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IV Reunião Equatorial de Antropologia e XIII Reunião de Antropólogos do Norte e Nordeste. 04 a 07 de agosto de 2013, Fortaleza-CE. Grupo de Trabalho GT 28. Título do Trabalho: Saúde, corpo e processos de cura : perspectivas teóricas e etnografias contemporâneas. Francesca Bassi Arcand, PRODOC/CAPES, UFBA. 1 Contaminação e sensibilidade no percurso iniciático do povo-de-santo (Candomblé e Culto de Babá Egun) Francesca Bassi A antropologia contemporânea deve a Mary Douglas (1966) uma teoria da contaminação relativa a transgressões de certos comportamentos rituais (tabus) aptos a manter separações nos elementos de uma classificação dada. A este respeito, foram elaboradas críticas a Douglas por Pierre Smith (1979), que formulou uma própria teoria da eficácia negativa dos interditos rituais a partir de dados da África Banto (Ruanda). Smith sugeriu que varias interdições não se encaixariam na noção de contaminação, pois seriam mais associadas à sensibilidades especificas. Encontramos entre os adeptos do Candomblé e do culto de Babá Egun de terreiros localizados em Salvador e Itaparica (Bahia) o respeito de interdições associadas às vezes à alergias e intolerâncias (notadamente, nos casos de tabus alimentares) e, outras vezes, à perigos de contaminação. Qual è a relação entre estes diferentes tipos de reação corporal na constituição ritual e religiosa do adepto? Como se define, a cada vez, o relacionamento com os orixás e os Eguns (espíritos dos mortos)? Cabe, portanto, investigar como os diversos interditos, assim como as diversas conseqüências (contaminações, alergias), definem o iniciado fazendo aparecer uma afiliação religiosa, um diagnóstico, uma biografia. Considerando que dimensões semiológicas e nosográficas se entrecruzam 2 (BIBEAU & GUILE, 1995), chegando até os espaços públicos, inelutavelmente atravessados por estes saberes terapêuticos, tratamos, em primeiro lugar das sensibilidades associadas aos tabus no contexto do Candomblé Nagô. Formação do Candomblé e dimensão terapêutica do culto Segundo Parés, a formação de verdadeiras comunidades religiosas afrobrasileiras não iniciariam antes dos começos do século XIX, junto com a consolidação da rede social de congregações extra-domesticas. Cultos menos efêmeros e menos atingidos pela continua chegada dos variados contingentes de escravos podem, nesta época, aproar a verdadeiras sistematizações de tipo comunitário que vão se assestando a partir dos serviços mágico-religiosos de base, caracterizados, notadamente, por praticas divinatórias e procedimentos rituais e terapêuticos associados às oferendas (ebo).1 O processo de formação do Candomblé define-se, conseqüentemente, pela continuidade dos serviços individuais da religiosidade africana integrados, sucessivamente, em estruturas religiosas mais complexas que decolaram também graças à presença de congregações, tais as irmandades católicas, que proporcionavam pontos de referência na consolidação de uma coesão social, além de ser lugares de clientelismos e de agencias micro-políticas. Na sua adaptação inicial à diáspora forçada, a população africana expressa uma religiosidade marcada pela vocação terapêutica de cunho ritualístico segundo um 1 Na sua pesquisa sobre a formação do Candomblé, Parés nos acompanha ao longo dos séculos XVIII e XIX, à descoberta de como africanos e crioulos criaram, por meios de participação a irmandades, folias, calundus, candomblés, possibilidades de identidades múltiplas, costuradas e de-costuradas, segundo exigências situacionais e estratégias de resistência ou inclusão. Estas identidades múltiplas são ainda típicas das denominações meta-etnícas do candomblé. Fala-se, por exemplo, de candomblé de origem jejê-nagô, identificado pela fusão de elementos da cultura jejê (fon, ewe, mina, fanti, ashanti), com elementos da cultura nagô (ioruba). A apelação Keto (nome que provém da antiga capital iorubana) é também usada como indicação de uma mais geral identidade de contraste, para marcar a diferença do candomblé Nagô com o candomblé Angola. Estas identificações de grupos de procedência e definições de etnicidade, marcadores das ditas nações de candomblé, não são portanto categorias neutras, pois, identidade não algo de dado e essencial, ela deve ser vista de maneira relacional, como “o resultado de um processo dialógico e de contraste cultural ocorrido entre os diversos grupos englobados sob várias denominações meta-étnicas” (PARÉS, 2011:27). 3 ‘complexo fortuna-infortúnio’, curandeirismo e rituais funerários se reproduzindo com bastante persistência em quanto ligados as exigências existências de base de uma população vulnerável em “tempos de experiência difícil” (Parés, ib., p.109110). A integração ou coesão social se tornou importante e se estruturou num segundo tempo. As redes sócias dos negros (africanos e crioulos) sempre foram bifurcadas entre irmandades católicas, lugar de sociabilidade visível, e os batuques e calundus semi-clandestinos, lugares de eficácia terapêutica e ritualística invisível. A proliferação dos segundos dependeu da solércia com a qual foram proporcionados expedientes a partir das redes sociais legitimadas, a dupla participação foi assim aproveitada em termos estratégicos e como diferentes “recursos conceituais para lidar com a adversidade do cotidiano” (Parés, ib. p.111). Diríamos, interpretando Parés, que a vulnerabilidade dos negros excluídos foi enfrentada a partir de praticas rituais e estilos de sociabilidades diferenciados, até chagar àquela institucionalização da religiosidade de matriz africana marcada pela passagem dos calundus a uma progressiva estruturação religiosa espacial de tipo ‘eclesial’. Pragmatismos magico-religioso no Candomblé : os efeitos das quizilas e a interpretação de indícios No Candomblé, muitas proibições pessoais (chamadas de quizilas, mas também de ewo no Candomblé Nagô) não estão ligadas a questões de pureza ritual, mas guiam o adepto numa relação particular com o mundo dos orixás. O filhode-santo está intimamente ligado ao culto com um conjunto de orixás, o que comporta a proibição de certas substâncias, certos alimentos, certas cores, certos objetos ou situações (Cossard-Binon 1970, 1981; Augras 1987). As numerosas quizilas surgem dos repúdios dos orixás cuja individuação é feita a partir dos mitos: elas são referidas a elementos conectados com fatos negativos vividos pelos orixás e correspondem a uma idéia de ojeriza, pois os orixás são energias desencarnadas, mas sensíveis às substâncias e aos elementos do mundo. O filho-de-santo não é somente treinado a respeitar as quizilas enquanto regras normativas exteriores à 4 própria subjetividade; ele pode também passar a incorporá-las, manifestando, por exemplo, desgostos alimentares coerentes com os repúdios gustativos dos orixás que o influenciam. Sandra de Omolu diz, por exemplo, que antes de entrar ‘no santo’, sempre passava mal quando comia caranguejo; depois, quando entrou no candomblé, ela descobriu que era por causa de Omolu, : “Aí eu deixei de comer. Eu tenho alergia porque sou filha dele”. Porém, o aspecto mais surpreendente é o fato de o filho-de-santo produzir, por sua vez, sensibilidades negativas de ressonância simbólica, pois certas reações do corpo aos elementos do mundo (sobretudo aos alimentos), assim como outros eventos negativos, são considerados indícios de quizilas: “É provável que você já teve sensações negativas com este alimento ou que você já sentiu uma ojeriza, uma aversão”, explica o pai-de-santo Genivaldo quando consulta os búzios para mim e me fala das minhas quizilas. Consequentemente, os acidentes em geral e, em particular, o aparecer de alergias ou intolerâncias alimentares, não somente mostram a incorporação de ‘antipatias simbólicas’, como também podem indicar outras, até então, desconhecidasi. De fato, muitas quizilas são conhecidas a partir da dimensão existencial e sensorial do iniciado que vai se revelando junto a incidentes comuns, mal-estares, etc. Nestes casos, as quizilas perdem ligação imediata com as representações míticas e podem ser definidas antes de tudo em termos de alergias, antipatias, ojerizas, isto é, sensações e emoções negativas. Estas quizilas, em vez de definir o iniciado como a encarnação particular de um modelo mítico geral, favorecem a emergência de um ser singular, original, fazendo aparecer conjuntamente uma afiliação religiosa e uma natureza específica, um diagnóstico e uma biografia. De modo geral, a influência do orixá principal e do conjunto dos outros orixás secundários, bem como dos signos do destino (odu),ii se destaca na interpretação das características do filho-de-santo e das situações temporárias da vida por ele vivenciadas (Bastide & Verger 1981; Braga 1988; Beniste 1999). Quando a identificação das quizilas se faz segundo uma abordagem divinatória (cf. Sindzindre 1991) na prática do jogo dos búzios, ela é reconhecida previamente, a partir dos consideração de categorias míticas envolvidas nos jogo, assim que eventos ruins 5 são pré-ditos e cautelas são providenciadas; ou retrospectivamente, pois os eventos acontecidos são questionados pelos adivinho e ganham sentido segundo as interpretações míticas mobilizadas de forma pontual no momento da consulta. Deste modo, se o esquema de muitos interditos -no Candomblé como em outras áreas culturais- pode se basear na evocação de fatos negativos míticos, legendários ou historicamente vivenciados (Smith 1979; De Garine 1991)iii, os sintomas das quizilas desconhecidas viram presságios de acidentes mais graves, segundo um diagnóstico que infunde modos de ações, isto é, novas restrições que se constituem como cautelas rituais contra uma queda mais ampla do bem-estar. Consequentemente, o respeito às quizilas pode ser concebido como ‘forma de atenção’, pois garante contra golpes do destino (doenças e acidentes), remetendo a restrições sugeridas pelos eventos negativos que desvendam um destino pessoal. Enquanto respeito de idiossincrasias e sensibilidades relativas, a quizila mal se encaixa na idéia clássica de tabu que lhe foi associada (Agras 1987), isto è, na concepção de regras normativas universais compartilhadas e previamente comunicadas. De fato, quizilas previsíveis a partir de representações míticas rotuladas se desdobram em outras imprevisíveis, indefinidas, não verbalizadas previamente, mas significadas e, portanto, justificadas, a posteriori, segundo um horizonte mítico que diz respeito aos orixás que se manifestam viés diferentes qualidadesiv e aos signos do destino (odu). Assim, os sentidos e as percepções dos filhos-de-santo podem se conectar aos orixás durante as atividades de tipo diverso, nos momentos que em eles podem ser ‘afetados’ (cf. Favret-Saada 2005) através de alergias e outras sensibilidades do corpo. A sensibilidade negativa deve ser, portanto, considerada como um indício da presença com o orixá e da relação de culto que deve ser cuidada . Quando as quizilas são conhecidas através do jogo de búzios, os orixás enunciam quais são os elementos que não prestam pela pessoa que está fazendo a consulta. Os elementos, as substâncias trazem a negatividade de um evento negativo que evocam: É o orixá que enuncia a quizila: não coma isso para não ter problema, para não travar o caminho. Ele pode dizer 6 que um alimento traz um encosto, que um outro elemento pode enfraquecer a pessoa.... o pai-de-santo vê no jogo (Genivaldo, pai-de-santo) As quizilas são, portanto, consideradas negativamente eficazes no sentido amplo (podem travar o caminho), ou no sentido especifico (o elemento ‘maldito’ pode trazer espíritos, más influências, etc.). A representação da motivação da quizila é, para o cliente da consulta, quase sempre vaga e indeterminada, mas é implícito que muitos elementos quizilas estão associados a acontecimentos negativos, notadamente, com algum desencontro vivenciado pelos orixás no tempo mítico. A notória antipatia de Oxalá pela raça equina, por exemplo, corresponde a uma quizila ligada ao mito do seu cativeiro no reino de Xangô, quando, confundido com um ladrão de cavalo, foi preso. Em geral, os filhos de Oxalá sabem que devem respeitar a quizila de cavalo e alguns deles podem ‘pegar’ esta quizila, isto é, a quizila pode ser eficaz -a pessoa deve, portanto, tomar cuidado, pois pode se dar mal com cavalos. De fato, a definição da quizila não pode prescindir, para além da sua codificação mítica durante o jogo, da sua eficácia, isto é, dos eventos ou sintomas negativos de vários tipos que podem denunciar interditos desconhecidos ou confirmar aqueles suspeitos. Sobre a eficácia, o pai-de-santo Marcelino explica como ele ‘pegou’ as quizilas depois de “ter feito o santo”; por exemplo, depois da ‘feitura’, ele não comeu mais a carne do carneiro, nem mais suportou o cheiro. Geralmente, ojerizas e o problemas de saúde definem este tipo de interdições: “A quizila é algo que não faz bem”, dizem frequentemente os filhos de santo. A eficácia negativa especifica mais relatada é aquela de tipo físico,v associável a sensações de mal estar e, no caso de alimentos, a enjoos, reações alérgicas ou a transtornos digestivos. Os iniciados, notadamente a yawo (novata), são incentivados a captar os sintomas como indícios da presença do orixá, uma capacitação que deve continuar para a vida inteira do filho de santo. EbomeviDetinha explica como o seu orixá e o seu odu não comportam a quizila, muito comum, do caranguejo, mas não deixa de enfatizar o plano mais sensorial e perceptivo da questão: se um dia ela comer este crustáceo e tiver algum aviso, isto é, se ela passar mal e a sua ‘cabeça’ perceber que não pode comê-lo, ela vai deixar de 7 comê-lo. Estas quizilas individuais fazem o orixá (a ‘cabeça’ do iniciado, por metonímia, pois é nesta parte do corpo que a energia do orixá é fixada durante a iniciação) se mostrar, sendo a sua presença captada pela intuição do filho de santo. As percepções citadas por vários filhos de santo são comparáveis às formas de adivinhação secundária ou ‘inspirada’(Zempléni 1995). Tanto os efeitos podem confirmar a verdade das supostas quizilas tiradas do jogo, quanto o jogo pode avaliar se as alergias ou outros sintomas ‘reais’ são quizilas de santo (e não unicamente da matéria). Notamos que a quizila mal se encaixa numa leitura clássica e simbolista do interdito, pois a prática divinatória proporciona indícios em lugar de símbolos (Zempléni 1995 : 338). No corpo do iniciado, os sintomas são também indícios da relação com o orixá ou o odu, e o efeito dessa relação (“é o orixá que traz a quizila” ) é uma apropriação do simbolismo convencional que termina se adequando e se ‘pulverizando’ na singularidade de cada qual. As quizilas se assemelham, no Candomblé, com cuidados individuais que podem ser enxergados como atos que ‘precipitam’ singularidades. Como diria Wagner, é necessário olhar as ações individuais sobre o simbolismo convencional para a constituição do ‘eu’ (Wagner 1981:78). Do ponto de vista dos tipos de regulamento comportamental, o respeito às quizilas, às vezes, se apresenta segundo normas formuladas explicitamente, isto é, regras normativas, outras vezes respondem ao critério das regras constitutivas (cf. Houseman & Severi 1994) que contribuem para a constituição da especificidade de cada filho de santo. O processo de desvendamento das normas constitutivas da pessoa, ou seja, de acordo com as suas qualidades ‘espirituais’ intrínsecas, concebidas como inatas, se produz treinando o filho-de-santo a auto-avaliar suas sensibilidades específicas para com comidas, bebidas, cores, etc. Como diz o paide-santo Rubelino Daniel de Paula numa entrevista ao psicólogo italiano Claudio Neri (2005): “A gente deve encontrar o laço com o orixá, no quotidiano. Eu moro aqui no terreiro por causa do orixá”. Trata-se de um laço que se constroi por meio de processos de significação de indícios que fogem às classificações prévias, e dão, em primeira instância, qualidade e unicidade às relações com os orixás. 8 O culto de Babá Egun : o acervo da ancestralidade Nos anos noventa, Braga dedica importantes estudos à comunidade negra de pescadores de Ponta de Areia (Itaparica), cuja identidade especifica è conferida pela conexão da estrutura econômica e familiar com o culto dos antepassados — o chamado culto de Babá Egun—, praticado paralelamente ao culto dos Orixás (BRAGA:1992). Esta comunidade è conhecida por integrar vários terreiros de Babá Egun presentes no local, perpetuando assim um importante patrimônio constituído de mitologia, musica e cantigas, cerimônias e rituais, estética religiosa, etc. Baluarte de uma organização patrilinear de origem africana (yoruba), fundamentado no conteúdo tanatólogico e de procedência (BRAGA, 1992:123), este culto detêm ainda hoje um relevante papel nas referencias genealógicas e na evocação de uma tradição religiosa ligada à ‘africanidade’. Permanecendo no âmbito da linhagem, o culto, iniciatico e masculino, se expressa por meio de praticas rituais e cerimônias que, embora relativamente abertas, acabam sobretudo reforçando vínculos entre famílias extensas e determinando normas, valores e atividades destes grupos domésticos2. Continua assim sendo evocado, no Brasil, um principio dinástico (de proveniência ioruba, região de Oyo), associado à uma ancestralidade masculina concebida como o acervo de costumes e tradições (ELBEIN DOS SANTOS, 1975:120). No mesmo tempo, a iniciação ao culto de Egungun 3 promove um laço de irmandade entre os membros destas sociedades secretas, constituindo um tipo de rede solidária que lembra a ‘maçonaria’ (Elbein dos Santos, 1975:119). Trata-se de um Segundo Braga (1922:27), nas primeiras décadas do século XX, Eduardo Daniel de Paula fundou o culto de Egun em Ponta de Areia, cuja população se considera, na maioria dos casos, descendente dele. O Omo Ilê Aboulá, fundado por Eduardo, encontra-se hoje, entre vários outros terreiros, no sitio de Bela Vista em Ponta de Areia. Os terreiros de Egun constam de uma área aberta, de um barracão e do Ilê Awô - a casa do segredo. No Ilê Awô são abrigados os assentamentos, os paramentos e instrumentos rituais. Braga refere-se a grupos ‘domesticos’, em quanto “unidade mantenedora da residência, estruturada para prover os recursos materiais e culturais indispensáveis à sobrevivência de seus membros” (1992:55). 2 O termo geral de s Egun remeta os espíritos de pessoas falecidas; o termo Egunguns ou Baba Egun indica aqueles espíritos preparados a voltar agindo como antepassados no meio da coletividade. 3 9 culto cuja finalidade è a permanência da relação com os espíritos daqueles homens que foram figuras destacadas em suas comunidades religiosas, isto é, iniciados à cargos sacerdotais. Portanto, eles preservam, post mortem, a própria individualidade e marcam, paralelamente, a identidade do grupo familiar. Em Ponta de Areia são presentes vários terreiros de Egun4. Os espíritos dos ancestrais,invocados para se mostrar publicamente, recebem o nome Egungun, ou simplesmente Babá (pai). O espaço público se localiza numa parte do barracão de festas, uma outra parte sendo reservada aos oficiantes (Ojés) que acolhem, durante as cerimônias, os Egunguns manifestados sob roupas litúrgicas (chamadas de opá, estas roupas são compostas de tiras de pano e enfeitadas de búzios, espelhos e contas). Os Babás manifestados (os espíritos materializados de baixo dos roupões litúrgicos), não podendo ser tocados pelos humanos, são controlados pelos Ojés (sacerdotes) que os conduzem com pequenos toques de varetas (ixan). Os Babás aparecem publicamente dançando, cantando, benzendo e falando com voz ‘inumana’ numa língua litúrgica incompreensível para os leigos (derivada de um dialeto yoruba), traduzida pelo Ojés que os acompanham. Eles dão conselho, reclamam das transgressões às normas e atendem a pedidos em troca de oferendas. Os serviços rituais constitui renda e proporciona prestigio aos ojés, cuja autoridade masculina no âmbito social e domestico é reforçada pela alta posição hierárquica no culto (BRAGA, 1992: 55). Não é este o lugar para um estudo aprofundado sobre a complexidade ritual deste culto, pois queremos simplesmente ressaltar como comunidades se reconhecem e se redefinem junto aos comuns antepassados, re-atualizando um patrimônio religioso e um percurso familiar e histórico5. Os objetos sagrados, os Lembramos entre eles, além do Ilê Olokotum (originado do antigo e famoso Ilê Tuntun) e o Ilê Agboulá (fundado durante o primeiro quarto de século passado) e o mais recente Ilê Oya, considerado uma ramificação do mesmo Agboulá (ELBEIN DOS SANTOS, 1975:119). 4 5 Assim, por exemplo, Baba Olukotun é considerado o mais antigo ancestral trazido da África : ‘assentado’ em Itaparica, foi depois levado em Salvador no terreiro Ilê Asipa liderado por Mestre 10 assentamentos notadamente, percorrem, portanto, territórios e fundamentam a abertura de espaços sagrados, redefinindo identidades, articulando o tempo passado ao presente. A ancestralidade atravessa os espaços, desterritorializa-se, mantendo-se ‘memória’ de um percurso familiar e ancestral, isto é, se referindo a África em quanto lugar de origem. Conclusão Os Eguns constituem um ponto de referencia na construção da autoridade masculina e na determinação das regras do grupo todo. Trata-se de uma dimensão coletiva e abrangente, bem diferenciada daquelas regras pessoais (quizilas) associadas ao culto dos orixás. Os perigos de contaminação parecem situar-se nesta dimensão ética. Podemos, assim, supor uma relação complementar entre as quizilas pessoais, associadas a construção da pessoa e as normas coletivas ligadas ao culto dos ancestrais. As quizilas são regras relativas, cuja infração é desvendada por sintomas, isto é, indícios de sensibilidades pessoais. Os Eguns determinam contaminações em lugar de sensibilidades: eles pertencem ao mundo de além, não devem encostar os vivos, nem podem marcar identidades especificas (portanto, devem-se limitar os contatos, e as varetas dos ojés servem para evitar encostos). Mais associados à uma ética grupal, o culto de Baba Egun complementa, assim as regras constitutivas de singularidades. Referências: AQUINO, Patricia de. (2004), “ Paroles d’objets ou le carrefour des coquillages divinatoires du Candomblé”. Le rite à l’œuvre. Perspectives afro-cubaines et afro- Didi. Olhando pela cronologia da fundação dos primeio terreiros de Eguns no Brasil, notamos a relação com a África. A partir dos textos de Elbein do Santos (1975:119) e Santos & Elbeins dos Santos (1969: 79-108) sabemos que um terreiro de Vera Cruz (Ilha de Itaparica), foi fundado em torno de 1820 por um africano chamado Tio Serafim que trouxe da África o Egun de seu pai, invocado até hoje como Egun Okulelê. 11 brésiliennes - Systèmes de pensée en Afrique noire, n. 16, pp. 11-47. AUGÉ, Marc; COLLEYN, Jean-Paul. (2004), L’anthropologie. Paris: Presses Universitaires de France. AUGRAS, Monique. (1987), “ Quizilas e preceitos. Transgressão, reparação e organização dinâmica do mundo”. In : Marcondes De Moura C. E. (org.). Candomblé. Desvendando identidades. Novos escritos sobre a religião dos orixás. São Paulo : EMW Editores. BASTIDE, Roger. (1973), “ Le principe d’individuation”. 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Os orixás falam nos odus, no caso, por ex., de uma configuração de 9 búzios abertos, respondem ao quesito do cliente da consulta os orixás Iansã ou Iemanjá (cf. Aquino 2005). ii Um depoimento do pai-de-santo Genivaldo descreve ardilosos acontecimentos que fizeram com que Iansã “pegasse” a quizila de carneiro: “Iansã, chamada também Oyá, teve nove filhos. Quando ela estava grávida de seu filho caçula, ela soube que ele era abiku, quer dizer, ‘nascido para morrer’, isto é, destinado a morrer pequenininho. Oyá foi ver Ifá (orixá da adivinhação) e Ifá mandou ela fazer um ebò (oferenda) no ‘caminho do nove’. Ela tinha que oferecer nove oferendas de comida, assim ela dava a energia ao ‘caminho’ (signo do destino, odu) e receberia em troca a energia de outra forma. Era uma oferenda (ebò) para não deixar ir embora o filho que ela ia parir. Infelizmente, um carneiro comeu a oferenda que ela tinha arriado e o filhinho dela morreu logo depois de nascer. Um filho-de-santo cabeça de Iansã como aquele ligado ao odu Ossá, um odu relacionado com o caminho de Iansã, não deve comer carne de carneiro” (Genivaldo de Omolu). iii As diferentes qualidades de um orixá podem ser enxergadas como os diferentes aspectos de uma mesma ‘energia’, de um mesmo princípio classificatório (o orixá geral). Em quanto protagonistas de diferentes historias míticas, os orixás ‘gerais’ assumem características e nomes particulares (cf. Goldman 1987). iv Para tomar conhecimento das viária quizilas do Candomblé ver Augras (1987). Aqui nos limitamos a citar somente algumas quizilas, sendo que o nosso interesse è focado na noção da eficácia negativa. v vi Filha de santo com mais de sete anos de iniciação e com os rituais (obrigações) de confirmação cumpridos. 17