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A CRISTOLOGIA NO EVANGELHO DE MARCOS
Possibilidade para compreender “Quem é Jesus?”
Junior Vasconcelos do Amaral*1.
RESUMO
Este artigo visa a apresentar a Teologia do Evangelho de Marcos. Para este intento, far-se-á uma incursão nos
títulos cristológicos, percebendo o convite explícito de Jesus: “Vem e me segue”. Deste modo, o Evangelho de
Marcos pode ser compreendido como uma cristologia narrada, que objetivamente deseja dos seus ouvintes a
vivência do discipulado, como experiência fundamental para se responder à pergunta “quem é Jesus?”.
PALAVRAS-CHAVE: Evangelho de Marcos; Cristologia; Títulos cristológicos; Narrativa.
ABSTRACT
This article aims to present the Theology according to St. Mark. For this purpose, it will make an incursion in
the Christological titles which lead to the explicit Jesus’s invitation: “Come follow me”. In this way, the Gospel
of Mark can be understood as a narrated Christology, that explicitly desires the listeners to live the discipleship
as the main experience to answer the following question: “who is Jesus?”.
KEYWORDS: Gospel of Mark; Christology; Christological titles; narrative.
Introdução
Nos tempos atuais, o Evangelho de Marcos tem sido motivo de investigação e
estudos2. Por se tratar de uma narrativa rápida e sintética, este Evangelho despertou a
curiosidade dos estudiosos bíblicos. Trata-se de lembrar que Marcos inaugura um novo
gênero3 narrativo designado Evangelho e a novidade reside em falar sobre Jesus de Nazaré de
forma teológica, sem precisar necessariamente da história ou do aparato científico, já que
*
Mestre em Teologia Sistemática pela Faculdade Jesuíta de Filosofia e Teologia (FAJE).
Cf. HERRERO, F. P. Evangelio según san Marcos. In. GUIRRARO OPORTO, S.; SALVADOR GARCIA, M
(Eds). Comentário al Nuevo Testamento. 2. ed. Madrid/Atenas, Madrid/PPC, Salamanca/Sígueme,
Navarra/Verbo Divino, 1995. p. 126. No início do século XX, em 1901, com a obra Das Messiasgeheimnis in
den Evangelien, Zugleich ein Beitrag zum Verständnis des Markusevangeliums, de William Wrede, dá-se o
impulso à pesquisa sobre o Segundo Evangelho.
3
O autor proto-cristão, Marcos, resume a tradição de Jesus a partir de suas comunidades, entendendo
“evangelho” no sentido de um livro e de um gênero literário, afirma PESCH, R. Il vangelo di Marco. vol 1.
Brescia: Paideia, 1980. p. 33. Cf. inclusive FOCANT, C. Evangile selon Marc. Paris : Cerf, 2004. p. 29.
Também cf . BULTMANN, R. L’ histoire de la tradition synoptique, suivie du complément de 1971. Paris: A.
Malet, 1973. p. 452.
2
1
também o Evangelho e a Bíblia não se tratam de narrativas científicas, mas de discursos
teológicos sobre Jesus de Nazaré.
Este artigo, portanto, visa a apresentar a Cristologia marcana ou melhor a narrativa
de Marcos sobre Jesus de Nazaré. Para isso apresentar-se-ão os títulos cristológicos
percebidos no relato marcano sobre Jesus. Por fim, o interesse é verificar como Marcos
responde à pertinente questão “Quem é Jesus?” e também como ele, subjacentemente,
apresenta o convite ao discipulado, o seguimento de Jesus.
1. A cristologia de Marcos
O Evangelho de Marcos foi definido por Martin Dibelius como o “livro da epifania
secreta”4. Esta definição pode ser julgada justa e não superada, pois Marcos evoca uma
revelação ascendente de Jesus, o Messias, o Filho de Deus, na história dos homens da
Palestina. E esta revelação chegou aos tempos hodiernos. A revelação do Messias torna-se
visível na estrutura da obra marcana. Esta revelação se dá de modo surpreendentemente bem
estruturada5, podendo-se dizer que o Evangelho de Marcos em sua intenção e estruturação
quer revelar quem é Jesus de Nazaré, o Filho de Deus.
Marcos, movido pelo Espírito, visa a preservar para a Igreja do porvir as tradições
apostólicas da “memória de Jesus” ou a “tradição de Jesus”, considerada o fundamento do seu
Evangelho. A cristologia de Marcos, a “memória de Jesus”, é clara e surpreendente. Ele
apresenta Jesus como verdadeiro homem. Jesus, em sua condição humana, precisa orar (1,35;
6,31), comer (2,16), beber (15,36). Jesus, para Marcos, sente fome (11,12), toca as pessoas
(1,41), é tocado por elas (5,57), fica triste (3,5) e se indigna (10,14). É homem que também
sente sono, cansaço e é despertado nos momentos de sono (4,38-39). Homem de
conhecimento limitado (13,32), pois precisa olhar em seu derredor para ver quem o tocou
(5,30). Por fim, como todo ser humano passa pela trágica experiência da morte (15,37).
Marcos percebe na vida de Jesus a epifania de Deus. A cristologia marcana, não
nega a divindade de Jesus. Ao contrário, é com a exousia (exousia: poder autorizado) do Pai
que ele fala e age. Marcos descreve Jesus como o soberano sobre o reino da enfermidade
(1,40-45; 8,22-26; 10,46. 52), dos demônios (1,32-34) e da morte (5,21-24,35-43), e também
4
Cf. CONZELMANN, H. Teologia del nuovo testamento. Brescia: Paideia, 1972. p. 184.
A concepção de Marcos, sua revelação resulta da estrutura do livro. Em termos literários, a configuração de sua
obra é primitiva e elementar. Mas, do ponto de vista teológico, sua obra se revela surpreendentemente bem
estruturada. Isso pode ser notado já na introdução: Princípio do Evangelho de Jesus Cristo em grego Varch. tou/
euvaggeli,ou VIhsou/ Cristou. (cf. CONZELMANN, 1972, p. 184).
5
2
sobre os elementos da natureza (4,35-41; 6,48; 11,13-14,20). Jesus prediz o futuro (8,31; 9,921; 10,32-34; 14,17-21), conhece os corações humanos (2,8; 12,15) e, por fim, vence a
própria morte (16,6).
Relatar o “caso” Jesus e sua memória, como “Boa-Nova” de Deus, é questão
meritória de Marcos. Ao empreender esta jornada, ele relata a história de um homem inserido
numa situação, num contexto, num tempo e num lugar, sem arrancá-lo de Deus6. O autor do
Segundo Evangelho traduz a experiência do homem Jesus, o Filho único de Deus, Deus feito
carne na história dos homens, sem desconectá-lo da história divina.
Em sua cristologia narrada, Marcos elabora um importante conceito teológico: o
“segredo messiânico”, também conhecido como “teoria do segredo”7. A narrativa de Mc tem
em 4,11, com a palavra misterion (mysterion), o ponto de apoio para a formulação do segredo.
Esta expressão aparece apenas uma vez no Evangelho. No episódio da transfiguração, Jesus
ordena a seus discípulos que desçam do monte e não digam a ninguém o que viram, até que o
Filho do Homem ressuscite dentre os mortos (9,9). Sobre a revelação, cai o véu do
ocultamento, ao menos até que Jesus tenha concluído sua vida terrena. Ocultamento que se
faz através das ordens de silêncio8.
O ocultamento ou segredo messiânico, concernente ao próprio texto do Evangelho,
explicita que Jesus, mesmo revelando sua exousia, quer manter-se anônimo durante a vida
terrena, ordenando que somente após o tempo pós-pascal se anuncie quem ele é (9,9). Não
resta dúvida sobre a importância desse segredo para a teologia do Evangelho de Marcos.
O segredo messiânico ganha visibilidade nas ordens de silêncio aos possessos
(1,25.34; 3,12), aos curados (1,44; 5,43; 7,36; 8,26) e aos discípulos (8,30; 9,9), mas também
nos momentos de incompreensão dos seguidores a respeito do mestre Jesus (7,13; 8,17s; 9,30;
10,10). Há ainda duas outras ordens de silêncio, bem configuradas em passagens da tradição
marcana: o leproso deve calar-se até que as autoridades confirmem oficialmente sua cura
(1,44) e o demônio deve ficar calado quando se confronta com o Messias (1,25). Além destas
ordens de silêncio, que pertencem ao estilo de exorcismos, outras passagens foram
interpretadas por Marcos no contexto do “segredo messiânico”, a saber, 1,34 e 3,12.
6
Cf. MOINGT, J. O homem que vinha de Deus. São Paulo: Loyola, 2008. p. 248.
A concepção do segredo messiânico, apresentada por W. Wrede (na obra Das Messiasgeheimnis in den
Evangelien, em 1901) influenciou poderosamente em todos os estudos seguintes sobre a cristologia marcana.
Muitos estudiosos procuraram rechaçar esta teoria do segredo messiânico. Percebe-se que alguns conceitos,
sobre tal “segredo”, mudaram desde a primeira concepção. (cf. GNILKA, J. Teologia del Nuevo Testamento.
Madri: Trotta, 1998. p. 167). Não podemos deixar de mencionar outra importante sobre o segredo messiânico:
TILLESSE, G. M. Le Secret Messianique dans l'Évangile de Marc. Paris: Cerf, 1968.
8
Cf. GNILKA, 1998, p. 167.
7
3
O procedimento literário do segredo inaugurado por Marcos nem sempre foi
percebido na história da exegese. No entanto, consiste, objetivamente, em dizer que o
“segredo do Filho de Deus”9 se desvela à luz do Ressuscitado. O acontecimento pascal é,
portanto, condição sine qua non de possibilidade para a compreensão de fé na revelação em
Jesus de Nazaré, o Filho de Deus.
O segredo messiânico, em Marcos, substitui ainda os relatos das aparições pascais
presentes nos demais Evangelhos. O esquema do segredo, ou melhor, a idéia de revelação
implicada nele se interessa em desdobrar a cristologia narrada, que pode ser compreendida a
partir do horizonte da querigmatização da tradição de Jesus. Atrás do processo literário, do
velar e desvelar, não se esconde os atos da vida de Jesus, mas esconde-se o fato mesmo de
que o anunciador se converteu em anúncio. Jesus é anunciado a partir da perspectiva pascal.
Ele mesmo não se anunciou, mas proclamou o advento do Reinado de Deus. Jesus, portanto,
ao ser compreendido a partir da perspectiva da cruz e ressurreição não é mais segredo, mas é
querigma, anúncio encorajador para o discipulado.
Chama a atenção, que o convite ao silêncio – e não uma ordem de silêncio – volte a
se repetir no final aberto do Evangelho. Este fato pode ser interpretado no horizonte do
segredo messiânico. As mulheres que junto à porta do sepulcro escutaram a mensagem da
Páscoa deveriam falar, mas “não disseram nada a ninguém, pois tinham medo” (16,8b). Por
que no momento em que a ordem é proclamar, falar sobre o ocorrido, as mulheres preferem o
silêncio? Evidentemente, esta passagem não deve ser compreendida historicamente, mas
teologicamente, pois neste momento o Evangelho atinge seu clímax narrativo, conduzindo o
ouvinte da Palavra a fazer, per si, uma hermenêutica para a vida de discípulo de Jesus.
O Evangelho de Marcos convoca o ouvinte da Palavra a responder à pergunta:
“Quem é Jesus”? Assim, o Segundo Evangelho, constituindo-se uma cristologia narrativa,
convida o discípulo a se decidir por uma fé radical em Jesus10. O ouvinte da Palavra é
chamado à dinâmica do seguimento ou se preferir pode ficar parado diante do sepulcro vazio
e sem vida.
De acordo com a narrativa marcana, a resposta mais adequada à pergunta “Quem é
Jesus?” é: Ele é o Messias, Filho de Deus, crucificado-ressuscitado. Ao recorrer às confissões
presentes na obra marcana, a de Pedro (8,29: “Tu és o Cristo”) e a do centurião romano
(15,39: “Verdadeiramente, este homem era Filho de Deus”), pode-se afirmar que, para
9
Cf. GNILKA, J. El Evangelio según san Marcos. Vol.1 Salamanca: Sígueme. 1986. p.198
Cf. GNILKA, 1998, p. 168.
10
4
Marcos, Jesus é o enviado de Deus (9,37). O objetivo deste Evangelho é difundir a fé em
Jesus, outorgando à sua “história” terrena um inestimável valor teológico. A história terrena
de Jesus é convite constante ao discipulado. Nesta perspectiva, nota-se que a cristologia de
Marcos está embebida da intriga do convite ao seguimento, que pode ou não ser acolhido pelo
leitor ou ouvinte.
Marcos, inaugurando sua cristologia narrada, lança um foco de esperança para o
futuro dos cristãos, pois ao revisitar a narrativa cristológica de Marcos, esta se converte em
possibilidade de elucidação da práxis cristã do discipulado. A cristologia narrada, construída a
partir da arte de recontar os fatos e palavras que envolveram Jesus, converte-se, portanto, em
convite para o seguimento e para a práxis de fé.
O discípulo, aceitando o convite para o seguimento, se depara com a resposta à
questão cristológica. É no caminho e na intimidade de Jesus que se desvelam a beleza e a
exigência do conhecimento dele. No seguimento de Jesus, a caminho da cruz do Calvário, se
descobre o segredo do Messias e se pode responder à pergunta: “Quem sou eu para vós?”.
Desta maneira, torna-se oportuno considerar a narrativa marcana uma cristologia do
caminho. Pois, ao descrever teologicamente as palavras e a ações de Jesus, Marcos deseja
revelá-lo em sua identidade. O Segundo Evangelho constitui-se, portanto, convite aberto à
liberdade do discípulo no caminho de Jesus. O discipulado é experiência de graciosa e
desafiadora, tornando-se, para aquele que se aventura a caminhar, possibilidade para o
conhecimento de Jesus, à medida mesmo que se põe a caminho.
2. Títulos cristológicos em Marcos
Ao se deparar com a narrativa do Evangelho de Marcos pode se perceber a presença
de alguns títulos de Jesus, tais títulos podem elucidar a pergunta cristológica “Quem é
Jesus?”. Explicitamente, Marcos inicia sua narrativa afirmando, “Princípio do Evangelho de
Jesus Cristo, Filho de Deus” (1,1). Tanto a expressão Jesus Cristo quanto o predicativo Filho
de Deus são claramente indícios de que a intenção marcana é apresentar Jesus, o CristoUngido do Pai, como o verdadeiro Filho de Deus, o Filho do Homem11.
O título “Filho de Deus” está destacado na obra marcana em: 3,11; 5,7; na confissão
dos demônios; 1,11 na declaração do Pai no batismo; em 9,7 na narrativa da transfiguração e,
por último e não menos importante, em 15,39 na exclamação feita pelo centurião junto à cruz.
11
Cf. TUYA, M. Biblia comentada: evangelios. BAC: Madrid, 1963. p. 615.
5
Provavelmente a expressão Kyrios12 (11,3; 16,20) tenha o mesmo sentido que tem o título
“Filho de Deus”, pois expressa senhorio e poder. São expressões típicas da Igreja primitiva.
No entanto,
“Marcos, sem dúvida, não conheceu a teologia paulina, já que, em seu evangelho,
não se descobrem vestígios de uma ‘preexistência’ do Filho, antes da sua
encarnação. Apresenta-nos simplesmente a sua teologia do Filho de Deus ao relatar
a vida pública de Jesus”13.
Em algumas passagens, também se percebe, a atribuição de poderes divinos a Jesus:
ele perdoa pecados (2,5-12), é senhor dos anjos (13,27), leva os escribas a verem a
transcendência do Messias (12,35-37) e proclama-se “senhor” do sábado (2,28)14.
Quanto ao título “Filho de Davi” (10,47; 12,35-37), pode-se atribuir-lhe uma
conotação messiânica. Com relação ao título “Filho do Homem”, discutiu-se, no decorrer dos
tempos, se Jesus o toma exclusivamente de Dn 7,14 ou se procede das narrativas apocalípticas
contemporâneas a ele ou ainda das parábolas de Henoc.
O título Cristo, ou Messias, enseja a discussão se se procede das narrativas
apocalípticas ou da tradição profética? De fato, o título de Messias pode estar ligado à
imagem do servo sofredor de Isaías, mas também pode aludir a figura do glorioso-divino
Filho do Homem de Daniel, conforme a evolução deste título na hermenêutica bíblica judaica.
É possível, de acordo com Pesch, afirmar que, na narrativa marcana, o Messias Jesus assume
tanto o papel de servo sofredor quanto a figura do Filho do Homem15.
Por fim, o primeiro título, Cristo, destaca a grandeza do Ungido (na narrativa dos
milagres), e o segundo, Messias, destaca a obediência do Servo Sofredor (na narrativa da
Paixão, no qual Jesus carrega sua cruz até o Gólgota). Os títulos cristológicos, concebidos
por Marcos, servem para narrar a história de Jesus e autenticar o convite ao discipulado dos
cristãos de todos os tempos e lugares.
A cristologia narrativa, portanto, pretende elucidar a realidade de Jesus, o Cristo, em
seu sofrimento e glorificação. O autor de Marcos, ao falar de Jesus aos primeiros cristãos do
caminho, lança no horizonte futuro as razões hermenêuticas para responder àquela pergunta
fundamental, “Quem é Jesus?” Por fim, a narrativa marcana almeja nortear os passos dos
12
O título “Senhor” dado a Jesus nestes versículos não é um dado marcano, afirma Schweizer (Cf.
SCHWEIZER, E. Il vangelo secondo Marco. Brescia: Paideia, 1971. p. 396).
13
GONZÁLES, C. I. Ele é a nossa salvação. São Paulo: Loyola, 1992. p. 214.
14
Cf. TUYA, 1963, p. 615.
15
PESCH, 1980, p. 111.
6
discípulos no horizonte da fé, da esperança e da profunda experiência de Jesus, o Messias, o
Filho de Deus.
3. O Segundo Evangelho: intenção e conteúdo
“Coragem! Ele te chama. Levanta-te”. (Mc 10,49)
A obra do autor de Marcos constitui uma cristologia narrativa do caminho16. Após
elucidar as perspectivas distintas que condensam a obra marcana, o leitor é convidado a
contemplar esta obra como um grande convite ao discipulado de Jesus: “Segui-me” (Mc 1,17).
O ouvinte da Palavra é chamado a dar uma resposta à revelação de Deus em Jesus, o Cristo. A
obra de Marcos é, em sua construção e transmissão, tentativa hermenêutica da
autocomunicação de Deus à humanidade e aos discípulos do mestre Jesus.
A narrativa cristológica do caminho é perpassada pela epifania de Deus em Jesus e
inspirada pelo Espírito. É este Espírito que concede inteligência e perspicácia ao hagiógrafo e
à comunidade que vive a experiência de Jesus, o crucificado-glorioso. A narrativa por si só é
uma hermenêutica, dá a pensar, revelando-se como alteridade inédita e livre.
A “Boa-Nova” de Marcos explicita a epifania de Deus em Jesus a todo o gênero
humano. A revelação de Deus é, já, condição de possibilidade de acolhida ao mistério da
Encarnação do Filho. O Verbo encarnado é consolidação do projeto divino da Salvação.
Projeto constituído por vias humanas, na imanência aberta e diligentemente obediente a Deus.
Jesus, ao entrar no mundo, nascido na carne é interpretado, tornando-se força
estimulante e norteadora para a comunidade dos seus seguidores. O Evangelho, por sua vez,
torna-se mensagem salutar e instigante, confirmando que o desejo de Deus é a felicidade
humana, a bem-aventurança da Criação, revelando que o sonho divino, a vida do homem, só
se concretiza a partir e por meio do compromisso exigente do caminho de Jesus. A cristologia
narrativa de Marcos é ao mesmo tempo a Palavra de Jesus aos homens na história e o seu falar
sobre Jesus como memória na história. É uma mensagem nova e desafiadora.
A obra marcana, de sóbria narratividade, revela o desejo de Deus em Jesus: que o
discípulo vá à Galiléia (Mc 16,7), a fim de lá experimentar a força dinâmica daquele que vive,
constatando o seguro querigma do centurião romano “Verdadeiramente ele era o Filho de
16
Muitos versículos do Evangelho de Marcos evidenciam o ir e vir de Jesus, tanto para a Galiléia ou Cafarnaum,
quanto para Jerusalém e seus arredores. Jesus está sempre em movimento (cf. 1,16. 21. 35; 2,1. 13. 23;
3,1. 7.13. 20; 4,1. 35; 5,1. 21; 6,1. 45; 7,24. 31; 8,10. 22. 27; 9,2. 9. 28. 30. 33; 10,1. 17. 32. 46. 52;
11,1. 11. 15. 11. 20. 27; 13,1; 13,3; 14,3. 17. 26. 32).
7
Deus”. O móbil da Ressurreição não permite que o discípulo se estagne em Jerusalém, local
da morte, mas instaura sempre mais o desejo de “ver” Jesus que está vivo na Galiléia dos
discípulos e discípulas.
A experiência do Ressuscitado, que passou pela morte, é o convite do Evangelho de
Marcos. Para viver segundo a Ressurreição, faz-se mister, antes de tudo, “tomar a cruz” e
seguir a via do crucificado, rumo à Jerusalém, confiante nas promessas de Deus. Trilhar os
caminhos de Jesus consiste afirmar que o Mestre está sempre à frente e que só se faz o
caminho, quando se põe a caminhar. Da Jerusalém do poder para a Galiléia marginalizada é
que o Evangelho chega ao seu clímax. É, portanto, na Galiléia que o discípulo haverá de
reconhecer Jesus.
Destarte, Marcos, ao compor sua obra narrativa a respeito de Jesus, instaura um
processo idôneo e inédito na intenção de impedir que Jesus histórico ficasse no esquecimento.
A novidade da narrativa marcana consiste na forma e no modo da exposição da Boa Notícia17.
Quanto ao conteúdo, sabe-se que este procede, em sua maior parte, da ampla tradição sobre
Jesus de Nazaré.
No centro da intenção marcana está o problema teológico: evitar o esquecimento de
Jesus, o Filho de Deus. O interesse histórico é conseqüência. Porém, o que importa mesmo é a
mensagem central: “Quem é Jesus?” O Messias do segredo, o sofredor ou o Ressuscitado?18.
Considerando o procedimento literário de Marcos, “não é aconselhável esperar uma
teologia unitária no Evangelho”19. Marcos não pretendeu elaborar uma teologia
sistematicamente acabada. Mas, constituiu teologias abertas, que possibilitam responder à
pergunta que não quer calar: “Quem é Jesus?” É pertinente a dúvida relacionada à afirmação
de que haja no Evangelho de Marcos um sentido unitário. Pois, em Marcos, é possível
encontrar teologias entrecruzadas percebidas a partir da leitura da redação final. A novidade
teológica do evangelista se instala, essencialmente, no fato de ele fornecer à sua obra uma
estrutura narrativa, que leva em consideração o legado da tradição e a narrativa pré-marcana
da Paixão, constituindo uma teologia sobre a vida de Jesus.
Em matizes gerais, uma estrutura teológica do Segundo Evangelho poderia ser
traçada a partir da dinâmica narrativa apresentada pelo autor. Primeiramente, Jesus é recebido
favoravelmente pelas multidões; depois, seu messianismo humilde e espiritual decepciona a
expectativa do povo e o entusiasmo se arrefece; então Jesus se afasta da Galiléia para se
17
Cf. GNILKA, 1998, p. 162.
PESCH, 1980, p. 110.
19
Idem, p.101.
18
8
dedicar à formação do pequeno grupo dos discípulos fiéis, cuja adesão incondicional ele
obtém no momento da confissão de Pedro em Cesáreia de Filipe. Esse momento decisivo
determina e orienta as coordenadas do ministério de Jesus, que se consumará drasticamente
em Jerusalém. A oposição cada vez maior o conduz ao drama da paixão que é, finalmente,
coroado pela resposta vitoriosa de Deus na ressurreição de Jesus. A resposta sobre a
identidade de Jesus está claramente presente no seguimento, no discipulado inaugurado por
Jesus. Ele chama ao seguimento e instrui como mestre aqueles que o seguem.
Marcos consegue, portanto, atingir sua finalidade ao escrever o Evangelho: resumir a
tradição de Jesus para a primeira geração cristã. Ao unir a práxis missionária de Jesus à
catequese (didaskalia) do mestre, Marcos delineia o itinerário teológico do Evangelho: uma
cristologia narrativa. Esta cristologia consiste em apresentar a tradição sobre o poderautoridade de Jesus de Nazaré, a pregação do Reinado de Deus, o querigma da salvação, o
sofrimento na cruz, a morte expiatória e a Ressurreição, como a ação de Deus na vida de
Jesus. Trata-se de três tradições conservadas sobre o Messias: o Filho do Homem, o Servo
Sofredor e o Filho de Deus20.
É ainda possível perceber na obra de Marcos três eixos em confluência. O primeiro
trata da Vida de Jesus. O segundo equivale ao eixo missionário. O terceiro eixo refere-se à
progressiva revelação celeste da dignidade de Jesus. Estes eixos podem ser denominados
teológicos21. Tais forças tensoras no Evangelho fazem parte, claramente, da “arte de tecer a
intriga”22. Marcos utiliza estes eixos como estratagemas literários, buscando narrar de forma
inteligível os acontecimentos com Jesus de Nazaré. Estes eixos, heterogêneos em um primeiro
olhar, se implicam mutuamente, constituindo a rede de relações, configurada em um tecido
narrativo. O autor do Evangelho, em sua prudência narrativa, busca conservar a tradição, não
só por meio da transmissão, mas igualmente da recepção e da interpretação presente na
narrativa textual. O texto, em sua tessitura, já se mostra narrado, recebido e interpretado pelo
autor e sua comunidade.
O primeiro eixo teológico, concernente à Vida de Jesus, comunica a preparação do
“caminho do Senhor”, anunciado por João Batista (1,2-8), encerrando com o Ressuscitado que
“precede” os discípulos à Galiléia (14,28; 16,7). O arco de tensão da vida de Jesus abarca a
20
Idem. p.111.
No intuito de reproduzir criativamente a tradição de Jesus, Marcos compõe sua obra por meio de temáticas
fundamentais: os arcos de tensão que, de acordo com Pesch, perpassam o Evangelho. PESCH, p. 117. Preferimos
aqui traduzir arcos de tensão, por eixos teológicos.
22
RICOEUR, P. A hermenêutica bíblica. São Paulo: Loyola, 2006. p. 288. Nesta obra, Ricoeur elabora os
principais recursos da teologia narrativa, designando-a narratologia.
21
9
história de Jesus apresentada por Marcos; não se trata de uma biografia, mas de uma história
epifânica, uma história de revelação. O caminho de Jesus é caminho para o sofrimento; ele sai
da Galiléia e vai para Jerusalém, lugar ápice de sua atividade. Em Jerusalém, o Ressuscitado
anuncia que é na Galiléia, na comunidade dos discípulos, que ele se revelará. Para a Galiléia,
encaminham-se os seguidores e é lá no ponto originante da atividade de Jesus, que se dará o
encontro com o Ressuscitado.
O segundo eixo é aretalogico: o autor do Evangelho atinge o reconhecimento da
verdadeira dignidade de Jesus. Este eixo pode ser considerado missionário, proveniente da
admiração, da aclamação ante o mistério da ação de Jesus, sobretudo por meio da narrativa
dos milagres. A atividade jesuânica está antecipada pelo anúncio de João Batista (1,7) e
acentuada no início da atividade na sinagoga de Cafarnaum em variação sempre nova. O eixo
aretalógico tem seu clímax na exclamação do centurião romano (cf. 15,39): “uma exclamação
transposta em evidência” 23, uma genuína profissão de fé.
Existe, evidentemente, entre os dois primeiros eixos uma união intrínseca, dado que a
vida do mestre Jesus é, ao mesmo tempo, epifania de Deus e objeto de admiração dos homens.
Tal objeto epifânico desencadeia a curiosidade e a decisão do seguimento por parte de
homens e mulheres. É possível afirmar que o livro de Marcos em sua totalidade é uma obra de
missão, um convite para o seguimento24.
O terceiro eixo – presente no início, no centro e no desenlace do Evangelho – diz
respeito à progressiva revelação celeste da dignidade de Jesus. Primeiro, no batismo (1,11),
depois, na transfiguração (9,7) e, por fim, na morte-ressurreição (15,33. 38; 16,6-8). Este eixo
pode ser entendido a partir do esquema: adoção, proclamação, aclamação. Um esquema
“místico gradual” 25, uma entronização gradual na realização da dignidade de Jesus. Ao ser
adotado pelo Pai, Jesus inicia seu ministério e gradualmente é compreendido pelos discípulos,
até ser proclamado messias do povo e, por fim, aclamado Filho de Deus. O crescimento
teológico revela a dinâmica marcana: revelar Jesus, o Messias, o Filho de Deus, aquele que
desperta o coração humano para o desejo do seguimento.
Para a Igreja de hoje, a obra de Marcos é peculiarmente preciosa, pois conserva a
tradição mais antiga sobre Jesus e inaugura a nova forma de falar sobre ele. Para Marcos, a
Boa Notícia sobre Jesus é uma cristologia narrada, compreendida como querigma, anúncio
proposto como caminho para o seguimento, para o encontro com Deus, na comunidade dos
23
Cf. PESCH, 1980, p. 118-119.
Cf. Idem. p. 120.
25
Idem. p. 120.
24
10
discípulos e na vida da Igreja. Ler, meditar e aplicar o Evangelho de Marcos na vida é
encontrar-se com Jesus que narra a si mesmo e convida o leitor e ouvinte à práxis do
testemunho.
4.
Considerações finais
Conclui-se que o Evangelho de Marcos apresenta ao seu leitor uma cristologia
narrada, na qual Jesus se revela como aquele que está do outro lado da porta, narrando a si
mesmo, falando de sua vida, como experiência fundamental para a salvação. A cristologia,
segundo a perspectiva marcana, diz respeito a Jesus que convida os seus interlocutores ao
seguimento, à experiência do Reinado de Deus, da eminente experiência da fé, que se
descortina como salvação e plenificação da história humana, fundamentada em Deus.
Portanto, ler o Evangelho de Marcos é adentrar no mistério salvífico de Cristo, em
sua dimensão mais plena. Ao ouvir Jesus, o discípulo se torna chamado à intimidade com o
Mestre e é convidado a participar de sua vida, tornando-se também narrador da Boa Nova, do
Evangelho.
5. Referências
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CONZELMANN, H. Teologia del nuovo testamento. Brescia: Paideia, 1972.
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Artigo recebido em 12.04.2011
Artigo aprovado em 01.06.2011
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