A Natureza Judicial do Processo de Execução Fiscal Tese de Pós

Transcrição

A Natureza Judicial do Processo de Execução Fiscal Tese de Pós
A Natureza Judicial do Processo de Execução Fiscal
A Defesa da Jurisdicionalização da Execução
Tese de Pós-Graduação em Direito Fiscal
Manuel Filipe Pereira Martins Pinto
2011
PUBLICAÇÕES
ONLINE
FACULDADE DE DIREITO
DA UNIVERSIDADE DO PORTO
A natureza judicial do processo de execução fiscal.
A defesa da jurisdicionalização da execução.
Manuel Filipe Pereira Martins Pinto
V Curso de Pós-Graduação em Direito Fiscal
A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução.
ÍNDICE
Lista de Abreviaturas …………………………………………………………………… 3
Introdução ……………………………………………………………………….…….... 4
1 - O “sistema judicial” e o processo de execução fiscal ……………………..………… 6
2 – O âmbito do processo de execução fiscal ………………………………………..….. 6
3 - A competência para a execução fiscal ……………………………………….....……. 7
4 - A natureza do processo de execução fiscal na Lei Geral Tributária …………….….... 8
5 - Notas sobre o enquadramento sistemático do processo de execução fiscal ……….…. 9
6 - Jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo sobre a natureza dos actos
praticados no processo de execução fiscal ………………………………………….....… 10
7 - O controlo judicial dos actos praticados pelo órgão de execução fiscal ……….....….. 15
8 - Jurisprudência do Tribunal Constitucional sobre a natureza do processo de execução
fiscal …………………………………………………………………………………..…. 17
9 - O processo de execução fiscal e a Constituição da República Portuguesa ……...…… 19
Conclusão ……………………………………………..………………………..…..……. 28
Bibliografia …………………………………………………………………………..….. 30
Faculdade de Direito da Universidade do Porto
2
A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução.
LISTA DE ABREVIATURAS UTILIZADAS
CC - Código Civil
CEF - Centro de Estudos Fiscais
Cfr - Conferir
CPA – Código do Procedimento Administrativo
CPC – Código de Processo Civil
CPPT – Código do Procedimento e de Processo Tributário
CPTA – Código de Processo nos Tribunais Administrativos
CRP – Constituição da República Portuguesa
DGCI – Direcção-Geral dos Impostos
DL – Decreto-Lei
ETAF – Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais
LGT – Lei Geral Tributária
MP – Ministério Público
Ss - Seguintes
STA – Supremo Tribunal Administrativo
TC – Tribunal Constitucional
Faculdade de Direito da Universidade do Porto
3
A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução.
INTRODUÇÃO
Seleccionar um tema para desenvolvimento de trabalho académico no âmbito do
Direito Tributário não se afigura tarefa fácil, tal a quantidade e amplitude de questões que
diariamente se apresentam como merecedoras de reflexão.
A opção inicial foi escolher um tema relacionado com o procedimento e processo
tributário, certamente motivada pelos afazeres profissionais do autor. Acresce, citando
Glória Teixeira, que “No caso Português, a maioria das “causas fiscais” são perdidas ou
ganhas com base em fundamentos procedimentais ou processuais (…) reservando-se o/a
juiz a fundamentar formalmente a sua decisão, com base no código de procedimento e
processo tributário. (…) Portugal possui problemas sérios, no âmbito da aplicação justiça e
equidade fiscais, que terá de resolver num futuro próximo.”1
As hipóteses projectadas, parecendo muitas, reconduziam-se sempre à mesma
questão final: o princípio da legalidade como primeiro e último princípio conformador da
actividade da Administração Tributária. Quem são os actores do(s) procedimento(s) e
processo(s) tributário(s), e quais os direitos e deveres respectivos? Quais os princípios e
normas que estruturam o contencioso tributário, e em que termos o fazem? É a actividade
procedimental, bem como a intervenção processual, desenvolvida pela Administração
Tributária, absolutamente vinculada, ou importa perceber se existem e como se manifestam
eventuais margens de discricionariedade? É, verdadeiramente, o processo tributário, um
processo de partes? Quais as exigências e limites do dever ou do direito à fundamentação
na actual sociedade da informação? Qual a linha que separa o dever de colaboração do
comportamento abusivo? E qual o papel da jurisprudência: limita-se à correcta
interpretação e aplicação da Lei Tributária, ou tende a substituir-se ao legislador e/ou à
Administração?
Facilmente se percebeu que tais reflexões não caberiam no âmbito de um trabalho
de pós-graduação, por excesso, reservando-se o estudo do enquadramento daqueles (e
outros) temas, em face dos princípios conformadores da actividade tributária, para eventual
mestrado.
Importou, então, não divergindo muito da essência temática referida, objectivar
uma questão, em torno de um tipo processual específico. Uma questão que nos inquietasse.
1
Glória Teixeira, Manual de Direito Fiscal, 2ª Edição, Almedina, 2010, pág. 355
Faculdade de Direito da Universidade do Porto
4
A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução.
Então, o que se propõe fazer, sem pretensiosismo, é reflectir um pouco sobre o
processo de execução fiscal, com acento tónico na aparente incongruência existente entre a
natureza judicial que a Lei Geral Tributária lhe atribui e a essência eminentemente
administrativa que resulta da sua normal tramitação.
Tenta-se perceber da natureza administrativa ou jurisdicional dos actos praticados
no processo destinado à cobrança coerciva das dívidas tributárias, e da conformidade com
a Constituição da República Portuguesa das disposições legais que conferem poderes à
Administração Tributária para conduzir esse processo, em face do que se considera ser a
reserva constitucional de jurisdição quanto à prática daqueles actos que, em particular,
ofendem violentamente o património do executado.
Far-se-á alusão a certa jurisprudência que, crê-se, contribui para alguma confusão
conceptual em torno da questão da natureza do processo executivo fiscal, com indesejáveis
efeitos práticos.
Apesar da impossibilidade de aqui ser efectuado um estudo em termos de Direito
Comparado, não deixará de ser tida em conta uma brevíssima nota comparativa, por
oposição, com o sistema espanhol.
Do que ficará exposto retirar-se-ão, a final, as necessárias conclusões.
Reitera-se que o presente trabalho nunca deixará de ser uma mera tentativa de
aproximação a um tema, dadas as limitações inerentes, por um lado, ao próprio tipo
avaliativo da pós-graduação, mas, sobretudo, à modesta capacidade do autor perante tão
profunda produção científica e abundante jurisprudência existentes.
Uma nota final para realçar três particulares influências na realização deste
trabalho, e deixar o respectivo agradecimento:
À Professora Doutora Glória Teixeira, por incentivar à novidade, ao espírito crítico,
e por reflectir essas características nas suas próprias publicações, em concreto quanto ao
tema que nos propomos apresentar.
Ao Professor Doutor Paulo Adragão, pelo ensinamento, que retemos, transmitido
em sessão desta pós graduação, de que “o Direito não se confunde com a Lei”. Eterno.
Finalmente, ao Dr. Domingos da Cruz Bernardino, pela decisiva influência na
escolha e no enquadramento temático das questões suscitadas no presente trabalho, quer
através da disponibilidade sempre manifestada em discuti-las, quer pelo apoio “logístico”
prestado.
Faculdade de Direito da Universidade do Porto
5
A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução.
1. O SISTEMA JUDICIAL E O PROCESSO DE EXECUÇÃO FISCAL
Na falta de pagamento voluntário da prestação tributária, há que encontrar um
meio, um procedimento (administrativo) ou um processo (judicial), que determine o
devedor à satisfação da prestação em falta, através da execução dos seus bens.
Para esta cobrança coerciva das dívidas tributárias temos dois possíveis sistemas: o
sistema judicial, ou o sistema administrativo. A opção por um ou por outro relaciona-se,
em cada país, com a evolução da Administração e do Direito Administrativo, e com as
tensões, a que esteve sujeito o privilégio da autotutela, entre Poder Executivo e o Poder
Judicial2.
No sistema de cobrança coerciva judicial, a dívida tributária, apurada através do
acto de liquidação, e não paga de forma voluntária, origina a execução do património do
devedor através da actuação de um Tribunal, que é um órgão do Poder Judicial, após
emissão e entrega pela Administração Tributária de um título executivo ao Tribunal.
No sistema de cobrança coerciva administrativa é a mesma entidade, a própria
Administração Tributária, que determina a prestação em dívida e se serve do título
executivo que emite para executar ela própria o património do devedor.
O ordenamento jurídico português adoptou o sistema judicial, instituindo o
“processo de execução fiscal” como o meio de obter a cobrança coerciva das dívidas
tributárias. Tal resulta do art. 103º da LGT, que atribui àquele processo natureza judicial.
Porém, como veremos, pensamos que o nosso sistema denota algumas
incongruências.
2. O ÂMBITO DO PROCESSO DE EXECUÇÃO FISCAL
A cobrança coerciva das dívidas tributárias é realizada através do processo de
execução fiscal, regulado nos arts. 103º da LGT e 148º e ss. do CPPT.
O art. 148º do CPPT define o âmbito da execução fiscal. De acordo com este
preceito, o processo de execução fiscal abrange a cobrança coerciva das seguintes dívidas:
2
António López Díaz, La recaudación de deudas tributarias en via de apremio, Instituto de Estúdios Fiscales / Marcial Pons, Madrid,
1992, pág. 147-148.
Faculdade de Direito da Universidade do Porto
6
A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução.
a) Tributos, incluindo impostos aduaneiros, especiais e extrafiscais, taxas, demais
contribuições financeiras a favor do Estado, adicionais cumulativamente
cobrados, juros e demais encargos legais;
b) Coimas e outras sanções pecuniárias fixadas em decisões, sentenças ou
acórdãos relativos a contra-ordenações tributárias, salvo quando aplicadas pelos
tribunais comuns;
c) Coimas e outras sanções pecuniárias decorrentes da responsabilidade civil
determinada nos termos do Regime Geral das Infracções Tributárias;
d) Nos casos expressamente previstos na lei, outras dívidas ao Estado e a outras
pessoas colectivas de direito público que devam ser pagas por força de acto
administrativo;
e) Nos casos expressamente previstos na lei, reembolsos ou reposições.
3. A COMPETÊNCIA PARA A EXECUÇÃO FISCAL
O art. 1º do CPPT determina o seu próprio âmbito de aplicação: a) ao procedimento
tributário; b) ao processo judicial tributário; c) à cobrança coerciva das dívidas exigíveis
em processo de execução fiscal; e d) aos recursos jurisdicionais.
Relativamente à cobrança coerciva das dívidas exigíveis em processo de execução
fiscal, resulta da alínea f) do nº 1 do art. 10º, bem como dos nº 1 e 4 do art. 88º do CPPT,
que, findo o prazo de pagamento voluntário, compete aos serviços da Administração
Tributária instaurar os processos de execução fiscal, após extracção de certidões de dívida,
e realizar os actos a estes respeitantes.3
Exceptua dessa competência os actos (jurisdicionais) previstos no nº 1 do art. 151º
do mesmo código, onde se determina que compete ao tribunal tributário de 1ª instância da
área onde correr a execução decidir os incidentes, os embargos, a oposição, incluindo
quando incida sobre os pressupostos da responsabilidade subsidiária, e a reclamação dos
actos praticados pelos órgãos da execução fiscal.4 5
3
Considera-se órgão da execução fiscal o serviço da administração tributária onde deva legalmente correr a execução, ou, quando esta
deva correr nos tribunais comuns, o tribunal competente – Cfr. art. 149º CPPT.
Note-se o facto de, na actual redacção desta norma, dada pelo art. 126º da Lei nº 55-A/2010, de 31/12, ter desaparecido a verificação e
graduação de créditos, bem como a natureza materialmente administrativa dos actos do órgão de execução fiscal reclamáveis.
5
A anulação da venda está integrada na competência dos tribunais tributários através da al. d) do nº 1 do art. 49º do ETAF
4
Faculdade de Direito da Universidade do Porto
7
A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução.
Portanto, por via das regras da competência, pode a Administração Tributária, entre
outros actos, verificar da exequibilidade da certidão de dívida, instaurar a execução, citar
os executados, ordenar e proceder à penhora de bens, ordenar a venda e vender os bens
penhorados, reverter a execução contra responsáveis subsidiários, convocar credores,
verificar e graduar créditos, anular a dívida exequenda, extinguir a execução, declará-la em
falhas, etc.
Ora, como veremos, parece-nos que estes actos, ou, pelo menos alguns deles, pela
gravidade que revestem, não deveriam ser subtraídos à esfera jurisdicional.
4. A NATUREZA DO PROCESSO DE EXECUÇÃO FISCAL NA LEI
GERAL TRIBUTÁRIA
O nº 1 do art. 103º da LGT determina que o processo de execução fiscal tem,
unitária e integralmente6, natureza judicial.
Esta disposição legal, assim reduzida, não encerraria em si mesmo qualquer
problema, desde que coerentemente enquadrada no ordenamento jurídico português, ou,
pelo menos, se reunisse uma possibilidade de concretização jurisprudencial pacífica. Mas
não é o que se passa.
Desde logo, porque, acto contínuo, o nº 1 da citada norma admite a participação dos
órgãos da Administração Tributária nos actos que não tenham natureza jurisdicional. E, de
seguida, o nº 2 garante aos interessados o direito de reclamação para o juiz da execução
fiscal dos actos materialmente administrativos praticados por órgãos da Administração
Tributária.
Ou seja, atribui-se competência para a prática de actos administrativos na execução
fiscal a órgãos não jurisdicionais, sendo perfeitamente possível e, até, normal, que o
processo executivo fiscal se inicie e termine, como um procedimento administrativo, sem
qualquer intervenção judicial concreta7. A coberto da Lei, o Estado8 intervém
simultaneamente como credor e exequente, gozando, inclusivé, embora em casos
6
António Lima Guerreiro, Lei Geral Tributária Anotada, Editora Rei dos Livros, 2001, pág. 421.
Ao que Domingos da Cruz Bernardino, com propriedade, se referiu como “A execução fiscal: processo judicial sem juiz”, como título
de trabalho de investigação realizado no âmbito do programa de doutoramento Problemas e Perspectivas da Ciência Xuridica da
Faculdade de Direito da Universidade de Santiago de Compostela.
8
No sentido amplo da Organização administrativa, não importando para o presente efeito a destrinça entre os diferentes créditos
cobráveis através do processo de execução fiscal.
7
Faculdade de Direito da Universidade do Porto
8
A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução.
limitados, da possibilidade de diferir a apreciação pelo tribunal de eventuais reclamações
contra actos por si praticados na execução.
Mais, ainda verifica e gradua, administrativamente, os créditos reclamados nas
execuções fiscais que concretiza.
Como compreender, então, esta natureza judicial que a LGT atribui ao processo de
execução fiscal, se o esquema legal desenhado para a vida deste processo lhe dá um âmbito
administrativo, aliás, assim empiricamente considerado pela generalidade dos cidadãos?
5. NOTAS SOBRE O ENQUADRAMENTO SISTEMÁTICO DO
PROCESSO DE EXECUÇÃO FISCAL
Para completar o enquadramento legal do processo de execução fiscal, torna-se
pertinente fazer referência ao que se afiguram ser incongruências sistemáticas da Lei.
A primeira, tem a ver com o facto de, apesar de o processo executivo fiscal ter
natureza judicial, por via do art. 103º da LGT, o art. 1º do CPPT fazer a separação entre o
âmbito do processo judicial tributário e o âmbito da cobrança coerciva das dívidas
exigíveis em processo de execução fiscal, como se este último, afinal, não fosse um
processo judicial.
Depois, verifica-se que a LGT, no art. 101º, do capítulo II do Título IV, referente ao
processo tributário, não inclui o processo de execução fiscal no elenco dos “meios
processuais tributários”, parecendo querer fazer distinção entre “formas de processo” e
“processo de execução”, em clara contradição de termos e de conceitos. De resto este
artigo também não inclui, entre os “meios processuais tributários”, a oposição, os
embargos de terceiro e outros incidentes.
Ainda, o CPPT, se no art. 96º, nº 1, estabelece que “o processo judicial tributário
tem por função a tutela plena, efectiva e em tempo útil dos direitos e interesses legalmente
protegidos em matéria tributária”, não compreende no art. 97º o processo de execução
fiscal como processo judicial tributário, mas apenas alguns incidentes do processo
executivo.9
9
Oposição, embargos de terceiro e outros incidentes, bem como o recurso dos actos praticados na execução fiscal. Curiosamente, a
alínea n) do art. 97º do CPPT inclui no processo judicial tributário “o recurso, no próprio processo, dos actos praticados na execução
fiscal”, enquanto que a alínea o) inclui “a reclamação da decisão da verificação e graduação de créditos”. Parece-nos redundante, pois a
primeira englobará a segunda.
Faculdade de Direito da Universidade do Porto
9
A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução.
Finalmente, a disciplina da execução fiscal consta de um Título autónomo no
CPPT, o IV, afirmando-se, assim, a sua diversidade em relação ao processo judicial
“normal”. Aparentemente, a Lei fiscal pretende o processo executivo fiscal como judicial,
mas autonomiza-o, em termos sistemáticos, e atribui-lhe numerosos (excessivos, diremos)
momentos administrativos autónomos.
6. JURISPRUDÊNCIA DO STA SOBRE A NATUREZA DOS ACTOS
PRATICADOS NO PROCESSO DE EXECUÇÃO FISCAL
Não tendo todos os actos praticados na execução fiscal a mesma natureza, vejamos
o que nos diz alguma jurisprudência do Supremo Tribunal Administrativo a respeito das
consequências dessa diferente natureza. Seleccionamos, em função da respectiva
especificidade, três Acórdãos. Optamos, em grande parte, neste capítulo, pela transcrição,
em face da exemplaridade das exposições.
O Acórdão de 02-02-2011, proferido no processo nº 08/11, tendo por controvertido
um despacho de revogação da suspensão da execução fiscal, reclamado nos termos dos art.
276º e ss. do CPPT, revela-nos a distinção entre acto de trâmite e acto administrativo,
considerando, em relação a este último, haver lugar a audição prévia nos termos dos art.
100.º do CPA e 60.º da LGT.
O respectivo sumário esclarece quase tudo:
“I - O despacho que suspende execução fiscal define-se como um acto
administrativo em matéria tributária e não como mero acto de trâmite, uma vez que não se
confina nos estreitos limites da ordenação intraprocessual, antes projecta externamente
efeitos jurídicos numa situação individual e concreta.
II - Em face dessa definição como acto administrativo, o despacho que
posteriormente o revogue tem necessariamente de respeitar o prazo de 10 dias que resulta
dos artigos 141º do CPA e 277.º do CPPT, sendo ainda exigível a audição prévia do
executado no termos dos artigos 100.º do CPA e 60.º da LGT.”
Decidiu-se, neste Acórdão, que o despacho revogatório objecto de reclamação se
qualifica como verdadeiro acto administrativo em matéria tributária, e não como mero acto
Faculdade de Direito da Universidade do Porto
10
A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução.
de trâmite, uma vez que não se confina nos estreitos limites da ordenação intraprocessual,
antes projectam externamente efeitos jurídicos numa situação individual e concreta - cfr.
artigo 120 do CPA.
E, “como se trata de um acto administrativo definidor de uma situação jurídica que
no caso é desfavorável ao contribuinte, impunha-se a sua prévia audição, de acordo com o
estatuído nos artigos 100.º do CPA e 60.º da LGT.”
Portanto, este Acórdão considera, para a possibilidade de revogação de actos
administrativos inválidos praticados na execução fiscal, o prazo de 10 dias, por força dos
art. 141º do CPA e 277º do CPPT.
Tal como considera, em relação aos actos administrativos praticados na execução
fiscal, a imposição de audição prévia, por aplicação dos art. 100º do CPA e 60º da LGT,
este último, note-se, inserido no capítulo da LGT respeitante às regras gerais do
procedimento tributário.
No Acórdão de 26-05-2010, proferido no processo nº 0343/10, a propósito do
despacho de reversão, o alcance da leitura jurisprudencial relativamente à natureza e ao
trânsito em julgado dos actos praticados no processo de execução fiscal foi mais longe.
Vejamos o seu sumário:
“I - O processo de execução fiscal tem natureza judicial, podendo a AT nele
praticar actos desde que não tenham natureza jurisdicional, já que os actos de natureza
jurisdicional susceptíveis de ser praticados no processo de execução estão fora dessa
previsão por não serem da competência da Administração (artigo 103.º, n.º 1 da LGT).
II - O despacho de reversão como, de resto, outros proferidos pelo órgão de
execução fiscal, designadamente, aquele em que se ordena a instauração da execução, a
citação dos executados, etc., não são mais que puros actos de trâmite, de tramitação da
execução fiscal, não incluídos consequentemente no âmbito do artigo 120.º do CPA.
III - O despacho de reversão, atenta a sua natureza, não está, pois, abrangido pela
força do caso julgado, pois este só se forma sobre decisões judiciais (artigos 671.º e 672.º
do CPC).
IV - Do mesmo modo, pela mesma razão de não se tratar de uma decisão judicial,
não lhe é aplicável o disposto no artigo 666.º do CPC sobre o esgotamento do poder
jurisdicional.”
Faculdade de Direito da Universidade do Porto
11
A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução.
Este Acórdão, considerando que o acto/despacho que ordena o prosseguimento da
execução fiscal contra o revertido não tem natureza jurisdicional, e “atendendo ao conceito
definido no art. 120.º do CPA, consideram-se actos administrativos as «decisões dos
órgãos da Administração que ao abrigo de normas de direito público visem produzir
efeitos jurídicos numa situação individual e concreta»”, (…) decide que, “em rigor, o acto
em causa não se trata de um acto administrativo verdadeiro e próprio.”
E continua,
“Pelo contrário, tal acto, como, de resto, outros proferidos pelo órgão de execução
fiscal, designadamente, aquele em que se ordena a instauração da execução, a citação dos
executados, a penhora dos bens, a venda dos bens penhorados, a anulação da venda, a
anulação da dívida e a extinção da execução, ainda que sob controlo jurisdicional pela via
da reclamação para o juiz competente, não serão mais que puros actos de trâmite, de
tramitação da execução fiscal, não incluídos consequentemente no âmbito do artigo 120.º
do CPA.
Verdadeiros actos materialmente administrativos serão, antes e nomeadamente, os
referentes à dação em pagamento, actos ministeriais sobre o pagamento em prestações,
etc., ainda que aí sujeitos, não a recurso contencioso ou acção administrativa especial, mas
à reclamação do artigo 276.º do CPPT, desde que praticados na execução fiscal.
E, assim sendo, o despacho de reversão, como qualquer outro acto de tramitação da
execução fiscal que é, não está abrangido pela força do caso julgado, pois este só se forma
sobre decisões judiciais (artigos 671.º e 672.º do CPC), sendo certo que (…) também não
existe qualquer disposição legal que atribua idêntica força obrigatória aos actos
administrativos.
Do mesmo modo, pela mesma razão de não se tratar de uma decisão judicial, não
lhe é aplicável o disposto no artigo 666.º do CPC sobre o esgotamento do poder
jurisdicional.
Ou seja, embora se reconheça em determinado momento não estarem verificados os
pressupostos legais para se ordenar a reversão contra os eventuais responsáveis
subsidiários, está afastada a possibilidade de se formar sobre tal questão caso julgado que
obste à posterior reapreciação da mesma.
(…) Por outro lado, não sendo em rigor um verdadeiro acto materialmente
administrativo que está aqui em causa, nem sequer se tem que equacionar a legalidade da
Faculdade de Direito da Universidade do Porto
12
A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução.
sua revogação (…).
Acresce que, sendo o processo de execução fiscal um processo cujo escopo jurídico
é o de realizar coercivamente o direito de crédito de que goza o credor tributário, é
evidente que enquanto este direito não se verificar extinto pode a AT prosseguir no intuito
de cobrar a dívida exequenda, desde que verificados os respectivos pressupostos legais.
Tal comportamento não afronta contra os princípios constitucionais do Estado de
direito, da igualdade, da segurança, da tutela da confiança e da boa fé, consagrados nos
artigos 2.º, 13.º e 266.º, n.º 1 da CRP, na medida em que (…) a reclamante foi devidamente
notificada para exercer, querendo, o seu direito de audição e só depois foi efectivamente
proferido o despacho contra o qual agora se insurge e que se mostra devidamente
fundamentado nas normas legais que nele são indicadas.”
Finalmente, o Acórdão proferido em 01-10-2008 no processo nº 0744/08
determinou que,
“I - O prazo para revogação de um despacho proferido em execução fiscal pelo
órgão da execução fiscal, em que declara prescrita a obrigação tributária exequenda, é o
previsto no art. 277.º do CPPT.
II - Não é aplicável no âmbito do processo de execução fiscal, o prazo de revogação
que resulta do art. 141.º, n.º 1, do CPA, por remissão para o prazo do recurso contencioso
ou acção administrativa especial de actos anuláveis.”
E explica:
“O reconhecimento da prescrição da dívida exequenda pelo órgão da execução
fiscal constitui um acto de natureza administrativa, pois engloba-se no conceito definido no
art. 120.º do CPA, (…).
Tratando-se de um acto administrativo, não está abrangido pela força do caso
julgado, pois este só se forma sobre decisões judiciais (arts. 671.º e 672.º do CPC),
inexistindo qualquer disposição legal que atribua idêntica força obrigatória aos actos
administrativos,
Por outro lado, pela mesma razão de não se tratar de uma decisão judicial, não é
aplicável o disposto no art. 666.º do CPC, sobre o esgotamento do poder jurisdicional.
Assim, tendo a prescrição sido reconhecida por acto administrativo, está afastada a
possibilidade de se formar sobre ela caso julgado que obste à posterior reapreciação da
Faculdade de Direito da Universidade do Porto
13
A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução.
mesma questão.
Os actos administrativos podem ser revogados, em determinadas condições (arts.
79.º, n.º 1, da LGT e 138.º e seguintes do CPA).
(…) O regime da revogação dos actos inválidos consta do art. 141.º do CPA que
estabelece o seguinte:
1 – Os actos administrativos que sejam inválidos só podem ser revogados com
fundamento na sua invalidade e dentro do prazo do respectivo recurso contencioso ou até
à resposta da entidade recorrida.
2 – Se houver prazos diferentes para o recurso contencioso, atender-se-á ao que
terminar em último lugar.
A regra que se extrai destas disposições é a de que os actos administrativos
anuláveis podem ser revogados com fundamento em invalidade enquanto podem ser
impugnados ou, se a impugnação for efectuada, até à resposta da entidade recorrida.
Os actos administrativos praticados por órgãos da administração tributária no
processo de execução fiscal não são impugnáveis através de recurso contencioso
(actualmente, acção administrativa especial, por força do disposto no art. 191.º do CPTA),
mas sim através de reclamação para o juiz, no próprio processo, nos termos dos arts. 103.º,
n.º 2, da LGT e 97.º, n.º 1, alínea n), e 276.º a 278.º do CPPT).
Por isso, as regras que constam daquele art. 141.º do CPA, ao serem aplicadas aos
actos administrativos praticados no processo de execução fiscal terão de ser adaptadas em
sintonia com o respectivo regime de impugnação.
Nos termos do art. 277.º, n.ºs 2 e 3, do CPPT, os actos materialmente
administrativos praticados no processo de execução fiscal podem ser impugnados no prazo
de 10 dias. Se for apresentada reclamação nesse prazo, o acto impugnado pode ser
revogado no prazo de 10 dias, a contar da apresentação da reclamação, se tiver sido
praticado pelo órgão da execução fiscal, ou no prazo de 30 dias, se foi praticado por outra
entidade da administração tributária.
Assim, são estes prazos, mais curtos dos que o prazo geral de impugnação de actos
administrativos
anuláveis,
os
aplicáveis
à
revogação
de
actos
materialmente
administrativos praticados no processo de execução fiscal pela administração tributária.
Estes prazos mais curtos de impugnação e de revogação (este idêntico àquele, à
semelhança do que sucede no regime geral previsto no citado art. 141.º do CPA), quando
Faculdade de Direito da Universidade do Porto
14
A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução.
comparados com a regra de impugnação da generalidade actos anuláveis, explicam-se,
desde logo, pela natureza do processo de execução fiscal como processo de natureza
judicial, afirmada pelo art. 103.º, n.º 1 da LGT, pois também era de 10 dias o prazo de
impugnação de decisões judiciais, fixado no art. 685.º, n.º 1, do CPC, antes da reforma
operada pelo DL n.º 303/2007, de 24 de Agosto. (…)”
Este Acórdão obteve um voto de vencido, o qual, admitindo a participação do MP
no processo de execução fiscal com vista à impugnação de actos administrativos anuláveis
na defesa da legalidade e da promoção do interesse público em matéria tributária,
considerou que o prazo para tal intervenção seria o previsto no artº 58º, nº2, al. a) do
CPTA, ou seja, o prazo de um ano.
7. O CONTROLO JUDICIAL DOS ACTOS PRATICADOS PELO
ÓRGÃO DE EXECUÇÃO FISCAL
Depois do que ficou exposto, importa referir o modo de controlo dos actos
praticados pelo órgão de execução fiscal.
Lebre de Freitas10 distingue “grau de intervenção do Tribunal”, como tendo a ver
com a medida dos actos executivos praticados fora do Tribunal, de “grau de intervenção do
Juiz”, que respeita à medida dos actos praticados ou supervisionados pelo Juiz dentro dos
actos praticados no Tribunal.
Posto isso, enquanto no processo de execução comum, apesar de haver actos que
são da competência da secretaria e do solicitador de execução, cabe ao Juiz dirigir todo o
processo, no processo de execução fiscal o Juiz apenas “tutela” a actividade da
Administração Tributária11.
Entenda-se, como já referido, que esta “tutela” implica um diminuto (a maior parte
das vezes, inexistente), grau de intervenção do Tribunal no processo de execução fiscal, em
conflito com a natureza legal do mesmo.
O meio de controlo judicial dos actos praticados pelo órgão de execução fiscal, e
que, por excelência, se não em exclusivo12, define a natureza judicial do processo, é a
10
José Lebre de Freitas, Os Paradigmas da Acção Executiva, Revista da Ordem dos Advogados, 2001, pág. 544 ss.
Rui Duarte Morais, A Execução Fiscal, 2ª edição, Almedina, 2006, pág. 45.
12
Porque transversal a praticamente todo o processo.
11
Faculdade de Direito da Universidade do Porto
15
A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução.
reclamação dos actos praticados pelos órgãos de execução fiscal, prevista na parte final do
nº 1 do art. 151º e nos artº 276º a 278º do CPPT, bem como no nº 2 do artº 103º da LGT.
Esses actos serão todos aqueles que o órgão da execução tem competência para
praticar, com excepção dos actos de mero expediente, irrecorríveis pela sua natureza, nos
termos gerais.
A expressão “reclamação” pressupõe uma relação de dependência funcional entre a
entidade reclamada e aquela a quem é dirigida a reclamação, o que é consentâneo com a
natureza judicial unitária e integral do processo de execução fiscal que o arº 103º da LGT
consagra.
Se, ao invés, o CPPT consagrasse o termo “recurso” (dos actos praticados pelo
órgão de execução fiscal), isso implicaria a existência de competências e procedimentos
próprios da Administração, no âmbito dos quais praticaria actos administrativos
susceptíveis de um controlo de legalidade.
O problema, aqui, é que a lei fixa um regime regra de subida diferida da
reclamação, apenas a final, depois da realização da penhora e da venda, procurando
elencar, no nº 3 do art. 278º do CPPT, um número limitado (embora bastante abrangente,
na prática) de situações em que a reclamação tem subida imediata para apreciação judicial.
Rui Duarte Morais defende, a este propósito, que o que está em causa é um
verdadeiro recurso, porque o Tribunal apenas aprecia, a posteriori, da legalidade da
actuação de um ente administrativo. Isto porque, no seu entendimento, a verdadeira
decisão sobre a reclamação será a proferida pelo exequente, nos termos do nº 2 do art. 277º
do CPPT, ao decidir pela revogação ou manutenção do acto reclamado.13
Isabel Marques da Silva14 por sua vez, afirma que, na medida em que o CPPT
determina o carácter excepcional da intervenção do Juiz no direito de reclamação e de
recurso das decisões do órgão de execução fiscal, não contribui para justificar a natureza
judicial do processo de execução fiscal, porque essa natureza implicaria que a direcção do
processo coubesse a um Juiz ou, pelo menos, que este pudesse controlar a legalidade dos
seus termos sempre que um interessado a solicitasse.
Concordando com esta visão prática do actual regime desta figura processual,
pensamos que, neste campo, se impõem alterações de regime, no sentido da consolidação
13
Rui Duarte Morais, obra citada, pág. 46
Isabel Marques da Silva, Algumas Considerações em torno do Código de Procedimento e de Processo Tributário, Cadernos de Justiça
Administrativa, nº 23, 2000, pág. 16 ss.
14
Faculdade de Direito da Universidade do Porto
16
A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução.
prática da natureza judicial do processo executivo fiscal, garantindo melhor protecção a
todos cidadãos possivelmente afectados na execução fiscal.
8.
JURISPRUDÊNCIA
DO
TC
SOBRE
A
NATUREZA
DO
PROCESSO DE EXECUÇÃO FISCAL
Como vimos, os actos de natureza administrativa são praticados no processo de
execução fiscal pelos órgãos da Administração Tributária e os actos de natureza
jurisdicional são praticados pelo Tribunal.
Como refere Joaquim Freitas da Rocha, “está constitucionalmente vedada, em
virtude do princípio da reserva da função jurisdicional (art. 202º da CRP), a prática de
actos de natureza jurisdicional por órgãos administrativos pelo que se pode afirmar a regra
de que qualquer resolução de um conflito de pretensões – em matéria tributária ou em
qualquer outra matéria – deve ser efectuada, em última palavra, por um tribunal.”15
Daí a atribuição de competências ao tribunal efectuada no art. 151º do CPPT. Nas
situações em que estão em causa actos materialmente jurisdicionais seria inconstitucional a
sua prática por um órgão da Administração Tributária.
O Tribunal Constitucional, no acórdão nº 80/2003, proferido em 12-02-2003 no
processo nº 151/02, e no sentido de pronúncias anteriores16, analisou o problema da
eventual inconstitucionalidade das normas que atribuem à Administração Tributária
competência para a instauração e prática de actos no processo de execução fiscal, e
considerou que, sendo o processo de execução fiscal “nuclearmente jurisdicional”, permite,
na sua tramitação, a prática de actos que não têm que ser necessariamente praticados pelo
Juiz, podendo ser praticados por funcionários da Administração, salvaguardada a
possibilidade de sindicância pelo Juiz.
Concluiu o Tribunal Constitucional, assim, pela constitucionalidade material e
orgânica das normas que conferem aos órgãos da Administração competências para a
prática de actos no processo de execução fiscal.
15
16
Joaquim Freitas da Rocha, Lições de Procedimento e Processo Tributário, 4ª Edição, Coimbra Editora, 2011, pág. 316
A título de exemplo, Acórdãos do Tribunal Constitucional nº 332/2001 e 152/2002.
Faculdade de Direito da Universidade do Porto
17
A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução.
Partindo de um elegante formalismo conceptual na distinção entre função
jurisdicional e função administrativa17, ganhou assim terreno a “desjurisdicionalização” do
processo executivo fiscal, só se obrigando a intervenção do Juiz (do Tribunal) quando é
necessário dirimir litígios, podendo o processo executivo fiscal decorrer fora do Tribunal.
Em resumo, a este propósito, retira-se do referido acórdão:
“(…) a nossa lei fundamental não obriga a que todos os actos em que se desenrola o
processo de execução fiscal devam ser obrigatoriamente praticados pelo juiz, pese embora
a jurisprudência fiscal e, hoje, abertamente a Lei Geral Tributária (art.º 103º n.º 1),
aprovada pelo Decreto-Lei n.º 433/99, de 26 de Outubro atribuam ao processo de execução
fiscal "natureza judicial".
O que a Constituição da República garante (art.º 103.º, n.º 3) é que "ninguém pode
ser obrigado a pagar impostos … cuja liquidação e cobrança se não façam nos termos da
lei", nela se compreendendo, evidentemente, tanto a cobrança voluntária, como a coerciva.
Os actos de cobrança têm, pois, de fazer-se a coberto da lei.
Mas dessa exigência constitucional não resulta que os actos que integram o
processo de execução fiscal hajam de ser sempre praticados por um juiz.
Ao incluir-se este tipo de processo entre os processos de natureza judicial, apenas
se pretende afirmar que os conflitos de interesses que dentro dele se suscitem – mesmo que
sejam emergentes, não só da actuação das partes ou até de terceiros no processo, como
também de qualquer decisão que nele seja tomada pela administração fiscal, relativamente
aos actos para cuja prática a lei lhe atribui competência –, serão sindicados, no próprio
processo, sempre pelo juiz tributário.
Sendo assim, a prática dos actos do processo de execução fiscal, de natureza não
jurisdicional, bem pode ser confiada, segundo os próprios termos daquele art. 103.º, n.º 3
da Constituição à administração fiscal. Daí a razão de ser da ressalva feita no referido art.º
103º, n.º 2 da Lei Geral Tributária [o processo de execução fiscal tem natureza judicial,]
sem prejuízo da participação dos órgãos da administração tributária nos actos que não
tenham natureza jurisdicional". (…)”
17
A título de exemplo, sobre a questão do conceito a função jurisdicional versus função administrativa: os Acórdãos nº 225/95, 226/95,
269/95, 375/95 e 452/95, do Tribunal Constitucional, referidos no acórdão nº 80/2003 do mesmo Tribunal.
Faculdade de Direito da Universidade do Porto
18
A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução.
9. O PROCESSO DE EXECUÇÃO FISCAL E A CONSTITUIÇÃO DA
REPÚBLICA PORTUGUESA
Tanto no sistema judicial português como no sistema administrativo (vigente, por
exemplo próximo, em Espanha) de cobrança coerciva de dívidas tributárias é permitido à
Administração Tributária executar os seus próprios actos administrativos de liquidação.
Reconhece-se, portanto, em ambos os sistemas, poderes de autotutela executiva à
Administração.
Mas, não merecendo controvérsia o facto de a Administração Tributária possuir o
poder de autotutela declarativa, deverá a mesma possuir autotutela executiva? Entendemos
que não.
Está em causa a conformidade com a Constituição das normas que atribuem tais
poderes executivos.
Na jurisprudência constitucional espanhola o entendimento praticamente unânime é
o da legitimidade da atribuição do poder de autotutela executiva à Administração
Pública.18
Mas à existência do poder de autotutela executiva duas grandes questões se
colocam: a da eventual incompatibilidade desse poder com a atribuição exclusiva de poder
jurisdicional aos órgãos do Poder Judicial; e a da posição de supremacia que confere à
Administração, pondo em causa o princípio da igualdade.
O poder de autotutela executiva da Administração pode encontrar a sua razão de ser
em mais do que um fundamento: na diferença de natureza dos poderes da Administração
em face dos do Poder Judicial; na presunção de legalidade dos actos administrativos; na
sede legal habilitadora desse poder; ou no princípio da eficácia administrativa, como faz a
jurisprudência espanhola.
Note-se, porém, que aquele poder, ao ser atribuído à Administração em obediência
a um princípio matricial de eficácia, encerrado sobre si mesmo, promove a
desmaterialização da separação de Poderes, permitindo à Administração intrometer-se no
domínio do Poder Judicial, não só usurpando tarefas interpretativas que a este cabem, mas
também subalternizando-o ao ponto de que aos tribunais nada mais poderá restar, neste
18
Matias Acebes Fernandez, Impugnación de la Providencia de Apremio, Byer Hnos. S.A., Col. Temas de Administración Local,
Barcelona, 2000, pág.25-26.
Faculdade de Direito da Universidade do Porto
19
A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução.
âmbito, do que a mera aplicação da norma administrativa imposta pelo princípio da
eficácia. 19
A defesa do poder de autotutela executiva da Administração, para se fundamentar
em torno de puras razões de eficácia, antes de mais, precisa de justificar porque é que o
regime de execução judicial não pode ser eficaz, ou porque é que não são ineficazes
sistemas, como o francês, de execução judicial. Portanto, torna necessária uma definição
legal das exigências do princípio da eficácia, nunca esquecendo que a “eficácia” sempre
deverá estar limitada aprioristicamente pela ordem constitucional de reserva de atribuições
do Poder Judicial.
No máximo, a necessidade de “actuação eficaz” da Administração é algo a
compatibilizar com a ordem de articulação dos diversos poderes constitucionalmente
consagrados, como um fim derivado, e não um fim em si mesmo.
Relembre-se que a Administração actua com vista à realização de fins públicos
heteronomamente definidos. Pelo que as suas necessidades ou objectivos de eficácia nunca
poderão ultrapassar a Legalidade necessária à própria existência da comunidade
politicamente organizada.
Há que entender a adequação à Constituição do poder de autotutela executiva da
Administração, no domínio tributário, através da concepção do sistema jurídico no seu
conjunto, não prejudicando o funcionamento nem da Administração, nem da Justiça, e
tendo sempre como escopo os direitos fundamentais dos sujeitos passivos da execução.
Nesta sede, entendemos ser defensável uma efectiva (re)jurisdicionalização da
execução coactiva das (próprias) decisões da Administração Tributária.20 21
Foquemo-nos exclusivamente no modelo português: a execução fiscal, tal como
existe, apesar de possuir natureza judicial, é, essencialmente, materialmente administrativa.
Casalta Nabais22, a este título, considera que, muito embora a LGT, no seu art.
103º, disponha que o processo de execução fiscal tem natureza judicial, a verdade é que só
em limitados casos é efectivamente judicial, já que essa judicialidade depende da prática
(eventual, e, a maior parte das vezes inexistente) de algum dos actos jurisdicionais
19
Neste sentido, Santiago Muñoz Machado, La reserva de jurisdición, La Ley, Madrid, 1989.
Acompanhando, no essencial, Domingos da Cruz Bernardino, trabalho citado, pág.31 ss.
Refazendo o enquadramento geral do tema, Os próprios órgãos da Administração gozam da possibilidade de execução coactiva dos
actos administrativos. Há uma autotutela declarativa, pois a Administração define em termos obrigatórios uma situação ou relação
jurídico-administrativa concreta, sem necessitar que um tribunal, previamente, tenha definido essa situação. Por outro lado, há uma
autotutela executiva, isto é, a Administração pode assegurar a execução coactiva das suas próprias decisões, sem ser preciso recorrer à
via judicial: Nuno Vasconcelos Sousa, Direito Administrativo, Vol. I, Almeida & Leitão, Porto, 2001, págs 120-123
22
José Casalta Nabais, Direito Fiscal, Almedina, 2010, pág. 337
20
21
Faculdade de Direito da Universidade do Porto
20
A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução.
previstos no nº 1 do art. 151º do CPPT. Por isso, considera, “não admira que os processos
de execução fiscal se possam iniciar e concluir nos órgãos da execução fiscal sem
intervenção dos tribunais tributários.”
A autotutela executiva tributária constitui, a nosso ver, uma prerrogativa da
Administração difícil de entender, do ponto de vista dos direitos dos executados, e que o
art. 266º, nº 1 da CRP parece não permitir23.
Note-se, aliás, que “o art. 268º, 3 e 4, só previu a autotutela declarativa, através da
referência aos “actos administrativos”, pelo que a execução desses actos deveria seguir a
via jurisdicional normal. Pelo menos, em matéria de direitos fundamentais, a execução
deveria ser jurisdicional. O princípio da executoriedade não é mencionado entre os
princípios gerais do CPA (arts. 3º a 12º)”24.
Ainda, deve considerar-se que a exigência de eficácia da actividade administrativa
(cfr. art. 266º, nº 1 e 267º, nº 2 da CRP, e art. 10º do CPA), por si só, não justifica qualquer
“atropelo” a outros princípios que, por estruturantes, estão em escala de maior relevo. Será
o caso do princípio da separação de poderes, de que emana a reserva de jurisdição (cfr. art.
111º, 202º, nº 1 e 2, 212, nº 3 e 268º, nº 4 da CRP).
Vejamos: o processo de execução fiscal é um processo especial de execução para
pagamento de quantia certa, por regra concretizado através da penhora e venda de bens do
devedor. A competência última desse processo pertence a um Juiz, “o que parece dar
tradução a uma das dimensões do direito de acesso ao direito e aos Tribunais, consagrado
no art. 20º da CRP, em cujo âmbito se inclui o direito ao processo de execução como
instrumento para a realização efectiva do direito, mas, também, o direito do executado à
protecção perante uma execução injusta”25.
O direito constitucional à execução é encarado na perspectiva do credor como um
direito subjectivo público, por se dirigir contra o Estado, que detém o monopólio dos meios
de coacção, direito que tem por objecto a obtenção da tutela judiciária pretendida26.
Sendo o credor dos impostos o Estado (a Administração Tributária), poderíamos ser
facilmente levados a pensar que não faria sentido o recurso aos Tribunais (o Estado a
recorrer a si próprio, à sua vertente judicial) para a execução coerciva dos seus actos
administrativos tributários. Por ser tradicionalmente reconhecido à Administração o
23
A Administração Pública visa a prossecução do interesse público, no respeito pelos direitos e interesses legalmente protegidos dos
cidadãos.
24
Nuno Vasconcelos Sousa, obra citada, pág.120-123, enunciando alguns argumentos utilizados pelos defensores, face à Constituição,
da jurisdicionalização da execução.
25
Rui Duarte Morais, obra citada, pág. 39.
26
Fernando Amâncio Ferreira, Curso de Processo de Execução, Almedina, 2010, pág. 19
Faculdade de Direito da Universidade do Porto
21
A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução.
privilégio de execução prévia, “entendido aqui na dimensão de lhe caber fazer executar
coercivamente os seus próprios actos administrativos, dispor de uma autotutela executiva”,
a questão que se coloca é se essa cobrança coerciva deverá efectivar-se através de um
processo judicial, pelo poder judicial, ou através de um procedimento administrativo, pelo
poder executivo.27
Entendido o processo de execução fiscal como um processo misto, por ter uma fase
administrativa e uma fase judicial28, temos que os actos de natureza administrativa são nele
praticados por elementos alheios ao Tribunal, os funcionários da Administração Fiscal,
agindo no exercício de competências próprias, que decorrem da lei, hierarquicamente
subordinados ao titular do órgão de execução, e não ao Juiz. A justificação para este
fenómeno, mais uma vez, encontra eco em razões de eficácia, funcional e económica.
Pensamos, todavia, que, tal como nos outros processos de execução que correm em outros
tribunais, as admissíveis tarefas administrativas praticáveis no processo o deveriam ser por
funcionários judiciais.
Acompanhando Rui Duarte Morais29, “existe aqui um elemento perturbador: é o
próprio exequente, a administração fiscal, quem pratica certos (a maioria) actos
processuais. Aparentemente é ela que executa o seu próprio crédito. Esta aparência, muito
embora não correspondendo no plano jurídico a uma confusão entre duas posições do
Estado (Estado credor e Estado julgador), é indesejável pelo modo como prejudica a
imagem pública dos Tribunais Tributários, muitas vezes visto pela opinião pública como
um órgão mais da administração fiscal, que assim é entendida como julgando-se a si
própria.”
Aqui chegados, atentemos novamente nos supra referidos art. 10º, nº 1, al. f) e 151º,
nº 1 do CPPT, para uma análise crítica quanto á (in)constitucionalidade material dessas
normas no sentido da atribuição de poderes a órgãos da Administração Tributária para a
prática de certos actos na execução fiscal.
Humildemente, e apesar das já vistas pronúncias do Tribunal Constitucional em
sentido contrário, afigura-se-nos que tais normas padecem de desconformidade com o
princípio da separação de poderes, de que resulta a reserva de jurisdição, consagrada nos
art. 111º, 202º, nº 1 e 2, 212º, nº 3 e 268º, nº 4 da CRP.
27
Rui Duarte Morais, obra citada, pág. 39-40
Acórdão de 19/02/1992, Acórdãos Doutrinais, nº 368/369, 1992, pág. 887 ss.
29
Rui Duarte Morais, obra citada, pág. 41.
28
Faculdade de Direito da Universidade do Porto
22
A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução.
Isto porque, se alguns dos actos praticados pelo órgão de execução fiscal podem
pacificamente aceitar-se como materialmente administrativos, a verdade é que, para a
normal tramitação do processo executivo fiscal, actos há que não podem deixar de ser
materialmente jurisdicionais. Porque o que está em causa é mais do que dirimir um litígio;
está em causa o litígio em si.
Há que efectivamente englobar na Jurisdição, num esquema em que se requer, no
mínimo, um maior grau de intervenção do Juiz, os actos de verificação da exequibilidade
do título executivo, o mandado de penhora, a venda de bens penhorados, a verificação e
graduação de créditos e a efectivação da responsabilidade subsidiária.
Ou seja, não se pretendendo discutir, neste âmbito, a judicialização completa do
processo de execução fiscal, conferindo um grau máximo de intervenção do Tribunal, e
tendo por base um critério de não ruptura completa com o sistema físico instituído, deverse-ia, pelo menos, a partir da atribuição ao processo de natureza judicial, aumentar esse
grau de intervenção aos actos que materialmente o exigem.
São actos susceptíveis de lesar irreparavelmente direitos constitucionalmente
consagrados, como por exemplo o direito de propriedade (cfr. art. 62º CRP). Sem esquecer,
com especial particularidade na sociedade da informação dos nossos dias, o direito ao bom
nome (cfr. art. 26º CRP), perante uma execução, quantas vezes, injusta. Portanto, e não
obstante a dificuldade, ou, até, impossibilidade, de fazer uma delimitação definitiva e
estanque entre o que são actos materialmente jurisdicionais e actos materialmente
administrativos30, o que se torna necessário considerar é que o processo de execução fiscal
é, em si, um processo de natureza judicial porque é integrado por actos que, na sua maioria,
visam dirimir um conflito de interesses, e porque está configurado, no CPPT, como um
verdadeiro processo jurisdicional. A este respeito, atente-se que até à entrada em vigor da
LGT não havia norma expressa a determinar a natureza judicial do processo de execução
fiscal. No entanto, o CPPT, no seu art. 17º, com a epígrafe “Incompetência territorial em
processo judicial”, faz referência, na al. b) do nº 2, à arguição de incompetência no
processo de execução fiscal.
Como refere, a propósito da acção executiva singular, Miguel Teixeira de Sousa,
“A acção executiva enquadra-se, assim, na efectividade da tutela jurisdicional e na garantia
30
A este respeito, por exemplo, os Acórdãos do TC nº 190/02 e 963/96
Faculdade de Direito da Universidade do Porto
23
A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução.
do acesso aos tribunais para a defesa dos direitos e interesses legítimos (art. 20º, nº 1
CRP).”31
Defende este autor, quanto à configuração do direito à execução, que ao Estado
compete o exercício, através dos tribunais, da função jurisdicional, e se, na acção
declarativa, se aceita que a lei ou as partes atribuam a um tribunal arbitral competência
para a apreciação de um litígio (cfr. art. 209º, nº 2 CRP), o mesmo não sucede no âmbito
da execução, onde o Estado goza de um monopólio absoluto32, pelo que “o direito de
executar o património alheio não pode ser exercido sem o recurso à função jurisdicional e,
em concreto, aos poderes de soberania do tribunal de execução.”33
No mesmo sentido, José Lebre de Freitas: “Não se trata já de declarar direitos, préexistentes ou a constituir. Trata-se, sim, de providenciar pela reparação material coactiva
do direito do exequente.” Com a acção executiva, diz este autor, “passa-se da declaração
concreta da norma jurídica para a sua actuação prática, mediante o mecanismo da garantia.
Como tal, postula o emprego, efectivo ou potencial, da força por parte dum órgão do
Estado, dotado de jus imperii.”34 E, prossegue, “A satisfação do credor na acção executiva
é conseguida mediante a substituição do tribunal ao devedor”. “Esta actuação judicial visa
a efectivação do direito e corresponde assim à realização duma função jurisdicional, sendo
de rejeitar as concepções que, como a de ALLORIO, tendem a enquadrar a execução
forçada fora do âmbito da jurisdição e porque fundamentalmente realizada através de actos
materiais que não conduzem ao caso julgado, a qualificá-la como o exercício duma função
administrativa, no âmbito da chamada jurisdição voluntária.”35
Os actos de execução, realce-se, não se resumem à mera prática de operações
materiais. Essas operações são o resultado de um conjunto de juízos precedentes
desenvolvidos no âmbito do ordenamento jurídico: “o juízo de qualificação da concreta
situação que leva a Administração a adoptar medidas coactivas é um juízo jurídico.”36
Assim é nos actos de verificação da exequibilidade do título executivo, na penhora,
na venda de bens penhorados, na verificação e graduação de créditos, e na efectivação da
responsabilidade subsidiária, entre outros actos.
31
Miguel Teixeira de Sousa, Estudos sobre o Novo Processo Civil, 2ª Edição, Lex, Lisboa, 1997, pág. 603
Cfr. art. 30º da Lei da Arbitragem Voluntária, quanto à competência exclusiva do tribunal para a execução da decisão arbitral.
33
Miguel Teixeira de Sousa, obra citada, pág. 626
34
José Lebre de Freitas, A Acção Executiva Depois da reforma da reforma, 5ª Edição, Coimbra Editora, 2009, pág. 9
35
José Lebre de Freitas, A Acção Executiva Depois da reforma da reforma, 5ª Edição, Coimbra Editora, 2009, pág. 16
36
Neste sentido, Maria da Glória Ferreira Pinto, Breve Reflexão sobre a Execução coactiva dos Actos Administrativos, ESTUDOS – XX
Aniversário do CEF, Vol. II, DGCI, 1983, pág. 565
32
Faculdade de Direito da Universidade do Porto
24
A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução.
A penhora, sendo o acto judicial fundamental do processo de execução37, e que
consiste numa apreensão judicial de bens, produz um conjunto de efeitos jurídicos que
consistem na transferência para o tribunal dos poderes de gozo que integram o direito do
executado, na ineficácia relativa dos actos dispositivos subsequentes e na constituição de
preferência a favor do exequente.38
A venda executiva produz efeitos para além da esfera jurídica do executado.39
A efectivação da responsabilidade subsidiária, qual modificação subjectiva da
instância, implica a ponderação de pressupostos com juízos de valor em relação ao
conceito de culpa, iminentemente jurídico. Diríamos, até, que, mais do que ser um acto que
necessita de ser devidamente fundamentado, é um acto que, em si, se traduz na própria
fundamentação jurídica.
A própria citação, enquanto fenómeno de chamamento dos responsáveis à
execução, reveste momentos de complexo juízo jurídico, bastando para tal, a título de
exemplo, pensar na complexidade da posição do cônjuge (co-executado ou terceiro?)
daquele contra quem é instaurado o processo executivo, com os diferentes reflexos ao
longo de toda a execução.
Ora, estes actos, entre outros, conflituam com direitos subjectivos dos cidadãos que
não podem deixar de estar protegidos, numa execução, pela chancela de uma decisão
judicial, porque materialmente jurisdicionais, implicando a atribuição ao órgão de
execução fiscal de poderes para a prática dos mesmos uma violação dos princípios
constitucionais da separação de poderes e reserva de jurisdição, bem como do princípio do
estado de direito democrático.
Mas outros argumentos evidenciam a necessidade de devolução do processo
executivo fiscal ao Tribunal.
Do Acórdão proferido em 01-10-2008 no processo nº 0744/08, supra referido,
retira-se que, “(…) como se constata pelo art. 9.º, n.º 4, do CPPT, ao Ministério Público e
ao representante da Fazenda Pública é reconhecida legitimidade para intervenção apenas
no «processo judicial tributário». Embora ao processo de execução fiscal seja reconhecida
natureza judicial (art. 103.º, n.º 1, da LGT), o CPPT fornece um conceito de «processo
judicial tributário» que não abrange a fase administrativa do processo de execução fiscal,
37
José Lebre de Freitas, A Acção Executiva Depois da reforma da reforma, 5ª Edição, Coimbra Editora, 2009, pág. 205-206
José Lebre de Freitas, A Acção Executiva Depois da reforma da reforma, 5ª Edição, Coimbra Editora, 2009, pág. 263-264
39
Cfr. Art. 824º do CC
38
Faculdade de Direito da Universidade do Porto
25
A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução.
como se conclui do seu art. 97.º, em que se arrolam como meios processuais conexionados
com o processo de execução fiscal englobados em tal conceito, apenas «o recurso, no
próprio processo, dos actos praticados na execução fiscal» e «a oposição, os embargos de
terceiros e outros incidentes e a verificação e graduação de créditos». No mesmo sentido
de não se ter pretendido legislativamente admitir ao Ministério Público impugnar actos
administrativos praticados no processo de execução fiscal, em defesa da legalidade,
apontam os factos de essa impugnação apenas estar prevista para os «interessados» e para
os que sejam afectados nos seus «direitos e interesses legítimos» (arts. 103.º, n.º 2, da LGT
e 276.º do CPPT), qualificações que não são aplicáveis ao Ministério Público, quando não
intervém na qualidade de representante de entidades que lhe incumba representar perante
os Tribunais.”
Portanto, em princípio, no processo de execução fiscal não existe intervenção nem
do Ministério Público nem do Representante da Fazenda Pública. Sem intervenção normal,
também, do Tribunal, dado que esta só existe de forma provocada em limitadas situações,
há aqui uma clara violação de direitos fundamentais dos cidadãos, que ficam a descoberto
da tutela judicial que é garantida pela plena jurisdição do tribunal e que permite a tomada
de decisões justas no sentido da protecção dos direitos dos executados e restantes
interessados.40
Quanto à reclamação dos actos do órgão de execução fiscal (art. 276º ss. do CPPT),
embora a subida da imediata da reclamação, na prática processual, seja já a regra41, o facto
é que o respectivo regime legal proporciona uma margem discricionária que pode originar
a retenção indevida da reclamação, desprotegendo o interessado na necessária tutela
judicial. Isto porque, está em causa, mais do que permitir a tutela judicial imediata
relativamente aos actos elencados no art. 278º, nº 3 do CPPT, tutelar todo e qualquer
acto/decisão que, por concretamente individualizável como atentatório de um direito
particular, deve ser imediatamente apreciado pelo Tribunal.
Ainda quanto a esta reclamação, note-se que, sendo a tutela proporcionada pelo
Tribunal meramente anulatória, pode verificar-se o não acatamento substantivo da decisão
judicial proferida, bastando para tal que o acto anulado não seja substituído por outro com
o sentido que à sentença subjaz.
40
Cfr. Art. 99º da LGT e art. 13º do CPPT quanto ao princípio do inquisitório e respectiva plenitude dos poderes do juiz
Neste sentido, Jorge Lopes de Sousa, Código de Procedimento e de Processo Tributário, Anotado e Comentado, Vol. II, Áreas
Editora, 2007, pág. 666 ss., e Acórdão de 14-07-2010 do STA, proferido no processo nº 0547/10
41
Faculdade de Direito da Universidade do Porto
26
A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução.
Relembre-se aqui a incerteza, que advém dos diferentes tipos (natureza) de actos
admitidos na execução fiscal, quanto à revogabilidade desses actos, respectivos prazos e
efeitos de caso julgado. O executado vive uma verdadeira incerteza quanto à sua protecção
mediante um processo (in)justo.
Tendo, ainda, em conta que as execuções fiscais, mantidas no domínio da
Administração, se proporcionam à respectiva utilização, como instrumento de política
financeira, por uma organização hierarquicamente dependente do Governo, evidencia-se,
de forma que pensamos decisiva, a necessidade de desfazer a actual concentração de
poderes, na Administração Tributária, de autotutela declarativa e autotutela executiva.
Na douta Lição de Glória Teixeira, “Não existe, em nenhum ordenamento jurídico,
ofensa mais grave à integridade patrimonial dos cidadãos do que a instauração de um
processo executivo, que em países desenvolvidos aparece devidamente regulado e em
conformidade com os princípios e liberdades fundamentais, nomeadamente o direito a um
processo justo e imparcial que só aos tribunais compete.”42
Continua a autora, “Existe portanto uma clara divisão de poderes, não podendo o
poder executivo interferir com o poder judicial”. E remata: “É, portanto, manifestamente
inconstitucional o processo executivo fiscal português, devendo os cidadãos, em última
instância, recorrer para o Tribunal dos Direitos Humanos em defesa dos seus direitos
inalienáveis.”
42
Glória Teixeira, Manual de Direito Fiscal, 2ª Edição, Almedina, 2010, pág.362-363
Faculdade de Direito da Universidade do Porto
27
A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução.
CONCLUSÃO
1- Na falta de pagamento voluntário da prestação tributária, há que determinar o
devedor à satisfação da prestação em falta, através da execução dos seus bens.
2- No sistema de cobrança coerciva judicial, a dívida tributária, apurada através do
acto de liquidação, e não paga de forma voluntária, origina a execução do
património do devedor através da actuação do Tribunal, após emissão e entrega
pela Administração Tributária de um título executivo ao Tribunal.
3- No sistema de cobrança coerciva administrativa, como o espanhol, é a mesma
entidade, a própria Administração Tributária, que determina a prestação em dívida
e se serve do título executivo que emite para executar ela própria o património do
devedor.
4- O ordenamento jurídico português adoptou o sistema judicial, instituindo o
processo de execução fiscal como o meio de obter a cobrança coerciva das dívidas
tributárias.
5- Compete aos serviços da Administração Tributária instaurar os processos de
execução fiscal, após extracção de certidões de dívida, e realizar os actos a estes
respeitantes.
6- Exceptua-se dessa competência os actos jurisdicionais: os incidentes, os embargos,
a oposição, incluindo quando incida sobre os pressupostos da responsabilidade
subsidiária, a reclamação dos actos praticados pelos órgãos da execução fiscal e a
anulação da venda.
7- Não merecendo controvérsia o facto de a Administração Tributária possuir o poder
de autotutela declarativa, não deverá a mesma possuir autotutela executiva, dado
que a atribuição desta à Administração Tributária, em obediência a um princípio de
eficácia, promove a desmaterialização da separação de poderes, permitindo à
Administração intrometer-se no domínio do Poder Judicial, subalternizando-o.
8- O processo de execução fiscal, apesar de possuir, por atribuição legal, natureza
judicial, é, essencialmente, materialmente administrativo. Esta autotutela executiva
tributária constitui uma prerrogativa da Administração que a CRP não permite,
conflituando com o princípio da separação de poderes, de que emana a reserva de
jurisdição.
9- Assim acontece com os actos de verificação da exequibilidade do título executivo,
Faculdade de Direito da Universidade do Porto
28
A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução.
citação, penhora, venda de bens penhorados, verificação e graduação de créditos, e
efectivação da responsabilidade subsidiária, entre outros, que conflituam com
direitos subjectivos dos cidadãos que não podem deixar de estar protegidos, numa
execução, pela chancela de uma decisão judicial, porque materialmente
jurisdicionais.
10- No processo de execução fiscal não existe intervenção nem do Ministério Público
nem do Representante da Fazenda Pública, e o Tribunal só intervém, em limitadas
situações, se provocado pelo executado ou terceiro interessado, em clara violação
de direitos fundamentais dos cidadãos, que na execução ficam, na prática, a
descoberto da tutela judicial.
11- O regime da reclamação dos actos do órgão de execução fiscal pode originar a
retenção indevida da reclamação, desprotegendo o interessado na necessária tutela
judicial, quando o que se impõe é que qualquer decisão concretamente
individualizável como atentatória de um direito particular, na execução, deve ser
imediatamente apreciada pelo Tribunal.
12- Da qualificação dos diferentes tipos e natureza dos actos admitidos na execução
fiscal advém uma grande incerteza quanto ao regime da revogabilidade desses
actos, respectivos prazos, e efeito de caso julgado, o que seria obviado com a
jurisdicionalização da execução.
13- A execução fiscal proporciona-se à respectiva utilização como instrumento de
política financeira, porque é tramitada, em princípio integralmente, por uma
organização hierarquicamente dependente do Governo.
14- É necessário desfazer a actual concentração dos poderes, na Administração
Tributária, de autotutela declarativa e autotutela executiva, ou, no mínimo,
jurisdicionalizar os referidos actos executivos materialmente jurisdicionais, cuja
atribuição pelas leis da competência à prática da Administração Tributária se
afigura inconstitucional.
Faculdade de Direito da Universidade do Porto
29
A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução.
BIBLIOGRAFIA
Andrade, José Carlos Vieira de, A Justiça Administrativa (Lições), Almedina, 2009
Bernardino, Domingos da Cruz, A Execução Fiscal: Processo Judicial Sem Juiz, Trabalho de
investigação no âmbito do programa de doutoramento Problemas e Perspectivas da
Ciencia Xurídica, Universidade de Santiago de Compostela
Campos, Diogo Leite de; Rodrigues, Benjamim Silva; Sousa, Jorge Lopes de, Lei Geral Tributária
comentada e anotada, Vislis Editores, 2003
Díaz, António López, La recaudación de deudas tributarias en vía de apremio, Instituto de
Estúdios Fiscales : Marcial Pons, Ediciones Jurídicas, Madrid, 1992
Fernandez, Matias Acebes, Impugnación de la Providencia de Apremio, Byer Hnos. S.A., Col.
Temas de Administración Local, Barcelona, 2000
Ferreira, Fernando Amâncio, Curso de Processo de Execução, Almedina, Lisboa, 2010
Freitas, José Lebre de, A Acção Executiva Depois da reforma da reforma, Coimbra Editora,
Coimbra, 2009
Freitas, José Lebre de, Os Paradigmas da Acção Executiva, Revista da Ordem dos Advogados,
2001
Guerreiro, António Lima, Lei Geral Tributária anotada, Editora Rei dos Livros, 2001
Machado, Jónatas E. M.; Costa, Paulo Nogueira da, Curso de Direito Tributário, Coimbra Editora,
2009
Martins, António Carvalho, Juízo Fiscal, Coimbra Editora, Coimbra, 2000
Miranda, Jorge, Manual de Direito Constitucional, Coimbra Editora, 1997
Morais, Rui Duarte, A execução Fiscal, Almedina, Porto, 2006
Muñoz Machado, La reserva de jurisdición, La Ley, Madrid, 1989
Nabais, José Casalta, Direito Fiscal, Almedina, Coimbra, 2010
Neto, Serena Cabrita, Introdução ao Processo Tributário, Instituto Superior de Gestão, 2004
Oliveira, Mário Esteves de; Gonçalves, Pedro Costa; Amorim, J. Pacheco de, Código do
Procedimento Administrativo comentado Almedina, 1997
Paiva, Carlos, O Processo de Execução Fiscal, Almedina, 2008
Pinto, Maria da Glória Ferreira, Breve Reflexão sobre a Execução coactiva dos Actos
Administrativos, Estudos – XX Aniversário do CEF, Vol. II, DGCI, Lisboa, 1983
Faculdade de Direito da Universidade do Porto
30
A natureza judicial do processo de execução fiscal. A defesa da jurisdicionalização da execução.
Pires, Manuel; Pires, Rita Calçada, Direito Fiscal, Almedina, Lisboa, 2010
Rocha, Joaquim Freitas da, Lições de Procedimento e Processo Tributário, Coimbra Editora, 2011
Sampaio, J. M. Gonçalves, A Acção Executiva e a Problemática das Execuções Injustas, Almedina,
2008
Sanches, J. L. Saldanha, Manual de Direito Fiscal, Coimbra Editora, Lisboa, 2007
Silva, André Festas da, Princípios Estruturantes do Contencioso Tributário, DisLivro, Lisboa,
2008
Silva, Isabel Marques da, Algumas Considerações em torno do Código de Procedimento e de
Processo Tributário, Cadernos de Justiça Administrativa, nº 23, 2000
Soares, Rogério Ehrhardt, Direito Administrativo, Coimbra, 1978
Sousa, Jorge Lopes de, Código de Procedimento e de Processo Tributário anotado e comentado,
Vol. I e II, Áreas Editora, 2007
Sousa, Miguel Teixeira de, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lex, Lisboa, 1997
Sousa, Nuno Vasconcelos, Direito Administrativo, Vol. I, Almeida & Leitão, Porto, 2001
Teixeira, Glória, Manual de Direito Fiscal, Almedina, Porto, 2010
Faculdade de Direito da Universidade do Porto
31