escutas em musicoterapia: a escuta como espaço de relação
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escutas em musicoterapia: a escuta como espaço de relação
LILIAN MONARO ENGELMANN COELHO ESCUTAS EM MUSICOTERAPIA: A ESCUTA COMO ESPAÇO DE RELAÇÃO MESTRADO EM COMUNICAÇÃO E SEMIÓTICA PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA SÃO PAULO 2002 2 LILIAN MONARO ENGELMANN COELHO ESCUTAS EM MUSICOTERAPIA: A ESCUTA COMO ESPAÇO DE RELAÇÃO Dissertação apresentada à banca examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Comunicação e Semiótica, sob a orientação do Prof. Doutor Sílvio Ferraz Mello Filho. SÃO PAULO 2002 3 Banca Examinadora Suely Rolnik Carlos Palombini Sílvio Ferraz (orientador) 4 DEDICATÓRIA Dedico este trabalho aos meus filhos Arthur e Igor que, ainda pequenos, vivenciaram os encantos e desencantos deste momento da minha vida. 5 AGRADECIMENTOS A todos aqueles que, de diferentes maneiras, ajudaram-me na construção deste trabalho e, em especial ao meu orientador e Prof. Dr. Sílvio Ferraz, pela sua escuta perspicaz. Aos colegas musicoterapeutas do Curso de Comunicação e Semiótica: Renato T. Sampaio, por me apresentar Deleueze e Guattari; Leomara Craveiro pelas inúmeras reflexões e pelo incentivo quando o desânimo me alcançava; à Ana Lea Baranow, pela presença de luta. Aos musicoterapeuta amigos, alunos e todos aqueles que estiveram comigo e me ajudaram e instigaram a enfrentar a escuta musicoterapêutica. À Maristela Smith e Dalvanir Linhares (in memoriam), que me iniciaram no caminho da escuta musicoterapêutica. Ao meu pai (in memoriam), por me ensinar a força do silêncio. Ao Paulo, pela paciência, compreensão, amizade, apoio e incentivo. À minha mãe, que sempre torceu por mim. Aos meus familiares, pela compreensão e apoio nos momentos difíceis. À Noemia, sempre presente. À FAPESP, pela organização, competência e pontualidade. 6 RESUMO Esta dissertação põe em foco a escuta musicoterapêutica e seus espaços de relação. A escuta, aqui, é pensada não como uma relação que concebe um som significante a um sentido significado mas, sim, como uma produção, uma escuta que inventa mundos. A pesquisa busca, nas produções e no pensamento da escuta musical do século XX, dispositivos para potencializar a escuta musicoterapêutica no seu espaço relacional. Os estudos são desenvolvidos a partir do pensamento de Gilles Deleuze e Félix Guattari, no que tange ao desejo de produção que fabrica escutas e no movimento do ritornelo. Também, busca-se, através dos regimes de signos, cartografar a subjetividade da escuta musicoterapêutica em seus processos de invenção dialogando com o pensamento da escuta musical do século XX. 7 ABSTRACT This dissertation focuses on listening in music therapy and its relation space. Listening, here, is thought not as a relation that conceives a signifying sound to a signified meaning, but as a production, a listening that creates worlds. The research seeks, in the production and thoughts of the musical listening of the 20th century, devices to increase the listening in music therapy in its relational space. The researches Deleuze and the are developed from the French philosopher Gilles psychoanalyst Félix Guattari's thought, taking, as the theoretical background, the idea of desire as a propelling engine, which we will call a production that makes listening. The main tool to think listening is the idea of movement contained in Ritornelo's of concept, formulated by Deleuze and Guattari. Another important concept which is used in the dissertation rules of is signs, that related with which to one what seeks Deleuze to make and a Guattari cartography called of the subjectivity of the listening in music therapy in its invention and relation processes, listening. dialoguing with the thought of the 20th century musical 8 ABREVIATURAS∗ DAS OBRAS CITADAS DE DELEUZE E GUATTARI, SUELY ROLNIK E JOSÉ GIL DELEUZE CC - Crítica e Clínica,1997. D - Diálogos, 1998. DELEUZE & GUATTARI AE - O Anti-Édipo Capitalismo e Esquizofrenia, 1966. MP vol. I - Mil Platôs, vol. I, 1995. MP vol. II - Mil Platôs, vol. II, 1995. MP vol. III - Mil Platôs, vol. III, 1995. MP vol. IV - Mil Platôs, vol. IV, 1997. OQF - O Que é a Filosofia? 1992. GUATTARI E SUELY ROLNIK CD - Micropolíticas : Cartografia do Desejo. SUELY ROLNIK CS - Cartografia Sentimental – Transformações Contemporâneas do Desejo, 1989. JOSÉ GIL MC - Metamorfose do Corpo - 1997 ∗ Como estarei me referindo com freqüência às obras de Gilles Deleuze e Félix Guattari, Suely Rolnik e José Gil, adotarei, no decorrer da dissertação, as iniciais de cada publicação, conforme apresentadas. 9 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................................ 11 CAPITULO I - UM OLHAR SOBRE A ESCUTA E UMA ESCUTA QUE ESCAPA..................18 1.1 Um Olhar Sobre a Escuta ...................................................................................... 19 1.1.1Desejo que produz: uma definição provisória ............................................... 19 1.1.2 Cena I – Encontros desencontrados ............................................................. 22 1.1.3 Pausa para agenciamentos ........................................................................... 25 1.2 Um Silêncio da Escuta Musical Clínica. ................................................................ 29 1.3 Uma Escuta que Escapa ........................................................................................ 32 1.3.1 Escuta Musical ou Devires?......................................................................... 32 1.3.2 Deixando a casa tonal.................................................................................. 42 1.3.3 Música fora do lugar.................................................................................... 48 1.3.4 Silêncio ....................................................................................................... 50 1.3.5 O Ritornelo da Escuta.................................................................................. 52 1.4 Território Terapêutico – A Escuta no Devir Outro................................................. 56 CAPITULO II – ESCUTAS EM MUSICOTERAPIA....................................................................63 2.1 Encontrando o Desejo ........................................................................................... 64 2.1.1 Cena II - devires sonoros ............................................................................. 64 2.1.2 Pausa para os agenciamentos ........................................................................ 65 2.2 Musicoterapia: uma escuta em construção ............................................................. 69 2.3 Regimes de Signos em Musicoterapia ................................................................... 75 2.4 Escuta de Invenção................................................................................................ 84 2.4.1 Setting: um local ou um espaço de forças?.................................................... 84 2.4.2 Qual o corpo que a musicoterapia escuta?..................................................... 85 2.4.3 Dinâmica no setting...................................................................................... 90 2.4.4 Escapando das escutas rostificadas ............................................................... 93 2.4.5 Ambientes de Escutas................................................................................... 97 2.4.5.1 Escuta em fluxo ............................................................................... 97 2.4.5.2 Escuta na Fala.................................................................................. 98 10 2.4.5.3 Escuta em análise.............................................................................. 99 2.4.6 De paciente a ouvinte – uma vertigem. ........................................................ 101 CAPITULO III – CARTÓGRAFO SONORO.............................................................................104 3.1 Escuta que produz ............................................................................................... 105 3.1.1 Pausa para um diálogo: escuta como técnica............................................... 110 3.2 Uma poética da Escuta ........................................................................................ 112 3.2.1 Pausa para um diálogo: escuta – uma energia de deslocamento.................. 113 3.3 Cena III – Um devir bicho................................................................................... 115 3.3.1 Uma pausa para agenciamentos .................................................................. 117 3.4 Cartógrafo Sonoro............................................................................................... 118 CONCLUSÃO ........................................................................................................................... 121 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS......................................................................................... 123 11 INTRODUÇÃO Escute ! Escute a música de seu paciente ! Esta é uma das primeiras frases que ouvimos no processo de formação em musicoterapia, afinal, entramos num universo de escutas. Mas este universo trata de uma escuta peculiar, ela é híbrida, porque é musical e clínica. Trilhar um caminho híbrido já não é um exercício muito fácil, o que dizer então, de se acompanhar uma escuta híbrida? Esta inquietude vem me instigando desde os tempos de estudante de musicoterapia. Naquela época, já me perguntava: como poderíamos ter um ponto em comum, se as escutas eram tão diferentes. Era nítido, neste período, minha tendência em buscar uma identidade na escuta. Tempos mais tarde, como professora de musicoterapia, tive a oportunidade de acompanhar processos de transformações de escutas musicoterapêuticas. Neste ambiente meu desassossego só crescia pois, ao acompanhar os alunos em determinadas disciplinas, ficava claro que se tratava de uma espécie de metamorfose de escutas num continuum. O desafio se impunha à medida que a escuta musical, que é um plano extremamente heterogêneo, colocava em movimento o pensamento clínico e criava trajetos inusitados. Minha inquietude, perante tal constatação, deslocava-se de uma busca de identidade para um processo de transformação. O que a escuta musical, que é tão flutuante, fazia com a escuta clínica e como ela gerava uma terceira escuta, a escuta musicoterapêutica ? Estas escutas foram se avolumando, a cada aula, a cada leitura ou a cada evento de musicoterapia, mais me instigava a subjetividade desta escuta. Comecei a rascunhar um pequeno esboço dos caminhos que a escuta musicoterapêutica trilhava. Na realidade, minha pretensão era estabelecer vários pontos no plano musical, para então, encaixar a escuta clínica. Uma espécie de grade que pudesse “apalpar”, mesmo que por pouco tempo, a indomável escuta musical num contexto clínico. Talvez, assim, com referências estabelecidas, a flutuante subjetividade da 12 escuta musical, poderia revelar pontos da transformação evolutiva da escuta musicoterapêutica. Veja o leitor que, se antes o caminho direcionava-se para a identidade desta escuta, pensá-la enquanto processo evolutivo significava estabelecer etapas a serem alcançadas. Mas, após ter entrado em contato com as idéias de Gilles Deleuze e Félix Guattari, através de um grupo de estudos de musicoterapia e semiótica, coordenado por um colega musicoterapeuta, Renato Tocantins Sampaio, estes pensamentos começaram a sofrer um abalo. A música, em Deleuze e Guattari, é uma potência estética, ética e política, jamais podendo ser aprisionada por pontos de referências ou modelos de identidade. Novamente voltei ao ponto inicial: enfrentar o plano movente e flutuante da escuta musical exatamente nas suas mutações. Porém, meu enfretamento só alcançou seu ponto insuportável quando, durante uma entrevista com o compositor professor Dr. Sílvio Ferraz, enquanto eu me esforçava para contar os meus desassossegos sobre a escuta musicoterapêutica, ouvi a seguinte frase: “Os musicoterapeutas não ouvem!” Esta dura frase foi o pulso constante da minha pesquisa. Obrigada, professor Sílvio! Se a questão não estava em pontos de referências e nem de identidades e, além disso, se não ouvíamos, o que estávamos criando? Aceitei o desafio. Com o início da pesquisa fui entendendo, ou melhor, escutando, o que antes não escutava. Isto nas aulas de Música e Repetição: a Música em Gilles Deleuze, de Objetos Sonoros e Objetos Musicais: Trajetória de Escuta na Música do Século XX, ou, ainda, nas aulas de Análise Musical e Semiótica, também nas de Micropolítica e Subjetividade. Então fui percebendo que não se tratava de uma surdez, mas sim, de fluxos interrompidos que foram estratificados por regimes de identidades de escutas, por escutas a priori, por relações dicotômicas de um sujeito que apreende um objeto sonoro para significá-lo, por reduções de escutas interpretativas, por retenções de intencionalidade de escutas. Enfim, a surdez era fluxo interrompido e catalogado. 13 Mas esta constatação só revelava que havia interrupção de fluxos. Portanto, era preciso ir além e se aventurar num movimento de engate no continuum dos fluxos. Mas que fluxos? que escutas? que sonoridades? qual subjetividade? Ah! como foi penoso este período, sempre com aquela frase perseguidora, os musicoterapeutas não ouvem! Aos poucos, fui me aquietando. Afinal, não se tratava mais de achar uma escuta surda mas, sim, de escutar o “fluir desta escuta”. Este fluir começou ser movimentado pelas imagens-pensamento de Gilles Deleuze e Félix Guattari e, apesar de ser iniciante nesta ontologia, senti que os fluxos se propagam nos heterogêneos em metamorfoses e multiplicidades que “...não tem sujeito e nem objeto, mas somente determinações de grandezas, de dimensões que não podem crescer, sem que se mude de natureza” (MP vol.I, p.16). Eis o enfrentamento: assumir uma escuta exatamente no seu processo de metamorfose, num devir música e num devir som. Não se tratava mais de buscar a identidade, categorias, e nem de achar etapas evolutivas mas, sim, de estar nas mutações das escutas, e escutar o que a escuta musical produzia na clínica. Mas, como escapar das armadilhas, que são tão atraentes, e não aprisionar a escuta ao sujeito-objeto? A aventura é mergulhar nas nuanças da escuta, dito de outra forma, que o objeto seja a própria escuta (Ferraz, 1998). Neste contexto, o pensamento de escuta vai se configurando junto com as perturbações de tipo sonoras, porque o investimento nas sonoridades se dá nas relações humanas. Ora, pensar a escuta neste presente trabalho é também trazê-la para a escrita. Então, um outro desafio se impõe, escrever as sonoridades da escuta. Podemos, então, propor a seguinte questão: como fazer da escrita uma escuta? A respeito desse tipo de enfrentamento, em que os heterogêneos são acolhidos pela escrita, Eduardo A. Vidal sinaliza que “...escrever, o ato de escrever, é fazer vir à tona, à superfície, esses elementos heterogêneos, que, numa sorte de paradoxo, a linguagem não contém, mas que não poderia ter sido produzido sem ela” (2000, p.480). A poesia, os contos, as crônicas, a literatura, alguns trechos filosóficos, algumas regiões da literatura musical criaram, na escrita, mundos de escutas. É a arte da escrita desvelando a escuta ou, no caso da literatura musical, a escuta ampliando e sendo ampliada pela escrita. 14 Neste esforço de trazer à tona sonoridades, foi preciso montar uma estratégia para que a escuta, na escrita, pudesse deslizar nos seus trajetos. Isso poderia ser feito com a apresentação de estudos de caso, mas, se assim fosse, a pesquisa iria ser construída sobre uma análise de escuta musicoterapêutica o que, provavelmente, limitaria a escuta a estas análises. Assim, montei uma cena sonora fictícia, que vai se transformando durante o percurso que vamos criar. É uma cena que apresenta processos de subjetividades da escuta musicoterapêutica nas suas relações estéticas, políticas e éticas. Ela surge no primeiro capítulo e tem quatro personagens que vão fazendo mutações de ouvintes: um músico, dois pacientes (uma mulher e um homem) e a presença médica. O ambiente da cena se dá exatamente numa conexão de campos, uma área da saúde que é visitada por personagens psicossociais da música. Estes personagens e as sonoridades da cena vão se transformando, deixando na imagem (assim espero) tanto traços de sonoridades, como mutações psicossociais. No decorrer da pesquisa, foi ficando claro que meu caminho não ia mais no sentido de estabelecer um objetivo intencional para mapear esta peculiar escuta como representações estáticas. Distante deste movimento, o que vou convocar é a potência de um cartógrafo que vai criando um desenho ao mesmo tempo que acompanha os movimentos de transformações de paisagens. Assim, pretendo cartografar, com o leitor, espaços relacionais de sonoridades e, acima de tudo, fazer movimentações com estes. Digamos que vamos construir um “diário de bordo”, como sugeriu Gregório Baremblit (1998) reportando-se ao pensamento de Deleuze e Guattari, ou melhor, um “diário de escutas” que contém não apenas o objetivo, mas também o subjetivo, o estético, o ético e o político. É dessa maneira que pretendo ir criando nosso “diário de escuta”. Nosso, porque conto com a escuta do leitor neste trajeto, que estará sempre aberto para paisagens de sonoridades em processos de mutação. Bem, temos então uma escuta em mutação (sem sujeito e sem objeto) e temos também uma cartografia que irá sendo construída nas sonoridades mas, ainda é preciso mais um elemento. Eu afirmei para o leitor que a problemática da “surdez da escuta”, que tanto me perseguiu, estava nas formas a priori de escutas. Para escapar desta armadilha, a estratégia vai se desenvolver no sentido de acompanhar o quê a escuta produz. Então, chegamos a um dispositivo importante: 15 qual é o motor propulsor da escuta? O que desencadeia suas metamorfoses, qual é a sua usina potencial? É o desejo, o desejo que se dá nas intensidades e, por isso, precisa de matérias de expressão para se efetuar. O desejo que vamos convocar não é um desejo da falta e, sim, um desejo que é “sistema dos signos a-significantes com os quais se produzem fluxos de inconsciente em um campo social” (D, p. 94). Por este contexto, toma-se o desejo de produção tal qual Deleuze e Guattari apresentaram em O Anti-Édipo Capitalismo e Esquizofrenia (1966) e, posteriormente, em Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia. Os movimentos do desejo nas produções de escutas também serão iluminados pelo pensamento de Suely Rolnik, em específico no que tange ao livro Cartografia Sentimental Transformações Contemporâneas do Desejo (1989). É neste sentido que a escuta, que estamos propondo, é uma marca de expressão que se efetua nas sonoridades, ou seja, um desejo de produção sonora. Se, era preciso por a escuta musicoterapêutica em movimento e, se o desejo é o motor propulsor da escuta, então a questão está em acompanhar o desejo que produz a escuta musicoterapêutica. Porém, como é uma escuta híbrida, musical e clínica, a cartografia que vamos construir percorre geografias distintas (territórios musicais, terapêuticos, e musicoterapêutico) e histórias de percepções (escuta do final do século XIX e escuta do século XX). Assim, o leitor irá acompanhar algumas produções de escutas, em específico na passagem da música tonal para música atonal (subjetividade da música contemporânea), bem como algumas produções de subjetividade da escuta clínica. No engate dos fluxos dessas duas geografias, chegaremos às produções da escuta musicoterapêutica. O capítulo I - “Um olhar sobre a escuta e uma escuta que escapa” - inicia com uma procura do desejo que produz uma escuta musical clínica. Ele é ilustrado pela cena I. Nesta cena, que se passa no final do século XIX, o leitor irá acompanhar ensaios de uma escuta musical clínica que apesar de fazer tentativas para produzir matérias de expressão, não se efetuou. A partir dos agenciamentos desses desencontros, entraremos no campo da subjetividade musical, onde iremos acompanhar processos de escutas, não só nos 16 seus movimentos estéticos mas, também, no movimento político, ou seja, a potência a-significante da música atingindo as micropolíticas que, como veremos, são movimentos que escapam dos regimes de representação e de ordem estratificadas, e inventam novos mundos de escutas. O trajeto permeará o fluxo da música contemporânea nas suas metamorfoses sonoras, nos seus processos de blocos devir-som, devir-instrumento, devir-voz. A subjetividade da escuta musical será vista a partir de um processo de dobra, a escuta dobrando sobre si mesma (Rolnik, 1997). Este processo se dá num corpo que não possui dentro e fora e sim, uma pele elástica que se estende ao interior e ao exterior, criando um volume que mistura todo o corpo – o fora penetra o dentro que se derrama no fora (Gil, 1997). Nesses movimentos, dobras da subjetividade e um corpo sem interno-externo, a escuta será uma escuta porosa que vai fazer blocos com o corpo: escuta-boca, escuta-mão, escuta-olho no devir som, devir molécula, devir timbre e com as intensidades. Como vamos experienciar o hibridismo de uma escuta musical clínica, também será apresentado uma escuta clínica que não se sustenta pela relação de transferência e contratransferência, pois o que convocamos é um devir outro, um outrar-se. O capítulo II - “:Escuta em Musicoterapia” - também retoma a cena I, porém, com modificações temporais e, conseqüentemente, com modificações dos personagens psicossociais. O leitor, nesta cena, irá acompanhar escutas em fluxos num ambiente clínico – um devir outro no devir som. Localizamos, através da cena transformada, o desejo da escuta musicoterapêutica e passamos a construir trajetos das produções deste desejo. Utilizamos a idéia de regimes de signos de Deleuze e Guattari (MP, vol. II) para acompanhar os regimes significantes e a-significantes que perpassaram este campo no seu processo de construção da escuta. Terminamos o capítulo levantando a hipótese de que a escuta musicoterapêutica vem ensaiando uma escuta do “corpo sem órgão” (MP. Vol. 3) porém, não se atem a este movimento. No terceiro e último capítulo - “Cartógrafo Sonoro” - voltamos ao campo musical para, de lá, trazermos mais provisões para a escuta musicoterapêutica. Buscamos na poética de Pierre Schaeffer (1966) - os quatro modos de escutas como uma máquina de produção do objeto sonoro – e no ouvinte, como um inventor da 17 própria escuta de John Cage (1976,1985), dispositivos para uma escuta inventiva e uma escuta que suspende a relação sujeito-objeto. Por fim, a última cena, apresenta um fluxo intenso de escutas em movimento de produção, no devir mulher, devir criança e devir animal. Evidenciando-se, assim, o ponto central de toda esta pesquisa. Uma escuta musicoterapêutica que desgruda da identidade, da interpretação, das categorias da relação fenomenológica e das intenções de escuta e investe na invenção da própria escuta. Se assim for, a escuta musicoterapêutica tem um comprometimento com a estética, porque inventa mundos, com a política, porque nas relações, investe em micropolíticas das sensações e com a ética, porque se dá na escuta das diferenças. Nesse contexto, o musicoterapeuta, se transforma em um cartógrafo sonoro. 18 CAPITULO I UM OLHAR SOBRE A ESCUTA E UMA ESCUTA QUE ESCAPA 19 1.1 UM OLHAR SOBRE A ESCUTA 1.1.1 Desejo que produz: uma definição provisória O assunto a ser tratado neste trabalho é extremamente volátil, pois se efetua por processos de subjetivação nas sonoridades. Sendo do mundo das sonoridades, tais processos se dão na escuta. Entrar no campo da escuta é se deparar com uma teia de invenções de mundos sensíveis e de sensação, em pleno movimento de construção e desconstrução. De sorte que, trazer alguns destes mundos para a escrita, se de um lado é dar voz à volubilidade da escuta (posto que a escuta não tem voz e, sim, ela inventa um porta-voz), por outro lado, corre-se o risco de emudecê-la (uma vez que a escrita é apenas um dos múltiplos fluxos que perpassam a escuta). Na eminência desta oscilação, talvez uma pergunta possa sustentar a aventura deste perigo: o que procuro escutar, junto com o leitor, no trajeto a ser percorrido? Espero que esta pergunta possa potencializar escutas e, por conseguinte, servir como um dispositivo para vozes de escutas. Um dos possíveis caminhos gerados pela pergunta anterior disponibiliza uma resposta aparentemente imediatista - procuro escutar, com o leitor, uma escuta musical clínica. Mas, se identificar uma mistura de escutas (musical-clínica) parece orientar nosso caminho, o próprio bloco já é multifacetado e, portanto, só aponta para múltiplas possibilidades. Além disso, dado que se trata de uma escuta com uma qualidade musical, longe de um caminho a ser seguido, o que se tem é um volume de complexidade, pois o que está em jogo é um ser de sensação (escuta) e uma potência crítica da arte (condição de invenção e de desterritorialização que a música produz). Neste sentido, o bloco musical-clínica configura-se exatamente nesta potência crítica da música. Dito de outra maneira, a escuta clínica será arrastada pelas forças de invenção e de desterritorialização das sonoridades. Assim, a procura vai no sentido de acompanhar mutações deste bloco, engendradas em espaços estéticos (de invenção), éticos (escuta das diferenças) e políticos (de relações). Sendo a escuta um ser de invenção no âmbito da sensação, ela, na teia da invenção de mundos sensíveis, é volátil e impalpável. No entanto, cria marcas 20 (escuta barroca, modal, pós-tonal, serial) e fabrica porta-vozes que testemunham suas transformações, haja vista que a música nunca parou suas metamorfoses e sempre nos apresenta outras possibilidades de escutas. Há, então, um motor propulsor que produz, em silêncio, escutas geradoras de mundos de sonoridades, Este motor é o desejo, o desejo de inventar sonoridades. Como estamos entrando no campo do desejo, cabe uma apresentação, inicialmente sucinta, de qual desejo estamos falando. O termo desejo tem uma presença marcante desde a filosofia clássica, adentrando para a filosofia moderna. Entretanto, na sociedade ocidental moderna, o desejo tem uma forte significação inserida pela psicanálise freudiana e suas hibridações. Porém, há também uma outra dimensão, que não limita o desejo a um sujeito subordinado por um sistema subsidiado pela falta e, na contramão, investe no enriquecimento e numa potente vitalidade de um desejo ontológico que inventa a própria realidade. Este desejo como produção, inicialmente, foi apresentado em O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia de Deleuze e Guattari (1966) e prolifera em outros campos. Por agora, não vamos fazer um detalhamento das vastas transformações que este pensamento gerou, pois durante o nosso trajeto, permearemos algumas dessas mutações. Assim, somente como ponto de partida (que não é um começo e sim um fragmento de um continuum), trazemos uma declaração de Guattari que, de maneira sintética e clara, resume a qualidade do desejo que vamos procurar. “Por não querer me atrapalhar com definições complicadas, eu proporia denominar desejo a todas as formas de vontade de viver, de vontade de criar, de vontade de amar, de vontade de inventar uma outra sociedade, outra percepção de mundo, outros sistemas de valores”.(CD, 2000, 215). Mais adiante, como iremos nos guiar pelo desejo na metamorfose das escutas, escutaremos com mais detalhes algumas forças de produção do desejo. Por enquanto, tomemos este desejo como uma vontade de inventar escutas e produzir outras percepções de mundos. Sendo uma invenção, o desejo não está no sujeito mas, sim, ele “é da ordem de produção e qualquer produção é ao mesmo tempo desejante e social”. (A E,1966, p. 308). Esta coexistência coletiva revela que 21 a escuta musical clínica, que iremos tentar escutar, brota das paisagens sociais e estas, por sua vez, produzem personagens sociais (músico, terapeuta, musicoterapeuta, ouvinte). Assim, há dois dispositivos co-extensivos: a produção da escuta se dando na própria invenção da escuta (posto que ela é da ordem de produção do desejo), e este dispositivo gerando os personagens de escuta. Existe, ainda, um outro componente que é relevante neste bloco escuta musical-clínica, por ser clínica1, não vamos ouvir somente uma escuta solitária que nas suas metamorfoses vai criando mundos e sim, uma escuta com o outro, que inventa escutas nas sonoridades do encontro com o outro. Anteriormente, apontamos que a imaterialidade da escuta sofre retenções quando instaurada na escrita. Como estratégia para esta dificuldade, vamos construir algumas imagens de sonoridades2 que brotam em personagens de escutas, para acompanharmos, através destas, as escutas criando mundos. De sorte que, convido o leitor para tomar parte de algumas metamorfoses de escuta nos seus movimentos de produções. Neste processo, o leitor terá posições dinâmicas, às vezes sendo o personagem da cena e, outras vezes, participará como observador para acompanhar desdobramentos de escutas de outros personagens. Nas variações, o leitor será perpassado por personagens de escuta: musical, clínica, musical-clínica e, por fim, a que propomos aqui, como escuta musicoterapêutica. As cenas que vamos apresentar, apesar de fictícias, são vivificadas tanto a partir de uma literatura histórica (cena I), bem como pelas minhas marcas de escuta musicoterapêutica (cenas II e III), experienciadas tanto nos atendimentos clínicos como em supervisão musicoterapêutica (neste caso, escuta da escuta). Todavia, o que enfoco, não são 1 A clínica que vou apresentar ao leitor, não é uma clínica da personalidade centrada no sujeito e no “Eu”,. Diferente desta abordagem, o que busco é uma clínica perpassada pela singularidade que se dá nos acontecimentos. No decorrer deste trabalho, espero atingir esta clínica singular através da escuta musical. O leitor pode encontrar no artigo de José Birman “Os signos e seus excessos – a clínica em Deleuze” in Gilles Deleuze uma vida filosófica. ed.brasileira 2000, p. 463-78, um detalhamento de como a clínica em Deleuze tem um caráter bastante diferenciado da clínica psicológica. Porém, por agora, a clínica que estou procurando atingir é uma clínica dos acontecimentos, que não se compromete com a interpretação e nem com a representação mas, sim, que a potência da música possa desterritorializar a análise centrada no sujeito e no objeto. Ver também Deleuze, G. (1997) Crítica e Clínica . São Paulo, editora 34. 2 Imagens de sonoridades é um lugar desenhado por idéias de sonoridades (som, vibração, voz, sussurro, timbres), com o cruzamento do personagem-ouvinte. Estas imagens serão criadas a partir da escrita. Portanto, o leitor também será um personagem-ouvinte, à medida que vai inventando espaços de escutas com as escutas dos personagens deste trabalho (músicos, terapeutas e musicoterapeutas). 22 estudos de caso e sim, cenas como dispositivos de imagens sonoras para que possamos, na volatilidade da escuta, alcançar a pragmática deste desejo que produz escutas musicoterapêuticas. Entremos na primeira cena criando imagens e sonoridades que delas ressoam. 1.1.2 Cena I – Encontros desencontrados O tempo é um pouco distante, em meados da segunda metade do século XIX. Estamos num hospital de doentes mentais, em uma cultura européia. Num quarto deste hospital, num canto próximo de uma janela, há uma mulher de meia idade que permanece agachada e encolhida, fechada sobre si mesma. Ela, incessantemente, desenha e redesenha seu restrito espaço com um sutil movimento corporal. Colado a este movimento tem um som, um fio de voz muito fraco que quase não se ouve, mas ele está ali, dando ao movimento do corpo uma sonoridade sussurrante. É uma pele-sonora3 que a protege do mundo e ao mesmo tempo a sustenta em seu próprio mundo. Alguém entra no quarto, aproxima-se do corpo-sussurro e puxa-o para fora do quarto. O corpo-sussurro acelera o movimento, tenta se defender, mas já está sendo levado. No trajeto, a mulher-sussurro intensifica a textura da sua pele-sonora, a voz fica mais aguda e entrecortada pela respiração ofegante. Aquela repetição do movimento começa a perder seu centro, ela se esforça para não ser arrancada do seu tempo. Já, no pátio do hospital, tudo fica maior. Deixam-na sentada de frente para um palco improvisado e, ali, ela tenta tecer sua pele-sonora procurando as partículas espalhadas do seu corpo-sussurro. No palco, tem um conjunto musical - 4 violinos, 2 cellos, 2 flautas e 1 clarineta- que se prepara para uma 3 “apresentação no hospital”. Os músicos Deixei em itálico todos os blocos: pele-sonora, corpo-violino, pele-sussurro, mulher-sussurro, corpo-dançante, corpo-voz, porque se trata de criar uma zona de vizinhança que se dá em blocos. O que se tem no bloco pelesonora, por exemplo, é a pele sendo desterritorializada na sonoridade e a sonoridade fazendo mutações de pele. Veremos este tema mais adiante quando iremos falar do corpo-instrumento da escuta. Quanto aos blocos, para maiores detalhes, ver Diálogos, op. cit., p.9-27. 23 começam a afinar os instrumentos, mas, de repente, param. Há uma invasão de sonoridade mais potente do que os ruídos da afinação musical, os “corpos da platéia” estão chegando, com movimentos estranhos, vozes bizarras, risos e gritos, falas repetitivas... No meio destes sons inusitados, os músicos preparam suas posições corpo-instrumento e iniciam os primeiros acordes. A mulher-sussurro, que ainda estava tentando recriar sua pele-sonora, de súbito, é perpassada por uma massa avassaladora, movimentos diferentes vindo de todos os lados com velocidades aterrorizantes. Cadê o sussurro? Por mais que ela se esforce para achá-lo, não o ouve mais... A segurança de seu sussurro perdeu-se num silêncio preenchido por um vazio assustador que a envolve e carrega com forças galopantes. Nestas condições, seu corpo também é afetado, pois o balanço é desmontado. No palco, dentre os músicos, um violinista empolga-se com as modificações dos corpos da platéia, seu olhar repara que alguns insanos fitam a orquestra com olhos arregalados, outros param estáticos; um grupo começa a dançar, alguns batem palmas, já outros, continuam nos seus mundos. O violinista é atraído pela visibilidade dos corpos mas, algo mais acontece porque seu braço-arco parece querer dançar com os corpos da platéia. De repente, um “ouvinte-alienado” sobe no palco e começa a girar em torno dos músicos. O violinista, imediatamente modifica seu corpo-instrumento e ensaia um movimento de tempo saltitante com o alienadodançante. Nesta metamorfose, o corpo-arco prepara uma transformação à medida que o corpo-dançante salta. Mas uma voz estridente rompe este bloco: “Sai daí e vá para seu quarto! Agora!” Apesar do corpo-dançante tentar escapar, a exclusão é inevitável. A música continua, apesar do silêncio incômodo do corpo do violinista. A mulher-sussurro, ainda afetada pela massa amorfa que tinha destruído sua pele-sonora, de repente se surpreende. Algumas partículas de seu próprio sussurro passam por ela. Então, põe-se a juntar essas partículas, recriando uma pele provisória, deformada, quase irreconhecível. Enquanto a mulher se perde e se acha no seu sussurro, os músicos continuam tocando suas músicas e, apesar de serem personagens do mundo musical, estes visitantes não puderam ouvir a mulhersussurro. Mesmo o violinista, que foi afetado pelo olho-corpo, não pôde escutar o corpo-música do insano. 24 De uma janela no primeiro andar, dois médicos, na espreita, pousavam seus olhares sobre os corpos da platéia. Havia uma pressa em recolocar o ouvinte no seu papel de “ouvinte-alienado”. Classificações como: não reage à música, ou reage à música; anotações e análises como: quais as músicas foram tocadas e quais as modificações dos corpos dos insanos? Quem relaxou e quem foi estimulado? Quem cantou? Quem dançou?... foram feitas de forma eficiente. Mas, não escutaram que algo escapou, não ouviram o sussurro da mulher, o corpo dançante do insano, e nem o desejo do violinista. Fim da apresentação. Os músicos guardam seus instrumentos, os funcionários se preparam para levar os pacientes para seus quartos. Ainda há muita confusão, mas parece que aquela força avassaladora está perdendo sua potência. A mulher começa a encaixar melhor os sons na sua pele-sonora, o corpo, na reconstrução do sussurro, começa a achar seu movimento. De volta a seu quarto, tudo volta... o corpo-voz no sussurro-movimento, continua se protegendo no exercício de tecer sua pele-sussurro. Os médicos passam pelos quartos para avaliar os resultados. O corpo- sussurro continua com o seu balanço, agora ele é um corpo rotulado por uma tabela de controle médico: não reagiu positivamente à música. Já, o insano que subiu no palco, apesar de estar preso no quarto por desrespeito às normas morais, continua cantarolando a música dançante; ele agora dança sem parar. E, também, é um corpo rotulado pela tabela médica: música dançante pode desencadear excitações e alucinações. O violinista, apesar de afetado pelos corpos da platéia e pelo corpo-dançante, agora, no seu universo musical, continua com seu corpo-violino. 25 1.1.3 Pausa para agenciamentos Vejamos como se deram alguns agenciamentos4 desta cena. Como a cena se passou no século XIX, a mulher-sussurro e o corpo-dançante (e agora não estamos somente no âmbito do imaginário da cena e sim, num contexto histórico) não estavam amarrados, embora estivessem em uma prisão “invisível” sustentada pela moral (duchas de água gelada eram eficientes “corrente morais” que os mantinham sempre enclausurados). Além disso, também passava por eles um código ambivalente: por um lado, como disse Michel Foucault (1991) em Doença Mental e Psicologia, eram sujeitos criados por sintomatologia e nosografia, por outro lado, esta mesma sociedade investia numa perspectiva de “normalidade” ou, dito de outra maneira, no “alienado”, que é produto do sintomatológico, procurava-se, em prol da moral, uma “normalidade (moral) escondida”. O médico, ainda como registrou Foucault (1972) em História da Loucura, num determinismo pungente, transformava a loucura em “um conjunto de formas cientificamente explicadas” (p. 515). Este é o período do triunfo da racionalidade científica. Portanto, o que perpassava a mulhersussurro e o corpo-dançante era um código duplo: “insanos” que continham uma “normalidade”5. Este fenômeno gerava uma espécie de “perseguição” por parte dos personagens médicos. Continuando com Foucault, as correntes usadas para deter os loucos dos séculos anteriores foram substituídas pelo “querer médico” (ibidem, p. 507). Neste determinismo refletido numa objetividade incisiva, várias técnicas terapêuticas foram utilizadas, dentre elas, a música. A relação “música e saúde” não se limita a este período6. Entretanto, no século XIX, despontam indícios de produções 4 Agenciamentos comportam componentes heterogêneos de diferentes ordens: biológicas, gnosiológica, imaginária, maquínica. Ver também, MP. vol.1 p.11-37. 5 No livro o Despertar para o Outro a musicoterapeuta brasileira Clarice Moura Costa (1989) descreve que no Traité Médico Philosophique sur L´aliénation Mentale ou la Manie, Philippe Pinel (1801), embora defendesse um tratamento mais humano para os paciente, estava implícito neste interesse, um investimento a um núcleo sadio do alienado, que sempre deveria ser preservado e desenvolvido. Para conseguir esta “preservação sadia”, medidas higiênicas (duchas frias), cuidados morais e físicos eram utilizadas. 6 Num esquema cronológico, a musicoterapeuta Cheryl D. Maranto (1993), no seu livro Music Therapy International Perspectives, apresenta dados documentados de práticas musicoterapêuticas clínicas e considera que o primeiro documento clínico (considerado musicoterapêutico) foi feito nos Estados Unidos em 1832. Este relatório equivale ao que hoje a musicoterapia chama de relatório musicoterapêutico. Já num sentido mais histórico, Clarice Costa (1989) faz um mapa bastante elucidativo mostrando uma panorâmica histórica das relações “música e saúde” desde os tempos mais remotos. A autora apresenta textos com indicações musicais para “doentes mentais” desde o século XII. 26 distintas de escutas que reverberam, posteriormente, nas produções de escutas da musicoterapia do século XX, nas quais iremos nos deter. Quando a área da saúde (especificamente os hospitais psiquiátricos) foi buscar na música possibilidades terapêuticas (implícito aqui a “moral” terapêutica), surgiram três tipos diferentes de personagens sociais, configurados da seguinte maneira: o músico visitante, o insano ouvinte e o médico que olha o ouvinte. Vejamos o primeiro: o músico, que sai de seu campo artístico e visita o campo da saúde mental. Neste campo, ele é um visitante porque, embora tocasse e para os doentes e também ensinava música para os “insanos” que tinham habilidades musicais7, não havia um comprometimento com a clínica, ou seja, ele se mantinha como visitante, uma vez que não ia além do seu personagem músico. Entretanto, nesta cena, nós evidenciamos um pequeno desdobramento do personagem músico. Estamos falando do violinista. Havia um fluxo de desejo diferente passando por ele, não se tratava somente de um visitante, e sim, de um visitante afetado pelo encontro com o outro. Portanto, comprometia-se com o campo. Aqui, surgem indícios do desejo que estamos procurando, pois há uma escuta diferenciada: a “audição musical” que passa pelo músico e pelo paciente, é envolvida por um ouvinte que atenta para o outro ouvinte, ou seja, um desejo de “escuta musical misturado com uma escuta do outro”. Dito de outra forma, temos aqui um exemplo da escuta musical clínica. Na passagem da cena em que o violinista se empolga com a movimentação dos “corpos da platéia”, há um olhar diferenciado, um olhar que é perpassado por um movimento de atração e repulsa mesclado com uma escuta com o outro. 7 Continuando com Costa (1989), Pinel (1801), no Traité Médico Fhilosophique sur L´aliénation Mentale ou la Manie”, defendia que a música, como uma das formas morais de terapia, deveria ser “doce e harmoniosa” porque nos insanos há quase sempre “algum artista emérito deste gênero, cujos talentos fenecem por falta de exercício e cultivo” (apud Costa, p.27). Esta prática instrumental permitia uma substituição das preocupações mórbidas para momentos de diversão. Na segunda metade do século XIX, continuando com a autora, começam a surgir duas formas básicas de terapia musical: uma é feita pela “audição musical” – os músicos faziam concertos para os pacientes e a outra, através de “aulas de músicas” – os pacientes participavam de aulas de música. Edith Lecourt (1995), musicoterapeuta francesa, também descreve que Pinel indicava a prática do estudo de violino como essencial para a recuperação dos pacientes, ainda dentro da perspectiva da música como tratamento terapêutico. A autora também descreve que as “sessões de musicoterapia”, neste período, eram feitas a partir de “audição musical” e, por este prisma, os médicos pesquisavam os efeitos da música. Para uma destas pesquisas, segundo a autora, foram convidados a participar os primeiros estudantes do recém inaugurado Conservatório de Paris. 27 Este é o primeiro movimento do desejo8 de uma escuta clínica, numa dinâmica de afetar e ser afetado, ou seja, um corpo que sofre ação de um outro corpo e carrega vestígio desta ação (afetado). Mais adiante, quando o corpodançante sobe no palco e começa a dançar, novamente o violinista é afetado Porém agora, além da visibilidade do corpo-dançante, há algo não visível, ou seja, partículas de afetos que se misturam e ensaiam a formação de uma matéria de expressão sonora. Este é o segundo movimento do desejo, que consiste em se preparar para a invenção de uma matéria de expressão. Neste movimento, o corpoarco do violinista ensaia uma metamorfose com o corpo-dançante, quase surge um bloco corpo-arco-dançante (matéria de expressão do encontro), mas a palavra de ordem9 chega primeiro e o desejo é interrompido e não cria uma mistura, os afetos não ganham uma espessura. Assim, as partículas vibratórias desses corpos, que estavam em vias de se misturarem, se dispersam em processos galopantes de desencantamento e tudo começa a correr sem rumo. Nesses desencontros, o significante, na força da palavra de ordem, toma posse da situação e rapidamente impõe a ordem. Esta pode ser uma das facetas do desejo, um contínuo desencontro, mundos que se criam, mas que acabam, muito rápido; partículas de afetos que não conseguem criar o que Deleuze e Guattari; em O que é Filosofia? (1992), chamaram de plano de consistência. Um plano em que se cria um território onde os afetos só aumentam o número de conexões e de composições. Não vimos aumento de conexão na nossa cena. O “insano”, apesar de atingir um corpo-dançante, não alcançou o corpo-arco do violinista. A mulher-sussurro, embora tenha sua pele8 No livro Cartografia Sentimental: Transformações Contemporâneas do Desejo, Suely Rolnik(1986), ao construir uma cartografia das metamorfoses do desejo, convida o leitor a experienciar um encontro de duas pessoas e, nesta dinâmica ela apresenta três passagens do desejo : a primeira surge no movimento de afetar e ser afetado, é a atração e repulsa dos corpos. A segunda é o momento do ensaio para se inventar uma matéria de expressão, isto porque as intensidades de afetos procuram formar uma máscara para se efetuarem em matéria de expressão, posto que “os afetos só ganham espessuras de real quando se efetuam”(p.26). Portanto, o que o leitor vê com o olho-visão de expectador do encontro são as máscaras mas estas, foram criadas pelo movimento do desejo na sua dinâmica de afetar e no ensaio de criar máscaras. Estes afetos e estes ensaios só podem ser vistos pelo corpo vibrátil (p.25) que, segundo a autora, é tocado pelo invisível. Para o contexto em que a autora desenvolveu seu pensamento, ela utilizou a idéia de máscara como uma materialidade dos afetos. Vamos tomar esta idéia para os afetos que se produzem nos encontros de escutas. Porém, como trata-se de escutas, não teremos máscaras, e sim, vamos utilizar a idéia de marcas de escutas. 9 Para Deleuze e Guattari (MP. vol.II) palavra de ordem é a “relação de qualquer palavra ou de qualquer enunciado com pressupostos implícitos, ou seja, com atos de fala que se realizam no enunciado e que podem se realizar apenas nele. As palavras de ordem não remetem, então, somente aos comandos, mas a todos os atos que estão ligados aos enunciados por uma ‘obrigação social’” (p. 16). 28 sonora afetada, na desconstrução, sua escuta ficou solitária e perdida, ela não foi ouvida pelos músicos porque, afinal, a loucura não podia falar sobre si mesma, pois tinha um olhar pousado sobre ela, como disse Foucault (1972). O segundo personagem é o “insano” que, em nossa cena, emergiu no corposussurro e no corpo-dançante. No século XIX, como salientou Foucault (1972), Pinel (1801) não deu a liberdade para os loucos e sim, construiu, através deles, uma verdade de loucura, criando uma linguagem que não mais transparecia as figuras dos invisíveis (as partículas de afetos), mas, sim, triunfava um olhar interpretativo com um objetivo. Apesar de o insano estar sobre este olhar, no seu murmurante silêncio, ele continuava criando suas marcas e a loucura que escapava do olhar da “loucura médica” continuava a correr livre batendo na porta da escuta. Quando nossos personagens “insanos” (o corpo-dançante e a mulhersussuro) transformaram-se em ouvintes, a loucura perdeu seu limite social e alcançou uma liberdade singular. Dessa forma, a escuta foi acionada e construiu a imagem do movimento sonoro, porque o som tem partículas de sonoridades que se deslocam e atualizam gestos de movimentos expressivos. Nesta condição, o corpodançante, na invenção de um mundo movente, escapou da “loucura do corpo médico10”. Já a mulher-sussurro, na mutação para ouvinte, perdeu sua pele-sonora e, na desconstrução desta, foi afetada por um outro mundo sonoro. Mas este processo exigia a efetuação de um aumento de conexões que, como vimos, não aconteceu. O terceiro personagem é o médico que pousa seu olhar sobre o “insano” e busca uma verdade objetivada. Ele logo percebe que a música modifica seus “insanos”. Todavia, quando a música cessa, a insanidade ainda está lá. Portanto, ele não achou a cura porque como personagem de um olhar a priori, ao procurar um “corpo médico com uma mente sadia”, ele não pôde ouvir a loucura que escapava da mulher-sussurro e do corpo-dançante. Apesar de não ter um plano de consistência, a inclusão da música no campo médico, no século XIX, gerou: ouvintes sintomáticos, construídos por uma tipologia de identidade num vetor unidirecional (paciente-ouvinte agitado recebe uma música10 Para maiores detalhes sobre o corpo médico, ver “A Elaboração do Corpo da Ciência” em GIL, José (1997) Metamorfose do Corpo. Lisboa, Relógio D´água (p.130). Mais adiante, o corpo-instrumento e outras modalidades do corpo serão abordados segundo este autor. 29 calmante ou o inverso, paciente-ouvinte apático recebe uma música estimulante), personagens visitante - músicos que migravam para o território da saúde, mas não se comprometiam com aquele território e médicos observadores de ouvintes que, com seu olhar de “querer médico”, não atingiram a escuta. Todavia, o desejo que estamos procurando (um desejo de escuta musical com o outro) se não pode ser efetivado neste período, também não deixou de emitir sua força, pois havia uma região em que a loucura não era classificada pelo “querer médico” e, sim, escapava da cientificidade circulando “surdamente ao redor das práticas e dos conceitos” (Foucault, 1972. p. 505). Este “silêncio”, o “olhar que pousa” não viu, porque não atingiu a escuta. Mas ele, enquanto força silenciosa, continuou a convocar uma escuta clínica. Assim, o século XIX, ensaiou conexões de desejos de uma escuta musical clínica ,mas não tinha um plano de consistência que o pudesse sustentar. 1.2 UM SILÊNCIO DA ESCUTA MUSICAL CLÍNICA Se, no século XIX a escuta musical clínica não se efetivou porque ficou dependente do “olhar médico” e de um “músico visitante”, a primeira metade do século XX revela um silêncio profundo deste desejo. Contudo, agora nosso trajeto direciona-se para “neste silêncio”, buscar reverberações que possam nos indicar o ressurgimento deste desejo. Então, convido o leitor para entrarmos em um campo com paisagens sonoras diferentes e, assim, espero encontrar pistas para ouvirmos a mulher-sussurro e o corpo-dançante. Se alcançarmos esta escuta, provavelmente teremos reencontrado o desejo que estamos procurando. O silêncio da escuta musical clínica, de uma maneira imediata, pode ser atribuído ao nascimento de uma outra escuta: uma escuta da palavra inaugurada pela psicanálise. Mas, enquanto a psicanálise construía uma escuta clínica na palavra, havia um outro campo que colocava em xeque a sua própria escuta, era o campo do violinista visitante, que se empenhava em romper suas fronteiras musicais para além 30 do sistema tonal11 (escapando, assim, de uma correlação à linguagem “frase musical, fraseado, compasso, acentuação, entonação” e da previsibilidade – tensão e repouso), inventando novas sonoridades e, conseqüentemente, outras regiões de escutas. Assim, enquanto aquele desejo de escuta musical clínica (um músico na área da saúde) silenciava, a psicanálise trazia a escuta da palavra e a música arrastava a escuta para além dos limites tonais, ou seja, fora das estruturas já estabelecidas (melodia, ritmo e harmonia). Nosso trajeto agora vai no sentido de escutar fluxos desses campos, para garimparmos os agenciamentos que possibilitarão o reaparecimento de uma escuta musical clínica que, na segunda metade do século XX, terá um outro processo de produção. Do lado musical, transitaremos mais próximo do território da música chamada erudita contemporânea. Esta opção não tem como proposta valorizar um espaço musical, mesmo porque a música jamais pôde ser efetuada em sistemas de valorização, uma vez que, na vastidão de suas variantes, nem podemos falar sobre música e, sim, temos que assumir um universo de músicas. Mesmo esta afirmação, apesar de nossa sociedade contemporânea possuir a tecnologia que pode habilitar um acesso “ilimitado” ao universo amplo de música, ainda assim, o que experienciamos de música é sempre uma pequena partícula da subjetividade deste extenso universo. Assim, a escolha pela música erudita, num universo contemporâneo, se dá principalmente pelo fato deste território de subjetividade ter rompido seus laços com a estrutura tonal e, neste movimento, inventou outras subjetividades de escutas a partir da exploração de novas sonoridades. Segundo o compositor Fernando Iazzetta (2001), como a composição musical contemporânea (da música erudita), rompeu com as estruturas tonais e acolheu um número diferenciado de possibilidades composicionais, cada obra passa a ser construída como “um terreno de exploração e ampliação das gramáticas musicais existentes” (p.8). Esta exploração é uma temática da arte contemporânea que descobre um campo de invenção e de criação de “objetos autônomos” (Rauter, 1997, p. 114) os quais produzem formas estranhas, escutas inusitadas 11 que desafiam o ouvinte, Sobre o sistema tonal, é importante realçar, aqui, que é um sistema que predominou no campo musical desde o final do século XVIII até o início do século XX, e que, ainda nos dias de hoje, é a base das canções populares herdadas das tradições do romantismo do século XIX. 31 instigando-o a um embate e enfrentamento, levando a produzir mudanças, uma vez que inventa novos mundos de escutas, sensações e percepções. Já, dentro da área da escuta clínica, não será feito um trajeto das marcas de escutas clínicas da primeira metade do século XX, pois este atalho, em muito nos distanciaria do nosso trajeto. Entretanto, vamos em direção a uma escuta clínica que não se limita a uma escuta da personalidade com suas estruturas preconcebidas, centrada no indivíduo e no material a ser interpretado mas, sim, uma escuta clínica voltada para a experimentação que constrói conexão de campos e, neste âmbito, uma escuta clínica que convoca a arte para um embate crítico. Uma escuta clínica que aspira por mutações tomando as problemáticas da arte (música) para efetuar tais metamorfoses. Assim, a clínica aqui vem acrescida da crítica, no sentido de que esta é aqui pensada “como uma condição de possibilidades para a emergência do novo, ou seja, condição de criação e reinvenção permanente de nossas orientações em todos os campos” (Lopes, 1996, p. 12). Ao perpassarmos por estes dois campos, talvez possamos encontrar o desejo de escuta musical clínica que ficou “adormecido” enquanto a palavra foi escutada e as sonoridades musicais foram ampliadas. Desta maneira, espero estar conduzindo o leitor para a invenção de caminhos que nos possibilite escutar a mulher-sussurro e o corpo-dançante. 32 1. 3 UMA ESCUTA QUE ESCAPA 1.3.1 Escuta Musical ou Devires? Se anteriormente acompanhamos alguns deslocamentos de escutas no campo médico e vimos um olhar sobre a escuta, convido o leitor para entrarmos num campo onde a escuta é escutada, ou seja, na terra do violinista. O violinista da nossa cena era um músico da segunda metade do século XIX, portanto, como um personagem social deste ambiente musical era atravessado por fluxos do sistema tonal que se mantinha por um fio. O “burburinho” crescente de dissolução desse sistema já prenunciava sua ruptura. Podemos dizer que havia um desejo, ainda que silencioso que ensaiava na escuta musical, novas sonoridades e, com isto, compunha novos territórios de subjetividades12. Mas, de qual subjetividade de escuta musical estamos falando? Ou ainda, de qual processo de subjetividade estamos falando? Num primeiro momento, um tanto superficial, por assim dizer, podemos considerar que se trata de um modo de ouvir que captura, identifica, codifica e atribui um pensamento subjetivo ao som. Este movimento parece ser binário: um interior subjetivo que captura um som exterior dando a ele um significado. Mas, como esta “ingenuidade” é facilmente desmontada, passemos para um outro plano. O ouvir agora possui uma potencialidade suscetível de vibrar, pois passa a ser tocado pelas forças que fazem ouvir. Deste ponto, não é mais difícil notar que a divisão interno X externo tem uma pele com uma densidade variável. O que se tece é uma textura móvel, feita de forças-fluxos que vão compondo superfícies, depressões, asperezas que habitam na subjetividade: meio cultural, social, econômico, político, profissional, tecnológico. Como foi dito anteriormente, esses ambientes só fazem variações ao longo dos tempos e, além disso, permutam entre si. Então, a pele é uma região de 12 Sobre territórios de Subjetividades, ver Cartografias do Desejo de Félix Guattari e Suely Rolnik (2000: p. 25123). 33 passagem e, também, de misturas (um dentro-fora numa dinâmica de atração e repulsa). O ouvido não é mais um captador sonoro, mas uma pele que faz mutações nas misturas e cria um diagrama de relação de forças inusitadas. A esta altura é preciso recorrer a ambientes insólitos, pois vamos estender a pele-ouvido para uma superfície plana, uma vez que as relações de forças inusitadas, ao criarem diagramas, não só desenham um perfil de intensidades variáveis mas, também, se dobram (de dentro para fora e de fora para dentro). Aqui, a subjetividade não é mais um fora-dentro, mas se dá nas dobras13. Este processo não pára. A cada novo diagrama, outras dobras se desdobram, redobram, dobram; ora se curvando no mesmo lugar, ora em lugares distantes, mas o que vemos é que, o dentro-fora é indissolúvel. O dentro é habitado pelo fora e o fora é inundado pelo dentro. Nas palavras da escuta, a escuta é habitada de sonoridade e a sonoridade é inundada de escutas. Isto porque, o dentro desacelera as forças que vêem de fora criando um território que logo se desfaz porque o fora continua lançando forças agitadas desfazendo e refazendo dobras. Assim, nas dobras o ouvido vira pele, ou melhor, um processo de subjetividade de escuta-pele. A subjetividade da escuta musical é este movimento de dobra que tem, na escuta composicional, uma intensidade peculiar. Os criadores de escutas inusitadas (os músicos compositores) são capazes de suportar esta vertigem das dobras nos seus impactos desestabilizadores posto que, agüentam diferentes velocidades de forças. São nestes impactos que os compositores materializam sonoridades das dobras, independente de corporificá-las ou não na sua subjetividade, porque as forças que passam, e eles suportam, não competem a um sujeito. Mas, se as dobras da subjetividade da escuta musical não são corporificadas pelo sujeito, inversamente elas também precisam de um corpo como porta-voz. Então, temos que convocar o corpo que habita a escuta musical. Vimos que no movimento de dobra a escuta-pele é desprovida de horizontes e ponto fixo. Portanto, ela não fica limitada ao rosto-orelha e, sim, se estende para o corpo. Afora isso, como as forças-fluxos potencializam um corpo vibrátil, aquele que 13 Sobre as dobras, ver Deleuze G. A dobra – Leibniz e o barroco, parte I. Tradução de Luiz Orlandi. Campinas, Editora Papirus, 1991.[original,1988]. 34 alcança a invisibilidade e é sensível aos afetos (CS, p.26), a escuta, que também é da ordem das sensações, vibra com ele. Entretanto, deste ponto é preciso fazer uma parada para detalharmos a relação o corpo e a escuta musical. A subjetividade da escuta, no corpo vibrátil, exige uma imagem-corpo destituída da separação dentro-fora. Para tanto, tomemos o pensamento imagemcorpo criada pelo filósofo José Gil no livro Metamorfoses do Corpo (1997). Quando este autor descreve as metamorfoses que o corpo experiencia nas sociedades e nas culturas, ele apresenta no capítulo “Interior do Corpo: um lugar do outro, lugar da alma” (p. 144-191), um movimento de dobra do corpo em relação ao fora-dentro. Para Gil, há um “entre” o interior e o exterior do corpo que produz um espaço de limiar, uma espécie de “interface que define uma região, um espaço <<em volume>>, se assim pode se dizer – que em parte se abre para o exterior, e em parte se estende para trás, nas trevas do interior” (p.154-155). Este dentro-fora paradoxal, se por um lado é limitado por fora graças à pele, por outro lado, é exatamente a pele que prolonga o espaço para dentro, posto que ela é um dentrofora continuum em mutação, porque “não é superfície, mas ‘volume’ ou, mais exatamente, atmosfera” (p. 155). O que se vê do corpo (com o olho visível) é a superfície, porém, é a atmosfera (que vemos na invisibilidade do corpo vibrátil) que possuirá uma “textura singular sempre prestes a limitar-se por fora e a estender-se por dentro”. Neste espaço atmosférico “ o limiar é elástico, e delimita-se a ele próprio através de superfícies e écrans sucessivos: outras peles”(idem, p. 155). É no sentido das outras peles que o espaço atmosférico do corpo inteiro oferece interfases para construção de múltiplos espaços de limiares. Porque o corpo é uma “geografia, uma geologia, uma topografia onde se encontram todas as modalidades sensoriais: no espaço auditivo, tátil, visual, gustativo” (p.156). É nessa topografia que põe num mesmo plano, modalidades diferentes, que a escuta musical é porosa. Ela mistura regiões distintas e cria relevos para simular matérias de expressão. Dito de outra forma, a escuta musical está nos poros do corpo. Ela se dá nas dobras e num corpo que faz multiplicidades sensoriais, um corpo-sonoro. 35 Este corpo-sonoro não tem carne e não é centrado no sujeito. Não é orgânico e nem tem forma-corpo. É um corpo-fluxo molécula sonora14 que desliza para além dos limites da forma. Há sempre um corpo-sonoro na música. Ele é virtual15 porque, além de ser envolvido por uma névoa de sonoridades, é criado e destruído muito rapidamente na incerteza e na indeterminação da escuta. A virtualidade deste corpo é a potência que atualiza o corpo-instrumento. A música é povoada de corpo-instrumento: desde expressões sonoras corporais (palma, estalos, percussão corporal), passando pelos instrumentos tradicionais e culturais, até o acoplamento da música com a tecnologia que, resultou nas sonoridades flutuantes da música contemporânea com seu corpo-espectral. A relação corpo e escuta musical se dá nessas passagens do corpo-sonoro (uma potência virtual) para o corpo-instrumento (uma sonoridade atualizada). Nesta dinâmica de vizinhança o corpo-instrumento não é uma representação e nem uma imitação dos movimentos corporais, contrário a isso, ele é heterogêneo porque faz bloco com a escuta: escuta-tato, escuta-digital, escuta-boca, escuta-braço, escutaolho, escuta-pulso, escuta-gesto, escuta-voz.... Neste contexto, o corpo-instrumento é vivo. Povoado por potência de sonoridade não atualizada, ele liberta o corpo-carne de seu limite estático para torna-se molécula sonora. Novamente temos que fazer uma outra parada para aglutinar um outro componente. O corpo-sonoro tem partículas de vocalidade. É que a escuta porosa 14 Deleuze e Guattari (MP, vol. VI p. 112) apresentam-nos a idéia de molecular como sendo uma “capacidade de fazer comunicar o elementar e o cósmico : precisamente porque ele opera uma dissolução da forma que coloca em relação às longitudes e latitudes as mais diversas, as velocidades e lentidões mais variadas, e que assegura um continuum estendendo às variações muito além dos limites formais”. Os autores também falam de moléculas sonoras (idem p.110). Esta idéia, no nosso trajeto, é de fundamental importância, uma vez que estamos penetrando num universo tão volátil da escuta e das sonoridades. Assim, a molecularização nos liberta de um objeto estático da forma e nos propicia uma movimentação de vizinhança e misturas. 15 O virtual, aqui, é referente ao bloco virtual-atual (D, p. 173-179). Toda multiplicidade implica em elementos atuais e em elementos virtuais. Não há objeto puramente atual. Todo atual se envolve de uma névoa de imagens. Uma partícula atual emite e absorve virtuais mais ou menos próximos, de diferentes ordens. Eles são ditos virtuais quando sua emissão e absorção, sua criação e destruição, são feitas em um tempo menor do que o contínuo e tal brevidade os mantém, desde então, sob o princípio da incerteza e da indeterminação. 36 tem uma plasticidade na voz, uma prega que remete a vocalidade num bloco escutacanto. O compositor Dennis Smalley (1992) considera que, pelo fato dos sons da voz serem gerados dento do corpo, eles são disparadores de expressões subjetivas, de comunicação e, são também, carregados de emoção. É neste sentido que, embora a vocalidade esteja na boca, ela vêm do corpo inteiro: o corpo em moléculas de ar transformando a boca em moléculas sonoras. Uma boca-corpo que escapa da fala e inventa, com a escuta-voz, uma atmosfera de vocalidade. Nesta mistura a voz coloca, num mesmo plano, substâncias heterogêneas do corpo, do rosto e da escuta. Mas, estar num mesmo plano, como vimos anteriormente, é manter uma relação “ora de afrontamento, ora de substituição, ora de troca e de complementariedade”. (MP, vol. IV p. 110). Então poderíamos perguntar: Quais são os afrontamentos, as trocas e as complementariedades da escuta-voz? Num primeiro momento, talvez, possamos dizer que a vocalidade é o portavoz mais fluente do corpo-sonoro, uma vez que sua sonoridade atinge tanto a fala quanto o canto. Porém, também vimos que o corpo-sonoro tem geografias diferentes para atualizar matérias sonoras, pois as sonoridades expandem-se pelo corpo inteiro. Assim, a vocalidade concorre com as sonoridades do corpo-instrumento. Sobre este movimento Deleuze e Guattari (MP. Vol. IV) apontam que, a voz, na música, ora é desterritorializada pelo canto, ora é reterritorializada no timbre, outrora é desterritorializada no instrumento e reterritorializada no acoplamento instrumento-voz. Enfim, esta relação corpo-instrumento e vocalidade sempre gera aumento de conexões. Logo adiante veremos este movimento em algumas passagens musicais. Um segundo enfrentamento que a escuta-voz vive são as dobras da subjetividade das vozes, ou seja, nas dobras, nosso corpo vibrátil e nossa escuta porosa deixam passar vozes que cantam o povo: seus gemidos, seus gritos, suas alegrias, suas felicidades, seus risos, seus sussurros enfim, seus desejos. 37 É que o corpo-sonoro nas suas molecularizações, também faz dobras com as vozes de crianças, de mulheres de animais, vozes da vida. Este processo não gera somente um movimento estético na música (invenção de mundos sonoros) mas, também, impulsiona um movimento político no sentido de que, a música escapa das forças do poder (religioso, estatal, econômico). Vimos o olhar médico sobre a mulher-sussurro e sobre o corpo-dançante. Aquele olhar tentava capturar e “calar” a virtualidade do corpo-sonoro. É neste sentido que a vocalidade, no processo de dobra, também enfrenta forças que paralisam fluxos de produção. A voz que canta o povo, muitas vezes foi capturada mas, a música continua achando linhas de escape. Uma rápida passagem pela subjetividade da escuta musical nas dobras da vocalidade, pode exemplificar estes dois processos de enfrentamentos da escutavoz. O canto gregoriano16, derivado de um poder religioso, com sua voz solitária, sempre enfrentou vozes femininas, infantis, e também vozes do corpo dos instrumentos populares: percussões e instrumentos de ritual; e, ainda, a voz da multidão - nos cantos populares e profanos. Apesar do poder religioso se esforçar para silenciar tais vozes, num movimento sussurrante, elas são potências de produção e invenção que borbulham no corpo-sonoro e ensaiam, no rosto, um gesto para libertar a escuta de uma surdez político-religiosa. Estas virulências ruidosas algumas vezes foram estagnadas (a proibição de instrumentos de acompanhamento, exclusão de vozes feminina, a proibição do trítono), outras vezes foram capturadas para se tornarem “controláveis” (inclusão de vozes em defasagem que gerou o cânon). Porém, neste jogo, os desejos continuaram ali, sempre instigando a escuta e colocando-a em prontidão para ouvir as vozes que escapavam. A passagem da música monódica para a polifônica pode ser vista também por esta dualidade: ora a retenção de vozes, ora a 16 Esta região tem um agenciamento político bastante intensivo que opera por cisão de mundos musicais, ou seja, uma espécie de bifurcação de fluxos que está presente desde Platão (que defende uma música apolínea que leva a uma temperança, e ao heroísmo, contra uma música dionisíaca, que emerge da terra, do corpo, e da voz “sem harmonia”), e se estende até os dias de hoje, com as divisões dos mundos musicais valorizados pela mídia, em conseqüência de uma axiomática capital. Esta cisão de mundos, é um dos componentes que faz retenções, substituições e acoplamentos. 38 complementariedade para diminuir a força das vozes “estranhas”. Com a polifonia estabelecida (trama simultânea de vozes modais - século IX ao XV), o acoplamento de vozes deságua nos motetos. Estes acolhem vozes simultâneas, com textos diferentes e línguas diferentes; eram misturas de vozes sacras e profanas que não podiam mais segurar a produção do corpo-sonoro. Parece que o ar que traz as moléculas do corpo, não consegue mais se expandir nas vozes que saem do rosto, então, a voz se desdobra no corpo e as moléculas vão sair pela pele de um corpoinstrumento. É a voz saindo do seu território boca e desterritorializando-se num corpo-ferramenta. Estamos falando do acoplamento voz-instrumento. Em toda a história da música, como já foi descrito, o corpo-sonoro sempre atualizou instrumentos musicais mas, como evidenciamos um setor que primou a voz no canto da palavra e excluiu o instrumento (claro que na música “profana” o instrumento sempre acompanhou a voz), cabe salientar que, com o aumento da “captura de vozes”, atingiu-se uma extensão de ressonância que os corpos começaram a reverberar. É a partir desta diversidade que os instrumentos (século XV/XVI) foram acrescentados e a música da clausura religiosa fez vizinhanças com o campo da mecânica, da física, da matemática e da acústica, expandindo-se para o corpoinstrumento. É a voz e o corpo numa complementariedade que emergem em um período, que Guattari (1993, p. 184) chamou de homem/ferramenta. Esta nomeação, feita por Guattari, é referente a um período histórico em que o monoteísmo da cristandade européia (por sinal bastante flexível e evolutivo à medida que era capaz de se adaptar às diferenças dos bárbaros e dos escravos, conservando sempre sua ideologia como motor propulsor), apesar de ter se concentrado sobre vigilância, saberes e técnicas da época, não escapou da generalização do uso do ferro e dos moinhos de energia natural que revelavam o desenvolvimento de mentalidades artesanais e urbanas que incrementaram as relações: trabalho, família e pátria. Assim, a relação corpo/ferramenta começa a tomar proporções coletivas. É neste período, ainda segundo o autor, que se dá o aparecimento do relógio que batia as horas canônicas, servindo como uma “ferramenta” para a música de suporte escritural. Esta mentalidade “ferramenta” prenuncia o escape das vozes da abóbada e o acoplamento voz-instrumento ganha 39 um outro lugar, a sala de concerto. Nessas transformações, o artesão torna-se um luthier (fabricador de instrumentos) e surge o instrumentista e o ouvinte de concerto. A conseqüência deste corpo/ferramenta gera uma música que incorpora, cada vez mais, os instrumentos (que até então eram dos rituais populares) como acompanhamento do canto. Este bloco voz/corpo/instrumento, posteriormente, vai fazer um movimento inverso: distancia-se da voz e investe num corpo/instrumento que produzirá o instrumentista intérprete e o solista virtuose. Segue-se, assim, no acoplamento homem/ferramenta, um período de ampliação das fontes sonoras e, à proporção em que o homem vai caminhando para um homem/máquina (veremos este desdobramento mais adiante), configurações de conjuntos instrumentais (orquestra barroca, novas a orquestração sinfônica do período clássico, os quartetos, a orquestração do período romântico) vão delineando uma ampliação desta relação que veio da voz e se estendeu ao corpo/ferramenta (em música corpo/instrumento). Com a ampliação das sonoridades (instrumentos e vozes: solistas e coros), a voz que canta as palavras sofre um enquadramento de um virtuosismo artificial. Segundo Heloisa Valente (1999), as vozes barrocas, que se prestavam ao bel canto, eram resultados de um treino espartano. Saltos de oitavas, tremoli, floreios, técnicas estas exigidas aos instrumentistas, também era objeto de desejo dos vocalistas e das platéias da época. Ocorria aqui uma inversão, uma cisão corpo-voz por um outro prisma. Se antes o corpo-instrumento foi separado da voz para que esta alcançasse uma “voz-pura”, agora, o corpo-instrumento superou a voz-canto. E, neste contexto, há um esforço em enfrentar o corpo-instrumento, mesmo que isto signifique sacrificar a vocalidade. Esta luta não perdurou por muito tempo, e o escape para este embate foi uma retomada da voz pronunciada e um investimento na voz projetada, segundo a classificação de Roland Barthes (1984, p.228). A voz pronunciada, que escapou das amarras de uma virtuosidade correlata aos instrumentos, faz uma nova síntese sonora, levando a pronúncia para além da fala e, através do lied alemão e das canções francesas, canta paisagem da vida e os desejos que por ela passam. Vozes femininas ou masculinas, idades e nacionalidades variadas desenham no ar as sonoridades das pulsões secretas do povo, com seu timbre próprio. Novamente, a voz está livre e não concorre mais com o corpo-instrumento mas, sim, com as moléculas que ela traz do corpo, mescla-se 40 ao corpo-instrumento. Neste período, o piano passa a ser um parceiro indispensável, pois, ao propiciar um clima para que a voz “cante a vida”, ele funde-se a ela nas mais sutis inflexões. É, talvez, no lied que, pela primeira vez, o encontro corpo-voz X corpo-instrumento, mantém juntos, um mesmo plano, elementos heterogêneos: vozpiano num bloco. Se a voz pronunciada cantava a paisagem da vida numa mistura voz-corpoinstrumento, a ópera convocava uma voz projetada (idem, p. 228) e investia numa ampliação do corpo, uma vez que a voz atingia uma dimensão de preencher o espaço acústico. Esta voz expandida tinha como acompanhante os corposinstrumentos de orquestras e, portanto, sua sonoridade mesclava-se com uma materialidade sonora mais complexa. Mas projetar o som, numa ampliação do corpo, não era o único investimento desta voz, uma vez que havia uma contextualização cênica, dramática e um enredo que configurava “personagens sociais”. Assim, a voz projetada, na ópera, cantava os “personagens sociais”. Talvez, um último registro (localizado na passagem do período romântico para moderno) possa sintetizar este continuum de relação voz-instrumento que adentrou no século XX. Gustav Mahler (1860-1911) na 8. Sinfonia – Dos Mil Executantes - nos deixa escutar um extremo da expansão das vozes e das vozes do corpo(os instrumentos), quando desejava “por todo um mundo numa sinfonia” (Moraes, 1983, p. 59) : um coral infantil, dois corais mistos, cento e setenta e um instrumentistas, além de sete solistas (três sopranos, dois contraltos, um tenor e um baixo). E, assim, aquela voz solitária em uníssono do século IX veio marcando nossa escuta com retenções, aglomerações, sobreposições, chegando na primeira metade do século XX, ora em grandes corais, ora em bloco com o corpoinstrumento, ora cantando paisagem da vida, outrora cantando os personagens sociais. A esta altura, a escuta já estava marcada por uma multidão de vozes que faziam vibrar o corpo-sonoro numa mistura de sonoridades: voz-piano, voz- orquestra, voz-violino, voz-coro. Mas, como as vozes ruidosas sempre continuam ressoando num desdobrar sobre si mesma (vozes inventando vozes), surge um outro espaço de vozes que ressoam num “entre” o canto e a fala. É o sprechgesang (traduz-se para o português como canto-falado) de Arnold Schoenberg (1874-1957) em seu Pierrot Lunaire (1912). Agora, uma outra textura de voz expõe a escuta musical à sonoridade dos 41 sussurros. O ar, que vem trazendo as moléculas do corpo para vibrar na boca-corpo, desvia-se das cordas que cantam e cria um atalho, produzindo uma textura áspera que Schoenberg vai modular em sussurros com sonoridade (Klangvoller geflüstert) e sem sonoridade (geflüstert tonlos) (Menezes, 1987). A voz tem que encontrar um outro espaço, que não o das passagens do canto e nem os blocos dos fonemas. Para tal façanha, no prefácio de Pierrot Lunaire, Schoenberg indica que este “entre” deveria ser uma fala que pudesse “cooperar” com uma forma musical, porém, não deveria evocar a canção.17 Agora, a escuta é afetada por uma vocalidade de moléculas sonoras as quais desenham texturas que reverberam “segredos” de outras vozes. Talvez, se a escuta do violinista da nossa cena já tivesse sido marcada por Pierrot Lunaire, a mulhersussurro teria sido ouvida. Porém, é imprescindível evidenciar que outros compositores estenderam o limite da voz canto-fala para um território muito mais amplo. O compositor italiano Luciano Berio (1925), em Sequenza III para voz (1965), desmonta as marcas da significação da voz (fala e canto), para alcançar uma “cantabilidade” dos fonemas. O timbre percorrendo o espaço oco da boca, acha frestas que escapam da palavra para atingir muxoxos, respirações ofegantes, estalos de língua, risos, relinchos, boca chuisa, cochichos. Todas estas sonoridades também sofrem a inclusão de sons que reportam a uma melodia estendida com notas longas, transformando-se em transição vocálicas. Também György Ligeti (1923), em Aventures (1962), apresenta três vozes (soprano, meio soprano e baixo com um sexteto) que saltitam entre o terreno da fala e do canto. Porém, a vocalidade nesta obra, parece uma busca infinita de “buracos da boca”. Desde pianíssimos, sussurros, “zumbidos”, a crescendos que abrem em uma gargalhada. Às vezes, há um saltitar das vozes em rápidas passagens, entonações entre uma espécie de “fala-cantada”, vocalizações curtas estridentes, sons onomatopaicos, gemidos, exclamações. Em algumas passagens, a voz mescla-se tanto com o sexteto, que parece uma massa voz-instrumento. Em Luz Aeterna (1966)- coro para 16 vozes a capela - o compositor cria uma atmosfera e a escuta começa a ser invadida por vozes que chegam (parece que elas vêem de 17 Schoenberg, Arnold. “nota de concerto” in Campos, de Augusto (1998 :47). 42 longe): vocalidades longas fazem deslizamentos de aproximações e configuram um espaço, desenhando uma textura de sobreposições; vozes aproximam, algumas se afastam, outras desaparecem, outras voltam, criando uma teia de vozes que vão sempre configurando uma atmosfera movente deste espaço. Por outro prisma, Luigi Nono (1924-1990), ora com um tratamento musical outrora com um tratamento eletrônico na palavra, faz colagens de fragmentos vocais e desconstrói a fala e o canto. Como uma ola de fuerza y luz (1971-72) e Contrappunto dialettico Allá mente (1968) são exemplos desta subjetividade da voz. Até aqui, vimos que a escuta musical é sempre da ordem da vizinhança, ela sempre se dá num movimento de misturas, num bloco. Portanto, ela é num devir, que é o processo do desejo. Uma zona de vizinhança “topológica e quântica, que marca a pertença a uma mesma molécula, independente dos sujeitos considerados e das formas determinadas” (MP. Vol. IV, p.64). Nos devires da escuta, as formas e os sistemas musicais também foram sendo transformados. A seguir, vejamos algumas destas metamorfoses. 1.3.2 Deixando a casa tonal A tonalidade consolidada no barroco estende-se até a música romântica. Neste sentido, esta última, que já havia percorrido temas, variações, formas, motivos melódicos, subdivisões do pulso, melodia harmonizada, modulações com as tramas para a criação de tensões e de resolução destas tensões, retoma um movimento de acoplamento ao fazer ressoar as vozes modais, ou seja, a música romântica que inventava uma roupagem tonal para temas modais. Esta colagem estendeu-se até o mito (cromatismo wagneriano) e, novamente, as vozes fizeram novas misturas. Este sistema não parou de incorporar vozes e, sua constante mutação era o germe de sua ruptura inevitável. Alguns pontos podem sintetizar o divisor de águas do período romântico para o moderno: o impressionismo, que tira o ouvinte do hábito da relação de tensão tonal (tensão e resolução); o expressionismo, que expõe o ouvinte a um excesso de referência tonal; um pantonalismo e, ainda, a negação da 43 tonalidade, que, segundo J.Jota de Morais (1983), emerge de um conjunto de fatos : o movimento futurista (incorporação do ruído à música), o método composicional dodecafonismo e o microtonalismo, além do pragmatismo norte-americano. Essas mudanças musicais colocam o hábito da escuta tonal em xeque, posto que seu terreno seguro (instrumentos incluídos nas orquestras clássicas e românticas, estrutura tonal estabelecida, um ritmo que se encaixa em subdivisões, um tempo musical seqüencial, uma harmonia que sustenta a trama melódica) é ameaçado por “sons exuberantes, silêncios e gramáticas muitas vezes obscuras” (Iazzetta, 2001, p.13). A música sempre convocou a escuta a inventar blocos de sensações pois, como vimos, ela “não parou de fazer suas formas e seus motivos sofrerem transformações temporais, aumentos ou diminuições, atrasos ou precipitações...” (MP, vol. IV, p.61). Entretanto, a música do século XX convocou a escuta para uma desagregação da moldura tonal em prol de uma expansão das sonoridades. Este fato não se dá somente no interior do campo musical mas, sim, é um “dentro-fora” que se mescla (em todos os períodos musicais), de modo que, como já descrevemos, forças não musicais penetram no campo musical e, ali, através da escuta, são transformadas em sonoridades. Para Dennis Smalley (1992) existe uma espécie de membrana fina que se rompe e viabiliza as passagens do mundo não musical para o território musical e vice-versa. Como vimos, são as dobras que a escuta vai fazendo. É neste sentido, que o campo musical abarca tanto o potencial de transbordamento - a música desterritorializando espaços não musicais -, como de embebedamento - forças não musicais interferindo no campo musical. Já vimos este movimento pela dobra da subjetividade. Coexistindo nos meios não musicais, a música do século XX tanto transformou suas questões sonoras, como foi influenciada pelas sonoridades não musicais das novas paisagens sonoras18. Estamos falando de um século que deixou a relação homem/ferramenta (que, apesar de ter ampliado a mobilidade e mentalidade corporal, ainda permanecia restrito ao corpo-ferramenta) para atingir a 18 Paisagem Sonora - expressão usada por R. Murray Schafer (1979) que define um campo acústico que pode se dar tanto com ambientes reais como abstrato. As paisagens sonoras são derivadas de processos sócio-culturais, históricos, políticos e estéticos e sofrem mudanças constantemente. 44 relação homem-máquina. Esta nova relação provocará uma profunda mutação na corporalidade, visualidade, oralidade e sonoridade. O homem-ferramenta, segundo Guattari (1993), a partir do século XVII começa a se transformar em homem-máquina. Neste sentido, a comunicação oral vai se deslocando para o texto impresso, o que gera um aumento tanto de volume quanto de velocidade do acúmulo dos saberes. A manipulação do tempo sofre uma alteração profunda, uma vez que as máquinas, com suas velocidades que dão mobilidades ao corpo, agora estreitam distâncias e sincronizam o trabalho. O corpo também é afetado pelo saber biológico (vimos um comportamento derivado deste movimento no olhar médico da cena I) e a indústria bioquímica estabelece suas relações com o capital. Se vínhamos falando de uma voz que tinha ora retido o corpo e ora se acoplado a ele, inventando uma voz-corpo-instrumento, com o avanço para o homem/máquina, o corpo não é só corpo-voz-ferramenta (instrumento), mas é também : biológico e maquínico. Se as vozes do homem-ferramenta esforçavam-se por escapar da “voz pura” do poder religioso, as vozes do homem-máquina vão concorrer com outros enfrentamentos: os espaços tecnológicos, urbanísticos e, principalmente, econômicos. Quanto às sonoridades, as máquinas inventadas a partir da revolução industrial avançam para além de um corpo-ferramenta e, apesar de não serem produzidas para fazerem sons, são fontes sonoras. Fazem barulho e modificam a paisagem sonora: o vapor que impulsiona máquinas na terra e no mar também atinge a audição com o efeito dopper, uma vez que o “ruído” das máquinas tem uma velocidade deslocando-se no espaço que, apesar de superar a mobilidade do corpo, convoca a audição e a visão para um deslocamento veloz do espaço-tempo. O motor, no seu funcionamento cronológico, impõe um tempo insistente e métrico que enquadra o corpo na força de trabalho, num pulso constante e, além disso, a cada nova invenção, uma nova sonoridade. Estas “novas fontes sonoras” da paisagem cultural transformam-se com a mentalidade máquina que, conseqüentemente, faz profundas alterações na pele atmosfera: o olho vai se tornar câmera e a escuta vai ser espacializada e afetada por mudanças na velocidade, nas intensidades dos sons; a voz vai se tornar mecânica, a pele atmosfera vai se metamorfosear em novas texturas. 45 Porém, se antes o poder religioso abafava vozes, o poder agora vem de um outro lado, vai capturar vozes e criar massas de identidades para reproduzir padrões. O enfrentamento da música, agora, é liberar vozes que escapam de uma audição cada vez mais delimitada por representações do poder econômico, e criar transversais de invenções abstratas que burlem a audição representativa e atinja uma escuta das vozes que continuam no murmúrio do Povo Sonoro19. Nesta dinâmica, a música do século XX inventa uma outra marca na escuta ao produzir novos timbres e novas relações da voz-corpo-instrumento que caminha para vozcorpo-instrumento/máquina. E é neste campo sonoro que o músico do século XX se encontra. Uma escuta que começa a virtualizar o corpo-ferramenta para atingir um corpo-sonoridade. Com estas novas sonoridades, a música (e aqui ainda nas suas dimensões corpoinstrumento e corpo-voz), começa investir em acordes “dissonantes” (em relação ao que era sistematizado como conssonante) e, cada vez mais, aglomera massas de sonoras. A escuta melódica que até então havia percorrido as modulações românticas exuberantes, se por um lado já havia entrado num redemoinho repetitivo de passagens de tonalidades (cromatismo wagneriano), tem um novo campo de exploração. Debussy (1862-1918) com suas pulverizações de aglomerados sonoros, onde as relações harmônicas não tinham um poder imperativo mas, sim, eram “apenas uma possibilidade entre muitas, não necessariamente a mais importante, nem necessariamente determinante da forma e da função” (Griffiths, 1987,p.9), tirava a escuta da direção melódica harmônica conhecida, e a convidava para lançar-se em moventes manchas sonoras com fragmentos melódicos que se deslocam de forma independente mas, ao mesmo tempo, interpenetrados. O ritmo também acompanhava esta dinâmica, tornando-se mais complexo e fluído, desmantelando o compasso, libertando a escuta da métrica do tempo do relógio e da sincronia do corpo automatizado, para acompanhar as forças moventes dos novos campos sonoros. 19 Esta expressão é de Deleuze e Guattari (1997), em Mil Platôs vol. IV no capítulo “Acerca do Ritornelo” (p.115-170), onde os autores fazem um detalhamento das passagens musicais nos seus agenciamentos estéticos, políticos e sociais, evidenciando os esforços que a música empenhou no combate de forças maiores (religião, estado, poder econômico) e, neste enfrentamento, como ela veio tentando “sonorizar” o povo que falta, ou seja, uma população que escapa dos poderes majoritários. 46 A música parecia deixar sua segura casa (a tonalidade) e se lançava para outros territórios. Às vezes, havia uma ronda envolta da casa, uma suspensão da relação tonal; outras vezes, criava um trajeto englobando todos os cômodos da casa tonalidade (politonalismo). Contudo, foi na saída da casa, no atonalismo, que a música pactuou com a escuta e encontrou com o som. Dito de outro modo, a escuta era convocada a deixar os trajetos conhecidos, preestabelecidos, pelas bases tonais, e se deparar com outros campos de afetos. Neste pacto, o som passa a ser uma potência nova a ser experimentada. Mas, para que ele se torne um elemento autônomo, tem que dividir espaços com vários campos, inclusive com a idéia de ruído. A música já abordou o ruído20 de várias maneiras, para o nosso trajeto, ele tem uma função de potência, uma vez que ele afeta a escuta instigando processos de invenção e experimentação. O ruído, derivado do acoplamento homem/máquina, foi referenciado pelo movimento futurista que manifestava uma exaltação à máquina e um encantamento com o ruído que ela gerava. Luigi Russolo (1885-1947), em A Arte do Ruído – Manifesto Futurista (1913) propõe a máquina como fonte sonora e cria alguns “estranhos instrumentos” que produzem ruídos. Porém, apesar da idéia ser desestabelizadora, esta inovação teve problemas de elaboração da síntese dos materiais recém inseridos no âmbito musical (Moraes, 1983). 20 A palavra ruído, que já é encontrada nos séculos XII-XIV, segundo Da Cunha, A.G. Dicionário Etimológico: Nova Fronteira da Língua Portuguesa 2. edição, 2001; é derivada de rugido, urro. Partindo desta origem de natureza “animal irracional” que amedronta o homem, o ruído passa a ser uma espécie de elemento o “ser dominado” pelo homem. A música tem incorporado esta idéia e usa a terminologia “Ruído Sagrado” (do modal ao pós-tonal) para significar o movimento de “dominar” as forças sonoras que passam pelo homem. Nas civilizações antigas, este movimento se dava em rituais que sonorizavam as forças dos deuses, era um esforço em transformar os sons da natureza (trovão, vento, chuva, urros) em elementos decodificados. Do canto gregoriano até a polifonia, como vimos alguns exemplos, o ruído passou a ser as “vozes e os instrumentos não puros”. Na música clássica-romântica, o ruído ficou submetido à estrutura tonal, uma vez que os acordes e timbres que escapavam desta estrutura estabelecida, soavam como ruído. Ele também foi delimitado pela clássica definição de Helmholtz : ruído é um som não-periódico. Já no século XX, com a mudança da paisagem sonora, o ruído passa a concorrer com o barulho e, neste enfrentamento, estabeleceu-se uma relação com o poder econômico (as primeiras leis anti-ruídos eram para as vozes dos vendedores das ruas, mas deixavam fora os barulhos das fábricas e os sinos das igrejas). Algumas vezes ele também é denominado, num caráter subjetivo, como um som indesejável e, também, pelo prisma da teoria da informação, ruído é como uma interferência na mensagem. Não vamos esgotar as variantes sobre o ruído, mas caso o leitor queira uma ampliação deste tema, veja na obra que já citamos Valente. H.A.D Os Cantos da Voz: entre o ruído e o silêncio (1999, p.29-72) e também, Wisnik, J.M. O Som e o Sentido (1989, p. 13-53). 47 Contudo, independente das questões da elaboração de síntese, o que estava em jogo era a relação ruído-música. E, este confronto, foi frutífero. A música, ao tomar como questão musical o próprio som, abriu uma região para o timbre. Ao atingir o timbre, faz-se necessário uma mudança global, incluindo-se os instrumentos musicais que tradicionalmente são conhecidos pela sua sonoridade peculiar derivada de um “corpo-ferramenta”. Agora, as sonoridades, caminham em direção ao corpo-máquina e ganham densidades - Henry Cowell em 1912, usa pela primeira vez os clusters (blocos sonoros tocados com a palma da mão e o antebraço no piano) e, também, abre o piano para explorar o seu interior, determinando que o intérprete raspe, pince e golpeie as cordas do piano. As orquestrações revelam outras regiões timbrísticas – em Sagração da Primavera (1913) Stravinsky, com acordes agregados, cria uma massa orquestral “ruidosa” numa irregularidade métrica. Mas, só a mudança das sonorizações dos próprios instrumentos parecia não ser suficiente às idéias musicais. Era preciso outros sons. A percussão, sempre abafada e classificada como ruído, vai convocar uma escuta espacializada em Edgar Varèse. Se, em Amériques (1912) o compositor já esboçava sua poética de espacialização sonora, em Intégrales (1925) o corpoinstrumento torna-se corpo-timbre, porque ele deixa a forma corpo-instrumento para se dissolver em timbre. Agora, o corpo-timbre desliza pelo espaço numa teia de aglutinação, contração, expansão, espaçamento, filtragem, alteração espectrais. Há uma variedade de material e texturas sonoras. Mas, acima de tudo, o corpoinstrumento ganha uma mobilidade que até então a escuta musical não havia experimentado. É que Varèse faz um bloco som-espaço e, assim, dá ao corpoinstrumento uma mobilidade molecular porque as sonoridades vão se deslocar em relação a longitudes, velocidades, intensidades e latitudes. O ouvinte agora é convocado a um labirinto de fluxos sonoros. Ao transformar o som em molécula sonora, molecularizando a escuta musical através de uma mobilidade expandida do corpo-instrumentro para um corpo-timbre, Varèse cria uma idéia musical potente. Agora, corpos sonoros expandem o espaço. Esta poética é um alimento potencial para a escuta musical do século XX/XXI, uma vez que, apesar da música contemporânea pós-moderna ter ido além do corpo- 48 timbristico, ao atingir o corpo-espectral, a poética de Varèse tem uma virtualidade, no que diz respeito a espacialidade sonora. *** Se os sons estavam no espaço, por outro lado, Erik Satie (1866-1925), no balé Parade (1917), faz uma colagem ruidosa: por um lado deixa o ouvinte “acomodado” num território musical mais familiar (refrãos de ragtimes) e intercala este “conhecido” com o ruído corpo/máquina (máquina de escrever como instrumento de percussão e teclado, sirene e tiro de revólver fazem parte do mesmo contexto musical). Apesar do que Paul Griffiths (1978, p. 70) fala sobre esta música (Satie fez uma música “limitando-se a uma mera sucessão de construções musicais ingênuas”), o que estamos evocando é o ruído sonoro que afeta a escuta e, conseqüentemente, convoca-a para inventar um outro espaço de possibilidade de escuta. 1.3.3 Música fora do lugar Como a música tinha saído de seu território tonal, e estava entrando nas sonoridades, havia uma expansão e isto, significa alterar o espaço e mudar de “lugar”. A música sempre criou “lugares” para sua aparição: rituais, festas populares, canções de trabalho e, especificamente, na música ocidental, na tradição do poder político-religioso, ela saiu dos muros da igreja para a sala de concerto (como vimos anteriormente). Na sala de concerto, havia um plano de consistência que sustentava três personagens sociais, segundo Paul Lansky (1990): o compositor (gênio/autor) que escreve a música; o intérprete (gênio/servidor), que interpreta; e o ouvinte, que aplaude ambos. Este triângulo, por muito tempo, sustentou a sala de concerto. Mas, no século XX, com novas sonoridades e a tecnologia, o “lugar” da música, assegurado por esta relação triádica, começou a balançar, era a música saindo de mais um dos seus “lugares”. 49 O mesmo Erik Satie, que levara o ruído para o palco, escreve uma peça para ser executada fora do palco, em que músicos espalhados pelo teatro, no intervalo, tocavam junto com o burburinho da platéia. Assim, fora do palco e junto da platéia, esta música destituída de seu lugar, gerou um ruído silencioso, pois a platéia, perante tal “deslugar”, ficou muda e imóvel, uma vez que não reconhecia a música sem palco21. Este evento não ficou desarticulado mas, sim, pode ter sido o dispositivo que deslocou a música do palco para a platéia, ou melhor, uma outra dimensão da escuta. Porém, antes de entrarmos por este atalho, temos que considerar que as máquinas continuaram a proliferar e os meios de produção e reprodução sonora se avolumaram: telégrafo, fonógrafo, gramofone,disco (78 r.p.m.), vitrola, telefone, rádio, microfone de cristal, alto-falante eletro-dinâmico, rádio estéreo, rádio de freqüências moduladas, rádio a pilha, disco de vinil, gravador... cassete compacto, sintetizador, som digital... Nesta escalada, o som e a música definitivamente não tinham mais “um lugar”. Se Satie, talvez com uma espécie de visão futurista, tinha tirado a música do lugar, a tecnologia se incumbiu de disseminar o som e a música por todos os lugares. Se antes havia “alguns lugares”, agora se tem nenhum lugar, uma vez que a música pode estar em “todos os lugares”. Surgia assim, derivada da ampliação tecnológica, por volta das décadas de 60/70, uma possibilidade de “aproximar a música” da vida, uma vez que ela tinha saído do palco (relação ouvintepalco-música). Agora, com a tecnologia, ela estava em todos os lugares. Nesse movimento, desenvolvem-se duas vertentes: uma, considera que “expor” a população a uma música ambiente (supermercado, elevador, restaurante) é a garantia de que a arte esteja mais próxima do cotidiano e, a outra vertente, que vem das idéias de John Cage, defende que para romper o distanciamento palcoouvinte é preciso transformar o ouvinte em músico (através da escuta – veremos este tema mais adiante). 21 Erik Satie ocupa um lugar de personagem musical irreverente, nem tanto pela sua música, mas sim pelas idéias musicais que ele escrevia em textos que insidiam em críticas sobre a forma como a sua sociedade considerava a música. É neste sentido que ele inventa “Música de Mobília”. Num protesto ao hábito de uma música que tinha se tornado um objeto de elite social e não mais uma música crítica. Ver, Campos, A op.cit. p.73-78. 50 Sobre estas duas vertentes, Iazzetta (s/d p. 12) afirma que transformar os “ouvintes em músicos” não deu certo porque as obrigações sociais (trabalho, escola, família) não permitem que a vida se torne arte e, quanto à música em todos os lugares, também é um processo que não se efetua, uma vez que a música “mesclase tão bem com os rituais ordinários que passa despercebida”. Bem, se antes tínhamos uma música limitada a lugares específicos, parece que o rompimento de seus limites e o escoamento por todos os espaços também não liberta a música das forças dominantes. Contrario a isto, veremos, mais adiante, que o poder econômico gruda nesses espaços e acaba mapeando este “todos lugares”. Mas, este tema, será mais elaborado mais adiante. Por agora, voltemos para o silêncio da platéia que ao ouvir uma música fora do lugar, ficou em silêncio. Este silêncio em música também é uma potência sonora. 1.3.4 Silêncio “Ao nível do silêncio o pó de tudo” Giacinto Scelsi Pausa, respiração, ausência de som. Enfim, estes parecem ser as figuras indiciais do silêncio. Mas, tanto na música, como na psicanálise, na análise do discurso e mesmo em Foucault (como vimos no tópico anterior) o silêncio “revela a voz inaudível da ausência, que recolhe o alarido ensurdecedor das presenças” (Vladimir Jankelévitch apud Francalanci 1992, p. 37). Deixando de lado os índices musicais do silêncio para tentar ouvir as “presenças”, que até aqui vínhamos acionando como “vozes que continuam a bater na porta”, retomemos uma passagem do tonalismo para o serialismo. Se Schoenberg, como vimos, anteriormente, tinha convocado a escuta para um espaço “entre” a fala e o canto, em música não foi este seu principal mérito (como vimos, anteriormente, outros compositores ampliaram bastante o território vocal). Seu principal mérito é sair da tonalidade, criando um método composicional que tem como base manter a permutação entre as doze notas da escala cromática 51 (doze tons) fora de uma hierarquia, ou seja, sem um centro referencial (tonal). A escala cromática passa, assim, a ser organizada através de séries. A série fica livre do centro tonal e se apóia na permutação como dispositivo (a escolha da série). Porém, ao mesmo tempo, tudo fica preso à série (projeto escolhido). Apesar desta ambigüidade, a importância desta idéia é o deslocamento que o autor faz para as notas, ou seja, a escuta tonal (com dispositivos de resolução a priori) passa a ser uma escuta das notas que deslizam pelas alturas e durações. Esta passagem marca um outro caminho para as sonoridades. Porém, é Anton Webern (1883-1945) que encontra no método composicional serial o potencial de possibilidades da série. Para ele, a série é uma trama construída com critérios de possibilidades (por exemplo: a obtenção de um maior número de intervalos). As doze notas conquistam um domínio sonoro e, ao mesmo tempo, ampliam as possibilidades de combinação. Este domínio sonoro não se dá mais nas dimensões da música tonal (vertical e horizontal – melodia e harmonia) e sim, atinge uma espécie de dimensão diagonal que se configura num espaço sonoro multidirecional. Este pensamento musical inaugura uma construção de sonoridades num campo virtual. Este virtual está no número infinito de combinação que a série pode atualizar. A forma musical, para Webern, está nas variações da série. Uma forma (derivada da série) pode organizar sons de trás para frente (retrógrado), inversão de intervalos (espelho). Nestas variações (feitas nas doze notas), as sonoridades emergem das diversas atualizações relacionadas entre si (altura, duração, intensidades, inversões) e, deste modo, não há componentes secundários. A escuta aventura-se não mais nas notas, como em Schoenberg e, sim, nas sonoridades em deslocamento de motivos curtos coloridos pelos timbres – uma melodia de timbres. Esses fenômenos sonoros são, “ao mesmo tempo, autônomos e independentes” (Boulez apud Terra, 2000, p. 62). Esta invenção musical (um pensamento musical que se desloca para as sonoridades), segundo Vera Terra (2000), gerou vertentes diferentes. De um lado, o serialismo integral desenvolvido por Pierre Boulez que investe nas possibilidades de permutação da série e, do outro lado, desencadeou a poética de John Cage que vai no sentido das operações do acaso. 52 A poética de Cage possui um conjunto de idéias musicais - o silêncio, o acaso, a composição como processo, a indeterminação, a não intencionalidade, a experimentação – (qualquer som, a aproximação arte/vida). Contudo, por agora, apesar de uma poética ser um conjunto de idéias que vão se conectando (isso significa que um ponto tem relação direta com os demais), vamos enfocar o silêncio. Se em Webern, a série atualiza possibilidades de sonoridades, estas emergem das virtualidades da série, ou seja, do silêncio. O silêncio é o campo de possibilidades na poética de Cage, um virtual “indeterminado puro”, de onde os sons emergem e interpenetram-se. Para Cage, o silêncio é a potência musical, pois é o campo virtual de onde os sons se atualizam. Ao orientar-se pelo silêncio (com sonoridades virtuais), o próprio campo se estende na totalidade sonora. O silêncio, assim, não é uma ausência de sons e, sim, uma potência para a escuta que, na virtualidade do campo sonoro, agencia sonoridades compondo a própria escuta. A escuta, aqui, é a vertigem do processo contra qualquer gênese de estrutura a priori e, deste ponto, o que se tem é um tempo flutuante, uma experimentação contra uma interpretação. Um repouso sonoro (silêncio) que só põe em movimento as dobras da escuta, ou seja, uma escuta que no silêncio é pleno movimento; um tempo que sempre retorna o diferente. 1.3.5 O Ritornelo da Escuta Voz, instrumento, corpo, som, espaço, ruído, silêncio, timbre, canto, sussurro, homem-ferramenta/máquina, texturas, cores, lugares, eis alguns fluxos que sempre estão em processos heterogêneos (ora políticos, ora auditivos, ora espaciais, ora econômicos, ora visuais, ora cognitivo, ora vocal) que nas suas vizinhanças, não mais podem sustentar uma percepção entre um sujeito e um objeto, e sim, uma percepção que “estará entre as coisas, no conjunto da própria vizinhança” (Deleuze e Guattari, 1997:76), nas passagens das dobras. O trajeto que fizemos, apesar de ter características históricas, não se limita a uma historicidade e, sim, às mutações das subjetividades da escuta, na suas vizinhanças com universos heterogêneos. Este é um dos movimentos da escuta, ela cria sulcos que se alastram e vão fazendo mutações, desenhando sonoridades no continuum do campo musical. Não é só 53 uma questão de “contar história” - passagens da história da música e sim, de acompanhar as mutações da escuta na sua aventura de inventar trajetos e de deixar que o silêncio propague as vozes que rondam, e experienciar, como dizia Foucault (1972, p. 530), “um vazio, um tempo de silêncio, uma questão sem resposta”. Neste sentido é que a escuta musical escapa das significantes respostas e torna-se uma “orelha humana quando o objeto-sonoro se torna música” (Deleuze, 1999, p.27) compondo, assim, uma teia das sonoridades. Neste contexto, pode-se perguntar: a escuta cria a música ou a música cria a escuta? Eis uma pergunta que, apesar de redundante, expõe esta mistura. De modo imediato, a resposta seria: nem um e nem outro; ambas são criadas em blocos. Contudo, neste bloco há uma fusão que se dá na teia do tempo e do espaço, um tecido sempre em movimento de extensão, rompimento e deformação. A música se dá na escuta à medida que a escuta produz a música. Um processo de coexistência, uma vez que “não existe o som sem que seja configurado pelo ato de escuta” (Ferraz, 1998, p. 161). Já sabemos que a escuta se dobra sobre si mesma, que não há um dentrofora mas, sim, uma pele que vai sendo tecida, sabemos também que ela só se dá em blocos (afinal, é escuta e precisa que vozes e corpos passem por ela). O silêncio e o ruído são suas potências de movimento. Mas, ainda precisamos avançar um pouco mais, e entrar nos agenciamentos. Sabemos que a escuta agencia retenções de passagens dos fluxos do desejo num movimento de atrair e repelir, aglutinando forças heterogêneas (corporalidades, vocalidade, ruído, espaço, visualidade) espalhadas no campo virtual (silêncio de Cage, carregado de forças sonoras virtuais). Neste movimento, de atração e repulsa, há misturas de afetos (sensações, cognição, sinestesias, imagens) e é desta mistura que a escuta ensaia uma matéria de expressão e produz marcas de sonoridade. Porém, embora deste ponto já se configura uma orelha-humana que agencia moléculas sonoras, ela ainda continua volátil, pois tudo isso pode ocorrer sem que haja o disparo de dispositivos sonoros, uma vez que “o som é aquilo que se atualiza como som, mesmo que não seja produzido por ondas sonoras ou percebido auditivamente (Ferraz,1998, p.158). E aqui a escuta musical “ não fala mais apenas daquilo que foi disparado pelo som, mas daquilo que foi disparado pela idéia de música”(Ferraz, 1999, p. 34). 54 Chegamos a uma outra dobra da escuta que não só se efetua quando há uma metamorfose em som ou música, mas também, brota do som que não veio e ela inventou. A escuta também é uma imagem-pensamento. Na porosidade da escuta a imagem-escuta também é uma expressão sonora. É que o corpo-sonoro, na sua virtualidade, atualiza sensações sonoras (mesmo que não tenha ocorrido um disparo do tipo sonoro) e cria uma marca na escuta. Uma espécie de memória-sensação, uma marca que vibra por imagem de sonoridade. Tínhamos falado que as marcas de escutas se efetuam quando as forçasfluxos estão ensaiando uma matéria de expressão. Um movimento de agenciamento de forças que gera uma qualidade de expressão e uma temporalidade. Vimos um pouco do movimento de marca de escuta na cena I. A mulhersussurro, na sua pele-sonora, mantinha um movimento de ronda e sustentava-se no seu território corpo-voz, criando uma marca sonora. Entretanto, quando se deparou com a música (no momento em que foi levada para ouvir a orquestra), as forças que construíam sua pele-sonora foram dissipadas, e o corpo-voz não as encontrava mais. Perdido, ele não podia continuar a construção de sua marca sonora. Contudo, no meio do caos, a escuta da mulher achou partículas que podiam refazer sua pelesonora e, novamente, iniciou a reconstrução de sua marca. A escuta vive este jogo; uma eterna desconstrução e reconstrução num movimento de ritornelo. A idéia de ritornelo foi, inicialmente, desenvolvida por Guattari (1979)22 e depois por ambos, Deleuze e Guatarri, em Mille Plateaux (1980). O ritornelo é este movimento de forças que ora aglutinam partículas de: afetos, lugares, intensidades, tempos, um timbre de voz, um grito, um corpo, devires infância (uma cantiga de roda, uma canção de ninar), territorializando estas forças. Ora forças escapam do território e começam a criar uma linha de fuga. A mulher-sussurro vive este movimento. Num processo territorializante, ela agenciava forças, delimitando sua pele-sonora, criando um território voz-corpo. Mas, este território é frágil e pode ser rompido. Quando a música chega, rompe com as forças que ela agenciava e, nesta mistura, ela perde sua pele-sonora e cai num caos silencioso 22 que a carrega numa linha de fuga. Eis, aqui, a aventura da Guattari desenvolveu a idéia de ritornelo em L’ inconscient machinique, Paris, Recherches –Encres. (1979, p.244-314). E, em Mille Plateaux, em 1980 junto com Deleuze. 55 desterritorialização. Estes são os movimentos que a escuta musical faz. Ora ela territorializa forças, ora ela escapa, e inventa uma linha de fuga. Este movimento, como vimos, sustenta a poética da criação musical, ou seja, a escuta é co-extensiva com a poética musical que se faz presente na idéia musical, no processo de criação (método de composição) e na composição. No contexto da poética musical, o ritornelo é de uma dimensão pré-musical, que possui um pólo territorializante. O compositor agencia forças não musicais e cria um meio para expressar (sonorizar) este agenciamento. Neste processo, ele cria uma marca de escuta, que tanto atinge os ouvintes, como o próprio campo musical. É exatamente a partir desta força territorial que a música se desloca para o outro pólo, o pólo onde as forças escapam. E, nestas escapadas, outros espaços de escutas são criados. A aventura da desterritorialização da escuta é o desejo da poética musical. Nas palavras de Deleuze e Guattari, a questão da música, “... é a de uma potência de desterritorialização que atravessa a Natureza, os animais, os elementos e os desertos não menos que o homem” (MP vol.IV, p. 113). É neste sentido que a história da música conta as aventuras da escuta, marcando seu trajeto (escuta barroca, escuta cromática, escuta melódica, escuta atonal, escuta serial) e, ao mesmo tempo, insistindo em “algo não ouvido”, ou seja, linhas que escapam dos trajetos já marcados. É a força da desterritorialização instigando a escuta poética e, neste movimento, a poética musical busca “uma música nômade que se dá como ato de resistência aos hábitos de escuta” (Ferraz, 1998, p.249). Esta resistência se dá tanto dentro da própria música (a escuta poética desterritorializando as marcas da escuta musical), como na desterritorialização de campos não musicais (os ouvintes sendo instigados a outras possibilidades de mundos sonoros). Por tudo isso, a escuta musical é sempre uma escuta que escapa. Um devir escuta que não produz outra coisa do que ela própria. *** Por que este trajeto, com um estilo um tanto histórico, é importante para a escuta musical clínica? 56 Em primeiro lugar, como vimos, não se trata de uma panorâmica da história da música mas, sim, de um trajeto por onde a escuta foi cartografando sonoridades e deixando marcas de expressão. Em segundo lugar, a presença das marcas de escutas e suas relações na subjetividade e corporalidade (corpo-sonoro com a sua virtualidade, a escuta porosa e o corpo-instrumento) estendem-se num continuum e, como nossa cartografia vai criando uma geografia de afetos, estas marcas de escutas vão servir como pontes e engates de fluxos de escutas para o próximo capítulo. Neste sentido, a cartografia vai integrando uma topologia e uma geografia das escutas, isto porque, o devir escuta é uma produção de desejo e, portanto, uma criação de mundos sonoros. Em terceiro lugar, a escuta musical é um dispositivo de micropolíticas23. Ela é da ordem dos afetos, das desterritorialização do ritornelo. atmosferas, das vozes que escapam, da Neste sentido, ela marca processos e nomes próprios. Não se trata do sujeito Anton Webern, Edgar Varèse, John Cage... e, sim, das operações de estratégias do desejo que a escuta, através de processos de subjetivação, inventou. E, finalmente, este trajeto cartografou uma escuta porosa que não se dá na relação sujeito-objeto e, sim, nos blocos, no devir som, no devir música, no devir escuta. Agora, vamos deixar este território de subjetividade sonora para entrar em um outro território de escuta, o da escuta clínica. 1.4 TERRITÓRIO TERAPÊUTICO - A ESCUTA NO DEVIR OUTRO Na busca por uma “escuta musical clínica”, já experienciamos algumas tentativas deste desejo que, nos seus desencontros, não pôde se constituir. Então, entramos no continuum do campo musical, na esperança de que, acompanhando os fluxos de sonoridades, talvez pudéssemos encontrar outras pistas para a nossa 23 Sobre Micropolítica, ver Deleuze e Guattari (1996) Mil Platôs Vol. III . Também iremos adentrar nesse tema no último capítulo. 57 busca. Assim, ouvimos as metamorfoses da escuta, os ruídos que sempre insiste, o silêncio que revela vozes e os ritornelos. Com todos estes processos, já temos uma escuta que, no seu embate crítico (um investimento na invenção), é uma potência crítica na clínica. Entretanto, há ainda a escuta clínica. O campo terapêutico é muito abrangente e abarca uma incomensurável extensão na qual não pretendemos nos aprofundar. Assim, faremos uma panorâmica veloz, sem a intenção de fincar base e nem apresentar minúcias das marcas de suas escutas. Contudo, nessa rápida passagem, vamos nos apropriar de um movimento de invenção, considerando que a escuta terapêutica, apesar de seu comprometimento com a linguagem e com as amarras da interpretação, também disponibiliza movimentos de fuga. Tomemos tal panorâmica no âmbito das psi (psicanálise, psiquiatria e psicologia). Apesar de essa estratégia ter como intenção um recorte desta extensa área, também nos leva para o que Luís Cláudio Figueiredo (1996), no artigo “Sob o signo da Multiplicidade”, chamou de “multiplicidade oficial da psicologia”, ou seja, na psicologia contemporânea (incluindo a psicanálise) há uma multiplicidade de correntes teóricas e metodológicas e, conseqüentemente, cada teoria e metodologia têm características diferentes. Contudo, há um componente que cria uma territorialidade, um desejo que põe em constante fluxo esse ofício; uma força que sustenta esse campo. Essa força se dá no desejo do encontro com o outro, numa dinâmica de agenciamentos. Desde o surgimento da psicanálise, a relação paciente-terapeuta na área psi, tem tomado por base a idéia de transferência e contratransferência. A partir desta idéia, José Gil (MC, 1997), no capítulo “O corpo no processo de Transferência”, descreve que a psicanálise já definiu o que são transferências, o que se transfere mas, ainda, é preciso refletir sobre como se transfere. Deste ponto, como vamos continuar buscando um desejo de produção que produz sonoridades, o inconsciente que estamos evocando não é um inconsciente representacional com estruturas preestabelecidas. Diferente disso, é um inconsciente que, nos heterogêneos, produz singularidades. É um inconsciente maquínico que, nas palavras de Guattari, “..corresponde ao agenciamento das produções de desejo e, ao mesmo tempo, a uma maneira de cartografá-las. O inconsciente 58 maquínico é aquele que tenderia a produzir singularidades subjetivas. Isso significa que, a formação do inconsciente, não provem de um desejá-la, mas são contraídas, produzidas, inventadas em processo de singularização”.(CD p. 210) Partindo deste inconsciente que produz, não é possível se apoiar em uma idéia de transferência com base na interpretação e nem na representação, uma vez que “...transferências maquínicas procedem além do significante e das pessoas globais, por interações diagramáticas a-significantes e que produzem novos agenciamentos antes de representar indefinidamente antigas estratificações” (idem,p.261). Cabe, então, como nos avisou José Gil, pensar como se dá a transferência nas produções de desejo. E, aqui, podemos lembrar do processo de molecularização da escuta perante o som, ou seja, uma região de vizinhança que cria um bloco som-escuta, um devir som. Devir não é imitar, identificar, fazer analogias, ou cópias, e sim, um princípio de proximidade e aproximação inerente e particular de vizinhança. Trata-se, através das mobilidades de molecularização, de compor uma região de vizinhança onde há mutações que se dão “a partir das formas que se tem, do sujeito que se é, dos órgãos que se possui ou das funções que se preenche”. Nesse processo, “instauramos relações de movimento e repouso, de velocidade e lentidão, as mais próximas daquilo que estamos em vias de nos tornar e nos tornamos” (MP vol. VI, p.64). Nessas vizinhanças, a questão não se estabelece num “ser o outro”. Diferente disso, a condição de lidar com o outro propicia que, no devir outro, nos tornemos outra coisa. E, conseqüentemente, o cliente também se torne outro. É esse desejo de se arrostar e criar mutações com o diferente que sustenta o território terapêutico. Assim, recolocando a questão de José Gil - como se transfere - chegamos no devir outro. Dito de outra maneira, transfere-se no devir, nas zonas de vizinhanças e nos blocos. 59 Agora, retomando Figueiredo, este afirma que, independente da vertente teórica ou metodológica, o ofício da psi exige, nas atividades cotidianas, uma disponibilidade de “lidar com o outro (indivíduo, grupo ou instituição) na sua alteridade”. É nesse sentido que o autor fala dos outros em nós mesmos. “... a nossa disponibilidade para a alteridade nas suas dimensões de algo desconhecido desafiante e diferente; algo que no outro nos obriga a um trabalho afetivo e intelectual; algo que no outro nos pro-pulsiona e nos alcança; algo que do outro se impõe a nós e nos contesta fazendo-nos efetivamente outros que nós mesmos”. (ibidem, p.93). O território terapêutico tem nesse devir outro o motor propulsor do ofício do encontro, um “outrar-se” como José Gil em Diferença e Negação na Poesia de Fernando Pessoa (2000), fala de Fernando Pessoa. No devir outro, a escuta terapêutica é molecularizada, posto que não se limita a escutar o outro e, sim, experiencia o risco de enfrentar os agenciamentos da escuta com o outro. É nesse sentido que Guattari (1992) fala que o terapeuta se configura como um agente dos agenciamentos. Nesse contexto, a escuta não se põe mais em uma mão única e, sim, uma escuta com o outro em processo de agenciamentos. Até agora enfocamos a relação com o outro. Porém, como vimos, se a escuta musical é marcada pelo meio sócio cultural, nas suas dimensões políticas, econômicas e estéticas, o mesmo acontece com a escuta clínica, ou seja, nas multiplicidades do campo terapêutico, a escuta clínica foi criando marcas. Uma dessas marcas se concentra na linguagem (uma escuta da fala) e no sistema (representação instituída pela psicanálise). Como o leitor já sabe, sendo a área psi extremamente complexa, não nos deteremos nos meandros desta rede. Primeiro, porque vamos nos deter na escuta clínica comprometida com as sonoridades, e segundo, muitos autores brilhantes, desde Freud até os autores contemporâneos, já escreveram e vêem escrevendo sobre este assunto (seria um devaneio, da minha 60 parte, entrar neste fluxo). Porém, como tenho que conduzir o leitor também a uma escuta clínica, é inevitável a passagem por alguns territórios. Considerar a escuta da palavra como uma das marcas desse território, não limita o campo psi a uma escuta da palavra. O corpo, a expressão facial e outros signos não-verbais, também são adicionados como componentes da escuta. Na introdução deste nosso trabalho, havíamos mencionado a dificuldade de colocar a escuta na escrita. Agora, estamos acionando, numa passagem muito rápida, um componente de repercussão semelhante, que se apresenta na questão da escuta na linguagem no ambiente terapêutico. Essa questão ocupa um plano bastante extenso. Entretanto, pinçando uma pequena porção, observamos uma problemática gerada pela linguagem e um movimento de escape. Acompanhemos esse movimento feito por Alfredo N. Neto (1993) no artigo “O terceiro ouvido – Nietzsche e o enigma da linguagem”. Ao dialogar com Nietzsche, Alfredo Neto evidencia as armadilhas que a escuta terapêutica enfrenta, pelo seu comprometimento com a linguagem e pelo sistema de representação: “Ouvir um paciente dizendo ‘meu pai’, ‘minha mãe’ seguidos de uma afirmação qualquer nos dá grande parte das vezes, a ilusão de que sabemos do que ele fala. Ou, se não sabemos ainda, saberemos em algum momento...”. (1993, pg.152). Os desassossegos de Neto, um analista marcado pela escuta da fala, criam atalhos que escapam das marcas de escuta terapêutica. E, com esses desassossegos, ele propõe o terceiro ouvido e a musicalinguagem. Ouçamos esse escape : “Quem ousaria decifrar um discurso como se decifra uma partitura musical? E aguçar o terceiro ouvido – que é o que apreende o incorporal do texto – para os sons harmônicos e os ritmos 61 que dançam? Quantos estariam aptos a captar o seu tempo – no sentido musical do termo – e discriminar os staccatos, os legatos, os rubatos? E a variação das cores e das matrizes: os tons escuros e densos transmutando-se em clareza flutuante, capaz de levitar nos limites do dizível? E conseguir discriminar um trêmulo, lá onde o som reverbera e se agita, abrindo passagem a um afeto sem lugar”? (idem, p.155) Esse deslocamento do significado da palavra para as nuances de qualidade do timbre da voz, que A. Neto propõe à escuta clínica, revela uma captura de potências da escuta musical, desterritorializando uma escuta da palavra. Ao finalizar o artigo, o autor sugere que, se um analista puser em suspensão a linguagem e abrir a escuta para a cantalidade da voz (musica linguagem), a sua escuta se transformará em um terceiro ouvido e, neste sentido, ocorre um distanciamento das representações e das interpretações do hábito. Este desejo não é uma exceção na multiplicidade do campo psí. Muitas outras nuanças, sobre a escuta clínica, já foram apresentadas.24 Todavia, o leitor, ao ouvir os signos musicais do “terceiro ouvido”, deve estar dizendo: “olha aí o desejo de uma escuta musical clínica”, visto que é um desejo, um desejo duplo, pois passa pelo devir outro e mescla-se na musicalidade com o outro (afetos musicais). Porém, fazendo uma aproximação mais detalhada à sonoridade da escuta musical que acompanhamos anteriormente, poderíamos dizer que este fluxo (canto-falado, fala-cantada) já havia passado por Schoenberg (1917) e, também, Berio, Nono, Ligeti já tinham marcado a escuta com descantos e falacantadas. Assim, além dos trêmulos, staccatos, legatos e rubatos, a molecularização da escuta já atingiu as partículas das sonoridades da voz. Então, não se trata somente de legatos e staccatos, mas de suspiros, sussurros, respirações, enfim, nuances de vocalidade. 24 Somente para citar alguns autores que escrevem sobre a escuta na área clínica: Paulo Endo (1997) no artigo “ Corpo, Escuta e Experiência Analítica” fala de uma escuta que não se limita à significação das palavras e, sim, de uma escuta analítica que no encontro de dois corpos (corpo aqui é entendido como lugar de experiência perceptiva na sua abrangência – olfativa, visual, gustativa, tátil, auditiva - segundo Merleau- Ponty), põe em fluxo um corpo a ser falado e silenciado. E, nesta dinâmica, a escuta pode por em percurso um outro caminho a ser feito pelo corpo. Suely Rolnik (1989), em Cartografia do Desejo fala do corpo vibrátil, acionando uma invisibilidade e uma tatilidade como componentes de uma escuta e, no artigo “Esquizoanálise e Antropofagia” (2000), a autora também fala de uma “escuta do corpo sem órgão” (veremos este assunto no último capítulo). 62 *** Temos várias pistas do desejo que procuramos. O campo do violinista visitante, alcançou as sonoridades nos derives som, voz, corpo-instrumento, silêncio, ruído, e tudo isso se dando na aventura do ritornelo e na escuta porosa. Além disso, a música saiu do palco, uma vez que o homem/máquina inventou formas hiper desenvolvidas de fontes sonoras. Portanto, o violinista agora tem outros espaços de subjetividade. Por outro lado, no campo da escuta clínica, o devir outro teceu outra teia de escuta. Enquanto a escuta musical clínica estava “adormecida”, estas duas teias de escutas iam criando territórios de subjetividades nos devires. 63 CAPITULO II ESCUTAS EM MUSICOTERAPIA 64 2.1 Encontrando o Desejo Convido o leitor para uma outra cena, onde incorporaremos os trajetos de escutas que já experienciamos. Nesta cena II, você participará tanto escutando metamorfoses de escutas, como inventando escutas. A cena ainda se passa num local semelhante ao da cena I, porém, num tempo cronológico mais próximo da atualidade. 2.1.1 Cena II – devires sonoros Estamos andando em um longo corredor de teto alto, com várias portas, algumas estão abertas, outras fechadas. Ouvimos várias vozes de pacientes e de funcionários que se propagam pelo corredor. Estas vozes vão ficando no fundo à medida que nos aproximamos de uma porta fechada. Batemos na porta com os nós dos dedos com uma sonoridade fraca, porém incisiva, indicando um “podemos entrar?”. O silêncio é a resposta que nos chama. Entramos no quarto. A claridade de fora penetra por uma janela iluminando um quarto pequeno com uma cama no meio e uma cadeira próxima à janela. Ainda estamos perto da porta e nossa imagem imediata captura no canto, próximo da janela, aquele corpo da cena I. Precisamos descer nosso olho-câmera para podermos enfocá-lo. Neste movimento, reconhecemos que é a mulher de meia idade. Ajustamos o enfoque do nosso olho-câmera, enquadrando o corpo para obtermos mais detalhes. Ele permanece fechado sobre si mesmo, os braços abraçam as pernas encolhidas e a cabeça se apóia nos joelhos. Vemos somente parte do rosto. De imediato, o corpo parece estático, mas aos poucos, vamos percebendo um movimento e, então, não mais sustentamos este encontro com nosso olho nu e nosso olho câmera, porque nossa visão começa a se dilatar. Aquele movimento nos atrai. Distanciamos-nos da porta, diminuindo o espaço do quarto, ao chegarmos perto da cama. Deste ponto, vemos que o corpo da mulher faz aquele sutil movimento de forma constante, desenhando e redesenhando o seu micro-espaço. 65 É claro que nossa visão já está dilatada, porque estamos sendo tocados pelo invisível. Não podemos ver, mas “algo” passa por nós. Nosso corpo vibrátil (aquele que capta o que passa na invisibilidade) está afetado. Sentimos atrações e repulsas mas, já fomos capturados. Ensaiamos um encolhimento corporal e preparamo-nos para uma aproximação cuidadosa ao corpo-agachado. Tudo entra em ação neste delicado encontro. Guiados pelo corpo vibrátil, vamos modificando nossa postura ereta em direção ao chão. Agachamos, lentamente, para não perturbarmos o espaço visível (uma vez que já estamos numa mistura do corpo vibrátil). Nesta posição, nossa escuta porosa, na sua habilidade de molecularização, diluída no silêncio daquele pequeno espaço próximo ao chão, é afetada pela sonoridade secreta do sussurro. Um fio de voz que, embora esboce um traçado rarefeito, as moléculas sonoras que passam criam uma ronda surda, provocando na nossa escuta uma textura de microimpressões. Esta textura, em suas mutações, produz uma região de vizinhança que, apesar dos nossos corpos estarem separados pela garantia da visualidade do espaço “entre”, nossa escuta, já afetada, gira com a ronda das texturas do sussurro. Nas microimpressões do registro vocal, nossa escuta vai se moldando com as pulverizações de vibrações ásperas, misturadas com golfadas de ar que ora repetem pontos de ataques, ora se perdem e criam pequenas variações. Às vezes, o ar sai com uma maior intensidade e gera uma pequena expansão da vocalidade sonora; outras vezes, os sons se tornam granulados. Porém, apesar destas variações, há uma ronda que captura a nossa escuta e cria uma espécie de plano movente. Nosso corpo agachado, num devir corpo-sussurro, começa a ensaiar movimentos de vocalidade. Há uma “sonoridade por vir”, nossa voz, em processo de devir corposussurro, ensaia uma forma de expressão, uma vocalidade por soar... e você pode escutá-la. 2.1.2 Pausa para os Agenciamentos A música, nesta cena, não está mais no palco (cena I) e, sim, no encontro do corpo vibrátil e da escuta porosa. Um encontro que se dá nas molecularizações da escuta no devir som e no devir outro. Este encontro se sustenta nos agenciamentos 66 heterogêneos (visualidade, espacialidade, corporalidade, sonoridades, vocalidade) e nas microimpressões. Quando José Gil (MC, 1997), no capítulo “O corpo no processo de transferência”, afirma que num encontro terapêutico existe uma instauração dissimétrica que, como vimos no capítulo anterior, se dá no devir-outro, ele argumenta que esta dissimetria se dá nas percepções íntimas, sutis ou, ainda, segundo a terminologia de Leibniz, “ pequenas percepções”. É neste âmbito que Gil concebe as microimpressões. Elas se dão no contexto em fluxo. No caso da cena II, as microimpressões nascem do silêncio. São uma espécie de “diferença entre o contexto habitual e o novo contexto (entre um silêncio conhecido e um silêncio inédito)” (p.205). O silêncio conhecido era o espaço do quarto que abrigava aquele corpo-sussurro, mas o silêncio inédito se dava na textura da vocalidade, ou seja, pequenas nuances do timbre vocal. O ambiente sonoro é um potencializador dos movimentos da escuta. Quando Ítalo Calvino, em “Um rei à Escuta” (1995, p.59-89), nos faz ouvir os sons de um castelo através dos trajetos de uma escuta da realeza, ele nos ensina o quanto uma escuta pode se por em prontidão e configurar as sonoridades do ambiente. Na cartografia sonora da nossa cena, vivenciamos esta experiência. Ao andarmos pelo corredor, ouvimos uma espécie de sonoridade peculiar que, aos poucos, foi sendo filtrada à medida que nos aproximávamos do silêncio do quarto da mulher-sussurro. O leitor já deve ter ouvido o som de corredores de hospitais; eles são bastante peculiares.25 A escuta, a partir do silêncio da porta, entrava num movimento de microimpressões, em processo de misturas: na corporalidade - uma escuta-mão no bater na porta -, nas passagens da visualidade à invisibilidade do corpo vibrátil, na espacialidade – mudanças corporais, sonoras e visuais no espaço relacional - na tatilidade - a escuta se tornando tátil nas transformações das microimpressões da voz-sussurro, na cenestesia - a sensação do movimento da voz que ensaiava uma vocalidade - , na sinestesia - com o corpo agachado, o silêncio era mais denso - , na 25 No artigo “A escuta do Silêncio”, eu apresento algumas questões sobre este “silêncio” no ambiente hospitalar, especialmente com pacientes em coma (1999, p. 72). 67 cinesia - os sutis movimentos do corpo - , na gestualidade – a escuta na ronda do sussurro (aqui estamos fazendo referência ao gesto sonoro). Todas estas nuances não são seqüências, mas fazem passagens e mutações. Uma topografia criada pela escuta porosa, onde todas as modalidades sensoriais se encontram e onde os órgãos dos sentidos não se opõem uns aos outros, mas suas funções transbordam: uma escuta-olho (que escuta-vê o corpomovimento), uma escuta-corpo vibrátil com sua invisibilidade (captura as nuanças do sussurro), uma escuta-tátil (que toca a densidade do silêncio), uma escuta-voz (que ensaia uma vocalidade), enfim, no devir-outro, um devir-escuta que cria um espaço hápitico26. Estes movimentos de afectos27 foram criados no tempo do ritornelo se estendendo no espaço. Varèse já nos fez ouvir o som desenhando o espaço “... a música como sendo espacial, como corpos sonoros movendo-se no espaço” (Varèse apud Moraes, 1983:131). Mas, outros autores seguiram este caminho e, poéticas musicais mais recentes (por exemplo: da música eletroacústica), têm se dedicado a criar corpos sonoros nos espaços. No nosso encontro com a mulher–sussurro experienciamos sonoridades que se deslocavam no espaço/tempo. Nesta dinâmica, ora éramos territorializados, ora éramos desterritorializados. Quando nosso corpo agachou, experienciamos uma sonoridade peculiar. Como o leitor sabe, os adultos, nas suas posições eretas, manipulam sonoridades corporais e de objetos numa região mediana entre o chão e o teto. Na condição de agachados, o espaço acústico é outro, os sons “passam por cima” e o silêncio, rente ao chão, é mais cheio. 26 Espaço Háptico é um termo que pode ser encontrado em Mil Platôs vol.V, no texto “O Liso e o Estriado”(p.179-232). Este termo foi primeiro desenvolvido por Aloïs Riegl nos estudos sobre estética. Este autor queria evidenciar a tatilidade do espaço óptico, ou seja, uma mistura de duas percepções (uma tatilidade do olho). Na fala de Deleuze e Guattari, o “espaço háptico” “... não opõe dois órgãos do sentido, porém deixa supor que o pode ter uma função não óptica.”(p.203) “... uma animalidade que não se pode ver sem toca-la com o espírito, sem que o espírito se torne um dedo, inclusive através do olho”(p.205). A partir destas idéias, os autores ampliam o termo para os outros sentidos concebendo uma tatilidade da escuta nas texturas sonoras. Ver também Ferraz (1996, p. 160-1), onde a escuta torna-se “acordes coloridos” e escutas no gesto. Para o nosso contexto, é esta escuta que estamos convocando, uma escuta que vai além dos planos da audição porque faz passagens que aumenta os limites da escuta. 27 Em Crítica e Clínica (1997: 156-170), no texto “Spinoza e as Três Éticas”, Deleuze descreve sobre os afectos. Efeitos são vestígios de um corpo sobre o outro e, neste acontecimento, os corpos ficam em estados de afecção, ou seja, numa dinâmica de passagens, devires, variações de potências que vão de um estado a outro. Estas mutações são chamadas afectos. Ver também Deleuze e Guattari em O que é filosofia ? (op.cit. 213-255). 68 O compositor Rodolfo Coelho de Souza em sua composição eletroacústica O que acontece embaixo da cama enquanto Janis está dormindo?(1997), marca nossa escuta com algumas destas sonoridades que passam próximas do chão. Sobre a obra, ele escreve as seguintes imagens: “Enquanto Janis dorme, alguma coisa se mexe embaixo da cama. Você pode imaginar que são moradores do sub-solo que vieram cantar cantigas para Janis. Os amplos corredores estão vazios e povoados de fantasmas. Onde será que Janis tem estado cantando ? Eu posso de novo ouvir sua voz....”28 Vejamos, agora, esta movimentação de afectos na produção do desejo. O deslocar para o quarto e o nosso encontro com a mulher gerou o primeiro movimento do desejo, uma atração de corpos (na cena III, vamos ouvir também o corpo da mulher nesta atração; por agora, fiquemos com uma atração de corpos que foi experienciada no nosso corpo-escuta). Esta dinâmica gerou efeitos: o corpo vibrátil (do invisível) com sua escuta porosa, foi tomado por uma mistura de afetos atração, medo, gestualidades, visualidade, movimento, velocidades, sonoridades... Assim, afetados, iniciamos a criação de um espaço háptico ensaiando uma matéria de expressão (nossa voz começa a preparar uma vocalidade), surgindo o segundo movimento do desejo. E, então, na vocalidade por vir, sua escuta-voz, cartógrafo leitor, deve ter inventado uma matéria de expressão, mesmo que ela não tenha sido sonorizada pela sua voz. Lembre-se, como disse Ferraz (1998), a escuta é invenção mesmo que não tenha tido um disparo de som, ou seja, a sua escuta foi uma idéia de sonoridade. Isto porque, as intensidades não se sustentam por si só, elas precisam de um gesto, uma matéria de expressão para se efetuarem, como vimos anteriormente com Suely Rolnik. Aí está o terceiro movimento do desejo, uma marca de escuta gerando uma vocalidade por vir. O leitor deve ter falado novamente: - olha aí o desejo de uma escuta musical clínica. Exato! A mistura do devir-outro no devir-som nos possibilita compartilhar ruído de vozes e o silêncio que carrega o pó de tudo. É um desejo de outrar-se em vozes, corpos e sonoridades, no encontro com o outro. 28 Caso o leitor queria experienciar esta escuta, ouça o CD Música Eletroacústica Brasileira Vol II (Sociedade Brasileira de Música Eletroacústica), produzido pela Sonopress, 1999. As considerações sobre a obra estão no encarte do CD p.13. 69 *** Apesar de ter ficado adormecido por cinco décadas, o “desejo de escuta musical clínica” ressurge na segunda metade do século XX. Porém, ele encontra agora dois fluxos diferentes. De um lado, a escuta clínica, que, como vimos anteriormente, se dá nos devires e, do outro lado, a escuta molecularizada ( uma música nas sonoridades, fora do palco que inventa novos campos de escuta). Neste contexto reaparece o desejo de outrar-se em vocalidade e sonoridade com o outro. Este desejo cria um personagem psicossocial. Ele não é um músico que visita a área da saúde e volta para o campo musical, e nem um terapeuta que procura ouvir a musicalidade das palavras para escapar das armadilhas da linguagem (terceiro ouvido). Ele é aquele ouvinte da cena II, um músico que, no encontro com o outro, deseja escutar as sonoridades de fluxos interrompidos ou sonoridades que ficam sem engates (como as da mulher-sussurro). Este ouvinte, perpassado por este desejo peculiar, é um musicoterapeuta. 2.2 MUSICOTERAPIA: UMA ESCUTA EM CONSTRUÇÃO. Já experienciamos alguns trajetos da escuta musical e outros na escuta clínica. Agora, convido o leitor para entrarmos num campo que se sustenta no desafio de manter estas duas escutas em fluxo. Estamos falando da musicoterapia, que é um campo que investe na aventura de vizinhanças da escuta musical e clínica. Achado o desejo que estávamos procurando e o personagem psicossocial que é perpassado por esta produção, convido o leitor para escutar o que este campo produz nas dobras da escuta musicoterapêutica. Como o campo é recente, diferente da escuta musical e da clínica que tem uma temporalidade maior, a escuta musicoterapêutica ainda está em fase de construção ou, melhor dizendo, o pensamento sobre escuta musicoterapêutica ainda não fez muitas conexões. Entremos neste campo. Em 1990, o musicoterapeuta norueguês Even Ruud colocava a seguinte pergunta: Musicoterapia - uma profissão de saúde ou movimento cultural? Nesta 70 época, apesar de o autor não elaborar detalhes de sua idéia sobre cultura, ele considerava que a música, por ser um fenômeno culturalmente obtido, só poderia tornar-se terapêutica à medida que estabelecesse vizinhanças com campo terapêutico. Exatamente nesta área de vizinhança (terapia x música), que Even Ruud entendia que a cultura, com sua característica pós-moderna, propiciava este encontro. Concluía, assim, que a musicoterapia era um movimento cultural, pois estava criando um novo código na cultura. Bem, como o leitor viu, se o próprio nome já é uma mistura: musico/terapia, conseqüentemente, o campo é híbrido à medida que produz espaços heterogêneos mantendo juntos fluxos da arte (música), do campo da saúde (terapia) e da ciência (pois, também, é uma área de conhecimento que produz planos de referência). Portanto, para se fazer qualquer aproximação a este campo transdisciplinar, há sempre que se considerar os movimentos de passagens e os pontos de conexões dinâmicos destas diferentes áreas. De uma visão panorâmica, observa-se esta disciplina construindo trajetos entre regiões aparentemente distintas. Este fato dificulta a demarcação de seu território que é muito mais os espaços de vizinhanças com práticas múltiplas e abordagens distintas, do que um ambiente independente, centralizado e homogêneo. Perante este fato, a musicoterapeuta Clarice Costa (1989) perguntava se existia a musicoterapia, ou musicoterapias? E, a esta indagativa, afirmava que, embora as variedades de práticas e as diferenciações de abordagens dificultavam a demarcação do campo, havia um fio condutor em todas estas variantes, a música. É a música que tem impulsionado o deslizar desta complexa área que, enquanto disciplina, criou uma escuta específica que investe na potência da música num contexto clínico e, enquanto campo social, carrega um desejo de escuta no devir-som com o devir-outro. Como uma disciplina recente na sociedade contemporânea, alguns trechos históricos e geográficos (nas suas dimensões estéticas e políticas), podem auxiliar na cartografia desta escuta. Embora a utilização da música enquanto terapia, tenha sido nomeada como uma disciplina somente a partir da década de 50, como vimos, o desejo de uma escuta musical clínica, há muito tempo, já ensaiava este encontro. Como uma área nova, no tocante à produção de conhecimento, a musicoterapia tanto retoma 71 processos históricos sócio-culturais antigos (relação música e saúde de séculos e culturas antigas), como tem acompanhado significativas transformações das áreas vizinhas de seu tempo (arte, ciência e saúde). (Gaston, 1968; Tyssot 1981, Ruud, 1990, Costa,1989, Lecourt, 1995, Maranto, 1996). No meu entender, apesar do desejo musicoterapêutico ter feito vários ensaios, ele só decolou na segunda metade do século XX, como tal, pelas condições que os dois planos de escutas (clínica e musical pós-tonal) já haviam criado e, concomitante com estes, a condição de homem/máquina que, com a tecnologia, espalhou as músicas para todos os ambientes - há música em “todos os lugares”. É neste contexto que ocorre novamente um outro movimento de músicos para o campo terapêutico porém, não mais como visitantes e, sim, como “músicos de ouvintes” que, no “estranhamento com o outro”, insistem em ouvir os fluxos sonoros interrompidos e as “vozes que escapam”. Mas, neste deslizar “entre” áreas extremamente distintas (arte, saúde e ciência) a escuta musicoterapêutica, desde seu ressurgimento (anos 50), até a sua contemporaneidade, enfrenta vários obstáculos, uma vez que não é uma escuta somente relacional (devir outro) e sim, uma escuta relacional sonora triádica (terapeuta-música-cliente). Uma referência histórica que apresenta parte destas dificuldades está registrada no Tratado de Musicoterapia de Thayer Gaston (1968). Este musicoterapeuta descreve uma análise de três diferentes etapas da construção do pensamento musicoterapêutico nas décadas de 50 a 70. Em uma primeira etapa, a musicoterapia continuou com o mesmo movimento do século XIX – música como objeto, uma vez que a música era trazida para a área da saúde e formatada nos padrões da mesma: uma música objeto-terapêutico e um paciente-ouvinte formatado (um olhar sobre o ouvinte). Numa segunda etapa, ocorreu um deslocamento para a relação: a música passou a ser apenas um componente facilitador, porque se priorizava a “escuta do outro”. A grande problemática desse movimento foi que, ao se distanciar da música como objeto da saúde para se focalizar a relação terapêutica, perdeu-se o íntimo contato com o próprio dispositivo que movimenta essa forma de terapia, a música. Aqui, a “escuta musical” perdia sua potência em prol de uma escuta do outro. Numa terceira fase, Gaston considera que ouve um processo de equilíbrio entre ambas, ou seja, a 72 música e a relação em uma dinâmica. Desse ponto, os “ouvintes” começam a ter uma maior complexidade, porque há um ouvinte-paciente sendo acompanhado por um ouvinte musical-terapeuta e, ambos num espaço musical, criando experiências musicais. Portanto, não há mais como se pensar essa relação de forma separada e, sim, uma tríade dinâmica que, na multiplicidade relacional, produz a escuta musicoterapêutica. A relação triádica foi o enfoque da musicoterapia após a década de 70 e, por esta perspectiva, foram construídas abordagens e métodos musicoterapêuticos. Estes se apóiam em diferentes idéias filosóficas, terapêuticas e musicais. Os pontos de contatos entre estas bases configuram abordagens terapêuticas distintas que, no desejo de “ouvir o outro através da escuta musical”, criam áreas musicoterapêuticas. Porém, todas elas, independente da base filosófica, científica ou musical, precisam enfrentar um tema específico “músicas em musicoterapia”. Já vimos que não se tem música e, sim, músicas. Porém, quando a área terapêutica toma como movimentação clínica a música, ela se depara, ao mesmo tempo, com retenções e ampliações. Por um lado, fica dependente do objetivo clínico e, por outro lado, é a potência da clínica, ou seja, destituir padrões clínicos. Nessas retenções e extensões, a musicoterapia também construiu um divisor de águas bastante significativo da música no contexto clínico. Estou falando da cisão “audição musical” e o “fazer musical”29. Na terminologia da área, musicoterapia receptiva (o cliente ouve música) e musicoterapia ativa (o cliente faz música). A musicoterapia receptiva tem desenvolvido uma prática clínica e um conhecimento teórico embasada na “audição musical” de músicas eruditas. Estas práticas têm pesquisado os desdobramentos da escuta, principalmente relacionados com as imagens mentais30. Entretanto, há um limite das músicas utilizadas que, na sua maioria, é restrito aos séculos XVII-XIX. Este fato revela que estas 29 Será utilizado o termo “fazer musical” sempre entre aspas e para diferenciá-lo do ato de composição e interpretação no campo musical. No território musical, o fazer musical tem toda a sua complexidade estética e de criação nas metodologias de composição e nas técnicas de interpretação. Já, o “fazer musical” no território musicoterapêutico, apesar de passar por componentes estéticos e de criação, não é um processo da arte mas, sim, o inverso, é um processo que se torna criativo à medida que é gerado por fluxos da arte. Mais adiante este tema será enfocado por um outro prisma. 30 A musicoterapia criou várias metodologias receptivas, uma delas é o Método GIM (Guided Imagery and Music), que utiliza música erudita como função evocativa e como agente de terapêutico. O processo é centrado nas imagens que o cliente, a partir dos estados alterados de consciência (alcançados por indução musical), vai criando junto com a “audição musical”. Caso o leitor deseje ter mais detalhes sobre esta metodologia, leia “Transferência , Contratransferência e Resistência no Método Bonny ‘Imagens Guiadas e Música’ – GIM” in Musicoterapia – Transferência, Contratransferência e Resistência de Lia Rejane Mendes Barcellos – organizadora e tradutora, Enelivros, 1999. 73 metodologias, infelizmente, ainda não se comprometeram com o pensamento da música de seu século, ou seja, há um corte no fluxo do continuum musical, uma musicoterapia do século XXI com músicas do século XIX. Do outro lado, a musicoterapia ativa no “fazer sonoro”31, apesar de experienciar sonoridades compatíveis com as paisagens sonoras do século XX/XXI, pouco tem posto em pauta reflexões sobre as escutas musicais que se constroem no “fazer sonoro”, uma vez que, em geral, os estudos enfocam o “processo do fazer” e, não, a escuta deste processo. Assim, a musicoterapia receptiva ainda não utiliza as sonoridades dos “sons autônomos” para afetar a escuta e a musicoterapia ativa, apesar de experienciar as sonoridades no “fazer sonoro”, pouco tem estudado como a escuta inventa estas sonoridades. Cabe evidenciarmos que, nestas duas vertentes, os aportes se diferenciam tanto em relação ao ouvinte-paciente, como em relação ao ouvinte musicoterapeuta, pois possuem qualidades de ambientes de escutas distintos. Como havíamos descrito anteriormente, o campo musicoterapêutico é muito extenso e este nosso desafio de tentar acompanhar a escuta musicoterapêutica nas suas metamorfoses precisa sofrer vários recortes. O primeiro se dará exatamente nesta crítica que acabo de fazer, ou seja, apesar de considerar que receptiva x ativa esta cisão não é produtiva para o campo musicoterapêutico, tenho que assumi-la e, num outro momento, quem sabe, criar pontes entre as duas vertentes. Entretanto, por agora, vou guiar o leitor para regiões da musicopterapia ativa. Esta opção é derivada da minha experiência clínica, mas que, como descrevi anteriormente, é uma conseqüência germinativa dicotômica construída pela própria musicoterapia e, junto disso, uma predominância da musicoterapia brasileira que, na sua grande maioria, utiliza abordagens ativas. Segundo um levantamento de campo feito pela musicoterapeuta Ana Lea Von Baranow (2002), durante o I Encontro Nacional de Pesquisa em Musicoterapia, realizado em Porto Alegre (outubro de 2000), quarenta e um trabalhos apresentados eram referentes à musicoterapia ativa e, somente dois eram de musicoterapia receptiva. 31 Também vou usar como uma derivação do “fazer musical”, o termo “fazer sonoro”” para incluir as idéias de sonoridades até aqui apresentadas. 74 Assim, apesar da minha crítica à dicotomia, também participo de uma musicoterapia brasileira que tem no “fazer musical” seu principal dispositivo terapêutico. Portanto, o leitor será guiado para estas regiões e participará deste limite. Mas, antes de entrarmos nessas especificidades, ainda precisamos de uma visão globalizada no que tange a alguns pontos mais periféricos deste campo. Nesse sentido, não vou dialogar com a musicoterapia, pois isso seria impossível dado a extensão de seu campo. Também não vou dialogar com uma metodologia específica, pois deste modo teríamos uma escuta de um setor específico. O que pretendo é apresentar alguns temas dinâmicos que possam nos auxiliar em trajetos da construção da subjetividade da escuta musicoterapêutica. Se a cisão escuta X fazer é um fato, as problemáticas musicoterapêuticas vão muito além deste fato. Como o leitor sabe, quando a musicoterapia surgiu, a clínica já tinha uma escuta a partir da palavra. Neste sentido, quando a musicoterapia começa a construir uma prática clínica, ela entra no fluxo da linguagem clínica. Este movimento se apresenta no falar sobre um “fazer sonoro”. Dito de outra maneira, como falar sobre a experiência musical, uma vez que a experiência musical, embora inclua a linguagem verbal, não se limita a ela? Aqui está um problema semelhante ao que Eduardo A. Vidal, como descrevemos na introdução, tinha colocado sobre a escrita, considerando que, a linguagem não alcança muitos heterogêneos, mas sem ela, eles também não poderiam ser criados. Este problema de “como falar e escrever” as sonoridades não-verbais da clínica é um motor propulsor bastante forte na musicoterapia. Se por um lado as áreas vizinhas (terapêuticas e científica) sempre pressionaram no sentido de apresentarmos uma “explicação” da música enquanto dispositivo terapêutico, por outro lado, algumas vezes, a “música em musicoterapia” é criticada pelos músicos, uma vez que o território da subjetividade musicoterapêutica é outro. Pois é, leitor! Vamos entrar em um campo que se estabelece exatamente no meio de um fogo cruzado. Então, podemos entrar nesta região mais “problemática”, por assim dizer, enfocando a idéia de “música em musicoterapia”32. Ora, pensar música em 32 Não vamos nos dedicar a este tema, porque vários musicoterapeutas já fizeram este percurso, porém, alguns destes trajetos, nos auxiliarão na nossa cartografia. 75 musicoterapia é estar exatamente nas mutações que a escuta musicoterapêutica faz, uma vez que a musicoterapia vem construindo seu próprio território de subjetividade. Estas mutações precisam ser acompanhadas nos seus diversos fluxos. Neste sentido, vamos considerar “música em musicoterapia” através da idéias de regimes de signos apresentadas por Deleuze e Guattari, isto porque, são múltiplos e heterogêneos os componentes que constroem esta idéia. Não pense o leitor que estamos nos distanciando da escuta musicoterapêutica, contrario a isto, o que estamos fazendo é uma aproximação das marcas de escutas que a musicoterapia foi criando. No capítulo anterior, tínhamos visto que a escuta precisava fabricar matéria de expressão para efetuar as intensidades que passam por ela. Então, ela cria marcas de sonoridade. É neste sentido que “música em musicoterapia” revela marcas de sonoridades musicoterapêuticas e, portanto, cartografias da escuta porosa na subjetividade musicoterapêutica. 2. 3 Regime de Signos em Musicoterapia Vimos que a musicoterapia tem desafios exatamente nas passagens de ambientes de escuta, isto é, após ter criado marcas de expressão, ela também precisa atingir a fala - “falar sobre as sonoridades”. Estas passagens consolidam uma região entre a linguagem (clínica e científica) e a música. Vejamos estas movimentações à luz dos regimes de signos. Posto que a musicoterapia se efetua entre as formas de conteúdos (elementos da linguagem) e formas de expressão (sonoridades que precedem e ultrapassam a linguagem), a idéia de regimes de signos é pertinente à medida que não privilegia nem uma e nem outra forma de expressão, uma vez que é no exercício das passagens entre ambas que estas revelam processos gerativos e transformacionais. Estas passagens se dão por um jogo de semióticas concretas, ou seja, regimes de signos. Em Mil Platôs vol.II (1995), no capítulo “Sobre alguns 76 Regimes de Signos”, Deleuze e Guattari descrevem as armadilhas que a expressão lingüística impõe, mas também evidenciam que estas são inseparáveis e independentes das formas de expressão. Ora, esta combinação é fundamental para a relação música e linguagem em musicoterapia, pois é preciso manter no mesmo jogo as formas de expressões e de linguagem. Regimes de signos possuem formas de conteúdos inseparáveis e independentes de formas de expressão. Logo, são, “ao mesmo tempo, mais e menos do que a linguagem”(ibidem. p.96) e, por isso, não se confundem com estrutura ou unidade de quaisquer ordem, e nem as categorias lingüísticas conseguem abarcá-lo. Embora todos os regimes de signos carreguem o germe do significante (um signo que remete a outro signo e a outro infinitamente), há sempre uma formalização de expressão autônoma e suficiente, pois os signos também possuem pulsões de emissão de signos uns para com os outros. Assim, “ não se trata de saber o que tal signo significa, mas a que outros signos ele remete, que outros signos a ele se acrescentam, para formar uma rede sem começo e nem fim que projeta sua sombra sobre um continuum amorfo atmosférico” (ibidem.p.62). Os regimes de signos comportam misturas de diferentes semióticas, onde há tanto variações de quantidades (às vezes, um tipo de semiótica aparece com uma maior intensidade; outras vezes, um conjunto de semiótica aparece ao mesmo tempo; ora uma se transforma em outra) como diferentes qualidades (há sempre misturas de graus de combinações diferentes). Deleuze e Guattari nomearam estes regimes como semióticas: pré-significantes, significantes, pós-significantes, contrasignificantes e as mistas. Não há o privilégio de uma sobre as demais, nem uma seqüência evolutiva e nem uma transformação por etapas ascendente ou descendente, o que as diferenciam são suas características que se modificam e se misturam entre as formas de conteúdo e de expressão. O hibridismo da musicoterapia se dá por regimes de signos e foi neste contexto que a escuta musicoterapêutica foi construindo suas marcas. Vejamos alguns regimes de signos que perpassam estas marcas. Iniciemos pelas forças significantes, uma vez que as diferentes semióticas não possuem uma ordem preestabelecida e nem uma hierarquia. 77 As semióticas significantes concentram elementos que dão significados aos signos e, por conseguinte, geram movimentos cíclicos: um signo que remete a outro signo infinitamente: Ás vezes há um salto para outros círculos, mas sempre o movimento é de se relacionar com um centro. A interpretação faz a expansão deste círculo, pois ela assegura que o significado sempre forneça, novamente, um significante. Há um conjunto infinito de significados que produzem um significado maior e este é o padrão a ser seguido. Parte dos mundos musicais trazidos para ambientes terapêuticos foram delineados, na musicoterapia, por conceitos terapêuticos advindos das semióticas significantes gerados pela cultura (terapêutica) predominante. Even Ruud (1990), além de refletir sobre musicoterapia e cultura, como vimos anteriormente, ao defender que a musicoterapia precisa de bases do pensamento terapêutico para uma intervenção clínica, também entrou no fluxo da questão da música em musicoterapia, considerando que as quatro distintas teorias musicoterapêuticas (modelo médico, teoria psicanalítica, teoria behaviorista, e teorias humanistas), agrupadas por ele, tinham dificuldades de acompanhar as transformações sígnicas dos ambientes musicoterapêuticos porque, em sua maioria, preocupavam-se com o jogo da significância em prol de comprovar a eficácia da música enquanto elemento terapêutico (porquê a música é terapêutica, para quê a música deve ser usada, o quê a música pode fazer). A este fenômeno, Ruud dizia que o musicoterapeuta contemporâneo (1990) tinha entregado a questão “música em musicoterapia” para o psicólogo musical33 e que este, preocupava-se em descobrir o significado da música no contexto clínico. A saída para este impasse, segundo o autor, era escapar dos “porquês”, “para que”, e “o que”, e acompanhar como a música tornava-se terapêutica. Esta crítica era pertinente e o autor argumentava que, como a proposta musicoterapêutica nasceu de um espaço “entre”, a estreita vizinhança com as áreas psi era inevitável, Porém, a música não deveria ser submetida a esquemas significantes e, sim, ser um dispositivo de experiência, comunicação, aprendizagem 33 Ao escrever “entregar a música ao psicólogo musical” o autor está fazendo referência a uma musicoterapia que ora foi buscar no Behaviorismo uma “ilusão” de que a música pode interferir num “comportamento dado” tornando-se uma recompensa; outrora foi buscar numa psicologia que se sustenta sobre as fantasias de infância, um infinito movimento repetitivo de projeção – a música, neste caso, é limitada a uma máquina projetiva; ou ainda, uma musicoterapia que se identificou com um ideal de “auto-realização” de “uma natureza interna” – existência. Para um maior detalhamento da crítica, ver Ruud, op.cit. p. 85-91. 78 (cognição), contextualizada numa ordem cultural. Nestas condições, os regimes significantes eram evidentes. Numa outra vertente, alguns pensamentos musicoterapêuticos tendenciaram em considerar a música como linguagem. Algumas vezes, buscando um ponto em comum na música e na fala, reduzindo-as a uma raiz em comum, ou seja, ao estágio pré-verbal e pré-musical. A defesa para este pensamento era de que estes dois estágios se dão nos processos primários34 (Tyson, 1981) e, portanto, carregam um elo, pois ambas são geradas pela mesma matéria prima. Por este prisma, a música em musicoterapia torna-se um dispositivo terapêutico, pois atua nos processos primários. A escuta musicoterapêutica neste contexto, vai se ater a dispositivos regressivos da música, posto que é uma escuta a priori que tem por base as estruturas do inconsciente. Por outro lado, Klausmeier (apud Ruud, 1989: 89) discordava, considerando que, ainda que haja uma origem primária, também há diferenças, porque a música se apresenta no conteúdo de expressão. Neste sentido, o autor se desloca para o bloco das linguagens não verbais. Veja o leitor que este movimento, apesar de investir numa “não verbalização”, parte dos parâmetros da linguagem, uma vez que é uma linguagem não-verbal. Uma considerável corrente musicoterapêutica muito se apoiou no contexto do conceito de música como uma linguagem “não-verbal”. Um dos mais radicais exemplos deste pensamento é o musicoterapeuta argentino Rolando Benenzon35, que defende uma musicoterapia onde toda a atividade no setting deve ser feita com som e música, suprimindo-se a fala, pois esta é um mecanismo de defesa do musicoterapeuta. Porém, a musicalidade que emerge no setting, é organizada pela relação sujeito-objeto, ancorada por um princípio de igualdade, um princípio de ISO. Por este viés, a escuta musicoterapêutica também tem um padrão a priori, ela é estruturada em uma relação de identidade do sujeito-objeto. Portanto, aqui também se tem uma escuta musicoterapêutica significante. 34 35 Processos Primários é um conceito desenvolvido por Freud e refere-se às dinâmicas do inconsciente. Caso o leitor queira mais detalhes sobre esta teoria, ver Benenzon, R. 1989, 1998, 2000. 79 Por outro lado, Costa (1989) foi buscar um ponto comum entre a música e a fala. Tomando por base a teoria de Roman Jakobson36, a autora afirmava que a música não possui significado, pois não faz referência a conceitos. Porém, a função poética (estética) é o seu motor propulsor. Mas, para fundamentar seu trabalho musicoterapêutico, apesar de descrever a opinião de alguns autores que sustentam que a música é uma experiência estética (Igor Stravinsky, Juan Carlos Paz), a autora enfatiza a função apelativa da música, ou seja, a música tanto pode despertar no ouvinte determinadas sensações ou emoções, como também pode ajudá-lo a expressar emoções dando a estas formas sonoras e musicais. Como uma complementação ao pensamento jakobsoniano, ela também utiliza a teoria da comunicação de F. Watzlawick37, que enfoca duas diferentes formas de linguagens: analógica – não verbal (corporal, visual, sonora) que complementa a verbal, uma “música da fala” e, a digital – a linguagem falada. Sendo que ambas só existem juntas e não há superioridade entre elas, são complementares. Assim, é por este ponto em comum (uma “música da fala” – análoga- e uma função apelativa da música - ‘uma música que fala’ das expressões e dos sentimentos), que a autora afirma que “ a música (em musicoterapia) pode ser usada como uma linguagem terapêutica ”(Costa, p.58). A escuta musicoterapêutica, neste pensamento, apesar de estar mais fluída, uma vez que a música não tem significado porque não faz referências a conceitos, há ainda uma intenção de “ouvir” os sentimentos e as emoções despertadas pelas experiências musicais. E, deste ponto, há uma escuta a priori. 36 Roman Jakobson, Lingüista russo, propõe no artigo “Lingüística e Poética” a existência de seis elementos em um processo de comunicação verbal: emissor, receptor, canal, código, contexto (ou referente) e mensagem. Cada um destes elementos determinam uma função diferente da linguagem. A função emotiva ou expressiva, centrada no emissor ou remetente, implica uma marca subjetiva de quem fala, no jeito como fala. Se a mensagem está orientada para o destinatário ou receptor, a função predominante é a conativa ou apelativa. Esta é uma função típica das mensagens imperativas, de exortação, de chamamento, de invocação, de saudação, de súplica e, até mesmo, de persuasão. A função conativa aparece, também, como uma espécie de consciência do emissor da existência do receptor e da importância deste na decodificação da mensagem. Quando a mensagem centrar-se no contato, no suporte físico, no canal de comunicação, tem-se então a função fática como predominante. Esta função pode ser utilizada para testar o canal, bem como para prolongar, interromper ou reafirmar a Comunicação, atraindo ou confirmando a atenção do receptor. A função metalingüística responsabiliza-se pela verificação pelo emissor e receptor da utilização do mesmo código. A função poética busca uma projeção do princípio de equivalência do eixo de seleção no eixo da combinação, ou seja, o emissor seleciona quais signos utilizará e o modo de combiná-los e, ao trazer a atenção do receptor para tais elementos, enfatiza a função poética. 37 Watzlawick. F. (1981) “Pragmática da Comunicação Humana: um estudo de padrões, patologias e paradoxos” São Paulo, ed. Cultrix. 80 Entretanto, é a musicoterapeuta Carolyn Bereznak Kenny (1989) que revela uma região de passagem onde a música, em musicoterapia, começa a se distanciar dos regimes mais significantes e cria uma linha de escape. Para esta autora, apesar de a linguagem verbal sacrificar muito a essência dos contextos musicais, ao ser invadida pelo pensamento musical, ela gesta um movimento de invenção no sentido de procurar nas palavras um fato musical. É nesta dinâmica que a própria fala e escrita ganham dispositivos de invenção, uma vez que há um transbordamento da linguagem feito pela força musical, o que permitiria encontrar, na própria linguagem verbal, formas de expressões. Mas, isto só seria possível se o caminho estivesse aberto a uma “language of immediacy”38 .Ora, aqui já temos um regime pós–significante. As semióticas pós-significantes “se opõem à significância com novos caracteres, e que se define por um procedimento original, de “subjetivação” (MP vol.2, 1995,p.70). A “language of immediacy” defendida por Kenny é exatamente este novo caráter, ou seja, uma tentativa de inventar um dialeto onde a música em musicoterapia possa ter uma voz própria, transbordada pelo próprio acontecimento musicoterapêutico. Aqui, não se trata mais de usar a música como uma linguagem musicoterapêutica, mas sim, nas experiências musicais, inventar uma fala transbordada pelo musical. A escuta agora se desloca de uma busca das expressividades do sentimento e das emoções para um espaço neutro, ou seja, uma região de possibilidade, porém, sem um conteúdo a priori. Atualmente, com o aumento das questões internas da própria musicoterapia (os próprios signos musicoterapêuticos – uma musicoterapia que pensa o próprio fazer musicoterapêutico e não somente se dedica a uma defesa das forças predominantes), esta necessidade de equiparação diminuiu e o que vemos são outros pensares que novamente colocam em fluxo este tema, porém agora para vêlo não mais pela equiparação, e sim nas suas passagens e no aumento de sua disjunção. Veremos estes pensares no III capítulo. 38 Este termo é acolhido de Argüelles, J(1984) no seu livro “ Earth ascending : An Illustrated treatise on the law governing whole systems. Por isso, vamos mantê-lo em inglês. 81 Se, na tentativa de se tornar uma disciplina “aceita” pelo eixo central (terapias dominantes) a musicoterapia recorreu à linguagem como ponto de referência, há também a questão do próprio mundo musical, em musicoterapia. Como o leitor acompanhou no capítulo anterior, a música do século XX rompeu com a hegemonia do sistema tonal e ampliou os territórios da escuta musical para os deslocamentos de sonoridades. Este movimento, apesar de sua potência estética e política, também enfrentou uma “resistência” por parte dos ouvintes moldados pelo sistema tonal. Este fenômeno também é presente no pensamento musicoterapêutico. Podemos dizer que a musicoterapia poucas vezes dialogou com o pensamento da música contemporânea. Este fato tem gerado alguns limites bastante significativos na escuta musicoterapêutica, dando-se um deles na escuta das sonoridades com o outro. O musicoterapeuta Kenneth Bruscia (2000, p.97-110)39, um organizador de uma espécie de “musicoterapia geral”, identificou seis dispositivos que organizam idéias de música no contexto clínico : a) perspectiva de neutralidade - os pacientes em geral, não possuem um conhecimento sistematizado de música. Neste sentido, toda e qualquer expressão não deve receber um “julgamento estético de valoração”, devendo-se ter uma postura que “ exclua o julgamento da expressão sonora”, b) prioridade da terapia – centrada nas necessidades do cliente(discutiremos este tópico no III capítulo) c) o significado da música no contexto terapêutico, d) a música como pessoa, processo, produto e contexto, e) a multiplicidade sensorial da música (música como atividade de escuta e como produção - o fazer sonoro) e, f) as modalidades artísticas correlatas - a música pode ser acoplada às áreas de arte vizinhas (dança, poesia, expressão corporal, artes visuais). Todos estes tópicos podem ser discutidos. Entretanto, há um tópico instigante que dialoga com o trajeto que estamos criando : a) perspectiva de neutralidade em 39 Este musicoterapeuta tem trabalhado bastante nas questões internas da musicoterapia. Ele construiu uma espécie de mapa panorâmico, situando as movimentações e conexões entre as áreas distintas : música, terapia, ciência, filosofia; organizando como determinados setores aglutinam estas diferentes áreas. Neste sentido, ele compilou no livro Defining Music Therapy 1989 – 1. edição e, posteriormente, numa 2. edição, revisada e traduzida para o português como Definindo Musicoterapia, vinte e sete tópicos que, por assim dizer, organizam elementos de uma “musicoterapia geral”. No Brasil, ele vem se tornando uma espécie de “autor guia” desta “musicoterapia geral”. 82 relação à produção sonora do paciente - o não julgamento estético da expressão do paciente. Nas palavras de Bruscia: “Algumas vezes os clientes não são capazes de tocar ou cantar com proficiência técnica; algumas vezes sua música não tem ritmo ou controle tonal, algumas vezes eles não tocam ou cantam as notas corretas, algumas vezes os clientes se engajam em um processo com características mais lúdicas e exploratórias do que artísticas e criativas, e algumas vezes os resultados são sons e não músicas” (2000, p. 100-1). Deste ponto, um pensamento que propõe a suspensão de um “julgamento musical” revela um centro oculto, manifestando forças endógenas em torno de uma idéia musical preestabelecida. Na fala de Bruscia, a música é de base tonal, uma vez que há referências a controle tonal, notas corretas, ritmo estruturado. Essas referências nos levam a considerar que, por este viés, a escuta musicoterapêutica também constrói um modelo a priori, uma vez que está tomando por base um sistema estabelecido. Não seria este um distanciamento, um limite musical, ou melhor, um limite de sonoridade? Apesar de este autor conceber uma idéia de música bastante diversificada "Música é uma instituição humana na qual os indivíduos criam significado e beleza através de sons, utilizando as artes da composição, improvisação, performance e audição. Significado e beleza são derivados das relações extrínsecas criadas entre os sons eles mesmos e das relações extrínsecas criadas entre os sons e outras formas de experiência humana. Logo, significado e beleza podem ser encontrados na própria Música (no objeto ou produto), no ato de criar ou experenciar a Música (no processo), no musicista (na pessoa), ou no universo." (BRUSCIA: 1998: 104). Apesar dessas retenções, a musicoterapia se dá também pelas semióticas pré-significantes. Uma vez que a musicoterapia, ao se efetuar na música, 83 as formas expressivas contaminam seu ambiente musicoterapêutico (formas de gestualidade, corporalidade, vocalidade, ritmo, dança, rito, musicalidade). E, neste sentido, há uma predominância das semióticas pré-significantes, posto que nelas “Várias formas e várias substâncias de expressão se entrecortam e se alternam. É uma semiótica multidimensional, que combate segmentar, mas plurilinear, antecipadamente qualquer circularidade significante. A segmentariedade é a lei das linhagens. De forma que o signo deve aqui seu grau de desterritorialização relativa não mais uma remissão contorno de territorialidades perpétua ao signo, mas ao e de segmentos comparados dos quais cada signo é extraído” “...um pluralismo ou uma polivicidade das formas de expressão, que conjugam qualquer tomada de poder pelo significante e que conservam formas expressivas próprias do conteúdo : forma de corporeidade, de gestualidade, de ritmo, de dança, de rito, coexistente no heterogêneo com a forma vocal” (Deleuze/Guattari MP.vol.II p. 69). Os regimes pré-significantes se misturam à escuta musicoterapêutica, produzindo expressões heterogêneas. Experienciamos isto nas sonoridades da cena II. Existia ali um regime pré-significante, pois nos acontecimentos não se buscava um significado, mas sim as produções de sonoridades. Não se trata ainda de saber o que os sons significam, mas a que outros signos eles remetem, e que outros signos a eles se acrescentam para formar uma rede sem começo nem fim. Na emergência dos pré-significantes a escuta musicoterapêutica não se estabelece por um jogo a priori, e sim faz devires com: o corpo-instrumento, a vozinstrumento, o silêncio, o corpo vibrátil, imagens, os gestos, as sonoridades; ora agenciando forças e demarcando territórios, outrora escapando e inventando outros territórios. Este regime contém o desejo que tem produzido um setting na aventura do ritornelo, ou seja, devires sonoros que põem em movimento terrirorialização, desterritorialização e reterritorialização na musicoterapia. Aqui, a escuta é porosa. Nesta complexidade, este campo tem criado um setting rizomático e expressivo que se dá no fazer musicoterapêutico, no corpo-instrumento, na voz- 84 corpo, na voz-canto e na voz-fala. Por agora, podemos considerar que a escuta musicoterapêutica é o germe deste processo. Agora irei apresentar para o leitor fragmentos de regimes a-significantes em musicoterapia. Abrimos, assim, um outro trajeto, que vai fazer uma cartografia das produções musicoterapêuticas e fluxos a-significantes. Mais adiante, retomaremos o regime contra-significante. Por que considero os temas a seguir como perpassados por regimes asignificantes, uma vez que, como definiram Deleuze e Guattari, as semióticas são mistas? Como o leitor verá, por ter a música como dispositivo, a musicoterapia está sempre sendo desterritorializada, ou seja, mesmo que haja regimes significantes, como vimos anteriormente, as sonoridades acabam desterritorializando a própria musicoterapia. Isto porque a escuta musical é sempre uma invenção e, portanto, uma escuta clínica que se compromete com a escuta musical terá sempre a invenção como dispositivo. 2. 4 ESCUTA DE INVENÇÃO 2. 4.1 Setting: um local ou um espaço de forças? Um setting musicoterapêutico40 é um lugar de encontro, mas este “lugar”, em musicoterapia, é quase um “deslugar”. Do mais tradicional41 - uma sala de musicoterapia, ele se estende para: uma sala de instituição, um quarto de hospital, a casa de um cliente (pacientes em tratamento de reabilitação e idosos), uma 40 O setting musicoterapêutico é preparado de acordo com as características do paciente ( faixa etária, patologia e grau de comprometimento), do musicoterapeuta (cada abordagem possui diferentes procedimentos de preparação) e o local de atendimento. Além disto, em geral, leva-se em conta a queixa (o motivo pelo qual procurou a musicoterapia) e o histórico musical do paciente, que podem ser obtidos na entrevista e na ficha musicoterapêutica. Durante todo o processo, o setting vai sendo transformado conforme a dinâmica dos encontros. 41 A musicoterapia trabalha em vários locais tais como “Instituições (saúde física e mental), clínicas e consultórios particulares (atendimento individual ou em grupo), Indústrias e Empresas ( setor de recursos humanos), Hospitais (UTI, pediatria, oncologia, pacientes terminais e em coma, cardiologia, hemodiálise etc...), Comunidades (menores carentes), Ensino (atendimento em salas de aula –distúrbio de conduta e distúrbio de aprendizagem “) ( Baranow, 1999). 85 enfermaria, uma sala cirúrgica, uma clínica escola, uma sala de aula, um abrigo, às vezes a rua (trabalho musicoterapêutico com crianças e adolescentes de rua), uma sala de uma empresa. Isso porque a musicoterapia abrange várias áreas de atendimento. Mas se o local é variado, outras vezes também é inusitado: um corredor, um refeitório... Já trabalhei com uma criança no hall de um prédio com uma escadaria (3 andares). Lá, a vocalidade da criança se espalhava no ambiente e criava uma peculiar escuta corporal. O leitor deve estar se perguntando: Então, qualquer lugar é um setting musicoterapêutico? Não, não é qualquer lugar mas, sim, o lugar pode se dar onde uma escuta musicoterapêutica está em atividade num encontro terapêutico. O que estou dizendo é que não é o espaço físico que define um setting e, sim, “o jogo de forças nas suas redes de interações” (Baranow. 2002 p.97). Quanto às fontes sonoras do setting elas são desde as mais tradicionais (instrumentos convencionais: percussão, melódico e harmônico; materiais naturais : pedras, folhas, madeira, papel, conchinhas, água e; do cotidiano: garrafas, tampinhas de garrafas, bolinhas de gude, aparelho de som, gravador, microfone, papéis com texturas diferentes; além de materiais do repertório do paciente e instrumentos por ele criados), até as “estranhas” ( certa vez, trabalhei com uma placa de carro). Há também corpos (do musicoterapeuta, do paciente e do grupo – caso seja um atendimento grupal) e, portanto, vozes que cantam, falam, sussurram, gritam, gemem, choram e silenciam, e corpo-instrumento. Está presente também o silêncio de Scelsi – no silêncio, o pó de tudo; e o de Cage – um campo virtual de onde os sons se atualizam. O ruído também habita este espaço. Veja o leitor que, por mais que se queira “sustentar” uma escuta por regimes significativos, ela acaba escapando. 2. 4. 2 Qual o corpo que a musicoterapia escuta? Numa primeira impressão, podemos dizer que o corpo que a musicoterapia escuta é o corpo-instrumento, porém, como vimos, este corpo possui uma 86 virtualidade, um corpo-sonoro com uma névoa de sonoridade não audível. Entretanto, este tema precisa ser mais elaborado. José Gil (MC,1997) no capítulo O corpo e o inconsciente, nos alerta que o corpo do século XX(XXI) tem que ser considerado dentro de uma perspectiva transdisciplinar, isto é, passar pelo corpo anatômico da medicina, pelo corpo do fantasma da psicanálise (um inconsciente fundado na representação)42 e pelo corpo fenomenológico das inscrições dos fenômenos no corpo. Mas, além destes corpos, também existe um corpo virtual, uma máquina desejante que Deleuze e Guattari nomearam de - corpo sem órgão, ou seja, um inconsciente corporal que se desdobra no devir-outro, devir-mulher e também nos devires não humanos: animal, vegetal, mineral, música. A partir da afirmação de José Gil, também podemos dizer que vários corpos passam pela musicoterapia: o “corpo médico”, que não é mais aquele corpo que tinha um “olhar sobre ele”, mas que agora tem o olhar dentro dele, uma vez que a visualidade das tecnologias diagnósticas, além de mapear os órgãos, também mapeia o código musicoterapêutico hospitalizados, genético. (pacientes portadores Este corpo médico neurológicos, é presente síndromes no genéticas, de deficiências). Especificamente, setting pacientes a ligação da musicoterapia com o “corpo médico”, em geral, se estabelece pela relação experiência musical X alteração orgânica (batimento cardíaco, reações neuromotoras, reações emocionais que propiciam uma melhora no quadro clínico). Nesta linha, existem pesquisas quantitativas, que se preocupam em numerar as mudanças ocorridas e pesquisas qualitativas (Aigen, 1995; Henk Smeijsters,1996), que procuram propiciar um outro estado de saúde aos pacientes. Apesar desta relação mais próxima com as sintomatologias (música interferindo nos sintomas orgânicos), o “corpo médico” em musicoterapia é confrontado pelo corpo-instrumento e pela escuta porosa. Portanto, há um deslocamento do “corpo médico” para o corpo-sonoro. No Brasil, trabalhos como o de Cléo Monteiro França Correa (1997) com portadores de distúrbios epilépticos são um exemplo deste movimento que estamos descrevendo. Esta autora, apesar de estar comprometida com a área médica, não 42 Sobre este tema, ver “Psicanálise Morta Análise” in Diálogos. op. cit. 87 se limita ao “corpo médico”, pois integra, através de abordagens e técnicas musicoterapêuticas, o corpo-sonoro. Nesta perspectiva a musicoterapeuta americana Cheryl Maranto (1994) propõe um modelo biopsicosocial, no qual não se enfoca somente o “corpo médico”, e sim os aspectos psíquicos e sociais. O corpo fenomenológico, com suas experiências inscritas, também se apresenta na clínica musicoterapêutica. Ele se dá através dos fenômenos musicais experienciados e percebidos no corpo. A musicoterapeuta alemã Isabelle Frohne- Hagemann (1999) trabalha por esta perspectiva e considera que a hermenêutica é uma ferramenta importante para o musicoterapeuta escutar a linguagem do corpo no processo musicoterapêutico43. Existe também o corpo ritualístico e religioso (Joseph J. Moreno, 1995). Mas, apesar de todos estes, vamos falar de um corpo que não tem um dentro e fora (um sujeito-objeto), e sim um corpo na subjetividade da escuta musical. Inicialmente podemos encontrá-lo no corpo-instrumento que, com aquela pele elástica, como aprendemos com José Gil, faz blocos-sonoros: uma tatilidade da visão, uma escuta-tátil, uma escuta-olho, ou seja, um corpo gerado na escuta porosa. Vejamos um fragmento da fabricação destes blocos em musicoterapia. Imagine o leitor um espaço terapêutico onde se encontram disponíveis alguns instrumentos. No processo de subjetividade, um olho-escuta é atraído por um tambor-mão, ou um ouvido-tátil se transforma em mão-baqueta. Isso porque, como vimos, o corpo sempre estabelece vizinhanças, faz blocos (desterritorializando e sendo desterritorializado); é um corpo no devir-intrumentos. Até aqui, o leitor está acompanhando estes movimentos com uma certa visibilidade dos movimentos deste corpo. Mas, embora a materialidade das fontes sonoras seja uma potência do setting, sabemos que ele não se limita a estas fontes, já que o corpo-instrumento revestido pela névoa de virtualidade, também pode atualizar sonoridades diferentes: um braço se transformando em uma sonoridade áspera ao raspar uma parede, ou um pé que, deslizando sobre o chão, produz uma sonoridade específica. Então, 43 Isabelle Frohne-Hagemann, no artigo “Sobre la Hermenéutica de los procesos musicoterapéuticos” in Revista Internacional Latinoamericana de Musicoterapia vol.5, n.1, 1999, apresenta o processo musicoterapêutico a partir da análise fenomenológica. 88 entramos numa qualidade de expressão que, apesar de se dar em um gesto44 corporal (corpo-carne), não se restringe a ele porque também aciona o gesto musical. Na música, o gesto não está restrito a um movimento mas, sim, é “... um movimento dotado de significação especial. É mais do que uma mudança no espaço, uma ação corporal, ou um movimento mecânico: o gesto é um fenômeno de expressão que se atualiza na forma de movimento” (Iazzetta,1997, p.33). Deste ponto, o corpo-instrumento já está ficando insólito porque “existem gestos sem movimentos” (Baranow,2001, p. 37). Então, estamos nas moléculas do corpo-sonoro. Aquele corpo virtual que, na potência do silêncio, vibra com as forçasfluxos e ensaia expressões de sonoridades. Por isso, embora povoado por forças sonoras atualizadas: instrumentos musicais e objetos variados, este espaço clínico musical também se configura na virtualidade do corpo-sonoro e no intenso movimento dos poros na escuta. Então, precisamos dar um passo adiante para entrarmos neste campo insólito. Neste campo, o leitor já sabe que escuta porosa é afetada pelas forças na dinâmica das dobras e o corpo-sonoro, no seu processo de molecularização, não tem mais forma nem figura porque é um corpo sem imagem. Chegamos então no corpo sem órgão. A concepção de corpo sem órgão é formulada por Deleuze e Guattari em O Anti-Édipo (1966), quando apresentam que Antonin Artaud teria descoberto a potência deste corpo. Mas, o que quer dizer isso? “O corpo sem órgão não é o testemunho de um nada original, nem o resto de uma totalidade perdida. Mas sobretudo o que ele não é, de modo algum, é uma projeção : não tem nada a ver com o corpo de cada um nem com uma imagem do corpo. É o corpo sem imagem” (1966 :14). 44 A palavra gesto tem sentidos muito diferentes, dependendo do território no qual está inserida. Na pintura, o gesto tem especificações distintas e significativas e, na música, o gesto pode ser considerado um gerador de sentidos. 89 Esta é sua potência: uma realidade intensiva. Ele é povoado ou habitado por intensidades que passam e circulam: ondas e vibrações, limiares e migrações de forças, e é transpassado por gradientes de devires. Portanto, o que ele produz é um meio de experimentação na potência do desejo. “Não se pode desejar sem ter um corpo sem órgão, ele nos espera, ele é um exercício, uma experimentação inevitável, feita no momento em que a realizamos e, nesse sentido, ele é ‘plano de consistência’ próprio do desejo”. (Lopes, 1996:81). Um corpo sem órgão não remete a uma oposição aos órgãos, mas sim, como alertam Deleuze e Guattari remete a uma oposição aos organismos estratificados. Estes podem ser sintetizados em três palavras de ordem: o organismo, a significação e a subjetivação. Cada um destes impõe um corpo: “você será organizado, você será um organismo, articulará seu corpo – senão você será depravado. Você será significante e significado, intérprete e interpretado – senão será um desviante. Você será sujeito e, como tal, fixado, sujeito de enunciação rebatido sobre um sujeito de enunciado – senão você será apenas vagabundo. Ao conjunto dos estratos, o Corpo sem órgãos opõe se a desarticulação (ou as n articulações) como propriedades do plano de consistência, a experimentação como operação sobre este plano (nada de significante, não interprete nunca !), o nomadismo como movimento (inclusive no mesmo lugar, ande, não pare de andar, viagem imóvel, dessubjetivação)” (1996 : 22). Este corpo sem órgão habita, embora não explicitamente, o imaginário da escuta musicoterapêutica, pois ela vem produzindo trajetos no devir-som e no devirmúsica e isso é mobilizar o corpo, mesmo que ele esteja no mesmo lugar, pois a escuta porosa pode criar mundos sem que o corpo saia do lugar. Veremos este movimento na cena III. Esta mobilidade incorpórea se dá no ritornelo, ou seja, no movimento de territorializar e de desterritotializar forças, criando matérias de expressão (aquelas que se efetuaram em Schoenberg, Scelsi, Varèse, Webern, Cage, Berio, Nono, 90 Ligeti). E também se efetuam nas cantinelas, nos sussurros, nos murmúrios, e ainda, nos cantos de trabalho, nas canções anônimas, nos acalantos, nos cantos infantis, nos folguedos, nos cantos sacros religiosos, carnavalescos, guerreiros, nos cantos políticos... Todos estes cantos vibram em um dos livros mais sonoros de musicoterapia É preciso cantar: musicoterapia, cantos e canções45 de Luís Antônio Millecco Filho e col. (2001). Estas vozes e as vozes virtuais deslocam o “corpo médico” do olhar de dentro, os fantasmas da significância da interpretação, as inscrições fenomenológicas, em um corpo consciência, pois estas vozes só são matérias de expressão produzidas pelos afetos (aqueles sem formas e sem imagens) na produção do corpo sem órgão. O leitor deve ter reparado que entramos em uma outra geografia sonora, posto que percorríamos os territórios da música contemporânea. É que, como estamos falando das sonoridades autônomas, a subjetividade da música contemporânea ficou mais evidenciada. Entretanto, no setting, passam todos os cantos e todas as vozes. A partir destes corpos, podemos perguntar: não seria este o desejo secreto do musicoterapeuta? Escutar o corpo sem órgão, ou ainda, escutar os desejos que escapam das significâncias, dos sujeitos rotulados, das interpretações redundantes e das massas identificadas? 2.4.3 Dinâmicas no setting Como estamos apresentando uma musicoterapia ativa, as produções no setting vão se dar no “fazer musical”46. De uma forma extremamente resumida, 45 Os musicoterapeutas Luís A. M. Filho, Maria Regina Esmeraldo Brandão e Ronaldo Pomponét Millecco em É preciso cantar : musicoterapia, cantos e canções (2001) Rio de Janeiro, Enelivros, praticamente “escreveram um Cd” porque a leitura deste livro se torna uma “escuta de cantos”, uma cartografia dos desejos que cantam. 46 Como já dissemos, vamos usar o “fazer Musical” sempre entre aspas para diferenciá-lo do ato de composição. No início dos estudos sobre musicoterapia ativa, os musicoterapeutas lançaram mão da antropologia, da sociologia, de teorias da comunicação, da psicologia e da psiquiatria. Afora isso, o pensamento dos educadores musicais (Willems, Orff, Dalcroze, Martenot) também foi de extrema importância para a musicoterapia ativa. Assim, as reflexões sobre esse “fazer musical” clínico, se dão por engates com várias áreas de conhecimento (expressão corporal, cognição, neurologia, pedagogia, educação musical, música, fisioterapia, psicologia, psiquiatria, dinâmica de grupo). 91 podemos dizer que a musicoterapia tem visto o “fazer musical” como um ato que vem da expressão do gesto mental derivada da cognição (teorias cognitivas), da emoção e sensação da vida intrapsíquica (teorias psicanalíticas), da interconexão cerebral (teorias médicas com ênfase neurológicas) e da expressividade de um ser criativo (teorias humanistas). O “fazer musical” aglutina a expressão corporal, vocal e o corporalinstrumental, gerando acontecimentos sonoros através de jogos de experimentação e de improvisação. Nestes acontecimentos, o musicoterapeuta e o paciente criam ambientes sonoros e musicais. Às vezes, tocando juntos; outras vezes, estando juntos: o paciente improvisa e o musicoterapeuta ouve, ou o musicoterapeuta improvisa para o paciente. É um “fazer musical” compartilhado, pois sempre há um espaço relacional, um devir outro no devir música. Por esse caráter relacional, a musicoterapeuta brasileira Lia Rejane Barcellos (1992), chama essa forma de atuação de inter-ativa, pois estão “...musicoterapeuta e paciente ativos no processo de fazer música” (p.20). O musicoterapeuta Kenneth Bruscia sistematizou o “fazer musical”, em musicoterapia, em quatro tipos de experiências: improvisação (atividades de produção musical espontânea), re-criação (reprodução musical), (criação musical) e audição (recepção musical). composição E cada um destes tipos de 47 experiência musical possui características próprias . 47 Kenneth Bruscia (2000) organizou um conjunto de Tipos de Experiências em Musicoterapia (p.121-137) : A)Experiência de improvisação : o paciente manipula sons e/ou a voz e, através dessas expressões sonoras, ele improvisa temas rítmicos, melódicos ou ambientes sonoros.Essa improvisação pode ser individual, em dueto com o musicoterapeuta ou em grupo.Também quanto às variações, a improvisação pode ser : instrumental nãoreferencial (improvisação corporal e/ou instrumental somente gerada pelo próprio fazer musical); também Instrumental referencial : a improvisação parte de algo não-musical. Por exemplo, criar uma improvisação sobre um tema específico (um sentimento, uma situação). B)Improvisação de Canções: pode ser somente com conteúdos musicais e/ou referenciais (improvisar uma canção para uma pessoa). b1)Improvisações Corporais – o corpo como instrumento sonoro na criação de expressões sonoras-musicais. b2)Improvisações com múltiplos meios: corpo, voz,instrumentos e recursos sonoros. C) Experiências Re-Criativas : aqui o paciente vai tocar e/ou cantar tomando por base uma música já existente, ou seja, ele vai re-criar (transformar, reproduzir) uma situação musical. D) Experiências de Composição: em primeiro lugar temos que ressaltar que essa atividade apesar de utilizar a mesma terminologia da área musical (composição musical) em musicoterapia tem uma característica específica. Num ambiente clínico, o musicoterapeuta ajuda o cliente a estruturar uma produção musical que pode ser tanto extremamente simples, como com componentes mais elaborados. Porém, essa produção muito se distancia da composição musical do território musical. 92 O musicoterapeuta brasileiro Renato T. Sampaio, que recentemente defendeu a dissertação de mestrado Novas Perspectivas de Comunicação em Musicoterapia (2002), trouxe novas reflexões sobre o “fazer musical”. Partindo do pressuposto que o ser humano é um ser essencialmente de relação, ele considera que a música é um dos territórios em que o homem estabelece suas relações com o mundo. Assim, música “acontece enquanto uma ação mental sobre o mundo. Ela se realiza como uma forma do homem entender, organizar, classificar, interagir, manipular, ser manipulado, construir, desconstruir, enfim, uma forma de se relacionar com o mundo” (p.49). A partir desta idéia de música o “fazer musical” consiste em “... um agenciamento de velocidades, de forças de atração e repulsão, de polarizações, de gestualidades, de tempos, de intensidades, de massas sonoras, de volumes, de texturas, de formas, de devires, etc., ou seja, um moto contínuo de desterritorialização e reterritorialização. Este Fazer Musical possui como resultado a produção de signos musicais que englobam todo e qualquer produto deste ato musical, mesmo aqueles produtos que originalmente não se chamaria propriamente musical: um movimento, uma palavra, um texto verbal, um desenho, etc.” (ibidem, p.50). A construção de instrumentos musicais (com sucata e/ou materiais originais) e a dramatização de fatos, sonhos, histórias infantis, contos e/ou situações através da Música e/ou dos instrumentos musicais também são utilizadas. Neste “fazer musical”, tal qual defendido por Sampaio, a escuta está em pleno movimento de mutação, uma vez que há misturas (movimento, palavra, gestualidade, massas sonoras, texturas...) e, portanto, invenção de signos musicoterapêuticos. Há inúmeras possibilidades de experiências musicais em musicoterapia : experimentação de instrumentos, expressões sonoras musicais, experimentações vocais e corporais, movimentação corporal e rítmicas corporais, canções diversas, reproduções de músicas conhecidas, criação de ambientes sonoros e/ou musicais, sonorizações de cenas do cotidiano ou cenas específicas, criação de temas 93 musicais, improvisações livres ou dirigidas (que podem ser individuais, em dupla ou grupal). Enfim, há uma vasta gama de possibilidades. Nesta região aberta para as possibilidades de experimentação e invenção , a música se dá no e com o processo da experiência musical, ou seja, a experiência musical não está na música, no cliente, ou no musicoterapeuta, mas sim, no jogo de agenciamentos. Assim sendo, resta-nos pensar nos agenciamentos das escutas neste ambiente em processo. Mas antes, vejamos outros fluxos que passam pela escuta musicoterapêutica. 2.4.4 Escapando das Escutas Rostificadas. Vimos que na musicoterapia passam vários corpos, mas que ela põe em funcionamento o corpo-sonoro e o corpo-instrumento. Neste sentido, existe a convocação de um processo de deslocamento: um sujeito-paciente que atinge um corpo-sonoro e é deslocado da condição de paciente para ouvinte que inventa mundos. Se esse deslocamento propicia um escape da condição de sujeitopaciente, também temos que tomar os processos de subjetivação por um outro ângulo. Acompanhemos Peter Pál Palbart, no livro A vertigem por um fio – políticas da subjetividade contemporânea, quando descreve que entrar no ambiente da consagrada noção de sujeito é se deparar com uma “...matéria prima tão impalpável quanto incontornável que chamamos de subjetividade” (2000, p.11). Esta é uma tarefa bastante árdua e vasta, pois há constantes flutuações a respeito da idéia de sujeito e de subjetividade desde seu surgimento no século XIX. Para não nos comprometermos com essa literatura, durante nosso trajeto, temos tentado pôr em movimento estas mutações da subjetividade passando pelas dobras, nos seus processos inacabados. Mas ainda é preciso fazer uma aproximação, um pouco mais detalhada, da subjetividade na sociedade contemporânea. Sobre este aspecto, Peter Pál Pelbart cunhou a subjetividade contemporânea sob três condições : “a forma-homem historicamente esculpida, as múltiplas forças que batem à porta e põem em xeque essa mesma forma-homem, e a idéia do 94 experimentador de si mesmo” (p.13). Ele configura essas três condições, apoiandose na obra de Michel Foucault e do filósofo Gilbert Simondon. A primeira condição vem do legado de Foucault quando este considerou que não se trata mais de saber quem somos, mas sim de recusarmos o que somos, escapando da forma-homem historicamente esculpida. Junto dessa condição, Peter também considera a questão da fabricação de subjetividade que molda o homem encaixando-o em projetos de identidades que giram em torno de uma axiomática capital (idem,p.12). No enfrentamento dessa questão, surge o movimento reverso, que é um esforço para libertar-se das forças do capital. Em relação à segunda condição, as múltiplas forças que batem à porta e põem em xeque a forma-homem historicamente esculpida, podemos perguntar : que forças dão novos sentidos ao termo de subjetividade contemporânea ? Então, nos deparamos com a forma-homem tendo que enfrentar a velocidade. Uma velocidade que por atingir o tempo e, conseqüentemente, o espaço, configura paisagens instáveis, turbulentas e flutuantes. Estamos no século da velocidade que projeta a informação imediata. Surfamos pelo mundo, sentados numa cadeira. Tudo passa numa velocidade alucinante num movimento que, pela sua velocidade, só propicia panorâmicas de grandes massas com mobilidades generalizadas: músicas de massa, o poder telecomunicacional, o poder da informática, os slogans publicitários, a publicidade de guerra, a moda. Hoje, nossa casa é muito mais a velocidade que nos carrega e paralisa do que um lugar a ser habitado. Esta velocidade paralisa a subjetividade, tornando-a petrificada e inerte. A questão da subjetividade contemporânea passa por esse fato. Portanto, reconhecer esse tempo de velocidade instiga-nos a admitir que esse fenômeno gera um mecanismo identitário, pois, na tentativa de não sermos despedaçados pela velocidade, estruturamos modelos identitários flutuantes. As músicas de “moda” são exemplos destes mecanismos de identificação flutuante, já que fabricam escutas rostificadas. Um rosto é um sistema universal e serve como uma espécie de parâmetro. É um tipo de base que “autoriza” a significação. “ O rosto constrói qual o significante necessita para ricochetear”(MP vol. III, p. 32). o muro do 95 Em Mil Platôs vol. III, Deleuze e Guattari apresentam esses mecanismos de significância através da idéia de rostidade. Dentre algumas características do rosto, os autores evidenciam a função binária, que se efetua numa dinâmica de rostidade funcionando de duas maneiras: unidade ou elemento e escolhas. A unidade é o terceiro olho, um eixo central que dá ao ouvinte uma relação biunívoca: bom e mau ouvinte. Esse movimento gera um ouvinte ideal, ou seja, um modelo de ouvinte. Já a escolha produz o que passa e o que não passa pela identificação do rosto: boa ou má música, parâmetro de afinação (afinado-desafinado), estilo proeminente (música de sucesso e música fora do eixo). São as escutas significantes que programam os ouvintes. Ouvintes numerados (milhões de cópias de cds vendidos), globalizados, com um modelo de escuta pronta, a priori. Neste campo em que tudo passa pelo significado, as melodias são pré-estabelecidas e os ritmos estagnados tornam-se modelos para balanços corporais. A voz é padronizada, vestem-na com um uniforme para identificação e imitação. Seu timbre é um molde, uma voz que vende. Tudo isso pode ser encontrado nos movimentos de música de massa. Suely Rolnik descreve que, na sociedade contemporânea, as identidades locais de uma cultura “desaparecem para dar lugar a identidades globalizadas flexíveis. Essas acompanham o ritmo alucinado de mudanças do mercado” (2000, p. 454). Os modismos musicais brasileiros são exemplos desse fenômeno de regime de identidades flutuantes. Vista por este viés, a escuta está muito distante da invenção. Ela não é um ato de criação, de composição de espaços sonoros, mas, ao contrário, já está feita, tem uma fôrma onde os sons são colocados e agrupados Isso porque, como em qualquer processo de subjetividade, ela também se dá nas dobras das identidades. Nesse sentido, apesar de toda heterogeneidade que a música produz, existe sempre uma sombra de música globalizada, que acumula identidades modelos, criadas pelo mercado musical. Assim, é necessária uma visualização desta sombra de significância do território musical para poder escapar deste jogo e acessar o ouvinte não historicamente construído e, sim, convocar um ouvinte que escapa do rosto e mergulha desterritorializando em pontos novos fixos; mundos um experimentando novos mundos sonoros. de ouvinte escutas, que cria que faça linhas de devires, fugas, 96 Então, onde passam as linhas de fugas? Elas explodem do próprio território musical. Mas não basta somente perseguir estas linhas, pois corremos o risco de rapidamente organizar, qualificar, selecionar, agrupar. Talvez a questão seja deixar que a fluidez dessas linhas arraste o ouvinte para regiões a-significantes, que desfaçam o rosto, fazendo com que “cada traço liberado de rosticidade liberado de paisageidade, não uma coleção de conexão de hastes de faça rizoma com um traço picturalidade, de musicalidade: objetos parciais,mas um bloco vivo, uma na qual os traços de um rosto entram em uma multiplicidade real, em um diagrama com um traço de paisagem desconhecido, desconhecido, um traço de pintura ou de música que se encontram efetivamente produzidos, criados, segundo quanta de desterritorialização.” (MP vol. III, p.61). Veja só leitor: até aqui, vínhamos trilhando um caminho no sentido de que a escuta musical é sempre um dispositivo de escape e, portanto, uma potência crítica na clínica. Porém, agora, chegamos num ponto delicado e, deste viés, vemos que a escuta, na sociedade contemporânea, não é mais capturada pelo poder religioso, mas sim pelo capital. Assim, para a escuta musicoterapêutica, não basta por a música em fluxo. Há também que se pensar nos regimes significantes que produzem uma música que vende. Temos, então, uma problemática, se até esta altura vínhamos evidenciando uma escuta que produz, agora estamos apresentando uma retenção neste processo em função da rostidade da escuta. É que a rostidade da escuta também se apresenta no setting terapêutico. Não se trata somente de deslocar o sujeito-paciente para um ouvinte porque, nesta passagem, também passa o ouvinte rostificado. Este é um outro desafio da musicoterapia. O musicoterapeuta Ronaldo P. Millecco (1997), no artigo Ruído da Massificação na Construção da Identidade Sonora-Cultural, aborda este tema considerando que, o musicoterapeuta, ao enfrentar escutas rostificadas, precisa se 97 posicionar como um agente da saúde, investindo na ampliação de horizontes existenciais. Se antes estávamos falando de movimentos da escuta, deste ponto, estamos convocando essencialmente a escuta do musicoterapeuta como uma escuta crítica. Pois, perante escutas rostificadas, é preciso uma experienciação sutil para que se possa fazer mutações, trata-se como nos orienta Suely Rolnik de “escutar o burburinho das singularidades pré-individuais ou proto-subjetivas que se agitam no virtual do corpo sem órgão; trata-se igualmente de farejar a pista de agenciamentos que favorecem a atualização de singularidades como matéria de expressão” (2000, p.458). Agora a escuta está no campo da política: na rostidade ela se depara com as macropolíticas e, na potência das microimpressões, ela desliza nas micropolíticas. Retomaremos este tema no último capítulo. 2.4.5 Ambientes de Escutas Como a escuta musicoterapêutica se movimenta em três ambientes diferentes, ela tem qualidades distintas: qualidade de fluxo, retenção na fala e escuta de análise. 2.4.5.1 Escuta em Fluxo Durante as experiências musicoterapêuticas, a escuta está num puro jogo de fluxo, uma aventura do ritornelo. Tomemos uma imagem comum de um setting musicoterapêutico: um musicoterapeuta e um cliente numa movimentação sonora. Neste acontecimento, ora num devir-outro, as escutas (que já estão em partículas de deslocamentos, portanto, não é nem a do cliente e nem a do 98 musicoterapeuta, mas sim, um outrar-se), buscam um ponto para se fixarem, um centro móvel e, territorializam forças. Outrora a escuta do musicoterapeuta captura uma força (um pulso, uma canção, um som, um silêncio, um timbre) e, ao lançar essa força novamente no setting, oferece uma possibilidade de territorialidade ou de desterritorialidade com o paciente. Em outros momentos, a própria escuta do musicoterapeuta perdida, se abriga em uma vocalidade, ou num som, num timbre, no silêncio. Também ocorrem momentos em que ambos criam um muro sonoro, uma expressividade territorial – aqui, os fluxos se repelem –, ou seja, ocorre uma disjunção das escutas e, cada qual, busca um abrigo e criam territórios separados Há, ainda, momentos em que as escutas escapam do ambiente (físico) do setting e trazem sonoridades de outros ambientes (uma buzina, por exemplo). Esse fato pode gerar um encontro inusitado, pois, há um choque de territórios. Na cena III, o leitor irá acompanhar um pouco deste movimento. Estes exemplos são infinitos porque no movimento do ritornelo, as escutas vão criando teias de relações. 2.4.5.2 Escuta na Fala Também há ambientes de escutas diferentes. Às vezes ela está no fluxo das sonoridades (experiências do fazer e da escuta); outras vezes, ela atinge a fala (falar sobre as experiências sonoras musicais vivenciadas) e, neste momento, ela se torna uma escuta na fala. Aqui, ela vai enfrentar o embate da disjunção escuta-fala. Lembrem-se, a escuta não tem voz, ela precisa das marcas para criar as sonoridades mas, nesta circunstância, ela vai se tornar voz e fala e, assim, irá produzir um “entre” a escuta e a fala. Deste ponto, retomamos Foucault, porém, agora, na voz de Deleuze. Em Conversações (1992), quando Deleuze apresenta o pensamento de Foucault em “Um Retrato de Foucault”, ele fala sobre a visibilidade fora do olhar, do combate entre o que se vê e o que se diz. Vamos tomar este combate entre o que se escuta e o que se diz, pois aqui também há “curtos atrancamentos, um corpo-a- 99 corpo, capturas, porque nunca se diz o que se vê (o que se escuta)48 e nunca se vê (se escuta) o que se diz” (p.134) Neste ambiente, as forças que passaram pelas escutas vão criar uma “language of immediacy”, como descreveu a musicoterapeuta Carolyn Kenny. A linguagem vai ser transbordada pelas sonoridades, e as sonoridades vão ganhar outros signos (regimes pós-significantes), ou seja, uma fala das sonoridades. 2.4.5.3 Escuta em Análise Temos, ainda, um outro estado de escuta, que é “escuta de observação” ou melhor dizendo, a escuta em posição de análise musicoterapêutica - uma escuta explicativa. A análise musicoterapêutica é extremamente complexa, uma vez que vai ser colocada num mesmo plano - a escuta clínica e a escuta musical. Talvez, por esta complexidade, poucos são os teóricos que se dedicam a estudar este tema. No artigo “A Qualitative Approach to Analyzing Client Improvisations”, Bruscia (2001) toma por base uma abordagem qualitativa de caráter fenomenológico e cria uma estratégia de análise musicoterapêutica a partir das improvisações feitas pelo cliente. Neste contexto, a análise pode ser feita a partir do fenômeno : a) em processo - o que está sendo criado e como acontece o fato musicoterapêutico; b) no produto - uma análise do resultado do material improvisado; c) na experiência - que é relacionada com uma busca, por parte do musicoterapeuta, no sentido de entender o que o improvisador estava pensando ou sentindo ao improvisar, ou seja, os significados que o improvisador atribuiu à improvisação. Posto que é uma análise de improvisação, ou seja, uma expressão momentânea, o autor propõe três ambientes de análises com signos diferentes : gravação em áudio, gravação alguma em vídeo e, ainda, sua transcrição através de forma de notação musical, considerando que cada uma destas formas revela distintos relevos da análise. 48 Os parênteses são meus e o conteúdo interno também. Como a idéia é extremamente pertinente com o contexto que estamos configurando, tomei a liberdade de fazer uma analogia do ver para o escutar. 100 Se Bruscia apresenta os campos da análise, Lia Rejane Barcellos (1999), em sua dissertação sobre A importância da Análise do Tecido Musical para a Musicoterapia, faz um estudo que toma por base o método musicoterapêutico GIM – Guided Imagery and Music . A autora propõe uma análise musical a partir do modelo semiológico de Jean Molino que, na denominação de Nattiez (1990), é chamado de “modelo tripartido”, pois apresenta uma análise musical semiológica a partir de três níveis relativamente autônomos: poïétique, nível neutro e æstésico O poïétique apóia-se nas estratégias de produção, o neutro apóia-se na obra sem envolver os outros dois níveis e o æstésico apóia-se na escuta ou em estratégias de recepção. Para a autora, em relação à análise musicoterapêutica, o nível poïético é importante porque o musicoterapeuta faz uma análise musical das estratégias de produção sonora do paciente e o nível æstésico também é imprescindível porque se apóia nas produções de escuta. Por outro lado, ao tratar sobre análise musicoterapêutica, a musicoterapeuta Leomara Craveiro (2002) propõe que “nas relações entre música e escuta, pode-se percorrer dois caminhos diferentes: o primeiro, partindo-se de uma análise da partitura, com o objetivo de melhor conhecer seu feitio para, então, utilizá-la em um espaço terapêutico, possibilitando a escuta. Inicialmente, uma análise atemporal, congelada no espaço, tal como uma fotografia – imóvel, estática –; signos esperando para se tornar novamente música. No segundo caso, o caminho inverso: apoiandose primeiramente na escuta, faz-se uma análise da música enquanto acontecimento temporal, sendo esta dinâmica, ativa, fugidia, móvel como o próprio tempo para, em seguida, analisar-se a partitura, buscando estabelecer relações entre a escuta e a forma como foi construída esta música” (p.67) No próximo capítulo, vamos seguir este caminho, ou seja, tomar a escuta como produção. Desta forma, a análise musicoterapêutica também pode ser feita com a escuta como um dispositivo de invenção. 101 2.4.6 De paciente a ouvinte - uma vertigem Tínhamos começado nosso segundo tema com os regimes de signos e, assim, quando chegamos aos a-significantes, abrimos para uma região mais interna da musicoterapia, na tentativa de apresentar as forças que perpassam este campo e que, conseqüentemente, produzem processos de subjetividade de escuta. Porém, ainda faltam os regimes contra-significantes que se constituem na “desterritorialização que se serve de uma linha de destruição ou de abolição ativa” (MP. Vol II, p.91). Apesar de ter se apoiado em regimes significantes da linguagem, da interpretação e da música tonal como um padrão referencial, a escuta musicoterapêutica é o dispositivo contra-significante da própria musicoterapia. Seu desejo de outrar-se em corpo-sonoro no encontro com o outro, revela uma potência que desloca o sujeito dado e o paciente rotulado para ouvintes que inventam mundos. A musicoterapia já lidou com este deslocamento de várias maneiras. Às vezes, “dando” ao paciente uma escuta interna saudável, ou seja, acreditando que dentro do sujeito há um ouvinte que escapa da forma paciente com uma musicalidade dada; outras vezes considerando que este paciente se transforma em ouvinte à medida que o externo faz um par oposto com o interno (uma música que modifica o interno); vez por outra, o paciente é deslocado para um ouvinte que projeta seu interno numa tela de sentimentos revestida por uma camada de representação. Mas, como vimos, a escuta porosa se dá na aventura das mutações. Neste sentido, deslocar o paciente para um ouvinte não é vivenciar o entusiasmo de um “dentro feliz” e, sim, libertar a condição de um sujeito dado em prol de um inumano. Pelo viés da escuta, este processo se dá num devir som. Nas palavras de JeanFrançois Lyotard (1997), o inumano emerge na aventura da escuta musical, pois “se ela ali estiver, o sujeito não está” (p.159). Por isso, deslocar o paciente para um ouvinte é engatar fluxos, é escapar do corpo médico, da interpretação, do sujeito dado, do paciente diagnosticado, do sentimento catalogado, para “um protocolo de experimentação, através da voz, do 102 som, dos gestos, dos devires mais insólitos” (Peter Pal Pelbart, 2000, 69). Uma vertigem no outrar-se corpo-sonoro. A subjetividade do campo musicoterapêutico, no jogo da escuta, vem fazendo este deslocamento. Embora muitas vezes as terapias maiores pareçam atrativas e, desencadeiam regimes signos significantes (uma escuta que tem, a priori, uma lista de sentimentos para ser encaixada, ou, uma escuta que vai procurar uma identificação, ou ainda, uma escuta que vai “descobrir” um sujeito musical), ainda, assim, a vertigem da escuta tem sido uma potência contra-significante da própria musicoterapia, uma vez que desloca o paciente no movimento de deslocamento do próprio musicoterapeuta. Talvez este seja o maior mérito da musicoterapia: ao convocar a música para pôr a clínica em movimento, ela inventa ouvintes na clínica. *** Para finalizar nosso tema, temos que retomar o título: Uma escuta de invenção. Como o leitor acompanhou, a complexidade das forças do setting musicoterapêutico só fazem com que ele seja um rizoma, onde tudo corre para vários sentidos Há extensões, rupturas, acoplamentos, de segmentariedade, trajetos natureza diferentes que se cruzam na heterogeneidade pois, “vários códigos - perceptivos,gestuais,auditivos, táteis, lingüísticos cognitivos, e outros - se tocam, se intermeiam, se conectam, num rico jogo de multiplicidades, formando a trama terapêutica (também em rizoma). Portanto, essas formas sígnicas e/ou quase/sígnicas : códigos sonoros - musical, gestual, pré-vocal, tátil, pré-verbal e verbal, possibilitam as mais variadas conjunções” (Craveiro 2001, p.76). A complexidade das potencialidades deste setting, que se cria e é criado na e com as expressividades, atualiza forças corporificadas nas produções 103 musicoterapêuticas. É neste sentido que este ambiente, onde os ouvintes são atravessados por forças inusitadas, a própria tríade paciente – música – musicoterapeuta que vem sendo sustentada pela musicoterapia, atinge uma outra dimensão – a do jogo de forças (Baranow, 2002). E, nesta dimensão, “não temos nem sujeito nem objeto, nem musicoterapeuta, nem paciente, nem música, nem doença, saúde, patologia, loucura, nem ações e reações, mas sons que urgem em se tornar ritmos, se transformar em qualidades expressivas que constituem motivos territoriais” (Baranow, 2002 p.88). 104 CAPITULO III CARTÓGRAFO SONORO 105 3.1 ESCUTA QUE PRODUZ No capítulo I, no tópico “uma escuta que escapa”, o leitor se lembra que havíamos chegado no silêncio de John Cage. Agora, vamos retomar as idéias deste compositor e adentrar no pensamento musical sobre a escuta, ou seja, numa poética da escuta. No decorrer deste trajeto, faremos diálogos com o pensamento da escuta musicoterapêutica, ou melhor, de como a musicoterapia vem refletindo sobre sua escuta. A música moderna, com suas sonoridades inusitadas, acompanhou a tendência da arte processual que, dentre suas propostas estéticas, evidenciava-se uma tentativa de aproximar a arte da vida e, com isto, o espectador e o ouvinte da arte. Uma tentativa de quebrar a barreira artista x público, e construir um elo através de uma arte processual que se engajasse no processo de vida. O espectador passa de apreciador para agente ativo da obra e, na música, os compositores passam a construir as peças de modo que o interprete não mais se dedique a interpretar mas, também, ele é um agente participante da obra. Nesta corrente, vimos que John Cage, ao conceber o silêncio como uma potência musical, convoca o ouvinte a se responsabilizar por uma escuta, uma escuta que produz, que experimenta e não mais uma escuta que espera um objeto de arte. Porém, se a música experimental de Cage voltava-se para uma escuta que se produzia, por outro lado, a musique concrète também apresenta um movimento em direção à escuta. O emblema desta música, que vai se amalgamar às tecnologias e desembocar na música eletroacústica, é Pierre Schaeffer. No fim da primeira metade deste século, Pierre Schaeffer criou a música concreta. Esta terminologia vinha do desejo de “concretizar o som”. Este fato parecia possível a partir do momento em que a tecnologia permitia “fixar” o som (com dispositivos de gravação mais apropriados) e repeti-lo várias vezes e demoradamente. Deste modo, era como se pudesse “apanhar” a materialidade sonora com a escuta. Este pensamento musical gera duas vertentes importantíssimas. Se, por um lado, pensar a materialidade do som é escapar dos parâmetros limitados (altura e duração) que a música tradicional sustentava, uma 106 vez que a materialidade sonora não vai ser encaixada nestes parâmetros, por outro lado, também põem em movimento a “escuta que apalpa esta materialidade”. Mas, o “palpável” com a escuta retoma o abstrato, uma vez que é escuta. Assim, o autor abandona a idéia de música concreta e passa para musique expérimentale (1953) e, posteriormente, chega à música eletroacústica (1956). Como o empenho dos compositores vinha no sentido de criar métodos composicionais que abarcassem as novas sonoridades, Schaeffer também investia no sentido de fazer uma música a partir dos sons complexos do cotidiano, pois “tratava-se de recolher o concreto sonoro, qualquer que fosse sua proveniência, e de abstrair-lhe os valores musicais contidos em potencial ” (Schaeffer, 1988 p.23). A problemática musical do compositor vai, então, ao encontro de se apropriar do fenômeno sonoro49, independente de sua proveniência, para alcançar o “objeto sonoro”50 e, abstrair dele outras potências musicais. Essa dinâmica passa pela escuta e, neste sentido, o autor monta quatro modos de escutas para que, num jogo de permutações entre estas, possa se atingir o “objeto musical”. As escutas não são seu foco mas, sim, podemos dizer que elas são uma espécie de guia. Por isso, o que é potência na obra de Schaeffer é exatamente o que estas escutas inventam, e não as categorias de escutas. Portanto, tem-se aqui uma poética da escuta geradora de novos agenciamentos musicais que, apesar de algumas vezes criticada (intenção correta de escuta, objetos convenientes),inventou sonoridades nomeadas (efeitos audíveis em tipo-classe-gênero-espécie), libertou a linguagem musical de seus parâmetros inventando uma nova poética e, junto desta liberação sonora, a escrita musical também saiu de seu discurso linear e alcançou uma expansão e múltiplas ramificações (François Bayle apud Garcia, p.33). A poética da escuta de Schaeffer faz permutações entre quatro modos de escuta. Estes modos já foram exaustivamente descritos por vários autores e 49 Como pensamento filosófico, Schaeffer busca em Husserl uma postura fenomenológica que consiste em estudar o fenômeno tal qual nos aparece através da consciência. Junto deste pensamento, também está a “intencionalidade”, uma vez que os estudos dos fenômenos visavam não o estudo do mundo e, sim, da consciência, uma consciência intencional. Um outro componente fenomenológico que Schaeffer transporta para sua idéia musical é o de “redução fenomenológica” obtida através da suspensão de uma crença no mundo exterior em prol de uma concentração da percepção em si. Com este conceito fenomenológico, o compositor fundamenta a “escuta reduzida”, uma vez que a percepção na entidade da consciência é ressaltada como o único caminho de acesso à realidade. 50 O conceito de “objeto sonoro” foi desenvolvido ao longo de sua obra mas, é no “Traité dês Objets Musicaux, 1966”, que o “objeto sonoro” é o ponto central. 107 estudiosos schaefferianos mas, aqui, vamos usá-los como guia para ouvirmos a cena da mulher-sussurro. Cabe, inicialmente, evidenciar que a língua francesa propiciou esta idéia quaternária, uma vez que a escuta, nesta língua, já se apresenta ramificada. Este mesmo fato não seria possível em português, por exemplo, pois temos somente o ouvir e o escutar. Vejamos então, os quatro modos de escuta. O ouïr (modo um) – é um dispositivo sempre presente, uma coleta de informações, mas nem sempre consciente. É o ruído de fundo que embora estamos ouvindo, não nos damos conta dele mas, nosso corpo-escuta conhece muito bem este dispositivo, pois perante tal circunstância elevamos a voz. Este foi o movimento que a mulher-sussurro fez na primeira cena quando foi levada para fora do quarto. Sua escuta-pele; nas dobras do corpo-sussurro produzia no corpo-voz, uma sonoridade mais aguda (o sussurro intensificava-se e deslocavase para os agudos). Eis, aí, o ouvir modificando a voz e criando uma marca no corpo-voz. O écouter (modo dois) – Na cena II, quando chegamos à porta do quarto e batemos, havia uma “escuta em supensão”, uma subjetividade na espera. Para Schaeffer, o escutar é este movimento de suspensão, uma espera de algo sonoro relacionado com um contexto extra-musical. Ainda na cena II, quando estávamos aproximando-nos da mulher-sussurro, os sons do corredor e as vozes de fora não mais penetravam na nossa escuta porque, nesta condição, tínhamos o ouïr-écouter – uma escuta câmera, ou seja, uma escuta enfocada. Porém, quando começamos escutar o sussurro, não tínhamos mais uma escuta enfocada e, sim, uma escuta porosa, que tateava a sonoridade do sussurro nas suas qualidades. A esta escuta, que começa a se transformar em tatilidade, pois não se atém somente ao enfoque mas, sim, faz uma molecularização com o timbre, Schaeffer chama de entender (modo três). No entendre, o sussurro sempre escapa, porque no bloco escuta-som o que se tem é sempre um processo de desterritorialização (a escuta desterritorializa o som que é desterritorializado pela escuta). Neste sentido, é necessário avançar para um outro ponto, o Comprendre, que é da dimensão do sentido enquanto significado. É como se pudéssemos, através de significados, “enquadrar a escuta-som”; então, criamos um conceito sonoro. 108 Os quatro modos se intercalam, sobrepõem-se; não são separados e, sim, fazem misturas e passam uns pelos outros. Nenhum dos modos, portanto, são exclusivos (Smalley, idem, p.7) Se antes tínhamos falado de processo de molecularização da escuta, em devir-som, em escuta-pele, em dobras de escutas, de escuta porosa, ao tratar desses quatro modos de escuta, apesar das suas variáveis permutações, não seria “enquadrar a escuta”? Não estaríamos indo no sentido oposto das microimpressões? Além disso, criando um critério a priori de escuta não estaríamos limitando o campo virtual das sonoridades? Estes pensares já foram acionados pelas poéticas musicais de outros compositores (François Bayle, Michel Chion, Pierre Henry)51 e também Dennis Smalley, Silvio Ferraz, Rodolfo Caesar , Fátima Santos. Porém, relevante é que a poética de Schaeffer é uma máquina musical52 pois, através das categorias, o autor inventou um outro universo de sonoridades e, um corpo-instrumento não mais atualizado na visualidade e, sim, na dinâmica da escuta. Denise Garcia, tomando por base Michel Chion (1983), resume sete critérios morfológicos de Schaeffer : de matéria – massa (modo de ocupação no campo das alturas pelo som) e de timbre harmônico (qualidades anexas associadas às massas); de matéria de sustentação do som – grão (micro estrutura de matéria do som evocando o grão de um tecido ou de um mineral); critério de sustentação de forma (oscilação, vibrato); critério de forma : dinâmica (evolução do som nos campos das intensidades); critério de variação : perfil melódico (perfil geral desenhando por um som que evolui na sua tessitura); e, perfil de massa (perfil geral de um som cuja massa é “esculpida” por variações internas) (p. 53-54). Ora, agora temos um outro repertório sonoro. Esta é a invenção e, embora tenha escutas categóricas em Schaeffer, elas produzem. Parece que Schaeffer se traiu pela própria escolha – a escuta - pois, ao querer atingir um aspecto monádico do som, apesar de critérios reducionistas, ele escapa da representação, entra no mundo da invenção, e se torna um disparador de mundos sonoros. 51 Para maiores detalhes sobre este assunto, ver Denise Garcia que, ao descrever sobre os modos de percepção na música eletroacústica, relaciona o pensamento dos compositores que criticaram e ampliaram a obra de Schaeffer. 52 Uma máquina musical é uma máquina estética, uma potência de conexão com o infinito. O conceito de máquina foi criado por Deleuze e Guattari em O Anti-Édipo e é da ordem de uma abstração não representativa. 109 Aqui, se vê o corpo-instrumento sendo desconstruído pela potência da virtualidade do corpo-sonoro. Schaeffer faz uma mutação no corpo-instrumento. Ao desterritorializá-lo da visualidade e reterritorializá-lo na escuta, ele cria um corpo muito mais insólito e prenuncia o corpo-espectral da música contemporânea. 3.1.1 Pausa para um diálogo: escuta como técnica A musicoterapia, como já descrevemos, diferente da música, tem feito poucos ensaios no sentido de refletir sobre a escuta musicoterapêutica. Porém, algumas dessas reflexões têm considerado a escuta como uma pedra preciosa da clínica. Este é o caso do projeto de investigação “Música e Psiquismo” em desenvolvimento pelo grupo de Investigación y Clínicas Musicoterapéuticas – ICMus (grupo de investigação de parceria triádica com Argentina-Brasil-México que é coordenado pela musicoterapeuta Patrícia Pellizzari). Os membros da equipe de musicoterapeutas argentinos (Maria F. Barbaresco, Darío Caniglia e Romina Bernardini) dedicam-se a estudar “La escucha clinica em Musicoterapia”. Suas metas são: a construção subjetiva da escuta, o perfil do musicoterapeuta em função da escuta e as manifestações clínicas do escutar em distintos campos de abordagens. Em agosto de 2000, o grupo estava na etapa da passagem do Ouvir para o Escutar (terminologia Schaefferiana) e apresentaram o trabalho “Del oir al Escuchar” no III Simpósio Argentino de Musicoterapia (2000). Nesta etapa do trabalho, os autores fizeram uma leitura superficial de Schaeffer, pois entre as múltiplas possibilidades desta máquina musical de escuta, os pesquisadores foram atraídos pelas categorias de escutas (um jeito “concreto” de se enquadrar esta volátil impressão) e fizeram uma síntese reduzindo o ouïr e écouter (modos I e II) como indícios (causas) e o entendre e comprendre a valores (sentidos), chegando à conclusão que o “objeto sonoro” da escuta “ é tanto indicial, como de valor e implica em um processo de construção” (p.4). Porém, os autores também conectam a escuta schaefferiana a uma escuta subjetiva (considerando que a escuta se define por um objeto de escuta havendo, portanto, uma relação sujeito/objeto que se organiza com as fases evolutivas: ouvir 110 autoerótico, escuta narcisística e escuta objetal); às categorias de escutas - escuta indicial, escuta de apreensão imediata (reconhecimento, contraste, classificação, seleção e combinação); intersubjetiva de Roland Barthes; e, aos mecanismos de escutas de Rowell - escuta sinóptica, escuta de deciframento, escuta de associação. Não vamos nos deter nesta rede que, como vemos, parece que tem como objetivo enquadrar e localizar esta aventura chamada escuta que, por não ter voz, é sempre capturada por regimes significantes. Enfim, esta imensa grade com várias categorias fundamentam, segundo os musicoterapeutas pesquisadores, a escuta musicoterapêutica em três planos: a) a escuta do musicoterapeuta: tem por objetivo a escuta do outro (p. 7) b) a escuta como técnica: o musicoterapeuta toma como base o Ouvir e o Escutar (Schaeffer) e, ao “localizar” em qual movimento o paciente está (ouvir ou escutar), alcança assim o próprio objeto da escuta. c) a escuta do paciente: transforma-se por categorias fenomenológicas, subjetivas e de desenvolvimento. Deve ser investigada em que categoria de escuta ele se encontra. Os pesquisadores deixam exemplos clínicos de como a escuta como técnica pode ser utilizada, ao que segue: a) descobrir em qual categoria de escuta o paciente está e, b) tentar deslocar esta escuta. É interessante reparar que em um dos casos apresentado (um paciente cardíaco grave, em um hospital, à espera de uma cirurgia) localiza-se uma escuta próxima do entender e compreender: o paciente “compreende” a obra escutada e comenta que, o que está ouvindo, é Beethoven e, provavelmente, é o concerto “O Imperador”. Então, segue-se a seguinte interpretação “há um saber histórico conceituado para não falar do saber sobre si mesmo”.(p.8) Ora, deste ponto, podemos trazer o corpo-dançante da primeira cena. O que fazia aquele corpo-dançante que atraiu o violinista? Ele escapava da condição de sujeito “insano” e fazia um devir-corpo. Algo parecido acontece com o paciente que ouve Beethoven. Ele já foi desterritorializado, já escapou da condição de “paciente cardíaco” e começa a produzir um mundo de escuta. Será que não é este um estado de saúde, ou seja, um deslocamento de um paciente cardíaco para um ouvinte que é afetado por Beethoven? O próximo passo não seria acompanhar o movimento da 111 produção de escuta deste ouvinte? Será que organizar a escuta em redes de categorias a priori com o objetivo de identificar em qual estado ele se encontra, também não é por um “olhar sobre a escuta”? Deixando em aberto estas questões, voltemos ao campo musical com suas poéticas de escutas para, novamente, trazer mais potências de sonoridades e críticas para o campo da musicoterapia. 3.2 UMA POÉTICA DA ESCUTA No capítulo I, quando vimos a idéia de silêncio de John Cage, tínhamos descrito que a poética deste autor também se desenvolve em relação ao ouvinte. A partir do serialismo e da virtualidade da série que Webern alcançou, Cage considerava que o compositor agora estava livre para trilhar seu próprio caminho e, neste sentido, ele vai criar um trajeto que não pode ser previsto, que não se dá a priori, uma vez que, o inusitado e o desconhecido são experimentados. Os sons devem ser “assim como eles são, em si mesmo, ao invés de serem explorados para expressar sentimentos ou idéia de ordem” (Cage, 1976, p. 69) O que está em jogo aqui são os sons, quaisquer sons, intelectual ou não, uma experiência do silêncio que, como vimos, para este compositor é a potência sonora. A poética de Cage se dá em uma época moderna que, como já descrevemos, havia uma preocupação de aproximação do artista com o público. Assim, Cage é influenciado pelo “ver-através” de Marcel Duchamp (na transparência que atravessa a superfície do vidro, revela um ver-através, que dilui as fronteiras e remete o espectador ao outro lado, ao ambiente, à vida). Este tema é um dos pontos de aproximação da arte com a vida no qual Cage incorpora de Duchamp, considerando que, o silêncio, com sua potência de vida (os sons que nos rodeiam - ruídos, sons ambientais, sons naturais), é um campo para a experimentação, uma vez que, “quaisquer sons podem ocorrer em qualquer combinação e continuidade”. (Cage, 1976, p. 8). É no som livre da concepção de arte, que Cage fala do “ouvir-através”, ou seja, ouvir através de uma obra musical que é, ouvir o silêncio, uma potência de criação. 112 Por este prisma, o artista “não é mais um ‘fazedor’, nem suas obras são ‘feituras’ mas, sim, ‘atos’” (Santos, p.82). E, por conseguinte, o ouvinte “... ele tem ouvidos, deixe-o usá-los” (Cage, 1985, p.30). Como o leitor sabe, a escuta nas suas dobras vai criando uma escuta-pele elástica, um dentro/fora que constrói uma atmosfera nos devires. Cage também rompe com a relação sujeito-objeto, posto que a apreensão sonora não se desenvolve no tempo, contrário a isto, a sonoridade é dotada de uma temporalidade constitutiva de seu próprio modo de acontecer. É uma sonoridade no ritornelo. Perante este distanciamento da relação causa e efeito, Vera Terra (2000) descreve que este fluxo orientará para uma dupla recusa: “por um lado do sujeito enquanto artista criador e, de outro lado, o objeto enquanto arte” (p.77). A obra agora passa a ser um processo não-intencional, posto que, “ela deixa de ser a expressão de idéias, sentimentos, gostos e hábitos de um sujeito (o artista) e se realiza em um plano alheio a qualquer forma de subjetividade: o das operações do acaso”(p. 47). Ao renunciar à obra em prol das operações do acaso, a obra de Cage passa a ser uma “poética de escuta” (Shono apud Santos, 2002, p.92) isto porque, na idéia de poética “ o ato de escutar constitui-se também como um ato de compor” (idem, p.91). Esta composição da escuta se dá no jogo de afectos e perceptos, (OqF, 1992, p. 217-272),. Os afectos, como já descrevemos no capítulo II, são os devires não humanos do ser humano, as sonoridades, e os perceptos são os “sonorizantes”, pois o ouvinte “ não só ouve um complexo sonoro, mas se torna parte do tecido sonoro: digamos que o sujeito se transfigura passo a passo em som, para praticamente percorrer os entremeios desse som” (Ferraz, 1998, p.153). Portanto, o ouvinte “literalmente constrói o que ouve, ele é quem compõe. O objeto sonoro apenas dispara, ele não determina esse processo cognitivo” (idem, p.155-6). É o ouvinte que, na aventura do ritornelo (num movimento incessante de territorializar, desterritorializar, reterritorializar) vive os jogos dos devires: devir-outro, devir-música, devir-criança, devirmulher, devir-animal, devir-som, devir-volume : porque viver os sons é um outrar-se em sons. 113 3.2.1 Pausa para um diálogo: escuta - uma energia em deslocamento No livro “Listening, Playing, Creating: Essays on the Power of Sound”(1995), a musicoterapeuta Carolyn Bereznak Kenny53, especificamente na parte sobre escuta, apresenta o pensamento de Dorit Amir, uma musicoterapeuta israelita. O pensamento de escuta apresentado por Amir fundamenta-se na separação sujeito/objeto, uma vez que a autora considera a existência de uma escuta interna e outra externa, sendo a primeira uma sincronia com os próprios sons internos, “é uma mensagem interna, que vem de dentro do Eu” é um momento de “estar consigo mesmo” numa vivência completa em vários níveis (p.53-54). Já, a segunda, esta acontece quando o ouvinte abre a porta para o seu coração e permite que os tons e ritmos vibre seu mundo interno e privado”. A escuta externa pode ser vista como um movimento de fora para dentro. Para permitir que esta escuta aconteça, é preciso estar aberto para receber a música sem julgamento ou idéias pré-concebidas. Uma habilidade de “estar totalmente na música”. (p.53) Bem, como vimos até aqui, não há um mundo externo e um interno e, sim, uma dobra ou, ainda, uma escuta-pele que vai compondo um volume, uma atmosfera (José Gil) que compõe a própria escuta. Mas, o que é relevante no pensar de Dorit Amir é que, apesar da dicotomia (interno X externo), ela se esforça para libertar a escuta, apresentando o conceito de entrainment (encadeamento) que vem de um pensamento da física (Goldman – 1988). De uma maneira extremamente resumida, podemos dizer que este conceito considera que: vibrações rítmicas mais ativas afetarão vibrações menos ativas ocorrendo, neste engate, um outro processo de oscilação. 53 Carolyn Kenny enviou para vários musicoterapeutas o título: Listening, Playing, Creating : Essays on the Power of Sound convidando-os a escrever sobre estes temas. Assim, o livro apresenta vários artigos de lugares diferentes (Europa, Estados Unidos, Israel, Canadá e México), com pensamentos diversificados (na prática clínica e na formulação teórica), criando uma espécie de mapeamento sobre estes três temas. 114 Para a autora, a escuta tem este potencial, ela “é uma energia que vai em todas as direções ao mesmo tempo: de fora para dentro, de dentro para fora, de cima para baixo, de baixo para cima, da direita para a esquerda e assim por diante”(p. 54). Nesta relação de oscilação, o jogo das escutas no setting se dá numa dinâmica de oscilação e de mudança de direções. A relevância deste pensamento é que a escuta, aqui, vai ser pensada no jogo de “atração” e “ativação”, e não como uma categoria a ser identificada. Entretanto, mais próximo do pensamento de escuta como ato de composição está a musicoterapeuta Carla Francalanci (1992) que, na monografia “Escuta e Subjetividade: a importância do pensar em Musicoterapia”, toma a subjetividade como um “ponto de escuta”, isto é, a partir de um ouvir, ocorre a criação de um espaço que se desloca entre o som, o silêncio e o ruído. A subjetividade da escuta se dá exatamente na criação deste espaço. Por este prisma, não se trata mais de enquadrar a escuta em categorias, mas de acompanhar os trajetos na criação de seus espaços, ou seja, os “pontos de escuta”. Contudo, se pensarmos a escuta nos afetos e nos perceptos não teremos ponto, e sim, teias de linhas em produção de mundos. E, nas dobras, não há um interno e um externo mas, sim, no jogo das forças, a escuta é habitada de sonoridades porque as sonoridades são inundadas de escutas. *** Convido o leitor para a última metamorfose da cena. Retomemos a cena II. O leitor lembra que estávamos agachados, próximo ao corpo da mulhersussurro. Nossa escuta fazia devires com o timbre daquela vocalidade... 115 3.3 CENA III – UM DEVIR BICHO ... nas microimpressões do registro vocal do sussurro, havia uma textura (um “entre” a construção e não construção do som) que ia cunhando pulverizações de vibrações ásperas, misturadas com golfadas de ar que ora repetiam pontos de ataques, ora se perdiam e criavam pequenas variações. Às vezes, a intensidade gerava uma pequena expansão sonora, outras vezes, os sons se tornavam granulados. Porém, apesar destas mutações, havia uma ronda que capturava a nossa escuta nesta vocalidade e criava uma espécie de plano movente. Nosso corpo agachado penetrado pelas sonoridades do devir-som, um devir corposussurro, ensaiou movimentos de vocalidade. Havia uma “sonoridade por vir” (nossa voz, em processo de devir corpo-sussurro) que ensaiava uma forma de expressão. Uma vocalidade por soar... E então, agora, nosso corpo-voz, agachado na frente da mulher-sussurro, penetra no sussurro com um som grave de longa duração com um leve vibrato. Este som habita os “buracos sonoros” (os pequenos cortes) do sussurro, e a textura do sussurro começa a se amalgamar com o som grave. Esta mistura vai se transformando em um som nasalado. O sussurro, tal qual na cena anterior, investe na intensidade. Parece que ele não é mais tão secreto: a intensidade revela pequenos vibratos e as vibrações ásperas começam a deslizar; há sons que começam a expandir, ainda que timidamente, no espaço relacional. Os “buracos sonoros”, bem menos aparentes, agora passam a ser uma mistura de timbres. O sussurro começa a se transformar em murmúrio. Nossa escuta-timbre desloca-se do grave para uma região intermediária e começa a rodear o murmúrio com uma sonoridade boca chiusa. O corpo-murmúrio desencosta a cabeça do joelho porque a sonoridade começa a dilatar seu espaço-corpo. Então, vemos o rosto, o olhar é distante, mas a boca parece buscar sonoridades. Nossa escuta do inaudível, aquela que ouve vozes, procura preencher aquele rosto-boca com vozes, deixando passar pelos corpos: muxoxos, cochichos. E, de repente, encontra um agudo curto e fraco que agora pinça o silêncio. O corpo-murmúrio pára o balanço e o seu olhar parece percorrer o quarto. 116 Nossa escuta porosa investe num agudo staccato e começa a marcar o silêncio com variações de agudos. O olho-escuta da mulher fita o nosso rosto-boca, o pescoço gira na direção dos sons que se espalham. Nossa voz-olho põe-se a ligar os agudos e começa a desenhar uma sonoridade que desliza dos agudos aos graves, preenchendo o espaço entre os dois corpos. De repente, o esboço de um riso e, corpo-murmúrio se fecha novamente. Nosso olho-corpo silencia a voz. Há um silêncio potente... Enquanto reorganizamos nosso corpo-escuta, naquele silêncio em produção, um som inusitado corta o espaço-silêncio. O corpo-murmúrio é afetado e, rapidamente, procura a fonte sonora invasora. Então seu olho-câmara, fixa a janela (ali tem uma pomba que arrulha). Também afetados, levantamos em direção à janela. De lá, olhamos para a mulher e nosso corpo a convida para a janela. Seu olhar se intensifica no nosso gesto, mas o corpo parece grudado no chão. Então, nossa escuta porosa (aquela do inaudível) ensaia uma sonoridade e nossa voz diminui o espaço corpo-janela, criando um chamado para o corpo-murmúrio, uma espécie de embalo com aqueles agudos que anteriormente, eram espalhados. O olhar-murmúrio se levanta para a sonoridade e o corpo vem junto. Na janela, as duas escutas novamente se dobram em escuta-pomba, um devir animal. Enquanto estamos na janela, nosso olho-câmera avista, lá no pátio, o corpodançante (aquele que dançou no palco com o braço-arco do violinista); ele está dançando e cantando numa roda grupal. Alguém toca um violão, outros cantam e dançam. Há risos, escolha de músicas, um ritual de canto. Lá, não tem olhar sobre o corpo-dançante e o braço-violão, num ritual de canto, dança com o corpo-dançante. A pomba voa, e junto com ela, a mulher também, no olhar-pomba. Depois de fitar o infinito, ela sai da janela e senta na cadeira, mantendo o olho-pomba. 117 3.3.1 Uma pausa para agenciamentos O devir é o movimento desta cena; o devir animal que não é se transformar em pomba, uma vez que o devir não é uma relação de correspondência, de identificação, nem um estado de regressão ou de progressão mas, sim, um desejo de pertencer a outros continuums cósmicos, um desejo de multiplicidade. Fazemos devires animal, mineral, vegetal. É uma vizinhança imaterial que nos tira da forma homem para a vertigem do inumano. No devir molécula sonora, os graves se espalharam criando um espaço mais denso. E, então, o sussurro, também molecularizado, começa a se misturar e logo os espaços sonoros formam uma teia movente que se desterritorializa para uma sonoridade mediana. Nestas misturas, o sussurro já é outro, porque também foi desterritorializado. Tudo isso, são agenciamentos constitutivos de desejo, “o próprio desejo que passa e se move” (D. p.114). O desejo no ritornelo no jogo das escutas. *** Esta é a aventura da escuta musicoterapêutica, um movimento de devir no tempo do ritornelo. A prática diária do musicoterapeuta se dá nessas mutações, independente da área de atendimento ou da metodologia empregada. Existe, sempre, uma escuta em devir. É na prática clínica que a escuta, em musicoterapia, também tem uma escuta que escapa. Ela é da ordem das microimpressões, pois se lança nas sonoridades para ouvir o burburinho das vozes que escapam e o corpo sem órgão. Aí está o ponto cego, que o musicoterapeuta argentino Diego Shapira (1996), já tinha detectado em seu artigo “Teoria, Lenguaje y Ética em Musicoterapia” quando alertava que havia uma escuta invisível que deslizava sorrateiramente porque não era evidenciada na linguagem e nem nas expressões sonoras. 118 Não seria este ponto cego da escuta musicoterapêutica a surdez que nos moveu a enfrentar esta insólita teia da escuta? Então, agora, já é possível falarmos que este ponto cego, ou esta surdez da musicoterapia, pouco evidenciada, é um estado da escuta inaudível. Aquela que se dá nas dobras porque vibra com a força dos afetos. Uma escuta porosa que caminha no silêncio e inventa marcas de sonoridades. Mas que poucas vezes os musicoterapeutas puseram no fluxo da escrita. Isto porque, a questão da escuta musicoterapêutica não está limitada aos audíveis e, sim, na potência dos inaudíveis (Coelho, 2001). É que lá, passa o burburinho do desejo de produção. Portanto, não basta escutar a música do paciente, é preciso ser um cartógrafo sonoro. 3.4 CARTÓGRAFO SONORO Mas o que faz um cartógrafo ? Aqui, temos os movimentos de um cartógrafo descritos por Suely Rolnik (CS, p. 66-90) e por Paulo César Lopes (1996, p. 133-136). Um cartógrafo é comprometido com as “formações do desejo no campo social” (CS, p.66). Ele não se compromete com querer entender, explicar ou revelar. “O que ele quer é mergulhar na geografia dos afetos e, ao mesmo tempo, inventar pontes para fazer a travessia: pontes de linguagem” (idem, p. 67). Mas, esta linguagem é um “tapete voador”, porque integra história e geografia. Um cartógrafo “aceita a vida e se entrega” (idem, p.68). Seus procedimentos são a invenção sem protocolo formalizado, porque ele quer se colocar na adjacência das mutações. No lugar de representação, ele prefere estar no fluxo das “intensidades escapando do plano de organização, desorientando suas (próprias) cartografias” (idem, p.68), pois ele sabe que é “um vigilante entre macro e micropolíticas, complementares e indissociáveis na produção de realidades psicossocial” (idem, p.69). Não é possível definir o método, nem por referências teóricas ou por procedimentos técnicos do cartógrafo, mas a sensibilidade é o seu trajeto. 119 Já que o cartógrafo não se apóia em estruturas estabelecidas, qual seria o equipamento que um cartógrafo sonoro levaria quando sai para o campo das sonoridades? Ele leva no bojo marcas de escutas sonoras que, como estão sempre em mutação nas dobras, servem como dispositivos para ativar fluxos interrompidos. Por que ativar fluxos interrompidos? Porque a avaliação de um cartógrafo sonoro é o grau de intensidade que as escutas permitem, os trajetos que elas podem suportar e os movimentos que elas fazem na condição desejante da vida. É por isso que ele inventa estratégias no ritornelo porque às vezes é preciso desterritorializar e ser desterritorializado por sussurros, murmúrios, outras vezes, é preciso territorializar um silêncio, fazer uma ponte sonora, para que os afetos possam fluir. Um cartógrafo sonoro sabe que as escutas intensas “nunca acontecem quando esperamos” (Lopes, 1996 p.134), porque elas circulam nas microimpressões, portanto, não é uma questão de projetar sonoridades e sim, de tornar-se molécula sonora e viver os acontecimentos. E, então, ele experiencia os movimentos de micropolíticas que são as linhas flexíveis, moleculares, que se dão nas atrações e repulsas da escuta porosa. Uma escuta que não tem origem, que não é centrada e nem periférica, pois é uma multiplicidade nos devires imprevisíveis e inaudíveis. Porém, as dobras da escuta também se movem pelas escutas rostificadas, como vimos, anteriormente, o que também gera linhas duras, molares, mais próximas de escutas mapeadas, a priori, indentificadas, prisioneiras de um “olhar sobre a escuta”. Portanto, o cartógrafo sonoro é político, porque sua escuta faz cartografias de macro e micropolíticas. Quando Diego Shapira (1996) falava da relação ética do ponto cego da escuta do cartógrafo sonoro, é provável que ele vislumbrava um espaço ético de invenção, um espaço onde as várias escutas musicoterapêuticas, com suas diferentes marcas, pudessem se encontrar e gerar um ponto cego, um silêncio potente, que desfaria todas as escutas já demarcadas, para se inventar outras. Ora, não é este o movimento da escuta musical? Não é isso o que compositores fazem? Tomam uma marca de escuta e desmontam, desconstroem, criam linhas de fugas e, 120 aí, está uma escuta estética ética. É que a ética “diz respeito à afirmação da vida em sua potência criadora;” (Rolnik, 1997 p.19) e das relações que se estabelecem nesta potência. Como vimos, o cartógrafo sonoro estabelece várias relações de escutas. Por isso a ética do cartógrafo sonoro é esta: caminhar pelas escutas das diferenças para que a própria subjetividade da escuta musicoterapêutica possa alimentar, destruir e desmontar sua cartografia sonora. Se é preciso alimentar a escuta do cartógrafo, quais são suas moléculas sonoras? São produções musicais culturais que, em específico, o cartógrafo sonoro brasileiro tem num vasto universo (a música popular, folclórica, os acalantos, os cantos sacros, os cantos políticos, o canto carnavalesco, o canto dos mitos...) Mas é preciso também alimentar-se de universos mais insólitos, estamos falando da música contemporânea. É preciso ser marcado por sonoridades de moléculas sonoras de Varèse, das vozes de Berio, Nono, Ligeti, e também ouvir o “ouvinte compositor” de Cage, o silêncio de Scelsi, e ainda as sonoridades da máquina de escuta de Schaeffer, a melodias timbrísticas de Webern, os sons debaixo da cama de Rodolfo C. de Souza, a subjetividade da música eletroacústica brasileira enfim, o cartógrafo sonoro tem que ser um antrofágico sonoro, que “vive de expropriar, se apropriar, devorar e desovar” (CS, p.67) sonoridades. São nessas dobras, na macro e micropolítica, nas escutas das diferenças, no movimento inventivo da própria escuta, que o cartógrafo sonoro desloca a condição de paciente para um ouvinte. Não se busca centrar uma escuta no sujeito e nem nas necessidades dele. O que o cartógrafo sonoro quer são os devires, para que o inumano invente mundos sonoros. Para tanto, é preciso deixar passar as vozes que escapam e ouvir o burburinho do corpo sem órgão, porque “A linguagem não é a vida, ela dá ordem à vida; a vida não fala, ela escuta e aguarda” (MP vol.II p.13) 121 CONCLUSÃO - um intervalo Nossa cartografia vai fazer um intervalo, porque nenhum cartógrafo sonoro conclui nada, o que ele quer é que o caminho fique aberto para que os fluxos continuem. Mas, é possível retomarmos algumas passagens que percorremos para fazermos uma espécie de imagem síntese do nosso trajeto. Buscávamos um desejo de “escuta musical clínica”. Vimos que ele tentou se efetuar, mas não havia um plano que pudesse sustentá-lo. Já no século XX, a subjetividade da música moderna colocou em xeque estruturas estabelecidas, e as sonoridades entram no fluxo musical criando um terreno de sonoridades autônomas e uma poética do ouvinte. Por outro lado, a escuta clínica criou uma escuta com o outro, um outrar-se. Neste ambiente vimos o nascimento do personagem psicossocial, o musicoterapeuta. Se a música contemporânea colocou em fluxo as sonoridades, o musicoterapeuta colocou em fluxo o ouvinte-paciente, porque deslocou um sujeito paciente para um ouvinte que cria mundos sonoros. A subjetividade musicoterapêutica já trilhou vários caminhos, porém, uma clínica que tem como potência desterritorializante a música, tem que ser desconstruída e reconstruída sempre. A música contemporânea é um alimento potente para este movimento. Seus fluxos têm desterritorializado vários pontos estratificados da escuta musicoterapêutica. Uma escuta que investe num, mesmo plano, relações heterogêneas, precisa estar nas dinâmicas dos fluxos. Para tanto, é preciso convocar o cartógrafo sonoro, pois ele, não se compromete com técnicas de escutas, nem com relações identificáveis. Ele também não tem a ilusão de que pode centrar sua escuta no paciente ou na música, seja por uma intenção clínica ou por um objetivo clínico. Além disso, ele não espera que um conjunto de categorias possa dar um significado para a inexistente escuta. Ele sabe que a escuta não existe, porque ela é sempre inventada, ela é um ato de composição. 122 Nesta condição, seu anti-método enfrenta os acontecimento. Ele sai a campo, deslizando entre as forças audíveis e inaudíveis. Seu esforço vai no sentido de ouvir os fluxos do desejo. Deste modo, seu equipamento são as marcas de escutas que servem como dispositivo para mover fluxos, e seu trajeto é criado nos movimentos das moléculas sonoras que, às vezes, se dão em passagens molares do audível e, outras vezes, nas passagens moleculares do inaudível. No inaudível, a escuta é porosa e vive a aventura dos acontecimentos no movimento do ritornelo. Este é o desejo do cartógrafo sonoro, um desejo de estar nos acontecimentos para ouvir o burburinho do corpo sem órgão em prol da expansão da vida. Porque o cartógrafo sonoro sabe que sempre há um limiar de desterritorialização, sempre há vozes que escapam, sempre há escutas para inventar. ‘ 123 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AIGEN, Kenneth(1996) Role of Values in Qualitative Music Theray Research In Qualitative Music Theray Research- Beginning Dialogues, Barcelona Publishe. AMIR, Dorit (1995) “ On Sound, Music, Listening and Music Therapy” in Listening, Playing, Creating. State University of New York Press, Albany, New York. BARANOW, Ana Musicoterapêutico Lea von Dissertação (2002) de O Jogo mestrado Sonoro num apresentada na Território Pontifícia Universidade Católica de São Paulo em Comunicação e Semiótica. ________. (1997) Musicoterapia :Uma visão Geral. Rio de Janeiro. Enelivros ________. (2001) Os Territórios num Trabalho em Equipe com Musicoterapia . in Revista Brasileira de Musicoterapia. Rio de Janeiro. UBAM – ano VI n.5. BARBARESCO,M.F, CANIGLIA ,D e BERNARDINI,R (2000). 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