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IV Reunião Equatorial de Antropologia e XIII Reunião de Antropólogos do Norte e
Nordeste.
04 a 07 de agosto de 2013, Fortaleza-CE.
Grupo de Trabalho GT 28.
Título do Trabalho: Saúde, corpo e processos de cura : perspectivas teóricas e
etnografias contemporâneas.
Francesca Bassi Arcand, PRODOC/CAPES, UFBA.
1
Contaminação e sensibilidade no percurso iniciático do povo-de-santo
(Candomblé e Culto de Babá Egun)
Francesca
Bassi
A antropologia contemporânea deve a Mary Douglas (1966) uma teoria da
contaminação relativa a transgressões de certos comportamentos rituais (tabus)
aptos a manter separações nos elementos de uma classificação dada. A este
respeito, foram elaboradas críticas a Douglas por Pierre Smith (1979), que
formulou uma própria teoria da eficácia negativa dos interditos rituais a partir de
dados da África Banto (Ruanda). Smith sugeriu que varias interdições não se
encaixariam na noção de contaminação, pois seriam mais associadas à
sensibilidades especificas. Encontramos entre os adeptos do Candomblé e do
culto de Babá Egun de terreiros localizados em Salvador e Itaparica (Bahia) o
respeito de interdições associadas às vezes à alergias e intolerâncias
(notadamente, nos casos de tabus alimentares) e, outras vezes, à perigos de
contaminação. Qual è a relação entre estes diferentes tipos de reação corporal na
constituição ritual e religiosa do adepto? Como se define, a cada vez, o
relacionamento com os orixás e os Eguns (espíritos dos mortos)? Cabe, portanto,
investigar como os diversos interditos, assim como as diversas conseqüências
(contaminações, alergias), definem o iniciado fazendo aparecer uma afiliação
religiosa, um diagnóstico, uma biografia.
Considerando que dimensões semiológicas e nosográficas se entrecruzam
2
(BIBEAU & GUILE, 1995), chegando até os espaços públicos, inelutavelmente
atravessados por estes saberes terapêuticos, tratamos, em primeiro lugar das
sensibilidades associadas aos tabus no contexto do Candomblé Nagô.
Formação do Candomblé e dimensão terapêutica do culto
Segundo Parés, a formação de verdadeiras comunidades religiosas afrobrasileiras não iniciariam antes dos começos do século XIX, junto com a
consolidação da rede social de congregações extra-domesticas. Cultos menos
efêmeros e menos atingidos pela continua chegada dos variados contingentes de
escravos podem, nesta época, aproar a verdadeiras sistematizações de tipo
comunitário que vão se assestando a partir dos serviços mágico-religiosos de
base, caracterizados, notadamente, por praticas divinatórias e procedimentos
rituais e terapêuticos associados às oferendas (ebo).1
O processo de formação do Candomblé define-se, conseqüentemente, pela
continuidade dos serviços individuais da religiosidade africana integrados,
sucessivamente, em estruturas religiosas mais complexas que decolaram também
graças à presença de congregações, tais as irmandades
católicas, que
proporcionavam pontos de referência na consolidação de uma coesão social,
além de ser lugares de clientelismos e de agencias micro-políticas. Na sua
adaptação inicial à diáspora forçada, a população africana expressa uma
religiosidade marcada pela vocação terapêutica de cunho ritualístico segundo um
1
Na sua pesquisa sobre a formação do Candomblé, Parés nos acompanha ao longo dos séculos XVIII e XIX, à
descoberta de como africanos e crioulos criaram, por meios de participação a irmandades, folias, calundus,
candomblés, possibilidades de identidades múltiplas, costuradas e de-costuradas, segundo exigências situacionais e
estratégias de resistência ou inclusão. Estas identidades múltiplas são ainda típicas das denominações meta-etnícas
do candomblé. Fala-se, por exemplo, de candomblé de origem jejê-nagô, identificado pela fusão de elementos da
cultura jejê (fon, ewe, mina, fanti, ashanti), com elementos da cultura nagô (ioruba). A apelação Keto (nome que
provém da antiga capital iorubana) é também usada como indicação de uma mais geral identidade de contraste,
para marcar a diferença do candomblé Nagô com o candomblé Angola. Estas identificações de grupos de
procedência e definições de etnicidade, marcadores das ditas nações de candomblé, não são portanto categorias
neutras, pois, identidade não algo de dado e essencial, ela deve ser vista de maneira relacional, como “o resultado
de um processo dialógico e de contraste cultural ocorrido entre os diversos grupos englobados sob várias
denominações meta-étnicas” (PARÉS, 2011:27).
3
‘complexo fortuna-infortúnio’, curandeirismo e rituais funerários se reproduzindo
com bastante persistência em quanto ligados as exigências existências de base
de uma população vulnerável em “tempos de experiência difícil” (Parés, ib., p.109110). A integração ou coesão social se tornou importante e se estruturou num
segundo tempo.
As redes sócias dos negros (africanos e crioulos) sempre foram bifurcadas entre
irmandades católicas, lugar de sociabilidade visível, e os batuques e calundus
semi-clandestinos, lugares de eficácia terapêutica e ritualística invisível. A
proliferação
dos
segundos
dependeu
da
solércia
com
a
qual
foram
proporcionados expedientes a partir das redes sociais legitimadas, a dupla
participação foi assim aproveitada em termos estratégicos e como diferentes
“recursos conceituais para lidar com a adversidade do cotidiano” (Parés, ib.
p.111). Diríamos, interpretando Parés, que a vulnerabilidade dos negros excluídos
foi enfrentada a partir de praticas rituais e estilos de sociabilidades diferenciados,
até chagar àquela institucionalização da religiosidade de matriz africana marcada
pela passagem dos calundus a uma progressiva estruturação religiosa espacial de
tipo ‘eclesial’.
Pragmatismos magico-religioso no Candomblé : os efeitos das quizilas e a
interpretação de indícios
No Candomblé, muitas proibições pessoais
(chamadas de quizilas, mas
também de ewo no Candomblé Nagô) não estão ligadas a questões de pureza
ritual, mas guiam o adepto numa relação particular com o mundo dos orixás. O filhode-santo está intimamente ligado ao culto com um conjunto de orixás, o que
comporta a proibição de certas substâncias, certos alimentos, certas cores, certos
objetos ou situações (Cossard-Binon 1970, 1981; Augras 1987). As numerosas
quizilas surgem dos repúdios dos orixás cuja individuação é feita a partir dos mitos:
elas são referidas a elementos conectados com fatos negativos vividos pelos orixás
e correspondem a uma idéia de ojeriza, pois os orixás são energias desencarnadas,
mas sensíveis às substâncias e aos elementos do mundo. O filho-de-santo não é
somente treinado a respeitar as quizilas enquanto regras normativas exteriores à
4
própria subjetividade; ele pode também passar a incorporá-las, manifestando, por
exemplo, desgostos alimentares coerentes com os repúdios gustativos dos orixás
que o influenciam. Sandra de Omolu diz, por exemplo, que antes de entrar ‘no
santo’, sempre passava mal quando comia caranguejo; depois, quando entrou no
candomblé, ela descobriu que era por causa de Omolu, : “Aí eu deixei de comer. Eu
tenho alergia porque sou filha dele”.
Porém, o aspecto mais surpreendente é o fato de o filho-de-santo produzir,
por sua vez, sensibilidades negativas de ressonância simbólica, pois certas reações
do corpo aos elementos do mundo (sobretudo aos alimentos), assim como outros
eventos negativos, são considerados indícios de quizilas: “É provável que você já
teve sensações negativas com este alimento ou que você já sentiu uma ojeriza, uma
aversão”, explica o pai-de-santo Genivaldo quando consulta os búzios para mim e
me fala das minhas quizilas. Consequentemente, os acidentes em geral e, em
particular, o aparecer de alergias ou intolerâncias alimentares, não somente mostram
a incorporação de ‘antipatias simbólicas’, como também podem indicar outras, até
então, desconhecidasi. De fato, muitas quizilas são conhecidas a partir da dimensão
existencial e sensorial do iniciado que vai se revelando junto a incidentes comuns,
mal-estares, etc. Nestes casos, as quizilas perdem ligação imediata com as
representações míticas e podem ser definidas antes de tudo em termos de alergias,
antipatias, ojerizas, isto é, sensações e emoções negativas. Estas quizilas, em vez
de definir o iniciado como a encarnação particular de um modelo mítico geral,
favorecem a emergência de um ser singular, original, fazendo aparecer
conjuntamente uma afiliação religiosa e uma natureza específica, um diagnóstico e
uma biografia.
De modo geral, a influência do orixá principal e do conjunto dos outros orixás
secundários, bem como dos signos do destino (odu),ii se destaca na interpretação
das características do filho-de-santo e das situações temporárias da vida por ele
vivenciadas (Bastide & Verger 1981; Braga 1988; Beniste 1999).
Quando a
identificação das quizilas se faz segundo uma abordagem divinatória (cf. Sindzindre
1991) na prática do jogo dos búzios, ela é reconhecida previamente, a partir dos
consideração de categorias míticas envolvidas nos jogo, assim que eventos ruins
5
são pré-ditos e cautelas são providenciadas; ou retrospectivamente, pois os eventos
acontecidos são questionados pelos adivinho e ganham sentido segundo as
interpretações
míticas mobilizadas de forma pontual no momento da consulta.
Deste modo, se o esquema de muitos interditos -no Candomblé como em outras
áreas culturais- pode se basear na evocação de fatos negativos míticos, legendários
ou historicamente vivenciados (Smith 1979; De Garine 1991)iii, os sintomas das
quizilas desconhecidas viram presságios de acidentes mais graves, segundo um
diagnóstico que infunde modos de ações, isto é, novas restrições que se constituem
como
cautelas
rituais
contra
uma
queda
mais
ampla
do
bem-estar.
Consequentemente, o respeito às quizilas pode ser concebido como ‘forma de
atenção’, pois garante contra golpes do destino (doenças e acidentes), remetendo a
restrições sugeridas pelos eventos negativos que desvendam um destino pessoal.
Enquanto respeito de idiossincrasias e sensibilidades relativas, a quizila
mal se encaixa na idéia clássica de tabu que lhe foi associada (Agras 1987), isto è,
na concepção de regras normativas universais compartilhadas e previamente
comunicadas. De fato, quizilas previsíveis a partir de representações míticas
rotuladas se desdobram em outras imprevisíveis, indefinidas, não verbalizadas
previamente, mas significadas e, portanto, justificadas, a posteriori, segundo um
horizonte mítico que diz respeito aos orixás que se manifestam viés diferentes
qualidadesiv e aos signos do destino (odu). Assim, os sentidos e as percepções dos
filhos-de-santo podem se conectar aos orixás durante as atividades de tipo diverso,
nos momentos que em eles podem ser ‘afetados’ (cf. Favret-Saada 2005) através de
alergias e outras sensibilidades do corpo. A sensibilidade negativa deve ser,
portanto, considerada como um indício da presença com o orixá e da relação de
culto que deve ser cuidada .
Quando as quizilas são conhecidas através do jogo de búzios, os orixás
enunciam quais são os elementos que não prestam pela pessoa que está fazendo a
consulta. Os elementos, as substâncias trazem a negatividade de um evento
negativo que evocam:
É o orixá que enuncia a quizila: não coma isso para não
ter problema, para não travar o caminho. Ele pode dizer
6
que um alimento traz um encosto, que um outro
elemento pode enfraquecer a pessoa.... o pai-de-santo
vê no jogo (Genivaldo, pai-de-santo)
As quizilas são, portanto, consideradas negativamente eficazes no sentido
amplo (podem travar o caminho), ou no sentido especifico (o elemento ‘maldito’ pode
trazer espíritos, más influências, etc.). A representação da motivação da quizila é,
para o cliente da consulta, quase sempre vaga e indeterminada, mas é implícito
que muitos elementos quizilas estão associados a acontecimentos negativos,
notadamente, com algum desencontro vivenciado pelos orixás no tempo mítico. A
notória antipatia de Oxalá pela raça equina, por exemplo, corresponde a uma quizila
ligada ao mito do seu cativeiro no reino de Xangô, quando, confundido com um
ladrão de cavalo, foi preso. Em geral, os filhos de Oxalá sabem que devem respeitar
a quizila de cavalo e alguns deles podem ‘pegar’ esta quizila, isto é, a quizila pode
ser eficaz -a pessoa deve, portanto, tomar cuidado, pois pode se dar mal com
cavalos.
De fato, a definição da quizila não pode prescindir, para além da sua
codificação mítica durante o jogo, da sua eficácia, isto é, dos eventos ou sintomas
negativos de vários tipos que podem denunciar interditos desconhecidos ou
confirmar aqueles suspeitos. Sobre a eficácia, o pai-de-santo Marcelino explica
como ele ‘pegou’ as quizilas depois de “ter feito o santo”; por exemplo, depois da
‘feitura’, ele não comeu mais a carne do carneiro, nem mais suportou o cheiro.
Geralmente, ojerizas e o problemas de saúde definem este tipo de
interdições: “A quizila é algo que não faz bem”, dizem frequentemente os filhos de
santo. A eficácia negativa especifica mais relatada é aquela de tipo físico,v
associável a sensações de mal estar e, no caso de alimentos, a enjoos, reações
alérgicas ou a transtornos digestivos. Os iniciados, notadamente a yawo (novata),
são incentivados a captar os sintomas como indícios da presença do orixá, uma
capacitação que deve continuar para a vida inteira do filho de santo. EbomeviDetinha
explica como o seu orixá e o seu odu não comportam a quizila, muito comum, do
caranguejo, mas não deixa de enfatizar o plano mais sensorial e perceptivo da
questão: se um dia ela comer este crustáceo e tiver algum aviso, isto é, se ela
passar mal e a sua ‘cabeça’ perceber que não pode comê-lo, ela vai deixar de
7
comê-lo.
Estas quizilas individuais fazem o orixá (a ‘cabeça’ do iniciado, por
metonímia, pois é nesta parte do corpo que a energia do orixá é fixada durante a
iniciação) se mostrar, sendo a sua presença captada pela intuição do filho de santo.
As percepções citadas por vários filhos de santo são comparáveis às formas de
adivinhação secundária ou ‘inspirada’(Zempléni 1995).
Tanto os efeitos podem
confirmar a verdade das supostas quizilas tiradas do jogo, quanto o jogo pode avaliar
se as alergias ou outros sintomas ‘reais’ são quizilas de santo (e não unicamente da
matéria). Notamos que a quizila mal se encaixa numa leitura clássica e simbolista
do interdito, pois a prática divinatória proporciona indícios em lugar de símbolos
(Zempléni 1995 : 338). No corpo do iniciado, os sintomas são também indícios da
relação com o orixá ou o odu, e o efeito dessa relação (“é o orixá que traz a quizila” )
é uma apropriação do simbolismo convencional que termina se adequando e se
‘pulverizando’ na singularidade de cada qual.
As quizilas se assemelham, no
Candomblé, com cuidados individuais que podem ser enxergados como atos que
‘precipitam’ singularidades.
Como diria Wagner, é necessário olhar as ações
individuais sobre o simbolismo convencional para a constituição do ‘eu’ (Wagner
1981:78).
Do ponto de vista dos tipos de regulamento comportamental, o respeito às quizilas,
às vezes, se apresenta segundo normas formuladas explicitamente, isto é, regras
normativas, outras vezes respondem ao critério das regras constitutivas (cf.
Houseman & Severi 1994) que contribuem para a constituição da especificidade de
cada filho de santo. O processo de desvendamento das normas constitutivas da
pessoa, ou seja, de acordo com as suas qualidades ‘espirituais’ intrínsecas,
concebidas como inatas, se produz treinando o filho-de-santo a auto-avaliar suas
sensibilidades específicas para com comidas, bebidas, cores, etc. Como diz o paide-santo Rubelino Daniel de Paula numa entrevista ao psicólogo italiano Claudio
Neri (2005): “A gente deve encontrar o laço com o orixá, no quotidiano. Eu moro aqui
no terreiro por causa do orixá”. Trata-se de um laço que se constroi por meio de
processos de significação de indícios que fogem às classificações prévias, e dão, em
primeira instância, qualidade e unicidade às relações com os orixás.
8
O culto de Babá Egun : o acervo da ancestralidade
Nos anos noventa, Braga dedica importantes estudos à comunidade negra de
pescadores de Ponta de Areia (Itaparica), cuja identidade especifica è conferida
pela conexão da estrutura econômica e familiar com o culto dos antepassados —
o chamado culto de Babá Egun—, praticado paralelamente ao culto dos Orixás
(BRAGA:1992). Esta comunidade è conhecida por integrar vários terreiros de
Babá Egun presentes no local, perpetuando assim um importante patrimônio
constituído de mitologia, musica e cantigas, cerimônias e rituais, estética religiosa,
etc.
Baluarte de uma organização patrilinear de origem africana (yoruba),
fundamentado no conteúdo tanatólogico e de procedência (BRAGA, 1992:123),
este culto detêm ainda hoje um relevante papel nas referencias genealógicas e na
evocação de uma tradição religiosa ligada à ‘africanidade’. Permanecendo no
âmbito da linhagem, o culto,
iniciatico e masculino, se expressa por meio de
praticas rituais e cerimônias que, embora relativamente abertas, acabam
sobretudo reforçando vínculos entre famílias extensas e determinando normas,
valores e atividades destes grupos domésticos2.
Continua assim sendo evocado, no Brasil, um principio dinástico (de proveniência
ioruba, região de Oyo), associado à uma ancestralidade masculina concebida
como o acervo de costumes e tradições (ELBEIN DOS SANTOS, 1975:120). No
mesmo tempo, a iniciação ao culto de Egungun
3
promove um laço de irmandade
entre os membros destas sociedades secretas, constituindo um tipo de rede
solidária que lembra a ‘maçonaria’ (Elbein dos Santos, 1975:119). Trata-se de um
Segundo Braga (1922:27), nas primeiras décadas do século XX, Eduardo Daniel de Paula fundou o culto de
Egun em Ponta de Areia, cuja população se considera, na maioria dos casos, descendente dele. O Omo Ilê
Aboulá, fundado por Eduardo, encontra-se hoje, entre vários outros terreiros, no sitio de Bela Vista em Ponta
de Areia. Os terreiros de Egun constam de uma área aberta, de um barracão e do Ilê Awô - a casa do
segredo. No Ilê Awô são abrigados os assentamentos, os paramentos e instrumentos rituais. Braga refere-se a
grupos ‘domesticos’, em quanto “unidade mantenedora da residência, estruturada para prover os recursos
materiais e culturais indispensáveis à sobrevivência de seus membros” (1992:55).
2
O termo geral de s Egun remeta os espíritos de pessoas falecidas; o termo Egunguns ou Baba Egun indica
aqueles espíritos preparados a voltar agindo como antepassados no meio da coletividade.
3
9
culto cuja finalidade è a permanência da relação com os espíritos daqueles
homens que foram figuras destacadas em suas comunidades religiosas, isto é,
iniciados à cargos sacerdotais. Portanto, eles preservam, post mortem, a própria
individualidade e marcam, paralelamente, a identidade do grupo familiar.
Em Ponta de Areia são presentes vários terreiros de Egun4. Os espíritos dos
ancestrais,invocados para se mostrar publicamente, recebem o nome Egungun,
ou simplesmente Babá (pai). O espaço público se localiza numa parte do barracão
de festas, uma outra parte sendo reservada aos oficiantes (Ojés) que acolhem,
durante as cerimônias, os Egunguns manifestados sob roupas litúrgicas
(chamadas de opá, estas roupas são compostas de tiras de pano e enfeitadas de
búzios, espelhos e contas).
Os Babás manifestados (os espíritos
materializados
de baixo dos roupões
litúrgicos), não podendo ser tocados pelos humanos, são controlados pelos Ojés
(sacerdotes) que os conduzem com pequenos toques de varetas (ixan). Os Babás
aparecem publicamente dançando, cantando, benzendo e falando com voz
‘inumana’ numa língua litúrgica incompreensível para os leigos (derivada de um
dialeto yoruba), traduzida pelo Ojés que os acompanham. Eles dão conselho,
reclamam das transgressões às normas e atendem a pedidos em troca de
oferendas. Os serviços rituais constitui renda e proporciona prestigio aos ojés,
cuja autoridade masculina no âmbito social e domestico é reforçada pela alta
posição hierárquica no culto (BRAGA, 1992: 55).
Não é este o lugar para um estudo aprofundado sobre a complexidade ritual deste
culto, pois queremos simplesmente ressaltar como comunidades se reconhecem e
se redefinem junto aos comuns antepassados, re-atualizando um patrimônio
religioso e um percurso familiar e histórico5. Os objetos sagrados, os
Lembramos entre eles, além do Ilê Olokotum (originado do antigo e famoso Ilê Tuntun) e o Ilê Agboulá
(fundado durante o primeiro quarto de século passado) e o mais recente Ilê Oya, considerado uma
ramificação do mesmo Agboulá (ELBEIN DOS SANTOS, 1975:119).
4
5
Assim, por exemplo, Baba Olukotun é considerado o mais antigo ancestral trazido da África :
‘assentado’ em Itaparica, foi depois levado em Salvador no terreiro Ilê Asipa liderado por Mestre
10
assentamentos notadamente, percorrem, portanto, territórios e fundamentam a
abertura de espaços sagrados, redefinindo identidades, articulando o tempo
passado ao presente. A ancestralidade atravessa os espaços, desterritorializa-se,
mantendo-se ‘memória’ de um percurso familiar e ancestral, isto é, se referindo a
África em quanto lugar de origem.
Conclusão
Os Eguns constituem um ponto de referencia na construção da autoridade
masculina e na determinação das regras do grupo todo. Trata-se de uma
dimensão coletiva e
abrangente, bem diferenciada daquelas regras pessoais
(quizilas) associadas ao culto dos orixás. Os perigos de contaminação parecem
situar-se
nesta
dimensão
ética.
Podemos,
assim,
supor
uma
relação
complementar entre as quizilas pessoais, associadas a construção da pessoa e
as normas coletivas ligadas ao culto dos ancestrais. As quizilas são regras
relativas, cuja infração é desvendada por sintomas, isto é, indícios
de
sensibilidades pessoais. Os Eguns determinam contaminações em lugar de
sensibilidades: eles pertencem ao mundo de além, não devem encostar os vivos,
nem podem marcar identidades especificas (portanto, devem-se limitar os
contatos, e as varetas dos ojés servem para evitar encostos). Mais associados à
uma ética grupal, o culto de Baba Egun complementa, assim as regras
constitutivas de singularidades.
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África. A partir dos textos de Elbein do Santos (1975:119) e Santos & Elbeins dos Santos (1969: 79-108)
sabemos que um terreiro de Vera Cruz (Ilha de Itaparica), foi fundado em torno de 1820 por um africano
chamado Tio Serafim que trouxe da África o Egun de seu pai, invocado até hoje como Egun Okulelê.
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16
i
As quizilas pessoais podem ser descobertas através do jogo de búzios mas também segundo critérios
divinatórios secundários que levam em conta regras de confirmação (por exemplo, se um alimento fizer mal,
por três vezes ou mais , torna-se quizila ou confirma-se o jogo).
O jogo de búzios, sistema de adivinhação utilizado no Candomblé e geralmente praticado pelos chefes dos
terreiros (pai ou mãe-de-santo), prevê 16 odus principais, oráculos, determinados pela configuração dos 16
búzios na mesa do jogo (abertos ou fechados): por cada odu certos orixás se fazem presentes, assim como è
identificado o mito (itã) que mais combina com a problemática do cliente. Os orixás falam nos odus, no caso,
por ex., de uma configuração de 9 búzios abertos, respondem ao quesito do cliente da consulta os orixás Iansã
ou Iemanjá (cf. Aquino 2005).
ii
Um depoimento do pai-de-santo Genivaldo descreve ardilosos acontecimentos que fizeram com que Iansã
“pegasse” a quizila de carneiro: “Iansã, chamada também Oyá, teve nove filhos. Quando ela estava grávida de
seu filho caçula, ela soube que ele era abiku, quer dizer, ‘nascido para morrer’, isto é, destinado a morrer
pequenininho. Oyá foi ver Ifá (orixá da adivinhação) e Ifá mandou ela fazer um ebò (oferenda) no ‘caminho do
nove’. Ela tinha que oferecer nove oferendas de comida, assim ela dava a energia ao ‘caminho’ (signo do
destino, odu) e receberia em troca a energia de outra forma. Era uma oferenda (ebò) para não deixar ir embora
o filho que ela ia parir. Infelizmente, um carneiro comeu a oferenda que ela tinha arriado e o filhinho dela
morreu logo depois de nascer. Um filho-de-santo cabeça de Iansã como aquele ligado ao odu Ossá, um odu
relacionado com o caminho de Iansã, não deve comer carne de carneiro” (Genivaldo de Omolu).
iii
As diferentes qualidades de um orixá podem ser enxergadas como os diferentes aspectos de uma mesma
‘energia’, de um mesmo princípio classificatório (o orixá geral). Em quanto protagonistas de diferentes
historias míticas, os orixás ‘gerais’ assumem características e nomes particulares (cf. Goldman 1987).
iv
Para tomar conhecimento das viária quizilas do Candomblé ver Augras (1987). Aqui nos limitamos a citar
somente algumas quizilas, sendo que o nosso interesse è focado na noção da eficácia negativa.
v
vi
Filha de santo com mais de sete anos de iniciação e com os rituais (obrigações) de confirmação cumpridos.
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