CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONCEITO JURÍDICO DE EMPRESA

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CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONCEITO JURÍDICO DE EMPRESA
CONSIDERAÇÕES SOBRE O CONCEITO JURÍDICO
DE EMPRESA À LUZ DO NOVO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO
Rosiane Sasso*
Introdução
Com o fim de atender às transformações econômicas e sociais
experimentadas pelo cenário nacional nas últimas décadas, o novo Código Civil,
Lei n.º 10.406 de 10 de janeiro de 2002, introduziu importante inovação
no
ordenamento jurídico brasileiro ao promover a codificação unitária de normas
civis e mercantis, mantendo, entretanto, a autonomia doutrinária e científica de
cada disciplina.
Dessa forma, o Código Comercial de 1850, em sua parte geral, foi revogado
pelo novo Código Civil que passou a disciplinar os domínios do direito
empresarial. O regramento da atividade empresarial está contido no Livro II do
novo Código Civil, sob o nome de “Direito de Empresa”, que trata basicamente da
caracterização do empresário, das sociedades empresárias, das sociedades simples e
de outros aspectos inerentes à atividade empresarial.
Ocorre que tais dispositivos não fornecem uma definição legal de empresa.
Diante de tal circunstância, faz-se necessário o delineamento da chamada teoria da
empresa, para que se possa entender o que vem a ser juridicamente a empresa e
distinguir as atividades empresariais das não empresariais, tomando por base a
noção de empresário fornecida pelo novo Código Civil.
O objetivo do presente trabalho consiste, portanto, em analisar as
implicações da adoção da teoria da empresa pelo novo Código Civil pátrio, na seara
da conceituação jurídica da empresa.
*
Advogada e Mestre em Direito Empresarial.
25
1 A teoria da empresa no âmbito da evolução histórica do Direito
Comercial
O papel que a empresa desempenha na sociedade contemporânea é de vital
importância, tendo em vista sua participação na produção e circulação de bens e
riquezas, na organização do trabalho, na influência da fixação do comportamento
de outras instituições, envolvendo, concomitantemente, interesses públicos e
privados. Com efeito, a empresa faz parte da realidade e o direito não pode ignorála. Tanto que afirma Fábio Konder Comparato:
Se se quiser indicar uma instituição social que, pela sua
influência, dinamismo e poder de transformação, sirva de
elemento
explicativo
e
definidor
da
civilização
contemporânea, a escolha é indubitável: essa instituição é a
empresa 1.
Dessa forma, a empresa, em sua existência econômica e social, de longa data,
passou a merecer a atenção dos juristas. Assim, para uma melhor compreensão
desse fenômeno na atualidade, faz-se necessário situá-lo dentro da evolução
histórica do Direito Comercial, que pode ser
dividida em quatro fases,
didaticamente dispostas em: fase primitiva; fase corporativa; fase do ato de
comércio e fase da empresa2. Cada uma dessas fases corresponde às necessidades
humanas da época, conforme revelam as palavras de Rubens Sant’Anna:
Na evolução histórica do comércio, cuja atividade remonta
aos mais recuados tempos, certos períodos foram marcados
por transformações profundas na vida da sociedade, criando
entidades novas compatíveis com a realidade emergente 3.
1
COMPARATO, Fábio Konder. Direito empresarial: estudos e pareceres. São Paulo:
Saraiva, 1995.p.3.
2
SALLES, Marcos Paulo de Almeida. A visão jurídica da empresa na realidade brasileira
atual. In RDM, Ano XXXIX, n.º 119, nova série. São Paulo: Malheiros Editores, Jul. – set.
2000. p. 94 -108.
3
SANT’ÁNNA, Rubens. A falência da empresa. Realidade contemporânea e perspectivas
futuras. In RDM, Ano XXV, n.º 64. São Paulo: RT, out-dez. 1995.p.37.
26
A primeira fase é marcada pela economia de troca dos produtos excedentes
entre os indivíduos pertencentes a primitivos grupos sociais. A evolução dessa
atividade de troca acabou por acarretar o surgimento da moeda como medida de
valor para a compra e venda de produtos. Nessa fase, contudo, as atividades
comerciais eram regidas basicamente por costumes, exceto o comércio marítimo,
para o qual foram desenvolvidas normas jurídicas próprias.
Com a especialização da produção, a partir do século XII, tem início a
segunda fase da história do direito comercial, onde os mercadores e artesãos
passaram a se organizar em corporações de ofício, ou seja, em ordens protecionistas
entre os praticantes de um mesmo ofício, transformando os costumes em regras
escritas, denominadas de Estatutos. A principal função destas corporações era a de
dirimir conflitos envolvendo os seus membros, aplicando-se as normas previstas
nos Estatutos. A referida fase evolutiva é também denominada de subjetiva pelo
fato de que somente aqueles que estivessem matriculados em uma corporação de
ofício eram considerados comerciantes. O âmbito de incidência do direito
comercial é, portanto, delimitado por um critério subjetivo.
O terceiro período ou fase da evolução histórica do direito mercantil, tem
início após a Revolução Francesa, com a promulgação do Código Comercial
francês de 1807, que substituiu o sistema subjetivo até então vigente pelo sistema
objetivo dos atos de comércio. De acordo com este último sistema somente era
considerado comerciante quem praticava um dos atos taxativamente enumerados
pela lei.
A teoria dos atos de comércio, desde então, passou a ser adotada por
diversas codificações do mundo ocidental, inclusive anos mais tarde pelo Brasil.
A expansão da economia no século XIX promovida pelo liberalismo e
acentuada pela Revolução Industrial fez, contudo, que a teoria dos atos de comércio
cedesse gradativamente lugar à teoria da empresa. Com efeito, as transformações
de ordem econômica ocorridas no seio da sociedade civil acabam sempre por
refletir seus efeitos no âmbito do Direito. Dessa forma, a partir das transformações
operadas pela Revolução Industrial, a empresa tornou-se figura de grande destaque,
27
merecendo a atenção dos juristas e ensejando formulações acerca de uma teoria
jurídica da empresa.
Nessa nova ordem, inscreve-se o Código Civil italiano de 1942, considerado
marco inicial da última fase evolutiva do direito comercial, que, além de fundar-se
totalmente na teoria da empresa, inovou ao disciplinar num mesmo diploma legal
a matéria civil e comercial4, acabando com a dicotomia do direito privado no
país5. Apesar do referido diploma legal não ter fornecido uma definição jurídica de
empresa, abarcou uma visão de seus principais aspectos, captando no mundo
jurídico o fenômeno econômico. A questão essencial que passou a preocupar os
juristas, desde então, traduz-se na busca de um conceito jurídico para a empresa.
2 A controvérsia acerca do conceito jurídico de empresa
Como ponto de partida, faz-se oportuno esclarecer que, ao longo de mais de
um século, os juristas têm se dedicado à busca de uma definição jurídica para a
empresa, ensejando
diversas formulações teóricas, sendo difícil expor com
precisão uma sistematização sobre o tema.
4
A propósito, Betyna Ribeiro de Almeida. Aspectos da teoria jurídica da empresa In RDM,
Ano XXXIX, n.º 119, nova série. São Paulo: Malheiros Editores, jul.- set. 2000.p. 243,
leciona: “ De fato, a dicotomia do Direito Privado já era objeto de preocupação para a
doutrina italiana desde o fim do século passado. Em 1892 Vivant defendeu o fim da
autonomia do direito Comercial na aula inaugural de seu curso na Universidade de Bolonha,
apontando diversas razões em favor da unificação do Direito Privado”.
5
Fábio Ulhoa Coelho. Curso de direito comercial. 5.ed. rev. São Paulo: Saraiva, 2001.vol
1.p.17, lembra que: “É fato que a uniformização legislativa do direito privado já existia em
parte na Suíça, desde 1881, com a edição de código único sobre obrigações, mas será o texto
italiano que servirá de referência doutrinária porque, embora posterior, apresenta uma teoria
substitutiva à dos atos do comércio. Com certeza, não basta a reunião da disciplina privada
das atividades econômicas num mesmo diploma legal, para que se eliminem as diferenças de
tratamento entre as comerciais e as civis. É necessária ainda uma noção teórica capaz de
constituir o modelo para esta disciplina, um sistema que se componha ao francês e o supere.
Se a legislação suíça já não apresenta diferenças entre as atividades dos comerciantes e a dos
não - comerciantes, sob o ponto de vista da disciplina das obrigações, não veio a inovação
acompanhada de uma reflexão doutrinária mais abrangente, que projetasse seus efeitos no
mundo jurídico de tradição romanística”.
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A controvérsia em torno da noção jurídica de empresa, no transcorrer dos
anos, entretanto, tem dividido a doutrina em duas principais correntes: uma que
defende a simples transposição da noção econômica para o plano jurídico e outra, a
tradução desse fenômeno em termos jurídicos.
Adepto da primeira teoria, o jurista espanhol Manuel Broseta Pont entende
que o conceito jurídico de empresa deve coincidir necessariamente com seu
conceito econômico. Para referido autor, a empresa é “una organización de capital
y trabajo destinada a la producción o a la mediación de bienes o de servicios
para el mercado”6. Esse é o conceito que, em linhas gerais, segue a maioria dos
economistas. Sob esse prisma, o direito positivo, ao se referir à empresa, deve fazêlo necessariamente em seu conceito econômico, ou seja, a empresa não pode ser
uma realidade distinta para o direito mercantil, para o civil, o fiscal, dentre outros.
O conceito jurídico de empresa deve ser válido e aplicável para todas as disciplinas
jurídicas, interessando a cada uma delas um diferente aspecto desse conceito
unitário. Sob esse prisma, conclui o autor que: “para el ordenamiento positivo
debe ser válido el concepto económico de empresa anteriormente postulado del
cual debe ser adoptado, pues, como concepto jurídico de empresa” 7.
Contrapondo-se ao conceito unitário de empresa válido para todos os ramos
do direito, Alberto Asquini, ao analisar o tema conforme trazido à luz pelo Código
Civil italiano de 1942, procurou afastar a desorientação doutrinária da época face à
ausência de uma definição legal, traduzindo o fenômeno sócio-econômico em
termos jurídicos. Para Asquini, a noção de empresa entrou no Código italiano com
um determinado significado econômico, mas isso não quer dizer que a noção
econômica deva ser utilizada como jurídica. Assim, reconhece a empresa como
“um fenômeno econômico poliédrico, o qual tem sob o aspecto jurídico, não um,
mas diversos perfis em relação aos diversos elementos que integram”8. Nesse
6
PONT, Manuel Broseta. Manual de derecho mercantil. 10. ed. Madrid: Editorial Tecnos
S.A, 1994.p.101.
7
PONT, Manuel Broseta. op.cit.p.102.
8
ASQUINI, Alberto. Perfis da empresa. Trad. de Fábio Konder Comparato. In RDM, Ano
XXXV, n.º 104, nova série. São Paulo : RT, out.- dez. 1996.p.109.
29
sentido, as definições jurídicas podem ser diversas, conforme o perfil sob o qual o
fenômeno econômico é encarado, sendo mais apropriado falar-se em aspectos
jurídicos do que em conceito jurídico de empresa.
Partindo de tal pressuposto, Asquini identifica quatro perfis para chegar ao
que chama de tradução dos termos econômicos para o plano jurídico,
compreendendo: o perfil subjetivo (a empresa como empresário); o perfil funcional
(a empresa como atividade empresarial); o perfil patrimonial e objetivo (a empresa
como patrimônio “aziendal” e como estabelecimento) e o perfil corporativo (a
empresa como instituição).
O perfil subjetivo identifica-se com a noção de empresário fornecido pelo
art. 2082 do Código Civil italiano, como aquele que exerce profissionalmente uma
atividade econômica organizada, tendo por fim a produção ou a troca de bens ou
serviços. Do ponto de vista funcional ou dinâmico, a empresa mostra-se como
“aquela força em movimento que é a atividade empresarial dirigida para um
determinado escopo produtivo”9. O perfil objetivo comporta os instrumentos de
que se vale o empresário para o exercício da atividade empresarial, podendo ser
compreendido como um complexo de relações jurídicas (patrimônio aziendal) ou
como complexo de bens (estabelecimento). E por fim, pelo perfil corporativo, a
empresa é considerada uma organização de pessoas, constituída pelo empresário e
seus colaboradores em função de um fim comum. A empresa, entendida sob esse
último aspecto, conduz ao seu enquadramento jurídico na figura da instituição10.
Em síntese, ao analisar os perfis da empresa, Asquini deixa claro que sua
definição jurídica pode variar de acordo com os diversos aspectos do fenômeno
econômico, ou seja, apresenta diferentes significados no Código Civil italiano, que
ora utiliza-a para indicar o sujeito da atividade organizada, ora para indicar o
conjunto de bens organizados, outras para exprimir o exercício da atividade
9
ASQUINI, Alberto. op. cit. p. 116.
10
Para Asquini. op. cit. p.12 : “O reconhecimento de uma organização de pessoas como
instituição implica somente no reconhecimento de um determinado modo de ser, das relações
internas entre os componentes da organização, em relação a um fim comum”.
30
organizada e finalmente a organização de pessoas que exercem a atividade
econômica. A respeito, conclui o autor:
...a técnica do direito não pode dominar o fenômeno
econômico da empresa para dar uma completa disciplina
jurídica, sem considerar distintamente os diversos aspectos,
em relação aos diversos elementos que nela existem 11.
A teoria formulada por Asquini foi imprescindível para uma compreensão da
empresa no plano jurídico, servindo de paradigma às novas concepções teóricas,
que passaram a apreciá-la criticamente, privilegiando um ou mais perfis em
detrimento de outros. Dessa forma, não logrou solucionar a controvérsia acerca da
conceituação jurídica da empresa.
É certo que o perfil que obteve uma posição de maior destaque é o que
identifica a empresa como atividade econômica organizada e, pois, pelo perfil
funcional.
Ressalte-se que todos os aspectos jurídicos pelo qual o fenômeno é encarado
são importantes, mas somente a atividade serve de elemento qualificador dos
agentes da produção como empresários (sujeito) e do complexo de bens como
estabelecimento (objeto), revelando uma íntima conexão entre os três conceitos.
Dessa forma, pode-se dizer que não há empresário ou estabelecimento sem que haja
uma atividade econômica organizada exercida profissionalmente.
3 A teoria jurídica da empresa no Brasil
A palavra empresa foi introduzida no ordenamento jurídico nacional pelo art.
19, § 3º do Regulamento 737 de 1850, que a incluiu dentre os atos considerados de
mercancia12. A partir desta aparição e, ante a falta de uma definição jurídica, a
11
Ibidem .op.cit.p.125.
12
O art.19, § 3º do Regulamento 737/50 considera como mercancia : “ as empresas de
fábrica, de comissões, de depósito, de expedição, consignação e transporte de mercadorias, de
espetáculos públicos”.
31
empresa passou a ser objeto de estudo dos juristas brasileiros.
Salienta-se que, embora o Código Comercial brasileiro de 1850 adotasse o
sistema francês dos atos de comércio, a legislação pátria13 conciliada à
doutrina14 e à jurisprudência15, de longa data vinha caminhando no sentido da
adoção do sistema italiano da teoria da empresa.
Essa teoria já se faz presente há algum tempo no ordenamento jurídico
nacional, como se pode inferir pela análise das várias referências à empresa feitas
pela legislação constitucional e infraconstitucional. Verifica-se, contudo, que em
diversos diplomas legais a palavra é empregada ao sabor das circunstâncias,
conforme a necessidade e os objetivos pretendidos pelo legislador sem a
observação de maiores rigores técnicos16.
Dentre os juristas brasileiros que mais profundamente se dedicaram ao tema,
encontra-se Waldírio Bulgarelli17, para quem a conceituação jurídica da empresa
deve partir da captação da essência desse fenômeno sócio-econômico no plano
jurídico. Daí para traduzir a significação global do fenômeno em sua
tridimensionalidade, utiliza-se da expressão “empresarialidade”18, que engloba os
conceitos de empresário, empresa e estabelecimento. Na visão de Bulgarelli, a
empresa pode ser entendida analiticamente como uma: “atividade econômica
13
Nesse sentido as Leis n.º 4.504/64 (Estatuto da Terra); 8.078/90 (Código de Defesa do
consumidor); 8.245/91 (Lei de Locações); 8.934/94 ( Dispõe sobre o Registro Público de
Empresas Mercantis e Atividades Afins) , dentre outras.
14
Seguem tal posicionamento: Sylvio Marcondes, Oscar Barreto Filho, Rubens Requião,
Fábio Konder Comparato, Ruy de Souza. Apud BULGARELLI, Waldírio. A teoria jurídica
da empresa: uma análise da empresarialidade. São Paulo: RT, 1985. p. 259.
15
Em RT 536/126, 555/191, 565/174, 566/170.
16
A esse respeito, Waldírio Bulgarelli. Sociedades Comerciais.8.ed. São Paulo: Atlas,
1999.p.316, esclarece que: “Inúmeras são as leis que se referem à empresa tanto que seria
impossível relacioná-las, mas pode-se perfeitamente anotar que realmente não imprimem ao
termo empresa o sentido de precisão técnica necessário, ora querendo significar empresário,
ora estabelecimento, ora sociedade estritamente, ora objeto de atividade, enfim uma
verdadeira miscelânea que em nada contribui para o seu perfeito entendimento, exigindo do
intérprete esforços inauditos”.
17
Ibidem. A teoria jurídica da empresa. cit. p.72
18
Explica Bulgarelli. A teoria jurídica da empresa. cit. p.19: “Termo que utilizamos para
exprimir numa idéia geral e abstrata aquilo que é próprio da empresa” .
32
organizada de produção e circulação de bens e serviços para o mercado exercida
pelo empresário, em caráter profissional, através de um complexo de bens”19. Vêse, por tal prisma, que a noção de empresa corresponde à de empresarialidade, já
que esta atinge o cerne daquele fenômeno através dos três conceitos
interpolarizados, excluindo somente o aspecto corporativo20.
É importante esclarecer que, com a entrada em vigor do novo Código Civil
brasileiro, Lei n.º 10.406/2002, a teoria jurídica da empresa foi adotada em
substituição a dos atos de comércio, promovendo, conseqüentemente, a unificação
do direito privado nacional. Referido diploma legal trata na Parte Especial, Livro II,
do Direito de Empresa, definindo em seu art. 966 a figura do empresário como
aquele que: “...exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a
produção ou circulação de bens ou de serviços”. O parágrafo único do citado
artigo, no entanto, exclui do conceito de empresário aqueles que exercem atividade
intelectual, de natureza científica, literária ou artística, ainda com o concurso de
auxiliares ou de colaboradores, salvo se constituir o exercício da profissão elemento
de empresa, ou seja, se a atividade específica dos mesmos se inserir numa
organização empresarial. Caso contrário, mesmo que empregue terceiros,
continuará sujeito ao regime próprio de sua categoria profissional.
De outra parte, quanto ao empresário rural e ao pequeno empresário, dispõe
que a lei assegurará tratamento favorecido, diferenciado e simplificado quanto à
inscrição e aos efeitos que daí decorrem. E em seu art.971, estabelece que o
empresário cuja atividade rural constitua sua principal profissão pode, observadas
as formalidades exigidas pelo art. 968, requerer sua inscrição no Registro Público
19
Ibidem. A teoria jurídica da empresa. cit. p.154.
20
Nota-se que Bulgarelli. A teoria jurídica da empresa. cit. p. 140, não inclui em sua
empresarialidade o quarto perfil identificado por Asquini, ou seja, o perfil corporativo. Sobre
o assunto referido autor explica que a noção jurídica de empresa passou a ser identificada pela
ótica das categorias jurídicas fundamentais, o sujeito, o objeto e os atos ou fatos, na primeira
compreendida o empresário, na segunda o estabelecimento e nestes últimos, a atividade,
deixando a organização dos colaboradores das empresas para o âmbito das relações
trabalhistas, onde à falta de uma categoria jurídica própria (porque e quando rejeitada a
perspectiva contratual), recorreu-se à instituição, embora sem maior relevo técnico - jurídico.
33
de Empresas Mercantis, caso em que, depois de inscrito, ficará equiparado, para
todos os efeitos, ao empresário sujeito a registro. A princípio, os exercentes de
atividades rurais estão dispensados dessa inscrição, mas não restaram excluídos do
conceito de empresário, podendo, por meio de ato unilateral de vontade, ficar
sujeitos ao regime geral imposto aos demais. Com isso, nota-se que, embora a Lei
n.º 10.406/2002 tenha sido influenciada pelo sistema italiano, ganhou contornos
próprios na realidade jurídica brasileira.
4 A supremacia do aspecto funcional na conceituação jurídica de
empresa
Frise - se que a palavra empresa é utilizada no plano jurídico com um
variado número de significados, porém,
há que se observar que as diversas
posições tomadas frente ao tema convergem sempre num mesmo sentido: partem
da idéia do fenômeno como unidade organizacional. Há que se ressaltar, porém,
que a captação de seu significado jurídico encontra-se ligada à idéia de organização
ajustada a uma atividade.
O relevo dado ao aspecto funcional da empresa como critério qualificador
daqueles que devem ficar sujeitos ao regime jurídico específico do empresário,
levou à busca da conceituação e qualificação da atividade.
Dentre os autores italianos que mais detidamente dedicaram-se ao assunto
encontram-se Ascarelli e Pannuccio21, que efetuaram estudos sobre a atividade em
seus aspectos gerais, procurando distinguí-la da noção de ato.
Partindo da separação conceitual entre a atividade e os atos que a integram,
Ascarelli posiciona-se frente ao tema concluindo que ambos não se confundem
tendo em vista os princípios norteadores que os cercam, ou seja, a efetividade e o
resultado. Assim, a atividade não significa ato, mas o exercício efetivo de uma série
21
ASCARELLI, Tulio, PANNUCCIO, Vicenzo Apud BULGARELLI, Waldírio. A teoria
jurídica da empresa. cit. 182.
34
de atos coordenados entre si em função de um fim determinado, que no caso da
empresa, refere-se ao objetivo econômico da produção ou distribuição de bens e
serviços para o mercado.
Há que se observar, contudo, que para a qualificação da atividade como
empresarial é necessário acrescentar determinados elementos à sua noção inicial
que são: a organicidade, a profissionalidade e a economicidade.
Pode-se dizer, portanto, que a atividade empresarial é aquela exercida de
forma organizada e profissional para o fim de produção ou distribuição de bens e
serviços para o mercado. De fato, pode-se desenvolver determinada atividade
econômica sem caráter empresarial, sendo a primeira o gênero da qual derivam as
diferentes espécies, dentre as quais se insere a segunda.
Nota-se que a atividade empresarial é caracterizada por uma tríplice
qualificação que compreende:
a) Organicidade: complexo de bens ou de pessoas ou ainda de ambos
organizados pelo empresário, ou seja, é a organização dos fatores de
produção;
b) Profissionalidade: habitualidade, estabilidade, continuidade, é a atividade
exercida de maneira sistemática;
c) Economicidade: requer a criação de riquezas para o mercado e, portanto,
de bens e serviços economicamente avaliáveis.
É necessário, portanto, que todos esses elementos estejam presentes no
exercício da atividade para qualificá-la como empresarial.
A empresa, em seu aspecto funcional, reúne esses três fatores:
economicidade, profissionalidade e organicidade, em uma unidade indecomponível.
Faltando um desses elementos descaracterizada estará a atividade como
empresarial, não havendo que se falar em empresa.
35
Conclusões
O direito privado brasileiro encontra-se numa fase de transição entre a teoria
dos atos de comércio e a teoria jurídica da empresa, ou seja, está experimentando
uma ampla reformulação e atualização na disciplina privada da atividade
econômica, concretizada com a entrada em vigor do novo Código Civil, que
estabelece um regime jurídico próprio para a empresa, sob o perfil do empresário,
da atividade e do estabelecimento. Dessa forma, tem o mérito de transpor para o
plano jurídico a realidade sócio – econômica da empresa que há tempos se faz
presente no ordenamento jurídico nacional.
De acordo com o art. 966 do Novo Código Civil o empresário, pessoa física
ou jurídica, é aquele que exerce atividade econômica organizada, não importando a
natureza dessa atividade. Em seu parágrafo único, entretanto, exclui do conceito de
empresário as profissões intelectuais, abrindo uma exceção: “salvo se o exercício
da profissão constituir elemento de empresa”. É certo, contudo, que o novo código
não define o que é empresa.
Verificou-se ao longo desta exposição que a passagem do fenômeno sócioeconômico da empresa para o plano jurídico, ensejou uma série de discussões
acerca de sua definição jurídica, que culminou na preponderância do aspecto
funcional sobre os demais, ou seja, a empresa como atividade empresarial.
A noção de atividade empresarial surge, portanto, como elemento
qualificador básico do empresário e do estabelecimento. Ocorre que para a
qualificação da atividade como empresarial é indispensável a inclusão de outros
elementos essenciais como: a organicidade, a profissionalidade e a economicidade.
O primeiro expressa a organização dos fatores de produção (bens, pessoas e
tecnologia); o segundo refere-se à pratica habitual e sistemática de uma atividade e
o terceiro à produção e circulação de bens e serviços para o mercado. Presentes
esses três elementos, o fenômeno da empresa é reconhecido juridicamente.
36
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