escutas em musicoterapia: a escuta como espaço de relação

Transcrição

escutas em musicoterapia: a escuta como espaço de relação
LILIAN MONARO ENGELMANN COELHO
ESCUTAS EM MUSICOTERAPIA:
A ESCUTA COMO ESPAÇO DE RELAÇÃO
MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA
SÃO PAULO
2002
2
LILIAN MONARO ENGELMANN COELHO
ESCUTAS EM MUSICOTERAPIA:
A ESCUTA COMO ESPAÇO DE RELAÇÃO
Dissertação
apresentada
à
banca
examinadora da Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, como exigência
parcial
para
obtenção
do
título
de
MESTRE em Comunicação e Semiótica,
sob a orientação do Prof. Doutor Sílvio
Ferraz Mello Filho.
SÃO PAULO
2002
3
Banca Examinadora
Suely Rolnik
Carlos Palombini
Sílvio Ferraz (orientador)
4
DEDICATÓRIA
Dedico este trabalho aos meus filhos Arthur e Igor que,
ainda pequenos, vivenciaram os encantos e desencantos
deste momento da minha vida.
5
AGRADECIMENTOS
A todos aqueles que, de diferentes maneiras, ajudaram-me na construção
deste trabalho e, em especial ao meu orientador e Prof. Dr. Sílvio Ferraz, pela sua
escuta perspicaz.
Aos colegas musicoterapeutas do Curso de Comunicação e Semiótica:
Renato T. Sampaio, por me apresentar Deleueze e Guattari;
Leomara Craveiro
pelas inúmeras reflexões e pelo incentivo quando o desânimo me alcançava; à Ana
Lea Baranow, pela presença de luta.
Aos musicoterapeuta amigos, alunos e todos aqueles que estiveram comigo e
me ajudaram e instigaram a enfrentar a escuta musicoterapêutica.
À Maristela Smith e Dalvanir Linhares (in memoriam), que me iniciaram no
caminho da escuta musicoterapêutica.
Ao meu pai (in memoriam), por me ensinar a força do silêncio.
Ao Paulo, pela paciência, compreensão, amizade, apoio e incentivo.
À minha mãe, que sempre torceu por mim.
Aos meus familiares, pela compreensão e apoio nos momentos difíceis.
À Noemia, sempre presente.
À FAPESP, pela organização, competência e pontualidade.
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RESUMO
Esta dissertação põe em foco a escuta musicoterapêutica e seus espaços de
relação. A escuta, aqui, é pensada não como uma relação que concebe um som
significante a um sentido significado mas, sim, como uma produção, uma escuta que
inventa mundos.
A pesquisa busca, nas produções e no pensamento da escuta musical do
século XX, dispositivos para potencializar a escuta musicoterapêutica no seu espaço
relacional.
Os estudos são desenvolvidos a partir do pensamento de Gilles Deleuze e
Félix Guattari, no que tange ao desejo de produção que fabrica escutas e no
movimento do ritornelo. Também, busca-se, através dos regimes de signos,
cartografar a subjetividade da escuta musicoterapêutica em seus processos de
invenção dialogando com o pensamento da escuta musical do século XX.
7
ABSTRACT
This dissertation focuses on listening in music therapy and its relation
space.
Listening,
here,
is
thought
not
as
a
relation
that
conceives
a
signifying sound to a signified meaning, but as a production, a listening
that creates worlds.
The research seeks, in the production and thoughts of the musical listening
of the 20th century, devices to increase the listening in music therapy in
its relational space.
The researches
Deleuze
and
the
are developed from the French philosopher Gilles
psychoanalyst
Félix
Guattari's
thought,
taking,
as
the
theoretical background, the idea of desire as a propelling engine, which we
will call a production that makes listening. The main tool to think
listening
is
the
idea
of
movement
contained
in
Ritornelo's
of
concept,
formulated by Deleuze and Guattari. Another important concept which is used in the
dissertation
rules
of
is
signs,
that
related
with
which
to
one
what
seeks
Deleuze
to
make
and
a
Guattari
cartography
called
of
the
subjectivity of the listening in music therapy in its invention and relation
processes,
listening.
dialoguing
with
the
thought
of
the
20th
century
musical
8
ABREVIATURAS∗ DAS OBRAS CITADAS DE DELEUZE E GUATTARI, SUELY
ROLNIK E JOSÉ GIL
DELEUZE
CC - Crítica e Clínica,1997.
D - Diálogos, 1998.
DELEUZE & GUATTARI
AE - O Anti-Édipo Capitalismo e Esquizofrenia, 1966.
MP vol. I - Mil Platôs, vol. I, 1995.
MP vol. II - Mil Platôs, vol. II, 1995.
MP vol. III - Mil Platôs, vol. III, 1995.
MP vol. IV - Mil Platôs, vol. IV, 1997.
OQF - O Que é a Filosofia? 1992.
GUATTARI E SUELY ROLNIK
CD - Micropolíticas : Cartografia do Desejo.
SUELY ROLNIK
CS - Cartografia Sentimental – Transformações Contemporâneas do Desejo,
1989.
JOSÉ GIL
MC - Metamorfose do Corpo - 1997
∗
Como estarei me referindo com freqüência às obras de Gilles Deleuze e Félix Guattari, Suely Rolnik
e José Gil, adotarei, no decorrer da dissertação, as iniciais de cada publicação, conforme
apresentadas.
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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ............................................................................................................................ 11
CAPITULO I - UM OLHAR SOBRE A ESCUTA E UMA ESCUTA QUE ESCAPA..................18
1.1 Um Olhar Sobre a Escuta ...................................................................................... 19
1.1.1Desejo que produz: uma definição provisória ............................................... 19
1.1.2 Cena I – Encontros desencontrados ............................................................. 22
1.1.3 Pausa para agenciamentos ........................................................................... 25
1.2 Um Silêncio da Escuta Musical Clínica. ................................................................ 29
1.3 Uma Escuta que Escapa ........................................................................................ 32
1.3.1 Escuta Musical ou Devires?......................................................................... 32
1.3.2 Deixando a casa tonal.................................................................................. 42
1.3.3 Música fora do lugar.................................................................................... 48
1.3.4 Silêncio ....................................................................................................... 50
1.3.5 O Ritornelo da Escuta.................................................................................. 52
1.4 Território Terapêutico – A Escuta no Devir Outro................................................. 56
CAPITULO II – ESCUTAS EM MUSICOTERAPIA....................................................................63
2.1 Encontrando o Desejo ........................................................................................... 64
2.1.1 Cena II - devires sonoros ............................................................................. 64
2.1.2 Pausa para os agenciamentos ........................................................................ 65
2.2 Musicoterapia: uma escuta em construção ............................................................. 69
2.3 Regimes de Signos em Musicoterapia ................................................................... 75
2.4 Escuta de Invenção................................................................................................ 84
2.4.1 Setting: um local ou um espaço de forças?.................................................... 84
2.4.2 Qual o corpo que a musicoterapia escuta?..................................................... 85
2.4.3 Dinâmica no setting...................................................................................... 90
2.4.4 Escapando das escutas rostificadas ............................................................... 93
2.4.5 Ambientes de Escutas................................................................................... 97
2.4.5.1 Escuta em fluxo ............................................................................... 97
2.4.5.2 Escuta na Fala.................................................................................. 98
10
2.4.5.3 Escuta em análise.............................................................................. 99
2.4.6 De paciente a ouvinte – uma vertigem. ........................................................ 101
CAPITULO III – CARTÓGRAFO SONORO.............................................................................104
3.1 Escuta que produz ............................................................................................... 105
3.1.1 Pausa para um diálogo: escuta como técnica............................................... 110
3.2 Uma poética da Escuta ........................................................................................ 112
3.2.1 Pausa para um diálogo: escuta – uma energia de deslocamento.................. 113
3.3 Cena III – Um devir bicho................................................................................... 115
3.3.1 Uma pausa para agenciamentos .................................................................. 117
3.4 Cartógrafo Sonoro............................................................................................... 118
CONCLUSÃO ........................................................................................................................... 121
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................................... 123
11
INTRODUÇÃO
Escute ! Escute a música de seu paciente !
Esta é uma das primeiras frases que ouvimos no processo de formação em
musicoterapia, afinal, entramos num universo de escutas. Mas este universo trata
de uma escuta peculiar, ela é híbrida, porque é musical e clínica.
Trilhar um caminho híbrido já não é um exercício muito fácil, o que dizer
então, de se acompanhar uma escuta híbrida? Esta inquietude vem me instigando
desde os tempos de estudante de musicoterapia. Naquela época, já me perguntava:
como poderíamos ter um ponto em comum, se as escutas eram tão diferentes. Era
nítido, neste período, minha tendência em buscar uma identidade na escuta.
Tempos mais tarde, como professora de musicoterapia, tive a oportunidade
de acompanhar processos de transformações de escutas musicoterapêuticas. Neste
ambiente meu desassossego só crescia pois, ao acompanhar os alunos em
determinadas disciplinas, ficava claro que se tratava de uma espécie de
metamorfose de escutas num continuum. O desafio se impunha à medida que a
escuta musical, que é um plano extremamente heterogêneo, colocava em
movimento o pensamento clínico e criava trajetos inusitados.
Minha inquietude, perante tal constatação, deslocava-se de uma busca de
identidade para um processo de transformação. O que a escuta musical, que é tão
flutuante, fazia com a escuta clínica e como ela gerava uma terceira escuta, a escuta
musicoterapêutica ?
Estas escutas foram se avolumando, a cada aula, a cada leitura ou a cada
evento de musicoterapia, mais me instigava a subjetividade desta escuta. Comecei a
rascunhar um pequeno esboço dos caminhos que a escuta musicoterapêutica
trilhava. Na realidade, minha pretensão era estabelecer vários pontos no plano
musical, para então, encaixar a escuta clínica. Uma espécie de grade que pudesse
“apalpar”, mesmo que por pouco tempo, a indomável escuta musical num contexto
clínico. Talvez, assim, com referências estabelecidas, a flutuante subjetividade da
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escuta musical, poderia revelar pontos da transformação evolutiva da escuta
musicoterapêutica.
Veja o leitor que, se antes o caminho direcionava-se para a identidade desta
escuta, pensá-la enquanto processo evolutivo significava
estabelecer etapas a
serem alcançadas.
Mas, após ter entrado em contato com as idéias de Gilles Deleuze e Félix
Guattari, através de um grupo de estudos de musicoterapia e semiótica, coordenado
por um colega musicoterapeuta, Renato Tocantins Sampaio, estes pensamentos
começaram a sofrer um abalo.
A música, em Deleuze e Guattari, é uma potência estética, ética e política,
jamais podendo ser aprisionada por pontos de referências ou
modelos de
identidade. Novamente voltei ao ponto inicial: enfrentar o plano movente e flutuante
da escuta musical exatamente nas suas mutações.
Porém, meu enfretamento só alcançou seu ponto insuportável quando,
durante uma entrevista com o compositor professor Dr. Sílvio Ferraz, enquanto eu
me
esforçava
para
contar
os
meus
desassossegos
sobre
a
escuta
musicoterapêutica, ouvi a seguinte frase: “Os musicoterapeutas não ouvem!”
Esta dura frase foi o pulso constante da minha pesquisa. Obrigada, professor
Sílvio!
Se a questão não estava em pontos de referências e nem de identidades e,
além disso, se não ouvíamos, o que estávamos criando? Aceitei o desafio.
Com o início da pesquisa fui entendendo, ou melhor, escutando, o que antes
não escutava. Isto nas aulas de Música e Repetição: a Música em Gilles Deleuze,
de Objetos Sonoros e Objetos Musicais: Trajetória de Escuta na Música do Século
XX, ou, ainda, nas aulas de Análise Musical e Semiótica, também nas de
Micropolítica e Subjetividade.
Então fui percebendo que não se tratava de uma surdez, mas sim, de fluxos
interrompidos que foram estratificados por regimes de identidades de escutas, por
escutas a priori, por relações dicotômicas de um sujeito que apreende um objeto
sonoro para significá-lo, por reduções de escutas interpretativas, por retenções de
intencionalidade de escutas. Enfim, a surdez era fluxo interrompido e catalogado.
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Mas esta constatação só revelava que havia interrupção de fluxos. Portanto,
era preciso ir além e se aventurar num movimento de engate no continuum dos
fluxos. Mas que fluxos? que escutas? que sonoridades? qual subjetividade? Ah!
como foi penoso este período, sempre com aquela frase perseguidora, os
musicoterapeutas não ouvem!
Aos poucos, fui me aquietando. Afinal, não se tratava mais de achar uma
escuta surda mas, sim, de escutar o “fluir desta escuta”. Este fluir começou ser
movimentado pelas imagens-pensamento de Gilles Deleuze e Félix Guattari e,
apesar de ser iniciante nesta ontologia, senti que os fluxos se propagam nos
heterogêneos em metamorfoses e multiplicidades que “...não tem sujeito e nem
objeto, mas somente determinações de grandezas, de dimensões que não podem
crescer, sem que se mude de natureza” (MP vol.I, p.16).
Eis o enfrentamento: assumir uma escuta exatamente no seu processo de
metamorfose, num devir música e num devir som. Não se tratava mais de buscar a
identidade, categorias, e nem de achar etapas evolutivas mas, sim, de estar nas
mutações das escutas, e escutar o que a escuta musical produzia na clínica.
Mas, como escapar das armadilhas, que são tão atraentes, e não aprisionar a
escuta ao sujeito-objeto? A aventura é mergulhar nas nuanças da escuta, dito de
outra forma, que o objeto seja a própria escuta (Ferraz, 1998). Neste contexto, o
pensamento de escuta vai se configurando junto com as perturbações de tipo
sonoras, porque o investimento nas sonoridades se dá nas relações humanas.
Ora, pensar a escuta neste presente trabalho é também trazê-la para a
escrita. Então, um outro desafio se impõe, escrever as sonoridades da escuta.
Podemos, então, propor a seguinte questão: como fazer da escrita uma escuta?
A respeito desse tipo de enfrentamento, em que os heterogêneos são
acolhidos pela escrita, Eduardo A. Vidal sinaliza que “...escrever, o ato de escrever,
é fazer vir à tona, à superfície, esses elementos heterogêneos, que, numa sorte de
paradoxo, a linguagem não contém, mas que não poderia ter sido produzido sem
ela” (2000, p.480). A poesia, os contos, as crônicas, a literatura, alguns trechos
filosóficos, algumas regiões da literatura musical criaram, na escrita, mundos de
escutas. É a arte da escrita desvelando a escuta ou, no caso da literatura musical, a
escuta ampliando e sendo ampliada pela escrita.
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Neste esforço de trazer à tona sonoridades, foi preciso montar uma estratégia
para que a escuta, na escrita, pudesse deslizar nos seus trajetos. Isso poderia ser
feito com a apresentação de estudos de caso, mas, se assim fosse, a pesquisa iria
ser
construída
sobre
uma
análise
de
escuta
musicoterapêutica
o
que,
provavelmente, limitaria a escuta a estas análises.
Assim, montei uma cena sonora fictícia, que vai se transformando durante o
percurso que vamos criar. É uma cena que apresenta processos de subjetividades
da escuta musicoterapêutica nas suas relações estéticas, políticas e éticas. Ela
surge no primeiro capítulo e tem quatro personagens que vão fazendo mutações de
ouvintes: um músico, dois pacientes (uma mulher e um homem) e a presença
médica. O ambiente da cena se dá exatamente numa conexão de campos, uma
área da saúde que é visitada por personagens psicossociais da música. Estes
personagens e as sonoridades da cena vão se transformando, deixando na imagem
(assim espero) tanto traços de sonoridades, como mutações psicossociais.
No decorrer da pesquisa, foi ficando claro que meu caminho não ia mais no
sentido de estabelecer um objetivo intencional para mapear esta peculiar escuta
como representações estáticas. Distante deste movimento, o que vou convocar é a
potência de um cartógrafo que vai criando um desenho ao mesmo tempo que
acompanha os movimentos de transformações de paisagens. Assim, pretendo
cartografar, com o leitor, espaços relacionais de sonoridades e, acima de tudo, fazer
movimentações com estes. Digamos que vamos construir um “diário de bordo”,
como sugeriu Gregório Baremblit (1998) reportando-se ao pensamento de Deleuze e
Guattari, ou melhor, um “diário de escutas” que contém não apenas o objetivo, mas
também o subjetivo, o estético, o ético e o político. É dessa maneira que pretendo ir
criando nosso “diário de escuta”. Nosso, porque conto com a escuta do leitor neste
trajeto, que estará sempre aberto para paisagens de sonoridades em processos de
mutação.
Bem, temos então uma escuta em mutação (sem sujeito e sem objeto) e
temos também uma cartografia que irá sendo construída nas sonoridades mas,
ainda é preciso mais um elemento. Eu afirmei para o leitor que a problemática da
“surdez da escuta”, que tanto me perseguiu, estava nas formas a priori de escutas.
Para escapar desta armadilha, a estratégia vai se desenvolver no sentido de
acompanhar o quê a escuta produz. Então, chegamos a um dispositivo importante:
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qual é o motor propulsor da escuta?
O que desencadeia suas metamorfoses, qual
é a sua usina potencial?
É o desejo, o desejo que se dá nas intensidades e, por isso, precisa de
matérias de expressão para se efetuar. O desejo que vamos convocar não é um
desejo da falta e, sim, um desejo que é “sistema dos signos a-significantes com os
quais se produzem fluxos de inconsciente em um campo social” (D, p. 94). Por este
contexto, toma-se o desejo de produção tal qual Deleuze e Guattari apresentaram
em O Anti-Édipo Capitalismo e Esquizofrenia (1966) e, posteriormente, em Mil
Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. Os movimentos do desejo nas produções de
escutas também serão iluminados pelo pensamento de Suely Rolnik, em específico
no que tange ao livro Cartografia Sentimental Transformações Contemporâneas do
Desejo (1989). É neste sentido que a escuta, que estamos propondo, é uma marca
de expressão que se efetua nas sonoridades, ou seja, um desejo de produção
sonora.
Se, era preciso por a escuta musicoterapêutica em movimento e, se o desejo
é o motor propulsor da escuta, então a questão está em acompanhar o desejo que
produz a escuta musicoterapêutica. Porém, como é uma escuta híbrida, musical e
clínica, a cartografia que vamos construir percorre geografias distintas (territórios
musicais, terapêuticos, e musicoterapêutico) e histórias de percepções (escuta do
final do século XIX e escuta do século XX).
Assim, o leitor irá acompanhar algumas produções de escutas, em específico
na passagem da música tonal para música atonal (subjetividade da música
contemporânea), bem como algumas produções de subjetividade da escuta clínica.
No engate dos fluxos dessas duas geografias, chegaremos às produções da escuta
musicoterapêutica.
O capítulo I - “Um olhar sobre a escuta e uma escuta que escapa” - inicia
com uma procura do desejo que produz uma escuta musical clínica. Ele é ilustrado
pela cena I. Nesta cena, que se passa no final do século XIX, o leitor irá acompanhar
ensaios de uma escuta musical clínica que apesar de fazer tentativas para produzir
matérias de expressão, não se efetuou.
A partir dos agenciamentos desses desencontros, entraremos no campo da
subjetividade musical, onde iremos acompanhar processos de escutas, não só nos
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seus movimentos
estéticos mas, também, no movimento político, ou seja,
a
potência a-significante da música atingindo as micropolíticas que, como veremos,
são movimentos que escapam dos regimes de representação e de ordem
estratificadas, e inventam novos mundos de escutas. O trajeto permeará o fluxo da
música contemporânea nas suas metamorfoses sonoras, nos seus processos de
blocos devir-som, devir-instrumento, devir-voz. A subjetividade da escuta musical
será vista a partir de um processo de dobra, a escuta dobrando sobre si mesma
(Rolnik, 1997). Este processo se dá num corpo que não possui dentro e fora e sim,
uma pele elástica que se estende ao interior e ao exterior, criando um volume que
mistura todo o corpo – o fora penetra o dentro que se derrama no fora (Gil, 1997).
Nesses movimentos, dobras da subjetividade e um corpo sem interno-externo, a
escuta será uma escuta porosa que vai fazer blocos com o corpo: escuta-boca,
escuta-mão, escuta-olho no devir som, devir molécula, devir timbre e com as
intensidades.
Como vamos experienciar o hibridismo de uma escuta musical clínica,
também será apresentado uma escuta clínica que não se sustenta pela relação de
transferência e contratransferência, pois o que convocamos é um devir outro, um
outrar-se.
O capítulo II - “:Escuta em Musicoterapia” - também retoma a cena I, porém,
com modificações temporais e, conseqüentemente, com modificações dos
personagens psicossociais. O leitor, nesta cena, irá acompanhar escutas em fluxos
num ambiente clínico – um devir outro no devir som.
Localizamos,
através
da
cena
transformada,
o
desejo
da
escuta
musicoterapêutica e passamos a construir trajetos das produções deste desejo.
Utilizamos a idéia de regimes de signos de Deleuze e Guattari (MP, vol. II) para
acompanhar os regimes significantes e a-significantes que perpassaram este campo
no seu processo de construção da escuta. Terminamos o capítulo levantando a
hipótese de que a escuta musicoterapêutica vem ensaiando uma escuta do “corpo
sem órgão” (MP. Vol. 3) porém, não se atem a este movimento.
No terceiro e último capítulo - “Cartógrafo Sonoro” - voltamos ao campo
musical para, de lá, trazermos mais provisões para a escuta musicoterapêutica.
Buscamos na poética de Pierre Schaeffer (1966) - os quatro modos de escutas como
uma máquina de produção do objeto sonoro – e no ouvinte, como um inventor da
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própria escuta de John Cage (1976,1985), dispositivos para uma escuta inventiva e
uma escuta que suspende a relação sujeito-objeto.
Por fim, a última cena, apresenta um fluxo intenso de escutas em movimento
de produção, no devir mulher, devir criança e devir animal. Evidenciando-se, assim,
o ponto central de toda esta pesquisa. Uma escuta musicoterapêutica que desgruda
da identidade, da interpretação, das categorias da relação fenomenológica e das
intenções de escuta e investe na invenção da própria escuta.
Se assim for, a escuta musicoterapêutica tem um comprometimento com a
estética, porque inventa mundos, com a política, porque nas relações, investe em
micropolíticas das sensações e com a ética, porque se dá na escuta das diferenças.
Nesse contexto, o musicoterapeuta, se transforma em um cartógrafo sonoro.
18
CAPITULO I
UM OLHAR SOBRE A ESCUTA
E
UMA ESCUTA QUE ESCAPA
19
1.1 UM OLHAR SOBRE A ESCUTA
1.1.1 Desejo que produz: uma definição provisória
O assunto a ser tratado neste trabalho é extremamente volátil, pois se efetua
por processos de subjetivação nas sonoridades. Sendo do mundo das sonoridades,
tais processos se dão na escuta. Entrar no campo da escuta é se deparar com uma
teia de invenções de mundos sensíveis e de sensação, em pleno movimento de
construção e desconstrução. De sorte que, trazer alguns destes mundos para a
escrita, se de um lado é dar voz à volubilidade da escuta (posto que a escuta não
tem voz e, sim, ela inventa um porta-voz), por outro lado, corre-se o risco de
emudecê-la (uma vez que a escrita é apenas um dos múltiplos fluxos que
perpassam a escuta). Na eminência desta oscilação, talvez uma pergunta possa
sustentar a aventura deste perigo: o que procuro escutar, junto com o leitor, no
trajeto a ser percorrido? Espero que esta pergunta possa potencializar escutas e, por
conseguinte, servir como um dispositivo para vozes de escutas.
Um dos possíveis caminhos gerados pela pergunta anterior disponibiliza uma
resposta aparentemente imediatista - procuro escutar, com o leitor, uma escuta
musical clínica. Mas, se identificar uma mistura de escutas (musical-clínica) parece
orientar nosso caminho, o próprio bloco já é multifacetado e, portanto, só aponta
para múltiplas possibilidades. Além disso, dado que se trata de uma escuta com uma
qualidade musical, longe de um caminho a ser seguido, o que se tem é um volume
de complexidade, pois o que está em jogo é um ser de sensação (escuta) e uma
potência crítica da arte (condição de invenção e de desterritorialização que a música
produz). Neste sentido, o bloco musical-clínica configura-se exatamente nesta
potência crítica da música. Dito de outra maneira, a escuta clínica será arrastada
pelas forças de invenção e de desterritorialização das sonoridades. Assim, a procura
vai no sentido de acompanhar mutações deste bloco, engendradas em espaços
estéticos (de invenção), éticos (escuta das diferenças) e políticos (de relações).
Sendo a escuta um ser de invenção no âmbito da sensação, ela, na teia da
invenção de mundos sensíveis, é volátil e impalpável. No entanto, cria marcas
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(escuta barroca, modal, pós-tonal, serial) e fabrica porta-vozes que testemunham
suas transformações, haja vista que a música nunca parou suas metamorfoses e
sempre nos apresenta outras possibilidades de escutas. Há, então, um motor
propulsor que produz, em silêncio, escutas geradoras de mundos de sonoridades,
Este motor é o desejo, o desejo de inventar sonoridades.
Como estamos entrando no campo do desejo, cabe uma apresentação,
inicialmente sucinta, de qual desejo estamos falando. O termo desejo tem uma
presença marcante desde a filosofia clássica, adentrando para a filosofia moderna.
Entretanto, na sociedade ocidental moderna, o desejo tem uma forte significação
inserida pela psicanálise freudiana e suas hibridações. Porém, há também uma outra
dimensão, que não limita o desejo a um sujeito subordinado por um sistema
subsidiado pela falta e, na contramão, investe no enriquecimento e numa potente
vitalidade de um desejo ontológico que inventa a própria realidade. Este desejo
como produção, inicialmente, foi apresentado em O Anti-Édipo: Capitalismo e
Esquizofrenia de Deleuze e Guattari (1966) e prolifera em outros campos. Por agora,
não vamos fazer um detalhamento das vastas transformações que este pensamento
gerou, pois durante o nosso trajeto, permearemos algumas dessas mutações.
Assim, somente como ponto de partida (que não é um começo e sim um fragmento
de um continuum), trazemos uma declaração de Guattari que, de maneira sintética e
clara, resume a qualidade do desejo que vamos procurar.
“Por não querer me atrapalhar com definições complicadas, eu
proporia denominar desejo a todas as formas de vontade de viver, de
vontade de criar, de vontade de amar, de vontade de inventar uma
outra sociedade, outra percepção de mundo, outros sistemas de
valores”.(CD, 2000, 215).
Mais adiante, como iremos nos guiar pelo desejo na metamorfose das
escutas, escutaremos com mais detalhes algumas forças de produção do desejo.
Por enquanto, tomemos este desejo como uma vontade de inventar escutas e
produzir outras percepções de mundos. Sendo uma invenção, o desejo não está no
sujeito mas, sim, ele “é da ordem de produção e qualquer produção é ao mesmo
tempo desejante e social”. (A E,1966, p. 308). Esta coexistência coletiva revela que
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a escuta musical clínica, que iremos tentar escutar, brota das paisagens sociais e
estas, por sua vez,
produzem personagens sociais (músico, terapeuta,
musicoterapeuta, ouvinte). Assim, há dois dispositivos co-extensivos: a produção da
escuta se dando na própria invenção da escuta (posto que ela é da ordem de
produção do desejo), e este dispositivo gerando os personagens de escuta.
Existe, ainda, um outro componente que é relevante neste bloco escuta
musical-clínica, por ser clínica1, não vamos ouvir somente uma escuta solitária que
nas suas metamorfoses vai criando mundos e sim, uma escuta com o outro, que
inventa escutas nas sonoridades do encontro com o outro.
Anteriormente, apontamos que a imaterialidade da escuta sofre retenções
quando instaurada na escrita. Como estratégia para esta dificuldade, vamos
construir algumas imagens de sonoridades2 que brotam em personagens de
escutas, para acompanharmos, através destas, as escutas criando mundos. De
sorte que, convido o leitor para tomar parte de algumas metamorfoses de escuta nos
seus movimentos de produções.
Neste processo, o leitor terá posições dinâmicas, às vezes sendo o
personagem da cena e, outras vezes, participará como observador para
acompanhar desdobramentos de escutas de outros personagens. Nas variações, o
leitor será perpassado por personagens de escuta: musical, clínica, musical-clínica
e, por fim, a que propomos aqui, como escuta musicoterapêutica. As cenas que
vamos apresentar, apesar de fictícias, são vivificadas tanto a partir de uma literatura
histórica (cena I), bem como pelas minhas marcas de escuta musicoterapêutica
(cenas II e III), experienciadas tanto nos atendimentos clínicos como em supervisão
musicoterapêutica (neste caso, escuta da escuta). Todavia, o que enfoco, não são
1
A clínica que vou apresentar ao leitor, não é uma clínica da personalidade centrada no sujeito e no “Eu”,.
Diferente desta abordagem, o que busco é uma clínica perpassada pela singularidade que se dá nos
acontecimentos. No decorrer deste trabalho, espero atingir esta clínica singular através da escuta musical. O
leitor pode encontrar no artigo de José Birman “Os signos e seus excessos – a clínica em Deleuze” in Gilles
Deleuze uma vida filosófica. ed.brasileira 2000, p. 463-78, um detalhamento de como a clínica em Deleuze tem
um caráter bastante diferenciado da clínica psicológica. Porém, por agora, a clínica que estou procurando atingir
é uma clínica dos acontecimentos, que não se compromete com a interpretação e nem com a representação mas,
sim, que a potência da música possa desterritorializar a análise centrada no sujeito e no objeto. Ver também
Deleuze, G. (1997) Crítica e Clínica . São Paulo, editora 34.
2
Imagens de sonoridades é um lugar desenhado por idéias de sonoridades (som, vibração, voz, sussurro,
timbres), com o cruzamento do personagem-ouvinte. Estas imagens serão criadas a partir da escrita. Portanto, o
leitor também será um personagem-ouvinte, à medida que vai inventando espaços de escutas com as escutas
dos personagens deste trabalho (músicos, terapeutas e musicoterapeutas).
22
estudos de caso e sim, cenas como dispositivos de imagens sonoras para que
possamos, na volatilidade da escuta, alcançar a pragmática deste desejo que produz
escutas musicoterapêuticas.
Entremos na primeira cena criando imagens e sonoridades que delas
ressoam.
1.1.2 Cena I – Encontros desencontrados
O tempo é um pouco distante, em meados da segunda metade do século XIX.
Estamos num hospital de doentes mentais, em uma cultura européia. Num quarto
deste hospital, num canto próximo de uma janela, há uma mulher de meia idade que
permanece agachada e encolhida, fechada sobre si mesma. Ela, incessantemente,
desenha e redesenha seu restrito espaço com um sutil movimento corporal. Colado
a este movimento tem um som, um fio de voz muito fraco que quase não se ouve,
mas ele está ali, dando ao movimento do corpo uma sonoridade sussurrante. É uma
pele-sonora3 que a protege do mundo e ao mesmo tempo a sustenta em seu próprio
mundo.
Alguém entra no quarto, aproxima-se do corpo-sussurro e puxa-o para fora do
quarto. O corpo-sussurro acelera o movimento, tenta se defender, mas já está sendo
levado. No trajeto, a mulher-sussurro intensifica a textura da sua pele-sonora, a voz
fica mais aguda e entrecortada pela respiração ofegante. Aquela repetição do
movimento começa a perder seu centro, ela se esforça para não ser arrancada do
seu tempo. Já, no pátio do hospital, tudo fica maior. Deixam-na sentada de frente
para um palco improvisado e, ali, ela tenta tecer sua pele-sonora procurando as
partículas espalhadas do seu corpo-sussurro.
No palco, tem um conjunto musical - 4 violinos, 2 cellos, 2 flautas e 1
clarineta- que se prepara para uma
3
“apresentação no hospital”. Os músicos
Deixei em itálico todos os blocos: pele-sonora, corpo-violino, pele-sussurro, mulher-sussurro, corpo-dançante,
corpo-voz, porque se trata de criar uma zona de vizinhança que se dá em blocos. O que se tem no bloco pelesonora, por exemplo, é a pele sendo desterritorializada na sonoridade e a sonoridade fazendo mutações de pele.
Veremos este tema mais adiante quando iremos falar do corpo-instrumento da escuta. Quanto aos blocos, para
maiores detalhes, ver Diálogos, op. cit., p.9-27.
23
começam a afinar os instrumentos, mas, de repente, param. Há uma invasão de
sonoridade mais potente do que os ruídos da afinação musical, os “corpos da
platéia” estão chegando, com movimentos estranhos, vozes bizarras, risos e gritos,
falas repetitivas... No meio destes sons inusitados, os músicos preparam suas
posições corpo-instrumento e iniciam os primeiros acordes.
A mulher-sussurro, que ainda estava tentando recriar sua pele-sonora, de
súbito, é perpassada por uma massa avassaladora, movimentos diferentes vindo de
todos os lados com velocidades aterrorizantes. Cadê o sussurro? Por mais que ela
se esforce para achá-lo, não o ouve mais... A segurança de seu sussurro perdeu-se
num silêncio preenchido por um vazio assustador que a envolve e carrega com
forças galopantes. Nestas condições, seu corpo também é afetado, pois o balanço é
desmontado.
No palco, dentre os músicos, um violinista empolga-se com as modificações
dos corpos da platéia, seu olhar repara que alguns insanos fitam a orquestra com
olhos arregalados, outros param estáticos; um grupo começa a dançar, alguns
batem palmas, já outros, continuam nos seus mundos. O violinista é atraído pela
visibilidade dos corpos mas, algo mais acontece porque seu braço-arco parece
querer dançar com os corpos da platéia. De repente, um “ouvinte-alienado” sobe no
palco e começa a girar em torno dos músicos. O violinista, imediatamente modifica
seu corpo-instrumento e ensaia um movimento de tempo saltitante com o alienadodançante. Nesta metamorfose, o corpo-arco prepara uma transformação à medida
que o corpo-dançante salta. Mas uma voz estridente rompe este bloco: “Sai daí e vá
para seu quarto! Agora!” Apesar do corpo-dançante tentar escapar, a exclusão é
inevitável. A música continua, apesar do silêncio incômodo do corpo do violinista.
A mulher-sussurro, ainda afetada pela massa amorfa que tinha destruído sua
pele-sonora, de repente se surpreende. Algumas partículas de seu próprio sussurro
passam por ela. Então, põe-se a juntar essas partículas, recriando uma pele
provisória, deformada, quase irreconhecível. Enquanto a mulher se perde e se acha
no seu sussurro, os músicos continuam tocando suas músicas e, apesar de serem
personagens do mundo musical, estes visitantes não puderam ouvir a mulhersussurro. Mesmo o violinista, que foi afetado pelo olho-corpo, não pôde escutar o
corpo-música do insano.
24
De uma janela no primeiro andar, dois médicos, na espreita, pousavam seus
olhares sobre os corpos da platéia. Havia uma pressa em recolocar o ouvinte no seu
papel de “ouvinte-alienado”. Classificações como: não reage à música, ou reage à
música; anotações e análises como: quais as músicas foram tocadas e quais as
modificações dos corpos dos insanos? Quem relaxou e quem foi estimulado? Quem
cantou? Quem dançou?... foram feitas de forma eficiente. Mas, não escutaram que
algo escapou, não ouviram o sussurro da mulher, o corpo dançante do insano, e
nem o desejo do violinista.
Fim da apresentação. Os músicos guardam seus instrumentos, os
funcionários se preparam para levar os pacientes para seus quartos. Ainda há muita
confusão, mas parece que aquela força avassaladora está perdendo sua potência. A
mulher começa a encaixar melhor os sons na sua pele-sonora, o corpo, na
reconstrução do sussurro, começa a achar seu movimento. De volta a seu quarto,
tudo volta... o corpo-voz no sussurro-movimento, continua se protegendo no
exercício de tecer sua pele-sussurro.
Os médicos passam pelos quartos para avaliar os resultados.
O corpo-
sussurro continua com o seu balanço, agora ele é um corpo rotulado por uma tabela
de controle médico: não reagiu positivamente à música.
Já, o insano que subiu no palco, apesar de estar preso no quarto por
desrespeito às normas morais, continua cantarolando a música dançante; ele agora
dança sem parar. E, também, é um corpo rotulado pela tabela médica: música
dançante pode desencadear excitações e alucinações.
O violinista, apesar de afetado pelos corpos da platéia e pelo corpo-dançante,
agora, no seu universo musical, continua com seu corpo-violino.
25
1.1.3 Pausa para agenciamentos
Vejamos como se deram alguns agenciamentos4 desta cena.
Como a cena se passou no século XIX, a mulher-sussurro e o corpo-dançante (e
agora não estamos somente no âmbito do imaginário da cena e sim, num contexto
histórico) não estavam amarrados, embora estivessem em uma prisão “invisível”
sustentada pela moral (duchas de água gelada eram eficientes “corrente morais” que
os mantinham sempre enclausurados). Além disso, também passava por eles um
código ambivalente: por um lado, como disse Michel Foucault (1991) em Doença
Mental e Psicologia, eram sujeitos criados por sintomatologia e nosografia, por outro
lado, esta mesma sociedade investia numa perspectiva de “normalidade” ou, dito de
outra maneira, no “alienado”, que é produto do sintomatológico, procurava-se, em prol
da moral, uma “normalidade (moral) escondida”. O médico, ainda como registrou
Foucault (1972) em História da Loucura, num determinismo pungente, transformava a
loucura em
“um conjunto de formas cientificamente explicadas” (p. 515). Este é o
período do triunfo da racionalidade científica. Portanto, o que perpassava a mulhersussurro e o corpo-dançante era um código duplo: “insanos” que continham uma
“normalidade”5.
Este fenômeno gerava uma espécie de “perseguição” por parte dos personagens
médicos. Continuando com Foucault, as correntes usadas para deter os loucos dos
séculos anteriores foram substituídas pelo “querer médico” (ibidem, p. 507).
Neste determinismo refletido numa objetividade incisiva, várias técnicas
terapêuticas foram utilizadas, dentre elas, a música. A relação “música e saúde” não se
limita a este período6. Entretanto, no século XIX, despontam indícios de produções
4
Agenciamentos comportam componentes heterogêneos de diferentes ordens: biológicas, gnosiológica,
imaginária, maquínica. Ver também, MP. vol.1 p.11-37.
5
No livro o Despertar para o Outro a musicoterapeuta brasileira Clarice Moura Costa (1989) descreve que no
Traité Médico Philosophique sur L´aliénation Mentale ou la Manie, Philippe Pinel (1801), embora defendesse
um tratamento mais humano para os paciente, estava implícito neste interesse, um investimento a um núcleo
sadio do alienado, que sempre deveria ser preservado e desenvolvido. Para conseguir esta “preservação sadia”,
medidas higiênicas (duchas frias), cuidados morais e físicos eram utilizadas.
6
Num esquema cronológico, a musicoterapeuta Cheryl D. Maranto (1993), no seu livro Music Therapy
International Perspectives, apresenta dados documentados de práticas musicoterapêuticas clínicas e considera
que o primeiro documento clínico (considerado musicoterapêutico) foi feito nos Estados Unidos em 1832. Este
relatório equivale ao que hoje a musicoterapia chama de relatório musicoterapêutico. Já num sentido mais
histórico, Clarice Costa (1989) faz um mapa bastante elucidativo mostrando uma panorâmica histórica das
relações “música e saúde” desde os tempos mais remotos. A autora apresenta textos com indicações musicais
para “doentes mentais” desde o século XII.
26
distintas de escutas que reverberam, posteriormente, nas produções de escutas da
musicoterapia do século XX, nas quais iremos nos deter.
Quando a área da saúde (especificamente os hospitais psiquiátricos) foi
buscar na música possibilidades terapêuticas (implícito aqui a “moral” terapêutica),
surgiram três tipos diferentes de personagens sociais, configurados da seguinte
maneira: o músico visitante, o insano ouvinte e o médico que olha o ouvinte.
Vejamos o primeiro: o músico, que sai de seu campo artístico e visita o campo
da saúde mental. Neste campo, ele é um visitante porque, embora tocasse e para os
doentes e também ensinava música para os “insanos” que tinham habilidades
musicais7, não havia um comprometimento com a clínica, ou seja, ele se mantinha
como visitante, uma vez que não ia além do seu personagem músico.
Entretanto, nesta cena, nós evidenciamos um pequeno desdobramento do
personagem músico. Estamos falando do violinista. Havia um fluxo de desejo
diferente passando por ele, não se tratava somente de um visitante, e sim, de um
visitante afetado pelo encontro com o outro. Portanto, comprometia-se com o campo.
Aqui, surgem indícios do desejo que estamos procurando, pois há uma escuta
diferenciada: a “audição musical” que passa pelo músico e pelo paciente, é
envolvida por um ouvinte que atenta para o outro ouvinte, ou seja, um desejo de
“escuta musical misturado com uma escuta do outro”. Dito de outra forma, temos
aqui um exemplo da escuta musical clínica. Na passagem da cena em que o
violinista se empolga com a movimentação dos “corpos da platéia”, há um olhar
diferenciado, um olhar que é perpassado por um movimento de atração e repulsa
mesclado com uma escuta com o outro.
7
Continuando com Costa (1989), Pinel (1801), no Traité Médico Fhilosophique sur L´aliénation Mentale ou la
Manie”, defendia que a música, como uma das formas morais de terapia, deveria ser “doce e harmoniosa”
porque nos insanos há quase sempre “algum artista emérito deste gênero, cujos talentos fenecem por falta de
exercício e cultivo” (apud Costa, p.27). Esta prática instrumental permitia uma substituição das preocupações
mórbidas para momentos de diversão. Na segunda metade do século XIX, continuando com a autora, começam a
surgir duas formas básicas de terapia musical: uma é feita pela “audição musical” – os músicos faziam concertos
para os pacientes e a outra, através de “aulas de músicas” – os pacientes participavam de aulas de música.
Edith Lecourt (1995), musicoterapeuta francesa, também descreve que Pinel indicava a prática do estudo de
violino como essencial para a recuperação dos pacientes, ainda dentro da perspectiva da música como
tratamento terapêutico. A autora também descreve que as “sessões de musicoterapia”, neste período, eram feitas
a partir de “audição musical” e, por este prisma, os médicos pesquisavam os efeitos da música. Para uma destas
pesquisas, segundo a autora, foram convidados a participar os primeiros estudantes do recém inaugurado
Conservatório de Paris.
27
Este é o primeiro movimento do desejo8 de uma escuta clínica, numa
dinâmica de afetar e ser afetado, ou seja, um corpo que sofre ação de um outro
corpo e carrega vestígio desta ação (afetado). Mais adiante, quando o corpodançante sobe no palco e começa a dançar, novamente o violinista é afetado Porém
agora, além da visibilidade do corpo-dançante, há algo não visível, ou seja,
partículas de afetos que se misturam e ensaiam a formação de uma matéria de
expressão sonora. Este é o segundo movimento do desejo, que consiste em se
preparar para a invenção de uma matéria de expressão. Neste movimento, o corpoarco do violinista ensaia uma metamorfose com o corpo-dançante, quase surge
um bloco corpo-arco-dançante (matéria de expressão do encontro), mas a palavra
de ordem9 chega primeiro e o desejo é interrompido e não cria uma mistura, os
afetos não ganham uma espessura.
Assim, as partículas vibratórias desses corpos, que estavam em vias de se
misturarem, se dispersam em processos galopantes de desencantamento e tudo
começa a correr sem rumo.
Nesses desencontros, o significante, na força da
palavra de ordem, toma posse da situação e rapidamente impõe a ordem.
Esta pode ser uma das facetas do desejo, um contínuo desencontro, mundos
que se criam, mas que acabam, muito rápido; partículas de afetos que não
conseguem criar
o que Deleuze e Guattari; em O que é Filosofia? (1992),
chamaram de plano de consistência. Um plano em que se cria um território onde os
afetos só aumentam o número de conexões e de composições. Não vimos aumento
de conexão na nossa cena. O “insano”, apesar de atingir um corpo-dançante, não
alcançou o corpo-arco do violinista. A mulher-sussurro, embora tenha sua pele8
No livro Cartografia Sentimental: Transformações Contemporâneas do Desejo, Suely Rolnik(1986), ao
construir uma cartografia das metamorfoses do desejo, convida o leitor a experienciar um encontro de duas
pessoas e, nesta dinâmica ela apresenta três passagens do desejo : a primeira surge no movimento de afetar e ser
afetado, é a atração e repulsa dos corpos. A segunda é o momento do ensaio para se inventar uma matéria de
expressão, isto porque as intensidades de afetos procuram formar uma máscara para se efetuarem em matéria de
expressão, posto que “os afetos só ganham espessuras de real quando se efetuam”(p.26). Portanto, o que o leitor
vê com o olho-visão de expectador do encontro são as máscaras mas estas, foram criadas pelo movimento do
desejo na sua dinâmica de afetar e no ensaio de criar máscaras. Estes afetos e estes ensaios só podem ser vistos
pelo corpo vibrátil (p.25) que, segundo a autora, é tocado pelo invisível. Para o contexto em que a autora
desenvolveu seu pensamento, ela utilizou a idéia de máscara como uma materialidade dos afetos. Vamos tomar
esta idéia para os afetos que se produzem nos encontros de escutas. Porém, como trata-se de escutas, não
teremos máscaras, e sim, vamos utilizar a idéia de marcas de escutas.
9
Para Deleuze e Guattari (MP. vol.II) palavra de ordem é a “relação de qualquer palavra ou de qualquer
enunciado com pressupostos implícitos, ou seja, com atos de fala que se realizam no enunciado e que podem se
realizar apenas nele. As palavras de ordem não remetem, então, somente aos comandos, mas a todos os atos que
estão ligados aos enunciados por uma ‘obrigação social’” (p. 16).
28
sonora afetada, na desconstrução, sua escuta ficou solitária e perdida, ela não foi
ouvida pelos músicos porque, afinal, a loucura não podia falar sobre si mesma, pois
tinha um olhar pousado sobre ela, como disse Foucault (1972).
O segundo personagem é o “insano” que, em nossa cena, emergiu no corposussurro e no corpo-dançante. No século XIX, como salientou Foucault (1972), Pinel
(1801) não deu a liberdade para os loucos e sim, construiu, através deles, uma
verdade de loucura, criando uma linguagem que não mais transparecia as figuras
dos invisíveis (as partículas de afetos), mas, sim, triunfava um olhar interpretativo
com um objetivo. Apesar de o insano estar sobre este olhar, no seu murmurante
silêncio, ele continuava criando suas marcas e a loucura que escapava do olhar da
“loucura médica” continuava a correr livre batendo na porta da escuta.
Quando nossos personagens “insanos” (o corpo-dançante e a mulhersussuro) transformaram-se em ouvintes, a loucura perdeu seu limite social e
alcançou uma liberdade singular. Dessa forma, a escuta foi acionada e construiu a
imagem do movimento sonoro, porque o som tem partículas de sonoridades que se
deslocam e atualizam gestos de movimentos expressivos. Nesta condição, o corpodançante, na invenção de um mundo movente, escapou da “loucura do corpo
médico10”. Já a mulher-sussurro, na mutação para ouvinte, perdeu sua pele-sonora
e, na desconstrução desta, foi afetada por um outro mundo sonoro. Mas este
processo exigia a efetuação de um aumento de conexões que, como vimos, não
aconteceu.
O terceiro personagem é o médico que pousa seu olhar sobre o “insano” e
busca uma verdade objetivada. Ele logo percebe que a música modifica seus
“insanos”. Todavia, quando a música cessa, a insanidade ainda está lá. Portanto,
ele não achou a cura porque como personagem de um olhar a priori, ao procurar um
“corpo médico com uma mente sadia”, ele não pôde ouvir a loucura que escapava
da mulher-sussurro e do corpo-dançante.
Apesar de não ter um plano de consistência, a inclusão da música no campo
médico, no século XIX, gerou: ouvintes sintomáticos, construídos por uma tipologia
de identidade num vetor unidirecional (paciente-ouvinte agitado recebe uma música10
Para maiores detalhes sobre o corpo médico, ver “A Elaboração do Corpo da Ciência” em GIL, José (1997)
Metamorfose do Corpo. Lisboa, Relógio D´água (p.130). Mais adiante, o corpo-instrumento e outras
modalidades do corpo serão abordados segundo este autor.
29
calmante ou o inverso, paciente-ouvinte apático recebe uma música estimulante),
personagens visitante - músicos que migravam para o território da saúde, mas não
se comprometiam com aquele território e
médicos observadores de ouvintes que,
com seu olhar de “querer médico”, não atingiram a escuta.
Todavia, o desejo que estamos procurando (um desejo de escuta musical
com o outro) se não pode ser efetivado neste período, também não deixou de emitir
sua força, pois havia uma região em que a loucura não era classificada pelo “querer
médico” e, sim, escapava da cientificidade circulando “surdamente ao redor das
práticas e dos conceitos” (Foucault, 1972. p. 505). Este “silêncio”, o “olhar que
pousa” não viu, porque não atingiu a escuta. Mas ele, enquanto força silenciosa,
continuou a convocar uma escuta clínica. Assim, o século XIX, ensaiou conexões de
desejos de uma escuta musical clínica ,mas não tinha um plano de consistência que
o pudesse sustentar.
1.2 UM SILÊNCIO DA ESCUTA MUSICAL CLÍNICA
Se, no século XIX a escuta musical clínica não se efetivou porque ficou
dependente do “olhar médico” e de um “músico visitante”, a primeira metade do
século XX revela um silêncio profundo deste desejo. Contudo, agora nosso trajeto
direciona-se para “neste silêncio”, buscar reverberações que possam nos indicar o
ressurgimento deste desejo. Então, convido o leitor para entrarmos em um campo
com paisagens sonoras diferentes e, assim, espero encontrar pistas para ouvirmos a
mulher-sussurro e o corpo-dançante. Se alcançarmos esta escuta, provavelmente
teremos reencontrado o desejo que estamos procurando.
O silêncio da escuta musical clínica, de uma maneira imediata, pode ser
atribuído ao nascimento de uma outra escuta: uma escuta da palavra inaugurada
pela psicanálise.
Mas, enquanto a psicanálise construía uma escuta clínica na palavra, havia
um outro campo que colocava em xeque a sua própria escuta, era o campo do
violinista visitante, que se empenhava em romper suas fronteiras musicais para além
30
do sistema tonal11 (escapando, assim, de uma correlação à linguagem “frase
musical, fraseado, compasso, acentuação, entonação” e da previsibilidade – tensão
e repouso), inventando novas sonoridades e, conseqüentemente, outras regiões de
escutas. Assim, enquanto aquele desejo de escuta musical clínica (um músico na
área da saúde) silenciava, a psicanálise trazia a escuta da palavra e a música
arrastava a escuta para além dos limites tonais, ou seja, fora das estruturas já
estabelecidas (melodia, ritmo e harmonia). Nosso trajeto agora vai no sentido de
escutar fluxos desses campos, para garimparmos os agenciamentos que
possibilitarão o reaparecimento de uma escuta musical clínica que, na segunda
metade do século XX, terá um outro processo de produção.
Do lado musical, transitaremos mais próximo do território da música chamada
erudita contemporânea. Esta opção não tem como proposta valorizar um espaço
musical, mesmo porque a música jamais pôde ser efetuada em sistemas de
valorização, uma vez que, na vastidão de suas variantes, nem podemos falar sobre
música e, sim, temos que assumir um universo de músicas. Mesmo esta afirmação,
apesar de nossa sociedade contemporânea possuir a tecnologia que pode habilitar
um acesso “ilimitado” ao universo amplo de música, ainda assim, o que
experienciamos de música é sempre uma pequena partícula da subjetividade deste
extenso universo.
Assim, a escolha pela música erudita, num universo contemporâneo, se dá
principalmente pelo fato deste território de subjetividade ter rompido seus laços com
a estrutura tonal e, neste movimento, inventou outras subjetividades de escutas a
partir da exploração de novas sonoridades. Segundo o compositor Fernando
Iazzetta (2001), como a composição musical contemporânea (da música erudita),
rompeu com as estruturas tonais e acolheu um número diferenciado de
possibilidades composicionais, cada obra passa a ser construída como “um terreno
de exploração e ampliação das gramáticas musicais existentes” (p.8).
Esta exploração é uma temática da arte contemporânea que descobre um
campo de invenção e de criação de “objetos autônomos” (Rauter, 1997, p. 114) os
quais produzem formas estranhas, escutas inusitadas
11
que desafiam o ouvinte,
Sobre o sistema tonal, é importante realçar, aqui, que é um sistema que predominou no campo musical desde o
final do século XVIII até o início do século XX, e que, ainda nos dias de hoje, é a base das canções populares
herdadas das tradições do romantismo do século XIX.
31
instigando-o a um embate e enfrentamento, levando a produzir mudanças, uma vez
que inventa novos mundos de escutas, sensações e percepções.
Já, dentro da área da escuta clínica, não será feito um trajeto das marcas de
escutas clínicas da primeira metade do século XX, pois este atalho, em muito nos
distanciaria do nosso trajeto. Entretanto, vamos em direção a uma escuta clínica
que não se limita a uma escuta da personalidade
com suas estruturas
preconcebidas, centrada no indivíduo e no material a ser interpretado mas, sim,
uma escuta clínica voltada para a experimentação que constrói conexão de campos
e, neste âmbito, uma escuta clínica que convoca a arte para um embate crítico.
Uma escuta clínica que aspira por mutações tomando as problemáticas da arte
(música) para efetuar tais metamorfoses. Assim, a clínica aqui vem acrescida da
crítica, no sentido de que esta é aqui pensada “como uma condição de
possibilidades para a emergência do novo, ou seja, condição de criação e
reinvenção permanente de nossas orientações em todos os campos” (Lopes, 1996,
p. 12).
Ao perpassarmos por estes dois campos, talvez possamos encontrar o desejo
de escuta musical clínica que ficou “adormecido” enquanto a palavra foi escutada e
as sonoridades musicais foram ampliadas. Desta maneira, espero estar conduzindo
o leitor para a invenção de caminhos que nos possibilite escutar a mulher-sussurro e
o corpo-dançante.
32
1. 3 UMA ESCUTA QUE ESCAPA
1.3.1 Escuta Musical ou Devires?
Se anteriormente acompanhamos alguns deslocamentos de escutas no
campo médico e vimos um olhar sobre a escuta, convido o leitor para entrarmos num
campo onde a escuta é escutada, ou seja, na terra do violinista. O violinista da
nossa cena era um músico da segunda metade do século XIX, portanto, como um
personagem social deste ambiente musical era atravessado por fluxos do sistema
tonal que se mantinha por um fio. O “burburinho” crescente de dissolução desse
sistema já prenunciava sua ruptura. Podemos dizer que havia um desejo, ainda que
silencioso que ensaiava na escuta musical, novas sonoridades e, com isto,
compunha novos territórios de subjetividades12.
Mas, de qual subjetividade de escuta musical estamos falando? Ou ainda, de
qual processo de subjetividade estamos falando?
Num primeiro momento, um tanto superficial, por assim dizer, podemos
considerar que se trata de um modo de ouvir que captura, identifica, codifica e atribui
um pensamento subjetivo ao som. Este movimento parece ser binário: um interior
subjetivo que captura um som exterior dando a ele um significado. Mas, como esta
“ingenuidade” é facilmente desmontada, passemos para um outro plano.
O ouvir agora possui uma potencialidade suscetível de vibrar, pois passa a
ser tocado pelas forças que fazem ouvir. Deste ponto, não é mais difícil notar que a
divisão interno X externo tem uma pele com uma densidade variável. O que se tece
é uma textura móvel, feita de forças-fluxos que vão compondo superfícies,
depressões, asperezas que habitam na subjetividade: meio cultural, social,
econômico, político, profissional, tecnológico.
Como foi dito anteriormente, esses ambientes só fazem variações ao longo
dos tempos e, além disso, permutam entre si. Então, a pele é uma região de
12
Sobre territórios de Subjetividades, ver Cartografias do Desejo de Félix Guattari e Suely Rolnik (2000: p. 25123).
33
passagem e, também, de misturas (um dentro-fora numa dinâmica de atração e
repulsa). O ouvido não é mais um captador sonoro, mas uma pele que faz mutações
nas misturas e cria um diagrama de relação de forças inusitadas. A esta altura é
preciso recorrer a ambientes insólitos, pois vamos estender a pele-ouvido para uma
superfície plana, uma vez que as relações de forças inusitadas, ao criarem
diagramas, não só desenham um perfil de intensidades variáveis mas, também, se
dobram (de dentro para fora e de fora para dentro). Aqui, a subjetividade não é mais
um fora-dentro, mas se dá nas dobras13.
Este processo não pára. A cada novo diagrama, outras dobras se desdobram,
redobram, dobram; ora se curvando no mesmo lugar, ora em lugares distantes, mas
o que vemos é que, o dentro-fora é indissolúvel. O dentro é habitado pelo fora e o
fora é inundado pelo dentro. Nas palavras da escuta, a escuta é habitada de
sonoridade e a sonoridade é inundada de escutas. Isto porque, o dentro desacelera
as forças que vêem de fora criando um território que logo se desfaz porque o fora
continua lançando forças agitadas desfazendo e refazendo dobras. Assim, nas
dobras o ouvido vira pele, ou melhor, um processo de subjetividade de escuta-pele.
A subjetividade da escuta musical é este movimento de dobra que tem, na
escuta composicional, uma intensidade peculiar. Os criadores de escutas inusitadas
(os músicos compositores) são capazes de suportar esta vertigem das dobras nos
seus impactos desestabilizadores posto que, agüentam diferentes velocidades de
forças. São nestes impactos que os compositores materializam sonoridades das
dobras, independente de corporificá-las ou não na sua subjetividade, porque as
forças que passam, e eles suportam, não competem a um sujeito.
Mas, se as dobras da subjetividade da escuta musical não são corporificadas
pelo sujeito, inversamente elas também precisam de um corpo como porta-voz.
Então, temos que convocar o corpo que habita a escuta musical.
Vimos que no movimento de dobra a escuta-pele é desprovida de horizontes
e ponto fixo. Portanto, ela não fica limitada ao rosto-orelha e, sim, se estende para o
corpo. Afora isso, como as forças-fluxos potencializam um corpo vibrátil, aquele que
13
Sobre as dobras, ver Deleuze G. A dobra – Leibniz e o barroco, parte I. Tradução de Luiz Orlandi. Campinas,
Editora Papirus, 1991.[original,1988].
34
alcança a invisibilidade e é sensível aos afetos (CS, p.26), a escuta, que também é
da ordem das sensações, vibra com ele.
Entretanto, deste ponto é preciso fazer uma parada para detalharmos a
relação o corpo e a escuta musical.
A subjetividade da escuta, no corpo vibrátil, exige uma imagem-corpo
destituída da separação dentro-fora. Para tanto, tomemos o pensamento imagemcorpo criada pelo filósofo José Gil no livro Metamorfoses do Corpo (1997).
Quando este autor descreve as metamorfoses que o corpo experiencia nas
sociedades e nas culturas, ele apresenta no capítulo “Interior do Corpo: um lugar do
outro, lugar da alma” (p. 144-191), um movimento de dobra do corpo em relação ao
fora-dentro. Para Gil, há um “entre” o interior e o exterior do corpo que produz um
espaço de limiar, uma espécie de “interface que define uma região,
um espaço
<<em volume>>, se assim pode se dizer – que em parte se abre para o exterior, e
em parte se estende para trás, nas trevas do interior” (p.154-155). Este dentro-fora
paradoxal, se por um lado é limitado por fora graças à pele, por outro lado, é
exatamente a pele que prolonga o espaço para dentro, posto que ela é um dentrofora continuum em mutação, porque
“não é superfície, mas ‘volume’ ou, mais
exatamente, atmosfera” (p. 155).
O que se vê do corpo (com o olho visível) é a superfície, porém, é a atmosfera
(que vemos na invisibilidade do corpo vibrátil) que possuirá uma “textura singular
sempre prestes a limitar-se por fora e a estender-se por dentro”. Neste espaço
atmosférico “ o limiar é elástico, e delimita-se a ele próprio através de superfícies e
écrans sucessivos: outras peles”(idem, p. 155).
É no sentido das outras peles que o espaço atmosférico do corpo inteiro
oferece interfases para construção de múltiplos espaços de limiares. Porque o corpo
é uma “geografia, uma geologia, uma topografia onde se encontram todas as
modalidades sensoriais: no espaço auditivo, tátil, visual, gustativo” (p.156).
É nessa topografia que põe num mesmo plano, modalidades diferentes, que
a escuta musical é porosa. Ela mistura regiões distintas e cria relevos para simular
matérias de expressão. Dito de outra forma, a escuta musical está nos poros do
corpo. Ela se dá nas dobras e num corpo que faz multiplicidades sensoriais, um
corpo-sonoro.
35
Este corpo-sonoro não tem carne e não é centrado no sujeito. Não é orgânico
e nem tem forma-corpo. É um corpo-fluxo molécula sonora14 que desliza para além
dos limites da forma.
Há sempre um corpo-sonoro na música. Ele é virtual15 porque, além de ser
envolvido por uma névoa de sonoridades, é criado e destruído muito rapidamente
na incerteza e na indeterminação da escuta.
A virtualidade deste corpo é a potência que atualiza o corpo-instrumento. A
música é povoada de corpo-instrumento: desde expressões sonoras corporais
(palma, estalos, percussão corporal), passando pelos instrumentos tradicionais e
culturais, até o acoplamento da música com a tecnologia que, resultou nas
sonoridades flutuantes da música contemporânea com seu corpo-espectral.
A relação corpo e escuta musical se dá nessas passagens do corpo-sonoro
(uma potência virtual) para o corpo-instrumento (uma sonoridade atualizada). Nesta
dinâmica de vizinhança o corpo-instrumento não é uma representação e nem uma
imitação dos movimentos corporais, contrário a isso, ele é heterogêneo porque faz
bloco com a escuta: escuta-tato, escuta-digital, escuta-boca, escuta-braço, escutaolho, escuta-pulso, escuta-gesto, escuta-voz....
Neste contexto, o corpo-instrumento é vivo. Povoado por potência de
sonoridade não atualizada, ele liberta o corpo-carne de seu limite estático para
torna-se molécula sonora.
Novamente temos que fazer uma outra parada para aglutinar um outro
componente. O corpo-sonoro tem partículas de vocalidade. É que a escuta porosa
14
Deleuze e Guattari (MP, vol. VI p. 112) apresentam-nos a idéia de molecular como sendo uma “capacidade
de fazer comunicar o elementar e o cósmico : precisamente porque ele opera uma dissolução da forma que
coloca em relação às longitudes e latitudes as mais diversas, as velocidades e lentidões mais variadas, e que
assegura um continuum estendendo às variações muito além dos limites formais”. Os autores também falam de
moléculas sonoras (idem p.110). Esta idéia, no nosso trajeto, é de fundamental importância, uma vez que
estamos penetrando num universo tão volátil da escuta e das sonoridades. Assim, a molecularização nos liberta
de um objeto estático da forma e nos propicia uma movimentação de vizinhança e misturas.
15
O virtual, aqui, é referente ao bloco virtual-atual (D, p. 173-179). Toda multiplicidade implica em elementos
atuais e em elementos virtuais. Não há objeto puramente atual. Todo atual se envolve de uma névoa de imagens.
Uma partícula atual emite e absorve virtuais mais ou menos próximos, de diferentes ordens. Eles são ditos
virtuais quando sua emissão e absorção, sua criação e destruição, são feitas em um tempo menor do que o
contínuo e tal brevidade os mantém, desde então, sob o princípio da incerteza e da indeterminação.
36
tem uma plasticidade na voz, uma prega que remete a vocalidade num bloco escutacanto.
O compositor Dennis Smalley (1992) considera que, pelo fato dos sons da voz
serem gerados dento do corpo, eles são disparadores de expressões subjetivas, de
comunicação e, são também, carregados de emoção. É neste sentido que, embora a
vocalidade esteja na boca, ela vêm do corpo inteiro: o corpo em moléculas de ar
transformando a boca em moléculas sonoras. Uma boca-corpo que escapa da fala e
inventa, com a escuta-voz, uma atmosfera de vocalidade.
Nesta mistura a voz coloca, num mesmo plano, substâncias heterogêneas do
corpo, do rosto e da escuta. Mas, estar num mesmo plano, como vimos
anteriormente, é manter uma relação “ora de afrontamento, ora de substituição, ora
de troca e de complementariedade”. (MP, vol. IV p. 110).
Então poderíamos perguntar: Quais são os afrontamentos, as trocas e as
complementariedades da escuta-voz?
Num primeiro momento, talvez, possamos dizer que a vocalidade é o portavoz mais fluente do corpo-sonoro, uma vez que sua sonoridade atinge tanto a fala
quanto o canto.
Porém, também vimos que o corpo-sonoro tem geografias diferentes para
atualizar matérias sonoras, pois as sonoridades expandem-se pelo corpo inteiro.
Assim, a vocalidade concorre com as sonoridades do corpo-instrumento.
Sobre este movimento Deleuze e Guattari (MP. Vol. IV) apontam que, a voz,
na música, ora é desterritorializada pelo canto, ora é reterritorializada no timbre,
outrora é desterritorializada no instrumento e reterritorializada no acoplamento
instrumento-voz. Enfim, esta relação corpo-instrumento e vocalidade sempre gera
aumento de conexões. Logo adiante veremos este movimento em algumas
passagens musicais.
Um segundo enfrentamento que a escuta-voz vive são as dobras da
subjetividade das vozes, ou seja, nas dobras, nosso corpo vibrátil e nossa escuta
porosa deixam passar vozes que cantam o povo: seus gemidos, seus gritos, suas
alegrias, suas felicidades, seus risos, seus sussurros enfim, seus desejos.
37
É que o corpo-sonoro nas suas molecularizações, também faz dobras com as
vozes de crianças, de mulheres de animais, vozes da vida. Este processo não gera
somente um movimento estético na música (invenção de mundos sonoros) mas,
também, impulsiona um movimento político no sentido de que, a música escapa das
forças
do poder (religioso, estatal, econômico). Vimos o olhar médico sobre a
mulher-sussurro e sobre o corpo-dançante. Aquele olhar tentava capturar e “calar” a
virtualidade do corpo-sonoro.
É neste sentido que a vocalidade, no processo de dobra, também enfrenta
forças que paralisam fluxos de produção. A voz que canta o povo, muitas vezes foi
capturada mas, a música continua achando linhas de escape.
Uma rápida passagem pela subjetividade da escuta musical nas dobras da
vocalidade, pode exemplificar estes dois processos de enfrentamentos da escutavoz.
O canto gregoriano16, derivado de um poder religioso, com sua voz solitária,
sempre enfrentou vozes
femininas, infantis, e também vozes do corpo dos
instrumentos populares: percussões e instrumentos de ritual; e, ainda, a voz da
multidão - nos cantos populares e profanos. Apesar do poder religioso se esforçar
para silenciar tais vozes, num movimento sussurrante, elas são potências de
produção e invenção que borbulham no corpo-sonoro e ensaiam, no rosto, um gesto
para libertar a escuta de uma surdez político-religiosa.
Estas virulências ruidosas algumas vezes foram estagnadas (a proibição de
instrumentos de acompanhamento, exclusão de vozes feminina, a proibição do
trítono), outras vezes foram capturadas para se tornarem “controláveis” (inclusão de
vozes em defasagem que gerou o cânon). Porém, neste jogo, os desejos
continuaram ali, sempre instigando a escuta e colocando-a em prontidão para ouvir
as vozes que escapavam. A passagem da música monódica para a polifônica pode
ser vista também por esta dualidade: ora a retenção de vozes, ora a
16
Esta região tem um agenciamento político bastante intensivo que opera por cisão de mundos musicais, ou
seja, uma espécie de bifurcação de fluxos que está presente desde Platão (que defende uma música apolínea que
leva a uma temperança, e ao heroísmo, contra uma música dionisíaca, que emerge da terra, do corpo, e da voz
“sem harmonia”), e se estende até os dias de hoje, com as divisões dos mundos musicais valorizados pela mídia,
em conseqüência de uma axiomática capital. Esta cisão de mundos, é um dos componentes que faz retenções,
substituições e acoplamentos.
38
complementariedade para diminuir a força das vozes “estranhas”. Com a polifonia
estabelecida (trama simultânea de vozes modais - século IX ao XV), o acoplamento
de vozes deságua nos motetos. Estes acolhem vozes simultâneas, com textos
diferentes e línguas diferentes; eram misturas de vozes sacras e profanas que não
podiam mais segurar a produção do corpo-sonoro. Parece que o ar que traz as
moléculas do corpo, não consegue mais se expandir nas vozes que saem do rosto,
então, a voz se desdobra no corpo e as moléculas vão sair pela pele de um corpoinstrumento. É a voz saindo do seu território boca e desterritorializando-se num
corpo-ferramenta.
Estamos falando do acoplamento voz-instrumento. Em toda a história da
música, como já foi descrito, o corpo-sonoro sempre atualizou instrumentos musicais
mas, como evidenciamos um setor que primou a voz no canto da palavra e excluiu o
instrumento (claro que na música “profana” o instrumento sempre acompanhou a
voz), cabe salientar que, com o aumento da “captura de vozes”, atingiu-se uma
extensão de ressonância que os corpos começaram a reverberar.
É a partir desta diversidade que os instrumentos (século XV/XVI) foram
acrescentados e a música da clausura religiosa fez vizinhanças com o campo da
mecânica, da física, da matemática e da acústica, expandindo-se para o corpoinstrumento. É a voz e o corpo numa complementariedade que emergem em um
período, que Guattari (1993, p. 184) chamou de homem/ferramenta.
Esta nomeação, feita por Guattari, é referente a um período histórico em que
o monoteísmo da cristandade européia (por sinal bastante flexível e evolutivo à
medida que era capaz de se adaptar às diferenças dos bárbaros e dos escravos,
conservando sempre sua ideologia como
motor propulsor), apesar de ter se
concentrado sobre vigilância, saberes e técnicas da época, não escapou da
generalização do uso do ferro e dos moinhos de energia natural que revelavam o
desenvolvimento de mentalidades artesanais e urbanas que
incrementaram as
relações: trabalho, família e pátria. Assim, a relação corpo/ferramenta começa a
tomar proporções coletivas. É neste período, ainda segundo o autor, que se dá o
aparecimento do relógio que batia as horas canônicas, servindo como uma
“ferramenta” para a música de suporte escritural. Esta mentalidade “ferramenta”
prenuncia o escape das vozes da abóbada e o acoplamento voz-instrumento ganha
39
um outro lugar, a sala de concerto. Nessas transformações, o artesão torna-se um
luthier (fabricador de instrumentos) e surge o instrumentista e o ouvinte de concerto.
A conseqüência deste corpo/ferramenta gera uma música que incorpora, cada
vez mais, os instrumentos (que até então eram dos rituais populares) como
acompanhamento do canto. Este bloco voz/corpo/instrumento, posteriormente, vai
fazer um movimento inverso: distancia-se da voz e investe num corpo/instrumento
que produzirá o instrumentista intérprete e o solista virtuose.
Segue-se, assim, no acoplamento homem/ferramenta, um período de
ampliação das fontes sonoras e, à proporção em que o homem vai caminhando para
um
homem/máquina
(veremos
este
desdobramento
mais
adiante),
configurações de conjuntos instrumentais (orquestra barroca,
novas
a orquestração
sinfônica do período clássico, os quartetos, a orquestração do período romântico)
vão delineando uma ampliação desta relação que veio da voz e se estendeu ao
corpo/ferramenta (em música corpo/instrumento).
Com a ampliação das sonoridades (instrumentos e vozes: solistas e coros), a
voz que canta as palavras sofre um enquadramento de um virtuosismo artificial.
Segundo Heloisa Valente (1999), as vozes barrocas, que se prestavam ao bel canto,
eram resultados de um treino espartano. Saltos de oitavas, tremoli, floreios, técnicas
estas exigidas aos instrumentistas, também era objeto de desejo dos vocalistas e
das platéias da época. Ocorria aqui uma inversão, uma cisão corpo-voz por um outro
prisma. Se antes o corpo-instrumento foi separado da voz para que esta alcançasse
uma “voz-pura”, agora, o corpo-instrumento superou a voz-canto. E, neste contexto,
há um esforço em enfrentar o corpo-instrumento, mesmo que isto signifique
sacrificar a vocalidade. Esta luta não perdurou por muito tempo, e o escape para
este embate foi uma retomada da voz pronunciada e um investimento na voz
projetada, segundo a classificação de Roland Barthes (1984, p.228).
A voz pronunciada, que escapou das amarras de uma virtuosidade correlata
aos instrumentos, faz uma nova síntese sonora, levando a pronúncia para além da
fala e, através do lied alemão e das canções francesas, canta paisagem da vida e
os desejos que por ela passam. Vozes femininas ou masculinas, idades e
nacionalidades variadas desenham no ar as sonoridades das pulsões secretas do
povo, com seu timbre próprio. Novamente, a voz está livre e não concorre mais com
o corpo-instrumento mas, sim, com as moléculas que ela traz do corpo, mescla-se
40
ao corpo-instrumento. Neste período, o piano passa a ser um parceiro indispensável,
pois, ao propiciar um clima para que a voz “cante a vida”, ele funde-se a ela nas
mais sutis inflexões. É, talvez, no lied que, pela primeira vez, o encontro corpo-voz X
corpo-instrumento, mantém juntos, um mesmo plano, elementos heterogêneos: vozpiano num bloco.
Se a voz pronunciada cantava a paisagem da vida numa mistura voz-corpoinstrumento, a ópera convocava uma voz projetada (idem, p. 228) e investia numa
ampliação do corpo, uma vez que a voz atingia uma dimensão de preencher o
espaço acústico. Esta voz expandida tinha como acompanhante os corposinstrumentos de orquestras e, portanto, sua sonoridade mesclava-se com uma
materialidade sonora mais complexa. Mas projetar o som, numa ampliação do corpo,
não era o único investimento desta voz, uma vez que havia uma contextualização
cênica, dramática e um enredo que configurava “personagens sociais”. Assim, a voz
projetada, na ópera, cantava os “personagens sociais”.
Talvez, um último registro (localizado na passagem do período romântico
para moderno) possa sintetizar este continuum de relação voz-instrumento que
adentrou no século XX. Gustav Mahler (1860-1911) na 8. Sinfonia – Dos Mil
Executantes - nos deixa escutar um extremo da expansão das vozes e das vozes
do corpo(os instrumentos), quando desejava
“por
todo um
mundo numa
sinfonia” (Moraes, 1983, p. 59) : um coral infantil, dois corais mistos, cento e setenta
e um instrumentistas, além de sete solistas (três sopranos, dois contraltos, um tenor
e um baixo). E, assim, aquela voz solitária em uníssono do século IX veio marcando
nossa escuta com retenções, aglomerações, sobreposições, chegando na primeira
metade do século XX, ora em grandes corais, ora em bloco com o corpoinstrumento, ora cantando paisagem da vida, outrora cantando os personagens
sociais. A esta altura, a escuta já estava marcada por uma multidão de vozes que
faziam vibrar o
corpo-sonoro
numa mistura de sonoridades: voz-piano, voz-
orquestra, voz-violino, voz-coro.
Mas, como as vozes ruidosas sempre continuam ressoando num desdobrar
sobre si mesma (vozes inventando vozes), surge um outro espaço de vozes que
ressoam num “entre” o canto e a fala. É o sprechgesang (traduz-se para o português
como canto-falado) de Arnold Schoenberg (1874-1957) em seu Pierrot Lunaire
(1912). Agora, uma outra textura de voz expõe a escuta musical à sonoridade dos
41
sussurros. O ar, que vem trazendo as moléculas do corpo para vibrar na boca-corpo,
desvia-se das cordas que cantam e cria um atalho, produzindo uma textura áspera
que Schoenberg vai modular em sussurros com sonoridade (Klangvoller geflüstert) e
sem sonoridade (geflüstert tonlos) (Menezes, 1987).
A voz tem que encontrar um
outro espaço, que não o das passagens do canto e nem os blocos dos fonemas.
Para tal façanha, no prefácio de Pierrot Lunaire, Schoenberg indica que este “entre”
deveria ser uma fala que pudesse “cooperar” com uma forma musical, porém, não
deveria evocar a canção.17
Agora, a escuta é afetada por uma vocalidade de moléculas sonoras as quais
desenham texturas que reverberam “segredos” de outras vozes. Talvez, se a escuta
do violinista da nossa cena já tivesse sido marcada por Pierrot Lunaire, a mulhersussurro teria sido ouvida.
Porém, é imprescindível evidenciar que outros compositores estenderam o
limite da voz canto-fala para um território muito mais amplo. O compositor italiano
Luciano Berio (1925), em Sequenza III para voz (1965), desmonta as marcas da
significação da voz (fala e canto), para alcançar uma “cantabilidade” dos fonemas. O
timbre percorrendo o espaço oco da boca, acha frestas que escapam da palavra
para atingir muxoxos, respirações ofegantes, estalos de língua, risos, relinchos, boca
chuisa, cochichos. Todas estas sonoridades também sofrem a inclusão de sons que
reportam a uma melodia estendida com notas longas, transformando-se em
transição vocálicas.
Também György Ligeti (1923), em Aventures (1962), apresenta três vozes
(soprano, meio soprano e baixo com um sexteto) que saltitam entre o terreno da fala
e do canto. Porém, a vocalidade nesta obra, parece uma busca infinita de “buracos
da boca”. Desde
pianíssimos, sussurros, “zumbidos”, a crescendos que abrem
em uma gargalhada. Às vezes, há um saltitar das vozes em rápidas passagens,
entonações entre uma espécie de “fala-cantada”, vocalizações curtas estridentes,
sons onomatopaicos, gemidos, exclamações.
Em algumas passagens, a voz
mescla-se tanto com o sexteto, que parece uma massa voz-instrumento. Em Luz
Aeterna (1966)- coro para 16 vozes a capela - o compositor cria uma atmosfera e a
escuta começa a ser invadida por vozes que chegam (parece que elas vêem de
17
Schoenberg, Arnold. “nota de concerto” in Campos, de Augusto (1998 :47).
42
longe): vocalidades longas fazem deslizamentos de aproximações e configuram um
espaço, desenhando uma textura de sobreposições; vozes aproximam, algumas se
afastam, outras desaparecem, outras voltam, criando uma teia de vozes que vão
sempre configurando uma atmosfera movente deste espaço.
Por outro prisma, Luigi Nono (1924-1990), ora com um tratamento musical
outrora com um tratamento eletrônico na palavra, faz colagens de fragmentos vocais
e desconstrói a fala e o canto. Como uma ola de fuerza y luz (1971-72) e
Contrappunto dialettico Allá mente (1968) são exemplos desta subjetividade da voz.
Até aqui, vimos que a escuta musical é sempre da ordem da vizinhança, ela
sempre se dá num movimento de misturas, num bloco. Portanto, ela é num devir,
que é o processo do desejo. Uma zona de vizinhança “topológica e quântica, que
marca a pertença a uma mesma molécula, independente dos sujeitos considerados
e das formas determinadas” (MP. Vol. IV, p.64).
Nos devires da escuta, as formas e os sistemas musicais também foram
sendo transformados. A seguir, vejamos algumas destas metamorfoses.
1.3.2 Deixando a casa tonal
A tonalidade consolidada no barroco estende-se até a música romântica.
Neste sentido, esta última, que já havia percorrido temas, variações, formas, motivos
melódicos, subdivisões do pulso, melodia harmonizada, modulações com as tramas
para a criação de tensões e de resolução destas tensões, retoma um movimento de
acoplamento ao fazer ressoar as vozes modais, ou seja, a música romântica que
inventava uma roupagem tonal para temas modais. Esta colagem estendeu-se até o
mito (cromatismo wagneriano) e, novamente, as vozes fizeram novas misturas.
Este sistema não parou de incorporar vozes e, sua constante mutação era o
germe de sua ruptura inevitável. Alguns pontos podem sintetizar o divisor de águas
do período romântico para o moderno: o impressionismo, que tira o ouvinte do hábito
da relação de tensão tonal (tensão e resolução); o expressionismo, que expõe o
ouvinte a um excesso de referência tonal; um pantonalismo e, ainda, a negação da
43
tonalidade, que, segundo J.Jota de Morais (1983), emerge de um conjunto de fatos :
o movimento futurista (incorporação do ruído à música), o método composicional
dodecafonismo e o microtonalismo, além do pragmatismo norte-americano.
Essas mudanças musicais colocam o hábito da escuta tonal em xeque, posto
que seu terreno seguro (instrumentos incluídos nas orquestras clássicas e
românticas, estrutura tonal estabelecida, um ritmo que se encaixa em subdivisões,
um tempo musical seqüencial, uma harmonia que sustenta a trama melódica) é
ameaçado por “sons exuberantes, silêncios e gramáticas muitas vezes obscuras”
(Iazzetta, 2001, p.13).
A música sempre convocou a escuta a inventar blocos de sensações pois,
como vimos, ela “não parou de fazer suas formas e seus motivos sofrerem
transformações temporais, aumentos ou diminuições, atrasos ou precipitações...”
(MP, vol. IV, p.61). Entretanto, a música do século XX convocou a escuta para uma
desagregação da moldura tonal em prol de uma expansão das sonoridades. Este
fato não se dá somente no interior do campo musical mas, sim, é um “dentro-fora”
que se mescla (em todos os períodos musicais), de modo que, como já
descrevemos,
forças não musicais penetram no campo musical e, ali, através da
escuta, são transformadas em sonoridades. Para Dennis Smalley (1992)
existe
uma espécie de membrana fina que se rompe e viabiliza as passagens do mundo
não musical para o território musical e vice-versa. Como vimos, são as dobras que a
escuta vai fazendo. É neste sentido, que o campo musical abarca tanto o potencial
de transbordamento - a música desterritorializando espaços não musicais -, como
de embebedamento - forças não musicais interferindo no campo musical. Já vimos
este movimento pela dobra da subjetividade.
Coexistindo nos meios não musicais, a música do século XX tanto
transformou suas questões sonoras, como foi influenciada pelas sonoridades não
musicais das novas paisagens sonoras18. Estamos falando de um século que deixou
a relação homem/ferramenta (que, apesar de ter ampliado a mobilidade e
mentalidade corporal, ainda permanecia restrito ao corpo-ferramenta) para atingir a
18
Paisagem Sonora - expressão usada por R. Murray Schafer (1979) que define um campo acústico que pode se
dar tanto com ambientes reais como abstrato. As paisagens sonoras são derivadas de processos sócio-culturais,
históricos, políticos e estéticos e sofrem mudanças constantemente.
44
relação homem-máquina. Esta nova relação provocará uma profunda mutação na
corporalidade, visualidade, oralidade e sonoridade.
O homem-ferramenta, segundo Guattari (1993), a partir do século XVII
começa a se transformar em homem-máquina. Neste sentido, a comunicação oral
vai se deslocando para o texto impresso, o que gera um aumento tanto de volume
quanto de velocidade do acúmulo dos saberes. A manipulação do tempo sofre uma
alteração profunda, uma vez que as máquinas, com suas velocidades que dão
mobilidades ao corpo, agora estreitam distâncias e sincronizam o trabalho. O corpo
também é afetado pelo saber biológico (vimos um comportamento derivado deste
movimento no olhar médico da cena I) e a indústria bioquímica estabelece suas
relações com o capital. Se vínhamos falando de uma voz que tinha ora retido o
corpo e ora se acoplado a ele, inventando uma voz-corpo-instrumento, com o
avanço para o homem/máquina, o corpo não é só corpo-voz-ferramenta
(instrumento), mas é também : biológico e maquínico.
Se as vozes do homem-ferramenta esforçavam-se por escapar da “voz pura”
do poder religioso, as vozes do homem-máquina vão concorrer com outros
enfrentamentos:
os
espaços
tecnológicos,
urbanísticos
e,
principalmente,
econômicos.
Quanto às sonoridades, as máquinas inventadas a partir da revolução
industrial avançam para além de um corpo-ferramenta e, apesar de não serem
produzidas para fazerem sons, são fontes sonoras. Fazem barulho e modificam a
paisagem sonora: o vapor que impulsiona máquinas na terra e no mar também
atinge a audição com o efeito dopper, uma vez que o “ruído” das máquinas tem uma
velocidade deslocando-se no espaço que, apesar de superar a mobilidade do corpo,
convoca a audição e a visão para um deslocamento veloz do espaço-tempo.
O
motor, no seu funcionamento cronológico, impõe um tempo insistente e métrico que
enquadra o corpo na força de trabalho, num pulso constante e, além disso, a cada
nova invenção, uma nova sonoridade.
Estas “novas fontes sonoras” da paisagem cultural transformam-se com a
mentalidade máquina que, conseqüentemente, faz profundas alterações na pele
atmosfera: o olho vai se tornar câmera e a escuta vai ser espacializada e afetada
por mudanças na velocidade, nas intensidades dos sons; a voz vai se tornar
mecânica, a pele atmosfera vai se metamorfosear em novas texturas.
45
Porém, se antes o poder religioso abafava vozes, o poder agora vem de um
outro lado, vai capturar vozes e criar massas de identidades para reproduzir
padrões. O enfrentamento da música, agora, é liberar vozes que escapam de uma
audição cada vez mais delimitada por representações do poder econômico, e criar
transversais de invenções abstratas que burlem a audição representativa e atinja
uma escuta das vozes que continuam no murmúrio do Povo Sonoro19. Nesta
dinâmica, a música do século XX inventa uma outra marca na escuta ao produzir
novos timbres e novas relações da voz-corpo-instrumento que caminha para vozcorpo-instrumento/máquina.
E é neste campo sonoro que o músico do século XX se encontra. Uma escuta
que começa a virtualizar o corpo-ferramenta para atingir um corpo-sonoridade. Com
estas novas sonoridades, a música (e aqui ainda nas suas dimensões corpoinstrumento e corpo-voz), começa investir em acordes “dissonantes” (em relação ao
que era sistematizado como conssonante) e, cada vez mais, aglomera
massas de
sonoras.
A escuta melódica que até então havia percorrido as modulações românticas
exuberantes, se por um lado já havia entrado num redemoinho repetitivo de
passagens de tonalidades (cromatismo wagneriano), tem um novo campo de
exploração. Debussy (1862-1918) com suas pulverizações de aglomerados sonoros,
onde as relações harmônicas não tinham um poder imperativo mas, sim, eram
“apenas uma possibilidade entre muitas, não necessariamente a mais importante,
nem necessariamente determinante da forma e da função” (Griffiths, 1987,p.9),
tirava a escuta da direção melódica harmônica conhecida, e a convidava para
lançar-se em moventes
manchas sonoras com fragmentos melódicos que se
deslocam de forma independente mas, ao mesmo tempo, interpenetrados.
O ritmo também acompanhava esta dinâmica, tornando-se mais complexo e
fluído, desmantelando o compasso, libertando a escuta da métrica do tempo do
relógio e da sincronia do corpo automatizado, para acompanhar as forças moventes
dos novos campos sonoros.
19
Esta expressão é de Deleuze e Guattari (1997), em Mil Platôs vol. IV no capítulo “Acerca do Ritornelo” (p.115-170), onde
os autores fazem um detalhamento das passagens musicais nos seus agenciamentos estéticos, políticos e sociais,
evidenciando os esforços que a música empenhou no combate de forças maiores (religião, estado, poder econômico) e, neste
enfrentamento, como ela veio tentando “sonorizar” o povo que falta, ou seja, uma população que escapa dos poderes
majoritários.
46
A música parecia deixar sua segura casa (a tonalidade) e se lançava para
outros territórios. Às vezes, havia uma ronda envolta da casa, uma suspensão da
relação tonal; outras vezes, criava um trajeto englobando todos os cômodos da casa
tonalidade (politonalismo). Contudo, foi na saída da casa, no atonalismo, que a
música pactuou com a escuta e encontrou com o som. Dito de outro modo, a escuta
era convocada a deixar os trajetos conhecidos, preestabelecidos, pelas bases
tonais, e se deparar com outros campos de afetos. Neste pacto, o som passa a ser
uma potência nova a ser experimentada.
Mas, para que ele se torne um elemento autônomo, tem que dividir espaços
com vários campos, inclusive com a idéia de ruído.
A música já abordou o ruído20 de várias maneiras, para o nosso trajeto, ele
tem uma função de potência, uma vez que ele afeta a escuta instigando processos
de invenção e experimentação.
O ruído, derivado do acoplamento homem/máquina, foi referenciado pelo
movimento futurista que manifestava uma exaltação à máquina e um encantamento
com o ruído que ela gerava. Luigi Russolo (1885-1947), em A Arte do Ruído –
Manifesto Futurista (1913) propõe a máquina como fonte sonora e cria alguns
“estranhos instrumentos” que produzem ruídos. Porém, apesar da idéia ser
desestabelizadora, esta inovação teve problemas de elaboração da síntese dos
materiais recém inseridos no âmbito musical (Moraes, 1983).
20
A palavra ruído, que já é encontrada nos séculos XII-XIV, segundo Da Cunha, A.G. Dicionário Etimológico:
Nova Fronteira da Língua Portuguesa 2. edição, 2001; é derivada de rugido, urro. Partindo desta origem de
natureza “animal irracional” que amedronta o homem, o ruído passa a ser uma espécie de elemento o “ser
dominado” pelo homem. A música tem incorporado esta idéia e usa a terminologia “Ruído Sagrado” (do modal
ao pós-tonal) para significar o movimento de “dominar” as forças sonoras que passam pelo homem. Nas
civilizações antigas, este movimento se dava em rituais que sonorizavam as forças dos deuses, era um esforço
em transformar os sons da natureza (trovão, vento, chuva, urros) em elementos decodificados. Do canto
gregoriano até a polifonia, como vimos alguns exemplos, o ruído passou a ser as “vozes e os instrumentos não
puros”. Na música clássica-romântica, o ruído ficou submetido à estrutura tonal, uma vez que os acordes e
timbres que escapavam desta estrutura estabelecida, soavam como ruído. Ele também foi delimitado pela
clássica definição de Helmholtz : ruído é um som não-periódico. Já no século XX, com a mudança da paisagem
sonora, o ruído passa a concorrer com o barulho e, neste enfrentamento, estabeleceu-se uma relação com o poder
econômico (as primeiras leis anti-ruídos eram para as vozes dos vendedores das ruas, mas deixavam fora os
barulhos das fábricas e os sinos das igrejas). Algumas vezes ele também é denominado, num caráter subjetivo,
como um som indesejável e, também, pelo prisma da teoria da informação, ruído é como uma interferência na
mensagem. Não vamos esgotar as variantes sobre o ruído, mas caso o leitor queira uma ampliação deste tema,
veja na obra que já citamos Valente. H.A.D Os Cantos da Voz: entre o ruído e o silêncio (1999, p.29-72) e
também, Wisnik, J.M. O Som e o Sentido (1989, p. 13-53).
47
Contudo, independente das questões da elaboração de síntese, o que estava
em jogo era a relação ruído-música. E, este confronto, foi frutífero. A música, ao
tomar como questão musical o próprio som, abriu uma região para o timbre.
Ao atingir o timbre, faz-se necessário uma mudança global, incluindo-se os
instrumentos musicais que tradicionalmente são conhecidos pela sua sonoridade
peculiar derivada de um “corpo-ferramenta”. Agora, as sonoridades, caminham em
direção ao corpo-máquina e ganham densidades - Henry Cowell em 1912, usa pela
primeira vez os clusters (blocos sonoros tocados com a palma da mão e o antebraço
no piano) e, também, abre o piano para explorar o seu interior, determinando que o
intérprete raspe, pince e golpeie as cordas do piano.
As orquestrações revelam outras regiões timbrísticas – em Sagração da
Primavera (1913) Stravinsky, com acordes agregados, cria uma massa orquestral
“ruidosa” numa irregularidade métrica. Mas, só a mudança das sonorizações dos
próprios instrumentos parecia não ser suficiente às idéias musicais. Era preciso
outros sons.
A percussão, sempre abafada e classificada como ruído, vai convocar uma
escuta espacializada em Edgar Varèse. Se, em Amériques (1912) o compositor já
esboçava sua poética de espacialização sonora, em Intégrales (1925) o corpoinstrumento torna-se corpo-timbre, porque ele deixa a forma corpo-instrumento para
se dissolver em timbre. Agora, o corpo-timbre desliza pelo espaço numa teia de
aglutinação, contração, expansão, espaçamento, filtragem, alteração espectrais. Há
uma variedade de material e texturas sonoras. Mas, acima de tudo, o corpoinstrumento ganha uma mobilidade que até então a escuta musical não havia
experimentado. É que Varèse faz um bloco som-espaço e, assim, dá ao corpoinstrumento uma mobilidade molecular porque as sonoridades vão se deslocar em
relação a longitudes, velocidades, intensidades e latitudes.
O ouvinte agora é convocado a um labirinto de fluxos sonoros. Ao transformar
o som em molécula sonora, molecularizando a escuta musical através de uma
mobilidade expandida do corpo-instrumentro para um corpo-timbre, Varèse cria uma
idéia musical potente. Agora, corpos sonoros expandem o espaço.
Esta poética é um alimento potencial para a escuta musical do século XX/XXI,
uma vez que, apesar da música contemporânea pós-moderna ter ido além do corpo-
48
timbristico, ao atingir o corpo-espectral, a poética de Varèse tem uma virtualidade,
no que diz respeito a espacialidade sonora.
***
Se os sons estavam no espaço, por outro lado, Erik Satie (1866-1925), no
balé Parade (1917), faz uma colagem ruidosa: por um lado deixa o ouvinte
“acomodado” num território musical mais familiar (refrãos de ragtimes) e intercala
este “conhecido” com o ruído corpo/máquina (máquina de escrever como
instrumento de percussão e teclado, sirene e tiro de revólver fazem parte do mesmo
contexto musical). Apesar do que Paul Griffiths (1978, p. 70) fala sobre esta música
(Satie fez uma música “limitando-se a uma mera sucessão de construções musicais
ingênuas”), o que estamos evocando é o ruído sonoro que afeta a escuta e,
conseqüentemente, convoca-a para inventar um outro espaço de possibilidade de
escuta.
1.3.3 Música fora do lugar
Como a música tinha saído de seu território tonal, e estava entrando nas
sonoridades, havia uma expansão e isto, significa alterar o espaço e mudar de
“lugar”.
A música sempre criou “lugares” para sua aparição: rituais, festas populares,
canções de trabalho e, especificamente, na música ocidental, na tradição do poder
político-religioso, ela saiu dos muros da igreja para a sala de concerto (como vimos
anteriormente). Na sala de concerto, havia um plano de consistência que sustentava
três personagens sociais, segundo Paul Lansky (1990): o compositor (gênio/autor)
que escreve a música; o intérprete (gênio/servidor), que interpreta; e o ouvinte, que
aplaude ambos. Este triângulo, por muito tempo, sustentou a sala de concerto. Mas,
no século XX, com novas sonoridades e a tecnologia, o “lugar” da música,
assegurado por esta relação triádica, começou a balançar, era a música saindo de
mais um dos seus “lugares”.
49
O mesmo Erik Satie, que levara o ruído para o palco, escreve uma peça para
ser executada fora do palco, em que músicos espalhados pelo teatro, no intervalo,
tocavam junto com o burburinho da platéia. Assim, fora do palco e junto da platéia,
esta música destituída de seu lugar, gerou um ruído silencioso, pois a platéia,
perante tal “deslugar”, ficou muda e imóvel, uma vez que não reconhecia a música
sem palco21.
Este evento não ficou desarticulado mas, sim, pode ter sido o dispositivo que
deslocou a música do palco para a platéia, ou melhor, uma outra dimensão da
escuta.
Porém, antes de entrarmos por este atalho, temos que considerar que as
máquinas continuaram a proliferar e os meios de produção e reprodução sonora se
avolumaram: telégrafo, fonógrafo, gramofone,disco (78 r.p.m.), vitrola, telefone,
rádio,
microfone de cristal, alto-falante eletro-dinâmico, rádio estéreo, rádio de
freqüências moduladas, rádio a pilha, disco de vinil, gravador... cassete compacto,
sintetizador, som digital...
Nesta escalada, o som e a música definitivamente não
tinham mais “um lugar”. Se Satie, talvez com uma espécie de visão futurista, tinha
tirado a música do lugar, a tecnologia se incumbiu de disseminar o som e a música
por todos os lugares. Se antes havia “alguns lugares”, agora se tem nenhum lugar,
uma vez que a música pode estar em “todos os lugares”. Surgia assim, derivada da
ampliação tecnológica, por volta das décadas de 60/70, uma possibilidade de
“aproximar a música” da vida, uma vez que ela tinha saído do palco (relação ouvintepalco-música). Agora, com a tecnologia, ela estava em todos os lugares.
Nesse movimento, desenvolvem-se duas vertentes: uma, considera que
“expor” a população a uma música ambiente (supermercado, elevador, restaurante)
é a garantia de que a arte esteja mais próxima do cotidiano e, a outra vertente, que
vem das idéias de John Cage, defende que para romper o distanciamento palcoouvinte é preciso transformar o ouvinte em músico (através da escuta – veremos
este tema mais adiante).
21
Erik Satie ocupa um lugar de personagem musical irreverente, nem tanto pela sua música, mas sim pelas idéias
musicais que ele escrevia em textos que insidiam em críticas sobre a forma como a sua sociedade considerava a
música. É neste sentido que ele inventa “Música de Mobília”. Num protesto ao hábito de uma música que tinha
se tornado um objeto de elite social e não mais uma música crítica. Ver, Campos, A op.cit. p.73-78.
50
Sobre estas duas vertentes, Iazzetta (s/d p. 12) afirma que transformar os
“ouvintes em músicos” não deu certo porque as obrigações sociais (trabalho, escola,
família) não permitem que a vida se torne arte e, quanto à música em todos os
lugares, também é um processo que não se efetua, uma vez que a música “mesclase tão bem com os rituais ordinários que passa despercebida”.
Bem, se antes tínhamos uma música limitada a lugares específicos, parece
que o rompimento de seus limites e o escoamento por todos os espaços também
não liberta a música das forças dominantes. Contrario a isto, veremos, mais adiante,
que o poder econômico gruda nesses espaços e acaba mapeando este “todos
lugares”. Mas, este tema, será mais elaborado mais adiante. Por agora, voltemos
para o silêncio da platéia que ao ouvir uma música fora do lugar, ficou em silêncio.
Este silêncio em música também é uma potência sonora.
1.3.4 Silêncio
“Ao nível do silêncio o pó de tudo”
Giacinto Scelsi
Pausa, respiração, ausência de som. Enfim, estes parecem ser as figuras
indiciais do silêncio. Mas, tanto na música, como na psicanálise, na análise do
discurso e mesmo em Foucault (como vimos no tópico anterior) o silêncio “revela a
voz inaudível da ausência, que recolhe o alarido ensurdecedor das presenças”
(Vladimir Jankelévitch apud Francalanci 1992, p. 37). Deixando de lado os índices
musicais do silêncio para tentar ouvir as “presenças”, que até aqui vínhamos
acionando como “vozes que continuam a bater na porta”, retomemos
uma
passagem do tonalismo para o serialismo.
Se Schoenberg, como vimos, anteriormente, tinha convocado a escuta para
um espaço “entre” a fala e o canto, em música não foi este seu principal mérito
(como vimos, anteriormente, outros compositores ampliaram bastante o território
vocal). Seu principal mérito é sair da tonalidade, criando um método composicional
que tem como base manter a permutação entre as doze notas da escala cromática
51
(doze tons) fora de uma hierarquia, ou seja, sem um centro referencial (tonal). A
escala cromática passa, assim, a ser organizada através de séries. A série fica livre
do centro tonal e se apóia na permutação como dispositivo (a escolha da série).
Porém, ao mesmo tempo, tudo fica preso à série (projeto escolhido). Apesar desta
ambigüidade, a importância desta idéia é o deslocamento que o autor faz para as
notas, ou seja, a escuta tonal (com dispositivos de resolução a priori) passa a ser
uma escuta das notas que deslizam pelas alturas e durações. Esta passagem marca
um outro caminho para as sonoridades.
Porém, é Anton Webern (1883-1945) que encontra no método composicional
serial o potencial de possibilidades da série. Para ele, a série é uma trama
construída com critérios de possibilidades (por exemplo: a obtenção de um maior
número de intervalos). As doze notas conquistam um domínio sonoro e, ao mesmo
tempo, ampliam as possibilidades de combinação. Este domínio sonoro não se dá
mais nas dimensões da música tonal (vertical e horizontal – melodia e harmonia) e
sim, atinge uma espécie de dimensão diagonal que se configura num espaço sonoro
multidirecional. Este pensamento musical inaugura uma construção de sonoridades
num campo virtual.
Este virtual está no número infinito de combinação que a série pode atualizar.
A forma musical, para Webern, está nas variações da série. Uma forma (derivada
da série) pode organizar sons de trás para frente (retrógrado), inversão de intervalos
(espelho). Nestas variações (feitas nas doze notas), as sonoridades emergem das
diversas atualizações relacionadas entre si (altura, duração, intensidades, inversões)
e, deste modo, não há componentes secundários. A escuta aventura-se não mais
nas notas, como em Schoenberg e, sim, nas sonoridades em deslocamento de
motivos curtos coloridos pelos timbres – uma melodia de timbres. Esses fenômenos
sonoros são, “ao mesmo tempo, autônomos e independentes” (Boulez apud Terra,
2000, p. 62).
Esta invenção musical (um pensamento musical que se desloca para as
sonoridades), segundo Vera Terra (2000), gerou vertentes diferentes. De um lado, o
serialismo integral desenvolvido por Pierre Boulez que investe nas possibilidades de
permutação da série e, do outro lado, desencadeou a poética de John Cage que vai
no sentido das operações do acaso.
52
A poética de Cage possui um conjunto de idéias musicais - o silêncio, o
acaso, a composição como processo, a indeterminação, a não intencionalidade, a
experimentação – (qualquer som, a aproximação arte/vida). Contudo, por agora,
apesar de uma poética ser um conjunto de idéias que vão se conectando (isso
significa que um ponto tem relação direta com os demais), vamos enfocar o silêncio.
Se em Webern, a série atualiza possibilidades de sonoridades, estas
emergem das virtualidades da série, ou seja, do silêncio. O silêncio é o campo de
possibilidades na poética de Cage, um virtual “indeterminado puro”, de onde os sons
emergem e interpenetram-se. Para Cage, o silêncio é a potência musical, pois é o
campo virtual de onde os sons se atualizam. Ao orientar-se pelo silêncio (com
sonoridades virtuais), o próprio campo se estende na totalidade sonora. O silêncio,
assim, não é uma ausência de sons e, sim, uma potência para a escuta que, na
virtualidade do campo sonoro, agencia sonoridades compondo a própria escuta.
A escuta, aqui, é a vertigem do processo contra qualquer gênese de estrutura
a priori e, deste ponto, o que se tem é um tempo flutuante, uma experimentação
contra uma interpretação. Um repouso sonoro (silêncio) que só põe em movimento
as dobras da escuta, ou seja, uma escuta que no silêncio é pleno movimento; um
tempo que sempre retorna o diferente.
1.3.5 O Ritornelo da Escuta
Voz, instrumento, corpo, som, espaço, ruído, silêncio, timbre, canto, sussurro,
homem-ferramenta/máquina, texturas, cores, lugares, eis alguns fluxos que sempre
estão em processos heterogêneos (ora políticos, ora auditivos, ora espaciais, ora
econômicos, ora visuais, ora cognitivo, ora vocal) que nas suas vizinhanças, não
mais podem sustentar uma percepção entre um sujeito e um objeto, e sim, uma
percepção que “estará entre as coisas, no conjunto da própria vizinhança” (Deleuze
e Guattari, 1997:76), nas passagens das dobras. O trajeto que fizemos, apesar de
ter características históricas, não se limita a uma historicidade e, sim, às mutações
das subjetividades da escuta, na suas vizinhanças com universos heterogêneos.
Este é um dos movimentos da escuta, ela cria sulcos que se alastram e vão fazendo
mutações, desenhando sonoridades no continuum do campo musical. Não é só
53
uma questão de “contar história” - passagens da história da música e sim, de
acompanhar as mutações da escuta na sua aventura de inventar trajetos e de deixar
que o silêncio propague as vozes que rondam, e experienciar, como dizia Foucault
(1972, p. 530), “um vazio, um tempo de silêncio, uma questão sem resposta”. Neste
sentido é que a escuta musical escapa das significantes respostas e torna-se uma
“orelha humana quando o objeto-sonoro se torna música” (Deleuze, 1999, p.27)
compondo, assim, uma teia das sonoridades.
Neste contexto, pode-se perguntar: a escuta cria a música ou a música cria a
escuta? Eis uma pergunta que, apesar de redundante, expõe esta mistura. De modo
imediato, a resposta seria: nem um e nem outro; ambas são criadas em blocos.
Contudo, neste bloco há uma fusão que se dá na teia do tempo e do espaço, um
tecido sempre em movimento de extensão, rompimento e deformação. A música se
dá na escuta à medida que a escuta produz a música. Um processo de coexistência, uma vez que “não existe o som sem que seja configurado pelo ato de
escuta” (Ferraz, 1998, p. 161).
Já sabemos que a escuta se dobra sobre si mesma, que não há um dentrofora mas, sim, uma pele que vai sendo tecida, sabemos também que ela só se dá
em blocos (afinal, é escuta e precisa que vozes e corpos passem por ela). O silêncio
e o ruído são suas potências de movimento. Mas, ainda precisamos avançar um
pouco mais, e entrar nos agenciamentos. Sabemos que a escuta agencia retenções
de passagens dos fluxos do desejo num movimento de atrair e repelir, aglutinando
forças heterogêneas (corporalidades, vocalidade, ruído, espaço, visualidade)
espalhadas no campo virtual (silêncio de Cage, carregado de forças sonoras
virtuais). Neste movimento, de atração e repulsa, há misturas de afetos (sensações,
cognição, sinestesias, imagens) e é desta mistura que a escuta ensaia uma matéria
de expressão e produz marcas de sonoridade.
Porém, embora deste ponto já se configura uma orelha-humana que agencia
moléculas sonoras, ela ainda continua volátil, pois tudo isso pode ocorrer sem que
haja o disparo de dispositivos sonoros, uma vez que “o som é aquilo que se atualiza
como som, mesmo que não seja produzido por ondas sonoras ou percebido
auditivamente (Ferraz,1998, p.158). E aqui a escuta musical “ não fala mais apenas
daquilo que foi disparado pelo som, mas daquilo que foi disparado pela idéia de
música”(Ferraz, 1999, p. 34).
54
Chegamos a uma outra dobra da escuta que não só se efetua quando há uma
metamorfose em som ou música, mas também, brota do som que não veio e ela
inventou. A escuta também é uma imagem-pensamento.
Na porosidade da escuta a imagem-escuta também é uma expressão sonora.
É que o corpo-sonoro, na sua virtualidade, atualiza sensações sonoras (mesmo que
não tenha ocorrido um disparo do tipo sonoro) e cria uma marca na escuta. Uma
espécie de memória-sensação, uma marca que vibra por imagem de sonoridade.
Tínhamos falado que as marcas de escutas se efetuam quando as forçasfluxos estão ensaiando uma matéria de expressão. Um movimento de agenciamento
de forças que gera uma qualidade de expressão e uma temporalidade.
Vimos um pouco do movimento de marca de escuta na cena I. A mulhersussurro, na sua pele-sonora, mantinha um movimento de ronda e sustentava-se no
seu território corpo-voz, criando uma marca sonora. Entretanto, quando se deparou
com a música (no momento em que foi levada para ouvir a orquestra), as forças que
construíam sua pele-sonora foram dissipadas, e o corpo-voz não as encontrava
mais. Perdido, ele não podia continuar a construção de sua marca sonora. Contudo,
no meio do caos, a escuta da mulher achou partículas que podiam refazer sua pelesonora e, novamente, iniciou a reconstrução de sua marca. A escuta vive este jogo;
uma eterna desconstrução e reconstrução num movimento de ritornelo.
A idéia de ritornelo foi, inicialmente, desenvolvida por Guattari (1979)22 e
depois por ambos, Deleuze e Guatarri, em Mille Plateaux (1980). O ritornelo é este
movimento de forças que ora aglutinam partículas de: afetos, lugares, intensidades,
tempos, um timbre de voz, um grito, um corpo, devires infância (uma cantiga de
roda, uma canção de ninar), territorializando estas forças. Ora forças escapam do
território e começam a criar uma linha de fuga.
A mulher-sussurro vive este movimento. Num processo territorializante, ela
agenciava forças, delimitando sua pele-sonora, criando um território voz-corpo. Mas,
este território é frágil e pode ser rompido. Quando a música chega, rompe com as
forças que ela agenciava e, nesta mistura, ela perde sua pele-sonora e cai num
caos silencioso
22
que a carrega numa linha de fuga. Eis, aqui, a aventura da
Guattari desenvolveu a idéia de ritornelo em L’ inconscient machinique, Paris, Recherches –Encres. (1979,
p.244-314). E, em Mille Plateaux, em 1980 junto com Deleuze.
55
desterritorialização. Estes são os movimentos que a escuta musical faz. Ora ela
territorializa forças, ora ela escapa, e inventa uma linha de fuga.
Este movimento, como vimos, sustenta a poética da criação musical, ou seja,
a escuta é co-extensiva com a poética musical que se faz presente na idéia musical,
no processo de criação (método de composição) e na composição. No contexto da
poética musical, o ritornelo é de uma dimensão pré-musical, que possui um pólo
territorializante. O compositor agencia forças não musicais e cria um meio para
expressar (sonorizar) este agenciamento. Neste processo, ele cria uma marca de
escuta, que tanto atinge os ouvintes, como o próprio campo musical. É exatamente
a partir desta força territorial que a música se desloca para o outro pólo, o pólo onde
as forças escapam. E, nestas escapadas, outros espaços de escutas são criados.
A aventura da desterritorialização da escuta é o desejo da poética musical.
Nas palavras de Deleuze e Guattari, a questão da música, “... é a de uma potência
de desterritorialização que atravessa a Natureza, os animais, os elementos e os
desertos não menos que o homem” (MP vol.IV, p. 113).
É neste sentido que a história da música conta as aventuras da escuta,
marcando seu trajeto (escuta barroca, escuta cromática, escuta melódica, escuta
atonal, escuta serial) e, ao mesmo tempo, insistindo em “algo não ouvido”, ou seja,
linhas que escapam dos trajetos já marcados. É a força da desterritorialização
instigando a escuta poética e, neste movimento, a poética musical busca “uma
música nômade que se dá como ato de resistência aos hábitos de escuta” (Ferraz,
1998, p.249). Esta resistência se dá tanto dentro da própria música (a escuta poética
desterritorializando as marcas da escuta musical), como na desterritorialização de
campos não musicais (os ouvintes sendo instigados a outras possibilidades de
mundos sonoros).
Por tudo isso, a escuta musical é sempre uma escuta que escapa. Um devir
escuta que não produz outra coisa do que ela própria.
***
Por que este trajeto, com um estilo um tanto histórico, é importante para a
escuta musical clínica?
56
Em primeiro lugar, como vimos, não se trata de uma panorâmica da história
da música mas, sim, de um trajeto por onde a escuta foi cartografando sonoridades
e deixando marcas de expressão.
Em segundo lugar, a presença das marcas de escutas e suas relações na
subjetividade e corporalidade (corpo-sonoro com a sua virtualidade, a escuta porosa
e o corpo-instrumento) estendem-se num continuum e, como nossa cartografia vai
criando uma geografia de afetos, estas marcas de escutas vão servir como pontes e
engates de fluxos de escutas para o próximo capítulo. Neste sentido, a cartografia
vai integrando uma topologia e uma geografia das escutas, isto porque, o devir
escuta é uma produção de desejo e, portanto, uma criação de mundos sonoros.
Em terceiro lugar, a escuta musical é um dispositivo de micropolíticas23. Ela é
da
ordem
dos
afetos,
das
desterritorialização do ritornelo.
atmosferas,
das
vozes
que
escapam,
da
Neste sentido, ela marca processos e nomes
próprios. Não se trata do sujeito Anton Webern, Edgar Varèse, John Cage... e, sim,
das operações de estratégias do desejo que a escuta, através de processos de
subjetivação, inventou.
E, finalmente, este trajeto cartografou uma escuta porosa que não se dá na
relação sujeito-objeto e, sim, nos blocos, no devir som, no devir música, no devir
escuta.
Agora, vamos deixar este território de subjetividade sonora para entrar em um
outro território de escuta, o da escuta clínica.
1.4 TERRITÓRIO TERAPÊUTICO - A ESCUTA NO DEVIR OUTRO
Na busca por uma “escuta musical clínica”, já experienciamos algumas
tentativas deste desejo que, nos seus desencontros, não pôde se constituir. Então,
entramos no continuum do campo musical, na esperança de que, acompanhando os
fluxos de sonoridades, talvez pudéssemos encontrar outras pistas para a nossa
23
Sobre Micropolítica, ver Deleuze e Guattari (1996) Mil Platôs Vol. III . Também iremos adentrar nesse tema
no último capítulo.
57
busca. Assim, ouvimos as metamorfoses da escuta, os ruídos que sempre insiste, o
silêncio que revela vozes e os ritornelos. Com todos estes processos, já temos uma
escuta que, no seu embate crítico (um investimento na invenção), é uma potência
crítica na clínica. Entretanto, há ainda a escuta clínica.
O campo terapêutico é muito abrangente e abarca uma incomensurável
extensão na qual não pretendemos nos aprofundar. Assim, faremos uma
panorâmica veloz, sem a intenção de fincar base e nem apresentar minúcias das
marcas de suas escutas. Contudo, nessa rápida passagem, vamos nos apropriar de
um movimento de invenção, considerando que a escuta terapêutica, apesar de seu
comprometimento com a linguagem e com as amarras da interpretação, também
disponibiliza movimentos de fuga.
Tomemos tal panorâmica no âmbito das psi (psicanálise, psiquiatria e
psicologia). Apesar de essa estratégia ter como intenção um recorte desta extensa
área, também nos leva para o que Luís Cláudio Figueiredo (1996), no artigo “Sob o
signo da Multiplicidade”, chamou de “multiplicidade oficial da psicologia”, ou seja, na
psicologia contemporânea (incluindo a psicanálise) há uma multiplicidade de
correntes teóricas e metodológicas e, conseqüentemente, cada teoria e metodologia
têm características diferentes.
Contudo, há um componente que cria uma territorialidade, um desejo que
põe em constante fluxo esse ofício; uma força que sustenta esse campo. Essa
força se dá no desejo do encontro com o outro, numa dinâmica de agenciamentos.
Desde o surgimento da psicanálise, a relação paciente-terapeuta na área psi,
tem tomado por base a idéia de transferência e contratransferência. A partir desta
idéia, José Gil (MC, 1997), no capítulo “O corpo no processo de Transferência”,
descreve que a psicanálise já definiu o que são transferências, o que se transfere
mas, ainda, é preciso refletir sobre como se transfere. Deste ponto, como vamos
continuar buscando um desejo de produção que produz sonoridades, o inconsciente
que estamos evocando não é um inconsciente representacional com estruturas
preestabelecidas. Diferente disso, é um inconsciente que, nos heterogêneos, produz
singularidades. É um inconsciente maquínico que, nas palavras de Guattari,
“..corresponde ao agenciamento das produções de desejo e, ao
mesmo tempo, a uma maneira de cartografá-las. O inconsciente
58
maquínico é aquele que tenderia a produzir singularidades
subjetivas. Isso significa que, a formação do inconsciente, não
provem de um desejá-la, mas são contraídas, produzidas, inventadas
em processo de singularização”.(CD p. 210)
Partindo deste inconsciente que produz, não é possível se apoiar em uma
idéia de transferência com base na interpretação e nem na representação, uma vez
que “...transferências maquínicas procedem além do significante e das pessoas
globais, por interações diagramáticas a-significantes e que produzem novos
agenciamentos antes de representar indefinidamente antigas estratificações”
(idem,p.261).
Cabe, então, como nos avisou José Gil, pensar como se dá a transferência
nas produções de desejo.
E, aqui, podemos lembrar do processo de
molecularização da escuta perante o som, ou seja, uma região de vizinhança que
cria um bloco som-escuta, um devir som. Devir não é imitar, identificar, fazer
analogias, ou cópias, e sim, um princípio de proximidade e aproximação inerente e
particular de vizinhança. Trata-se, através das mobilidades de molecularização, de
compor uma região de vizinhança onde há mutações que se dão
“a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos
que se possui ou das
funções
que se
preenche”. Nesse
processo, “instauramos relações de movimento e repouso, de
velocidade e lentidão, as mais próximas daquilo
que estamos
em vias de nos tornar e nos tornamos” (MP vol. VI, p.64).
Nessas vizinhanças, a questão não se estabelece num “ser o outro”. Diferente
disso, a condição de lidar com o outro propicia que, no devir outro, nos tornemos
outra coisa. E, conseqüentemente, o cliente também se torne outro. É esse desejo
de se arrostar e criar mutações com o diferente que sustenta o território terapêutico.
Assim, recolocando a questão de José Gil - como se transfere - chegamos no
devir outro. Dito de outra maneira, transfere-se no devir, nas zonas de vizinhanças e
nos blocos.
59
Agora, retomando Figueiredo, este afirma que, independente da vertente
teórica ou metodológica, o ofício da psi exige, nas atividades cotidianas, uma
disponibilidade de “lidar com o outro (indivíduo, grupo ou instituição) na sua
alteridade”. É nesse sentido que o autor fala dos outros em nós mesmos.
“... a nossa disponibilidade para a alteridade nas suas dimensões
de algo desconhecido desafiante e diferente; algo que no outro
nos obriga a um trabalho afetivo e intelectual; algo que no outro
nos pro-pulsiona e nos alcança; algo que do outro se impõe a nós
e
nos contesta
fazendo-nos efetivamente
outros que
nós
mesmos”. (ibidem, p.93).
O território terapêutico tem nesse devir outro o motor propulsor do ofício do
encontro, um “outrar-se” como José Gil em Diferença e Negação na Poesia de
Fernando Pessoa (2000), fala de Fernando Pessoa.
No devir outro, a escuta terapêutica é molecularizada, posto que não se limita
a escutar o outro e, sim, experiencia o risco de enfrentar os agenciamentos da
escuta com o outro. É nesse sentido que Guattari (1992) fala que o terapeuta se
configura como um agente dos agenciamentos. Nesse contexto, a escuta não se
põe mais em uma mão única e, sim, uma escuta com o outro em processo de
agenciamentos.
Até agora enfocamos a relação com o outro. Porém, como vimos, se a escuta
musical é marcada pelo meio sócio cultural, nas suas dimensões políticas,
econômicas e estéticas, o mesmo acontece com a escuta clínica, ou seja, nas
multiplicidades do campo terapêutico, a escuta clínica foi criando marcas. Uma
dessas marcas
se concentra na linguagem (uma escuta da fala) e no sistema
(representação instituída pela psicanálise). Como o leitor já sabe, sendo a área psi
extremamente complexa, não nos deteremos nos meandros desta rede. Primeiro,
porque vamos nos deter na escuta clínica comprometida com as sonoridades, e
segundo, muitos autores brilhantes, desde Freud até os autores contemporâneos, já
escreveram e vêem escrevendo sobre este assunto (seria um devaneio, da minha
60
parte, entrar neste fluxo). Porém, como tenho que conduzir o leitor também a uma
escuta clínica, é inevitável a passagem por alguns territórios.
Considerar a escuta da palavra como uma das marcas desse território, não
limita o campo psi a uma escuta da palavra. O corpo, a expressão facial e outros
signos não-verbais, também são adicionados como componentes da escuta.
Na introdução deste nosso trabalho, havíamos mencionado a dificuldade de
colocar a escuta na escrita. Agora, estamos acionando, numa passagem muito
rápida, um componente de repercussão semelhante, que se apresenta na questão
da escuta na linguagem no ambiente terapêutico. Essa questão ocupa um plano
bastante extenso.
Entretanto, pinçando uma pequena porção, observamos uma problemática
gerada pela linguagem e um movimento de escape. Acompanhemos esse
movimento feito por Alfredo N. Neto (1993) no artigo “O terceiro ouvido – Nietzsche e
o enigma da linguagem”.
Ao dialogar com Nietzsche, Alfredo Neto evidencia as armadilhas que a
escuta terapêutica enfrenta, pelo seu comprometimento com a linguagem e pelo
sistema de representação:
“Ouvir um
paciente
dizendo ‘meu pai’, ‘minha mãe’
seguidos
de uma afirmação qualquer nos dá grande parte das vezes, a
ilusão de que sabemos do que ele fala. Ou,
se
não
sabemos
ainda, saberemos em algum momento...”. (1993, pg.152).
Os desassossegos de Neto, um analista marcado pela escuta da fala, criam
atalhos que escapam das marcas de escuta terapêutica. E, com esses
desassossegos, ele propõe
o terceiro ouvido e a musicalinguagem. Ouçamos
esse escape :
“Quem ousaria decifrar um discurso como se decifra uma partitura
musical? E aguçar o terceiro ouvido – que é o que apreende o
incorporal
do
texto – para os
sons
harmônicos e os ritmos
61
que dançam? Quantos estariam aptos a
captar o seu tempo
– no sentido musical do termo – e discriminar os staccatos, os
legatos, os rubatos? E a variação das cores e das matrizes: os
tons escuros e densos transmutando-se em clareza flutuante, capaz
de levitar nos limites do dizível? E conseguir discriminar um trêmulo,
lá onde o som reverbera
e se agita, abrindo passagem a um
afeto sem lugar”? (idem, p.155)
Esse deslocamento do significado da palavra para as nuances de qualidade
do timbre da voz, que A. Neto propõe à escuta clínica, revela uma captura de
potências da escuta musical, desterritorializando uma escuta da palavra.
Ao finalizar o artigo, o autor sugere que, se um analista puser em suspensão
a linguagem e abrir a escuta para a cantalidade da voz (musica linguagem), a sua
escuta se transformará em um terceiro ouvido e, neste sentido, ocorre um
distanciamento das representações e das interpretações do hábito.
Este desejo não é uma exceção na multiplicidade do campo psí. Muitas outras
nuanças, sobre a escuta clínica, já foram apresentadas.24
Todavia, o leitor, ao ouvir os signos musicais do “terceiro ouvido”, deve estar
dizendo: “olha aí o desejo de uma escuta musical clínica”, visto que é um desejo, um
desejo duplo, pois passa pelo devir outro e mescla-se na musicalidade com o outro
(afetos musicais). Porém, fazendo uma aproximação mais detalhada à sonoridade
da escuta musical
que acompanhamos anteriormente,
poderíamos dizer que
este fluxo (canto-falado, fala-cantada) já havia passado por Schoenberg (1917) e,
também, Berio, Nono, Ligeti já tinham marcado a escuta com descantos e falacantadas.
Assim,
além
dos
trêmulos,
staccatos,
legatos
e
rubatos,
a
molecularização da escuta já atingiu as partículas das sonoridades da voz. Então,
não se trata somente de legatos e staccatos, mas de suspiros, sussurros,
respirações, enfim, nuances de vocalidade.
24
Somente para citar alguns autores que escrevem sobre a escuta na área clínica: Paulo Endo (1997) no artigo
“ Corpo,
Escuta e Experiência Analítica” fala de uma escuta que não se limita à significação das palavras e, sim, de uma escuta
analítica que no encontro de dois corpos (corpo aqui é entendido como lugar de experiência perceptiva na sua abrangência –
olfativa, visual, gustativa, tátil, auditiva - segundo Merleau- Ponty), põe em fluxo um corpo a ser falado e silenciado. E, nesta
dinâmica, a escuta pode por em percurso um outro caminho a ser feito pelo corpo. Suely Rolnik (1989), em Cartografia do
Desejo fala do corpo vibrátil, acionando uma invisibilidade e uma tatilidade como componentes de uma escuta e, no artigo
“Esquizoanálise e Antropofagia” (2000), a autora também fala de uma “escuta do corpo sem órgão” (veremos este assunto no
último capítulo).
62
***
Temos várias pistas do desejo que procuramos. O campo do violinista
visitante, alcançou as sonoridades nos derives som, voz, corpo-instrumento, silêncio,
ruído, e tudo isso se dando na aventura do ritornelo e na escuta porosa. Além
disso, a música saiu do palco, uma vez que o homem/máquina inventou formas hiper
desenvolvidas de fontes sonoras. Portanto, o violinista agora tem outros espaços de
subjetividade. Por outro lado, no campo da escuta clínica, o devir outro teceu outra
teia de escuta.
Enquanto a escuta musical clínica estava “adormecida”, estas duas teias de
escutas iam criando territórios de subjetividades nos devires.
63
CAPITULO II
ESCUTAS EM MUSICOTERAPIA
64
2.1 Encontrando o Desejo
Convido o leitor para uma outra cena, onde incorporaremos os trajetos de
escutas que já experienciamos. Nesta cena II, você participará tanto escutando
metamorfoses de escutas, como inventando escutas. A cena ainda se passa num
local semelhante ao da cena I, porém, num tempo cronológico mais próximo da
atualidade.
2.1.1 Cena II – devires sonoros
Estamos andando em um longo corredor de teto alto, com várias portas,
algumas estão abertas, outras fechadas. Ouvimos várias vozes de pacientes e de
funcionários que se propagam pelo corredor. Estas vozes vão ficando no fundo à
medida que nos aproximamos de uma porta fechada. Batemos na porta com os nós
dos dedos com uma sonoridade fraca, porém incisiva, indicando um “podemos
entrar?”. O silêncio é a resposta que nos chama. Entramos no quarto.
A claridade de fora penetra por uma janela iluminando um quarto pequeno
com uma cama no meio e uma cadeira próxima à janela. Ainda estamos perto da
porta e nossa imagem imediata captura no canto, próximo da janela, aquele corpo
da cena I.
Precisamos descer nosso olho-câmera para podermos enfocá-lo. Neste
movimento, reconhecemos que é a mulher de meia idade. Ajustamos o enfoque do
nosso olho-câmera, enquadrando o corpo para obtermos mais detalhes. Ele
permanece fechado sobre si mesmo, os braços abraçam as pernas encolhidas e a
cabeça se apóia nos joelhos. Vemos somente parte do rosto.
De imediato, o corpo parece estático, mas aos poucos, vamos percebendo
um movimento e, então, não mais sustentamos este encontro com nosso olho nu e
nosso olho câmera, porque nossa visão começa a se dilatar. Aquele movimento nos
atrai. Distanciamos-nos da porta, diminuindo o espaço do quarto, ao chegarmos
perto da cama. Deste ponto, vemos que o corpo da mulher faz aquele sutil
movimento de forma constante, desenhando e redesenhando o seu micro-espaço.
65
É claro que nossa visão já está dilatada, porque estamos sendo tocados pelo
invisível. Não podemos ver, mas “algo” passa por nós. Nosso corpo vibrátil (aquele
que capta o que passa na invisibilidade) está afetado. Sentimos atrações e repulsas
mas, já fomos capturados. Ensaiamos um encolhimento corporal e preparamo-nos
para uma aproximação cuidadosa ao corpo-agachado. Tudo entra em ação neste
delicado encontro. Guiados pelo corpo vibrátil, vamos modificando nossa postura
ereta em direção ao chão.
Agachamos, lentamente, para não perturbarmos o espaço visível (uma vez
que já estamos numa mistura do corpo vibrátil). Nesta posição, nossa escuta porosa,
na sua habilidade de molecularização, diluída no silêncio daquele pequeno espaço
próximo ao chão, é afetada pela sonoridade secreta do sussurro. Um fio de voz que,
embora esboce um traçado rarefeito, as moléculas sonoras que passam criam uma
ronda surda, provocando na nossa escuta uma textura de microimpressões. Esta
textura, em suas mutações, produz uma região de vizinhança que, apesar dos
nossos corpos estarem separados pela garantia da visualidade do espaço “entre”,
nossa escuta, já afetada, gira com a ronda das texturas do sussurro.
Nas microimpressões do registro vocal, nossa escuta vai se moldando com as
pulverizações de vibrações ásperas, misturadas com golfadas de ar que ora repetem
pontos de ataques, ora se perdem e criam pequenas variações. Às vezes, o ar sai
com uma maior intensidade e gera uma pequena expansão da vocalidade sonora;
outras vezes, os sons se tornam granulados. Porém, apesar destas variações, há
uma ronda que captura a nossa escuta e cria uma espécie de plano movente.
Nosso corpo agachado, num devir corpo-sussurro, começa a ensaiar movimentos de
vocalidade. Há uma “sonoridade por vir”, nossa voz, em processo de devir corposussurro, ensaia uma forma de expressão, uma vocalidade por soar... e você pode
escutá-la.
2.1.2 Pausa para os Agenciamentos
A música, nesta cena, não está mais no palco (cena I) e, sim, no encontro do
corpo vibrátil e da escuta porosa. Um encontro que se dá nas molecularizações da
escuta no devir som e no devir outro. Este encontro se sustenta nos agenciamentos
66
heterogêneos (visualidade, espacialidade, corporalidade, sonoridades, vocalidade) e
nas microimpressões.
Quando José Gil (MC, 1997), no capítulo “O corpo no processo de
transferência”, afirma que num encontro terapêutico existe uma instauração
dissimétrica que, como vimos no capítulo anterior, se dá no devir-outro, ele
argumenta que esta dissimetria se dá nas percepções íntimas, sutis ou, ainda,
segundo a terminologia de Leibniz, “ pequenas percepções”. É neste âmbito que Gil
concebe as microimpressões. Elas se dão no contexto em fluxo. No caso da cena II,
as microimpressões nascem do silêncio. São uma espécie de “diferença entre o
contexto habitual e o novo contexto (entre um silêncio conhecido e um silêncio
inédito)” (p.205). O silêncio conhecido era o espaço do quarto que abrigava aquele
corpo-sussurro, mas o silêncio inédito se dava na textura da vocalidade, ou seja,
pequenas nuances do timbre vocal.
O ambiente sonoro é um potencializador dos movimentos da escuta. Quando
Ítalo Calvino, em “Um rei à Escuta” (1995, p.59-89), nos faz ouvir os sons de um
castelo através dos trajetos de uma escuta da realeza, ele nos ensina o quanto uma
escuta pode se por em prontidão e configurar as sonoridades do ambiente. Na
cartografia sonora da nossa cena, vivenciamos esta experiência. Ao andarmos pelo
corredor, ouvimos uma espécie de sonoridade peculiar que, aos poucos, foi sendo
filtrada à medida que nos aproximávamos do silêncio do quarto da mulher-sussurro.
O leitor já deve ter ouvido o som de corredores de hospitais; eles são bastante
peculiares.25
A escuta, a partir do silêncio da porta, entrava num movimento de
microimpressões, em processo de misturas: na corporalidade - uma escuta-mão no
bater na porta -, nas passagens da visualidade à invisibilidade do corpo vibrátil, na
espacialidade – mudanças corporais, sonoras e visuais no espaço relacional - na
tatilidade - a escuta se tornando tátil nas transformações das microimpressões da
voz-sussurro, na cenestesia - a sensação do movimento da voz que ensaiava uma
vocalidade - , na sinestesia - com o corpo agachado, o silêncio era mais denso - , na
25
No artigo “A escuta do Silêncio”, eu apresento algumas questões sobre este “silêncio” no ambiente hospitalar,
especialmente com pacientes em coma (1999, p. 72).
67
cinesia - os sutis movimentos do corpo - , na gestualidade – a escuta na ronda do
sussurro (aqui estamos fazendo referência ao gesto sonoro).
Todas estas nuances não são seqüências, mas fazem passagens e
mutações. Uma topografia criada pela escuta porosa, onde todas as modalidades
sensoriais se encontram e onde os órgãos dos sentidos não se opõem uns aos
outros, mas suas funções transbordam: uma escuta-olho (que escuta-vê o corpomovimento), uma escuta-corpo vibrátil com sua invisibilidade (captura as nuanças do
sussurro), uma escuta-tátil (que toca a densidade do silêncio), uma escuta-voz (que
ensaia uma vocalidade), enfim, no devir-outro, um devir-escuta que cria um espaço
hápitico26.
Estes movimentos de afectos27 foram criados no tempo do ritornelo se
estendendo no espaço. Varèse já nos fez ouvir o som desenhando o espaço “... a
música como sendo espacial, como corpos sonoros movendo-se no espaço” (Varèse
apud Moraes, 1983:131). Mas, outros autores seguiram este caminho e, poéticas
musicais mais recentes (por exemplo: da música eletroacústica), têm se dedicado a
criar corpos sonoros nos espaços.
No nosso encontro com a mulher–sussurro experienciamos sonoridades que
se deslocavam no espaço/tempo. Nesta dinâmica, ora éramos territorializados, ora
éramos desterritorializados. Quando nosso corpo agachou, experienciamos uma
sonoridade peculiar. Como o leitor sabe, os adultos, nas suas posições eretas,
manipulam sonoridades corporais e de objetos numa região mediana entre o chão
e o teto. Na condição de agachados, o espaço acústico é outro, os sons “passam
por cima” e o silêncio, rente ao chão, é mais cheio.
26
Espaço Háptico é um termo que pode ser encontrado em Mil Platôs vol.V, no texto “O Liso e o
Estriado”(p.179-232). Este termo foi primeiro desenvolvido por Aloïs Riegl nos estudos sobre estética. Este
autor queria evidenciar a tatilidade do espaço óptico, ou seja, uma mistura de duas percepções (uma tatilidade do
olho). Na fala de Deleuze e Guattari, o “espaço háptico” “... não opõe dois órgãos do sentido, porém deixa supor
que o pode ter uma função não óptica.”(p.203) “... uma animalidade que não se pode ver sem toca-la com o
espírito, sem que o espírito se torne um dedo, inclusive através do olho”(p.205). A partir destas idéias, os autores
ampliam o termo para os outros sentidos concebendo uma tatilidade da escuta nas texturas sonoras. Ver também
Ferraz (1996, p. 160-1), onde a escuta torna-se “acordes coloridos” e escutas no gesto. Para o nosso contexto, é
esta escuta que estamos convocando, uma escuta que vai além dos planos da audição porque faz passagens que
aumenta os limites da escuta.
27
Em Crítica e Clínica (1997: 156-170), no texto “Spinoza e as Três Éticas”, Deleuze descreve sobre os
afectos. Efeitos são vestígios de um corpo sobre o outro e, neste acontecimento, os corpos ficam em estados de
afecção, ou seja, numa dinâmica de passagens, devires, variações de potências que vão de um estado a outro.
Estas mutações são chamadas afectos. Ver também Deleuze e Guattari em O que é filosofia ? (op.cit. 213-255).
68
O compositor Rodolfo Coelho de Souza em sua composição eletroacústica O
que acontece embaixo da cama enquanto Janis está dormindo?(1997), marca nossa
escuta com algumas destas sonoridades que passam próximas do chão. Sobre a
obra, ele escreve as seguintes imagens: “Enquanto Janis dorme, alguma coisa se
mexe embaixo da cama. Você pode imaginar que são moradores do sub-solo que
vieram cantar cantigas para Janis. Os amplos corredores estão vazios e povoados
de fantasmas. Onde será que Janis tem estado cantando ? Eu posso de novo ouvir
sua voz....”28
Vejamos, agora, esta movimentação de afectos na produção do desejo.
O deslocar para o quarto e o nosso encontro com a mulher gerou o primeiro
movimento do desejo, uma atração de corpos (na cena III, vamos ouvir também o
corpo da mulher nesta atração; por agora, fiquemos com uma atração de corpos que
foi experienciada no nosso corpo-escuta). Esta dinâmica gerou efeitos: o corpo
vibrátil (do invisível) com sua escuta porosa, foi tomado por uma mistura de afetos atração, medo, gestualidades, visualidade, movimento, velocidades, sonoridades...
Assim, afetados, iniciamos a criação de um espaço háptico ensaiando uma matéria
de expressão (nossa voz começa a preparar uma vocalidade), surgindo o segundo
movimento do desejo. E, então, na vocalidade por vir, sua escuta-voz, cartógrafo
leitor, deve ter inventado uma matéria de expressão, mesmo que ela não tenha sido
sonorizada pela sua voz. Lembre-se, como disse Ferraz (1998), a escuta é invenção
mesmo que não tenha tido um disparo de som, ou seja, a sua escuta foi uma idéia
de sonoridade.
Isto porque, as intensidades não se sustentam por si só, elas
precisam de um gesto, uma matéria de expressão para se efetuarem, como vimos
anteriormente com Suely Rolnik.
Aí está o terceiro movimento do desejo, uma
marca de escuta gerando uma vocalidade por vir.
O leitor deve ter falado novamente: - olha aí o desejo de uma escuta musical
clínica. Exato! A mistura do devir-outro no devir-som nos possibilita compartilhar
ruído de vozes e o silêncio que carrega o pó de tudo. É um desejo de outrar-se em
vozes, corpos e sonoridades, no encontro com o outro.
28
Caso o leitor queria experienciar esta escuta, ouça o CD Música Eletroacústica Brasileira Vol II (Sociedade
Brasileira de Música Eletroacústica), produzido pela Sonopress, 1999. As considerações sobre a obra estão no
encarte do CD p.13.
69
***
Apesar de ter ficado adormecido por cinco décadas, o “desejo de escuta
musical clínica” ressurge na segunda metade do século XX. Porém, ele encontra
agora dois fluxos diferentes. De um lado, a escuta clínica, que, como vimos
anteriormente, se dá nos devires e, do outro lado, a escuta molecularizada ( uma
música nas sonoridades, fora do palco que inventa novos campos de escuta). Neste
contexto reaparece o desejo de outrar-se em vocalidade e sonoridade com o outro.
Este desejo cria um personagem psicossocial. Ele não é um músico que visita
a área da saúde e volta para o campo musical, e nem um terapeuta que procura
ouvir a musicalidade das palavras
para escapar das armadilhas da linguagem
(terceiro ouvido). Ele é aquele ouvinte da cena II, um músico que, no encontro com o
outro, deseja escutar as sonoridades de fluxos interrompidos ou sonoridades que
ficam sem engates (como as da mulher-sussurro). Este ouvinte, perpassado por este
desejo peculiar, é um musicoterapeuta.
2.2 MUSICOTERAPIA: UMA ESCUTA EM CONSTRUÇÃO.
Já experienciamos alguns trajetos da escuta musical e outros na escuta
clínica. Agora, convido o leitor para entrarmos num campo que se sustenta no
desafio de manter estas duas escutas em fluxo. Estamos falando da musicoterapia,
que é um campo que investe na aventura de vizinhanças da escuta musical e clínica.
Achado o desejo que estávamos procurando e o personagem psicossocial
que é perpassado por esta produção, convido o leitor para escutar o que este campo
produz nas dobras da escuta musicoterapêutica. Como o campo é recente, diferente
da escuta musical e da clínica que tem uma temporalidade maior, a escuta
musicoterapêutica ainda está em fase de construção ou, melhor dizendo, o
pensamento sobre escuta musicoterapêutica ainda não fez muitas conexões.
Entremos neste campo.
Em 1990, o musicoterapeuta norueguês Even Ruud colocava a seguinte
pergunta: Musicoterapia - uma profissão de saúde ou movimento cultural? Nesta
70
época, apesar de o autor não elaborar detalhes de sua idéia sobre cultura, ele
considerava que a música, por ser um fenômeno culturalmente obtido, só poderia
tornar-se terapêutica à medida que estabelecesse vizinhanças com campo
terapêutico. Exatamente nesta área de vizinhança (terapia x música), que Even
Ruud entendia que a cultura, com sua característica pós-moderna, propiciava este
encontro. Concluía, assim, que a musicoterapia era um movimento cultural, pois
estava criando um novo código na cultura.
Bem, como o leitor viu, se o próprio nome já é uma mistura: musico/terapia,
conseqüentemente, o campo é híbrido à medida que produz espaços heterogêneos
mantendo juntos fluxos da arte (música), do campo da saúde (terapia) e da ciência
(pois, também, é uma área de conhecimento que produz planos de referência).
Portanto, para se fazer qualquer aproximação a este campo transdisciplinar, há
sempre que se considerar os movimentos de passagens e os pontos de conexões
dinâmicos destas diferentes áreas. De uma visão panorâmica, observa-se esta
disciplina construindo trajetos entre regiões aparentemente distintas. Este fato
dificulta a demarcação de seu território que é muito mais os espaços de vizinhanças
com práticas múltiplas e abordagens distintas, do que um ambiente independente,
centralizado e homogêneo. Perante este fato, a musicoterapeuta Clarice Costa
(1989) perguntava se existia a musicoterapia, ou musicoterapias? E, a esta
indagativa, afirmava que, embora as variedades de práticas e as diferenciações de
abordagens dificultavam a demarcação do campo, havia um fio condutor em todas
estas variantes, a música.
É a música que tem impulsionado o deslizar desta complexa área que,
enquanto disciplina, criou uma escuta específica que investe na potência da música
num contexto clínico e, enquanto campo social, carrega um desejo de escuta no
devir-som com o devir-outro.
Como uma disciplina recente na sociedade contemporânea, alguns trechos
históricos e geográficos (nas suas dimensões estéticas e políticas), podem auxiliar
na cartografia desta escuta.
Embora a utilização da música enquanto terapia, tenha sido nomeada como
uma disciplina somente a partir da década de 50, como vimos, o desejo de uma
escuta musical clínica, há muito tempo, já ensaiava este encontro. Como uma área
nova, no tocante à produção de conhecimento, a musicoterapia tanto retoma
71
processos históricos sócio-culturais antigos (relação música e saúde de séculos e
culturas antigas), como tem acompanhado significativas transformações das áreas
vizinhas de seu tempo (arte, ciência e saúde). (Gaston, 1968; Tyssot 1981, Ruud,
1990, Costa,1989, Lecourt, 1995, Maranto, 1996).
No meu entender, apesar do desejo musicoterapêutico ter feito vários
ensaios, ele só decolou na segunda metade do século XX, como tal, pelas
condições que os dois planos de escutas (clínica e musical pós-tonal) já haviam
criado e, concomitante com estes, a condição de homem/máquina que, com a
tecnologia, espalhou as músicas para todos os ambientes - há música em “todos os
lugares”. É neste contexto que ocorre novamente um outro movimento de músicos
para o campo terapêutico porém, não mais como visitantes e, sim, como “músicos
de ouvintes” que, no “estranhamento com o outro”, insistem em ouvir os fluxos
sonoros interrompidos e as “vozes que escapam”.
Mas, neste deslizar “entre” áreas extremamente distintas (arte, saúde e
ciência) a escuta musicoterapêutica, desde seu ressurgimento (anos 50), até a sua
contemporaneidade, enfrenta vários obstáculos, uma vez que não é uma escuta
somente relacional (devir outro) e sim, uma escuta relacional sonora triádica
(terapeuta-música-cliente).
Uma referência histórica que apresenta parte destas dificuldades está
registrada no Tratado de Musicoterapia de Thayer Gaston (1968). Este
musicoterapeuta descreve uma análise de três diferentes etapas da construção do
pensamento musicoterapêutico nas décadas de 50 a 70.
Em uma primeira etapa, a musicoterapia continuou com o mesmo movimento
do século XIX – música como objeto, uma vez que a música era trazida para a área
da saúde e formatada nos padrões da mesma: uma música objeto-terapêutico e um
paciente-ouvinte formatado (um olhar sobre o ouvinte).
Numa segunda etapa,
ocorreu um deslocamento para a relação: a música passou a ser apenas um
componente facilitador, porque se priorizava a “escuta do outro”. A grande
problemática desse movimento foi que, ao se distanciar da música como objeto da
saúde para se focalizar a relação terapêutica, perdeu-se o íntimo contato com o
próprio dispositivo que movimenta essa forma de terapia, a música. Aqui, a “escuta
musical” perdia sua potência em prol de uma escuta do outro. Numa terceira fase,
Gaston considera que ouve um processo de equilíbrio entre ambas, ou seja, a
72
música e a relação em uma dinâmica. Desse ponto, os “ouvintes” começam a ter
uma maior complexidade, porque há um ouvinte-paciente sendo acompanhado por
um ouvinte musical-terapeuta e, ambos num espaço musical, criando experiências
musicais. Portanto, não há mais como se pensar essa relação de forma separada e,
sim, uma tríade dinâmica que, na multiplicidade relacional, produz a escuta
musicoterapêutica.
A relação triádica foi o enfoque da musicoterapia após a década de 70 e, por
esta perspectiva, foram construídas abordagens e métodos musicoterapêuticos.
Estes se apóiam em diferentes idéias filosóficas, terapêuticas e musicais. Os pontos
de contatos entre estas bases configuram abordagens terapêuticas distintas que, no
desejo
de
“ouvir
o
outro
através
da
escuta
musical”,
criam
áreas
musicoterapêuticas. Porém, todas elas, independente da base filosófica, científica ou
musical, precisam enfrentar um tema específico “músicas em musicoterapia”.
Já vimos que não se tem música e, sim, músicas. Porém, quando a área
terapêutica toma como movimentação clínica a música, ela se depara, ao mesmo
tempo, com retenções e ampliações. Por um lado, fica dependente do objetivo
clínico e, por outro lado, é a potência da clínica, ou seja, destituir padrões clínicos.
Nessas retenções e extensões, a musicoterapia também construiu um divisor
de águas bastante significativo da música no contexto clínico. Estou falando da cisão
“audição musical” e o “fazer musical”29. Na terminologia da área, musicoterapia
receptiva (o cliente ouve música) e musicoterapia ativa (o cliente faz música).
A musicoterapia receptiva tem desenvolvido uma prática clínica e um
conhecimento teórico embasada na “audição musical” de músicas eruditas. Estas
práticas têm pesquisado os desdobramentos da escuta, principalmente relacionados
com as imagens mentais30. Entretanto, há um limite das músicas utilizadas que, na
sua maioria, é restrito aos séculos XVII-XIX. Este fato revela que estas
29
Será utilizado o termo “fazer musical” sempre entre aspas e para diferenciá-lo do ato de composição e interpretação no
campo musical. No território musical, o fazer musical tem toda a sua complexidade estética e de criação nas metodologias de
composição e nas técnicas de interpretação. Já, o “fazer musical” no território musicoterapêutico, apesar de passar por
componentes estéticos e de criação, não é um processo da arte mas, sim, o inverso, é um processo que se torna criativo à
medida que é gerado por fluxos da arte. Mais adiante este tema será enfocado por um outro prisma.
30
A musicoterapia criou várias metodologias receptivas, uma delas é o Método GIM (Guided Imagery and Music), que
utiliza música erudita como função evocativa e como agente de terapêutico. O processo é centrado nas imagens que o
cliente, a partir dos estados alterados de consciência (alcançados por indução musical), vai criando junto com a “audição
musical”. Caso o leitor deseje ter mais detalhes sobre esta metodologia, leia “Transferência , Contratransferência e
Resistência no Método Bonny ‘Imagens Guiadas e Música’ – GIM” in Musicoterapia – Transferência, Contratransferência
e Resistência de Lia Rejane Mendes Barcellos – organizadora e tradutora, Enelivros, 1999.
73
metodologias, infelizmente, ainda não se comprometeram com o pensamento da
música de seu século, ou seja, há um corte no fluxo do continuum musical, uma
musicoterapia do século XXI com músicas do século XIX.
Do outro lado, a musicoterapia ativa no “fazer sonoro”31, apesar de
experienciar sonoridades compatíveis com as paisagens sonoras do século XX/XXI,
pouco tem posto em pauta reflexões sobre as escutas musicais que se constroem
no “fazer sonoro”, uma vez que, em geral, os estudos enfocam o “processo do fazer”
e, não, a escuta deste processo.
Assim, a musicoterapia receptiva ainda não utiliza as sonoridades dos “sons
autônomos” para afetar a escuta e a musicoterapia ativa, apesar de experienciar as
sonoridades no “fazer sonoro”, pouco tem estudado como a escuta inventa estas
sonoridades. Cabe evidenciarmos que, nestas duas vertentes, os aportes se
diferenciam tanto em relação ao ouvinte-paciente, como em relação ao ouvinte
musicoterapeuta, pois possuem qualidades de ambientes de escutas distintos.
Como havíamos descrito anteriormente, o campo musicoterapêutico é muito
extenso e este nosso desafio de tentar acompanhar a escuta musicoterapêutica nas
suas metamorfoses precisa sofrer vários recortes. O primeiro se dará exatamente
nesta crítica que acabo de fazer, ou seja, apesar de considerar que
receptiva x ativa
esta
cisão
não é produtiva para o campo musicoterapêutico, tenho que
assumi-la e, num outro momento, quem sabe, criar pontes entre as duas vertentes.
Entretanto, por agora, vou guiar o leitor para regiões da musicopterapia ativa.
Esta opção é derivada da minha experiência clínica, mas que, como descrevi
anteriormente, é uma conseqüência germinativa dicotômica construída pela própria
musicoterapia e, junto disso, uma predominância da musicoterapia brasileira que, na
sua grande maioria, utiliza abordagens ativas. Segundo um levantamento de campo
feito pela musicoterapeuta Ana Lea Von Baranow (2002), durante o I Encontro
Nacional de Pesquisa em Musicoterapia, realizado em Porto Alegre (outubro de
2000), quarenta e um trabalhos apresentados eram referentes à musicoterapia ativa
e, somente dois eram de musicoterapia receptiva.
31
Também vou usar como uma derivação do “fazer musical”, o termo “fazer sonoro”” para incluir as idéias de sonoridades
até aqui apresentadas.
74
Assim, apesar da minha crítica à dicotomia, também participo de uma
musicoterapia brasileira que tem no “fazer musical” seu principal dispositivo
terapêutico. Portanto, o leitor será guiado para estas regiões e participará deste
limite. Mas, antes de entrarmos nessas especificidades, ainda precisamos de uma
visão globalizada no que tange a alguns pontos mais periféricos deste campo.
Nesse sentido, não vou dialogar com a musicoterapia, pois isso seria impossível
dado a extensão de seu campo. Também não vou dialogar com uma metodologia
específica, pois deste modo teríamos uma escuta de um setor específico. O que
pretendo é apresentar alguns temas dinâmicos que possam nos auxiliar em trajetos
da construção da subjetividade da escuta musicoterapêutica.
Se a cisão escuta X fazer é um fato, as problemáticas musicoterapêuticas vão
muito além deste fato. Como o leitor sabe, quando a musicoterapia surgiu, a clínica
já tinha uma escuta a partir da palavra. Neste sentido, quando a musicoterapia
começa a construir uma prática clínica, ela entra no fluxo da linguagem clínica. Este
movimento se apresenta no falar sobre um “fazer sonoro”. Dito de outra maneira,
como falar sobre a experiência musical, uma vez que a experiência musical, embora
inclua a linguagem verbal, não se limita a ela?
Aqui está um problema semelhante ao que Eduardo A. Vidal, como
descrevemos na introdução, tinha colocado sobre a escrita, considerando que, a
linguagem não alcança muitos heterogêneos, mas sem ela, eles também não
poderiam ser criados. Este problema de “como falar e escrever” as sonoridades
não-verbais da clínica é um motor propulsor bastante forte na musicoterapia. Se por
um lado as áreas vizinhas (terapêuticas e científica) sempre pressionaram no
sentido de apresentarmos uma “explicação” da música enquanto dispositivo
terapêutico, por outro lado, algumas vezes, a “música em musicoterapia” é criticada
pelos músicos, uma vez que o território da subjetividade musicoterapêutica é outro.
Pois é, leitor! Vamos entrar em um campo que se estabelece exatamente no meio de
um fogo cruzado.
Então, podemos entrar nesta região mais “problemática”, por assim dizer,
enfocando a idéia de “música em musicoterapia”32. Ora, pensar música em
32
Não vamos nos dedicar a este tema, porque vários musicoterapeutas já fizeram este percurso, porém, alguns
destes trajetos, nos auxiliarão na nossa cartografia.
75
musicoterapia é estar exatamente nas mutações que a escuta musicoterapêutica
faz, uma vez que a musicoterapia vem construindo seu próprio território de
subjetividade. Estas mutações precisam ser acompanhadas nos seus diversos
fluxos.
Neste sentido, vamos considerar “música em musicoterapia” através da
idéias de regimes de signos apresentadas por Deleuze e Guattari, isto porque, são
múltiplos e heterogêneos os componentes que constroem esta idéia.
Não
pense
o
leitor
que
estamos
nos
distanciando
da
escuta
musicoterapêutica, contrario a isto, o que estamos fazendo é uma aproximação das
marcas de escutas que a musicoterapia foi criando. No capítulo anterior, tínhamos
visto que a escuta precisava fabricar matéria de expressão para efetuar as
intensidades que passam por ela. Então, ela cria marcas de sonoridade. É neste
sentido
que
“música
em
musicoterapia”
revela
marcas
de
sonoridades
musicoterapêuticas e, portanto, cartografias da escuta porosa na subjetividade
musicoterapêutica.
2. 3 Regime de Signos em Musicoterapia
Vimos que a musicoterapia tem desafios exatamente nas passagens de
ambientes de escuta, isto é, após ter criado marcas de expressão, ela também
precisa atingir a fala - “falar sobre as sonoridades”. Estas passagens consolidam
uma região entre a linguagem (clínica e científica) e a música. Vejamos estas
movimentações à luz dos regimes de signos.
Posto que a musicoterapia se efetua entre as formas de conteúdos
(elementos da linguagem) e formas de expressão (sonoridades que precedem e
ultrapassam a linguagem), a idéia de regimes de signos é pertinente à medida que
não privilegia nem uma e nem outra forma de expressão, uma vez que é no
exercício das passagens entre ambas que estas revelam processos gerativos e
transformacionais. Estas passagens se dão por um jogo de semióticas concretas,
ou seja, regimes de signos. Em Mil Platôs vol.II (1995), no capítulo “Sobre alguns
76
Regimes de Signos”, Deleuze e Guattari descrevem as armadilhas que a expressão
lingüística impõe, mas também evidenciam que estas são inseparáveis e
independentes das formas de expressão.
Ora, esta combinação é fundamental para a relação música e linguagem em
musicoterapia, pois é preciso manter no mesmo jogo as formas de expressões e de
linguagem.
Regimes de signos possuem formas de conteúdos inseparáveis
e
independentes de formas de expressão. Logo, são, “ao mesmo tempo, mais e
menos do que a linguagem”(ibidem. p.96) e, por isso, não se confundem com
estrutura ou unidade de quaisquer ordem, e nem as categorias lingüísticas
conseguem abarcá-lo. Embora todos os regimes de signos carreguem o germe do
significante (um signo que remete a outro signo e a outro infinitamente), há sempre
uma formalização de expressão autônoma e suficiente, pois os signos também
possuem pulsões de emissão de signos uns para com os outros. Assim, “ não se
trata de saber o que tal signo significa, mas a que outros signos ele remete, que
outros signos a ele se acrescentam, para formar uma rede sem começo e nem fim
que projeta sua sombra sobre um continuum amorfo atmosférico” (ibidem.p.62).
Os regimes de signos comportam misturas de diferentes semióticas, onde há
tanto variações de quantidades (às vezes, um tipo de semiótica aparece com uma
maior intensidade; outras vezes, um conjunto de semiótica aparece ao mesmo
tempo; ora uma se transforma em outra) como diferentes qualidades (há sempre
misturas de graus de combinações diferentes). Deleuze e Guattari nomearam estes
regimes como semióticas: pré-significantes, significantes, pós-significantes, contrasignificantes e as mistas. Não há o privilégio de uma sobre as demais, nem uma
seqüência evolutiva e nem uma transformação por etapas ascendente ou
descendente, o que as diferenciam são suas características que se modificam e se
misturam entre as formas de conteúdo e de expressão.
O hibridismo da musicoterapia se dá por regimes de signos e foi neste
contexto que a escuta musicoterapêutica foi construindo suas marcas. Vejamos
alguns regimes de signos que perpassam estas marcas. Iniciemos pelas forças
significantes, uma vez que as diferentes semióticas não possuem uma ordem
preestabelecida e nem uma hierarquia.
77
As semióticas significantes concentram elementos que dão significados aos
signos e, por conseguinte, geram movimentos cíclicos: um signo que remete a outro
signo infinitamente: Ás vezes há um salto para outros círculos, mas sempre o
movimento é de se relacionar com um centro. A interpretação faz a expansão deste
círculo, pois ela assegura que o significado sempre forneça, novamente, um
significante. Há um conjunto infinito de significados que produzem um significado
maior e este é o padrão a ser seguido.
Parte dos mundos musicais trazidos para ambientes terapêuticos foram
delineados, na musicoterapia,
por conceitos terapêuticos advindos das semióticas
significantes gerados pela cultura (terapêutica) predominante. Even Ruud (1990), além
de refletir sobre musicoterapia e cultura, como vimos anteriormente, ao defender que a
musicoterapia precisa de bases do pensamento terapêutico para uma intervenção
clínica, também entrou no fluxo da questão da música em musicoterapia, considerando
que as quatro distintas teorias musicoterapêuticas (modelo médico, teoria psicanalítica,
teoria behaviorista, e teorias humanistas), agrupadas por ele, tinham dificuldades de
acompanhar as transformações sígnicas dos ambientes musicoterapêuticos porque, em
sua maioria,
preocupavam-se com o jogo da significância
em prol de comprovar a
eficácia da música enquanto elemento terapêutico (porquê a música é terapêutica, para
quê a música deve ser usada, o quê a música pode fazer). A este fenômeno, Ruud dizia
que o musicoterapeuta contemporâneo (1990) tinha entregado a questão “música em
musicoterapia” para o psicólogo musical33 e que este, preocupava-se em descobrir o
significado da música no contexto clínico. A saída para este impasse, segundo o
autor, era escapar dos “porquês”, “para que”, e “o que”, e acompanhar como a
música tornava-se terapêutica.
Esta crítica era pertinente e o autor argumentava que, como a proposta
musicoterapêutica nasceu de um espaço “entre”, a estreita vizinhança com as áreas
psi era inevitável, Porém, a música não deveria ser submetida a esquemas
significantes e, sim, ser um dispositivo de experiência, comunicação, aprendizagem
33
Ao escrever “entregar a música ao psicólogo musical” o autor está fazendo referência a uma musicoterapia
que ora foi buscar no Behaviorismo uma “ilusão” de que a música pode interferir num “comportamento dado”
tornando-se uma recompensa; outrora foi buscar numa psicologia que se sustenta sobre as fantasias de infância,
um infinito movimento repetitivo de projeção – a música, neste caso, é limitada a uma máquina projetiva; ou
ainda, uma musicoterapia que se identificou com um ideal de “auto-realização” de “uma natureza interna” –
existência. Para um maior detalhamento da crítica, ver Ruud, op.cit. p. 85-91.
78
(cognição), contextualizada numa ordem cultural. Nestas condições, os regimes
significantes eram evidentes.
Numa outra vertente, alguns pensamentos musicoterapêuticos tendenciaram
em considerar a música como linguagem. Algumas vezes, buscando um ponto em
comum na música e na fala, reduzindo-as a uma raiz em comum, ou seja, ao
estágio pré-verbal e pré-musical. A defesa para este pensamento era de que estes
dois estágios se dão nos processos primários34 (Tyson, 1981) e, portanto, carregam
um elo, pois ambas são geradas pela mesma matéria prima. Por este prisma, a
música em musicoterapia torna-se
um dispositivo terapêutico, pois atua nos
processos primários.
A escuta musicoterapêutica neste contexto, vai se ater a dispositivos
regressivos da música, posto que é uma escuta a priori que tem por base as
estruturas do inconsciente.
Por outro lado, Klausmeier (apud Ruud, 1989: 89) discordava, considerando
que, ainda que haja uma origem primária, também há diferenças, porque a música
se apresenta no conteúdo de expressão. Neste sentido, o autor se desloca para o
bloco das linguagens não verbais. Veja o leitor que este movimento, apesar de
investir numa “não verbalização”, parte dos parâmetros da linguagem, uma vez que
é uma linguagem não-verbal. Uma considerável corrente musicoterapêutica muito se
apoiou no contexto do conceito de música como uma linguagem “não-verbal”.
Um dos mais radicais exemplos deste pensamento é o musicoterapeuta
argentino Rolando Benenzon35, que defende uma musicoterapia onde toda a
atividade no setting deve ser feita com som e música, suprimindo-se a fala, pois esta
é um mecanismo de defesa do musicoterapeuta.
Porém, a musicalidade que
emerge no setting, é organizada pela relação sujeito-objeto, ancorada por um
princípio de igualdade, um princípio de ISO.
Por este viés, a escuta musicoterapêutica também tem um padrão a priori, ela
é estruturada em uma relação de identidade do sujeito-objeto. Portanto, aqui
também se tem uma escuta musicoterapêutica significante.
34
35
Processos Primários é um conceito desenvolvido por Freud e refere-se às dinâmicas do inconsciente.
Caso o leitor queira mais detalhes sobre esta teoria, ver Benenzon, R. 1989, 1998, 2000.
79
Por outro lado, Costa (1989) foi buscar um ponto comum entre a música e a
fala. Tomando por base a teoria de Roman Jakobson36, a autora afirmava que a
música não possui significado, pois não faz referência a conceitos. Porém, a função
poética (estética) é o seu motor propulsor. Mas, para fundamentar seu trabalho
musicoterapêutico, apesar de descrever a opinião de alguns autores que sustentam
que a música é uma experiência estética (Igor Stravinsky, Juan Carlos Paz), a autora
enfatiza a função apelativa da música, ou seja, a música tanto pode despertar no
ouvinte determinadas sensações ou emoções, como também pode ajudá-lo a
expressar emoções dando a estas formas sonoras e musicais. Como uma
complementação ao pensamento jakobsoniano, ela também utiliza a teoria da
comunicação de F. Watzlawick37, que enfoca duas diferentes formas de linguagens:
analógica – não verbal (corporal, visual, sonora) que complementa a verbal, uma
“música da fala” e, a digital – a linguagem falada. Sendo que ambas só existem
juntas e não há superioridade entre elas, são complementares.
Assim, é por este
ponto em comum (uma “música da fala” – análoga- e uma função apelativa da
música - ‘uma música que fala’ das expressões e dos sentimentos), que a autora
afirma que “ a música (em musicoterapia) pode ser usada como uma linguagem
terapêutica ”(Costa, p.58).
A escuta musicoterapêutica, neste pensamento, apesar de estar mais fluída,
uma vez que a música não tem significado porque não faz referências a conceitos,
há ainda uma intenção de “ouvir” os sentimentos e as emoções despertadas pelas
experiências musicais. E, deste ponto, há uma escuta a priori.
36
Roman Jakobson, Lingüista russo, propõe no artigo “Lingüística e Poética” a existência de seis elementos
em um processo de comunicação verbal: emissor, receptor, canal, código, contexto (ou referente) e mensagem.
Cada um destes elementos determinam uma função diferente da linguagem. A função emotiva ou expressiva,
centrada no emissor ou remetente, implica uma marca subjetiva de quem fala, no jeito como fala. Se a mensagem
está orientada para o destinatário ou receptor, a função predominante é a conativa ou apelativa. Esta é uma
função típica das mensagens imperativas, de exortação, de chamamento, de invocação, de saudação, de súplica e,
até mesmo, de persuasão. A função conativa aparece, também, como uma espécie de consciência do emissor da
existência do receptor e da importância deste na decodificação da mensagem. Quando a mensagem centrar-se no
contato, no suporte físico, no canal de comunicação, tem-se então a função fática como predominante. Esta
função pode ser utilizada para testar o canal, bem como para prolongar, interromper ou reafirmar a
Comunicação, atraindo ou confirmando a atenção do receptor. A função metalingüística responsabiliza-se pela
verificação pelo emissor e receptor da utilização do mesmo código. A função poética busca uma projeção do
princípio de equivalência do eixo de seleção no eixo da combinação, ou seja, o emissor seleciona quais signos
utilizará e o modo de combiná-los e, ao trazer a atenção do receptor para tais elementos, enfatiza a função
poética.
37
Watzlawick. F. (1981) “Pragmática da Comunicação Humana: um estudo de padrões, patologias e paradoxos”
São Paulo, ed. Cultrix.
80
Entretanto, é a musicoterapeuta Carolyn Bereznak Kenny (1989) que revela
uma região de
passagem
onde a música, em
musicoterapia, começa a se
distanciar dos regimes mais significantes e cria uma linha de escape. Para esta
autora, apesar de a linguagem verbal sacrificar muito a essência dos contextos
musicais, ao ser invadida pelo pensamento musical, ela gesta um movimento de
invenção
no
sentido
de
procurar nas palavras um fato musical. É nesta
dinâmica que a própria fala e escrita ganham dispositivos de invenção, uma vez que
há um transbordamento da linguagem feito pela força musical, o que permitiria
encontrar, na própria linguagem verbal, formas de expressões. Mas, isto só seria
possível se o caminho estivesse aberto a uma “language of immediacy”38 .Ora, aqui
já temos um regime pós–significante.
As semióticas pós-significantes “se opõem à significância com novos
caracteres, e que se define por um procedimento original, de “subjetivação” (MP
vol.2, 1995,p.70). A “language of immediacy” defendida por Kenny é exatamente
este novo caráter, ou seja, uma tentativa de inventar um dialeto onde a música em
musicoterapia possa ter uma voz própria, transbordada pelo próprio acontecimento
musicoterapêutico. Aqui, não se trata mais de usar a música como uma linguagem
musicoterapêutica, mas sim, nas experiências musicais, inventar uma fala
transbordada pelo musical.
A escuta agora se desloca de uma busca das expressividades do sentimento
e das emoções para um espaço neutro, ou seja, uma região de possibilidade,
porém, sem um conteúdo a priori.
Atualmente, com o aumento das questões internas da própria musicoterapia
(os próprios signos musicoterapêuticos – uma musicoterapia que pensa o próprio
fazer musicoterapêutico e não somente se dedica a uma defesa das forças
predominantes), esta necessidade de equiparação diminuiu e o que vemos são
outros pensares que novamente colocam em fluxo este tema, porém agora para vêlo não mais pela equiparação, e sim nas suas passagens e no aumento de sua
disjunção. Veremos estes pensares no III capítulo.
38
Este termo é acolhido de Argüelles, J(1984) no seu livro “ Earth ascending : An Illustrated treatise on the law
governing whole systems. Por isso, vamos mantê-lo em inglês.
81
Se, na tentativa de se tornar uma disciplina “aceita” pelo eixo central (terapias
dominantes) a musicoterapia recorreu à linguagem como ponto de referência, há
também a questão do próprio mundo musical, em musicoterapia.
Como o leitor acompanhou no capítulo anterior, a música do século XX
rompeu com a hegemonia do sistema tonal e ampliou os territórios da escuta
musical para os deslocamentos de sonoridades. Este movimento, apesar de sua
potência estética e política, também enfrentou uma “resistência” por parte dos
ouvintes moldados pelo sistema tonal.
Este fenômeno também é presente no pensamento musicoterapêutico.
Podemos dizer que a musicoterapia poucas vezes dialogou com o pensamento da
música contemporânea. Este fato tem gerado alguns limites bastante significativos
na escuta musicoterapêutica, dando-se um deles na escuta das sonoridades com o
outro.
O musicoterapeuta Kenneth Bruscia (2000, p.97-110)39, um organizador de
uma espécie de “musicoterapia geral”, identificou seis dispositivos que organizam
idéias de música no contexto clínico : a) perspectiva de neutralidade - os pacientes
em geral, não possuem um conhecimento sistematizado de música. Neste sentido,
toda e qualquer expressão não deve receber um “julgamento estético de valoração”,
devendo-se ter uma postura que “ exclua o julgamento da expressão sonora”, b)
prioridade da terapia – centrada nas necessidades do cliente(discutiremos este
tópico no III capítulo) c) o significado da música no contexto terapêutico, d) a música
como pessoa, processo, produto e contexto, e) a multiplicidade sensorial da música
(música como atividade de escuta e como produção - o fazer sonoro) e,
f) as
modalidades artísticas correlatas - a música pode ser acoplada às áreas de arte
vizinhas (dança, poesia, expressão corporal, artes visuais).
Todos estes tópicos podem ser discutidos. Entretanto, há um tópico instigante
que dialoga com o trajeto que estamos criando : a) perspectiva de neutralidade em
39
Este musicoterapeuta tem trabalhado bastante nas questões internas da musicoterapia. Ele construiu uma
espécie de mapa panorâmico, situando as movimentações e conexões entre as áreas distintas : música, terapia,
ciência, filosofia; organizando como determinados setores aglutinam estas diferentes áreas. Neste sentido, ele
compilou no livro Defining Music Therapy 1989 – 1. edição e, posteriormente, numa 2. edição, revisada e
traduzida para o português como Definindo Musicoterapia, vinte e sete tópicos que, por assim dizer, organizam
elementos de uma “musicoterapia geral”. No Brasil, ele vem se tornando uma espécie de “autor guia” desta
“musicoterapia geral”.
82
relação à produção sonora do paciente - o não julgamento estético da expressão do
paciente. Nas palavras de Bruscia:
“Algumas vezes os clientes não são capazes de tocar ou cantar com
proficiência técnica; algumas vezes sua música não tem ritmo ou
controle tonal, algumas vezes eles não tocam ou cantam as notas
corretas, algumas vezes os clientes se engajam em um processo
com características mais lúdicas e exploratórias do que artísticas e
criativas, e algumas vezes os resultados são sons e não músicas”
(2000, p. 100-1).
Deste ponto, um pensamento que propõe a suspensão de um “julgamento
musical” revela um centro oculto, manifestando forças endógenas em torno de uma
idéia musical preestabelecida. Na fala de Bruscia, a música é de base tonal, uma
vez que há referências a controle tonal, notas corretas, ritmo estruturado. Essas
referências nos levam a considerar que, por este viés, a escuta musicoterapêutica
também constrói um modelo a priori, uma vez que está tomando por base um
sistema estabelecido. Não seria este um distanciamento, um limite musical, ou
melhor, um limite de sonoridade? Apesar de este autor conceber uma idéia de
música bastante diversificada
"Música é uma instituição humana na qual os indivíduos criam
significado e beleza através de sons, utilizando as artes da
composição, improvisação, performance e audição. Significado e
beleza são derivados das relações extrínsecas criadas entre os sons
eles mesmos e das relações extrínsecas criadas entre os sons e
outras formas de experiência humana. Logo, significado e beleza
podem ser encontrados na própria Música (no objeto ou produto), no
ato de criar ou experenciar a Música (no processo), no musicista (na
pessoa), ou no universo." (BRUSCIA: 1998: 104).
Apesar dessas retenções, a musicoterapia se dá também pelas
semióticas pré-significantes. Uma vez que a musicoterapia, ao se efetuar na música,
83
as formas expressivas contaminam seu ambiente musicoterapêutico (formas de
gestualidade, corporalidade, vocalidade, ritmo, dança, rito, musicalidade). E, neste
sentido, há uma predominância das semióticas pré-significantes, posto que nelas
“Várias formas e várias substâncias de expressão se entrecortam e
se
alternam.
É
uma
semiótica
multidimensional,
que
combate
segmentar,
mas
plurilinear,
antecipadamente
qualquer
circularidade significante. A segmentariedade é a lei das linhagens.
De forma que o signo deve aqui seu grau de desterritorialização
relativa não mais uma remissão
contorno de territorialidades
perpétua ao signo, mas ao
e de segmentos comparados
dos
quais cada signo é extraído” “...um pluralismo ou uma polivicidade
das formas de expressão, que conjugam qualquer tomada de poder
pelo significante e que conservam formas expressivas próprias do
conteúdo : forma de corporeidade, de gestualidade, de ritmo, de
dança, de rito, coexistente no heterogêneo com a forma vocal”
(Deleuze/Guattari MP.vol.II p. 69).
Os regimes pré-significantes se misturam à escuta musicoterapêutica,
produzindo expressões heterogêneas. Experienciamos isto nas sonoridades da cena
II. Existia ali um regime pré-significante, pois nos acontecimentos não se buscava
um significado, mas sim as produções de sonoridades. Não se trata ainda de saber
o que os sons significam, mas a que outros signos eles remetem, e que outros
signos a eles se acrescentam para formar uma rede sem começo nem fim.
Na emergência dos pré-significantes a escuta musicoterapêutica não se
estabelece por um jogo a priori, e sim faz devires com: o corpo-instrumento, a vozinstrumento, o silêncio, o corpo vibrátil, imagens, os gestos, as sonoridades; ora
agenciando forças e demarcando territórios, outrora escapando e inventando outros
territórios. Este regime contém o desejo que tem produzido um setting na aventura
do ritornelo, ou seja, devires sonoros que põem em movimento terrirorialização,
desterritorialização e reterritorialização na musicoterapia. Aqui, a escuta é porosa.
Nesta complexidade, este campo tem criado um setting rizomático e
expressivo que se dá no fazer musicoterapêutico, no corpo-instrumento, na voz-
84
corpo, na voz-canto e na voz-fala. Por agora, podemos considerar que a escuta
musicoterapêutica é o germe deste processo.
Agora irei apresentar para o leitor fragmentos de regimes a-significantes em
musicoterapia. Abrimos, assim, um outro trajeto, que vai fazer uma cartografia das
produções musicoterapêuticas e fluxos a-significantes. Mais adiante, retomaremos o
regime contra-significante.
Por que considero os temas a seguir como perpassados por regimes asignificantes, uma vez que, como definiram Deleuze e Guattari, as semióticas são
mistas?
Como o leitor verá, por ter a música como dispositivo, a musicoterapia está
sempre sendo desterritorializada, ou seja, mesmo que haja regimes significantes,
como vimos anteriormente, as sonoridades acabam desterritorializando a própria
musicoterapia. Isto porque a escuta musical é sempre uma invenção e, portanto,
uma escuta clínica que se compromete com a escuta musical terá sempre a
invenção como dispositivo.
2. 4 ESCUTA DE INVENÇÃO
2. 4.1 Setting: um local ou um espaço de forças?
Um setting musicoterapêutico40 é um lugar de encontro, mas este “lugar”, em
musicoterapia, é quase um “deslugar”. Do mais tradicional41 - uma sala de
musicoterapia, ele se estende para: uma sala de instituição, um quarto de hospital, a
casa de um cliente (pacientes em tratamento de reabilitação e idosos), uma
40
O setting musicoterapêutico é preparado de acordo com as características do paciente ( faixa etária, patologia
e
grau de comprometimento), do musicoterapeuta (cada abordagem possui diferentes procedimentos de
preparação) e o local de atendimento. Além disto, em geral, leva-se em conta a queixa (o motivo pelo qual
procurou a musicoterapia) e o histórico musical do paciente, que podem ser obtidos na entrevista e na ficha
musicoterapêutica. Durante todo o processo, o setting vai sendo transformado conforme a dinâmica dos
encontros.
41
A musicoterapia trabalha em vários locais tais como “Instituições (saúde física e mental), clínicas e consultórios
particulares (atendimento individual ou em grupo), Indústrias e Empresas ( setor de recursos humanos), Hospitais (UTI,
pediatria, oncologia, pacientes terminais e em coma, cardiologia, hemodiálise etc...), Comunidades (menores carentes),
Ensino (atendimento em salas de aula –distúrbio de conduta e distúrbio de aprendizagem “) ( Baranow, 1999).
85
enfermaria, uma sala cirúrgica, uma clínica escola, uma sala de aula, um abrigo, às
vezes a rua (trabalho musicoterapêutico com crianças e adolescentes de rua), uma
sala de uma empresa. Isso porque a musicoterapia abrange várias áreas de
atendimento.
Mas se o local é variado, outras vezes também é inusitado: um
corredor, um refeitório... Já trabalhei com uma criança no hall de um prédio com uma
escadaria (3 andares). Lá, a vocalidade da criança se espalhava no ambiente e
criava uma peculiar escuta corporal.
O leitor deve estar se perguntando: Então, qualquer lugar é um setting
musicoterapêutico? Não, não é qualquer lugar mas, sim, o lugar pode se dar onde
uma escuta musicoterapêutica está em atividade num encontro terapêutico. O que
estou dizendo é que não é o espaço físico que define um setting e, sim, “o jogo de
forças nas suas redes de interações” (Baranow. 2002 p.97).
Quanto às fontes sonoras do setting elas são desde as mais tradicionais
(instrumentos convencionais: percussão, melódico e harmônico; materiais naturais :
pedras, folhas,
madeira, papel, conchinhas,
água e; do cotidiano: garrafas,
tampinhas de garrafas, bolinhas de gude, aparelho de som, gravador, microfone,
papéis com texturas diferentes; além de materiais do repertório do paciente e
instrumentos por ele criados), até as “estranhas” ( certa vez, trabalhei com uma
placa de carro).
Há também corpos (do musicoterapeuta, do paciente e do grupo – caso seja
um atendimento grupal) e, portanto, vozes que cantam, falam, sussurram, gritam,
gemem, choram e silenciam, e corpo-instrumento. Está presente também o silêncio
de Scelsi – no silêncio, o pó de tudo; e o de Cage – um campo virtual de onde os
sons se atualizam. O ruído também habita este espaço.
Veja o leitor que, por mais que se queira “sustentar” uma escuta por regimes
significativos, ela acaba escapando.
2. 4. 2 Qual o corpo que a musicoterapia escuta?
Numa primeira impressão, podemos dizer que o corpo que a musicoterapia
escuta é o corpo-instrumento, porém, como vimos, este corpo possui uma
86
virtualidade, um corpo-sonoro com uma névoa de sonoridade não audível.
Entretanto, este tema precisa ser mais elaborado.
José Gil (MC,1997) no capítulo O corpo e o inconsciente, nos alerta que o
corpo do século XX(XXI) tem que ser considerado dentro de uma perspectiva
transdisciplinar, isto é, passar pelo corpo anatômico da medicina, pelo corpo do
fantasma da psicanálise (um inconsciente fundado na representação)42 e
pelo
corpo fenomenológico das inscrições dos fenômenos no corpo. Mas, além destes
corpos, também existe um corpo virtual, uma máquina desejante que Deleuze e
Guattari nomearam de - corpo sem órgão, ou seja, um inconsciente corporal que se
desdobra no devir-outro, devir-mulher e também nos devires não humanos: animal,
vegetal, mineral, música.
A partir da afirmação de José Gil, também podemos dizer que vários corpos
passam pela musicoterapia: o “corpo médico”, que não é mais aquele corpo que
tinha um “olhar sobre ele”, mas que agora tem o olhar dentro dele, uma vez que a
visualidade das tecnologias diagnósticas, além de mapear os órgãos, também
mapeia
o
código
musicoterapêutico
hospitalizados,
genético.
(pacientes
portadores
Este
corpo
médico
neurológicos,
é
presente
síndromes
no
genéticas,
de deficiências). Especificamente,
setting
pacientes
a ligação da
musicoterapia com o “corpo médico”, em geral, se estabelece pela relação
experiência
musical
X
alteração
orgânica
(batimento
cardíaco,
reações
neuromotoras, reações emocionais que propiciam uma melhora no quadro clínico).
Nesta linha, existem pesquisas quantitativas, que se preocupam em numerar as
mudanças ocorridas e pesquisas qualitativas (Aigen, 1995; Henk Smeijsters,1996),
que procuram propiciar um outro estado de saúde aos pacientes.
Apesar desta relação mais próxima com as sintomatologias (música
interferindo nos
sintomas orgânicos), o “corpo médico” em musicoterapia é
confrontado pelo corpo-instrumento e pela escuta porosa. Portanto, há um
deslocamento do “corpo médico” para o corpo-sonoro.
No Brasil, trabalhos como o de Cléo Monteiro França Correa (1997) com
portadores de distúrbios epilépticos são um exemplo deste movimento que estamos
descrevendo. Esta autora, apesar de estar comprometida com a área médica, não
42
Sobre este tema, ver “Psicanálise Morta Análise” in Diálogos. op. cit.
87
se limita ao “corpo médico”, pois integra, através de abordagens e técnicas
musicoterapêuticas,
o
corpo-sonoro.
Nesta
perspectiva
a
musicoterapeuta
americana Cheryl Maranto (1994) propõe um modelo biopsicosocial, no qual não se
enfoca somente o “corpo médico”, e sim os aspectos psíquicos e sociais.
O corpo fenomenológico, com suas experiências inscritas, também se
apresenta na clínica musicoterapêutica. Ele se dá através dos fenômenos musicais
experienciados e percebidos no corpo.
A musicoterapeuta alemã Isabelle Frohne-
Hagemann (1999) trabalha por esta perspectiva e considera que a hermenêutica é
uma ferramenta importante para o musicoterapeuta escutar a linguagem do corpo no
processo musicoterapêutico43. Existe também o corpo ritualístico e religioso (Joseph
J. Moreno, 1995).
Mas, apesar de todos estes, vamos falar de um corpo que não tem um dentro
e fora (um sujeito-objeto), e sim um corpo na subjetividade da escuta musical.
Inicialmente podemos encontrá-lo no corpo-instrumento que, com aquela pele
elástica, como aprendemos com José Gil, faz blocos-sonoros: uma tatilidade da
visão, uma escuta-tátil, uma escuta-olho, ou seja, um corpo gerado na escuta
porosa. Vejamos um fragmento da fabricação destes blocos em musicoterapia.
Imagine o leitor um espaço terapêutico onde se encontram disponíveis alguns
instrumentos.
No processo de subjetividade, um olho-escuta é atraído por um
tambor-mão, ou um ouvido-tátil se transforma em mão-baqueta.
Isso porque, como vimos, o corpo sempre estabelece vizinhanças, faz blocos
(desterritorializando e sendo desterritorializado); é um corpo no devir-intrumentos.
Até aqui, o leitor está acompanhando estes movimentos com uma certa visibilidade
dos movimentos deste corpo.
Mas, embora a materialidade das fontes sonoras seja uma potência do
setting, sabemos que ele não se limita a estas fontes, já que o corpo-instrumento
revestido pela névoa de virtualidade, também pode atualizar sonoridades diferentes:
um braço se transformando em uma sonoridade áspera
ao raspar uma parede,
ou um pé que, deslizando sobre o chão, produz uma sonoridade específica. Então,
43
Isabelle Frohne-Hagemann, no artigo “Sobre la Hermenéutica de los procesos musicoterapéuticos” in Revista
Internacional Latinoamericana de Musicoterapia vol.5, n.1, 1999, apresenta o processo musicoterapêutico a
partir da análise fenomenológica.
88
entramos numa qualidade de expressão que, apesar de se dar em um gesto44
corporal (corpo-carne), não se restringe a ele porque também aciona o gesto
musical.
Na música, o gesto não está restrito a um movimento mas, sim, é “... um
movimento dotado de significação especial. É mais do que uma mudança no
espaço, uma ação corporal, ou um movimento mecânico: o gesto é um fenômeno de
expressão que se atualiza na forma de movimento” (Iazzetta,1997, p.33).
Deste ponto, o corpo-instrumento já está ficando insólito porque “existem
gestos sem movimentos” (Baranow,2001, p. 37). Então, estamos nas moléculas do
corpo-sonoro. Aquele corpo virtual que, na potência do silêncio, vibra com as forçasfluxos e ensaia expressões de sonoridades.
Por isso, embora povoado por forças sonoras atualizadas: instrumentos
musicais e objetos variados, este espaço clínico musical também se configura na
virtualidade do corpo-sonoro e no intenso movimento dos poros na escuta.
Então, precisamos dar um passo adiante para entrarmos neste campo
insólito. Neste campo, o leitor já sabe que escuta porosa é afetada pelas forças na
dinâmica das dobras e o corpo-sonoro, no seu processo de molecularização, não
tem mais forma nem figura porque é um corpo sem imagem. Chegamos então no
corpo sem órgão.
A concepção de corpo sem órgão é formulada por Deleuze e Guattari em O
Anti-Édipo (1966), quando apresentam que Antonin Artaud teria descoberto a
potência deste corpo. Mas, o que quer dizer isso?
“O corpo sem órgão não é o testemunho de um nada original, nem o
resto de uma totalidade perdida. Mas sobretudo o que ele não é, de
modo algum, é uma projeção : não tem nada a ver com o corpo de
cada um nem com uma imagem do corpo. É o corpo sem imagem”
(1966 :14).
44
A palavra gesto tem sentidos muito diferentes, dependendo do território no qual está inserida. Na pintura, o
gesto tem especificações distintas e significativas e, na música, o gesto pode ser considerado um gerador de
sentidos.
89
Esta é sua potência: uma realidade intensiva. Ele é povoado ou habitado por
intensidades que passam e circulam: ondas e vibrações, limiares e migrações de
forças, e é transpassado por gradientes de devires. Portanto, o que ele produz é um
meio de experimentação na potência do desejo. “Não se pode desejar sem ter um
corpo sem órgão, ele nos espera, ele é um exercício, uma experimentação
inevitável, feita no momento em que a realizamos e, nesse sentido, ele é ‘plano de
consistência’ próprio do desejo”. (Lopes, 1996:81).
Um corpo sem órgão não remete a uma oposição aos órgãos, mas sim, como
alertam Deleuze e Guattari remete a uma oposição aos organismos estratificados.
Estes podem ser sintetizados em três palavras de ordem: o organismo, a
significação e a subjetivação. Cada um destes impõe um corpo:
“você será organizado, você será um organismo, articulará seu corpo
– senão você será depravado. Você será significante e significado,
intérprete e interpretado – senão será um desviante. Você será sujeito
e, como tal, fixado, sujeito de enunciação rebatido sobre um sujeito de
enunciado – senão você será apenas vagabundo. Ao conjunto dos
estratos, o Corpo sem órgãos opõe se a desarticulação (ou as n
articulações) como propriedades do plano de consistência, a
experimentação
como
operação
sobre
este
plano
(nada
de
significante, não interprete nunca !), o nomadismo como movimento
(inclusive no mesmo lugar, ande, não pare de andar, viagem imóvel,
dessubjetivação)” (1996 : 22).
Este corpo sem órgão habita, embora não explicitamente, o imaginário da
escuta musicoterapêutica, pois ela vem produzindo trajetos no devir-som e no devirmúsica e isso é mobilizar o corpo, mesmo que ele esteja no mesmo lugar, pois a
escuta porosa pode criar mundos sem que o corpo saia do lugar. Veremos este
movimento na cena III.
Esta mobilidade incorpórea se dá no ritornelo, ou seja, no movimento de
territorializar e de desterritotializar forças, criando matérias de expressão (aquelas
que se efetuaram em Schoenberg, Scelsi, Varèse, Webern, Cage, Berio, Nono,
90
Ligeti). E também se efetuam nas cantinelas, nos sussurros, nos murmúrios, e ainda,
nos cantos de trabalho, nas canções anônimas, nos acalantos, nos cantos infantis,
nos folguedos, nos cantos sacros religiosos, carnavalescos, guerreiros, nos cantos
políticos...
Todos estes cantos vibram em um dos livros mais sonoros de musicoterapia
É preciso cantar: musicoterapia, cantos e canções45 de Luís Antônio Millecco Filho e
col. (2001). Estas vozes e as vozes virtuais deslocam o “corpo médico” do olhar de
dentro,
os
fantasmas
da
significância
da
interpretação,
as
inscrições
fenomenológicas, em um corpo consciência, pois estas vozes só são matérias de
expressão produzidas pelos afetos (aqueles sem formas e sem imagens) na
produção do corpo sem órgão.
O leitor deve ter reparado que entramos em uma outra geografia sonora,
posto que percorríamos os territórios da música contemporânea. É que, como
estamos falando das sonoridades autônomas, a subjetividade da música
contemporânea ficou mais evidenciada. Entretanto, no setting, passam todos os
cantos e todas as vozes.
A partir destes corpos, podemos perguntar: não seria este o desejo secreto
do musicoterapeuta? Escutar o corpo sem órgão, ou ainda, escutar os desejos que
escapam das significâncias, dos sujeitos rotulados, das interpretações redundantes
e das massas identificadas?
2.4.3 Dinâmicas no setting
Como estamos apresentando uma musicoterapia ativa, as produções no
setting vão se dar no “fazer musical”46. De uma forma extremamente resumida,
45
Os musicoterapeutas Luís A. M. Filho, Maria Regina Esmeraldo Brandão e Ronaldo Pomponét Millecco em É
preciso cantar : musicoterapia, cantos e canções (2001) Rio de Janeiro, Enelivros, praticamente “escreveram
um Cd” porque a leitura deste livro se torna uma “escuta de cantos”, uma cartografia dos desejos que cantam.
46
Como já dissemos, vamos usar o “fazer Musical” sempre entre aspas para diferenciá-lo do ato de
composição. No início dos estudos sobre musicoterapia ativa, os musicoterapeutas lançaram mão da
antropologia, da sociologia,
de teorias da comunicação, da psicologia e da psiquiatria. Afora isso, o
pensamento dos educadores musicais (Willems, Orff, Dalcroze, Martenot) também foi de extrema importância
para a musicoterapia ativa. Assim, as reflexões sobre esse “fazer musical” clínico, se dão por engates com
várias áreas de conhecimento (expressão corporal, cognição, neurologia, pedagogia, educação musical, música,
fisioterapia, psicologia, psiquiatria, dinâmica de grupo).
91
podemos dizer que a musicoterapia tem visto o “fazer musical” como um ato que
vem da expressão do gesto mental derivada da cognição (teorias cognitivas), da
emoção e sensação da vida intrapsíquica (teorias psicanalíticas), da interconexão
cerebral (teorias médicas com ênfase neurológicas) e da expressividade de um ser
criativo (teorias humanistas).
O “fazer musical” aglutina a expressão corporal, vocal e o corporalinstrumental, gerando acontecimentos sonoros através de jogos de experimentação
e de improvisação. Nestes acontecimentos, o musicoterapeuta e o paciente criam
ambientes sonoros e musicais.
Às vezes, tocando juntos; outras vezes, estando
juntos: o paciente improvisa e o musicoterapeuta ouve,
ou o musicoterapeuta
improvisa para o paciente. É um “fazer musical” compartilhado, pois sempre há um
espaço relacional, um devir outro no devir música.
Por esse caráter relacional, a musicoterapeuta brasileira Lia Rejane Barcellos
(1992), chama essa forma de atuação de inter-ativa, pois estão “...musicoterapeuta
e paciente ativos no processo de fazer música” (p.20).
O musicoterapeuta Kenneth Bruscia sistematizou o “fazer musical”, em
musicoterapia, em quatro tipos de experiências: improvisação (atividades de
produção musical espontânea), re-criação (reprodução musical),
(criação musical)
e audição
(recepção musical).
composição
E cada um destes tipos de
47
experiência musical possui características próprias .
47
Kenneth Bruscia (2000) organizou um conjunto de Tipos de Experiências em Musicoterapia (p.121-137) :
A)Experiência de improvisação : o paciente manipula sons e/ou a voz e, através dessas expressões sonoras, ele
improvisa temas rítmicos, melódicos ou ambientes sonoros.Essa improvisação pode ser individual, em dueto
com o musicoterapeuta ou em grupo.Também quanto às variações, a improvisação pode ser : instrumental nãoreferencial (improvisação corporal e/ou instrumental somente gerada pelo próprio fazer musical); também
Instrumental referencial : a improvisação
parte
de
algo não-musical. Por exemplo, criar uma
improvisação sobre um tema específico (um sentimento, uma situação).
B)Improvisação de Canções: pode ser somente com conteúdos musicais e/ou referenciais (improvisar uma
canção para uma pessoa).
b1)Improvisações Corporais – o corpo como instrumento sonoro na criação de expressões sonoras-musicais.
b2)Improvisações com múltiplos meios: corpo, voz,instrumentos e recursos sonoros.
C) Experiências Re-Criativas : aqui o paciente vai tocar e/ou cantar tomando por base uma música já existente,
ou seja, ele vai re-criar (transformar, reproduzir) uma situação musical.
D) Experiências de Composição: em primeiro lugar temos que ressaltar que essa atividade apesar de utilizar a
mesma terminologia da área musical (composição musical) em musicoterapia tem uma característica específica.
Num ambiente clínico, o musicoterapeuta ajuda o cliente a estruturar uma produção musical que pode ser tanto
extremamente simples, como com componentes mais elaborados. Porém, essa produção muito se distancia da
composição musical do território musical.
92
O musicoterapeuta brasileiro Renato T. Sampaio, que recentemente defendeu
a dissertação de mestrado Novas Perspectivas de Comunicação em Musicoterapia
(2002), trouxe novas reflexões sobre o “fazer musical”. Partindo do pressuposto que
o ser humano é um ser essencialmente de relação, ele considera que a música é
um dos territórios em que o homem estabelece suas relações com o mundo. Assim,
música “acontece enquanto uma ação mental sobre o mundo. Ela se realiza como
uma forma do homem entender, organizar, classificar, interagir, manipular, ser
manipulado, construir, desconstruir, enfim, uma forma de se relacionar com o
mundo” (p.49). A partir desta idéia de música o “fazer musical” consiste em
“... um agenciamento de velocidades, de forças de atração e repulsão,
de polarizações, de gestualidades, de tempos, de intensidades, de
massas sonoras, de volumes, de texturas, de formas, de devires, etc.,
ou seja, um moto contínuo de desterritorialização e reterritorialização.
Este Fazer Musical possui como resultado a produção de signos
musicais que englobam todo e qualquer produto deste ato musical,
mesmo aqueles produtos
que
originalmente não se chamaria
propriamente musical: um movimento, uma palavra, um texto verbal,
um desenho, etc.” (ibidem, p.50).
A construção de instrumentos musicais (com sucata e/ou materiais originais)
e a dramatização de fatos, sonhos, histórias infantis, contos e/ou situações através
da Música e/ou dos instrumentos musicais também são utilizadas.
Neste “fazer musical”, tal qual defendido por Sampaio, a escuta está em pleno
movimento de mutação, uma vez que há misturas (movimento, palavra,
gestualidade, massas sonoras, texturas...) e, portanto, invenção de signos
musicoterapêuticos.
Há inúmeras possibilidades de experiências musicais em musicoterapia :
experimentação de instrumentos, expressões sonoras musicais, experimentações
vocais e corporais, movimentação corporal e rítmicas corporais, canções diversas,
reproduções de músicas conhecidas, criação de ambientes sonoros e/ou musicais,
sonorizações de cenas do cotidiano ou cenas específicas, criação de temas
93
musicais, improvisações livres ou dirigidas (que podem ser individuais, em dupla ou
grupal). Enfim, há uma vasta gama de possibilidades.
Nesta região aberta para as possibilidades de experimentação e invenção , a
música se dá no e com o processo da experiência musical, ou seja, a experiência
musical não está na música, no cliente, ou no musicoterapeuta, mas sim, no jogo de
agenciamentos. Assim sendo, resta-nos pensar nos agenciamentos das escutas
neste ambiente em processo. Mas antes, vejamos outros fluxos que passam pela
escuta musicoterapêutica.
2.4.4 Escapando das Escutas Rostificadas.
Vimos que na musicoterapia passam vários corpos, mas que ela põe em
funcionamento o corpo-sonoro e o corpo-instrumento. Neste sentido, existe a
convocação de um processo de deslocamento: um sujeito-paciente que atinge um
corpo-sonoro e é deslocado da condição de paciente para ouvinte que inventa
mundos. Se esse deslocamento propicia um escape da condição de sujeitopaciente, também temos que tomar os processos de subjetivação por um outro
ângulo.
Acompanhemos Peter Pál Palbart, no livro A vertigem por um fio – políticas da
subjetividade contemporânea, quando descreve que entrar no ambiente da
consagrada noção de sujeito é se deparar com uma “...matéria prima tão impalpável
quanto incontornável que chamamos de subjetividade” (2000, p.11). Esta é uma
tarefa bastante árdua e vasta, pois há constantes flutuações a respeito da idéia de
sujeito e de subjetividade desde seu surgimento no século XIX. Para não nos
comprometermos com essa literatura, durante nosso trajeto, temos tentado pôr em
movimento estas mutações da subjetividade passando pelas dobras, nos seus
processos inacabados. Mas ainda é preciso fazer uma aproximação, um pouco mais
detalhada, da subjetividade na sociedade contemporânea.
Sobre este aspecto, Peter Pál Pelbart cunhou a subjetividade contemporânea
sob três condições : “a forma-homem historicamente esculpida, as múltiplas forças
que batem à porta e põem em xeque essa mesma forma-homem, e a idéia do
94
experimentador de si mesmo” (p.13). Ele configura essas três condições, apoiandose na obra de Michel Foucault e do filósofo Gilbert Simondon.
A primeira condição vem do legado de Foucault quando este considerou que
não se trata mais de saber quem somos, mas sim de recusarmos o que somos,
escapando da forma-homem historicamente esculpida. Junto dessa condição, Peter
também considera a questão da fabricação de subjetividade que molda o homem
encaixando-o em projetos de identidades que giram em torno de uma axiomática
capital (idem,p.12). No enfrentamento dessa questão, surge o movimento reverso,
que é um esforço para libertar-se das forças do capital.
Em relação à segunda condição, as múltiplas forças que batem à porta e
põem em xeque a forma-homem historicamente esculpida, podemos perguntar :
que forças dão novos sentidos ao termo de subjetividade contemporânea ?
Então, nos deparamos com a forma-homem tendo que enfrentar a velocidade.
Uma velocidade que por atingir o tempo e, conseqüentemente, o espaço, configura
paisagens instáveis, turbulentas e flutuantes. Estamos no século da velocidade que
projeta a informação imediata. Surfamos pelo mundo, sentados numa cadeira. Tudo
passa numa velocidade alucinante num movimento que, pela sua velocidade, só
propicia panorâmicas de grandes massas com mobilidades generalizadas: músicas
de massa, o poder telecomunicacional, o poder da informática, os slogans
publicitários, a publicidade de guerra, a moda. Hoje, nossa casa é muito mais a
velocidade que nos carrega e paralisa do que um lugar a ser habitado.
Esta velocidade paralisa a subjetividade, tornando-a petrificada e inerte. A
questão da subjetividade contemporânea passa por esse fato. Portanto, reconhecer
esse tempo de velocidade instiga-nos a admitir que esse fenômeno
gera um
mecanismo identitário, pois, na tentativa de não sermos despedaçados pela
velocidade, estruturamos modelos identitários flutuantes. As músicas de “moda”
são exemplos destes mecanismos de identificação flutuante, já que fabricam
escutas rostificadas.
Um rosto é um sistema universal e serve como uma espécie de parâmetro. É
um tipo de base que “autoriza” a significação. “ O rosto
constrói
qual o significante necessita para ricochetear”(MP vol. III, p. 32).
o
muro do
95
Em Mil Platôs vol. III, Deleuze e Guattari apresentam esses mecanismos de
significância através da idéia de rostidade. Dentre algumas características do rosto,
os autores evidenciam a função binária, que se efetua numa dinâmica de rostidade
funcionando de duas maneiras: unidade ou elemento e escolhas. A unidade é o
terceiro olho, um eixo central que dá ao ouvinte uma relação biunívoca: bom e mau
ouvinte. Esse movimento gera um ouvinte ideal, ou seja, um modelo de ouvinte. Já a
escolha produz o que passa e o que não passa pela identificação do rosto: boa ou
má música, parâmetro de afinação (afinado-desafinado), estilo proeminente (música
de sucesso e música fora do eixo). São as escutas significantes que programam os
ouvintes. Ouvintes numerados (milhões de cópias de cds vendidos), globalizados,
com um modelo de escuta pronta, a priori. Neste campo em que tudo passa pelo
significado, as melodias são pré-estabelecidas e os ritmos estagnados tornam-se
modelos para balanços corporais. A voz é padronizada, vestem-na com um uniforme
para identificação e imitação. Seu timbre é um molde, uma voz que vende.
Tudo isso pode ser encontrado nos movimentos de música de massa. Suely
Rolnik descreve que, na sociedade contemporânea, as identidades locais de uma
cultura “desaparecem para dar lugar a identidades globalizadas flexíveis. Essas
acompanham o ritmo alucinado de mudanças do mercado” (2000, p. 454). Os
modismos musicais brasileiros são exemplos desse fenômeno de regime de
identidades flutuantes.
Vista por este viés, a escuta está muito distante da invenção. Ela não é um
ato de criação, de composição de espaços sonoros, mas, ao contrário, já está feita,
tem uma fôrma onde os sons são colocados e agrupados Isso porque, como em
qualquer processo de subjetividade, ela também se dá nas dobras das identidades.
Nesse sentido, apesar de toda heterogeneidade que a música produz, existe
sempre uma sombra de música globalizada, que acumula identidades modelos,
criadas pelo mercado musical. Assim, é necessária uma visualização desta sombra
de significância do território musical para poder
escapar deste jogo e acessar o
ouvinte não historicamente construído e, sim, convocar um ouvinte que escapa do
rosto
e
mergulha
desterritorializando
em
pontos
novos
fixos;
mundos
um
experimentando novos mundos sonoros.
de
ouvinte
escutas,
que
cria
que
faça
linhas
de
devires,
fugas,
96
Então, onde passam as linhas de fugas? Elas explodem do próprio território
musical. Mas não basta somente perseguir estas linhas, pois corremos o risco de
rapidamente organizar, qualificar, selecionar, agrupar. Talvez a questão seja deixar
que a fluidez dessas linhas arraste o ouvinte para regiões a-significantes, que
desfaçam o rosto, fazendo com que
“cada traço liberado de rosticidade
liberado de
paisageidade,
não uma coleção de
conexão de
hastes
de
faça rizoma com um traço
picturalidade,
de
musicalidade:
objetos parciais,mas um bloco vivo, uma
na qual os traços de um rosto entram em
uma multiplicidade real, em
um diagrama com um traço de
paisagem desconhecido, desconhecido, um traço de pintura ou
de
música que se encontram efetivamente produzidos, criados,
segundo quanta de desterritorialização.” (MP vol. III, p.61).
Veja só leitor: até aqui, vínhamos trilhando um caminho no sentido de que a
escuta musical é sempre um dispositivo de escape e, portanto, uma potência crítica
na clínica. Porém, agora, chegamos num ponto delicado e, deste viés, vemos que a
escuta, na sociedade contemporânea, não é mais capturada pelo poder religioso,
mas sim pelo capital. Assim, para a escuta musicoterapêutica, não basta por a
música em fluxo. Há também que se pensar nos regimes significantes que produzem
uma música que vende.
Temos, então, uma problemática, se até esta altura vínhamos evidenciando
uma escuta que produz, agora estamos apresentando uma retenção neste processo
em função da rostidade da escuta.
É que a rostidade da escuta também se apresenta no setting terapêutico. Não
se trata somente de deslocar o sujeito-paciente para um ouvinte porque, nesta
passagem, também passa o ouvinte rostificado.
Este é um outro desafio da
musicoterapia.
O musicoterapeuta Ronaldo P. Millecco (1997), no artigo Ruído da
Massificação na Construção da Identidade Sonora-Cultural, aborda este tema
considerando que, o musicoterapeuta, ao enfrentar escutas rostificadas, precisa se
97
posicionar como um agente da saúde, investindo na ampliação de horizontes
existenciais.
Se antes estávamos falando de movimentos da escuta, deste ponto, estamos
convocando essencialmente a escuta do musicoterapeuta como uma escuta crítica.
Pois, perante escutas rostificadas, é preciso uma experienciação sutil para que se
possa fazer mutações, trata-se como nos orienta Suely Rolnik de “escutar o
burburinho das singularidades pré-individuais ou proto-subjetivas que se agitam no
virtual do corpo sem órgão; trata-se igualmente de farejar a pista de agenciamentos
que favorecem a atualização de singularidades como matéria de expressão” (2000,
p.458).
Agora a escuta está no campo da política: na rostidade ela se depara com as
macropolíticas e, na potência das microimpressões, ela desliza nas micropolíticas.
Retomaremos este tema no último capítulo.
2.4.5 Ambientes de Escutas
Como a escuta musicoterapêutica se movimenta em três ambientes
diferentes, ela tem qualidades distintas: qualidade de fluxo, retenção na fala e escuta
de análise.
2.4.5.1 Escuta em Fluxo
Durante as experiências musicoterapêuticas, a escuta está num puro jogo de
fluxo, uma aventura do ritornelo.
Tomemos uma imagem comum de um setting musicoterapêutico: um
musicoterapeuta e um cliente numa movimentação sonora.
Neste acontecimento, ora num devir-outro, as escutas (que já estão em
partículas de deslocamentos, portanto, não é nem a do cliente e nem a do
98
musicoterapeuta, mas sim, um outrar-se), buscam um ponto para se fixarem, um
centro móvel e, territorializam forças. Outrora a escuta do musicoterapeuta captura
uma força (um pulso, uma canção, um som, um silêncio, um timbre) e, ao lançar
essa força novamente no setting, oferece uma possibilidade de territorialidade ou de
desterritorialidade
com o paciente.
Em outros momentos, a própria escuta do
musicoterapeuta perdida, se abriga em uma vocalidade, ou num som, num timbre,
no silêncio.
Também ocorrem momentos em que ambos criam um muro sonoro, uma
expressividade territorial – aqui, os fluxos se repelem –, ou seja, ocorre uma
disjunção das escutas e, cada qual, busca um abrigo e criam territórios separados
Há, ainda, momentos em que as escutas escapam do ambiente (físico) do setting e
trazem sonoridades de outros ambientes (uma buzina, por exemplo). Esse fato pode
gerar um encontro inusitado, pois, há um choque de territórios. Na cena III, o leitor
irá acompanhar um pouco deste movimento.
Estes exemplos são infinitos porque no movimento do ritornelo, as escutas
vão criando teias de relações.
2.4.5.2 Escuta na Fala
Também há ambientes de escutas diferentes. Às vezes ela está no fluxo das
sonoridades (experiências do fazer e da escuta); outras vezes, ela atinge a fala (falar
sobre as experiências sonoras musicais vivenciadas) e, neste momento, ela se torna
uma escuta na fala. Aqui, ela vai enfrentar o embate da disjunção escuta-fala.
Lembrem-se, a escuta não tem voz, ela precisa das marcas para criar as
sonoridades mas, nesta circunstância, ela vai se tornar voz e fala e, assim, irá
produzir um “entre” a escuta e a fala. Deste ponto, retomamos Foucault, porém,
agora, na voz de Deleuze.
Em Conversações (1992), quando Deleuze apresenta o pensamento de
Foucault em “Um Retrato de Foucault”, ele fala sobre a visibilidade fora do olhar, do
combate entre o que se vê e o que se diz. Vamos tomar este combate entre o que se
escuta e o que se diz, pois aqui também há “curtos atrancamentos, um corpo-a-
99
corpo, capturas, porque nunca se diz o que se vê (o que se escuta)48 e nunca se vê
(se escuta) o que se diz” (p.134)
Neste ambiente, as forças que passaram pelas escutas vão criar uma
“language of immediacy”, como descreveu a musicoterapeuta Carolyn Kenny. A
linguagem vai ser transbordada pelas sonoridades, e as sonoridades vão ganhar
outros signos (regimes pós-significantes), ou seja, uma fala das sonoridades.
2.4.5.3 Escuta em Análise
Temos, ainda, um outro estado de escuta, que é “escuta de observação” ou
melhor dizendo, a escuta em posição de análise musicoterapêutica - uma escuta
explicativa.
A análise musicoterapêutica é extremamente complexa, uma vez que vai ser
colocada num mesmo plano - a escuta clínica e a escuta musical. Talvez, por esta
complexidade, poucos são os teóricos que se dedicam a estudar este tema.
No artigo “A Qualitative Approach to Analyzing Client Improvisations”, Bruscia
(2001) toma por base uma abordagem qualitativa de caráter fenomenológico e cria
uma estratégia de análise musicoterapêutica a partir das improvisações feitas pelo
cliente. Neste contexto, a análise pode ser feita a partir do fenômeno : a) em
processo - o que está sendo criado e como acontece o fato musicoterapêutico; b) no
produto - uma análise do resultado do material improvisado; c) na experiência - que
é relacionada com uma
busca, por parte do musicoterapeuta, no sentido de
entender o que o improvisador estava pensando ou sentindo ao improvisar, ou seja,
os significados que o improvisador atribuiu à improvisação.
Posto que é uma análise de improvisação, ou seja, uma expressão
momentânea, o autor propõe três ambientes de análises com signos diferentes :
gravação em áudio, gravação
alguma
em
vídeo e, ainda, sua
transcrição
através de
forma de notação musical, considerando que cada uma destas formas
revela distintos relevos da análise.
48
Os parênteses são meus e o conteúdo interno também. Como a idéia é extremamente pertinente com o
contexto que estamos configurando, tomei a liberdade de fazer uma analogia do ver para o escutar.
100
Se Bruscia apresenta os campos da análise, Lia Rejane Barcellos (1999), em
sua dissertação sobre A importância da Análise do Tecido Musical para a
Musicoterapia, faz um estudo que toma por base o método musicoterapêutico GIM –
Guided Imagery and Music . A autora propõe uma análise musical a partir do
modelo semiológico de Jean Molino que, na denominação de
Nattiez (1990), é
chamado de “modelo tripartido”, pois apresenta uma análise musical semiológica a
partir de três níveis relativamente autônomos: poïétique, nível neutro e æstésico O
poïétique apóia-se nas estratégias de produção, o neutro apóia-se na obra sem
envolver os outros dois níveis e o æstésico apóia-se na escuta ou em estratégias de
recepção. Para a autora, em relação à análise musicoterapêutica, o nível poïético é
importante porque o musicoterapeuta faz uma análise musical das estratégias de
produção sonora do paciente e o nível æstésico também é imprescindível porque se
apóia nas produções de escuta.
Por outro lado, ao tratar sobre análise musicoterapêutica, a musicoterapeuta
Leomara Craveiro (2002) propõe que
“nas relações entre música e escuta, pode-se percorrer dois
caminhos diferentes:
o primeiro, partindo-se de uma análise da
partitura, com o objetivo de melhor conhecer seu feitio para, então,
utilizá-la em um espaço terapêutico, possibilitando a escuta.
Inicialmente, uma análise atemporal, congelada no espaço, tal como
uma fotografia – imóvel, estática –; signos esperando para se tornar
novamente música. No segundo caso, o caminho inverso: apoiandose primeiramente na escuta, faz-se uma análise da música enquanto
acontecimento temporal, sendo esta dinâmica, ativa, fugidia, móvel
como o próprio tempo para, em seguida, analisar-se a partitura,
buscando estabelecer relações entre a escuta e a forma como foi
construída esta música” (p.67)
No próximo capítulo, vamos seguir este caminho, ou seja, tomar a escuta
como produção. Desta forma, a análise musicoterapêutica também pode ser feita
com a escuta como um dispositivo de invenção.
101
2.4.6 De paciente a ouvinte - uma vertigem
Tínhamos começado nosso segundo tema com os regimes de signos e,
assim, quando chegamos aos a-significantes, abrimos para uma região mais interna
da musicoterapia, na tentativa de apresentar as forças que perpassam este campo e
que, conseqüentemente, produzem processos de subjetividade de escuta.
Porém, ainda faltam os regimes contra-significantes que se constituem na
“desterritorialização que se serve de uma linha de destruição ou de abolição ativa”
(MP. Vol II, p.91). Apesar de ter se apoiado em regimes significantes da linguagem,
da interpretação e da música tonal como um padrão referencial, a escuta
musicoterapêutica é o dispositivo contra-significante da própria musicoterapia.
Seu desejo de outrar-se em corpo-sonoro no encontro com o outro, revela
uma potência que desloca o sujeito dado e o paciente rotulado para ouvintes que
inventam mundos.
A musicoterapia já lidou com este deslocamento de várias maneiras. Às
vezes, “dando” ao paciente uma escuta interna saudável, ou seja, acreditando que
dentro do sujeito há um ouvinte que escapa da forma paciente com uma
musicalidade dada; outras vezes considerando que este paciente se transforma em
ouvinte à medida que o externo faz um par oposto com o interno (uma música que
modifica o interno); vez por outra, o paciente é deslocado para um ouvinte que
projeta seu interno numa tela de sentimentos revestida por uma camada de
representação.
Mas, como vimos, a escuta porosa se dá na aventura das mutações. Neste
sentido, deslocar o paciente para um ouvinte não é vivenciar o entusiasmo de um
“dentro feliz” e, sim, libertar a condição de um sujeito dado em prol de um inumano.
Pelo viés da escuta, este processo se dá num devir som. Nas palavras de JeanFrançois Lyotard (1997), o inumano emerge na aventura da escuta musical, pois “se
ela ali estiver, o sujeito não está” (p.159).
Por isso, deslocar o paciente para um ouvinte é engatar fluxos, é escapar do
corpo médico, da interpretação, do sujeito dado, do paciente diagnosticado, do
sentimento catalogado, para “um protocolo de experimentação, através da voz, do
102
som, dos gestos, dos devires mais insólitos” (Peter Pal Pelbart, 2000, 69). Uma
vertigem no outrar-se corpo-sonoro.
A subjetividade do campo musicoterapêutico, no jogo da escuta, vem fazendo
este deslocamento. Embora muitas vezes as terapias maiores pareçam atrativas e,
desencadeiam regimes signos significantes (uma escuta que tem, a priori, uma lista
de sentimentos para ser encaixada, ou, uma escuta que vai procurar uma
identificação, ou ainda, uma escuta que vai “descobrir” um sujeito musical), ainda,
assim, a vertigem da escuta tem sido uma potência contra-significante da própria
musicoterapia, uma vez que desloca o paciente no movimento de deslocamento do
próprio musicoterapeuta.
Talvez este seja o maior mérito da musicoterapia: ao convocar a música para
pôr a clínica em movimento, ela inventa ouvintes na clínica.
***
Para finalizar nosso tema, temos que retomar o título: Uma escuta de
invenção. Como o leitor acompanhou, a complexidade das forças do setting
musicoterapêutico só fazem com que ele seja um rizoma, onde tudo corre para
vários sentidos Há extensões, rupturas, acoplamentos,
de
segmentariedade, trajetos
natureza diferentes que se cruzam na heterogeneidade pois,
“vários códigos - perceptivos,gestuais,auditivos, táteis, lingüísticos
cognitivos, e
outros - se tocam, se intermeiam, se conectam, num
rico jogo de multiplicidades, formando a trama terapêutica (também
em rizoma). Portanto, essas formas sígnicas e/ou quase/sígnicas :
códigos sonoros - musical,
gestual, pré-vocal, tátil, pré-verbal
e
verbal, possibilitam as mais variadas conjunções” (Craveiro 2001,
p.76).
A complexidade das potencialidades deste setting, que se cria e é criado na e
com
as
expressividades,
atualiza
forças
corporificadas
nas
produções
103
musicoterapêuticas.
É neste sentido que este ambiente, onde os ouvintes são
atravessados por forças inusitadas, a própria tríade paciente – música –
musicoterapeuta que vem sendo sustentada pela musicoterapia, atinge uma outra
dimensão – a do jogo de forças (Baranow, 2002). E, nesta dimensão,
“não temos nem sujeito nem objeto, nem musicoterapeuta, nem
paciente, nem música, nem doença, saúde, patologia, loucura, nem
ações e reações, mas sons que urgem em se tornar ritmos, se
transformar em qualidades expressivas que constituem motivos
territoriais” (Baranow, 2002 p.88).
104
CAPITULO III
CARTÓGRAFO SONORO
105
3.1 ESCUTA QUE PRODUZ
No capítulo I, no tópico “uma escuta que escapa”, o leitor se lembra que
havíamos chegado no silêncio de John Cage. Agora, vamos retomar as idéias deste
compositor e adentrar no pensamento musical sobre a escuta, ou seja, numa poética
da escuta. No decorrer deste trajeto, faremos diálogos com o pensamento da escuta
musicoterapêutica, ou melhor, de como a musicoterapia vem refletindo sobre sua
escuta.
A música moderna, com suas sonoridades inusitadas, acompanhou a
tendência da arte processual que, dentre suas propostas estéticas, evidenciava-se
uma tentativa de aproximar a arte da vida e, com isto, o espectador e o ouvinte da
arte. Uma tentativa de quebrar a barreira artista x público, e construir um elo através
de uma arte processual que se engajasse no processo de vida. O espectador passa
de apreciador para agente ativo da obra e, na música, os compositores passam a
construir as peças de modo que o interprete não mais se dedique a interpretar mas,
também, ele é um agente participante da obra.
Nesta corrente, vimos que John Cage, ao conceber o silêncio como uma
potência musical, convoca o ouvinte a se responsabilizar por uma escuta, uma
escuta que produz, que experimenta e não mais uma escuta que espera um objeto
de arte.
Porém, se a música experimental de Cage voltava-se para uma escuta que
se produzia, por outro lado, a musique concrète também apresenta um movimento
em direção à escuta. O emblema desta música, que vai se amalgamar
às
tecnologias e desembocar na música eletroacústica, é Pierre Schaeffer.
No fim da primeira metade deste século, Pierre Schaeffer criou a música
concreta. Esta terminologia vinha do desejo de “concretizar o som”. Este fato parecia
possível a partir do momento em que a tecnologia permitia “fixar” o som (com
dispositivos
de
gravação
mais
apropriados)
e
repeti-lo
várias
vezes
e
demoradamente. Deste modo, era como se pudesse “apanhar” a materialidade
sonora
com
a
escuta.
Este
pensamento
musical
gera
duas
vertentes
importantíssimas. Se, por um lado, pensar a materialidade do som é escapar dos
parâmetros limitados (altura e duração) que a música tradicional sustentava, uma
106
vez que a materialidade sonora não vai ser encaixada nestes parâmetros, por outro
lado, também põem em movimento a “escuta que apalpa esta materialidade”. Mas,
o “palpável” com a escuta retoma o abstrato, uma vez que é escuta. Assim, o autor
abandona a idéia de música concreta e passa para musique expérimentale (1953)
e, posteriormente, chega à música eletroacústica (1956).
Como o empenho dos compositores vinha no sentido de criar métodos
composicionais que abarcassem as novas sonoridades, Schaeffer também investia
no sentido de fazer uma música a partir dos sons complexos do cotidiano, pois
“tratava-se de recolher o concreto sonoro, qualquer que fosse sua proveniência, e de
abstrair-lhe os valores musicais contidos em potencial ” (Schaeffer, 1988 p.23).
A problemática musical do compositor vai, então, ao encontro de se apropriar
do fenômeno sonoro49, independente de sua proveniência, para alcançar o “objeto
sonoro”50 e, abstrair dele outras potências musicais. Essa dinâmica passa pela
escuta e, neste sentido, o autor monta quatro modos de escutas para que, num jogo
de permutações entre estas, possa se atingir o “objeto musical”. As escutas não são
seu foco mas, sim, podemos dizer que elas são uma espécie de guia. Por isso, o
que é potência na obra de Schaeffer é exatamente o que estas escutas inventam, e
não as categorias de escutas. Portanto, tem-se aqui uma poética da escuta geradora
de novos agenciamentos musicais que, apesar de algumas vezes criticada (intenção
correta de escuta, objetos convenientes),inventou sonoridades nomeadas (efeitos
audíveis em tipo-classe-gênero-espécie), libertou a linguagem musical de seus
parâmetros inventando uma nova poética e, junto desta liberação sonora, a escrita
musical também saiu de seu discurso linear e alcançou uma expansão e múltiplas
ramificações (François Bayle apud Garcia, p.33).
A poética da escuta de Schaeffer faz permutações entre quatro modos de
escuta. Estes modos já foram exaustivamente descritos por vários autores e
49
Como pensamento filosófico, Schaeffer busca em Husserl uma postura fenomenológica que consiste em
estudar o fenômeno tal qual nos aparece através da consciência. Junto deste pensamento, também está a
“intencionalidade”, uma vez que os estudos dos fenômenos visavam não o estudo do mundo e, sim, da
consciência, uma consciência intencional. Um outro componente fenomenológico que Schaeffer transporta para
sua idéia musical é o de “redução fenomenológica” obtida através da suspensão de uma crença no mundo
exterior em prol de uma concentração da percepção em si. Com este conceito fenomenológico, o compositor
fundamenta a “escuta reduzida”, uma vez que a percepção na entidade da consciência é ressaltada como o único
caminho de acesso à realidade.
50
O conceito de “objeto sonoro” foi desenvolvido ao longo de sua obra mas, é no “Traité dês Objets Musicaux,
1966”, que o “objeto sonoro” é o ponto central.
107
estudiosos schaefferianos mas, aqui, vamos usá-los como guia para ouvirmos a
cena da mulher-sussurro. Cabe, inicialmente, evidenciar que a língua francesa
propiciou esta idéia quaternária, uma vez que a escuta, nesta língua, já se apresenta
ramificada. Este mesmo fato não seria possível em português, por exemplo, pois
temos somente o ouvir e o escutar. Vejamos então, os quatro modos de escuta.
O ouïr (modo um) – é um dispositivo sempre presente, uma coleta de
informações, mas nem sempre consciente. É o ruído de fundo que embora estamos
ouvindo, não nos damos conta dele mas, nosso corpo-escuta conhece muito bem
este dispositivo, pois perante tal circunstância elevamos a voz.
Este foi o movimento que a mulher-sussurro fez na primeira cena quando foi
levada para fora do quarto. Sua escuta-pele; nas dobras do corpo-sussurro produzia
no corpo-voz, uma sonoridade mais aguda (o sussurro intensificava-se e deslocavase para os agudos). Eis, aí, o ouvir modificando a voz e criando uma marca no
corpo-voz.
O écouter (modo dois) – Na cena II, quando chegamos à porta do quarto e
batemos, havia uma “escuta em supensão”, uma subjetividade na espera. Para
Schaeffer, o escutar é este movimento de suspensão, uma espera de algo sonoro
relacionado com um contexto extra-musical. Ainda na cena II, quando estávamos
aproximando-nos da mulher-sussurro, os sons do corredor e as vozes de fora não
mais penetravam na nossa escuta porque, nesta condição, tínhamos o ouïr-écouter
– uma escuta câmera, ou seja, uma escuta enfocada. Porém, quando começamos
escutar o sussurro, não tínhamos mais uma escuta enfocada e, sim, uma escuta
porosa, que tateava a sonoridade do sussurro nas suas qualidades. A esta escuta,
que começa a se transformar em tatilidade, pois não se atém somente ao enfoque
mas, sim, faz uma molecularização com o timbre, Schaeffer chama de entender
(modo três).
No entendre, o sussurro sempre escapa, porque no bloco escuta-som o que
se tem é sempre um processo de desterritorialização (a escuta desterritorializa o
som que é desterritorializado pela escuta). Neste sentido, é necessário avançar para
um outro ponto, o Comprendre, que é da dimensão do sentido enquanto significado.
É como se pudéssemos, através de significados, “enquadrar a escuta-som”; então,
criamos um conceito sonoro.
108
Os quatro modos se intercalam, sobrepõem-se; não são separados e, sim,
fazem misturas e passam uns pelos outros. Nenhum dos modos, portanto, são
exclusivos (Smalley, idem, p.7)
Se antes tínhamos falado de processo de molecularização da escuta, em
devir-som, em escuta-pele, em dobras de escutas, de escuta porosa, ao tratar
desses quatro modos de escuta, apesar das suas variáveis permutações, não seria
“enquadrar a escuta”? Não estaríamos indo no sentido oposto das microimpressões?
Além disso, criando um critério a priori de escuta não estaríamos limitando o campo
virtual das sonoridades? Estes pensares já foram acionados pelas poéticas musicais
de outros compositores (François Bayle, Michel Chion, Pierre Henry)51 e também
Dennis Smalley, Silvio Ferraz, Rodolfo Caesar , Fátima Santos. Porém, relevante é
que a poética de Schaeffer é uma máquina musical52 pois, através das categorias, o
autor inventou um outro universo de sonoridades e, um corpo-instrumento não mais
atualizado na visualidade e, sim, na dinâmica da escuta.
Denise Garcia, tomando por base Michel Chion (1983), resume sete critérios
morfológicos de Schaeffer : de matéria – massa (modo de ocupação no campo das
alturas pelo som) e de timbre harmônico (qualidades anexas associadas às massas);
de matéria de sustentação do som – grão (micro estrutura de matéria do som
evocando o grão de um tecido ou de um mineral); critério de sustentação de forma
(oscilação, vibrato); critério de forma : dinâmica (evolução do som nos campos das
intensidades); critério de variação : perfil melódico (perfil geral desenhando por um
som que evolui na sua tessitura); e, perfil de massa (perfil geral de um som cuja
massa é “esculpida” por variações internas) (p. 53-54).
Ora, agora temos um outro repertório sonoro. Esta é a invenção e, embora
tenha escutas categóricas em Schaeffer, elas produzem. Parece que Schaeffer se
traiu pela própria escolha – a escuta - pois, ao querer atingir um aspecto monádico
do som, apesar de critérios reducionistas, ele escapa da representação, entra no
mundo da invenção, e se torna um disparador de mundos sonoros.
51
Para maiores detalhes sobre este assunto, ver Denise Garcia que, ao descrever sobre os modos de percepção na
música eletroacústica, relaciona o pensamento dos compositores que criticaram e ampliaram a obra de Schaeffer.
52
Uma máquina musical é uma máquina estética, uma potência de conexão com o infinito. O conceito de
máquina foi criado por Deleuze e Guattari em O Anti-Édipo e é da ordem de uma abstração não representativa.
109
Aqui, se vê o corpo-instrumento sendo desconstruído pela potência da
virtualidade do corpo-sonoro. Schaeffer faz uma mutação no corpo-instrumento. Ao
desterritorializá-lo da visualidade e reterritorializá-lo na escuta, ele cria um corpo
muito mais insólito e prenuncia o corpo-espectral da música contemporânea.
3.1.1 Pausa para um diálogo: escuta como técnica
A musicoterapia, como já descrevemos, diferente da música, tem feito poucos
ensaios no sentido de refletir sobre a escuta musicoterapêutica. Porém, algumas
dessas reflexões têm considerado a escuta como uma pedra preciosa da clínica.
Este é o caso do projeto de investigação “Música e Psiquismo” em desenvolvimento
pelo grupo de Investigación y Clínicas Musicoterapéuticas – ICMus (grupo de
investigação de parceria triádica com Argentina-Brasil-México que é coordenado
pela
musicoterapeuta
Patrícia
Pellizzari).
Os
membros
da
equipe
de
musicoterapeutas argentinos (Maria F. Barbaresco, Darío Caniglia e Romina
Bernardini) dedicam-se a estudar “La escucha clinica em Musicoterapia”.
Suas
metas são: a construção subjetiva da escuta, o perfil do musicoterapeuta em função
da escuta e as manifestações clínicas do escutar em distintos campos de
abordagens.
Em agosto de 2000, o grupo estava na etapa da passagem do Ouvir para o
Escutar (terminologia Schaefferiana) e apresentaram o trabalho “Del oir al Escuchar”
no III Simpósio Argentino de Musicoterapia (2000).
Nesta etapa do trabalho, os autores fizeram uma leitura superficial de
Schaeffer, pois entre as múltiplas possibilidades desta máquina musical de escuta,
os pesquisadores foram atraídos pelas categorias de escutas (um jeito “concreto” de
se enquadrar esta volátil impressão) e fizeram uma síntese reduzindo o ouïr e
écouter (modos I e II) como indícios (causas) e o entendre e comprendre a valores
(sentidos), chegando à conclusão que o “objeto sonoro” da escuta “ é tanto indicial,
como de valor e implica em um processo de construção” (p.4).
Porém, os autores também conectam a escuta schaefferiana a uma escuta
subjetiva (considerando que a escuta se define por um objeto de escuta havendo,
portanto, uma relação sujeito/objeto que se organiza com as fases evolutivas: ouvir
110
autoerótico, escuta narcisística e escuta objetal); às categorias de escutas - escuta
indicial, escuta de apreensão imediata (reconhecimento, contraste, classificação,
seleção e combinação); intersubjetiva de Roland Barthes; e, aos mecanismos de
escutas de Rowell - escuta sinóptica, escuta de deciframento, escuta de associação.
Não vamos nos deter nesta rede que, como vemos, parece que tem como
objetivo enquadrar e localizar esta aventura chamada escuta que, por não ter voz, é
sempre capturada por regimes significantes.
Enfim, esta imensa grade com várias categorias fundamentam, segundo os
musicoterapeutas pesquisadores, a escuta musicoterapêutica em três planos:
a) a escuta do musicoterapeuta: tem por objetivo a escuta do outro (p. 7)
b) a escuta como técnica: o musicoterapeuta toma como base o Ouvir e o
Escutar (Schaeffer) e, ao “localizar” em qual movimento o paciente está (ouvir ou
escutar), alcança assim o próprio objeto da escuta.
c) a escuta do paciente: transforma-se por categorias fenomenológicas,
subjetivas e de desenvolvimento. Deve ser investigada em que categoria de escuta
ele se encontra.
Os pesquisadores deixam exemplos clínicos de como a escuta como técnica
pode ser utilizada, ao que segue:
a) descobrir em qual categoria de escuta o
paciente está e, b) tentar deslocar esta escuta. É interessante reparar que em um
dos casos apresentado (um paciente cardíaco grave, em um hospital, à espera de
uma cirurgia) localiza-se uma escuta próxima do entender e compreender: o
paciente “compreende” a obra escutada e comenta que, o que está ouvindo, é
Beethoven e, provavelmente, é o concerto “O Imperador”. Então, segue-se a
seguinte interpretação “há um saber histórico conceituado para não falar do saber
sobre si mesmo”.(p.8)
Ora, deste ponto, podemos trazer o corpo-dançante da primeira cena. O que
fazia aquele corpo-dançante que atraiu o violinista? Ele escapava da condição de
sujeito “insano” e fazia um devir-corpo. Algo parecido acontece com o paciente que
ouve Beethoven. Ele já foi desterritorializado, já escapou da condição de “paciente
cardíaco” e começa a produzir um mundo de escuta. Será que não é este um estado
de saúde, ou seja, um deslocamento de um paciente cardíaco para um ouvinte que
é afetado por Beethoven? O próximo passo não seria acompanhar o movimento da
111
produção de escuta deste ouvinte? Será que organizar a escuta em redes de
categorias a priori com o objetivo de identificar em qual estado ele se encontra,
também não é por um “olhar sobre a escuta”?
Deixando em aberto estas questões, voltemos ao campo musical com suas
poéticas de escutas para, novamente, trazer mais potências de sonoridades e
críticas para o campo da musicoterapia.
3.2 UMA POÉTICA DA ESCUTA
No capítulo I, quando vimos a idéia de silêncio de John Cage, tínhamos
descrito que a poética deste autor também se desenvolve em relação ao ouvinte. A
partir do serialismo e da virtualidade da série que Webern alcançou, Cage
considerava que o compositor agora estava livre para trilhar seu próprio caminho e,
neste sentido, ele vai criar um trajeto que não pode ser previsto, que não se dá a
priori, uma vez que, o inusitado e o desconhecido são experimentados. Os sons
devem ser “assim como eles são, em si mesmo, ao invés de serem explorados para
expressar sentimentos ou idéia de ordem” (Cage, 1976, p. 69)
O que está em jogo aqui são os sons, quaisquer sons, intelectual ou não, uma
experiência do silêncio que, como vimos, para este compositor é a potência sonora.
A poética de Cage se dá em uma época moderna que, como já descrevemos,
havia uma preocupação de aproximação do artista com o público. Assim, Cage é
influenciado pelo “ver-através” de Marcel Duchamp (na transparência que atravessa
a superfície do vidro, revela um ver-através, que dilui as fronteiras e remete o
espectador ao outro lado, ao ambiente, à vida).
Este tema é um dos pontos de aproximação da arte com a vida no qual Cage
incorpora de Duchamp, considerando que, o silêncio, com sua potência de vida (os
sons que nos rodeiam - ruídos, sons ambientais, sons naturais), é um campo para a
experimentação, uma vez que, “quaisquer sons podem ocorrer em qualquer
combinação e continuidade”. (Cage, 1976, p. 8). É no som livre da concepção de
arte, que Cage fala do “ouvir-através”, ou seja, ouvir através de uma obra musical
que é, ouvir o silêncio, uma potência de criação.
112
Por este prisma, o artista “não é mais um ‘fazedor’, nem suas obras são
‘feituras’ mas, sim, ‘atos’” (Santos, p.82). E, por conseguinte, o ouvinte “... ele tem
ouvidos, deixe-o usá-los” (Cage, 1985, p.30).
Como o leitor sabe, a escuta nas suas dobras vai criando uma escuta-pele
elástica, um dentro/fora que constrói uma atmosfera nos devires. Cage também
rompe com a relação sujeito-objeto, posto que a apreensão sonora não se
desenvolve no tempo, contrário a isto, a sonoridade é dotada de uma temporalidade
constitutiva de seu próprio modo de acontecer. É uma sonoridade no ritornelo.
Perante este distanciamento da relação causa e efeito, Vera Terra (2000)
descreve que este fluxo orientará para uma dupla recusa: “por um lado do sujeito
enquanto artista criador e, de outro lado, o objeto enquanto arte” (p.77). A obra agora
passa a ser um processo não-intencional, posto que, “ela deixa de ser a expressão de
idéias, sentimentos, gostos e hábitos de um sujeito (o artista) e se realiza em um plano
alheio a qualquer forma de subjetividade: o das operações do acaso”(p. 47). Ao
renunciar à obra em prol das operações do acaso, a obra de Cage passa a ser uma
“poética de escuta” (Shono apud Santos, 2002, p.92) isto porque, na idéia de poética “ o
ato de escutar constitui-se também como um ato de compor” (idem, p.91).
Esta composição da escuta se dá no jogo de afectos e perceptos, (OqF, 1992, p.
217-272),. Os afectos, como já descrevemos no capítulo II, são os devires não
humanos do ser humano, as sonoridades, e os perceptos são os “sonorizantes”, pois o
ouvinte “ não só ouve um complexo sonoro, mas se torna parte do tecido sonoro:
digamos que o sujeito se transfigura passo a passo em som, para praticamente
percorrer os entremeios desse som” (Ferraz, 1998, p.153). Portanto, o ouvinte
“literalmente constrói o que ouve, ele é quem compõe. O objeto sonoro apenas dispara,
ele não determina esse processo cognitivo” (idem, p.155-6). É o ouvinte que, na
aventura do ritornelo (num movimento incessante de territorializar, desterritorializar,
reterritorializar) vive os jogos dos devires: devir-outro, devir-música, devir-criança, devirmulher, devir-animal, devir-som, devir-volume : porque viver os sons é um outrar-se em
sons.
113
3.2.1 Pausa para um diálogo: escuta - uma energia em deslocamento
No livro “Listening, Playing, Creating: Essays on the Power of Sound”(1995), a
musicoterapeuta Carolyn Bereznak Kenny53, especificamente na parte sobre escuta,
apresenta o pensamento de Dorit Amir, uma musicoterapeuta israelita.
O pensamento de escuta apresentado por Amir fundamenta-se na separação
sujeito/objeto, uma vez que a autora considera a existência de uma escuta interna e
outra externa, sendo a primeira uma sincronia com os próprios sons internos, “é
uma mensagem interna, que vem de dentro do Eu” é um momento de “estar consigo
mesmo” numa vivência completa em vários níveis (p.53-54).
Já, a segunda, esta
acontece
quando o ouvinte abre a porta para o seu coração e permite que os
tons e ritmos vibre seu mundo interno e privado”. A escuta externa
pode ser vista como um movimento de fora para dentro. Para permitir
que esta escuta aconteça, é preciso estar aberto para receber a
música sem julgamento ou idéias pré-concebidas. Uma habilidade de
“estar totalmente na música”. (p.53)
Bem, como vimos até aqui, não há um mundo externo e um interno e, sim,
uma dobra ou, ainda, uma escuta-pele que vai compondo um volume, uma
atmosfera (José Gil) que compõe a própria escuta. Mas, o que é relevante no pensar
de Dorit Amir é que, apesar da dicotomia (interno X externo), ela se esforça para
libertar a escuta, apresentando o conceito de entrainment (encadeamento) que vem
de um pensamento da física (Goldman – 1988).
De uma maneira extremamente resumida, podemos dizer que este conceito
considera que: vibrações rítmicas mais ativas afetarão vibrações menos ativas
ocorrendo, neste engate, um outro processo de oscilação.
53
Carolyn Kenny enviou para vários musicoterapeutas o título: Listening, Playing, Creating : Essays on the
Power of Sound convidando-os a escrever sobre estes temas. Assim, o livro apresenta vários artigos de lugares
diferentes (Europa, Estados Unidos, Israel, Canadá e México), com pensamentos diversificados (na prática
clínica e na formulação teórica), criando uma espécie de mapeamento sobre estes três temas.
114
Para a autora, a escuta tem este potencial, ela “é uma energia que vai em
todas as direções ao mesmo tempo: de fora para dentro, de dentro para fora, de
cima para baixo, de baixo para cima, da direita para a esquerda e assim por
diante”(p. 54).
Nesta relação de oscilação, o jogo das escutas no setting se dá numa
dinâmica de oscilação e de mudança de direções. A relevância deste pensamento é
que a escuta, aqui, vai ser pensada no jogo de “atração” e “ativação”, e não como
uma categoria a ser identificada.
Entretanto, mais próximo do pensamento de escuta como ato de composição
está a musicoterapeuta Carla Francalanci (1992) que, na monografia “Escuta e
Subjetividade: a importância do pensar em Musicoterapia”, toma a subjetividade
como um “ponto de escuta”, isto é, a partir de um ouvir, ocorre a criação de um
espaço que se desloca entre o som, o silêncio e o ruído. A subjetividade da escuta
se dá exatamente na criação deste espaço. Por este prisma, não se trata mais de
enquadrar a escuta em categorias, mas de acompanhar os trajetos na criação de
seus espaços, ou seja, os “pontos de escuta”.
Contudo, se pensarmos a escuta nos afetos e nos perceptos não teremos
ponto, e sim, teias de linhas em produção de mundos. E, nas dobras, não há um
interno e um externo mas, sim, no jogo das forças, a escuta é habitada de
sonoridades porque as sonoridades são inundadas de escutas.
***
Convido o leitor para a última metamorfose da cena. Retomemos a cena II.
O leitor lembra que estávamos agachados, próximo ao corpo da mulhersussurro. Nossa escuta fazia devires com o timbre daquela vocalidade...
115
3.3 CENA III – UM DEVIR BICHO
... nas microimpressões do registro vocal do sussurro, havia uma textura (um
“entre” a construção e não construção do som) que ia cunhando pulverizações de
vibrações ásperas, misturadas com golfadas de ar que ora repetiam pontos de
ataques, ora se perdiam e criavam pequenas variações. Às vezes, a intensidade
gerava uma pequena expansão sonora, outras vezes, os sons se tornavam
granulados. Porém, apesar destas mutações, havia uma ronda que capturava a
nossa escuta nesta vocalidade e criava uma espécie de plano movente. Nosso
corpo agachado penetrado pelas sonoridades do devir-som, um devir corposussurro, ensaiou movimentos de vocalidade. Havia uma “sonoridade por vir” (nossa
voz, em processo de devir corpo-sussurro) que ensaiava uma forma de expressão.
Uma vocalidade por soar...
E então, agora, nosso corpo-voz, agachado na frente da mulher-sussurro,
penetra no sussurro com um som grave de longa duração com um leve vibrato. Este
som habita os “buracos sonoros” (os pequenos cortes) do sussurro, e a textura do
sussurro começa a se amalgamar com o som grave. Esta mistura vai se
transformando em um som nasalado.
O sussurro, tal qual na cena anterior, investe na intensidade. Parece que ele
não é mais tão secreto: a intensidade revela pequenos vibratos e as vibrações
ásperas começam a deslizar; há sons que começam a expandir, ainda que
timidamente, no espaço relacional. Os “buracos sonoros”, bem menos aparentes,
agora passam a ser uma mistura de timbres. O sussurro começa a se transformar
em murmúrio.
Nossa escuta-timbre desloca-se do grave para uma região
intermediária e começa a rodear o murmúrio com uma sonoridade boca chiusa.
O corpo-murmúrio desencosta a cabeça do joelho porque a sonoridade
começa a dilatar seu espaço-corpo. Então, vemos o rosto, o olhar é distante, mas a
boca parece buscar sonoridades. Nossa escuta do inaudível, aquela que ouve
vozes, procura preencher aquele rosto-boca com vozes, deixando passar pelos
corpos: muxoxos, cochichos. E, de repente, encontra um agudo curto e fraco que
agora pinça o silêncio. O corpo-murmúrio pára o balanço e o seu olhar parece
percorrer o quarto.
116
Nossa escuta porosa investe num agudo staccato e começa a marcar o
silêncio com variações de agudos. O olho-escuta da mulher fita o nosso rosto-boca,
o pescoço gira na direção dos sons que se espalham. Nossa voz-olho põe-se a ligar
os agudos e começa a desenhar uma sonoridade que desliza dos agudos aos
graves, preenchendo o espaço entre os dois corpos.
De repente, o esboço de um riso e, corpo-murmúrio se fecha novamente.
Nosso olho-corpo silencia a voz. Há um silêncio potente...
Enquanto reorganizamos nosso corpo-escuta, naquele silêncio em produção,
um som inusitado corta o espaço-silêncio. O corpo-murmúrio é afetado e,
rapidamente, procura a fonte sonora invasora. Então seu olho-câmara, fixa a janela
(ali tem uma pomba que arrulha).
Também afetados, levantamos em direção à janela. De lá, olhamos para a
mulher e nosso corpo a convida para a janela. Seu olhar se intensifica no nosso
gesto, mas o corpo parece grudado no chão. Então, nossa escuta porosa (aquela do
inaudível) ensaia uma sonoridade e nossa voz diminui o espaço corpo-janela,
criando um chamado para o corpo-murmúrio, uma espécie de embalo com aqueles
agudos que anteriormente, eram espalhados. O olhar-murmúrio se levanta para a
sonoridade e o corpo vem junto.
Na janela, as duas escutas novamente se dobram em escuta-pomba, um
devir animal.
Enquanto estamos na janela, nosso olho-câmera avista, lá no pátio, o corpodançante (aquele que dançou no palco com o braço-arco do violinista); ele está
dançando e cantando numa roda grupal. Alguém toca um violão, outros cantam e
dançam. Há risos, escolha de músicas, um ritual de canto. Lá, não tem olhar sobre o
corpo-dançante e o braço-violão, num ritual de canto, dança com o corpo-dançante.
A pomba voa, e junto com ela, a mulher também, no olhar-pomba. Depois de
fitar o infinito, ela sai da janela e senta na cadeira, mantendo o olho-pomba.
117
3.3.1 Uma pausa para agenciamentos
O devir é o movimento desta cena; o devir animal que não é se transformar
em pomba, uma vez que o devir não é uma relação de correspondência, de
identificação, nem um estado de regressão ou de progressão mas, sim, um desejo
de pertencer a outros continuums cósmicos, um desejo de multiplicidade. Fazemos
devires animal, mineral, vegetal. É uma vizinhança imaterial que nos tira da forma
homem para a vertigem do inumano.
No devir molécula sonora, os graves se espalharam criando um espaço mais
denso. E, então, o sussurro, também molecularizado, começa a se misturar e logo
os espaços sonoros formam uma teia movente que se desterritorializa para uma
sonoridade mediana. Nestas misturas, o sussurro já é outro, porque também foi
desterritorializado.
Tudo isso, são agenciamentos constitutivos de desejo, “o próprio desejo que
passa e se move” (D. p.114). O desejo no ritornelo no jogo das escutas.
***
Esta é a aventura da escuta musicoterapêutica, um movimento de devir no
tempo do ritornelo.
A prática diária do musicoterapeuta se dá nessas mutações, independente da
área de atendimento ou da metodologia empregada. Existe, sempre, uma escuta
em devir.
É na prática clínica que a escuta, em musicoterapia, também tem uma escuta
que escapa. Ela é da ordem das microimpressões, pois se lança nas sonoridades
para ouvir o burburinho das vozes que escapam e o corpo sem órgão.
Aí está o ponto cego, que o musicoterapeuta argentino Diego Shapira (1996),
já tinha detectado em seu artigo “Teoria, Lenguaje y Ética em Musicoterapia” quando
alertava que havia uma escuta invisível que deslizava sorrateiramente porque não
era evidenciada na linguagem e nem nas expressões sonoras.
118
Não seria este ponto cego da escuta musicoterapêutica a surdez que nos
moveu a enfrentar esta insólita teia da escuta?
Então, agora, já é possível falarmos que este ponto cego, ou esta surdez da
musicoterapia, pouco evidenciada, é um estado da escuta inaudível. Aquela que se
dá nas dobras porque vibra com a força dos afetos. Uma escuta porosa que caminha
no silêncio e inventa marcas de sonoridades. Mas que poucas vezes os
musicoterapeutas puseram no fluxo da escrita. Isto porque, a questão da escuta
musicoterapêutica não está limitada aos audíveis e, sim, na potência dos inaudíveis
(Coelho, 2001). É que lá, passa o burburinho do desejo de produção. Portanto, não
basta escutar a música do paciente, é preciso ser um cartógrafo sonoro.
3.4 CARTÓGRAFO SONORO
Mas o que faz um cartógrafo ?
Aqui, temos os movimentos de um cartógrafo descritos por Suely Rolnik (CS,
p. 66-90) e por Paulo César Lopes (1996, p. 133-136).
Um cartógrafo é comprometido com as “formações do desejo no campo
social” (CS, p.66). Ele não se compromete com querer entender, explicar ou revelar.
“O que ele quer é mergulhar na geografia dos afetos e, ao mesmo tempo, inventar
pontes para fazer a travessia: pontes de linguagem” (idem, p. 67). Mas, esta
linguagem é um “tapete voador”, porque integra história e geografia.
Um cartógrafo “aceita a vida e se entrega” (idem, p.68). Seus procedimentos
são a invenção sem protocolo formalizado, porque ele quer se colocar na adjacência
das mutações. No lugar de representação, ele prefere estar no fluxo das
“intensidades escapando do plano de organização, desorientando suas (próprias)
cartografias” (idem, p.68), pois ele sabe que é “um vigilante entre macro e
micropolíticas, complementares e indissociáveis na produção de realidades
psicossocial” (idem, p.69).
Não é possível definir o método, nem por referências teóricas ou por
procedimentos técnicos do cartógrafo, mas a sensibilidade é o seu trajeto.
119
Já que o cartógrafo não se apóia em estruturas estabelecidas, qual seria o
equipamento que um cartógrafo sonoro levaria quando sai para o campo das
sonoridades?
Ele leva no bojo marcas de escutas sonoras que, como estão sempre em
mutação nas dobras, servem como dispositivos para ativar fluxos interrompidos. Por
que ativar fluxos interrompidos? Porque a avaliação de um cartógrafo sonoro é o
grau de intensidade que as escutas permitem, os trajetos que elas podem suportar e
os movimentos que elas fazem na condição desejante da vida.
É por isso que ele inventa estratégias no ritornelo porque às vezes é preciso
desterritorializar e ser desterritorializado por sussurros, murmúrios, outras vezes, é
preciso territorializar um silêncio, fazer uma ponte sonora, para que os afetos
possam fluir.
Um cartógrafo sonoro sabe que as escutas intensas “nunca acontecem
quando
esperamos”
(Lopes,
1996
p.134),
porque
elas
circulam
nas
microimpressões, portanto, não é uma questão de projetar sonoridades e sim, de
tornar-se molécula sonora e viver os acontecimentos. E, então, ele experiencia os
movimentos de micropolíticas que são as linhas flexíveis, moleculares, que se dão
nas atrações e repulsas da escuta porosa. Uma escuta que não tem origem, que
não é centrada e nem periférica, pois é uma multiplicidade nos devires imprevisíveis
e inaudíveis.
Porém, as dobras da escuta também se movem pelas escutas rostificadas,
como vimos, anteriormente, o que também gera linhas duras, molares, mais
próximas de escutas mapeadas, a priori, indentificadas, prisioneiras de um “olhar
sobre a escuta”. Portanto, o cartógrafo sonoro é político, porque sua escuta faz
cartografias de macro e micropolíticas.
Quando Diego Shapira (1996) falava da relação ética do ponto cego da
escuta do cartógrafo sonoro, é provável que ele vislumbrava um espaço ético de
invenção, um espaço onde as várias escutas musicoterapêuticas, com suas
diferentes marcas, pudessem se encontrar e gerar um ponto cego, um silêncio
potente, que desfaria todas as escutas já demarcadas, para se inventar outras. Ora,
não é este o movimento da escuta musical? Não é isso o que compositores fazem?
Tomam uma marca de escuta e desmontam, desconstroem, criam linhas de fugas e,
120
aí, está uma escuta estética ética. É que a ética “diz respeito à afirmação da vida em
sua potência criadora;” (Rolnik, 1997 p.19) e das relações que se estabelecem nesta
potência.
Como vimos, o cartógrafo sonoro estabelece várias relações de escutas. Por
isso a ética do cartógrafo sonoro é esta: caminhar pelas escutas das diferenças para
que a própria subjetividade da escuta musicoterapêutica possa alimentar, destruir e
desmontar sua cartografia sonora.
Se é preciso alimentar a escuta do cartógrafo, quais são suas moléculas
sonoras? São produções musicais culturais que, em específico, o cartógrafo sonoro
brasileiro tem num vasto universo (a música popular, folclórica, os acalantos, os
cantos sacros, os cantos políticos, o canto carnavalesco, o canto dos mitos...) Mas é
preciso também alimentar-se de universos mais insólitos, estamos falando da
música contemporânea. É preciso ser marcado por sonoridades de moléculas
sonoras de Varèse, das vozes de Berio, Nono, Ligeti, e também ouvir o “ouvinte
compositor” de Cage, o silêncio de Scelsi, e ainda as sonoridades da máquina de
escuta de Schaeffer, a melodias timbrísticas de Webern, os sons debaixo da cama
de Rodolfo C. de Souza, a subjetividade da música eletroacústica brasileira enfim, o
cartógrafo sonoro tem que ser um antrofágico sonoro, que “vive de expropriar, se
apropriar, devorar e desovar” (CS, p.67) sonoridades.
São nessas dobras, na macro e micropolítica, nas escutas das diferenças, no
movimento inventivo da própria escuta, que o cartógrafo sonoro desloca a condição
de paciente para um ouvinte. Não se busca centrar uma escuta no sujeito e nem nas
necessidades dele. O que o cartógrafo sonoro quer são os devires, para que o
inumano invente mundos sonoros. Para tanto, é preciso deixar passar as vozes que
escapam e ouvir o burburinho do corpo sem órgão, porque
“A linguagem não é a vida, ela dá ordem à vida; a vida não fala,
ela escuta e aguarda” (MP vol.II p.13)
121
CONCLUSÃO - um intervalo
Nossa cartografia vai fazer um intervalo, porque nenhum cartógrafo sonoro
conclui nada, o que ele quer é que o caminho fique aberto para que os fluxos
continuem. Mas, é possível retomarmos algumas passagens que percorremos para
fazermos uma espécie de imagem síntese do nosso trajeto.
Buscávamos um desejo de “escuta musical clínica”. Vimos que ele tentou se
efetuar, mas não havia um plano que pudesse sustentá-lo.
Já no século XX, a subjetividade da música moderna colocou em xeque
estruturas estabelecidas, e as sonoridades entram no fluxo musical criando um
terreno de sonoridades autônomas e uma poética do ouvinte. Por outro lado, a
escuta clínica criou uma escuta com o outro, um outrar-se. Neste ambiente vimos o
nascimento do personagem psicossocial, o musicoterapeuta.
Se a música contemporânea colocou em fluxo as sonoridades, o
musicoterapeuta colocou em fluxo o ouvinte-paciente, porque deslocou um sujeito
paciente
para
um
ouvinte
que
cria
mundos
sonoros.
A
subjetividade
musicoterapêutica já trilhou vários caminhos, porém, uma clínica que tem como
potência desterritorializante a música, tem que ser desconstruída e reconstruída
sempre. A música contemporânea é um alimento potente para este movimento.
Seus fluxos têm desterritorializado vários pontos estratificados da escuta
musicoterapêutica.
Uma escuta que investe num, mesmo plano, relações heterogêneas, precisa
estar nas dinâmicas dos fluxos. Para tanto, é preciso convocar o cartógrafo sonoro,
pois ele, não se compromete com técnicas de escutas, nem com relações
identificáveis. Ele também não tem a ilusão de que pode centrar sua escuta no
paciente ou na música, seja por uma intenção clínica ou por um objetivo clínico.
Além disso, ele não espera que um conjunto de categorias possa dar um significado
para a inexistente escuta. Ele sabe que a escuta não existe, porque ela é sempre
inventada, ela é um ato de composição.
122
Nesta condição, seu anti-método enfrenta os acontecimento. Ele sai a campo,
deslizando entre as forças audíveis e inaudíveis. Seu esforço vai no sentido de ouvir
os fluxos do desejo. Deste modo, seu equipamento são as marcas de escutas que
servem como dispositivo para mover fluxos, e seu trajeto é criado nos movimentos
das moléculas sonoras que, às vezes, se dão em passagens molares do audível e,
outras vezes, nas passagens moleculares do inaudível.
No inaudível, a escuta é porosa e vive a aventura dos acontecimentos no
movimento do ritornelo.
Este é o desejo do cartógrafo sonoro, um desejo de estar nos acontecimentos
para ouvir o burburinho do corpo sem órgão em prol da expansão da vida. Porque o
cartógrafo sonoro sabe que sempre há um limiar de desterritorialização, sempre há
vozes que escapam, sempre há escutas para inventar.
‘
123
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