a escassez de água

Transcrição

a escassez de água
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Cidadania&MeioAmbiente
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Ilustração por Jack Cook/WoodsHole Oceanographic Institution
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Caros Amigos,
Nada melhor para ilustrar a crise global da água
que esta imagem, onde a pequena “bolinha”
azul representa todo o volume de água disponível no planeta em relação ao volume da esfera Terra. A “esfera azul” tem diâmetro de
1.385km, volume de 1,4 bilhão de km3 e inclui
toda a água nos oceanos, mares, calotas polares, lagos, rios, aquíferos, na atmosfera e até mesmo em você, em seu animal de estimação e nas plantas. A
comparação entre as duas esferas torna-se mais impactante quando se sabe
que o “capital água doce” – não renovável e cada vez mais dilapidado – é de
35 milhões de km3, algo como 2,5% do volume total. A gestão desse
limitadíssimo estoque de água doce é hoje o maior desafio enfrentado em
escala global. Daí a importância do chamado à reflexão lançado pela Organização das Nações Unidas no Dia Mundial da Água 2011 – foco desta edição.
Recurso vital à sobrevivência de todos os organismos vivos, a água tem sido
fonte de conflitos desde 2500 a.C., quando Urlama, rei de Lagash, desviou o
os cursos d’água que alimentavam a cidade rival de Umma (cf. Água – Cronologia de Conflitos, nas edições 26, 27 e 28 de Cidadania & Meio Ambiente). E agora,
mais do que nunca, a água deixou de ser um direito básico para ganhar
estrutura de “commodity”, de mercadoria cara que já hoje coloca mais de
um bilhão de indivíduos na categoria dos “sem água”. Na verdade, estamos
caminhando em direção a um “mundo de sede” se não iniciarmos uma rapidíssima
transição do atual modelo de desenvolvimento predatório e consumista para
um sistema econômico que utilize os recursos naturais e os serviços ecossistêmicos de forma sustentável.
Como seria impossível esgotar numa única edição a multidisciplinar questão
da água, selecionamos dados essenciais, referências bibliográficas (enfatizando
os recursos online), estratégias que abrem perspectivas ao uso responsável da
água, e destacamos o principal protagonista da trama recursos hídricos – o
“crescimento demográfico mundial”, chave da equação disponibilidade/uso da água.
A dimensão dessa equação-desafio explode nos estudos, estatísticas e avaliações sobre os setores abastecimento e saneamento básico, e na constatação
de que, pela primeira vez na história da humanidade, o contingente populacional urbano excede o rural – tendência irreversível e de impactantes consequências urbanas, sociais, culturais e econômicas, como explicita Doug
Saunders, autor do revelador best-seller “Arrival Cities”.
Além da importância do aumento populacional e da expansão de áreas
urbanas, outros fatores que contribuem para tornar a escassez de recursos
hídricos uma realidade também foram abordados. Descubra como o brutal
desafio das alterações climáticas resultam em mudanças no regime pluviométrico, ameaçam a manutenção das águas superficiais e a regularidade de
recarga dos aquíferos. Enfim, como a presença humana vem contribuindo
para poluir, degradar e esgotar as águas doces e salgadas.
Helio Carneiro
Editor
L
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Diretora
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Editor
Hélio Carneiro
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Subeditor
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Projeto Gráfico
Lucia H. Carneiro
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Colaboraram nesta edição
Doug Saunders
Graziela Wolfart (IHU-OnLine)
Henrique Cortez
IBGE (www.ibge.gov.br)
Isabela Vieira (Agência Brasil)
John Emilio Garcia Tatton
José Eustáquio Diniz Alves
Organização das Nações Unidas
(WWAP, UN-HABITAT, UNESCO,
WHO/UNICEF, UN/ESA).
PNAS
Portal Ecodebate
Wagner Costa Ribeiro
Wishard Van
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se responsabiliza pelos conceitos e opiniões
emitidos em matérias e artigos assinados.
Editada e impressa no Brasil.
ISSN217-630X
977217763007 032
Nº 32 – 2011 - ANO VI
Capa: Sunrise on Tintamarre por GAD
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Água: rumo a um mundo de sede?
No atual contexto de tensão e escassez de água doce, o mundo enfrenta o desafio de
encontrar formas criativas de gerir os recursos hídricos para atender as demandas de
consumo de uma população mundial que deverá chegar aos 9 bilhões de indivíduos em
2050. Por UN, WWAP, UN-HABITAT, UNESCO, WHO/UNICEF, UN/ESA,
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Pegada hídrica: o uso responsável da água
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2050 – Mais de 1 bilhão sem água
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Água: vital para a vida no planeta
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Água e mudanças climáticas
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Cidades da periferia: a nova ordem econômica e social
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Consumo ético e cidadania
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10 Tendências que mudam a cena global
Metodologia criada pelo Prof. Arjen Hoekstra promove o uso eficiente e consciente da água,
realçando a relação entre consumo diário e seus impactos ambientais na gestão da
sustentabilidade hídrica. Por Ecodebate
Estudo publicado pela PNAS indica que em quatro décadas a atual escassez de água se
tornará dramática para os habitantes das cidades na medida em que o aquecimento global
agravar os efeitos da urbanização. Por PNAS.
A questão da escassez da água no planeta é analisada à luz de suas implicações políticas,
sociais e ambientais. Descubra porque a água deixou de ser bem da humanidade para tornarse “mercadoria”, cujo acesso é desigual ao redor do planeta. Por Wagner Costa Ribeiro
A ingerência humana no meio ambiente vem afetando de forma dramática o equilíbrio
ecossistêmico da Terra, como revela este artigo sobre as repercusões da ação antropogênica
no elemento água. Por John Emilio Garcia Tatton
Um terço da humanidade está trocando o campo pela cidade na maior migração da história
humana – um evento gerador de novo remodelamento urbano, social e econômico.
Descubra o como e o por quê desta irreversível tendência mundial com o autor do best-seller
Arrival Cities. Por Doug Saunders
Não teremos um futuro minimamente aceitável sem uma profunda revisão dos conceitos,
fundamentos e modelo da economia. E não faremos esta revisão sem uma clara compreensão
de nossa responsabilidade em termos de cidadania planetária. Por Henrique Cortez
Nunca antes na história da evolução humana o contexto ambiental e psicossocial sofreu
tão dramáticas alterações como nos últimos 50 anos. Confira – e prepare-se – para o que
o futuro próximo nos reserva nesta era de informação e virtualidade. Por Wishard Van/World
TrendsResearch
UN-Water World Water Day.
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ÁGUA
© WHO / UNICEF
Rumo a um mundo de sede?
A questão é muito simples: dado o volume de água disponível e nas atuais circunstâncias de gestão desse
patrimônio hídrico, será possível nas próximas décadas ter-se água doce suficiente para atender as demandas de consumo de uma população mundial estimada em 9 bilhões de indivíduos, em 2050 (segundo
estimativa da ONU) com o volume de água praticamente igual ao que existe hoje? No contexto de tensão
e escassez, o desafio atual é encontrar formas criativas de gerir os recursos hídricos sem enfatizar as
disputas e conflitos já existentes. Esse quebra-cabeça levanta questões importantes, como:
z Será razoável pensar-se em transposição de água para longas distâncias sem ameaçar as reservas hídricas e prejudicar o equilíbrio ambiental?
z Quais são os países e regiões que vão sofrer mais devido à falta d’água?
z Em que países uma parcela importante da população ainda terá de esperar algumas décadas
antes de contar com abastecimento de água e saneamento básico adequados?
O problema das águas urbanas – tema do Dia Mundial da Água 2011 – é apenas um dos pontos
abordados neste caderno especial, que analisa consumo, demanda, superexploração, poluição e outras
ameaças aos recursos hídricos doces que, em 2050, lamentavelmente já deixarão de estar disponíveis
para pelo menos 1 bilhão de indivíduos. Encontrar respostas para esses desafios é a tarefa mais urgente
que governos e sociedade civil enfrentam em escala global.
Cidadania&MeioAmbiente
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DIA MUNDIAL DA ÁGUA
ÁGUA: RECURSO FINITO
A água é o bem essencial do qual depende
toda a vida na Terra. Para a maioria das nações, o desenvolvimento econômico está
intimamente relacionadoà disponibilidade e
à qualidade do abastecimento em água
doce. Como a água está integrada em nosso cotidiano – quer nos inúmeros usos,
quer embutida em tudo que consumimos
(água virtual), – em geral esquecemos que
esta commodity natural não é inesgotável e
ilimitada (ver quadro Recursos de Água
Doce por Continente, pág. 9). Fato que
ocorre em países como o nosso, em que há
abundância de recursos hídricos doces.
DISPONIBILIDADE E USO DA ÁGUA
A percepção comum é que a maior parte
dos recursos de água doce disponível está
em lagos, represas e rios. No entanto, essa
água visível representa apenas uma pequena fração dos recursos mundiais de água
doce. Boa parte desse estoque está armazenada em aquíferos (água subterrânea) e
a maior parte das reservas – em estado
sólido – na Antártida e na calota polar da
Groenlândia. Do volume total de recursos
hídricos terrestres, a água doce representa um percentual mínimo em relação à água
salgada de mares e oceanos (ver nesta
página o gráfico Um Mundo de Sal).
No entanto, não devemos esquecer que em
muitas regiões da Terra – inclusive Brasil –
a disponibilidade de água é uma questão
de vida ou morte. Afinal, a quantidade, qualidade e disponibilidade de água doce e salgada desempenham um papel importante na
determinação dos níveis e padrões de pobreza, degradação do solo, poluição, saneamento, saúde e desenvolvimento rural e
urbano ao redor do mundo. Lamentavelmente, o abuso e a superexploração dos
recursos hídricos (doces e marinhos) estão
rapidamente esgotando e deteriorando a
seiva da vida de nosso planeta.
Quando ficamos sabendo que não há “criação” de água “nova” no planeta fica mais
fácil perceber a responsabilidade individual e coletiva na preservação desse bem indispensável a todos os seres vivos e à civilização. O volume de água disponível no
planeta é reciclado através de um sistema
bem coordenado entre a terra e atmosfera,
o chamado “ciclo hidrológico”. Isso significa que, apesar do rápido crescimento
demográfico atual – e da maior utilização
dos recursos naturais – o volume de água
doce disponível e acessível é praticamente o mesmo. Portanto, superar o desafio
. 2011
do o crescimento populacional exige capacitação (e vontade política) para gerir
recursos e serviços ecossistêmicos de
modo a assegurar sua quantidade, qualidade e acesso ao maior número de pessoas – a todos, idealmente.
TENDÊNCIAS ATUAIS E FUTURAS
As avaliações realizadas nas duas últimas
décadas sobre o uso da água destacam que:
z Os recursos de água doce são desigualmente distribuídos, com grande parte localizada
longe dos estabelecimentos humanos. Muitas das bacias hidrográficas dos maiores rios
do mundo percorrem regiões com fraca densidade populacional. 263 rios transfronteiriços (internacionais) cobrem 45,3% da superfície terrestre (excluindo a Antártica).
z As águas subterrâneas (aquíferos) representam 90% dos recursos mundiais de água
doce de fácil acesso, e um contingente de
1,5 bilhão de indivíduos depende das águas
subterrâneas para aprovisionamento em
água potável.
z A água utilizada na agricultura responde
por 75% do consumo mundial total – principalmente em função da irrigação –, seguido de 20% na indústria e os restantes 5%
para fins domésticos.
UM MUNDO DE SAL: PERCENTUAL DE ÁGUA SALINA GLOBAL
As estimativas dos recursos hídricos mundiais com base em vários métodos de cálculo
variam. A mais reconhecida é a apresentada por Shiklomanov, em Gleick (1993):
z O volume total de água na Terra é de 1,4 bilhão km3.
z O volume de mananciais de água doce é de 35 milhões km3, ou 2,5% do volume total.
z Do volume total de água doce, 24 milhões km3 (68,9%)
estão em forma de gelo e neve permanente nas regiões
montanhosas, na Antártica e no Ártico.
z Cerca de 8% (30,8 milhões km3) está estocado no
subsolo sob a forma de lençóis subterrâneos (bacias
subterrâneas rasas e profundas de até 2000 metros,
solo úmido, pântanos e permafrost). Esse estoque constitui por volta de 97% de toda a água doce potencialmente disponível para uso humano.
z Lagos e rios contêm um volume estimado de 105.000
km3 (0,3%) da água doce mundial.
z O estoque total de água doce disponível para ecossistemas e seres humanos é de 200.000 km3, ou seja, menos de
1% de todos os recursos de água doce e apenas 0,01% de
toda a água da Terra (Gleick, 1993; Shiklomanov, 1999).
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RECURSOS DE ÁGUA DOCE: VOLUME POR CONTINENTE
Este gráfico ilustra a quantidade (em quilômetros cúbicos) e a distribuição dos recursos mundiais de água doce
nas geleiras e calotas de gelo perene, em águas subterrâneas e em áreas úmidas, grandes lagos, represas e rios.
z As geleiras e calotas de gelo cobrem cerca de 10% da massa
terrestre. Concentradas na Groenlândia e na Antártida, elas
encerram 70% da água doce planetária. Infelizmente, a maior
parte desse recurso está localizada distante dos núcleos habitacionais, não sendo facilmente acessíveis para o uso humano. De acordo com o United States Geological Survey (USGS),
96% da água doce congelada do mundo está nos Polos Sul e
Norte, ficando os restantes 4% distribuídos em 550.000 km2
de geleiras e calotas em montanhas, numa superfície estimada de 180.000 km3 (UNEP, 1992; Untersteiner, 1975; WGMS,
1998, 2002).
z A água subterrânea é a fonte mais abundante e disponível de
água doce, seguida de lagos, represas, rios e pântanos.
z As águas subterrâneas representam 90% dos recursos mun-
diais de água doce disponíveis (Boswinkel, 2000). Cerca de
1,5 bilhão de pessoas delas depende para o abastecimento
em água potável (WRI, PNUMA, PNUD, Banco Mundial, 1998).
z A quantidade de água subterrânea extraída por ano é estima-
da em cerca de 600-700 km3, o que representa cerca de 20%
das extrações globais (OMM, 1997).
z Não existe uma estimativa detalhada da quantidade de água
subterrânea retirada e consumida anualmente em todo o mundo.
z A maioria dos lagos de água doce estão em altitudes elevadas,
sendo quase 50% deles situados no Canadá. Muitos lagos, especialmente os localizados nas regiões áridas, tornam-se salgados
devido à evaporação que concentra os sais afluentes. O Mar Cáspio,
o Mar Morto e o Grande Lago Salgado figuram entre os maiores
lagos salgados do mundo.
z Os rios formam um mosaico hidrológico, estimando-se em
263 as bacias hidrográficas internacionais que cobrem 45,3%
(231.059.898 km2) da superfície terrestre, excetuando a Antártida (UNEP, Oregon State University et al., em preparação). O
volume total de água nos rios do mundo é estimado em 2.115
km3 (Groombridge e Jenkins, 1998).
Cidadania&MeioAmbiente
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DIA MUNDIAL DA ÁGUA
z Estima-se que até 2025, dois em cada três
indivíduos viverão em áreas de estresse
hídrico. Só na África, 25 países estarão enfrentando escassez de água (abaixo de
1.700m3 per capita por ano) até 2025. Hoje,
450 milhões de pessoas em 29 países sofrem escassez de água.
z O abastecimento de água potável e o saneamento básico continuam a ser os grandes problemas mundiais. 20% da população global não têm acesso à água potável.
Se 1,1 bilhão de pessoas não têm acesso a
fontes de abastecimento de água apropriadas, outras 2,4 bilhões não têm acesso a
qualquer tipo de instalação de saneamento adequado. 2 milhões de indivíduos morrem a cada ano devido a doenças transmitidas por poluição fecal nas águas superficiais – a maioria crianças com menos de
cinco anos de idade.
z Uma grande variedade de atividades humanas também afeta o ambiente costeiro e
marinho. Pressão populacional, demanda
crescente por espaço e recursos, e fraco
desempenho econômico podem comprometer a utilização sustentável dos oceanos e
zonas costeiras. Outros problemas graves
que afetam a qualidade e o aproveitamento
desses ecossistemas incluem a alteração e
a destruição de habitats e ecossistemas.
z As estatísticas revelam que quase 50% da
costa marinha mundial estão ameaçadas por
atividades relacionadas ao desenvolvimento, e em vários mares fechados ou semifechados ocorre eutrofização severa. Estima-se que 80% da poluição marinha tem
origem em fontes e atividades terrestres.
z A maioria das áreas de pesca marinhas
está em declínio de produtividade. Sabese que o aumento da produção pesqueira
nunca mais irá aumentar, agravando o quadro pesqueiro e alimentar mundial. Por
outro lado, a navegação marítima e a aquicultura (produção confinada) estão crescendo, já contribuindo com 30% da produção pesqueira total global.
z O impacto das mudanças climáticas deve
resultar no aumento significativo do nível oceânico mundial. Fato que submergerá algumas áreas costeiras de baixa altitude, aumentando a vulnerabilidade humana em outras áreas. Os Pequenos Estados Insulares em Desenvolvimento
(SIDS) altamente dependentes dos recursos marinhos serão especialmente vulneráveis devido tanto aos efeitos da subida
do nível do mar quanto às alterações nos
ecossistemas marinhos.
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. 2011
ÁGUA E SANEAMENTO BÁSICO NO BRASIL
Crianças habitando em condições sanitárias precárias no Mandela,
no Rio de Janeiro. Foto: Vladimir Platonow/ABr
z A Pesquisa Nacional de Saneamento Básico de 2008, do IBGE, indica que
55,2% dos municípios brasileiros têm serviço de esgotamento sanitário por rede
coletora, três pontos percentuais acima do índice verificado em 2000 (52,2%).
Os melhores desempenhos foram encontrados nos estados de São Paulo (apenas 1 dos 645 municípios não tinha o serviço) e Espírito Santo (2 de 78 sem
coleta de esgoto). A principal solução alternativa adotada pelos municípios que
não possuíam rede de coleta de esgoto sanitário foi a construção de fossas
sépticas, que aumentou 7,4% em relação ao levantamento de 2000.
z Apesar de menos de um terço dos municípios terem tratamento de esgoto, o
volume tratado representava 68,8% do total coletado no país. Houve melhora
considerável frente a 2000 e 1989, quando o percentual de tratamento era,
respectivamente, de 35,3% e 19,9%. E em grandes produtores, como são os
municípios com mais de 1 milhão de habitantes, o percentual de esgoto tratado
foi superior a 90%.
z Os dados do IDS indicam que o abastecimento de água deficiente, falta de
esgoto, contaminação por resíduos ou condições precárias de moradia foram
responsáveis por 308,8 internações a cada grupo de 100 mil habitantes em
2008, por doenças como diarreia, hepatites e verminoses. O documento relaciona essas doenças à falta de moradia adequada no país: até 2008, cerca de 40%
dos domicílios (25 milhões) eram considerados inadequados pelo levantamento.
z Segundo a pesquisa, o número de doentes oscilou nos últimos dez anos. Em
1998, a taxa foi de 348,2 até chegar ao pico de 371,1 por 100 mil, em 2002.
As doenças de transmissão feco-oral (diarreias, hepatite A e febres entéricas)
lideram e correspondem a 80% das internações.
z Entre as regiões, os números são díspares e refletem desigualdades socioeconômicas. A taxa de internação por doenças da pobreza na Região Sudeste era cinco vezes
menor do que no Norte, onde as internações por 100 mil foram de 900 pacientes no
Piauí e no Pará, em 2008, e de 80 em São Paulo. No Maranhão, em Rondônia e na
Paraíba, a taxa foi de 600 por 100 mil.
z Entre as doenças classificadas como decorrentes da falta de saneamento ambiental, predominam, na Região Norte, as maiores taxas de internação provocadas por inseto vetor como a dengue, febre amarela e malária. Nesses lugares, a pesquisa destaca como fator de risco o desmatamento.
z O maior número de internações por inseto vetor no Norte se deve, em geral, à
ocorrência da febre amarela e malária. Segundo o Ministério da Saúde, 99,5%
dos casos de malária são registrados na Amazônia Legal, área que envolve
nove estados brasileiros.
Fonte: Síntese dos dados da Pesquisa Nacional de Saneamento Básico de 2008,
IBGE - www.ibge.gov.br e Isabela Vieira, da Agência Brasil.
DESIGUALDADE NO ACESSO À ÁGUA POTÁVEL E SANEAMENTO GLOBAL
Avaliação de 2000 (destaques):
z O percentual da população com algum serviço de abastecimento de água cresceu de 79% (4,1 bilhão de pessoas),
em 1990, para 82% (4,9 bilhões), em 2000. Entre 1990 e
2000, cerca de 816 milhões de pessoas adicionais tiveram
acesso ao abastecimento de água – uma melhoria de 3%.
z Dois em cada cinco africanos não têm acesso a serviço de
abastecimento de água. Em toda a África, os serviços de abastecimento de água rural estão muito aquém dos serviços urbanos.
z Durante a década de 1990, o percentual de cobertura de
oferta de água rural aumentou enquanto a cobertura urbana
diminuiu, embora o número de pessoas sem acesso ao abastecimento de água tenha se mantido praticamente o mesmo.
z Na África, Ásia, América Latina e Caribe, 1 bilhão de pessoas em áreas rurais não têm acesso a fontes de água tratada.
z Para se atingir na África, Ásia, América Latina e Caribe os OBM
estabelecidos para 2015, o abastecimento de água terá que
chegar a um contingente adicional de 1,5 bilhão de pessoas.
z A proporção de indivíduos com acesso
a instalações sanitárias (banheiros) passou de 55% (2,9 bilhões), em 1990, para
60% (3,6 bilhões), em 2000. Entre 1990
e 2000, um adicional de 747 milhões
de indivíduos conquisotu acesso a instalações sanitárias, embora o número
de indivíduos sem acesso a serviços de
saneamento tenha permanecido praticamente o mesmo.
z No início de 2000, dois quintos da
população mundial (2,4 bilhões de indivíduos) não tinham acesso a instalações sanitárias satisfatórias. A maioria
vive na Ásia e na África, sendo que menos da metade de todos os asiáticos têm
acesso a saneamento de qualidade.
z A cobertura do saneamento nas zonas rurais é inferior à metade da encontrada nos centros urbanos, embora 80% dos indivíduos sem saneamento adequado (2 bilhões) vivam em áreas rurais (cerca de 1,3 bilhão na China e na Índia).
z Na África, Ásia, América Latina e no Caribe cerca de 2
bilhões de pessoas em áreas rurais não têm acesso a instalações sanitárias de qualidade.
z Para se alcançar em 2015 os Objetivos do Milênio relativos
a saneamento na África, Ásia, América Latina e no Caribe,
um adicional de 2,2 bilhões de indivíduos terão de ser equipados com instalações sanitárias.
z A água poluída afeta a saúde de mais de 1,2 bilhão de
indivíduos e contribui para a morte de uma média de 15
milhões de crianças todos os anos. Em 1994, a OMS estimou em 1,3 bilhão o contingente de indivíduos sem acesso
à água potável. Em 2000, cerca de 1,2 bilhão de pessoas
não tinham acesso à água potável, enquanto 2,4 bilhões
não têm acesso a serviços adequados de saneamento.
Fontes: Meeting the MDG Drinking Water and Sanitation Target, World Health Organisation (WHO) and United Nations International
Children’s Emergency Fund (UNICEF), 2006. Cartógrafo/Designer: Phillippe Rekacewicz, February 2006, UNEP/GRID-Arendal. Publicado
em Vital Water Graphics 2, 2009. Link: http://maps.grida.no/go/graphic/inequity-in-access-to-clean-water-and-sanitation
ÁGUA E CIDADES:
UM DESAFIO SEM PRECEDENTES
Mais da metade da humanidade já vive em
cidades. Estima-se que em duas décadas
quase 60% da população habitarão os centros urbanos. O crescimento urbano é mais
rápido nos países em desenvolvimento,
onde as cidades ganham uma média de 5
milhões de habitantes a cada mês. O crescimento explosivo da população urbana cria
desafios sem precedentes, entre os quais
a provisão de água e saneamento são os
mais prementes.
Dois desafios relacionados à água afetam a
sustentabilidade dos assentamentos humanos urbanos: o não acesso à água potável
e ao saneamento básico, e os desastres relacionados à água, como inundações e estiagens. Estes problemas têm enormes consequências sobre a saúde humana e sobre
o bem-estar, a segurança, o meio ambiente,
o crescimento econômico e o desenvolvimento. A falta de água potável e de instalações sanitárias adequadas leva a problemas de saúde, como malária, diarreia e surtos de cólera. Embora o abastecimento de
água e a cobertura sanitária básica tenham
aumentado entre 1990 e 2008, o crescimento das populações urbanas põe em risco
esses ganhos. Enquanto entre 1990 e 2008,
1,052 bilhão de habitantes das cidades ganharam acesso à água potável e 813 milhões
ao saneamento básico, a população urbana
neno mesmo período aumentou em 1,089
bilhão de indivíduos.
Aqueles que mais sofrem com os desafios
afeitos à água são os pobres instalados em
favelas e assentamentos informais, onde
Cidadania&MeioAmbiente
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DIA MUNDIAL DA ÁGUA
carecem de muitas necessidades básicas
como água potável, serviços adequados de
saneamento, acesso aos serviços de saúde,
habitação durável e regularização fundiária.
. 2011
DIA MUNDIAL DA ÁGUA 2011
Chuwasg
As cidades não podem ser sustentáveis se
não garantirem acesso seguro à água potável
e ao saneamento básico. Lidar com as crescentes necessidades de água e saneamento
nas cidades é uma das questões mais prementes deste século. A gestão sustentável,
eficaz e equitativa da água nas cidades nunca
foi tão importante como no mundo de hoje.
DESIGUALDADE NO ACESSO
À ÁGUA POTÁVEL E SANEAMENTO
O fornecimento de água potável e de saneamento são questões de gestão que levantam preocupações sobre a injusta prestação de serviços, particularmente nos países em desenvolvimento. Apesar do lançamento de inúmeras iniciativas bem sucedidas para o abastecimento de água potável
para as populações urbanas, os esforços
ainda estão aquém das metas necessárias
para o desenvolvimento sustentável.
Nos países em desenvolvimento, os sistemas
de abastecimento de água são penalizados
por vazamentos, ligações clandestinas e vandalismo, ao mesmo tempo em que preciosos
recursos hídricos são desperdiçados devido
à ganância e à má administração.
Recentemente, o Banco Mundial calculou
que são necessários US$600 bilhões para
reparar e melhorar os sistemas mundiais de
distribuição de água (UNCSD, 1999). Na
década de 1990, a maior redução no abastecimento de água per capita ocorreu na África (2,8 vezes), na Ásia (2 vezes) e na América Latina e Caribe (1,7 vezes), enquanto o
abastecimento de água disponível às populações europeias para o período diminuiu
16% (OMS / UNICEF, 2000).
A falta de acesso à água potável e ao saneamento está diretamente relacionada à pobreza
e, em muitos casos, à incapacidade de os governos financiarem satisfatoriamente os sistemas de captação e distribuição de água e os de
saneamento. Os custos diretos e indiretos dessas falhas humanas são enormes, incluindo
problemas de saúde generalizados, jornada de
trabalho excessiva (especialmente para as mulheres, obrigadas a percorrer longas distâncias
para trazer água para seus lares) e limitações
ao desenvolvimento econômico (Gleick, 1995).
Por outro lado, sistemas de água e de sanea-
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Ciclistas manifestam apoio ao Dia Mundial da Água em Cingapura
O “Dia Mundial da Água” (DMA) – 22 de março – foi criado pela Assembléia
Geral da Organização das Nações Unidas, em 1992, no Rio de Janeiro, segundo as recomendações da Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento contidas no capítulo 18 (Recursos Hídricos) da Agenda 21.
A cada ano, desde 1994, uma agência da Organização das Nações Unidas
estabelece um programa de ações baseado num tema específico relacionado à
gestão, conservação e abastecimento de água. Os países são convidados a realizar no DMA – em contexto nacional apropriado – atividades concretas que
promovam a conscientização pública para o tema proposto através de publicações, documentários, conferências, mesas redondas, seminários, exposições e
outras atividades relacionados à conservação e desenvolvimento dos recursos
hídricos e/ou à implementação das recomendações proposta pela Agenda 21.
Neste 2011, com o tema “Água para as Cidades – Respondendo ao desafio urbano”, o DMA objetivou chamar a atenção para o impacto do rápido crescimento
da população urbana, da industrialização e das mudanças climáticas nos recursos
hídricos e na proteção ambiental das cidades.
Este enfoque é de alta relevância quando se observa que, pela primeira vez na
história da humanidade, a maior parte da população mundial – nada menos
que 3,3 bilhões de indivíduos – já vive em centros urbanos, com cinco milhões a
cada mês migrando do campo para a cidasde nos países em desenvolvimento.
Um crescimento demográfico explosivo que impõe desafios sem precedentes, entre os quais os mais prementes e lesivos são a falta de suprimento de água e de
serviços de esgotamento sanitário, que penalizam toda a sociedade.
mento desejáveis trazem benefícios importantes, tanto para o desenvolvimento social e econômico como para a redução da pobreza (OMS
/UNICEF, 2000). (Em relação à situação brasileira, ver quadro Água e Saneamento Básico no
Brasil, à pág. 10).
ÁGUA, CIDADES E OBJETIVOS DO MILÊNIO
Entre os Objetivos de Desenvolvimento do
Milênio (ODM) propostos pelas Nações
Unidas, dois se relacionam diretamente à
água e às cidades:
z A meta número 7 dos ODM prevê a redução pela metade do número de indivíduos sem acesso sustentável à água potável e ao saneamento.
z A mesma meta articula o compromisso firmado pelos Estados-membros da ONU para
a melhoria significativa das condições de existência de pelo menos 100 milhões de habitantes de cidades periféricas/favelas até 2020.
z No ritmo atual, espera-se que o mundo
concretize a meta referente à água potável
dos ODM. Atualmente, 96% da população urbana têm acesso a fontes adequadas de água potável. No entanto, a meta
do saneamento não será cumprida até
2015. Embora muitas vezes melhor servidas do que as áreas rurais, as áreas urbanas se esforçam para enfrentar o desafio
de seu explosivo crescimento demográfi-
A divisão de população das Nações Unidas (ONU) atualizou em
seu site os dados demográficos e os primeiros resultados das novas projeções de população – revisão 2010 – cobrindo o período
de 1950 a 2100. Abaixo, as estimativas mais relevantes.
A POPULAÇÃO MUNDIAL...
... era de 2,52 bilhões de habitantes em 1950, passando
para 6,87 bilhões em 2010, e devendo chegar a 10,16 bilhões em 2100, segundo a projeção média.
Anirudh Koul
2100: NOVAS PROJEÇÕES POPULACIONAIS
DEMOGRAFIA E MEIO AMBIENTE
Não existe consenso na literatura quanto aos efeitos do crescimento populacional sobre o meio ambiente e sobre a qualidade de vida de uma população em constante crescimento. Alguns autores vislumbram perspectivas catastróficas se nada for
feito para estabilizar a população e salvar o meio ambiente.
Outros consideram que os avanços científicos e tecnológicos
têm sido capazes de sustentar uma população cada vez maior
e que consome cada vez mais em quantidade e em qualidade.
Nos 60 anos, entre 1950 e 2010, a população mundial cresceu 172%, e nos próximos 90 anos, entre 2010 e 2100, esse
crescimento deverá ficar em 50%. Portanto, o ritmo de crescimento demográfico mundial está diminuindo, mas o planeta terá mais 3 bilhões de pessoas até o fim do século 21.
Exemplo de perspectiva otimista da relação entre população e
desenvolvimento pode ser lida online em: David Lam. How the
World Survived the Population Bomb: Lessons from 50 Years of
Exceptional Demographic History, 2011 (www.psc.isr.umich.edu/
events/archive/2011/paa/david_lam.html).
Brasil – O contingente populacional de 191 milhões de habitantes em 2010 deverá atingir um pico de 220 milhões por
volta do ano de 2030 e, depois, iniciar um suave declínio até
cerca de 180 milhões de habitantes em 2100.
China – A população chinesa, que era de 551 milhões de habitantes em 1950, chegou a 1,341 bilhão em 2010, devendo atingir um pico de 1,396 bilhão por volta do ano de 2025 e, depois,
iniciar um grande declínio até atingir 944 milhões em 2100.
E a ponderação para uma perspectiva pessimista da atual
relação entre população e desenvolvimento pode ser encontrada na obra World on the Edge: How to Prevent Environmental and Economic Collapse, 2010, de autoria de Lester R. Brown.
Índia – A população indiana somava 372 milhões de indivíduos em 1950, chegou a 1,223 bilhão em 2010, deverá atingir um pico de 1,720 bilhão por volta do ano de 2060 e,
depois, iniciar um leve declínio até chegar a 1,557 bilhão em
2100. Portanto, a Índia deverá ter mais 600 milhões de habitantes do que a China no final do século 21.
Japão – De 82 milhões de habitantes, em 1950, passou para
127 milhões em 2010, devendo declinar até ficar com 91 milhões de habitantes em 2100. Ou seja, ao final de 150 anos, a
população do Japão será quase igual a atual.
Nigéria – No extremo oposto, este país que tinha em 1950
de 38 milhões de habitantes passou para 158 milhões em
2010, e deverá alcançar 756 milhões em 2100.
co. Em todo o mundo, 789 milhões de habitantes de cidades ainda vivem sem acesso a saneamento adequado.
No tocante à meta dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio relativa às favelas, as melhorias nesta área não conseguem
acompanhar o ritmo crescente de afluxo
de novos pobres. Nos últimos 10 anos, a
parcela da população urbana vivendo em
favelas nos países em desenvolvimento diminuiu: de 39%, em 2000, para 33%, em
Contudo, o mundo é um só, e tanto os pessimistas quanto os
otimistas precisam juntar forças para a construção de um mundo melhor e mais justo. O importante é que o debate das
diversas perspectivas teóricas não paralise as ações no sentido
de mitigar o aquecimento global, garantir os direitos da biodiversidade, recuperar os recursos naturais e possibilitar uma vida
humana com mais bem-estar e em harmonia com a natureza.
José Eustáquio Diniz Alves é Doutor em demografia e professor
titular do mestrado em Estudos Populacionais e Pesquisas Sociais da
Escola Nacional de Ciências Estatísticas – ENCE/IBGE. As opiniões
deste artigo são do autor e não refletem necessariamente as daquela
instituição. E-mail: jed_alves{at}yahoo.com.br Publicado em
www.ecodeb ate.com.br (07/04/2011).
REFERÊNCIAS DA ONU:
UN/ESA: Expert Group Meeting on Recent and Future Trends in Fertility, New York, 24 December 2009, e UN/ESA. What is new in the 2010 Revision of the World Population Prospects? New York, 201
2010. No entanto, em termos absolutos, o
número de favelados no mundo em desenvolvimento cresce e continuará a aumentar no futuro próximo.
O número de indivíduos que habitam em
cidades periféricas das grandes metrópoles é agora estimado em 828 milhões, e deverá crescer em 6 milhões a cada ano. Serão necessários esforços redobrados para
melhorar a vida desse número crescente
de indivíduos.
n
FONTES E REFERÊNCIAS USADAS NO ARTIGO
“Água - Rumo a um mundo de sede”:
Water for sustainable urban human settlements. Briefing note.
WWAP, UN-HABITAT. 2010
UN World Water Development Report 3: Water in a Changing
World. WWAP. 2009
State of the World’s Cities 2007/2008. UN-HABITAT. 2008
Website of the Water for Life Decade www.un.org/
waterforlifedecade/water_cities.html)
Website of the International Year of Freshwater 2003. UNESCO
Progress on Sanitation and Drinking-Water: update 2010.
WHO/UNICEF JMP. 2010
The Millennium Development Goals Report. UN, 2010
UN World Water Development Report 2: Water, a shared
responsibility. WWAP, UN-HABITAT. 2006 UN-HABITAT
Brochure. UN-HABITAT
Vital Water Graphics - 2nd Edition (2008)- www.grida.no/
publications/vg/water2/
Cidadania&MeioAmbiente
13
. 2011
Waterfortheworld.net
DIA MUNDIAL DA ÁGUA
‘Pegada Hídrica’:
o uso responsável da água
Metodologia criada pelo Prof. Arjen Hoekstra promove o uso eficiente e consciente da água, realçando a relação entre consumo diário e impactos ambientais na gestão da sustentabilidade hídrica.
A
Pegada Hídrica é uma ferramenta
de gestão de recursos hídricos que
indica o consumo de água doce
com base em seus usos direto e indireto. O
método permite que as iniciativas públicas
e privadas, assim como a população em geral,
entendam o quanto de água é necessário
para a fabricação de produtos ao longo de
toda a cadeia produtiva. Desta forma, os
segmentos da sociedade podem quantificar
a sua contribuição para os conflitos de uso
da água e degradação ambiental nas bacias
hidrográficas em todo o mundo.
“Embora o Brasil seja o país com a maior
reserva hídrica do planeta, em muitas regiões já existe conflito pelo uso da água, o
que demanda uma boa governança. Além
disso, o crescimento da economia brasileira deve aumentar significativamente o
uso da água nas diversas atividades produtivas”, explica Samuel Barrêto, coordenador do Programa Água para a Vida do
WWF-Brasil. Dessa forma, é preciso redu-
zir os riscos de escassez de água, promovendo o uso eficiente desse recurso natural, e até mesmo reduzir o risco de imagem
negativa, que pode estar associado a uma
empresa que não utiliza bem este recurso.
Para o Prof. Hoekstra, apesar de os governos terem papel fundamental na elaboração de leis que tornem a gestão eficiente
da água uma obrigação, a população e as
empresas também devem se envolver completamente. As companhias precisam entender como utilizar os recursos hídricos
da melhor forma e devolvê-los limpos para
a natureza. Já os consumidores devem se
preocupar com a origem dos produtos que
consomem e com os procedimentos adotados na produção.
MÉDIAS GLOBAIS DE ‘PEGADA HÍDRICA’
Ao analisar a ‘Pegada Hídrica’ de um produto, é preciso levar em consideração as etapas do processo de fabricação e os locais
por onde ele passou – desde a matéria-prima
até o produto final. De acordo com o professor, “a Pegada Hídrica de uma área onde
tem água em abundância é muito diferente
da que está numa região mais seca”. Por
isso, ele criou uma forma de distinguir estas
Pegadas, a saber:
z VERDE – quando a água da chuva evapora ou é incorporada em um produto durante
a sua produção;
z AZUL – quando se calcula as águas superficiais ou subterrâneas que evaporam ou são
incorporadas em produtos, ou então devolvidas ao mar ou lançadas em outra bacia; e
z CINZA – aquela que mede o volume de
água necessário para diluir a poluição gerada durante o processo produtivo.
Hoekstra destaca que a média global de ‘Pegada Hídrica’ de uma camisa de algodão, por exemplo, é de 2.700 litros de água (consulte as médias globais de outros produtos no quadro à
pag. 15). Durante a produção, o algodão pode
ter sido cultivado e transformado em tecido no
Paquistão e em camisa na Malásia para ser ven-
dida nos Estados Unidos. Portanto, o cálculo
da ‘Pegada Hídrica’ de uma camisa é o somatório da pegada de cada etapa, e isso é distribuído por várias partes do mundo.
ÁGUA VIRTUAL EMBUTIDA NOS PRODUTOS
“Quem sabe se, no futuro, não poderemos dizer que a ‘Pegada Hídrica’ não é tão alta
porque foi produzida onde há abundância
de água ou onde não está poluindo. Cada
vez mais os consumidores querem saber este
tipo de informação. Devemos considerar quanto de poluição pode ser gerada nas águas da
Ásia, por exemplo, para que o europeu possa
vestir uma camisa. Com a Pegada Hídrica,
fazemos uma ligação entre o consumo que
acontece em um lugar e o impacto no sistema
hídrico de outro lugar”, destaca Hoekstra.
litros de água para
uma espiga - 500g
Milho
litros de água para
um filé - 330g
Carne
Mesmo já sofrendo com conflitos pelo uso
da água doce, a América do Sul tem a maior
reserva de recursos hídricos do mundo. Por
isso, há uma crescente demanda por produtos de uso intensivo de água na região. Um
país como a China, que vive essencialmente
de exportações, precisa transferir a pegada
para outros países que têm maior oferta. Países como a Nigéria têm uma pegada enorme
não só por falta de água, mas também por
práticas pouco sustentáveis do recurso.
Hoekstra acredita que as empresas estão buscando entender o que podem fazer para ajudar. O comprometimento dos recursos hídricos pode afetar diretamente os negócios de
um file (330g)
um pacote - 500g
Frango
Arroz
litros de água para
litros de água para
500g
uma garrafa - 500ml
Soja
Vinho
Cada gota (da figura) equivale a 50 litros de água virtual (definido no local de produção).
O teor de água virtual de um produto (uma commodity, bem ou serviço) é o volume de água
usada para produzir o produto, aferido no local onde o produto foi realmente produzido.
Refere-se à soma total da água usada nas várias etapas da cadeia de produção.
Fonte: Dados e ilustrações extraídos do poster Virtual Water Inside Products, que pode
ser visualizado na íntegra (e comprado) no site www.virtualwater.eu
uma companhia, prejudicando a reputação,
a área financeira, regulatória e até mesmo a
sua localização. A WFN deu um grande passo e publicou o Manual Técnico de Pega-
da Hídrica (disponível para download em
www.waterfootprint.org (1), que contém normas e padrões globais, ponto chave para
comparar produtos e empresas.
n
R EFERÊNCIA
1 – A Water Footprint Network é uma fundação sem fins lucrativos sob a lei holandesa. É essencialmente uma rede internacional aberta a parceiros de diversos grupos formadores de opinião na gestão de recursos hídricos, incluindo agências
governamentais, organizações não-governamentais, empresas, universidades e organizações internacionais. As organizações podem tornar-se sócias da rede, inscrevendo-se para a missão e submetendo um pedido ao Conselho
ARJEN HOEKSTRA
A compassionate world.org
‘PEGADA HÍDRICA’ HUMANA
Hoekstra explica que é possível também calcular a Pegada Hídrica de um indivíduo, de
acordo com o padrão de consumo que ele
segue e a oferta de produtos que tem. Uma
pessoa que adota dieta vegetariana, por exemplo, tem uma Pegada Hídrica 30% menor do
que uma não vegetariana. O brasileiro tem
cerca de 5% da sua pegada em casa, com consumo de água na cozinha e no banheiro, e
95% estão relacionados com o que compra
no supermercado, especialmente com produtos agrícolas. Outro dado importante é que
8% da pegada do brasileiro estão fora do País,
um índice muito pequeno se comparado aos
85% da Holanda. “Precisamos desconstruir
a percepção de que a água vem apenas da
torneira e que simplesmente consertar um
pequeno vazamento é o bastante para assumir uma atitude sustentável”, ressalta
Albano Araujo, coordenador da Estratégia de
Água Doce do Programa de Conservação da
Mata Atlântica e das Savanas Centrais da The
Nature Conservancy.
litros de água para
litros de água para
z Criador do conceito de ‘Pegada Hídrica”, o Prof. Hoekstra e estabeleceu o campo de pesquisa interdisciplinar para avaliação das relações entre consumo, gestão
e comércio de água. Hoekstra é professor
de Gestão dos Recursos Hídricos da Universidade de Twente, na Holanda, e diretor científico da Water Footprint Network.
z É especialista em gestão integrada de recursos hídricos, gestão de bacias hidrográficas, análise política, análise de sistemas e da ciência do desenvolvimento sustentável. O professor tem mestrado em Engenharia Civil e PhD em Análise Política, ambos
da Universidade Tecnológica de Delft, na Holanda.
z Suas publicações abrangem uma vasta gama de tópicos relacionados com a escassez
de água, gestão dos riscos de inundação e do desenvolvimento sustentável e inclui 45
trabalhos em revistas científicas. Hoekstra tem três livros publicados: Perspectives on Water
(Perspectivas sobre a Água, 1998), Globalization of Water (Globalização da Água, 2008)
e The Water Footprint Assessment Manual (Manual Técnico da Pegada Hídrica, 2011).
O Prof. Arjen Hoekstra visitou o Brasil para estimular a implantação de estratégias de conservação e gestão
da água doce, graças a uma parceria entre WWF-Brasil, Water Footprint Network, The Nature Conservancy
e USP São Carlos. Texto editado a partir de artigo publicado no portal EcoDebate (22/03/2011).
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Cidadania&MeioAmbiente
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DIA MUNDIAL DA ÁGUA
. 2011
© WHO/P.Virot
2050:
mais de 1 bilhão sem água
Estudo publicado pela PNAS indica que em quatro décadas a atual escassez
de água se tornará dramática para os habitantes das cidades, na medida
em que o aquecimento global agravar os efeitos da urbanização.
Academia Nacional de Ciências dos Estados Unidos/PNAS
A escassez ameaça o saneamento em algumas das cidades de mais rápido crescimento no mundo, particularmente na Índia, mas
também representa riscos para a vida silvestre caso as cidades bombeiem água de
fora, afirma o artigo publicado nas Atas da
Academia Nacional de Ciências (PNAS).
memos esses números como uma fatalidade
irreversível. Eles apenas sinalizam um desafio”, alerta o principal autor do estudo, Rob
McDonald, do grupo privado ambiental The
Nature Conservancy (www.nature.org), com
sede em Washington.
O estudo concluiu que, a continuarem as
atuais tendências de urbanização, em meados deste século em torno de 990 milhões
de habitantes de cidades viverão com menos de 100 litros diários de água cada um –
mais ou menos a quantidade necessária para
encher uma banheira -, quantidade que segundo os autores é a mínima necessária.
Atualmente, cerca de 150 milhões de pessoas
estão abaixo do patamar dos 100 litros de uso
diário. A casa de um americano médio gasta
376 litros/dia/pessoa, apesar de o uso real
variar dependendo da região. Mas o mundo
está experimentando mudanças sem precedentes no nível urbano à medida que as populações rurais da Índia, China e outras nações
em desenvolvimento migram para as cidades.
Além disso, mais 100 milhões de indivíduos
não terão água para beber, cozinhar, limpar,
tomar banho e usar no banheiro. “Não to-
As seis maiores cidades da Índia – Bombaim, Delhi, Calcutá, Bangalore, Chennai e
Hyderabad – estão entre as cidades mais
18
afetadas pela escassez de água. O estudo
prevê que 119 milhões de indivíduos não
terão água suficiente até 2050 apenas nas
planícies e no delta do rio Ganges.
Segundo o estudo, a África ocidental também enfrentará escassez em cidades como
Lagos, na Nigéria, e Cotonu, em Benin.
Outras cidades que sofrerão o impacto são
Manila, Pequim, Lahore e Teerã.
n
Fonte: O artigo “Urban growth, climate change,
and freshwater availability”, publicado pelo
PNAS/Proceedings of the National Academy of
Sciences of the United States, está disponível para
consulta em versão integral em www.pnas.org.
O texto original do presente artigo foi publicado
no Correio Brasiliense e republicado e completado com informações adicionais no portal EcoDebate (29/3/2011).
Fontes: FAO, Nations Unies, World Resource Institute (WRI). Publicado em Vital Water Graphics 2. UNEP;
Human Development Report 2006. UNDP, 2006. Coping with water scarcity. Challenge of the twenty-first
century. UN-Water, FAO. 2007. Cartógrafo/Designer: Philippe Rekacewicz (Le Monde diplomatique), fevereiro 2006. Link: http://maps.grida.no/go/graphic/global-waterstress-and-scarcity
ESCASSEZ E ESTRESSE AQUÍFERO GLOBAL
A
ESCASSEZ DE ÁGUA...
...já afeta todos os continentes. Cerca de 1,2 bilhão de indivíduos, quase um quinto da
população mundial, vive em áreas de escassez física, e 500 milhões estão se aproximando
dessa situação. Outro 1,6 bilhão de indivíduos (quase um quarto da população mundial)
enfrenta escassez econômica de água (aquela em que os países não têm a infra-estrutura
necessária para captar água de rios e aquíferos).
... está entre os principais problemas a ser enfrentado por muitas sociedades e pelo mundo
no século 21. No último século, a utilização da água mais do que dobrou em relação à taxa
de crescimento demográfico, e embora não haja escassez global água como tal, um número
crescente de regiões sofrem escassez hídrica crônica.
... é tanto um fenômeno natural e quanto antropogênico. Há bastante água doce no planeta
para atender seus seis bilhões de indivíduos, só que distribuída de forma desigual, sendo
boa parte é desperdiçada, poluída e gerida de forma insustentável.
ESCASSEZ DE ÁGUA E OS ODM
A forma como as questões da escassez de água são abordados tem reflexo sobre êxito da
maioria dos Objetivos de Desenvolvimento do Milénio (ODM).
Estresse hídrico versus escassez de água – Os hidrologistas avaliam a escassez via
relação água-população. Uma área conhece estresse hídrico quando o fornecimento de água
anual é inferior a 1.700m3/pessoa; e quando ele cai a menos de 1.000m3/pessoa, a população enfrenta escassez de água, e abaixo de 500 m3 caracteriza-se a “escassez absoluta”.
A escassez de água é definida como o ponto em que o impacto agregado de todos os
usuários colide com o fornecimento ou a qualidade da água, na medida em que a demanda
de todos os setores, incluindo o meio ambiente, não pode ser totalmente satisfeita. A escassez
de água é um conceito relativo e pode ocorrer em qualquer nível de oferta ou de demanda.
Pode ainda ser uma percepção social (produto de afluência, expectativas e comportamento
habitual) ou a consequência de padrões de abastecimento alterados, como, por exemplo, os
decorrentes das mudanças climáticas.
Vocêsabia?
Cerca de 700 milhões de
pessoas em 43 países já sofrem com escassez de água.
Em 2025, 1,8 bilhão de pessoas estarão vivendo em países ou regiões com escassez
absoluta de água, e dois terços da população mundial
pode já estar sob condições de
estresse hídrico.
Com o cenário das alterações climáticas, quase metade da população mundial estará em áreas de alto estresse
hídrico até 2030, sendo 75 milhões a 250 milhões na África. Além disso, a escassez de
água em alguns sítios áridos
e semi-áridos provocam
êxodos de 24 milhões a 700
milhões de pessoas.
A África Subsaariana registra o maior número de
países com estresse hídrico
de toda a região.
Fontes: Vital Water Graphics. UNEP - Coping with water scarcity. Challenge of the twenty-first century. UN-Water, FAO. 2007
Cidadania&MeioAmbiente
19
DIA MUNDIAL DA ÁGUA
. 2011
A questão da escassez da
água no planeta é analisada à luz de suas implicações
políticas, sociais e ambientais. Descubra porque a
água deixou de ser bem da
humanidade para tornar-se
“mercadoria” de acesso desigual ao redor do planeta.
Sleepychinchilla
Entrevista com Wagner Costa Ribeiro
ÁGUA:
vital para a vida no planeta
IHU ON-LINE – EM QUE SENTIDO PODEMOS PENSAR NA ÁGUA COMO
COMO ENTENDER QUE A ÁGUA É VISTA COMO
MERCADORIA EM ESCALA INTERNACIONAL?
Wagner Costa Ribeiro – Ela é vista como fonte de riqueza porque
é um insumo fundamental para a produção agrícola e industrial,
mas é, principalmente, uma substância vital para a reprodução da
vida no planeta, inclusive da espécie humana. A água já é vista
como mercadoria em alguns países do mundo, inclusive no Brasil,
pois se cobra por ela, não apenas pelo serviço de coleta, tratamento e distribuição, mas também pela própria água.
FONTE DE RIQUEZA?
IHU – A JUSTIFICATIVA PARA ESSA COBRANÇA É A ESCASSEZ?
WCR – A questão da escassez tem que ser vista da seguinte forma:
existe água em abundância no planeta? Sim. Existe água com qualidade? Sim. Existe água em abundância, com qualidade onde é necessário? Em alguns lugares, não. A dificuldade é a distribuição
política da água. É fazer essa água estar junto aos agrupamentos
humanos, sem a fonte estar contaminada. Então, se isso não ocorrer,
a água se torna um bem raro, portanto, uma mercadoria mais cara.
IHU – O
QUE PODEMOS ENTENDER PELO CONCEITO QUE O SENHOR
GEOGRAFIA POLÍTICA DA ÁGUA?
WCR – A geografia política da água procura estudar justamente,
de que maneira, a apropriação da água pela espécie humana ocorre
DEFENDE NA OBRA
20
ao longo dos tempos. Isso tem que ser analisado da seguinte
maneira: nós temos estoques de água naturais, sejam subterrâneas ou que correm nos rios, e isso aconteceu por processos naturais. Porém, a apropriação dessa água ocorre por processos históricos, sociais, políticos, que envolvem trocas comerciais, guerras,
domínios territoriais. Geografia Política da Água procura mostrar
de que maneira ocorreu a apropriação desses recursos naturais,
no caso, a água, a partir dos processos históricos. Muitas vezes,
infelizmente, com conflitos ou com trocas comerciais desiguais.
IHU – QUAIS AS CONSEQUÊNCIAS SOCIAIS E AMBIENTAIS DO ACESSO
DESIGUAL AOS RECURSOS HÍDRICOS NO PLANETA?
WCR – As consequências sociais são as mais relevantes, embora
hoje possamos falar mais em consequências socioambientais. Mas a
situação é mais grave do ponto de vista social, pois, hoje, em países
pobres, inclusive em parte do Brasil, a maior parte das internações
hospitalares ocorre em função da contaminação a partir da água. São
populações que sofrem doenças a partir da água. Em vez de a água ser
uma substância para repor elementos importantes para a vida, ela
acaba se transformando num vetor de doença. O problema é que o
acesso à água ainda é desigual. Dia 18 de abril, haverá uma corrida de
rua de seis quilômetros em vários pontos do mundo para chamar a
atenção para o fato de que a distância média percorrida por muita
gente para conseguir água potável, muitas vezes carregada em lata
d’água na cabeça, é de seis quilômetros. Do ponto de vista ambiental,
a principal consequência é a introdução de elementos estranhos na
água, no caso, a contaminação. Isso acontece pelo uso intensivo na
agricultura, pelo uso intensivo de agrotóxicos que acaba contaminando a água, e também o processo de industrialização, que usa a água
como insumo para a produção e depois não a trata antes de devolvêla aos rios. A espécie humana também tem sua parcela importante: no
caso brasileiro, ainda não tratamos o esgoto, que também acaba sendo fonte de contaminação da água.
IHU – QUE CENÁRIO PODEMOS VISLUMBRAR A CURTO PRAZO A PARTIR
DE CRISES LOCALIZADAS DE FALTA DE ÁGUA? FALA-SE ATÉ EM GUERRAS
FUTURAS PELA DISPUTA DA ÁGUA…
WCR – Quando se fala em guerra por água, é importante lembrar
que já houve, no passado, situações de tensão extrema, que levaram à confrontação. Guerra não significa necessariamente a confrontação armada, pode ser uma relação hostil, uma troca de tensão
etc. Às vezes, declarações tensas já são interpretadas como um
conflito. Então, já tivemos conflitos pela água e certamente teremos
outros. E aí já temos áreas apontadas e conhecidas como de tensão.
Hoje, a mais grave em todo o planeta é a zona entre Palestina e Israel.
E também temos a fronteira entre México e Estados Unidos.
IHU – EM QUE MEDIDA A CRISE DA ESCASSEZ DE ÁGUA AFETA A QUESTÃO DO SANEAMENTO BÁSICO?
WCR – A relação é direta. Se não tivermos a capacidade de tratar o
esgoto, estaremos contaminando os rios. As pessoas gostam muito
de utilizar tinta no cabelo, passar xampus diferentes, e esquecem
que, depois, isso tudo é levado pela água, vai se concentrar em larga
escala. Em metrópoles como Porto Alegre, Curitiba, São Paulo, com
milhões de habitantes jogando esses insumos na água, imagine a
contaminação que isso gera, só para falar da questão do esgoto.
IHU – COMO FAZER COM QUE AS
POLÍTICAS PÚBLICAS BENEFICIEM O
USO COLETIVO E IGUALITÁRIO DA ÁGUA?
WCR – Temos hoje os comitês de bacia que deveriam ser o instrumento de determinação do uso da água a partir dos planos de
bacia hidrográfica. Em algumas regiões do país, isso já está mais
avançado, e, em outras, não. Há muito desequilíbrio no Brasil em
relação a essa questão. Infelizmente, há situações onde predominam os interesses dos grandes usuários de água, que são principalmente as empresas de saneamento básico.
n
Wagner Costa Ribeiro – Geógrafo e Ph.D em Geografia Humana pela
Universidade de São Paulo/USP, onde leciona no Depto de Geografia e
atua no Programa de Pós-Graduação em Ciência Ambiental. Coordena
o Grupo de Pesquisa de Ciências Ambientais do Instituto de Estudos
Avançados da USP, e é autor de Geografia Política da Água (São Paulo:
Editora Annablume, 2008) e A Ordem Ambiental Internacional (São Paulo: Contexto, 2001), entre outros. Entrevista de Graziela Wolfart em IHU
On-line, publicado pelo Instituto Humanitas Unisinos – IHU, da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos, São Leopoldo, RS, e
republicada em www.ecodebate.com.br (23/03/2011).
ACESSO À ÁGUA POTÁVEL
PARCELA DA POPULAÇÃO
COM ACESSO À ÁGUA POTÁVEL
85% ou mais
70 - 85
55 - 70
40 - 55
menos de 40%
sem registros
Fontes: Organização Mundial da Saúde e Fundo das Nações Unidas para a Infância, 2000. Informações obtidas no United Nations Common Database, em 2006.
Online em: http://unstats.un.org/unsd/cdb/. Cartógrafo/Designer: Hugo Ahlenius, UNEP/GRID-Arendal.com Link: http://maps.grida.no/go/graphic/access-to-safe-drinking-water
Atualmente, mais de 1 bilhão de indivíduos não tem acesso a uma fonte de água adequada, como a viabilizada por rede de abastecimento ou por
poço confiável. Em vez disso, o acesso à água é limitado ou disponível via fontes não confiáveis. Um dos objetivos das Metas de Desenvolvimento
do Milênio é reduzir pela metade, até 2015, a proporção de indivíduos sem acesso sustentável à água potável e ao saneamento básico.
Cidadania&MeioAmbiente
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DIA MUNDIAL DA ÁGUA
. 2011
ÁGUA &
MUDANÇAS
CLIMÁTICAS
A INGERÊNCIA HUMANA NO MEIO
AMBIENTE VEM AFETANDO DE FORMA DRAMÁTICA O EQUILÍBRIO
ECOSSISTÊMICO DA TERRA, COMO
REVELA ESTE ARTIGO SOBRE AS REPERCUSSÕES DA AÇÃO ANTROPOGÊNICA NO ELEMENTO ÁGUA.
Kate Fisher/BBC WorldService
ÁGUA EM EXCESSO
Os fortes temporais ocorridos ao longo do
mês de janeiro na cidade de São Paulo estão diretamente relacionados ao fenômeno
conhecido como “ilha de calor”. Segundo
o Instituto Nacional de Meteorologia
(Inmet), a grande quantidade de chuvas no
início do ano mostra uma discrepância entre o clima na capital e no restante do estado. Janeiro deste ano foi o mais chuvoso
desde 1943, quando começaram as medições, enquanto que no interior do estado
não choveu tanto.
A diferença da capital para o restante do estado está na grande aglomeração urbana que
concentra fontes e receptores de energia. Os
Rios Tietê e Pinheiros, além de 70 principais
córregos e 569 galerias pluviais de drenagem, acumulam atualmente pelo menos 4,2
milhões de metros cúbicos de sedimentos,
areia, entulho e muito lixo, volume que corresponde a 350 mil caçambas de caminhão.
O acúmulo de calor causado pela grande
quantidade de edificações verticalizadas, a
impermeabilização do solo, o uso de equipamentos como ar-condicionado, além das
22
por John Emilio Garcia Tatton
emissões de uma frota com mais de 6 milhões de automóveis, ampliam a corrente
que leva o vapor de água para a atmosfera.
Esse processo acaba criando nuvens maiores do que o normal. Quanto mais intensa a
corrente ascendente que leva a água lá para
cima, mais desenvolvimento vertical essa
nuvem vai ter. Assim a “ilha de calor” é
muito bem caracterizada na cidade.
Essas grandes nuvens dão origem a tempestades que descarregam em um curto espaço de tempo a precipitação que demoraria
várias horas ou até alguns dias para voltar
ao solo. São Paulo é a capital brasileira que
tem a maior tendência para eventos extremos, chove a mesma quantidade em um número menor de vezes, de acordo com as observações feitas em todo o país pelo Inmet.
Uma chuva forte é caracterizada pela precipitação acima de 60mm por hora ou de
10mm em 10 minutos. Com um diâmetro
médio das gotas de chuva aproximado de
um a dois milímetros. Recentemente foi
observada por pesquisadores gotas com
diâmetro de um centímetro (10mm). Cientistas suspeitam que a formação destas
supergotas tenha relação com a poluição
do ar. Possivelmente os pingos se formariam pela condensação de água em contato
com partículas em suspensão.
Cientistas do Painel Intergovernamental
para Mudanças Climáticas (IPCC) consideram como certo o aumento da frequência e
intensidade dos fenômenos climáticos extremos se o planeta continuar aquecendo.
Afirmam que precisamos estar preparados
para um número cada vez maior de tragédias humanas relacionadas a mudanças climáticas. O clima se tornará mais variável. O
úmido será mais úmido e o seco, mais seco.
Eventos climáticos extremos, como as
fortes chuvas que recentemente atingiram Angra dos Reis, Ilha Grande e que
mataram quase mil pessoas na região
serrana do Estado do Rio de Janeiro podem estar relacionados ao aquecimento
global. Assim como temporais nunca vistos, que no mesmo período ocorreram em
São Luís do Paraitinga (SP), em Santa
Catarina, na Cidade do México, em
Buenos Aires e em regiões da Austrália,
Paquistão e Arábia Saudita.
Essa sucessão de tragédias climáticas provavelmente tem alguma conexão. Segundo
os cientistas, ela é coerente com o quadro
das mudanças climáticas esperado. Cada vez
mais há ruptura dos padrões conhecidos de
clima. As médias tradicionais de chuvas, segundo as quais foram construídas nossas
cidades e até nossa civilização, estão sendo
rompidas por recordes seguidos.
Pesquisas mostram que a presença na atmosfera de gases efeito estufa (GEE) originados
pela ação humana contribui para o aumento
da temperatura da atmosfera e leva a um acúmulo maior de vapor d´água, que se transforma em chuva, aumentando significativamente a probabilidade de tempestades, caracterizadas por mais de 100 milímetros de água por
metro quadrado em um dia. De acordo com a
Rede Histórica Global de Climatologia, 2010
foi o ano mais úmido já registrado, em termos
de precipitação média global.
Estudos, coordenados pelo meteorologista Francis Zwiers, do Centro Canadense de
Análises Climáticas, contabilizaram os índices máximos de precipitação do hemisfério Norte de 1951 a 1999 e concluíram que o
aumento dos gases efeito estufa (GEE) contribuiu para a intensificação das chuvas
fortes em aproximadamente dois terços das
áreas analisadas. Para ter certeza de que o
aumento foi causado pelos GEE, os pesquisadores compararam os modelos climáticos
da segunda metade do século 20 com a concentração de gases-estufa na atmosfera
durante os anos e confirmaram que as chuvas se tornaram mais intensas conforme as
emissões aumentaram.
A temporada de furacões do Atlântico em
2010 foi extremamente ativa, com 19 tempestades e 12 furacões. O ano terminou em
terceiro como o de mais tempestades e em
segundo como o de mais furacões já registrados. Desde que os registros começaram
em 1979, o Ártico atingiu o seu terceiro
menor índice de gelo do mar anual. A oscilação negativa do Ártico em janeiro e fevereiro de 2011 ajudou a espalhar o ar frio do
Ártico para grande parte do Hemisfério
Norte. Frios recordes e grandes nevascas
com acúmulos de neve ocorreram em grande parte da América, norte da Europa Oriental e da Ásia. Entretanto em março de
2011, a extensão do gelo marinho da Antártida atingiu o oitavo menor índice máximo
de extensão anual. Realmente o clima do
planeta está mudando.
rio mais volumoso do mundo, atingiram seus
níveis mais baixos desde 1963.
“
A seca de 2010 na
Amazônia pode provocar
a emissão de mais de
5 bilhões de toneladas
de CO2 florestal
para a atmosfera.
”
ÁGUA EM ESCASSEZ
O Centro Nacional de Dados Climáticos dos
Estados Unidos revelou que 2010 e 2005, foram os anos mais quentes da história desde
que os registros começaram a ser feitos, em
1880. A temperatura global em 2010 foi a segunda mais quente já registrada, com 0,96°C
acima da média do século 20. A temperatura da
superfície do oceano ficou empatada com a de
2005 como a terceira mais quente já registrada,
com 0,49°C acima da média do século 20.
Estudos realizados pela Universidade de Leeds
no Reino Unido e pelo Instituto de Pesquisa
Ambiental da Amazônia (IPAM) revelaram que
a seca de 2010 na Amazônia pode ter sido ainda mais devastadora para suas florestas do
que a seca de 2005, antes considerada a mais
grave da região nos últimos cem anos.
Outro estudo (The 2010 Amazon Drought)
publicado pela “Science” comparou as secas de 2005 e 2010, através de observações
por satélite. A primeira, pela amplitude, foi
batizada “seca do século” na Amazônia, por
ter afetado 1,9 milhão de quilômetros quadrados, ou seja, 37% da superfície total. Mas
a segunda, somente cinco anos mais tarde,
foi ainda mais forte, por ter afetado 3 milhões
de quilômetros quadrados, 57% da superfície total observada. Em virtude do déficit hídrico de 2010, o rio negro e o rio Amazonas,
Cientistas britânicos e brasileiros calculam
que a seca de 2010 pode provocar a emissão de mais de 5 bilhões de toneladas de
dióxido de carbono (CO2) florestal para a
atmosfera. Com base em correlações conhecidas entre seca e mortalidade das árvores,
os autores do estudo prevêem o impacto
nocivo da seca de 2010: não só a floresta
não poderá mais captar seu habitual 1,5 bilhão de toneladas de CO2, como também as
árvores mortas, ao apodrecerem, soltarão 5
bilhões de toneladas de CO2 ao longo dos
próximos anos. Em comparação, os Estados Unidos emitem anualmente 5,4 bilhões
de toneladas de CO2 de origem fóssil.
De acordo com cientistas, também as alterações em ciclos climáticos, como o El Nino,
La Nina e o aquecimento do Atlântico Norte causados pelas mudanças climáticas, podem aumentar a intensidade e frequência
de secas na Amazônia. Assim como também os gases de efeito estufa, secas, desflorestamento, incêndios e emissões crescentes de carbono intensificam o efeito estufa e o aquecimento climático, concluiu o
estudo publicado na revista Science.
ÁGUA SEM QUALIDADE
As mudanças climáticas podem aumentar a
exposição das pessoas a doenças transmitidas pela água procedente de oceanos, lagos e
ecossistemas costeiros. Segundo cientistas da
Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (NOAA), vários estudos demonstraram
que as mudanças no clima provocadas pelo
aquecimento global tornam os ambientes marinhos e de água doce mais suscetíveis à proliferação de algas tóxicas, conhecida como
“maré vermelha” e permitem que micróbios e
bactérias nocivas à saúde se multipliquem.
Nos Estados Unidos, a Agência de Proteção
Ambiental (EPA) recentemente notificou que
irá atualizar as leis de água limpa do país, que
estão atrasadas em relação à ciência ambiental e de saúde. Vários estudos mostram que
centenas de substâncias químicas industriais e agrícolas, incluindo vários carcinógenos
conhecidos, estão presentes nos sistemas de
água municipais americanos.
Há suspeitas de que o consumo de água
contaminada por estrogênio, um hormônio
sintético presente em pílulas anticoncepcionais orais e produtos veterinários usados
Cidadania&MeioAmbiente
23
DIA INTERNACIONAL DA ÁGUA
nômico causado pelas enchentes na Bacia Hidrográfica do Alto Tietê, que abriga
a Região Metropolitana de São Paulo, com
mais de 20 milhões de habitantes. O rio
Tietê exprime o “caldo da cultura” consumista e insustentável da megametrópole.
O Brasil é atualmente um dos maiores consumidores de agrotóxicos classificados
como perigosos ou muito perigosos para o
ecossistema aquático e o meio ambiente, de
acordo com o Instituto Brasileiro do Meio
Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama). Em 2009, foram utilizadas 90,5
mil toneladas do herbicida glifosato em lavouras de 26 culturas diferentes, entre elas
arroz, café, milho, trigo e soja. Entre os dez
produtos agrotóxicos mais comercializados
está o metamidofós, banido pela Agência
Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) na
última semana pelos altos riscos à saúde.
Muitos agrotóxicos em uso no Brasil já foram proibidos em seus países de origem,
como o acefato, por exemplo, que está passando por processo de reavaliação e pode
ser banido das lavouras brasileiras.
Ainda no século 21 a falta de saneamento
básico nas regiões Norte, Nordeste e nas periferias das grandes cidades brasileiras são
responsáveis pelas altas taxas de internação
por diarréias, decorrentes de condições mínimas de esgotamento sanitário, que expõem a
população permanentemente a enfermidades.
A situação é mais grave onde há menos saneamento e mais pobreza e as crianças são o elo
mais frágil. Estudo do Instituto Trata Brasil
24
© WHO / UNICEF
para aumentar a produção de leite provoque nos seres humanos desequilíbrios
hormonais e reprodutivos, além da
feminização de peixes. Para os cientistas é
importante a modernização do tratamento
de efluentes, incluindo a desinfecção com
ozônio, entre outros tratamentos capazes
de remover compostos como o estrogênio
e parasitas como o cryptosporidium.
As leis e programas de fiscalização nos EUA
não acompanharam o ritmo da disseminação
da contaminação, o que representa riscos
de saúde significativos para milhões. A EPA
anunciou que irá estabelecer padrões para
até 16 outras substâncias tóxicas e
carcinógenas, entretanto há muito mais contaminantes de preocupação emergente, que
a ciência apenas recentemente permitiu detectar em níveis muito baixos, partes por bilhão e até partes por trilhão, como a dioxina
por exemplo. É preciso continuar acompanhando o aumento do conhecimento e as
implicações para a saúde pública de um crescente número de substâncias químicas que
podem estar presentes em nossos produtos,
nossa água e nossos corpos.
. 2011
“
O pleno acesso ao
saneamento básico é
garantia para a melhoria
da saúde, da qualidade
de vida e do futuro
sustentável do país.
”
comprovou que as crianças de até cinco anos
são o grupo mais vulnerável às diarréias e
representam mais de 50% das internações por
esse tipo de enfermidade. Nos 81 municípios
analisados pelo estudo, 39.265 crianças de até
cinco anos haviam sido internadas por diarréias em 2007. Conclui-se que o pleno acesso
ao saneamento básico é a garantia para melhoria de saúde, qualidade de vida e de um
futuro sustentável para o país.
Sem dúvida, o lixo é o elemento que mais
impacta as águas no mundo todo, sejam
salgadas ou doces. Ilhas de plástico já podem ser vistas do espaço, lógico ao lado de
lixo espacial. São Paulo, a maior cidade do
Brasil, não tem onde depositar o lixo doméstico e comercial de seus mais de 10 milhões de moradores. A metrópole está desde 2009 sem aterro próprio para descartar
as 12 mil toneladas diárias de lixo que produz e ainda, as aproximadamente 55 gramas
diárias de biosólidos por habitante, provenientes do tratamento de esgotos. O último
aterro em funcionamento possui uma montanha de 28 milhões de toneladas acumuladas ao longo de seus 17 anos de funcionamento. Sua manutenção pelos próximos 20
anos inclui a queima de gás metano e ainda
o transporte diário de quase 6 mil toneladas
de chorume para tratamento na Sabesp.
O casamento fúnebre do lixo com os esgotos tem sido um pesadelo para os
paulistanos nesse verão de 2010. Haja vista o grave impacto social, ambiental e eco-
GESTÃO DA ÁGUA: SANEAMENTO,
LEGISLAÇÃO E EDUCAÇÃO AMBIENTAL
A solução encontrada para conter a degradação socioambiental no Brasil foi a criação, pela
ordem nos últimos anos, das políticas públicas de meio ambiente, recursos hídricos, educação ambiental, saneamento e resíduos sólidos, institucionalizadas em forma de leis.
Em consideração ao tema “Água para as
Cidades – Respondendo ao desafio urbano” do Dia Mundial da Água 2011; destacamos a política pública de recursos hídricos, com: a outorga de uso da água, o licenciamento de empreendimentos poluidores,
o enquadramento de corpos d´água receptores e principalmente a gestão participativa da água, com difusão da educação ambiental, no âmbito dos Comitês de Bacia. O
século 21 será o século da ecologia.
Também a inclusão de disciplinas como
Ecologia e Ciência Ambiental em cursos das
áreas de exatas, como arquitetura, engenharia e economia; além da criação de novos
cursos de graduação, como Engenharia
Ambiental e Ecologia; trouxeram avanços
de conhecimento significativos para conquista do desenvolvimento sustentável.
Entretanto a geração atual que comanda
empresas e governos continua com foco na
rentabilidade econômica para poucos, ainda
não está convencida da mudança de paradigma urgente a ser aplicada, com a renovação de crenças e valores e aplicação efetiva
das ferramentas de sustentabilidade conhecidas: Agenda 21, 3Rs, ISO14.000, A3P, Consumo Responsável, Pegada Ecológica, Química Verde, Ecologia Industrial, Responsabilidade Social, Educação Ambiental, Eliminação da Pobreza. Sem querer enumerar o
supérfluo, reivindicamos o necessário para
todos os habitantes do planeta: água potável, alimento e saneamento ambiental. n
John Emilio Garcia Tatton é professor de Ecologia Urbana no Curso de Arquitetura e Urbanismo da Fundação Armando Alvares Penteado
(FAAP) e Presidente da AGUA – Associação
Guardiã da Água (www.agua.bio.br). Texto publicado em www.ecodebate.com.br (22/03/2011)
O
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I
N
A
B
R
U
Hadsie
Cidades da periferia:
a nova ordem econômica e social
por Doug Saunders
Um terço da humanidade está trocando o campo pela cidade na maior migração da história humana, um evento gerador de novos espaços – pontos focais
de conflito e de mudanças neste século. Embora estigmatizadas, as “cidades
da periferia” se convertem em centros de febril atividade, de remodelamento
urbano, social e econômico. Descubra o como e o por quê desta irreversível
tendência mundial com o autor do best-seller Arrival Cities
Cities.
D
entro da cidade existe outra cidade, instalada na periferia de nossa visão e
além dos guias turísticos. Cenário do próximo capítulo da história mun
dial, as cidades periféricas (“arrival cities”) são movidas à força de vontade e de esperança, golpeadas pela violência e pela morte, estranguladas por
negligência e incompreensão. A história está sendo escrita – e em grande parte
ignorada – em locais como Liu Gong Li, na periferia de Chongqing Chiem, China;
em Clichy-sous-Bois, nos arredores de Paris; na Dharavi de quase um milhão de
habitantes, em Mumbai, Índia; e em Compton, no entorno de Los Angeles. Esses
locais são habitados por indivíduos oriundos do campo, e funcionam como molas
propulsoras para acesso ao establishement urbano e base de recepção e apoio à
próxima leva de migrantes em busca de uma vida melhor na cidade.
Cidadania&MeioAmbiente
25
Jitendra Hassija
Ao redor do mundo, esses locais são
conhecidos por muitos nomes: favelas, slums, bustees, bidonvilles,
ashwaiyyat, shantytowns, kampongs, aldeias urbanas, gecekondular, bairros do mundo em desenvolvimento, e também bairros de
imigrantes, bairros étnicos, subúrbios problemáticos, Chinatowns,
Little Índias, bairros latinos, favelas urbanas e subúrbios de migrantes nos países ricos. A cada ano esses núcleos absorvem dois milhões
de indivíduos, principalmente os
oriundos de zonas rurais dos países
em desenvolvimento.
do, exceto em zonas de guerra, encontram-se famílias rurais mudando em massa e de uma só vez para a
cidade. Nada disso ocorreu quando
a Europa e a América do Norte foram urbanizadas por populações
rurais no século 19. Hoje, a população mundial ruma para os centros
urbanos numa onda oscilante de vaie-vem de indivíduos e de grupos de
campesinos, puxada e empurrada
pelas marés da agricultura, da economia, do clima e da política
UMA CIDADE FRACASSADA
Shenzhen, ao sul da China continental e vizinha de Hong Kong, é a maior
Quando olhamos para as “cidades
cidade do mundo propositadamente
Mumbai, os casebres da
da periferia” tendemos a vê-las como
construída como “cidade de chegada”.
entidades estáticas. Nada mais que
“cidade de chegada” abrigam os milhões Em 1980, Shenzhen não passava de
um aglomerado de moradias de baiuma aldeia de pescadores de 25.000
de indivíduos que migram da zona
xo custo habitado por gente pobre,
almas até que o então presidente Deng
geralmente em condições insalubres.
Xiaoping a declarou primeira Zona
rural para a cidade.
No jargão dos urbanistas e de alEconômica Especial, isenta de restriguns órgãos, esses enclaves são amiúde defini- PARTINDO DA ALDEIA
ções ao deslocamento geográfico de trabalhadores
dos como apêndices malignos e tumores cance- Em Mumbai, a cada junho, jovens homens ma- e livre para a prática do capitalismo. Shenzhen
rosos na cidade saudável. Seus moradores são gros arrastam-se para fora de pisos de concreto e rapidamente inchou em um pólo industrial com
vistos, nas palavras do ex-presidente Fernando buracos em calçadas, de casebres de lata e de ca- população que, no final do século 20, alcançou
Henrique Cardoso, “como um grupo ecologica- banas de plástico, ou seja, de todos os pontos da oficialmente quase nove milhões, sendo mais promente definido, não como parte integrante do densa malha de bairros ao norte da metrópole. vável uma estimativa de 14 milhões devido às massistema social.”
Às centenas de milhares, eles habirtam a perife- sas de migrantes rurais semipermanentes que cheria, a “cidade de chegada”. Ainda não são resi- gam de toda a China para embalar os “dormitóriNo Ocidente, tais conceituações têm provocado dentes de pleno direito por se considerarem cida- os”. Shenzhen gerou uma classe média próspera,
trágicas políticas habitacionais, do tipo que le- dãos de suas aldeias. E neste começo de junho, ao tornou-se líder no setor de alta tecnologia e abriga
vou Paris a explodir em motins, em 2005, aos se iniciar a colheita da maior safra de arroz, eles uma das melhores universidades do país. É o lugar
confrontos em Londres na década de 1980, e à tornam-se novamente camponeses. Em massa, onde são fabricados iPods, Nike, roupas de grife
violência assassina em Amsterdã, na primeira convergem para as plataformas lotadas de Dadar ocidental e eletrônica de ponta. Não obstante tudo
década deste século. E leva ainda a políticas mais Station, onde com pilhas de surradas rupias pa- isso, Shenzhen é hoje uma “cidade de chegada”
desastrosas em cidades da Ásia, da África e da gam o bilhete de terceira classe (US$ 1 para ida e sem capacidade para oferecer emprego, com centeAmérica do Sul, via projetos de erradicação de outro para a volta) embarcam no lento comboio nas de milhares de trabalhadores migrantes voltanfavelas nos quais o futuro de dezenas ou cente- Konkan – lotando os bancos , cabeças para fora do aos vilarejos de origem.
nas de milhares de pessoas é desconsiderado de das janelas gradeadas – para ajornada de oito hoforma imprudente.
ras rumo ao sul, margenado o mar da Arábia, até Não é necessário passar muito tempo entre a
as florestas de bambu e os arrozais do sul rural do mão-de-obra migrante de Shenzhen para perceHá ainda outra visão alternativa, a oferecida estado de Maharashtra.
ber qual é o problema. Há milhões de trabalhanos livros e filmes populares, nos quais as “cidores que compraram apartamentos em edifícidades de chegada” são apresentadas como ex- Para quem quiser desvendar essa grande migra- os altíssimos e com altíssima densidade demotensões contíguas de um “planeta de favelas” ção, ver as primeiras etapas de sua formação e gráfica, gente que trouxe família e fixou residêndistópico, um submundo homogêneo em que sua transformação num movimento de transfe- cia – quase todos trabalhadores qualificados (técos pobres são confinados a bairros-prisão, vi- rência de um terço da população rural para a nicos, gestores ou gente com formação pós-segiados por uma polícia hostil , abusados por cidade, a providência correta é aderir à maré hu- cundária). Mas para o operariado, tal sonho é
corporações impiedosas e vitimados por religi- mana que, em trens, barcos e microônibus faz o inacessível: eles não conseguem abrir uma loja
ões evangélicas parasitas. Este é certamente o caminho de volta ao campo na época da colhei- ou iniciar uma fabriqueta rudimentar, como ocorre
destino de muitas “cidades de chegada” ao se- ta. É neste movimento de retorno que os novos com os imigrantes das “cidades de chegada” em
rem privadas de sua estrutura fluida ou aban- habitantes urbanos estão mais unificados, com outras localidades.
donadas pelo Estado. No entanto, considerar maior probabilidade de construir redes de relacitais visões como o estado normal de tais núcle- onamento que culminarão na migração perma- Em outras cidades chinesas, incluindo Pequim e
os é ignorar o grande sucesso destes núcleos da nente, todos cientes de sua impotância política Chongqing, antigos habitantes da zona rural se
periferia. Tanto nos países em desenvolvimen- e econômica. A chegada deste contingente hu- cristalizam em autoconstruídos “vilarejos” de mito como no rico Ocidente, elas são o instru- mano à cidade é parte de um processo rural, lhares ou dezenas de milhares de pessoas, princimento-chave para a criação de uma nova classe regulado pelas estações, através do qual cada palmente quando oriundos da mesma região –
média ao abolir tanto os tormentos da pobreza indivíduo tem a oportunidade de criar links e como Liu Gong Li. Aqui, eles podem conseguir
vigente nas zonas rurais quanto a desigualdade. comunidades maiores. Em nenhum lugar do mun- uma primeira residência – simples, mas suportá-
“
26
Em
”
Só que em Shenzhen, esses bairros
autogerados não existem mais. Em
2008, tentei visitar uma dessas últimas “aldeias”, de nome Min Le
(“Aldeia de Gente Feliz”), situada
na fronteira noroeste da cidade.
Encontrei nada mais que uma estreita faixa de terreno desbravado
por bulddozers e transformado em
canteiro de obras para a construção de novos arranha-céus de alta
densidade habitacional.
“
A favela de Kibera garante
um fluxo vital de dinheiro para
as aldeias do conturbado Quênia
e dos países vizinhos.
Em todo o mundo, os estudiosos da
questão e os agentes governamentais
estão começando a perceber que os
bairros de imigrantes das zonas rurais são cruciais para o futuro de uma
cidade, não um problema a ser eliminado. A última década assistiu a uma dramática mudança nos
pareceres oficiais. Ainda assim, a demolição de
favelas nas “cidades de chegada” é prática muito
comum em urbes como Mumbai e Manila. Estas
eliminações sistemáticas arruínam o funcionamento econômico e social da “cidade de chegada”.
Mesmo nos casos em que os moradores expulsos
das favelas recebem apartamentos simples em
conjuntos habitacionais – prática comum na Ásia
e na América do Sul –, já não lhes é mais possível
criarem lojas, restaurantes e pequenas indústrias
para atender as necessidades da comunidade, ou
formar redes de relacionamento orgânico entre a
aldeia e a cidade. As pessoas se tornam dependentes e suas comunidades ficam engessadas.
FAVELA OU
“CIDADE DE CHEGADA”?
À semelhança da maioria das favelas africanas,
Kibera é uma verdadeira “cidade de chegada”. Embora já exista a sudoeste de Nairobi há 90 anos,
tendo sido criada quando a administração colonial
queniana concedeu algumas glebas de terra aos veteranos Núbios sem-teto da Primeira Guerra Mundial, nas décadas pós-colonial Kibera tornou-se um
instrumento vital de urbanização, carreando vilarejos e distritos para a cidade. Apesar de suas condições dramáticas, Kibera garante um fluxo vital de
dinheiro para as aldeias do conturbado Quênia e
dos países vizinhos, e também consegue transformar seus habitantes em moradores urbanos.
“Agora sou residente de Nairóbi, falo a língua e
sei como ser uma mulher daqui”, diz Eunice, que
cresceu cultivando milho, mandioca e batata no
seco noroeste do Quênia. No campo, toda a família vivia em uma cabana de palha, e via de regra
fazia uma refeição por dia – apenas mingau. À
diferente. Hoje, seus pequenos bangalôs são pintados e muito bem conservados, os belos jardins e canteiros são delimitados por novas cercas
de ferro forjado e hortas no quintal.
Suas avenidas são agora ativas e coloridas, com muitas lojas, pequenas
indústrias, mercados animados e restaurantes, tudo decorado com exuberância de cores. O bairro nunca será
bonito, nem completamente seguro,
mas tornou-se muito mais agradável,
feliz e otimista. Agora, ele é povoado
principalmente por migrantes rurais:
seis em cada 10 pessoas que ali vivem nasceram em uma aldeia da
América Latina, muitas vezes a mesma que seus vizinhos. As idas mensais dos salvadorenhos que ali vivem
à agência da Western Union são quase certamente a maior fonte de renda
da pequena aldeia de El Palón. São as
remessas de centenas de dólares que
mudaram a aparência e a qualidade
das habitações daquela aldeia em El Salvador, que
ganhou eletricidade e TV. Os membros da comunidade salvadorenha de West Adams ajudaram-se
entre si a migrar, alugar apartamentos, arranjar
emprego, poupar, criar pequenos negócios, contratar mais mão-de-obra e comprar casas. Esta
rede de relacionamento cidade-vilarejo, entre centenas de outras assemelhadas, conectam ruas e
quarteirões adjacentes a remotos distritos rurais
em Honduras, Guatemala, El Salvador e México.
O bairro tornou o centro-sul e o sul de Los Angeles numa colcha de “cidades de chegada”. E esses
quarteirões não só transformaram as aldeias da
América Central em lugares melhores, como também tornaram os filhos e filhas dos imigrantes em
americanos respeitáveis.
Khym54
vel – e abrir um pequeno negócio,
restaurante ou até mesmo uma fabriqueta aberta para a rua, como fazem
os moradores das “cidades de chegada” em todo o mundo.
”
medida que se propagou o apelo da cidade e as
sucessivas ondas de fome dizimaram aaldeia natal, ela e o marido perceberam que a única chance
de manter os filhos vivos era criar um link com a
cidade, a 400 quilômetros de distância.
ALDEIA AMERICANA
A área no entorno do cruzamento das avenidas
South Redondo e West Adams, em Los Angeles,
não pode ser confundida com uma village. É uma
faixa estreita de bangalôs com gramados em miniatura interrompida por blocos de edifícios industriais e comerciais nas avenidas principais, tudo à
sombra do elevado Santa Monica Freeway. Chamada de West Adams pela administração local e
por muitos Angelenos como o extremo norte de
South Central, trata-se de um bairro cinzento e
quente, coalhado de carros, sem qualquer tipo de
parque ou de espaço verde, um dos bairros mais
densamente povoados da cidade. E também um
dos mais pobres. Historicamente, foi um gueto
afro-americano com alto índice de criminalidade,
uma zona onde os Angelenos brancos não ousavam se aventurar. Não tinha nenhuma economia,
e os letreiros publicitários da avenida anunciavam
apenas os fortemente vigiados estabelecimentos
de venda de bebida alcoólica e de desconto de
cheque. Em 1992, ela explodiu em violência – os
motins de Rodney King incendiaram dezenas de
edifícios e deixaram dezenas de outros saqueados. Os homens se postavam nos gramados minúsculos à frente das vitrines gradeadas de suas
lojas com armas de grosso calibre para defender a
todo custo seus espaços alugados, sempre gritando entre imprecações que se mudariam para outra
parte da cidade logo que pudessem.
No entanto, quase duas décadas após os motins,
este canto da cidade tornou-se completamente
NA PERIFERIA DE TEERÃ
A metrópole de Teerã desdobra-se das alturas
nevadas das montanhas Alborz às planícies de sal
do deserto de Dasht-e Kavir. E ao longo deste
caminho, as moradias de aço e vidro se transformam em outras, de pedra e madeira, areia e lama.
Quando se viaja ao limite sul da cidade e, em
seguida, continua-se o trajeto por vários quilômetros do mais puro inferno industrial até a orla do
deserto, chega-se a um perímetro zumbindo de
atividade: construção de moradias, vaivém constante, veículos com placas de províncias distantes. São os novos assentamentos humanos, que
poucos conhecem, a emergir da areia.
Foi nesse local que a revolução islâmica de 1979
encontrou sua base de sustentação e sua causa
motivadora. E agora, neste estabelecimento humano da periferia mais distante, a nova geração
iraniana busca um lugar ao sol, um despontar urbano, e experimenta profunda frustração com os
fracassos do governo islâmico. Talvez ali estejam
Cidadania&MeioAmbiente
27
rua debruada por gramado espesso e
árvores, e tudo isolado da agitação
da cidade por um grande parque florestal costurado por pistas elevadas.
sendo plantadas as sementes da próxima grande reviravolta.
No verão de 2009, esta improvisada extensão de Teerã tornou-se o que
Ao ser criado, em 1960, em substinão se esperava: um ponto de dissituição de um bairro industrial arrasadência. No entanto, nos meses mais
do por bombardeios, Slotervaart e o
conturbados que se seguiram à condistrito de Overtoomse Veld constitestada segunda vitória eleitoral do
tuíam uma cidade-dormitório para
presidente Mahmoud Ahmadinejad,
trabalhadores holandeses. Seus pelá não ocorreram manifestações de
quenos apartamentos eram servidos
protesto, não foram penduradas
por apenas algumas lojas na avenida
bandeiras nas janelas nem prédios
principal, a fim de se garantir uma
foram ocupados. Os protestos convida doméstica tranquila e livre das
centraram-se principalmente nos
influências maléficas do consumo e
bairros de classe média do centro e
do capitalismo. Entre os edifícios hado norte de Teerã, liderados por esvia inúmeras praças públicas projetudantes que tinham menos a pertadas para o uso de pedestres. Como
Em Amsterdã, o conjunto urbanístico
der (embora alguns tenham perdido
bairros urbanos periféricos
a vida). Aqui, algo muito menos viplanejado de Slotervaart transformou-se muitos
europeus, Slotervaart tomou como
sível aconteceu. Depois que o sol se
num campo de isolamento
inspiração as concepções de Le Corpunha naquelas noites de verão, os
busier e dos Congrès Internationaux
habitantes de toda a periferia sul gapara imigrantes.
d’Architecture Moderne, que consinhava os telhados que se debruçam
deravam a estrita separação funciosobre as ruas e entoavam em coro
lento: “Allahu akbar, Allahu akbar” – Deus é empregada informalmente (motoboys, empre- nal entre as zonas de trabalho e as de habitação e
grande, Deus é grande. Para um forasteiro, isso gados domésticos, pedreiros e operadores de call- lazer a chave para a qualidade de vida. Assim,
poderia soar como demonstração de fé e de center), e o abuso de drogas ilícitas continua a Slotervaart recebeu um zoneamento rígido. Nas
apoio ao regime islâmico. Mas no Irã daquele ser um problema visível em alguns pontos. Mas, maquetes arquitetônicas, as praças públicas eram
momento, tal manifestação era um ato de dissi- agora, já se verifica uma mudança fundamental. decoradas com pequenos grupos de pessoas de
dência e proibido.
A rua principal, outrora uma faixa de biroscas, pele clara, conversando e parecendo desfrutar as
agora está repleta de lojas de móveis e eletrodo- benesses do ar livre.
OS SUBÚRBIOS
mésticos, restaurantes, sorveterias e shoppings.
Les Pyramides, fruto da maior competição arqui- Nesta comunidade, cada família tem uma média “À primeira vista, parecia um lugar perfeito”, diz
tetônica europeia da década de 1960, é a mais de 1,5 televisores, um terço tem aparelhos de Mohamed “e em muitos aspectos é um bom lugar
utópica das muitas utopias de planejamento ur- DVD, metade possui telefone celular, um terço para se viver. Mas, após apenas algumas semanas
bano oficial que circundam em anel o perímetro dirige carro próprio e 14% dispõem de compu- em Slotervaart notei que havia algo de muito errade Paris. Les Pyramides foi construído para abri- tador, metade deles com internet banda larga. do. Aquilo não passa de uma lixeira para imigrangar uma classe média urbana francesa em expan- Todas as casas são feitas de tijolos; dois terços tes, que ali são segregados e isolados de tudo.”n
são, que supostamente buscava escapar ao con- têm investido na expansão ou melhoria de suas
gestionamento do centro de Paris do pós-guerra, moradias, e cerca de um terço delas têm reboco e
mas que foi ocupado, quase desde o início, pelo exterior pintado (reboco e pintura são emblemas
grupo precisamente oposto: um contingente rural mundiais de disponibilidade financeira).
não francês, que luta para encontrar seu espaço.
Quando se chega ao sítio do empreendimento, as ZONEAMENTO CAMBIANTE
pirâmides ficam menos utópicas: suas paredes de Mohamed Mallaouch desembarcou do vôo que o
estuque estão manchadas pela chuva, a sombra trouxe de Marrakech no aeroporto de Schiphol,
do concreto projeta-se nas ruas de pouca segu- pegou o trem rumo à periferia oeste de Amesterrança para os 12.000 habitantes, e as praças cen- dã, e se maravilhou com os padrões geométricos
trais são ocupadas por pequenos grupos de ho- verdes que desfilavam diante dos olhos. Depois Doug Saunders – Chefe do escritório euromens jovens, que nada mais tem a fazer do que das aldeias de argila que pontilham seu lar monta- peu do jornal canadense Globe and Mail e quaficar ali sem fazer nada.
nhoso ao norte do Marrocos e dos bairros confu- tro vezes agraciado com o National Newspaper
sos de Marrakech, aquela era uma maneira com- Award (o Pulitzer Prize canadense). O texto
CHEGANDO MAIS UMA VEZ
pletamente diferente de viver. A seus olhos, pare- publicado em www.foreignpolicy.com foi transEm 1996, o Jardim Ângela, na periferia de São cia uma cidade artificial, construída por criança crito pelo autor do best-seller que acaba de
Paulo, ficou conhecido como a mais violenta com blocos de Lego e feltro verde. Contrastando publicar – Arrival City: The Final Migration
comunidade da Terra. Mas, ao longo dos últi- flagrantemente com a densidade de edificações and Our Next World (título canadense) ou Arrival City: How the Largest Migration in History
mos 15 anos, ali surgiu uma próspera classe mé- que bordam os canais dos famosos bairros do
is Reshaping Our World (título nos EUA, Grãdia. Dependendo da fonte de informação, entre centro da cidade, pouco mais adiante o conjunto Bretanha e Australásia). As reflexões de
um quinto e um terço da população do bairro arquitetônico planejado de Slotervaart forma uma Saunders sobre palpitantes questões internaciconseguiu amealhar o suficiente para se tornar grade regular de prédios largos e baixos, com gran- onais podem ser lidas em http://
proprietário. Jardim Ângela continua a ser um des extensões de área verde entre si, cada edifício dougsaunders.net/. Tradução e adaptação de
bairro pobre, com a maioria dos que ali vive separado do outro por uma sinuosa e tranqüila Cidadania & Meio Ambiente.
“
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”
Cidadania&MeioAmbiente
29
MrsMinifig
Não teremos um futuro minimamente aceitável sem
uma profunda revisão dos
conceitos, fundamentos e
modelo da economia. E
não faremos esta revisão
sem uma clara compreensão de nossa responsabilidade em termos de cidadania planetária.
Entrevista com Henrique Cortez
CONSUMO ÉTICO & CIDADANIA
IHU ON-LINE – O CONSUMO ÉTICO E A ECONOMIA ATUAL PODEM SE
RELACIONAR HARMONICAMENTE? O CONSUMO ÉTICO EXIGE UMA NOVA
ECONOMIA?
Henrique Cortez – Comumente, associamos o consumo ético a
um ato individual de consciência, uma opção pessoal, mas ele
também deve ser considerado em suas dimensões econômicas e
políticas. Vivemos em um planeta finito e com recursos naturais
igualmente finitos. No entanto, o nosso modelo econômico é baseado em produção e consumo infinitos. É evidente que este modelo não funciona por muito tempo. Além de ambientalmente irresponsável, este modelo também é socialmente injusto e economicamente excludente porque apenas atende à sanha consumista de
uma fração da população. Dois terços da população mundial estão muito abaixo desta linha de consumo, nada usufruindo, mas
arcando com os custos sociais e ambientais da degradação do
meio ambiente e do esgotamento dos recursos naturais.
IHU – EM QUE SENTIDO VOCÊ SE DECLARA DEFENSOR CRÍTICO DO CONSUMO ÉTICO INDIVIDUAL?
H. C. – O que hoje se convenciona chamar de consumo ético deve
ser encarado como conservador em relação à manutenção do modelo consumista. Assim, posso consumir irrestritamente porque
me justifico através do consumo ético. É uma forma de “indulgência” ao “pecado” do consumo. O consumo ético só será transformador se ele questionar o modelo consumista, assumindo sua dimensão coletiva e política em relação ao modelo econômico, às
formas de produção e ao sistema político de sustentação. É necessário questionar a quem serve este modelo e a quem ele beneficia.
A crise alimentar, por exemplo, também deve ser entendida dentro
do contexto de consumo. A produção agrícola mundial é, comprovadamente, mais do que suficiente para alimentar toda a população do planeta. Mesmo assim enfrentamos uma inaceitável crise
alimentar. Pesquisas indicam que o total da produção mundial de
alimentos já seria suficiente para alimentar nove bilhões de pessoas. Portanto, o problema da fome episódica ou crônica não está na
falta do que comer, mas nos recursos financeiros para o pleno
acesso ao alimento, cada dia mais caro.
IHU - EM QUE MEDIDA O MOVIMENTO PELO CONSUMO ÉTICO QUESTIONA A
SUSTENTABILIDADE DO PLANETA, O COMÉRCIO JUSTO, A SOLIDARIEDADE SOCIAL E OS DIREITOS DO CONSUMIDOR ENQUANTO DIREITOS DE CIDADANIA?
H. C. – Volto à crítica do consumo ético individual, porque isoladamente nada questionamos, além de nossas escolhas pessoais. É
necessária uma atitude politicamente ativa, lúcida e responsável que
realmente questione o modelo atual. Não é fácil nem simples, porque
serão exigidas profundas transformações, que modificarão as relações de trabalho e consumo. Na realidade, precisamos construir
uma nova sociedade, com um novo modelo econômico. Voltando ao
tema central, não teremos um futuro minimamente aceitável sem uma
profunda revisão dos conceitos, fundamentos e modelo da economia. E não faremos esta revisão sem uma clara compreensão de nossa responsabilidade em termos de cidadania planetária.
Redesenhar a economia mundial seria um feito inédito e só poderia acontecer com maciço apoio social, e realizado coordenadamente por todos os países. Ou seja, não irá acontecer. De qualquer
forma, precisamos debater estes temas e encontrar as alternativas
mais viáveis enquanto ainda temos tempo.
IHU - ACREDITA QUE O MOVIMENTO COLETIVO PELO CONSUMO ÉTICO
PODE SER UMA FORMA DE AÇÃO POLÍTICA? NESSE SENTIDO, ELE TERIA
PODER DE PROVOCAR TRANSFORMAÇÕES NO CAMPO DA ECONOMIA?
H. C. – Nossa compreensão de desenvolvimento é completamente diferente do que aí está. Queremos um desenvolvimento que seja sustentá-
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vel, economicamente inclusivo, socialmente justo e ambientalmente responsável. Se não for assim, não é sustentável. Aliás, também não é desenvolvimento. Esta compreensão, se coletiva, é política e transformadora. O
consumo é um ato político e econômico e, neste sentido, deve ser ético,
responsável e sustentável. O consumo só é ético se for sustentável, e isto
só ocorrerá com uma gigantesca redução do consumo global.
Também não tenho esta pretensão e nem de longe tenho as respostas. Aliás, acho que ninguém tem. Fica, no entanto, o alerta de
que este modelo não irá funcionar por muito tempo, na exata medida em que os recursos naturais se esgotam e que as mudanças
climáticas podem colocar a economia e a sociedade diante de uma
catástrofe planetária.
O planeta, por exemplo, já soma mais de um bilhão de veículos, das
scooters aos megacaminhões. Vamos imaginar, além do consumo de
combustíveis e emissão de gases, o que esta frota significa em termos
de energia, água, mineração, siderurgia, recursos naturais consumidos
etc. Isto é insustentável sob qualquer perspectiva. Então, este novo
modelo deve significar uma nova forma de organização, produção e
consumo. Se isto tornar-se uma posição firme e clara por parte da sociedade, ocorreriam grandes transformações sociais, políticas, econômicas e ambientais. Assim, talvez, consigamos chegar ao século 22.
IHU - DIANTE DA CRISE ATUAL E DA CRISE DO CAPITALISMO, A PROPOSTA DO CONSUMO ÉTICO PODE SUSCITAR UM DEBATE SOBRE UM POSSÍVEL “NOVO CAPITALISMO”?
H. C. – O capitalismo é injusto, ganancioso, especulativo e insustentável por natureza e um “novo capitalismo” também o seria.
Precisamos encontrar um novo modelo, uma nova concepção e o
capitalismo, qualquer que seja a sua maquiagem, é a resposta errada. Pessoalmente, sou um ecossocialista e não tenho qualquer
proximidade com a esquerda reformista que propõe um novo capitalismo, o que é uma desonestidade intelectual e uma fraude ideológica. Acredito que o ecossocialismo, sua compreensão de um
novo mundo, de uma economia solidária e sustentável, será o
caminho para a esquerda superar a crise atual.
IHU - EM QUE SENTIDO A CRISE INTERNACIONAL PODE NOS LEVAR A
PENSAR ALTERNATIVAS EM RELAÇÃO À NOSSA CULTURA DO CONSUMO?
H. C. – A crise pode ser uma grande oportunidade de mudança. Vou
usar a questão do consumo insustentável como exemplo. O modelo
produção/consumo precisa vender cada vez mais, em escala maior do
que o crescimento populacional. Para isso, investe pesadamente no
marketing, produzindo uma onda consumista sem paralelos na história. Ao mesmo tempo, todos os produtos devem ficar obsoletos o
mais rápido possível, justificando sua substituição, mesmo que desnecessária. O desperdício é incentivado e o consumo desenfreado,
endeusado. É evidente que isto demanda cada vez mais recursos
naturais e energia, logo, nossa pegada ecológica fica cada vez maior.
Vamos imaginar que abolimos a obsolescência, ao mesmo tempo
em que, por programas de eficiência energética, reduzimos a energia agregada ao produto. O primeiro impacto seria a redução da
demanda de recursos naturais e de energia, mas, ao mesmo tempo,
também reduziria a demanda industrial e, com ela, a oferta de empregos na indústria. Menos empregos e produção também reduziriam a arrecadação de tributos, o que poderia enfraquecer toda a
rede de proteção social oferecida pelos governos.
Com esse argumento, os desenvolvimentistas são ferrenhos defensores do crescimento da produção, do consumo e, evidentemente, da carga tributária. Segundo eles, o resultado seria uma
catástrofe econômica em escala global. Mas esta catástrofe não é
necessariamente necessária. Uma grande parte deste modelo de
desenvolvimento é virtual e meramente especulativo, como ficou
demonstrado na atual crise financeira internacional e na crise alimentar. Muitas empresas obtêm mais da metade de seus lucros no
mercado financeiro e, para isto, tornam-se grandes investidores
nas bolsas de valores, especulando mais do que produzindo.
Enquanto Wall Street, a economia virtual, esteve desconectada de
main street (a economia real), o cassino especulativo enriqueceu
muita gente. Mas agora, com a crise, quando os papéis perderam a
gordura especulativa e retornaram ao seu valor real, a conta ficou
com o contribuinte. É da essência deste capitalismo especulativo
que o lucro seja privado e o prejuízo seja socializado. É isto que
está em questão, o que realmente deve ser entendido como desenvolvimento, como deve ser medido e incentivado. Um tema em
aberto, com grandes questões e poucas respostas.
IHU - QUAIS
SERIAM AS TRANSFORMAÇÕES ESSENCIAIS NA BASE DA
CONSTITUIÇÃO DA SOCIEDADE PARA CHEGARMOS A UM CONSUMO ÉTICO
REALMENTE COERENTE?
H. C. – A primeira mudança será, evidentemente, na educação, que
deve, além de ensinar, ajudar a compreender e assumir todas as
nossas responsabilidades, individuais e sociais. Ninguém nasce
intolerante, preconceituoso, racista, homofóbico, supremacista,
anti-semita, islamofóbico, consumista etc. Estas são atitudes que
aprendemos desde o berço, herdadas da intolerância, aberta ou
camuflada, de nossos antepassados. Se não tivermos capacidade
crítica de compreender nossos próprios preconceitos e superálos, iremos, certamente, reproduzir o modelo, contaminando o berço de nossos descendentes.
Muitos desafios se apresentam neste novo século, com destaque
para as mudanças climáticas, aquecimento global, hiperconsumo,
esgotamento de recursos naturais, crise alimentar, refugiados ambientais etc. São desafios globais, que devem ser enfrentados por
todos indistintamente e, mais do que nunca, precisamos uns dos
outros, valorizando o que nos une e desprezando o que nos distancia. Se não nos esforçarmos para sermos melhores do que nossos antepassados, os novos desafios deste século serão muitos
maiores e mais poderosos do que todos nós.
n
Henrique Cortez é ambientalista, cientista social formado pela USP, com especialização em gerenciamento de riscos ambientais pela Northwest
University, EUA, além de consultor e coordenador do Portal EcoDebate (www.ecodebate.com.br) e subeditor de Cidadania & Meio Ambiente. É autor de Cidadania Ambiental - Água (Editora Baraúna, 2010 - vendas pela internet
www.editorabarauna.com.br), obra que apresenta informações, conceitos, ideias e sugestões sobre as questões aquecimento global, mudanças climáticas e recursos hídricos. Entrevista de Graziela Wolfart em IHU On-line (Instituto Humanitas Unisinos - IHU, da Universidade do Vale do Rio dos
Sinos - Unisinos, em São Leopolod, RS (01/06/2009)
Cidadania&MeioAmbiente
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saveas.new
Nunca antes na história da evolução humana o contexto ambiental e
psicossocial sofreu tão dramáticas alterações como nos últimos 50
anos. Mudanças que ganham a velocidade da luz nesta era informacional. Confira – e prepare-se – para o que o futuro próximo nos reserva
10 TENDÊNCIAS
por Wishard Van/World TrendsResearch
que mudam a cena global
1
2
GLOBALIZAÇÃO -
A modernização, a urbanização e a globalização da China, Índia e
de outras nações asiáticas será o evento mais dinâmico e explosivo das próximas décadas. Milhões de pessoas terão suas vidas pessoais e coletivas transformadas em maior
grau e num mais curto espaço de tempo do que qualquer ser humano já experimentou.
GEOPOLÍTICA - O mundo busca uma nova configuração geopolítica. Estamos no final de um
período de 500 anos em que as nações centradas no Atlântico dominaram as questões econômicas, políticas e militares. Pela primeira vez na história moderna, China e Japão tornaram-se
países com economias maiores do que a poderosas nações e, juntamente com a Índia, poderão se
tornar o centro mundial de inovação tecnológica e de produção.
TEMPO
ACELERADO - O ritmo acelerado da vida tornou-se hoje um problema crítico de
saúde mental. A ênfase na mudança constante criou um choque entre diferentes escalas
de tempo. Aquela criada pelo choque tecnológico não corresponde à da natureza. O
tempo sem pressa é essencial para o crescimento natural. No entanto, a velocidade – que
vem a ser a compressão forçada do tempo – é cada vez mais necessária à economia
contemporânea. Já se fala até mesmo que ultrapassamos a “era da velocidade” e entramos na do “tempo real”. Existiria agora, dizem, apenas um único “tempo mundial”.
3
4
INFORMAÇÃO ONLINE - O ambiente informacional em que o indivíduo vive foi radicalmente
alterado. Ao longo da história, a transmissão de informações, idéias e imagens ocorreu lentamente, levando semanas e até meses para se deslocar ao redor do mundo. Um ritmo tão lento de
trânsito informacional dava às pessoas tempo para se adaptar psicologicamente ao novo ambiente e às novas informações. Hoje, zapeamos informações, idéias e imagens em todo o planeta em
nanossegundos. As pessoas não têm tempo de se adaptar, nem de assimilar as novas informações
de modo coerente. O resultado é a insegurança e a desorientação.
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5
DESSOVIETIZAÇÃO DO LESTE EUROPEU A Eurásia continuará a ser uma fonte de incerteza e até mesmo de possível instabilidade. A Rússia ainda
não entrou verdadeiramente na era
“pós-comunismo”, já que a maior
parte de sua liderança política e industrial foi moldada no regime comunista. Até mesmo o Moscow Times observou: “Não se pode negar
que a Rússia contemporânea é em
sua essência um produto da herança soviética. Todas as instâncias de
nossa vida ainda são moldadas pelas expectativas de estilo soviético.
Nossos governantes pensam sovieticamente.” Recentemente, as autoridades russas se reuniram com a
elite da Rússia “roqueira” para garantir que uma situação como a
ocorrida em Kiev, onde muitas estrelas do rock ucraniano apoiaram
a Revolução Laranja, não se repetiria em Moscou. Essa providência
apenas confirma que do ponto de
vista psicológico ainda será preciso
uma geração para a Rússia se livrar realmente da herança de 74
anos de regime comunista.
Cidadania&MeioAmbiente
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DESESTABILIZAÇÃO
MUNDIAL
Uma ameaça de desestabilização mundial representa potencial
efervescência política que, se não for abortada, pode conduzir à anarquia global. A arena para
esta possibilidade não se encontra apenas no Oriente Médio, mas nas nações da antiga União
Soviética, que formam um cinturão do sul da Rússia e através da Ucrânia até o Cazaquistão, o
Quirguistão, o Tajiquistão, o Uzbequistão e o Turquemenistão. Os povos destes Estados estão
despertando para as privações causadas pelos arcaicos sistemas econômicos e políticos, bem
como percebem que tal realidade não pode nem precisa perdurar. Não obstante EUA, Europa e
outras grandes potências possam ajudar a melhorar esta situação, tal preocupação ainda não
norteia a atenção e prioridade, o que não deixa de ser vital para a futura segurança mundial.
6
7
-
9
DESCOMPASSO
CIÊNCIA X HOMEM - A ciência está em processo de redefinir nosso entendimento sobre os conceitos “vida”, “natureza” e “humano”, que nos foram passados
desde o alvorecer da consciência humana.
Cada vez mais os cientistas subordinam os
seres humanos à tecnologia. Em essência,
podemos estar abdicando de nosso capital
psicológico de “ser” para delegá-lo ao computador. Os cientistas nos dizem que quando a inteligência artificial e humana forem
fusionadas, entraremos na era do “pós-humano”. Por volta de 2030, poderemos ter atingido o ponto onde a questão principal será:
“Para que servem os humanos num mundo
com capacidade tecnológica auto-replicante
e totalmente independente do controle humano?” Portanto, enfrentamos uma crise política e humana sem precedentes históricos.
8
CULTURAL - A globalização tem ocorrido muito além da economia
e das finanças, atingindo agora o estágio
no qual as concepções políticas, sociais, culturais e filosóficas ocidentais gradualmente
se infiltram no resto do mundo. Os americanos, por exemplo, acreditam que o que é
bom para os EUA também é bom para todas as nações, esquecendo-se de que as
peculiaridades culturais entre os EUA e as
outras nações apresentam profundas diferenças psicológicas. A questão crucial para
a globalização das nações é: “Como modernizar sem perder as tradições representativas das próprias raízes psíquicas?” Por
isso, os americanos precisam ser muito mais
sensíveis aos agudos traumas emocionais
que as nações estão experimentando ao enfrentar os diversos efeitos da globalização.
Van Wishard – Consultor e conferencista especializado em análise e síntese de tendências globais da
World Trends Research. Autor
de Between Two Ages: The 21st
Century and the Crisis of Meaning, The American Future e principal colaborador da Encyclopedia of the Future (Macmillan &
Company). Texto original publicado em http://vanwishard.com
Tradução livre de Cidadania &
Meio Ambiente.
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duke.roul
PASTEURIZAÇÃO
10
MIGRAÇÃO
HUMANA - O
maior fenômeno migratório
da história está mudando
a face das nações. Na China, cem milhões de pessoas estão mudando do campo para a cidade. No Ocidente, a União Europeia
precisará nas próximas três
décadas de 180 milhões de
imigrantes para manter sua
população no patamar de
1995, bem como a atual
relação entre aposentados
e trabalhadores. Em Bruxelas, mais de cinqüenta por
cento dos bebês nascidos
são muçulmanos. Na Alemanha, a taxa de mortalidade superou a de natalidade durante décadas, o
que agora obriga o governo a encher aviões com
quadros técnicos indianos
apenas para manter estrutura de alta tecnologia germânica. Na Inglaterra, há
agora mais muçulmanos
praticantes do que anglicanos. A Igreja Católica está
enfrentando a possibilidade (probabilidade?) de nos
próximos anos ver o Islã tornar-se a maior fé europeia.
Nos próximos anos, o significado de ser francês, alemão, italiano ou inglês vai
mudar tão radicalmente
quanto o que significou ser
americano nas últimas quatro décadas.
RECONQUISTA
ESPIRITUAL - Há algum tempo o mundo passa por uma reorientação psicológica e espiritual que gera crescente incerteza e instabilidade.
Esta tendência é mais bem exemplificada não por pesquisas de opinião sobre
o percentual da população que acredita em Deus, mas pelo caráter da cultura pós-moderna do Ocidente. Para compreender a extensão dessa reorientação espiritual, basta consultar a seção religião em qualquer livraria. Além de
obras sobre Cristianismo, abundam as que versam sobre espiritualidade,
Nova Era, Budismo, Nostradamus, ioga, fundamentalismo, anjos, milagres,
filosofia oriental, vício, saúde psíquica, misticismo, auto-ajuda e as que ensinam a encontrar o “sentido da vida”. Todas evidenciam a enorme incerteza
espiritual e a busca por algum alívio espiritual.
A reorientação psicológica pode ser detectada na fratura dos símbolos coletivos e das imagens internas da própria integralidade. Houve tempo, por
exemplo, em que “céu” anunciava o reino transcendente, a eternidade, a
morada dos deuses. Agora só se fala de “espaço”, o que implica em nenhuma conotação espiritual. Antes, quando à noite olhávamos para o alto
víamos a lua no céu. Agora, pisamos na Lua e vemos a Terra no céu. Céu
e Terra se tornaram uma coisa só, e, assim, nosso sistema de imagens
simbólicas ficou embaralhado. Como a função dos símbolos e das imagens míticas é relacionar nossa consciência às raízes de nosso ser e de
nosso inconsciente, esta perda de símbolos históricos deixa pouco substrato
para sustentar a vida interior do indivíduo. E aí nos voltamos para todos os
tipos de substitutos químicos e para as pseudo-religiões.
Cidadania&MeioAmbiente
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