A Natureza Judicial do Processo de Execução Fiscal Tese de Pós
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A Natureza Judicial do Processo de Execução Fiscal Tese de Pós
A Natureza Judicial do Processo de Execução Fiscal A Defesa da Jurisdicionalização da Execução Tese de Pós-Graduação em Direito Fiscal Manuel Filipe Pereira Martins Pinto 2011 PUBLICAÇÕES ONLINE FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DO PORTO A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução. Manuel Filipe Pereira Martins Pinto V Curso de Pós-Graduação em Direito Fiscal A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução. ÍNDICE Lista de Abreviaturas …………………………………………………………………… 3 Introdução ……………………………………………………………………….…….... 4 1 - O “sistema judicial” e o processo de execução fiscal ……………………..………… 6 2 – O âmbito do processo de execução fiscal ………………………………………..….. 6 3 - A competência para a execução fiscal ……………………………………….....……. 7 4 - A natureza do processo de execução fiscal na Lei Geral Tributária …………….….... 8 5 - Notas sobre o enquadramento sistemático do processo de execução fiscal ……….…. 9 6 - Jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo sobre a natureza dos actos praticados no processo de execução fiscal ………………………………………….....… 10 7 - O controlo judicial dos actos praticados pelo órgão de execução fiscal ……….....….. 15 8 - Jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a natureza do processo de execução fiscal …………………………………………………………………………………..…. 17 9 - O processo de execução fiscal e a Constituição da República Portuguesa ……...…… 19 Conclusão ……………………………………………..………………………..…..……. 28 Bibliografia …………………………………………………………………………..….. 30 Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2 A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução. LISTA DE ABREVIATURAS UTILIZADAS CC - Código Civil CEF - Centro de Estudos Fiscais Cfr - Conferir CPA – Código do Procedimento Administrativo CPC – Código de Processo Civil CPPT – Código do Procedimento e de Processo Tributário CPTA – Código de Processo nos Tribunais Administrativos CRP – Constituição da República Portuguesa DGCI – Direcção-Geral dos Impostos DL – Decreto-Lei ETAF – Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais LGT – Lei Geral Tributária MP – Ministério Público Ss - Seguintes STA – Supremo Tribunal Administrativo TC – Tribunal Constitucional Faculdade de Direito da Universidade do Porto 3 A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução. INTRODUÇÃO Seleccionar um tema para desenvolvimento de trabalho académico no âmbito do Direito Tributário não se afigura tarefa fácil, tal a quantidade e amplitude de questões que diariamente se apresentam como merecedoras de reflexão. A opção inicial foi escolher um tema relacionado com o procedimento e processo tributário, certamente motivada pelos afazeres profissionais do autor. Acresce, citando Glória Teixeira, que “No caso Português, a maioria das “causas fiscais” são perdidas ou ganhas com base em fundamentos procedimentais ou processuais (…) reservando-se o/a juiz a fundamentar formalmente a sua decisão, com base no código de procedimento e processo tributário. (…) Portugal possui problemas sérios, no âmbito da aplicação justiça e equidade fiscais, que terá de resolver num futuro próximo.”1 As hipóteses projectadas, parecendo muitas, reconduziam-se sempre à mesma questão final: o princípio da legalidade como primeiro e último princípio conformador da actividade da Administração Tributária. Quem são os actores do(s) procedimento(s) e processo(s) tributário(s), e quais os direitos e deveres respectivos? Quais os princípios e normas que estruturam o contencioso tributário, e em que termos o fazem? É a actividade procedimental, bem como a intervenção processual, desenvolvida pela Administração Tributária, absolutamente vinculada, ou importa perceber se existem e como se manifestam eventuais margens de discricionariedade? É, verdadeiramente, o processo tributário, um processo de partes? Quais as exigências e limites do dever ou do direito à fundamentação na actual sociedade da informação? Qual a linha que separa o dever de colaboração do comportamento abusivo? E qual o papel da jurisprudência: limita-se à correcta interpretação e aplicação da Lei Tributária, ou tende a substituir-se ao legislador e/ou à Administração? Facilmente se percebeu que tais reflexões não caberiam no âmbito de um trabalho de pós-graduação, por excesso, reservando-se o estudo do enquadramento daqueles (e outros) temas, em face dos princípios conformadores da actividade tributária, para eventual mestrado. Importou, então, não divergindo muito da essência temática referida, objectivar uma questão, em torno de um tipo processual específico. Uma questão que nos inquietasse. 1 Glória Teixeira, Manual de Direito Fiscal, 2ª Edição, Almedina, 2010, pág. 355 Faculdade de Direito da Universidade do Porto 4 A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução. Então, o que se propõe fazer, sem pretensiosismo, é reflectir um pouco sobre o processo de execução fiscal, com acento tónico na aparente incongruência existente entre a natureza judicial que a Lei Geral Tributária lhe atribui e a essência eminentemente administrativa que resulta da sua normal tramitação. Tenta-se perceber da natureza administrativa ou jurisdicional dos actos praticados no processo destinado à cobrança coerciva das dívidas tributárias, e da conformidade com a Constituição da República Portuguesa das disposições legais que conferem poderes à Administração Tributária para conduzir esse processo, em face do que se considera ser a reserva constitucional de jurisdição quanto à prática daqueles actos que, em particular, ofendem violentamente o património do executado. Far-se-á alusão a certa jurisprudência que, crê-se, contribui para alguma confusão conceptual em torno da questão da natureza do processo executivo fiscal, com indesejáveis efeitos práticos. Apesar da impossibilidade de aqui ser efectuado um estudo em termos de Direito Comparado, não deixará de ser tida em conta uma brevíssima nota comparativa, por oposição, com o sistema espanhol. Do que ficará exposto retirar-se-ão, a final, as necessárias conclusões. Reitera-se que o presente trabalho nunca deixará de ser uma mera tentativa de aproximação a um tema, dadas as limitações inerentes, por um lado, ao próprio tipo avaliativo da pós-graduação, mas, sobretudo, à modesta capacidade do autor perante tão profunda produção científica e abundante jurisprudência existentes. Uma nota final para realçar três particulares influências na realização deste trabalho, e deixar o respectivo agradecimento: À Professora Doutora Glória Teixeira, por incentivar à novidade, ao espírito crítico, e por reflectir essas características nas suas próprias publicações, em concreto quanto ao tema que nos propomos apresentar. Ao Professor Doutor Paulo Adragão, pelo ensinamento, que retemos, transmitido em sessão desta pós graduação, de que “o Direito não se confunde com a Lei”. Eterno. Finalmente, ao Dr. Domingos da Cruz Bernardino, pela decisiva influência na escolha e no enquadramento temático das questões suscitadas no presente trabalho, quer através da disponibilidade sempre manifestada em discuti-las, quer pelo apoio “logístico” prestado. Faculdade de Direito da Universidade do Porto 5 A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução. 1. O SISTEMA JUDICIAL E O PROCESSO DE EXECUÇÃO FISCAL Na falta de pagamento voluntário da prestação tributária, há que encontrar um meio, um procedimento (administrativo) ou um processo (judicial), que determine o devedor à satisfação da prestação em falta, através da execução dos seus bens. Para esta cobrança coerciva das dívidas tributárias temos dois possíveis sistemas: o sistema judicial, ou o sistema administrativo. A opção por um ou por outro relaciona-se, em cada país, com a evolução da Administração e do Direito Administrativo, e com as tensões, a que esteve sujeito o privilégio da autotutela, entre Poder Executivo e o Poder Judicial2. No sistema de cobrança coerciva judicial, a dívida tributária, apurada através do acto de liquidação, e não paga de forma voluntária, origina a execução do património do devedor através da actuação de um Tribunal, que é um órgão do Poder Judicial, após emissão e entrega pela Administração Tributária de um título executivo ao Tribunal. No sistema de cobrança coerciva administrativa é a mesma entidade, a própria Administração Tributária, que determina a prestação em dívida e se serve do título executivo que emite para executar ela própria o património do devedor. O ordenamento jurídico português adoptou o sistema judicial, instituindo o “processo de execução fiscal” como o meio de obter a cobrança coerciva das dívidas tributárias. Tal resulta do art. 103º da LGT, que atribui àquele processo natureza judicial. Porém, como veremos, pensamos que o nosso sistema denota algumas incongruências. 2. O ÂMBITO DO PROCESSO DE EXECUÇÃO FISCAL A cobrança coerciva das dívidas tributárias é realizada através do processo de execução fiscal, regulado nos arts. 103º da LGT e 148º e ss. do CPPT. O art. 148º do CPPT define o âmbito da execução fiscal. De acordo com este preceito, o processo de execução fiscal abrange a cobrança coerciva das seguintes dívidas: 2 António López Díaz, La recaudación de deudas tributarias en via de apremio, Instituto de Estúdios Fiscales / Marcial Pons, Madrid, 1992, pág. 147-148. Faculdade de Direito da Universidade do Porto 6 A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução. a) Tributos, incluindo impostos aduaneiros, especiais e extrafiscais, taxas, demais contribuições financeiras a favor do Estado, adicionais cumulativamente cobrados, juros e demais encargos legais; b) Coimas e outras sanções pecuniárias fixadas em decisões, sentenças ou acórdãos relativos a contra-ordenações tributárias, salvo quando aplicadas pelos tribunais comuns; c) Coimas e outras sanções pecuniárias decorrentes da responsabilidade civil determinada nos termos do Regime Geral das Infracções Tributárias; d) Nos casos expressamente previstos na lei, outras dívidas ao Estado e a outras pessoas colectivas de direito público que devam ser pagas por força de acto administrativo; e) Nos casos expressamente previstos na lei, reembolsos ou reposições. 3. A COMPETÊNCIA PARA A EXECUÇÃO FISCAL O art. 1º do CPPT determina o seu próprio âmbito de aplicação: a) ao procedimento tributário; b) ao processo judicial tributário; c) à cobrança coerciva das dívidas exigíveis em processo de execução fiscal; e d) aos recursos jurisdicionais. Relativamente à cobrança coerciva das dívidas exigíveis em processo de execução fiscal, resulta da alínea f) do nº 1 do art. 10º, bem como dos nº 1 e 4 do art. 88º do CPPT, que, findo o prazo de pagamento voluntário, compete aos serviços da Administração Tributária instaurar os processos de execução fiscal, após extracção de certidões de dívida, e realizar os actos a estes respeitantes.3 Exceptua dessa competência os actos (jurisdicionais) previstos no nº 1 do art. 151º do mesmo código, onde se determina que compete ao tribunal tributário de 1ª instância da área onde correr a execução decidir os incidentes, os embargos, a oposição, incluindo quando incida sobre os pressupostos da responsabilidade subsidiária, e a reclamação dos actos praticados pelos órgãos da execução fiscal.4 5 3 Considera-se órgão da execução fiscal o serviço da administração tributária onde deva legalmente correr a execução, ou, quando esta deva correr nos tribunais comuns, o tribunal competente – Cfr. art. 149º CPPT. Note-se o facto de, na actual redacção desta norma, dada pelo art. 126º da Lei nº 55-A/2010, de 31/12, ter desaparecido a verificação e graduação de créditos, bem como a natureza materialmente administrativa dos actos do órgão de execução fiscal reclamáveis. 5 A anulação da venda está integrada na competência dos tribunais tributários através da al. d) do nº 1 do art. 49º do ETAF 4 Faculdade de Direito da Universidade do Porto 7 A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução. Portanto, por via das regras da competência, pode a Administração Tributária, entre outros actos, verificar da exequibilidade da certidão de dívida, instaurar a execução, citar os executados, ordenar e proceder à penhora de bens, ordenar a venda e vender os bens penhorados, reverter a execução contra responsáveis subsidiários, convocar credores, verificar e graduar créditos, anular a dívida exequenda, extinguir a execução, declará-la em falhas, etc. Ora, como veremos, parece-nos que estes actos, ou, pelo menos alguns deles, pela gravidade que revestem, não deveriam ser subtraídos à esfera jurisdicional. 4. A NATUREZA DO PROCESSO DE EXECUÇÃO FISCAL NA LEI GERAL TRIBUTÁRIA O nº 1 do art. 103º da LGT determina que o processo de execução fiscal tem, unitária e integralmente6, natureza judicial. Esta disposição legal, assim reduzida, não encerraria em si mesmo qualquer problema, desde que coerentemente enquadrada no ordenamento jurídico português, ou, pelo menos, se reunisse uma possibilidade de concretização jurisprudencial pacífica. Mas não é o que se passa. Desde logo, porque, acto contínuo, o nº 1 da citada norma admite a participação dos órgãos da Administração Tributária nos actos que não tenham natureza jurisdicional. E, de seguida, o nº 2 garante aos interessados o direito de reclamação para o juiz da execução fiscal dos actos materialmente administrativos praticados por órgãos da Administração Tributária. Ou seja, atribui-se competência para a prática de actos administrativos na execução fiscal a órgãos não jurisdicionais, sendo perfeitamente possível e, até, normal, que o processo executivo fiscal se inicie e termine, como um procedimento administrativo, sem qualquer intervenção judicial concreta7. A coberto da Lei, o Estado8 intervém simultaneamente como credor e exequente, gozando, inclusivé, embora em casos 6 António Lima Guerreiro, Lei Geral Tributária Anotada, Editora Rei dos Livros, 2001, pág. 421. Ao que Domingos da Cruz Bernardino, com propriedade, se referiu como “A execução fiscal: processo judicial sem juiz”, como título de trabalho de investigação realizado no âmbito do programa de doutoramento Problemas e Perspectivas da Ciência Xuridica da Faculdade de Direito da Universidade de Santiago de Compostela. 8 No sentido amplo da Organização administrativa, não importando para o presente efeito a destrinça entre os diferentes créditos cobráveis através do processo de execução fiscal. 7 Faculdade de Direito da Universidade do Porto 8 A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução. limitados, da possibilidade de diferir a apreciação pelo tribunal de eventuais reclamações contra actos por si praticados na execução. Mais, ainda verifica e gradua, administrativamente, os créditos reclamados nas execuções fiscais que concretiza. Como compreender, então, esta natureza judicial que a LGT atribui ao processo de execução fiscal, se o esquema legal desenhado para a vida deste processo lhe dá um âmbito administrativo, aliás, assim empiricamente considerado pela generalidade dos cidadãos? 5. NOTAS SOBRE O ENQUADRAMENTO SISTEMÁTICO DO PROCESSO DE EXECUÇÃO FISCAL Para completar o enquadramento legal do processo de execução fiscal, torna-se pertinente fazer referência ao que se afiguram ser incongruências sistemáticas da Lei. A primeira, tem a ver com o facto de, apesar de o processo executivo fiscal ter natureza judicial, por via do art. 103º da LGT, o art. 1º do CPPT fazer a separação entre o âmbito do processo judicial tributário e o âmbito da cobrança coerciva das dívidas exigíveis em processo de execução fiscal, como se este último, afinal, não fosse um processo judicial. Depois, verifica-se que a LGT, no art. 101º, do capítulo II do Título IV, referente ao processo tributário, não inclui o processo de execução fiscal no elenco dos “meios processuais tributários”, parecendo querer fazer distinção entre “formas de processo” e “processo de execução”, em clara contradição de termos e de conceitos. De resto este artigo também não inclui, entre os “meios processuais tributários”, a oposição, os embargos de terceiro e outros incidentes. Ainda, o CPPT, se no art. 96º, nº 1, estabelece que “o processo judicial tributário tem por função a tutela plena, efectiva e em tempo útil dos direitos e interesses legalmente protegidos em matéria tributária”, não compreende no art. 97º o processo de execução fiscal como processo judicial tributário, mas apenas alguns incidentes do processo executivo.9 9 Oposição, embargos de terceiro e outros incidentes, bem como o recurso dos actos praticados na execução fiscal. Curiosamente, a alínea n) do art. 97º do CPPT inclui no processo judicial tributário “o recurso, no próprio processo, dos actos praticados na execução fiscal”, enquanto que a alínea o) inclui “a reclamação da decisão da verificação e graduação de créditos”. Parece-nos redundante, pois a primeira englobará a segunda. Faculdade de Direito da Universidade do Porto 9 A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução. Finalmente, a disciplina da execução fiscal consta de um Título autónomo no CPPT, o IV, afirmando-se, assim, a sua diversidade em relação ao processo judicial “normal”. Aparentemente, a Lei fiscal pretende o processo executivo fiscal como judicial, mas autonomiza-o, em termos sistemáticos, e atribui-lhe numerosos (excessivos, diremos) momentos administrativos autónomos. 6. JURISPRUDÊNCIA DO STA SOBRE A NATUREZA DOS ACTOS PRATICADOS NO PROCESSO DE EXECUÇÃO FISCAL Não tendo todos os actos praticados na execução fiscal a mesma natureza, vejamos o que nos diz alguma jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo a respeito das consequências dessa diferente natureza. Seleccionamos, em função da respectiva especificidade, três Acórdãos. Optamos, em grande parte, neste capítulo, pela transcrição, em face da exemplaridade das exposições. O Acórdão de 02-02-2011, proferido no processo nº 08/11, tendo por controvertido um despacho de revogação da suspensão da execução fiscal, reclamado nos termos dos art. 276º e ss. do CPPT, revela-nos a distinção entre acto de trâmite e acto administrativo, considerando, em relação a este último, haver lugar a audição prévia nos termos dos art. 100.º do CPA e 60.º da LGT. O respectivo sumário esclarece quase tudo: “I - O despacho que suspende execução fiscal define-se como um acto administrativo em matéria tributária e não como mero acto de trâmite, uma vez que não se confina nos estreitos limites da ordenação intraprocessual, antes projecta externamente efeitos jurídicos numa situação individual e concreta. II - Em face dessa definição como acto administrativo, o despacho que posteriormente o revogue tem necessariamente de respeitar o prazo de 10 dias que resulta dos artigos 141º do CPA e 277.º do CPPT, sendo ainda exigível a audição prévia do executado no termos dos artigos 100.º do CPA e 60.º da LGT.” Decidiu-se, neste Acórdão, que o despacho revogatório objecto de reclamação se qualifica como verdadeiro acto administrativo em matéria tributária, e não como mero acto Faculdade de Direito da Universidade do Porto 10 A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução. de trâmite, uma vez que não se confina nos estreitos limites da ordenação intraprocessual, antes projectam externamente efeitos jurídicos numa situação individual e concreta - cfr. artigo 120 do CPA. E, “como se trata de um acto administrativo definidor de uma situação jurídica que no caso é desfavorável ao contribuinte, impunha-se a sua prévia audição, de acordo com o estatuído nos artigos 100.º do CPA e 60.º da LGT.” Portanto, este Acórdão considera, para a possibilidade de revogação de actos administrativos inválidos praticados na execução fiscal, o prazo de 10 dias, por força dos art. 141º do CPA e 277º do CPPT. Tal como considera, em relação aos actos administrativos praticados na execução fiscal, a imposição de audição prévia, por aplicação dos art. 100º do CPA e 60º da LGT, este último, note-se, inserido no capítulo da LGT respeitante às regras gerais do procedimento tributário. No Acórdão de 26-05-2010, proferido no processo nº 0343/10, a propósito do despacho de reversão, o alcance da leitura jurisprudencial relativamente à natureza e ao trânsito em julgado dos actos praticados no processo de execução fiscal foi mais longe. Vejamos o seu sumário: “I - O processo de execução fiscal tem natureza judicial, podendo a AT nele praticar actos desde que não tenham natureza jurisdicional, já que os actos de natureza jurisdicional susceptíveis de ser praticados no processo de execução estão fora dessa previsão por não serem da competência da Administração (artigo 103.º, n.º 1 da LGT). II - O despacho de reversão como, de resto, outros proferidos pelo órgão de execução fiscal, designadamente, aquele em que se ordena a instauração da execução, a citação dos executados, etc., não são mais que puros actos de trâmite, de tramitação da execução fiscal, não incluídos consequentemente no âmbito do artigo 120.º do CPA. III - O despacho de reversão, atenta a sua natureza, não está, pois, abrangido pela força do caso julgado, pois este só se forma sobre decisões judiciais (artigos 671.º e 672.º do CPC). IV - Do mesmo modo, pela mesma razão de não se tratar de uma decisão judicial, não lhe é aplicável o disposto no artigo 666.º do CPC sobre o esgotamento do poder jurisdicional.” Faculdade de Direito da Universidade do Porto 11 A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução. Este Acórdão, considerando que o acto/despacho que ordena o prosseguimento da execução fiscal contra o revertido não tem natureza jurisdicional, e “atendendo ao conceito definido no art. 120.º do CPA, consideram-se actos administrativos as «decisões dos órgãos da Administração que ao abrigo de normas de direito público visem produzir efeitos jurídicos numa situação individual e concreta»”, (…) decide que, “em rigor, o acto em causa não se trata de um acto administrativo verdadeiro e próprio.” E continua, “Pelo contrário, tal acto, como, de resto, outros proferidos pelo órgão de execução fiscal, designadamente, aquele em que se ordena a instauração da execução, a citação dos executados, a penhora dos bens, a venda dos bens penhorados, a anulação da venda, a anulação da dívida e a extinção da execução, ainda que sob controlo jurisdicional pela via da reclamação para o juiz competente, não serão mais que puros actos de trâmite, de tramitação da execução fiscal, não incluídos consequentemente no âmbito do artigo 120.º do CPA. Verdadeiros actos materialmente administrativos serão, antes e nomeadamente, os referentes à dação em pagamento, actos ministeriais sobre o pagamento em prestações, etc., ainda que aí sujeitos, não a recurso contencioso ou acção administrativa especial, mas à reclamação do artigo 276.º do CPPT, desde que praticados na execução fiscal. E, assim sendo, o despacho de reversão, como qualquer outro acto de tramitação da execução fiscal que é, não está abrangido pela força do caso julgado, pois este só se forma sobre decisões judiciais (artigos 671.º e 672.º do CPC), sendo certo que (…) também não existe qualquer disposição legal que atribua idêntica força obrigatória aos actos administrativos. Do mesmo modo, pela mesma razão de não se tratar de uma decisão judicial, não lhe é aplicável o disposto no artigo 666.º do CPC sobre o esgotamento do poder jurisdicional. Ou seja, embora se reconheça em determinado momento não estarem verificados os pressupostos legais para se ordenar a reversão contra os eventuais responsáveis subsidiários, está afastada a possibilidade de se formar sobre tal questão caso julgado que obste à posterior reapreciação da mesma. (…) Por outro lado, não sendo em rigor um verdadeiro acto materialmente administrativo que está aqui em causa, nem sequer se tem que equacionar a legalidade da Faculdade de Direito da Universidade do Porto 12 A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução. sua revogação (…). Acresce que, sendo o processo de execução fiscal um processo cujo escopo jurídico é o de realizar coercivamente o direito de crédito de que goza o credor tributário, é evidente que enquanto este direito não se verificar extinto pode a AT prosseguir no intuito de cobrar a dívida exequenda, desde que verificados os respectivos pressupostos legais. Tal comportamento não afronta contra os princípios constitucionais do Estado de direito, da igualdade, da segurança, da tutela da confiança e da boa fé, consagrados nos artigos 2.º, 13.º e 266.º, n.º 1 da CRP, na medida em que (…) a reclamante foi devidamente notificada para exercer, querendo, o seu direito de audição e só depois foi efectivamente proferido o despacho contra o qual agora se insurge e que se mostra devidamente fundamentado nas normas legais que nele são indicadas.” Finalmente, o Acórdão proferido em 01-10-2008 no processo nº 0744/08 determinou que, “I - O prazo para revogação de um despacho proferido em execução fiscal pelo órgão da execução fiscal, em que declara prescrita a obrigação tributária exequenda, é o previsto no art. 277.º do CPPT. II - Não é aplicável no âmbito do processo de execução fiscal, o prazo de revogação que resulta do art. 141.º, n.º 1, do CPA, por remissão para o prazo do recurso contencioso ou acção administrativa especial de actos anuláveis.” E explica: “O reconhecimento da prescrição da dívida exequenda pelo órgão da execução fiscal constitui um acto de natureza administrativa, pois engloba-se no conceito definido no art. 120.º do CPA, (…). Tratando-se de um acto administrativo, não está abrangido pela força do caso julgado, pois este só se forma sobre decisões judiciais (arts. 671.º e 672.º do CPC), inexistindo qualquer disposição legal que atribua idêntica força obrigatória aos actos administrativos, Por outro lado, pela mesma razão de não se tratar de uma decisão judicial, não é aplicável o disposto no art. 666.º do CPC, sobre o esgotamento do poder jurisdicional. Assim, tendo a prescrição sido reconhecida por acto administrativo, está afastada a possibilidade de se formar sobre ela caso julgado que obste à posterior reapreciação da Faculdade de Direito da Universidade do Porto 13 A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução. mesma questão. Os actos administrativos podem ser revogados, em determinadas condições (arts. 79.º, n.º 1, da LGT e 138.º e seguintes do CPA). (…) O regime da revogação dos actos inválidos consta do art. 141.º do CPA que estabelece o seguinte: 1 – Os actos administrativos que sejam inválidos só podem ser revogados com fundamento na sua invalidade e dentro do prazo do respectivo recurso contencioso ou até à resposta da entidade recorrida. 2 – Se houver prazos diferentes para o recurso contencioso, atender-se-á ao que terminar em último lugar. A regra que se extrai destas disposições é a de que os actos administrativos anuláveis podem ser revogados com fundamento em invalidade enquanto podem ser impugnados ou, se a impugnação for efectuada, até à resposta da entidade recorrida. Os actos administrativos praticados por órgãos da administração tributária no processo de execução fiscal não são impugnáveis através de recurso contencioso (actualmente, acção administrativa especial, por força do disposto no art. 191.º do CPTA), mas sim através de reclamação para o juiz, no próprio processo, nos termos dos arts. 103.º, n.º 2, da LGT e 97.º, n.º 1, alínea n), e 276.º a 278.º do CPPT). Por isso, as regras que constam daquele art. 141.º do CPA, ao serem aplicadas aos actos administrativos praticados no processo de execução fiscal terão de ser adaptadas em sintonia com o respectivo regime de impugnação. Nos termos do art. 277.º, n.ºs 2 e 3, do CPPT, os actos materialmente administrativos praticados no processo de execução fiscal podem ser impugnados no prazo de 10 dias. Se for apresentada reclamação nesse prazo, o acto impugnado pode ser revogado no prazo de 10 dias, a contar da apresentação da reclamação, se tiver sido praticado pelo órgão da execução fiscal, ou no prazo de 30 dias, se foi praticado por outra entidade da administração tributária. Assim, são estes prazos, mais curtos dos que o prazo geral de impugnação de actos administrativos anuláveis, os aplicáveis à revogação de actos materialmente administrativos praticados no processo de execução fiscal pela administração tributária. Estes prazos mais curtos de impugnação e de revogação (este idêntico àquele, à semelhança do que sucede no regime geral previsto no citado art. 141.º do CPA), quando Faculdade de Direito da Universidade do Porto 14 A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução. comparados com a regra de impugnação da generalidade actos anuláveis, explicam-se, desde logo, pela natureza do processo de execução fiscal como processo de natureza judicial, afirmada pelo art. 103.º, n.º 1 da LGT, pois também era de 10 dias o prazo de impugnação de decisões judiciais, fixado no art. 685.º, n.º 1, do CPC, antes da reforma operada pelo DL n.º 303/2007, de 24 de Agosto. (…)” Este Acórdão obteve um voto de vencido, o qual, admitindo a participação do MP no processo de execução fiscal com vista à impugnação de actos administrativos anuláveis na defesa da legalidade e da promoção do interesse público em matéria tributária, considerou que o prazo para tal intervenção seria o previsto no artº 58º, nº2, al. a) do CPTA, ou seja, o prazo de um ano. 7. O CONTROLO JUDICIAL DOS ACTOS PRATICADOS PELO ÓRGÃO DE EXECUÇÃO FISCAL Depois do que ficou exposto, importa referir o modo de controlo dos actos praticados pelo órgão de execução fiscal. Lebre de Freitas10 distingue “grau de intervenção do Tribunal”, como tendo a ver com a medida dos actos executivos praticados fora do Tribunal, de “grau de intervenção do Juiz”, que respeita à medida dos actos praticados ou supervisionados pelo Juiz dentro dos actos praticados no Tribunal. Posto isso, enquanto no processo de execução comum, apesar de haver actos que são da competência da secretaria e do solicitador de execução, cabe ao Juiz dirigir todo o processo, no processo de execução fiscal o Juiz apenas “tutela” a actividade da Administração Tributária11. Entenda-se, como já referido, que esta “tutela” implica um diminuto (a maior parte das vezes, inexistente), grau de intervenção do Tribunal no processo de execução fiscal, em conflito com a natureza legal do mesmo. O meio de controlo judicial dos actos praticados pelo órgão de execução fiscal, e que, por excelência, se não em exclusivo12, define a natureza judicial do processo, é a 10 José Lebre de Freitas, Os Paradigmas da Acção Executiva, Revista da Ordem dos Advogados, 2001, pág. 544 ss. Rui Duarte Morais, A Execução Fiscal, 2ª edição, Almedina, 2006, pág. 45. 12 Porque transversal a praticamente todo o processo. 11 Faculdade de Direito da Universidade do Porto 15 A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução. reclamação dos actos praticados pelos órgãos de execução fiscal, prevista na parte final do nº 1 do art. 151º e nos artº 276º a 278º do CPPT, bem como no nº 2 do artº 103º da LGT. Esses actos serão todos aqueles que o órgão da execução tem competência para praticar, com excepção dos actos de mero expediente, irrecorríveis pela sua natureza, nos termos gerais. A expressão “reclamação” pressupõe uma relação de dependência funcional entre a entidade reclamada e aquela a quem é dirigida a reclamação, o que é consentâneo com a natureza judicial unitária e integral do processo de execução fiscal que o arº 103º da LGT consagra. Se, ao invés, o CPPT consagrasse o termo “recurso” (dos actos praticados pelo órgão de execução fiscal), isso implicaria a existência de competências e procedimentos próprios da Administração, no âmbito dos quais praticaria actos administrativos susceptíveis de um controlo de legalidade. O problema, aqui, é que a lei fixa um regime regra de subida diferida da reclamação, apenas a final, depois da realização da penhora e da venda, procurando elencar, no nº 3 do art. 278º do CPPT, um número limitado (embora bastante abrangente, na prática) de situações em que a reclamação tem subida imediata para apreciação judicial. Rui Duarte Morais defende, a este propósito, que o que está em causa é um verdadeiro recurso, porque o Tribunal apenas aprecia, a posteriori, da legalidade da actuação de um ente administrativo. Isto porque, no seu entendimento, a verdadeira decisão sobre a reclamação será a proferida pelo exequente, nos termos do nº 2 do art. 277º do CPPT, ao decidir pela revogação ou manutenção do acto reclamado.13 Isabel Marques da Silva14 por sua vez, afirma que, na medida em que o CPPT determina o carácter excepcional da intervenção do Juiz no direito de reclamação e de recurso das decisões do órgão de execução fiscal, não contribui para justificar a natureza judicial do processo de execução fiscal, porque essa natureza implicaria que a direcção do processo coubesse a um Juiz ou, pelo menos, que este pudesse controlar a legalidade dos seus termos sempre que um interessado a solicitasse. Concordando com esta visão prática do actual regime desta figura processual, pensamos que, neste campo, se impõem alterações de regime, no sentido da consolidação 13 Rui Duarte Morais, obra citada, pág. 46 Isabel Marques da Silva, Algumas Considerações em torno do Código de Procedimento e de Processo Tributário, Cadernos de Justiça Administrativa, nº 23, 2000, pág. 16 ss. 14 Faculdade de Direito da Universidade do Porto 16 A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução. prática da natureza judicial do processo executivo fiscal, garantindo melhor protecção a todos cidadãos possivelmente afectados na execução fiscal. 8. JURISPRUDÊNCIA DO TC SOBRE A NATUREZA DO PROCESSO DE EXECUÇÃO FISCAL Como vimos, os actos de natureza administrativa são praticados no processo de execução fiscal pelos órgãos da Administração Tributária e os actos de natureza jurisdicional são praticados pelo Tribunal. Como refere Joaquim Freitas da Rocha, “está constitucionalmente vedada, em virtude do princípio da reserva da função jurisdicional (art. 202º da CRP), a prática de actos de natureza jurisdicional por órgãos administrativos pelo que se pode afirmar a regra de que qualquer resolução de um conflito de pretensões – em matéria tributária ou em qualquer outra matéria – deve ser efectuada, em última palavra, por um tribunal.”15 Daí a atribuição de competências ao tribunal efectuada no art. 151º do CPPT. Nas situações em que estão em causa actos materialmente jurisdicionais seria inconstitucional a sua prática por um órgão da Administração Tributária. O Tribunal Constitucional, no acórdão nº 80/2003, proferido em 12-02-2003 no processo nº 151/02, e no sentido de pronúncias anteriores16, analisou o problema da eventual inconstitucionalidade das normas que atribuem à Administração Tributária competência para a instauração e prática de actos no processo de execução fiscal, e considerou que, sendo o processo de execução fiscal “nuclearmente jurisdicional”, permite, na sua tramitação, a prática de actos que não têm que ser necessariamente praticados pelo Juiz, podendo ser praticados por funcionários da Administração, salvaguardada a possibilidade de sindicância pelo Juiz. Concluiu o Tribunal Constitucional, assim, pela constitucionalidade material e orgânica das normas que conferem aos órgãos da Administração competências para a prática de actos no processo de execução fiscal. 15 16 Joaquim Freitas da Rocha, Lições de Procedimento e Processo Tributário, 4ª Edição, Coimbra Editora, 2011, pág. 316 A título de exemplo, Acórdãos do Tribunal Constitucional nº 332/2001 e 152/2002. Faculdade de Direito da Universidade do Porto 17 A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução. Partindo de um elegante formalismo conceptual na distinção entre função jurisdicional e função administrativa17, ganhou assim terreno a “desjurisdicionalização” do processo executivo fiscal, só se obrigando a intervenção do Juiz (do Tribunal) quando é necessário dirimir litígios, podendo o processo executivo fiscal decorrer fora do Tribunal. Em resumo, a este propósito, retira-se do referido acórdão: “(…) a nossa lei fundamental não obriga a que todos os actos em que se desenrola o processo de execução fiscal devam ser obrigatoriamente praticados pelo juiz, pese embora a jurisprudência fiscal e, hoje, abertamente a Lei Geral Tributária (art.º 103º n.º 1), aprovada pelo Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de Outubro atribuam ao processo de execução fiscal "natureza judicial". O que a Constituição da República garante (art.º 103.º, n.º 3) é que "ninguém pode ser obrigado a pagar impostos … cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da lei", nela se compreendendo, evidentemente, tanto a cobrança voluntária, como a coerciva. Os actos de cobrança têm, pois, de fazer-se a coberto da lei. Mas dessa exigência constitucional não resulta que os actos que integram o processo de execução fiscal hajam de ser sempre praticados por um juiz. Ao incluir-se este tipo de processo entre os processos de natureza judicial, apenas se pretende afirmar que os conflitos de interesses que dentro dele se suscitem – mesmo que sejam emergentes, não só da actuação das partes ou até de terceiros no processo, como também de qualquer decisão que nele seja tomada pela administração fiscal, relativamente aos actos para cuja prática a lei lhe atribui competência –, serão sindicados, no próprio processo, sempre pelo juiz tributário. Sendo assim, a prática dos actos do processo de execução fiscal, de natureza não jurisdicional, bem pode ser confiada, segundo os próprios termos daquele art. 103.º, n.º 3 da Constituição à administração fiscal. Daí a razão de ser da ressalva feita no referido art.º 103º, n.º 2 da Lei Geral Tributária [o processo de execução fiscal tem natureza judicial,] sem prejuízo da participação dos órgãos da administração tributária nos actos que não tenham natureza jurisdicional". (…)” 17 A título de exemplo, sobre a questão do conceito a função jurisdicional versus função administrativa: os Acórdãos nº 225/95, 226/95, 269/95, 375/95 e 452/95, do Tribunal Constitucional, referidos no acórdão nº 80/2003 do mesmo Tribunal. Faculdade de Direito da Universidade do Porto 18 A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução. 9. O PROCESSO DE EXECUÇÃO FISCAL E A CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA PORTUGUESA Tanto no sistema judicial português como no sistema administrativo (vigente, por exemplo próximo, em Espanha) de cobrança coerciva de dívidas tributárias é permitido à Administração Tributária executar os seus próprios actos administrativos de liquidação. Reconhece-se, portanto, em ambos os sistemas, poderes de autotutela executiva à Administração. Mas, não merecendo controvérsia o facto de a Administração Tributária possuir o poder de autotutela declarativa, deverá a mesma possuir autotutela executiva? Entendemos que não. Está em causa a conformidade com a Constituição das normas que atribuem tais poderes executivos. Na jurisprudência constitucional espanhola o entendimento praticamente unânime é o da legitimidade da atribuição do poder de autotutela executiva à Administração Pública.18 Mas à existência do poder de autotutela executiva duas grandes questões se colocam: a da eventual incompatibilidade desse poder com a atribuição exclusiva de poder jurisdicional aos órgãos do Poder Judicial; e a da posição de supremacia que confere à Administração, pondo em causa o princípio da igualdade. O poder de autotutela executiva da Administração pode encontrar a sua razão de ser em mais do que um fundamento: na diferença de natureza dos poderes da Administração em face dos do Poder Judicial; na presunção de legalidade dos actos administrativos; na sede legal habilitadora desse poder; ou no princípio da eficácia administrativa, como faz a jurisprudência espanhola. Note-se, porém, que aquele poder, ao ser atribuído à Administração em obediência a um princípio matricial de eficácia, encerrado sobre si mesmo, promove a desmaterialização da separação de Poderes, permitindo à Administração intrometer-se no domínio do Poder Judicial, não só usurpando tarefas interpretativas que a este cabem, mas também subalternizando-o ao ponto de que aos tribunais nada mais poderá restar, neste 18 Matias Acebes Fernandez, Impugnación de la Providencia de Apremio, Byer Hnos. S.A., Col. Temas de Administración Local, Barcelona, 2000, pág.25-26. Faculdade de Direito da Universidade do Porto 19 A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução. âmbito, do que a mera aplicação da norma administrativa imposta pelo princípio da eficácia. 19 A defesa do poder de autotutela executiva da Administração, para se fundamentar em torno de puras razões de eficácia, antes de mais, precisa de justificar porque é que o regime de execução judicial não pode ser eficaz, ou porque é que não são ineficazes sistemas, como o francês, de execução judicial. Portanto, torna necessária uma definição legal das exigências do princípio da eficácia, nunca esquecendo que a “eficácia” sempre deverá estar limitada aprioristicamente pela ordem constitucional de reserva de atribuições do Poder Judicial. No máximo, a necessidade de “actuação eficaz” da Administração é algo a compatibilizar com a ordem de articulação dos diversos poderes constitucionalmente consagrados, como um fim derivado, e não um fim em si mesmo. Relembre-se que a Administração actua com vista à realização de fins públicos heteronomamente definidos. Pelo que as suas necessidades ou objectivos de eficácia nunca poderão ultrapassar a Legalidade necessária à própria existência da comunidade politicamente organizada. Há que entender a adequação à Constituição do poder de autotutela executiva da Administração, no domínio tributário, através da concepção do sistema jurídico no seu conjunto, não prejudicando o funcionamento nem da Administração, nem da Justiça, e tendo sempre como escopo os direitos fundamentais dos sujeitos passivos da execução. Nesta sede, entendemos ser defensável uma efectiva (re)jurisdicionalização da execução coactiva das (próprias) decisões da Administração Tributária.20 21 Foquemo-nos exclusivamente no modelo português: a execução fiscal, tal como existe, apesar de possuir natureza judicial, é, essencialmente, materialmente administrativa. Casalta Nabais22, a este título, considera que, muito embora a LGT, no seu art. 103º, disponha que o processo de execução fiscal tem natureza judicial, a verdade é que só em limitados casos é efectivamente judicial, já que essa judicialidade depende da prática (eventual, e, a maior parte das vezes inexistente) de algum dos actos jurisdicionais 19 Neste sentido, Santiago Muñoz Machado, La reserva de jurisdición, La Ley, Madrid, 1989. Acompanhando, no essencial, Domingos da Cruz Bernardino, trabalho citado, pág.31 ss. Refazendo o enquadramento geral do tema, Os próprios órgãos da Administração gozam da possibilidade de execução coactiva dos actos administrativos. Há uma autotutela declarativa, pois a Administração define em termos obrigatórios uma situação ou relação jurídico-administrativa concreta, sem necessitar que um tribunal, previamente, tenha definido essa situação. Por outro lado, há uma autotutela executiva, isto é, a Administração pode assegurar a execução coactiva das suas próprias decisões, sem ser preciso recorrer à via judicial: Nuno Vasconcelos Sousa, Direito Administrativo, Vol. I, Almeida & Leitão, Porto, 2001, págs 120-123 22 José Casalta Nabais, Direito Fiscal, Almedina, 2010, pág. 337 20 21 Faculdade de Direito da Universidade do Porto 20 A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução. previstos no nº 1 do art. 151º do CPPT. Por isso, considera, “não admira que os processos de execução fiscal se possam iniciar e concluir nos órgãos da execução fiscal sem intervenção dos tribunais tributários.” A autotutela executiva tributária constitui, a nosso ver, uma prerrogativa da Administração difícil de entender, do ponto de vista dos direitos dos executados, e que o art. 266º, nº 1 da CRP parece não permitir23. Note-se, aliás, que “o art. 268º, 3 e 4, só previu a autotutela declarativa, através da referência aos “actos administrativos”, pelo que a execução desses actos deveria seguir a via jurisdicional normal. Pelo menos, em matéria de direitos fundamentais, a execução deveria ser jurisdicional. O princípio da executoriedade não é mencionado entre os princípios gerais do CPA (arts. 3º a 12º)”24. Ainda, deve considerar-se que a exigência de eficácia da actividade administrativa (cfr. art. 266º, nº 1 e 267º, nº 2 da CRP, e art. 10º do CPA), por si só, não justifica qualquer “atropelo” a outros princípios que, por estruturantes, estão em escala de maior relevo. Será o caso do princípio da separação de poderes, de que emana a reserva de jurisdição (cfr. art. 111º, 202º, nº 1 e 2, 212, nº 3 e 268º, nº 4 da CRP). Vejamos: o processo de execução fiscal é um processo especial de execução para pagamento de quantia certa, por regra concretizado através da penhora e venda de bens do devedor. A competência última desse processo pertence a um Juiz, “o que parece dar tradução a uma das dimensões do direito de acesso ao direito e aos Tribunais, consagrado no art. 20º da CRP, em cujo âmbito se inclui o direito ao processo de execução como instrumento para a realização efectiva do direito, mas, também, o direito do executado à protecção perante uma execução injusta”25. O direito constitucional à execução é encarado na perspectiva do credor como um direito subjectivo público, por se dirigir contra o Estado, que detém o monopólio dos meios de coacção, direito que tem por objecto a obtenção da tutela judiciária pretendida26. Sendo o credor dos impostos o Estado (a Administração Tributária), poderíamos ser facilmente levados a pensar que não faria sentido o recurso aos Tribunais (o Estado a recorrer a si próprio, à sua vertente judicial) para a execução coerciva dos seus actos administrativos tributários. Por ser tradicionalmente reconhecido à Administração o 23 A Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos. 24 Nuno Vasconcelos Sousa, obra citada, pág.120-123, enunciando alguns argumentos utilizados pelos defensores, face à Constituição, da jurisdicionalização da execução. 25 Rui Duarte Morais, obra citada, pág. 39. 26 Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, Almedina, 2010, pág. 19 Faculdade de Direito da Universidade do Porto 21 A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução. privilégio de execução prévia, “entendido aqui na dimensão de lhe caber fazer executar coercivamente os seus próprios actos administrativos, dispor de uma autotutela executiva”, a questão que se coloca é se essa cobrança coerciva deverá efectivar-se através de um processo judicial, pelo poder judicial, ou através de um procedimento administrativo, pelo poder executivo.27 Entendido o processo de execução fiscal como um processo misto, por ter uma fase administrativa e uma fase judicial28, temos que os actos de natureza administrativa são nele praticados por elementos alheios ao Tribunal, os funcionários da Administração Fiscal, agindo no exercício de competências próprias, que decorrem da lei, hierarquicamente subordinados ao titular do órgão de execução, e não ao Juiz. A justificação para este fenómeno, mais uma vez, encontra eco em razões de eficácia, funcional e económica. Pensamos, todavia, que, tal como nos outros processos de execução que correm em outros tribunais, as admissíveis tarefas administrativas praticáveis no processo o deveriam ser por funcionários judiciais. Acompanhando Rui Duarte Morais29, “existe aqui um elemento perturbador: é o próprio exequente, a administração fiscal, quem pratica certos (a maioria) actos processuais. Aparentemente é ela que executa o seu próprio crédito. Esta aparência, muito embora não correspondendo no plano jurídico a uma confusão entre duas posições do Estado (Estado credor e Estado julgador), é indesejável pelo modo como prejudica a imagem pública dos Tribunais Tributários, muitas vezes visto pela opinião pública como um órgão mais da administração fiscal, que assim é entendida como julgando-se a si própria.” Aqui chegados, atentemos novamente nos supra referidos art. 10º, nº 1, al. f) e 151º, nº 1 do CPPT, para uma análise crítica quanto á (in)constitucionalidade material dessas normas no sentido da atribuição de poderes a órgãos da Administração Tributária para a prática de certos actos na execução fiscal. Humildemente, e apesar das já vistas pronúncias do Tribunal Constitucional em sentido contrário, afigura-se-nos que tais normas padecem de desconformidade com o princípio da separação de poderes, de que resulta a reserva de jurisdição, consagrada nos art. 111º, 202º, nº 1 e 2, 212º, nº 3 e 268º, nº 4 da CRP. 27 Rui Duarte Morais, obra citada, pág. 39-40 Acórdão de 19/02/1992, Acórdãos Doutrinais, nº 368/369, 1992, pág. 887 ss. 29 Rui Duarte Morais, obra citada, pág. 41. 28 Faculdade de Direito da Universidade do Porto 22 A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução. Isto porque, se alguns dos actos praticados pelo órgão de execução fiscal podem pacificamente aceitar-se como materialmente administrativos, a verdade é que, para a normal tramitação do processo executivo fiscal, actos há que não podem deixar de ser materialmente jurisdicionais. Porque o que está em causa é mais do que dirimir um litígio; está em causa o litígio em si. Há que efectivamente englobar na Jurisdição, num esquema em que se requer, no mínimo, um maior grau de intervenção do Juiz, os actos de verificação da exequibilidade do título executivo, o mandado de penhora, a venda de bens penhorados, a verificação e graduação de créditos e a efectivação da responsabilidade subsidiária. Ou seja, não se pretendendo discutir, neste âmbito, a judicialização completa do processo de execução fiscal, conferindo um grau máximo de intervenção do Tribunal, e tendo por base um critério de não ruptura completa com o sistema físico instituído, deverse-ia, pelo menos, a partir da atribuição ao processo de natureza judicial, aumentar esse grau de intervenção aos actos que materialmente o exigem. São actos susceptíveis de lesar irreparavelmente direitos constitucionalmente consagrados, como por exemplo o direito de propriedade (cfr. art. 62º CRP). Sem esquecer, com especial particularidade na sociedade da informação dos nossos dias, o direito ao bom nome (cfr. art. 26º CRP), perante uma execução, quantas vezes, injusta. Portanto, e não obstante a dificuldade, ou, até, impossibilidade, de fazer uma delimitação definitiva e estanque entre o que são actos materialmente jurisdicionais e actos materialmente administrativos30, o que se torna necessário considerar é que o processo de execução fiscal é, em si, um processo de natureza judicial porque é integrado por actos que, na sua maioria, visam dirimir um conflito de interesses, e porque está configurado, no CPPT, como um verdadeiro processo jurisdicional. A este respeito, atente-se que até à entrada em vigor da LGT não havia norma expressa a determinar a natureza judicial do processo de execução fiscal. No entanto, o CPPT, no seu art. 17º, com a epígrafe “Incompetência territorial em processo judicial”, faz referência, na al. b) do nº 2, à arguição de incompetência no processo de execução fiscal. Como refere, a propósito da acção executiva singular, Miguel Teixeira de Sousa, “A acção executiva enquadra-se, assim, na efectividade da tutela jurisdicional e na garantia 30 A este respeito, por exemplo, os Acórdãos do TC nº 190/02 e 963/96 Faculdade de Direito da Universidade do Porto 23 A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução. do acesso aos tribunais para a defesa dos direitos e interesses legítimos (art. 20º, nº 1 CRP).”31 Defende este autor, quanto à configuração do direito à execução, que ao Estado compete o exercício, através dos tribunais, da função jurisdicional, e se, na acção declarativa, se aceita que a lei ou as partes atribuam a um tribunal arbitral competência para a apreciação de um litígio (cfr. art. 209º, nº 2 CRP), o mesmo não sucede no âmbito da execução, onde o Estado goza de um monopólio absoluto32, pelo que “o direito de executar o património alheio não pode ser exercido sem o recurso à função jurisdicional e, em concreto, aos poderes de soberania do tribunal de execução.”33 No mesmo sentido, José Lebre de Freitas: “Não se trata já de declarar direitos, préexistentes ou a constituir. Trata-se, sim, de providenciar pela reparação material coactiva do direito do exequente.” Com a acção executiva, diz este autor, “passa-se da declaração concreta da norma jurídica para a sua actuação prática, mediante o mecanismo da garantia. Como tal, postula o emprego, efectivo ou potencial, da força por parte dum órgão do Estado, dotado de jus imperii.”34 E, prossegue, “A satisfação do credor na acção executiva é conseguida mediante a substituição do tribunal ao devedor”. “Esta actuação judicial visa a efectivação do direito e corresponde assim à realização duma função jurisdicional, sendo de rejeitar as concepções que, como a de ALLORIO, tendem a enquadrar a execução forçada fora do âmbito da jurisdição e porque fundamentalmente realizada através de actos materiais que não conduzem ao caso julgado, a qualificá-la como o exercício duma função administrativa, no âmbito da chamada jurisdição voluntária.”35 Os actos de execução, realce-se, não se resumem à mera prática de operações materiais. Essas operações são o resultado de um conjunto de juízos precedentes desenvolvidos no âmbito do ordenamento jurídico: “o juízo de qualificação da concreta situação que leva a Administração a adoptar medidas coactivas é um juízo jurídico.”36 Assim é nos actos de verificação da exequibilidade do título executivo, na penhora, na venda de bens penhorados, na verificação e graduação de créditos, e na efectivação da responsabilidade subsidiária, entre outros actos. 31 Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2ª Edição, Lex, Lisboa, 1997, pág. 603 Cfr. art. 30º da Lei da Arbitragem Voluntária, quanto à competência exclusiva do tribunal para a execução da decisão arbitral. 33 Miguel Teixeira de Sousa, obra citada, pág. 626 34 José Lebre de Freitas, A Acção Executiva Depois da reforma da reforma, 5ª Edição, Coimbra Editora, 2009, pág. 9 35 José Lebre de Freitas, A Acção Executiva Depois da reforma da reforma, 5ª Edição, Coimbra Editora, 2009, pág. 16 36 Neste sentido, Maria da Glória Ferreira Pinto, Breve Reflexão sobre a Execução coactiva dos Actos Administrativos, ESTUDOS – XX Aniversário do CEF, Vol. II, DGCI, 1983, pág. 565 32 Faculdade de Direito da Universidade do Porto 24 A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução. A penhora, sendo o acto judicial fundamental do processo de execução37, e que consiste numa apreensão judicial de bens, produz um conjunto de efeitos jurídicos que consistem na transferência para o tribunal dos poderes de gozo que integram o direito do executado, na ineficácia relativa dos actos dispositivos subsequentes e na constituição de preferência a favor do exequente.38 A venda executiva produz efeitos para além da esfera jurídica do executado.39 A efectivação da responsabilidade subsidiária, qual modificação subjectiva da instância, implica a ponderação de pressupostos com juízos de valor em relação ao conceito de culpa, iminentemente jurídico. Diríamos, até, que, mais do que ser um acto que necessita de ser devidamente fundamentado, é um acto que, em si, se traduz na própria fundamentação jurídica. A própria citação, enquanto fenómeno de chamamento dos responsáveis à execução, reveste momentos de complexo juízo jurídico, bastando para tal, a título de exemplo, pensar na complexidade da posição do cônjuge (co-executado ou terceiro?) daquele contra quem é instaurado o processo executivo, com os diferentes reflexos ao longo de toda a execução. Ora, estes actos, entre outros, conflituam com direitos subjectivos dos cidadãos que não podem deixar de estar protegidos, numa execução, pela chancela de uma decisão judicial, porque materialmente jurisdicionais, implicando a atribuição ao órgão de execução fiscal de poderes para a prática dos mesmos uma violação dos princípios constitucionais da separação de poderes e reserva de jurisdição, bem como do princípio do estado de direito democrático. Mas outros argumentos evidenciam a necessidade de devolução do processo executivo fiscal ao Tribunal. Do Acórdão proferido em 01-10-2008 no processo nº 0744/08, supra referido, retira-se que, “(…) como se constata pelo art. 9.º, n.º 4, do CPPT, ao Ministério Público e ao representante da Fazenda Pública é reconhecida legitimidade para intervenção apenas no «processo judicial tributário». Embora ao processo de execução fiscal seja reconhecida natureza judicial (art. 103.º, n.º 1, da LGT), o CPPT fornece um conceito de «processo judicial tributário» que não abrange a fase administrativa do processo de execução fiscal, 37 José Lebre de Freitas, A Acção Executiva Depois da reforma da reforma, 5ª Edição, Coimbra Editora, 2009, pág. 205-206 José Lebre de Freitas, A Acção Executiva Depois da reforma da reforma, 5ª Edição, Coimbra Editora, 2009, pág. 263-264 39 Cfr. Art. 824º do CC 38 Faculdade de Direito da Universidade do Porto 25 A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução. como se conclui do seu art. 97.º, em que se arrolam como meios processuais conexionados com o processo de execução fiscal englobados em tal conceito, apenas «o recurso, no próprio processo, dos actos praticados na execução fiscal» e «a oposição, os embargos de terceiros e outros incidentes e a verificação e graduação de créditos». No mesmo sentido de não se ter pretendido legislativamente admitir ao Ministério Público impugnar actos administrativos praticados no processo de execução fiscal, em defesa da legalidade, apontam os factos de essa impugnação apenas estar prevista para os «interessados» e para os que sejam afectados nos seus «direitos e interesses legítimos» (arts. 103.º, n.º 2, da LGT e 276.º do CPPT), qualificações que não são aplicáveis ao Ministério Público, quando não intervém na qualidade de representante de entidades que lhe incumba representar perante os Tribunais.” Portanto, em princípio, no processo de execução fiscal não existe intervenção nem do Ministério Público nem do Representante da Fazenda Pública. Sem intervenção normal, também, do Tribunal, dado que esta só existe de forma provocada em limitadas situações, há aqui uma clara violação de direitos fundamentais dos cidadãos, que ficam a descoberto da tutela judicial que é garantida pela plena jurisdição do tribunal e que permite a tomada de decisões justas no sentido da protecção dos direitos dos executados e restantes interessados.40 Quanto à reclamação dos actos do órgão de execução fiscal (art. 276º ss. do CPPT), embora a subida da imediata da reclamação, na prática processual, seja já a regra41, o facto é que o respectivo regime legal proporciona uma margem discricionária que pode originar a retenção indevida da reclamação, desprotegendo o interessado na necessária tutela judicial. Isto porque, está em causa, mais do que permitir a tutela judicial imediata relativamente aos actos elencados no art. 278º, nº 3 do CPPT, tutelar todo e qualquer acto/decisão que, por concretamente individualizável como atentatório de um direito particular, deve ser imediatamente apreciado pelo Tribunal. Ainda quanto a esta reclamação, note-se que, sendo a tutela proporcionada pelo Tribunal meramente anulatória, pode verificar-se o não acatamento substantivo da decisão judicial proferida, bastando para tal que o acto anulado não seja substituído por outro com o sentido que à sentença subjaz. 40 Cfr. Art. 99º da LGT e art. 13º do CPPT quanto ao princípio do inquisitório e respectiva plenitude dos poderes do juiz Neste sentido, Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário, Anotado e Comentado, Vol. II, Áreas Editora, 2007, pág. 666 ss., e Acórdão de 14-07-2010 do STA, proferido no processo nº 0547/10 41 Faculdade de Direito da Universidade do Porto 26 A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução. Relembre-se aqui a incerteza, que advém dos diferentes tipos (natureza) de actos admitidos na execução fiscal, quanto à revogabilidade desses actos, respectivos prazos e efeitos de caso julgado. O executado vive uma verdadeira incerteza quanto à sua protecção mediante um processo (in)justo. Tendo, ainda, em conta que as execuções fiscais, mantidas no domínio da Administração, se proporcionam à respectiva utilização, como instrumento de política financeira, por uma organização hierarquicamente dependente do Governo, evidencia-se, de forma que pensamos decisiva, a necessidade de desfazer a actual concentração de poderes, na Administração Tributária, de autotutela declarativa e autotutela executiva. Na douta Lição de Glória Teixeira, “Não existe, em nenhum ordenamento jurídico, ofensa mais grave à integridade patrimonial dos cidadãos do que a instauração de um processo executivo, que em países desenvolvidos aparece devidamente regulado e em conformidade com os princípios e liberdades fundamentais, nomeadamente o direito a um processo justo e imparcial que só aos tribunais compete.”42 Continua a autora, “Existe portanto uma clara divisão de poderes, não podendo o poder executivo interferir com o poder judicial”. E remata: “É, portanto, manifestamente inconstitucional o processo executivo fiscal português, devendo os cidadãos, em última instância, recorrer para o Tribunal dos Direitos Humanos em defesa dos seus direitos inalienáveis.” 42 Glória Teixeira, Manual de Direito Fiscal, 2ª Edição, Almedina, 2010, pág.362-363 Faculdade de Direito da Universidade do Porto 27 A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução. CONCLUSÃO 1- Na falta de pagamento voluntário da prestação tributária, há que determinar o devedor à satisfação da prestação em falta, através da execução dos seus bens. 2- No sistema de cobrança coerciva judicial, a dívida tributária, apurada através do acto de liquidação, e não paga de forma voluntária, origina a execução do património do devedor através da actuação do Tribunal, após emissão e entrega pela Administração Tributária de um título executivo ao Tribunal. 3- No sistema de cobrança coerciva administrativa, como o espanhol, é a mesma entidade, a própria Administração Tributária, que determina a prestação em dívida e se serve do título executivo que emite para executar ela própria o património do devedor. 4- O ordenamento jurídico português adoptou o sistema judicial, instituindo o processo de execução fiscal como o meio de obter a cobrança coerciva das dívidas tributárias. 5- Compete aos serviços da Administração Tributária instaurar os processos de execução fiscal, após extracção de certidões de dívida, e realizar os actos a estes respeitantes. 6- Exceptua-se dessa competência os actos jurisdicionais: os incidentes, os embargos, a oposição, incluindo quando incida sobre os pressupostos da responsabilidade subsidiária, a reclamação dos actos praticados pelos órgãos da execução fiscal e a anulação da venda. 7- Não merecendo controvérsia o facto de a Administração Tributária possuir o poder de autotutela declarativa, não deverá a mesma possuir autotutela executiva, dado que a atribuição desta à Administração Tributária, em obediência a um princípio de eficácia, promove a desmaterialização da separação de poderes, permitindo à Administração intrometer-se no domínio do Poder Judicial, subalternizando-o. 8- O processo de execução fiscal, apesar de possuir, por atribuição legal, natureza judicial, é, essencialmente, materialmente administrativo. Esta autotutela executiva tributária constitui uma prerrogativa da Administração que a CRP não permite, conflituando com o princípio da separação de poderes, de que emana a reserva de jurisdição. 9- Assim acontece com os actos de verificação da exequibilidade do título executivo, Faculdade de Direito da Universidade do Porto 28 A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução. citação, penhora, venda de bens penhorados, verificação e graduação de créditos, e efectivação da responsabilidade subsidiária, entre outros, que conflituam com direitos subjectivos dos cidadãos que não podem deixar de estar protegidos, numa execução, pela chancela de uma decisão judicial, porque materialmente jurisdicionais. 10- No processo de execução fiscal não existe intervenção nem do Ministério Público nem do Representante da Fazenda Pública, e o Tribunal só intervém, em limitadas situações, se provocado pelo executado ou terceiro interessado, em clara violação de direitos fundamentais dos cidadãos, que na execução ficam, na prática, a descoberto da tutela judicial. 11- O regime da reclamação dos actos do órgão de execução fiscal pode originar a retenção indevida da reclamação, desprotegendo o interessado na necessária tutela judicial, quando o que se impõe é que qualquer decisão concretamente individualizável como atentatória de um direito particular, na execução, deve ser imediatamente apreciada pelo Tribunal. 12- Da qualificação dos diferentes tipos e natureza dos actos admitidos na execução fiscal advém uma grande incerteza quanto ao regime da revogabilidade desses actos, respectivos prazos, e efeito de caso julgado, o que seria obviado com a jurisdicionalização da execução. 13- A execução fiscal proporciona-se à respectiva utilização como instrumento de política financeira, porque é tramitada, em princípio integralmente, por uma organização hierarquicamente dependente do Governo. 14- É necessário desfazer a actual concentração dos poderes, na Administração Tributária, de autotutela declarativa e autotutela executiva, ou, no mínimo, jurisdicionalizar os referidos actos executivos materialmente jurisdicionais, cuja atribuição pelas leis da competência à prática da Administração Tributária se afigura inconstitucional. Faculdade de Direito da Universidade do Porto 29 A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução. BIBLIOGRAFIA Andrade, José Carlos Vieira de, A Justiça Administrativa (Lições), Almedina, 2009 Bernardino, Domingos da Cruz, A Execução Fiscal: Processo Judicial Sem Juiz, Trabalho de investigação no âmbito do programa de doutoramento Problemas e Perspectivas da Ciencia Xurídica, Universidade de Santiago de Compostela Campos, Diogo Leite de; Rodrigues, Benjamim Silva; Sousa, Jorge Lopes de, Lei Geral Tributária comentada e anotada, Vislis Editores, 2003 Díaz, António López, La recaudación de deudas tributarias en vía de apremio, Instituto de Estúdios Fiscales : Marcial Pons, Ediciones Jurídicas, Madrid, 1992 Fernandez, Matias Acebes, Impugnación de la Providencia de Apremio, Byer Hnos. S.A., Col. 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