: Tribune, December 1945. Disponível
em:
<http://orwell.ru/library/articles/spirit/english/e_spirit>
(7) MATURANA, Humberto (1993). La democracia es una obra de arte
(alocução em uma mesa redonda organizada pelo Instituto para o
Desenvolvimento da Democracia Luis Carlos Galan, Colômbia). Bogotá:
Editorial Magistério, 1993.
(8) GORDON, Deborah (1999). Formigas em ação: como se organiza uma
sociedade de insetos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.
(9) MARGULIS, L. & SAGAN, D.: Op. cit.
(10) GLADWELL, Malcolm (2008). Fora de série (Outliers). Rio de Janeiro:
Sextante, 2008.
(11) Idem.
(12) Idem-idem.
(13) Idem-ibidem.
(14) WIENER, Norbert (1951). Cibernética e sociedade: o uso humano de
seres humanos. São Paulo: Cultrix, 1993.
(15) Cf. FRANCO, Augusto (2008). Escola de Redes: Nova visões sobre a
sociedade, o desenvolvimento, a internet, a política e o mundo
glocalizado. Curitiba: Escola-de-Redes, 2008.
437
(16) RAYMOND, Eric (1996-2001). Como se tornar um hacker. Disponível
em:
<http://www.linux.ime.usp.br/~rcaetano/docs/hacker-howto-pt.html>
(17) Idem.
(18) Idem-idem.
(19) RAYMOND, Eric (2001). How to become a hacker. Disponível em:
<http://www.catb.org/~esr/faqs/hacker-howto.html>
(20) “O mundo está repleto de problemas fascinantes esperando para
serem resolvidos. Ser hacker é muito divertido, mas é um tipo de diversão
que necessita de muito esforço. Para haver esforço é necessário
motivação. Atletas de sucesso retiram sua motivação de uma espécie de
prazer físico em trabalhar seus corpos, em tentar ultrapassar seus próprios
limites físicos. Analogamente, para ser um hacker você precisa ter uma
emoção básica em resolver problemas, afiar suas habilidades e exercitar
sua inteligência. Se você não é o tipo de pessoa que se sente assim
naturalmente, você precisará se tornar uma para ser um hacker. Senão,
você verá sua energia para "hackear" sendo esvaída por distrações como
sexo, dinheiro e aprovação social. (Você também tem que desenvolver
uma espécie de fé na sua própria capacidade de aprendizado – crer que,
mesmo que você não saiba tudo o que precisa para resolver um problema,
se souber uma parte e aprender a partir disso, conseguirá aprender o
suficiente para resolver a próxima parte – e assim por diante, até que você
termine)”. Cf. RAYMOND, Eric: Op. cit.
438
(21) “Não se deve resolver o mesmo problema duas vezes. Mentes
criativas são um recurso valioso e limitado. Não devem ser desperdiçadas
reinventando a roda quando há tantos problemas novos e fascinantes por
aí. Para se comportar como um hacker, você tem que acreditar que o
tempo de pensamento dos outros hackers é precioso – tanto que é quase
um dever moral compartilhar informação, resolver problemas e depois dar
as soluções, para que outros hackers possam resolver novos problemas ao
invés de ter que se preocupar com os antigos indefinidamente. (Você não
tem que acreditar que é obrigado a dar toda a sua produção criativa,
ainda que hackers que o fazem sejam os mais respeitados pelos outros
hackers. Não é inconsistente com os valores do hacker vender o suficiente
da sua produção para mantê-lo alimentado e pagar o aluguel e
computadores. Não é inconsistente usar suas habilidades de hacker para
sustentar a família ou mesmo ficar rico, contanto que você não esqueça
que é um hacker)”. Cf. RAYMOND, Eric: Op. cit.
(22) “Tédio e trabalho repetitivo são nocivos. Hackers (e pessoas criativas
em geral) não podem ficar entediadas ou ter que fazer trabalho repetitivo,
porque quando isso acontece significa que eles não estão fazendo o que
apenas eles podem fazer – resolver novos problemas. Esse desperdício
prejudica a todos. Portanto, tédio e trabalho repetitivo não são apenas
desagradáveis, mas nocivos também. Para se comportar como um hacker,
você tem que acreditar nisso de modo a automatizar as partes chatas
tanto quanto possível, não apenas para você como para as outras pessoas
(principalmente outros hackers). (Há uma exceção aparente a isso. Às
vezes, hackers fazem coisas que podem parecer repetitivas ou tediosas
439
para um observador, como um exercício de "limpeza mental", ou para
adquirir uma habilidade ou ter uma espécie particular de experiência que
não seria possível de outro modo. Mas isso é por opção -- ninguém que
consiga pensar deve ser forçado ao tédio”. Cf. RAYMOND, Eric: Op. cit.
(23) “Liberdade é uma coisa boa. Hackers são naturalmente antiautoritários. Qualquer pessoa que lhe dê ordens pode impedi-lo de resolver
qualquer que seja o problema pelo qual você está fascinado – e, dado o
modo em que a mente autoritária funciona, geralmente arranjará alguma
desculpa espantosamente idiota isso. Então, a atitude autoritária deve ser
combatida onde quer que você a encontre, para que não sufoque a você e
a outros hackers. (Isso não é a mesma coisa que combater toda e qualquer
autoridade. Crianças precisam ser orientadas, e criminosos, detidos. Um
hacker pode aceitar alguns tipos de autoridade a fim de obter algo que ele
quer mais que o tempo que ele gasta seguindo ordens. Mas isso é uma
barganha restrita e consciente; não é o tipo de sujeição pessoal que os
autoritários querem). Pessoas autoritárias prosperam na censura e no
segredo. E desconfiam de cooperação voluntária e compartilhamento de
informação – só gostam de "cooperação" que eles possam controlar.
Então, para se comportar como um hacker, você tem que desenvolver uma
hostilidade instintiva à censura, ao segredo, e ao uso da força ou mentira
para compelir adultos responsáveis. E você tem que estar disposto a agir
de acordo com esta crença”. Cf. RAYMOND, Eric: Op. cit.
(24) “Atitude não substitui competência. Para ser um hacker, você tem que
desenvolver algumas dessas atitudes. Mas apenas ter uma atitude não
fará de você um hacker, assim como não o fará um atleta campeão ou
440
uma estrela de rock. Para se tornar um hacker é necessário inteligência,
prática, dedicação, e trabalho duro. Portanto, você tem que aprender a
desconfiar de atitude e respeitar todo tipo de competência. Hackers não
deixam posers gastar seu tempo, mas eles idolatram competência –
especialmente competência em "hackear", mas competência em qualquer
coisa é boa. A competência em habilidades que poucos conseguem
dominar é especialmente boa, e competência em habilidades que
envolvem agudeza mental, perícia e concentração é a melhor. Se você
reverenciar competência, gostará de desenvolvê-la em si mesmo – o
trabalho duro e dedicação se tornará uma espécie de um intenso jogo, ao
invés de trabalho repetitivo. E isso é vital para se tornar um hacker”. Cf.
RAYMOND, Eric: Op. cit.
(25) Cf. RAYMOND, Eric: Op. cit.
(26) Idem.
(27) Idem-idem.
(28) Idem-ibidem.
(29) LISPECTOR, Clarice (1969). Uma aprendizagem ou O livro dos
prazeres. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.
(30) ORWELL, George (1948). Reflexões sobre Gandhi in ORWELL, George
(1984). Dentro da baleia e outros ensaios. São Paulo: Companhia das
Letras, 2005.
(31) Idem.
441
(32) BUCHANAN, Mark (2007). O átomo social. São Paulo: Leopardo, 2010.
442
443
444
445
446
447
BEM-VINDOS AOS NOVOS MUNDOS-FLUZZ
Augusto de Franco, 2012.
Versão Beta, sem revisão.
A versão digital desta obra foi entregue ao Domínio Público, editada
com o selo Escola-de-Redes por decisão unilateral do autor.
Domínio Público, neste caso, significa que não há, em relação a versão digital desta
obra, nenhum direito reservado e protegido, a não ser o direito moral de o autor ser
reconhecido pela sua criação. É permitida a sua reprodução total ou parcial, por
quaisquer meios, sem autorização prévia. Assim, a versão digital desta obra pode ser –
na sua forma original ou modificada – copiada, impressa, editada, publicada e
distribuída com fins lucrativos (vendida) ou sem fins lucrativos. Só não pode ser
omitida a autoria da versão original.
FRANCO, Augusto de
BEM-VINDOS AOS NOVOS MUNDOS-FLUZZ / Augusto de Franco – São Paulo:
2012.
44 p. A4 – (Escola de Redes; 16)
1. Redes sociais. 2. Organizações. 3. Escola de Redes. I. Título.
Escola-de-Redes é uma rede de pessoas dedicadas à investigação sobre redes sociais e
à criação e transferência de tecnologias de netweaving.
http://escoladeredes.net
448
Sumário
Introdução | 9
Os novos mundos-fluzz | 11
Quebrando as cadeias | 15
Clustering | 18
Swarming | 21
Cloning | 24
Crunching | 28
Conversando com a rede-mãe | 31
Pulando no abismo | 34
Ah!... Os poetas, essas pessoas-fluzz | 37
Notas e referências | 39
449
450
Introdução
O Pó de Flu (Floo Powder) é um modo de viajar e se comunicar
no mundo mágico, que pode ser usado por crianças...
Inventado por Ignatia Wildsmith,
é utilizado por muitos bruxos e bruxas
para se transportar para (e através de) todos os lugares
que estiverem ligados à Rede do Flu (Floo Network).
Da série Harry Potter de J. K. Rowling (1997-2007)
Perder-se também é caminho.
Clarice Lispector em Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres (1969)
Livre, livre é quem não tem rumo.
Manoel de Barros em Menino do Mato (2010)
Bem-vindos aos novos mundos-fluzz (*). Esqueçam suas velhas ideias e
práticas de comando e controle. Abram mão de suas noções-século-20 de
451
participação. E se livrem da compulsão de gerir o conhecimento ou
organizar conteúdos para os outros (ou juntamente com eles). Preparemse para entrar no multiverso das interações.
Nos mundos-fluzz não é o conteúdo do que flui pelas conexões da rede a
variável fundamental para explicar o que acontece(rá) e sim o modo-deinteragir e suas características, como a frequência, as reverberações, os
loopings, as configurações de fluxos que se constelam a cada instante, os
espalhamentos e aglomeramentos (clustering), os enxameamentos
(swarming) que irrompem, as curvas de distribuição das variações
aleatórias introduzidas pela imitação (cloning) que produzem ordem
emergente (a partir da interação), as contrações na extensão
característica de caminho (crunch) dentro de cada cluster...
Em vez de tentarem organizar a auto-organização, construam interfaces
para conversar com a rede-mãe, aquela que existe independentemente de
nossos esforços conectivos voluntários e que, para usar uma imagem do
Tao, é como o espírito do vale, suave e multífluo, [como] a mulher
misteriosa que age sem esforço ao se deixar varrer pelo sopro, ao ser
permeável ao fluxo que não pode ser aprisionado por qualquer
mainframe: fluzz.
Oh!, sim, redes são fluições. Este texto é sobre redes (**).
452
Os novos mundos-fluzz
OS NOVOS MUNDOS ALTAMENTE CONECTADOS do terceiro milênio são
aqueles mundos glocais em que fluzz vai sendo desobstruído. Fluzz é
obstruído pela centralização das comunicações (e inclusive pela Internet
descentralizada), mas também por todas as separações que reduzem a
interação, desde aquelas impostas pela barreira da língua, passando por
aquelas que separam quem busca de quem gera conhecimento e pelas
que separam os dispositivos tecnológicos interativos do corpo humano até
chegar às que separam pessoas de não-pessoas.
Bem-vindos então aos novos mundos-fluzz. Seu dispositivo móvel de
interação já se comunica diretamente com outros dispositivos móveis. Seu
computador – agora um transceptor, alimentado por baterias
recarregáveis por luz ou força mecânica – gera sua própria onda
eletromagnética e “fala” diretamente com os outros computadores do seu
mundo. Nada de provedores, roteadores, protocolos únicos. No lugar da
internet multicentralizada, redes distribuídas. Redes P2P (peer-to-peer).
Redes Mesh, ampliadas por replicação em cascata, interconectadas.
Seu foursquare não está mais montado sobre a planta urbana, mas sobre
mapas de caminhos no espaço-tempo dos fluxos. Ele passou a ser i-based.
453
Com a ajuda de telas (e tudo pode ser tela), óculos especiais, projeções
holográficas ou implantes bioeletrônicos e cibernéticos, você “vê” o fluxo.
Como um precog você antevê o desfecho de configurações em formação,
que ainda não se materializaram... E como um novo John Anderton (o
protagonista de Minority Report, interpretado por Tom Cruise, mas agora
livre e não-perseguido) interage com as coisas: os artefatos, os
equipamentos, os prédios, as ruas.
Mas com você não ocorre nada parecido com o que se passa na sociedade
de controle de Minority Report, o filme de Spielberg (2002) baseado no
conto homônimo de Philip K. Dick (1956). Você será mais como aquele
Leto, o filho de Paul Atreides, em Os Filhos de Duna, de Frank Herbert
(1976) (1). Não há um mainframe. Não há um Arquiteto (o personagem de
Matrix Reloaded magistralmente interpretado por Helmut Bakaitis).
Acorda! Você não está mais na Matrix.
Agora você dispõe de programas i-based de navegação inteligente, da
busca (semântica) à polinização (criativa, ensejadora de múltiplos
significados). Cada um tem sua própria wikipedia, cada busca P2P é feita
em miríades de wikipedias e não em apenas uma (única) instalada em um
mainframe. Cada busca revela um resultado diferente porque, na verdade,
não existe a busca unilateral: toda busca é uma interação, quer dizer, uma
geração de conhecimento-vivo (ou não revela nada além de
conhecimento-morto). Cada busca, portanto, deixa um rastro, o rastro
daquela particular fluição que se agrega ao resultado da busca análoga
seguinte para os que estão trafegando pelo mesmo interworld.
454
Nos Highly Connected Worlds todo buscador é um polinizador. Esse
interagente é um viajante, um peregrino de mundos e um semeador de
mundos, um nômade que não depende mais de workstations instaladas
em equipamentos que obstruem fluxos. Dispositivos móveis de navegação
e comunicação, objetos interativos nômades ficaram vez mais portáteis e
mais decisivos na geração de small-worlds e de interworlds.
Os dispositivos tecnológicos deixaram de estar separados do corpo. Eles
estão cada vez mais próximos, como certos games que, no passado,
começaram a substituir o joystick pelo próprio corpo humano (2); e assim
também ocorre com processadores, navegadores e comunicadores que
são instalados em relógios de pulso, óculos, pulseiras, anéis, colares,
bonés e outros acessórios. Alguns desses artefatos são tradutorestransdutores que funcionam em tempo real permitindo a conversação
entre pessoas que falam línguas diferentes. E muito além disso: agora
temos dispositivos inseridos – integrados, assimilados ou combinados por
simbiose – ao corpo humano. Tornou-se irrelevante a velha discussão
sobre aquelas faculdades polêmicas, parapsicológicas, como a telepatia,
porque já é irrelevante tê-las na medida em que podemos realizar a
interação sem distância ou em tempo real com outros seres humanos e
não-humanos, animados ou inanimados, sempre que quisermos.
Podemos inserir em nossos corpos outros dispositivos capazes de ampliar
e acelerar a comunicação. Estamos descobrindo em seres não-humanos
parceiros simbióticos – semelhantes à psilocibina, na visão de Terence
McKenna (1992) (3) ou como as imaginárias “midi-chlorians” da série Star
455
Wars (4) – capazes de nos dotar de mais “percepção” de fluzz ou de
ensejar melhores condições de interação.
Mas esses avanços tecnológicos, em si, não são nada diante das inovações
sociais que surgiram com o auxílio de tecnologias i-based (aliás, tais
tecnologias só foram desenvolvidas porque já havia a possibilidade social
para o seu surgimento). Não-escolas, não-igrejas, não-partidos, nãoEstados-nações, não-empresas-hierárquicas germinaram e floresceram,
dando nascimento a novas variedades de instituições-fluzz baseadas na
vida comum e na convivência das pessoas comuns ressignificadas como
expressões diretas do multiverso criativo (aquele que cria a si mesmo à
medida que se desenvolve). Não é um novo céu e uma nova terra (como
expectou Isaias 65: 17): é que o novo céu passou a ser a nova terra; enfim
a terre des hommes!
Todas as novas possibilidades sociais que permitem a emergência de
Highly Connected Worlds estão ligadas à fenomenologia das redes sociais
distribuídas. Não foi propriamente a descoberta desses novos fenômenos
que quebrou as cadeias que nos aprisionavam ao velho mundo e sim a
nossa disposição social de deixarmos eles acontecerem.
456
Quebrando as cadeias
Mundos sociais criam-se a si mesmos à medida que se desenvolvem =
fluzz
É INCRÍVEL COMO FICÁVAMOS – no mundo único – presos aos conteúdos.
Achávamos que eram os conteúdos que podiam fazer a diferença. Foi uma
consequência trágica de seis milênios de ensino (quer dizer, da
programação das mentes efetuada por alguma organização hierárquica –
e todas elas, como vimos, são escolas): o conteúdo é um ensinamento.
Do conteúdo para a consciência foi um pulo, ou melhor, um deslizamento
(epistemológico). A consciência que queríamos que os outros tivessem
deveria surgir quando eles entrassem em contato com determinados
conteúdos (que às vezes chamávamos de “conhecimento”). E aí nos
esforçávamos para construir, organizar e transferir conhecimentos para os
outros. Assim nos tornamos programadores (replicadores) do velho
mundo. Fomos programados para ser replicadores: enfiadores de
conteúdos na cabeça dos outros.
Da consciência para a ética ocorreu outro deslizamento. A ética que
queríamos que os outros tivessem era, no fundo, conquanto muitos se
esforçassem por negar tal evidência, um conjunto de valores (conteúdos)
457
que viravam normas para direcionar comportamentos. Mas valor – do
jeito que foi tomado, de modo genérico – virou uma palavra tola. Valor é o
que é valorizado por alguém e compartilhado pelos que estão em
interação com esse alguém. Não pode existir um valor acima, ou antes, da
interação de alguns, que deva valer para todos. E essas ideias que
chamávamos de valores não podiam mudar comportamentos: como se,
inoculados por elas, passássemos a agir de modo correto ou mais
“consciente”. Consciência (entendida nesse sentido deslizado, como
conhecimento de um conteúdo ou mesmo, em termos mais sofisticados,
como localização da reflexividade no sujeito que sabe que sabe) não pode
mudar
comportamentos.
Somente
comportamentos
mudam
comportamentos.
Quase tudo no velho mundo hierárquico girava em torno de conteúdos.
Mas a grande descoberta que acompanhou a geração dos Highly
Connected Worlds foi que o comportamento das redes sociais não
depende de conteúdos. Sua fenomenologia é interativa. E todas as formas
de interação que foram descobertas pela nova ciência das redes
revelaram a mesma coisa: nada a ver com conteúdos. Clustering,
swarming, cloning, crunching – nenhuma dessas coisas tem a ver com
conteúdo. Não têm a ver com ensinamento (replicação) e sim com
aprendizagem (criação). Aprendizagem coletiva que reflete o metabolismo
pelo qual os mundos sociais criam-se a si mesmos à medida que se
desenvolvem = fluzz.
Quando, a partir dessas descobertas, começamos a quebrar as cadeias,
deixando as forças do aglomeramento livres para atuar, deixando o
458
enxameamento agir, a imitação exercer o seu papel e os mundos se
contraírem, os novos mundos altamente conectados começaram a vir à
luz.
459
Clustering
Deixando livres para atuar as forças do aglomeramento
A PRIMEIRA GRANDE DESCOBERTA: tudo que interage clusteriza,
independentemente do conteúdo, em função dos graus de distribuição e
conectividade (ou interatividade) da rede social. Há muito já se pode
mostrar teoricamente que quanto maior o grau de distribuição de uma
rede social, mais provável será que duas pessoas que você conheça
também se conheçam (essa é a raiz do fenômeno chamado clustering).
Em geral não se conhece todas as variáveis que estão presentes em cada
processo particular, mas é observável que se formam clusters
(aglomerados) em quaisquer redes, não apenas nas redes sociais. Insetos
se aglomeram, doenças se aglomeram (e não apenas as contagiosas),
empreendedores de um mesmo ramo de negócios tendem a se aglomerar
(não é por acaso que encontramos lojas de tecidos, roupas, luminárias ou
oficinas mecânicas concentradas em uma mesma rua ou quadra). E isso
não depende, como ocorre em certas cidades planejadas (como Brasília)
da localização forçada ou top down de setores (setor hospitalar, setor
hoteleiro, setor automotivo etc.). É assim que, como mostrou Steven
Johnson (2001), os vendedores de seda se clusterizam, há séculos, em
460
determinada localidade de Florença. E voltam sempre para o mesmo lugar
após as tão seguidas quanto inúteis tentativas de deslocá-los para outras
regiões da cidade (5).
Os planejadores normativos – como construtores de pirâmides que são –
não têm paciência para esperar a clusterização. Na verdade, como seu
objetivo é construir organizações hierárquicas, eles não podem esperar a
clusterização. A hierarquia exige desatalhamento, quer dizer, a supressão
de atalhos entre clusters: só alguns caminhos podem ser válidos (e, por
isso, só alguns são validados). Isso dificilmente ocorreria se a clusterização
brotasse da dinâmica da rede. Essa é a razão pela qual os planejadores
urbanos nunca construiriam uma Florença, tendo que se contentar em
erigir suas capitais para algum deus hierárquico (como fez Amenófis IV
para o deus Aton) ou arquitetar suas cidades-sede para o Estado, não para
a sociedade (como aquela Brasília que foi inaugurada antes da convivência
social dos brasilenses; depois estes últimos começaram a conformar a
verdadeira Brasília modificando os estranhos caminhos traçados pelos
planejadores). A diferença entre o zigurate de Uruk e o assentamento
temporário do festival Burning Man revela quase tudo: poucos caminhos x
múltiplos caminhos.
Ao articular uma organização em rede distribuída não é necessário prédeterminar quais serão os departamentos, aquelas caixinhas desenhadas
nos organogramas. Estando claro, para os interagentes, qual é o propósito
da iniciativa, basta deixar as forças do aglomeramento atuarem. Em pouco
tempo (a depender da interatividade da rede), surgirão clusters agregando
pessoas que se dedicarão às funções necessárias à realização daquele
461
propósito: alguns se juntarão para cuidar da criação, outros para cuidar
dos relacionamentos com os stakeholders, outros, ainda, da produção ou
do delivery etc.
Até certos eventos planejados autonomamente por pessoas diferentes
(que não se conhecem entre si) se aglomeram e isso é revelador de um
metabolismo da rede, de uma dinâmica invisível que ocorre no espaçotempo dos fluxos.
Nada a ver com conteúdo. A partir do clustering outros fenômenos
surpreendentes ocorrem em uma rede, como o swarming.
462
Swarming
Deixando o enxameamento agir
A SEGUNDA GRANDE DESCOBERTA: tudo que interage pode enxamear.
Swarming (ou swarm behavior) e suas variantes como herding e shoaling,
não acontecem somente com insetos, formigas, abelhas, pássaros,
quadrúpedes e peixes. Em termos genéricos esses movimentos coletivos
(também chamados de flocking) ocorrem quando um grande número de
entidades self-propelled interagem. Algum tipo de inteligência coletiva
(swarm intelligence) está sempre envolvida nestes movimentos. Já se sabe
que isso também ocorre com humanos, quando multidões se aglomeram
(clustering) e “evoluem” sincronizadamente sem qualquer condução
exercida por algum líder; ou quando muitas pessoas enxameiam e
provocam grandes mobilizações sem convocação ou coordenação
centralizada, a partir de estímulos que se propagam P2P, por contágio
viral.
E não ocorre apenas como uma forma de conflito, como ficamos
acostumados a pensar depois que Arquilla e Ronsfeld (2000) produziram
para a Rand Corporation seu famoso paper “Swarming and the future of
conflict” (6). Um exemplo conhecido dos efeitos surpreendentes do
463
swarming – no caso, civil – foi a reação da sociedade espanhola aos
atentados terroristas cometidos pela Al-Qaida em 11 de Março de 2004
(7). Escrevendo sobre isso, ainda preso as visões do swarming como
netwar, David de Ugarte (2007), em O poder das redes, acerta porém
quando diz:
“Como organizar, pois, ações em um mundo de redes distribuídas?
Como se chega a um swarming civil? Em primeiro lugar,
renunciando a organizar. Os movimentos surgem por autoagregação espontânea, de tal forma que planificar o que se vai
fazer, quem e quando o fará, não tem nenhum sentido, porque não
saberemos o quê, até que o quem tenha atuado” (8).
O swarming (enxameamento) é uma forma de interação. Deixar o
enxameamento agir significa ‘renunciar a organizar’, quer dizer, a
disciplinar a interação.
O fenômeno acontece com mais rapidez em função direta dos graus de
conectividade e de distribuição da rede. Em mundos altamente
conectados tais movimentos tendem a irromper com mais frequência. E é
por isso que eles surgem por emergência, não supervêm a partir de
qualquer instância centralizada. Assim, do que se trata é de deixar mesmo.
As tentativas de provocar artificialmente swarmings, instrumentalizando o
processo para derrotar um adversário, destruir um inimigo, disputar uma
posição, vencer uma eleição ou vender mais produtos batendo a
concorrência, em geral não têm dado certo. Todas elas acabam,
464
contraditoriamente, fazendo aquilo que negam: tentando organizar a
auto-organização.
E ainda bem que tais tentativas fracassam: do contrário viveríamos em
mundos altamente centralizados por aqueles que possuíssem o segredo
de como desencadear swarmings. De posse desse conhecimento (que logo
seria trancado), um partido poderia eleger seus candidatos (e mantê-los
no poder indefinidamente) ou uma empresa poderia reinar sozinha no seu
ramo de negócio.
Nada a ver com conteúdo. Na sua intimidade, o processo de swarming
pressupõe clustering e se propaga por meio de cloning.
465
Cloning
Deixando a imitação exercer seu papel
A TERCEIRA GRANDE DESCOBERTA: a imitação também é uma das formas
da interação e, desse ponto de vista, a imitação é uma clonagem. Poucos
perceberam isso. Como pessoas – gholas sociais – todos somos clones, na
medida em que somos culturalmente formados como réplicas variantes
(embora únicas) de configurações das redes sociais onde estamos
emaranhados.
O termo clone deriva da palavra grega klónos, usada para designar
"tronco” ou “ramo", referindo-se ao processo pelo qual uma nova planta
pode ser criada a partir de um galho. Mas é isso mesmo. A nova planta
imita a velha. A vida imita a vida. A convivência imita a convivência. A
pessoa imita o social.
Sem imitação não poderia haver ordem emergente nas sociedades
humanas ou em qualquer coletivo de seres capazes de interagir. Sem
imitação os cupins não conseguiriam construir seus cupinzeiros. Sem
imitação, os pássaros não voariam em bando, configurando formas
geométricas tão surpreendentes e fazendo aquelas evoluções fantásticas.
466
A imitação não é algo ruim, como começamos a pensar depois que
surgiram os sistemas de trancamento do conhecimento (como, por
exemplo, as leis de patentes e o direito autoral). A preocupação deslocouse então da criação para a fraude, passando a ser um caso de polícia.
Mas não há aprendizagem sem imitação. Learn from your neighbours é a
diretiva geral de auto-organização dos sistemas complexos e, portanto, de
qualquer sistema capaz de aprender.
Quando imitamos, introduzimos variações. Nunca reproduzimos nada
fielmente (isso seria impossível em qualquer mundo em que as condições
são mutáveis e os imitadores são diferentes dos imitados). A propagação
dessas variações se distribui de uma maneira estranha.
Você não imita uma-a-um ou um de cada vez. O que você imitou (e variou)
vai ser imitado por outro (e ser também variado). Além disso, você imita
vários ao mesmo tempo, combina e recombina modelos a ser imitados e
essas recombinações também se propagam gerando novos padrões de
adaptação emergentes. Isso é o que chamamos aqui de cloning. Foi assim
que nasceu a vida (o simbionte natural). É assim que está nascendo a
convivência social “orgânica” (ou o simbionte social) nos Highly Connected
Worlds.
Ao contrário do que se acreditou por tanto tempo, não há inovação sem
imitação. E quanto mais imitação, mais inovação. Imitação não é
propriamente repetição, reprodução assistida. Imitação é uma função dos
emaranhados em que as coisas – inclusive os humanos – sempre estão.
467
Na verdade, nossos esforços educativos, ao querermos preparar as
pessoas e orientá-las para que cumpram adequadamente uma função (em
geral uma função que queremos que elas cumpram), são, em grande
parte, tentativas de condicioná-las (ao que queremos que elas façam) e
administrá-las (para que elas façam o que queremos do jeito que
queremos). Se não estamos preocupados com comando-e-controle, tal
esforço é quase sempre inútil. Bastaria deixar que elas aprendessem.
Deixar-aprender é a solução-fluzz para a educação (que, como tal – como
‘a’ educação – é então abolida). E é também, sob certo ponto de vista,
uma definição de democracia (no sentido “forte” do conceito).
Como naquelas experiências promovidas por Sugata Mitra com crianças
de localidades pobres da Índia, que nunca haviam visto um computador e
que aprenderam, elas mesmas, em grupo, não somente a usar a máquina
e a rede, mas aprenderam a aprender em rede por meio da máquina, é
preciso deixar as pessoas aprenderem na interação. Mitra não ensinava
nada, simplesmente entregava computadores conectados às crianças e
dizia: “ – Vejam aí o que vocês podem fazer, voltarei daqui a um mês”. Ao
voltar verificava que elas haviam feito prodígios. Nessas experiências a
aprendizagem fundamental era sempre a da interação (no grupo dos
aprendentes) (9). Mas isso vale para qualquer aprendizagem. A imitação
não deve ser apenas tolerada senão estimulada (e se os chamados
educadores soubessem disso incentivariam a cola nas suas provas ao invés
de montar sistemas para vigiar e punir os transgressores: argh!).
Quando tentamos orientar as pessoas sobre o quê – e como, e quando, e
onde – elas devem aprender, nós é que estamos, na verdade, tentando
468
replicar, reproduzir borgs: queremos seres que repetem. Quando
deixamos as pessoas imitarem umas as outras, não replicamos; pelo
contrário, ensejamos a formação de gholas sociais. Como seres humanos
– frutos de cloning – somos seres imitadores.
Nada a ver com conteúdo. Nos mundos altamente conectados o cloning
tende a auto-organizar boa parte das coisas que nos esforçamos por
organizar inventando complicados processos e métodos de gestão.
Mesmo porque tudo isso vira lixo na medida em que os mundos começam
a se contrair sob efeito de crunching.
469
Crunching
Deixando os mundos se contraírem
A QUARTA GRANDE DESCOBERTA: small is powerful. Essa talvez seja a
mais surpreendente descoberta-fluzz de todos os tempos. Em outras
palavras, isso quer dizer que o social reinventa o poder. No lugar do poder
de mandar nos outros, surge o poder de encorajá-los (e encorajar-se):
empowerment!
Sim, fluzz é empowerfulness. Quando aumenta a interatividade é porque
os graus de conectividade e distribuição da rede social aumentaram; ou,
dizendo de outro modo, é porque os graus de separação diminuíram: o
mundo social se contraiu (crunch). Steven Strogatz observou em 2008 que
os graus de separação não estavam apenas diminuindo: eles estavam
despencando (10). De uma perspectiva-fluzz, podemos afirmar que – sob
o efeito desse amassamento (Small-World Phenomenon) – somos nós que
estamos despencando... no abismo!
Nada a ver com conteúdo. Tudo que interage tende a se emaranhar mais e
a se aproximar, diminuindo o tamanho social do mundo. Quanto menores
os graus de separação do emaranhado em você vive como pessoa, mais
empoderado por ele (por esse emaranhado) você será. Mais alternativas
470
de futuro terá à sua disposição. Mais parcerias e simbioses poderá fazer
para realizar qualquer coisa. Mais rico (de conexões) e mais poderoso (de
empoderamento) você será, porque terá mais recursos (meios) e mais
capacidade (potencialidade) de alterar disposições no espaço-tempo dos
fluxos.
É o caso de dizer: bem, isso muda tudo.
Nos Highly Connected Worlds a contração (crunching) é acelerada. Em
pouco tempo sua timeline fica tão caudalosa que você é arrastado pela
correnteza. Não adianta mais erigir muros para tentar se proteger da
interação: como se sabe, a enxurrada, quando vem, leva tudo. Então você
vai ter que aprender a viver em fluxo. Isso muda tudo porque muda a
natureza do que chamávamos de normas e instituições, processos e
rotinas, planos e agendas e, inclusive, propriedades (incluindo
propriedades imobiliárias, como nossas casas – nossos refúgios contra as
intempéries e nosso espaço privado, separado dos outros e protegido da
interação com o outro-imprevisível). Uma vida em fluxo é uma vida
nômade.
No passado temia-se que isso nos colocasse na dependência de
dispositivos interativos móveis – e-readers e tablets – mochilas e naves.
Quá! Tudo isso já é passado. Os dispositivos separados do corpo vão
sendo substituídos por implantes conectores, as máquinas de ler livros e
os computadores-comprimidos vão virando objetos tão jurássicos como
aqueles velhos computadores-armários que rodavam fitas magnéticas e
liam cartões perfurados. As mochilas vão ficando cada vez menores na
471
medida em que não há muito para carregar (e carregar para onde?). As
naves, entretanto, permanecem, mas são outra coisa.
Em um mundo contraído você precisa mesmo é da nuvem. Não de se
conectar à alguma nuvem (criada por algum mainframe) para armazenar e
acessar seus arquivos (quer dizer, o passado). Agora você é a nuvem.
Agora você é a nave: como nas velhas catedrais góticas (pelo menos nas
intenções dos pedreiros-livres que as construíram), você viaja sem sair do
lugar (porque o lugar também passa a ser outra coisa). A nuvem é o
emaranhado que viaja pelos interworlds junto com você. E esse
emaranhado é o seu lugar. O seu lugar não é você (arrumando um jeito de
ficar prevenido) contra o outro: o seu lugar é o outro.
Deixe os mundos se contraírem para ver só o que acontece.
472
Conversando com a rede-mãe
Você só precisa construir interfaces
A QUINTA GRANDE DESCOBERTA: é possível conversar com a rede-mãe e é
possível programá-la.
Se você é um netweaver, seu papel não é construir conteúdos, mas
interfaces para conversar com a rede-mãe. É ser um nômade, um viajante
dos interworlds. As interfaces são os interworlds.
Interworlds são os meios pelos quais o que foi separado pode se
reconectar. Todas as coisas sociais (esses emaranhados que chamamos de
pessoas) se reconectam quando são devolvidas à rede-mãe. Quando são
livres para fazer isso: amagi. Para tanto, porém, é necessário remover o
que está impedindo essa volta, não fazer discursos. Você não precisa
convencer os outros dessas coisas (o que é sempre sinal de que você não
está realmente convencido). Não precisa fazer proselitismo de uma nova
visão de mundo, de uma nova ideologia, de uma nova filosofia, de uma
nova religião. As pessoas já querem se comunicar com a rede-mãe, não é
necessário induzi-las, compeli-las, conduzi-las.
473
Dançar, brincar e jogar foram as formas de tentar conversar com a redemãe que conseguiram sobreviver sob a civilização hierárquica.
Quando, por exemplo, você vê uma jovem querendo ser dançarina,
cantora, é fluzz que está ali naqueles desejos muitas vezes inexplicáveis.
Ela não quer fazer sucesso, se destacar dos semelhantes. Isso pode vir
depois, quando for capturada por uma organização ou por uma cultura
hierárquica. No início ela quer apenas vibrar no mesmo ritmo da
intermitente criação, acompanhar a vida nômade das coisas, respirar com
elas, reconhecer e ser reconhecida por outras pessoas capazes de se
deixar empatizar...
A dança, a música... são movimentos-fluzz de sintonização. Depois vem
alguma fraternidade disciplinando tudo, ensinando você a ser dervixe. Em
algum lugar perdido da Ásia Central, entre o Cazaquistão, o Uzbequistão, o
Turcomenistão, o Arzebaijão, sabe-se lá, eles vão treiná-lo até que você
repita exatamente os mesmos movimentos sincronizados, execute as
mesmas evoluções com perfeição. Não é que não haja conhecimento ali
(deve haver, e muito). No entanto, não é mais de conhecimento que se
trata. Os pássaros e os peixes fazem isso, apenas aglomerando,
enxameando,
imitando
(clonando),
enfim,
interagindo
com
os
semelhantes em seus mundos pequenos (amassados). E a forma como
eles expressam suas interações – por flocking ou shoaling – revela o
metabolismo do simbionte natural: apenas deixando acontecer. Trata-se
agora de fazer alguma coisa correspondente em relação à segunda criação
do mundo: o simbionte social. Como? Não se sabe. Você vai ter que
474
perguntar à rede-mãe. Para conversar com ela, você só precisa construir
interfaces. Ou melhor: você – a nuvem – só precisa ser interface.
A brincadeira e o jogo vão adquirindo outro status nos mundos altamente
conectados. Tudo vai virando jogo. Com a abolição do trabalho (repetitivo)
a atividade produtiva (inovadora) vai se exercendo como creative game e
vai materializando aquele sonho de Bob Black (1985) quando disse: “O que
eu gostaria realmente de ver acontecer é a transformação do trabalho em
jogo”. Social games vão substituindo os programas ditos sociais ou de
desenvolvimento. Ao contrário do que se pensou, social games não são
games virtuais coletivos – que pressupõem colaboração entre pessoas –
para serem jogados no mundo virtual, por meio de computadores ou
outros dispositivos interativos digitais. Social games são jogos instalados
na rede social, que "rodam" na própria rede social e que permitem
programá-la (ainda que possam ter um espelhamento no mundo virtual e
ser operados, em parte, por meio de computadores ou outros dispositivos
interativos digitais).
Sim, se você está disposto a ser um netweaver, você pode agora
programar na rede-mãe através da interface que construiu.
475
Pulando no abismo
Não existe o escolhido. Todos nós somos escolhidos quando colhidos por
fluzz
ESTE É UM TEXTO PARA NETWEAVERS. Ele contém uma espécie de
“linguagem de máquina”. Se você aprender essa linguagem poderá
programar na própria rede-mãe. Mas... atenção: nessa plataforma você só
pode programar com sua vida.
Para tanto, é justo o contrário do que lhe disseram na sociedade
hierárquica. Do que se trata é de perder sua vida, não de preservá-la, de
administrá-la, de programá-la, pré-traçando um caminho e monitorando
seu progresso nesse caminho rumo ao sucesso. É claro que você, se
quiser, pode fazer isso. Mas depois não reclame que não conseguiu
perder-se: e perder-se é o único modo de encontrar-se, aquele poético
“perder-se também é caminho” de Clarice Lispector é o caminho-fluzz,
quer dizer, o caminho-não-caminho (11). Ou na síntese tão perfeita de
Manoel de Barros (2010): “Livre, livre é quem não tem rumo” (12). E
depois não reclame que não acontece nada de interessante em sua vida: o
interessante é sempre o inesperado, não o programado (e, como dizia
Heráclito, “espere o inesperado ou você não o encontrará”) (13).
476
Ter essa atitude-fluzz é algo assim como usar aquele “Pó de Flu” – da série
Harry Potter de J. K. Rowling (1997-2007) – para se transportar para todos
os lugares que estiverem ligados à Floo Network; ou seja: ligar a
imaginação que voa. Para se comprometer com aves, como escreveu um
daqueles poetas que sabem tudo de redes (sim, fluzz se revela aos
poetas): “Os adejos mais raros se escondem nos emaranhos” (14).
Nos emaranhos, como diz um bom lema (recentemente capturado pelos
publicitários), você é o que você compartilha, ao se deixar varrer pelo
sopro, ao ser permeável ao fluxo.
Se você está esperando algum momento especial para que isso aconteça
na sua vida, fique sabendo que tal momento não existe. Você não precisa
aguardar a abertura de uma janela de oportunidade. Você não precisa se
preparar. Você não precisa galgar os degraus de um processo iniciático,
percorrer uma trilha oculta, aguardando pacientemente que alguma
burocracia espiritual lhe reconheça ou lhe escolha. Se lhe oferecerem esta
via, agradeça penhorado, mas diga que você está ocupado no momento
com uma coisa mais importante: ser uma pessoa comum.
Ao contrário do que Morpheus diz para Neo (15) em The Matrix (1999)
não há uma última chance. Enquanto você respirar, a chance estará
presente. E não existe o escolhido. Todos nós somos escolhidos quando
colhidos por fluzz. Independe do que você acredita ou queira acreditar.
Tanto faz. Não acredite em Morpheus, não acredite em nada – nem
mesmo no que você leu neste texto –, mas cante como Lennon &
McCartney Let it be e… pule no abismo. Seja um Meher Baba, assobie com
477
Bobby McFerrin Don’t worry, be happy e... salte na correnteza. Fale como
Yoda: Não tente, faça e... entregue-se ao nada (sim, ouça agora Morihei
Ueshiba, fundador do Aikido: “Aqueles que são possuídos pelo nada
possuem tudo”). Ou, como disse algures o Bhagwan Shree Rajneesh (mais
conhecido como Osho), “deixe de lado todas as ideologias, todas as
filosofias, todas as religiões, todos os sistemas de pensamento e penetre
no vazio”.
E agora? Você vai tomar a pílula azul ou a vermelha? Ora, talvez você não
precise escolher nenhuma das duas. Já não se trata bem de fazer escolhas.
Você pode se atirar no rio e... simplesmente deixar.
Mas como? – Depois de ler isso tudo ainda não sei bem o que é fluzz. Pois
é... Você ainda não entendeu que tem que pular no abismo?
478
Ah!... Os poetas, essas pessoas-fluzz
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio. Mais vale saber
passar silenciosamente... Fernando Pessoa (como Ricardo Reis, em
12/06/1914).
Você, o indivíduo, é a massa, o resultado da massa. Em nós, como você
descobrirá se entrar nisso profundamente, estão os muitos e o particular. É
como uma correnteza que está constantemente fluindo, deixando
pequenos
rodamoinhos
e
esses
rodamoinhos
chamamos
de
individualidade, mas eles são resultado deste constante fluxo de água.
Jiddu Krishnamurti em Ojai 1st Public Talk (1944).
Ser como o rio que deflui silencioso dentro da noite. Manoel Bandeira no
poema Rio, em Belo Belo (1948).
Não passamos de remoinhos num rio de água sempre a correr. Norbert
Wiener em Cibernética e sociedade (1950).
Somos o rio e também aquele grego que se olha no rio. Jorge Luis Borges
em São os rios, Os Conjurados (1985).
Deixe-me ser o que sou, o que sempre fui, um rio que vai fluindo. Mario
Quintana em Água: os últimos textos (2001).
479
Eu me atirei num rio... [e] simplesmente deixei. Mojud, personagem da
história sufi (s/d) “O homem cuja história era inexplicável”.
480
Notas e referências
(*) A palavra ‘fluzz’ nasceu de uma conversa informal do autor, no início
de 2010, com Marcelo Estraviz, sobre o Buzz do Google. O autor
observava que Buzz não captava adequadamente o fluxo da conversação,
argumentando que era necessário criar outro tipo de plataforma (i-based
e não p-based, quer dizer, baseada em interação, não em participação).
Marcelo Estraviz respondeu com a interjeição ‘fluzz’, na ocasião mais
como uma brincadeira, para tentar traduzir a idéia de Buzz+fluxo.
Ulteriormente a idéia foi desenvolvida no livro-mãe Fluzz: vida humana e
convivência social nos novos mundos altamente conectados do terceiro
milênio (2011) e passou a não ter muito a ver com o programa
malsucedido do Google. Fluzz (o fluxo interativo) é um conceito complexo,
sintético, que talvez possa ser captado pela seguinte passagem: “Tudo que
flui é fluzz. Tudo que fluzz flui. Fluzz é o fluxo, que não pode ser
aprisionado por qualquer mainframe. Porque fluzz é do metabolismo da
rede. Ah!, sim, redes são fluições. Fluzz evoca o curso constante que não se
expressa e que não pode ser sondado, nem sequer pronunciado do “lado
de fora” do abismo: onde habitamos. No “lado de dentro” do abismo não
há espaço nem tempo, ou melhor, há apenas o espaço-tempo dos fluxos. É
de lá que aquilo (aquele) que flui sem cessar faz brotar todos os mundos...
Em outras palavras, não existe uma mesma realidade para todos: são
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muitos os mundos. Tudo depende das fluições em que cada um se move,
dos emaranhamentos que se tramam, das configurações de interação que
se constelam e se desfazem, intermitentemente”.
(**) Este texto foi originalmente escrito e publicado em 2011 no livro
Fluzz: vida humana e convivência social nos novos mundos altamente
conectados do terceiro milênio. São Paulo: Escola de Redes, 2011.
(1) HERBERT, Frank (1976). Os Filhos de Duna. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1985.
(2) Como o Kinect, um dos maiores lançamentos da Microsoft em 2010.
(3) A psilocibina é um alcalóide encontrado em alguns cogumelos, de
estrutura molecular análoga à serotonina, e merece continuar sendo
estudada (assim como várias outras substâncias que alteram de alguma
forma a percepção ou aquilo que se chama de consciência, como as que
são misturadas para o preparo do chá ayahuasca). Cf. McKENNA, Terence
(1992). O alimento dos deuses. São Paulo: Nova Era, 1996.
(4) Os “midi-chlorians”, organismos microscópicos existentes nas células
dos seres vivos que facilitam a interação com a Força, introduzidos
tardiamente na série de George Lucas, no Episódio 1 (1999): “A Ameaça
Fantasma” (cf. BROOKS, Terry (1999). Star Wars – Episódio I: A Ameaça
Fantasma. São Paulo: Meia Sete Editora, 1999) talvez sejam uma evocação
conceitualmente menos adequada. Pois fluzz não é a força (Te). Fluzz é o
curso (Tao).
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(5) JOHNSON, Steven (2001). Emergência: a vida integrada de formigas,
cérebros, cidades e softwares. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.
(6) ARQUILLA, John e RONSFELD, David (2000). Swarming and the Future
of Conflict. USA: Rand Corporation, Office of the Secretary of Defense,
2000.
(7) O paper de John Arquilla e David Ronsfeld sobre swarming entre
humanos, infelizmente, estava mais voltado para a análise das suas
implicações na guerra. Quatro anos depois, em 11M: Redes para ganar
uma guerra, analisando a reação da sociedade espanhola aos atentados
terroristas cometidos pela Al-Qaida em 11 de Março de 2004, David de
Ugarte (2004) aventou a possibilidade de um swarming civil, mas ainda
nos marcos de um conflito (a netwar). Cf. UGARTE, David (2004). 11M.
Redes para ganar uma guerra. Barcelona: Icaria, 2006. Três anos depois,
em O Poder das Redes (2007), ele iria definir o swarming como “um novo
tipo de conflito multi-agente e multicanal, onde as relações entre os atores
parecem descrever a topologia de uma rede distribuída. O swarming é a
forma específica do conflito na sociedade-rede: distintos grupos e
tendências, não coordenados explicitamente entre si e apenas
centralizados um pouco além de uma mínima doutrina comum dentro das
fileiras de cada um deles, vão aumentando o alcance e a virulência de suas
ações, até isolar e encurralar as posições contrárias sem deixar-lhes
possibilidade real de resposta”.
(8) UGARTE, David (2007). O poder das redes. Porto Alegre: EdiPUCRS,
2008.
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(9) Cf. Sugatra Mitra: “The child-driven education” no TED Global 2010 no
link abaixo:
<http://www.ted.com/talks/lang/eng/sugata_mitra_the_child_driven_ed
ucation.html>
(10) Cf. depoimento de Steven Strogatz no filme Connected: the Power of
Six Degrees, dirigido por Annamaria Talas. BBC – TV ABC / Discovery
Science Channel, 2008. Disponível – com legendas em português – no link:
<http://escoladeredes.ning.com/video/o-poder-dos-seis-graus-1>
(11) LISPECTOR, Clarice (1969): Op. cit.
(12) BARROS, Manoel (2010). “Caderno de Aprendiz” in Menino do Mato:
Poesia Completa. São Paulo: Leya, 2010.
(13) Cf. von OECH, Roger (2001). Espere o inesperado ou você não o
encontrará. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2003.
(14) BARROS, Manoel (2010). Poesia Completa: Ed. cit.
(15) Morpheus in The Matrix (1999): “This is your last chance [Neo]. After
this, there is no turning back. You take the blue pill - the story ends, you
wake up in your bed and believe whatever you want to believe. You take
the red pill - you stay in Wonderland and I show you how deep the rabbithole goes”.
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Augusto de Franco é escritor, palestrante e consultor. É o criador e um
dos netweavers da Escola-de-Redes – uma rede de pessoas dedicadas à
investigação sobre redes sociais e à criação e transferência de tecnologias
de netweaving. É autor de mais de duas dezenas de livros sobre
desenvolvimento local, capital social, democracia e redes sociais.
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