CONTOS BREVES

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CONTOS BREVES
CONTOS BREVES
CONTOS BREVES
1
I
Assim somando e dividindo, lento vai se desenhando o perfil do dia daquela moça tão calada.
Reservada e sempre silenciosa, Alice desliza pela vida arrastando atrás de si antigos becos,
vielas, praças abandonadas, muros úmidos e cheios do peso verde da hera.
Às vezes um raio de sol da manhã brinca risonho em suas pernas incansáveis, faz uma carícia
assombrada de leveza e cai rolando sobre o chão de pavimento duvidoso, enquanto dá ouvidos
ao som das chinelas de couro gastas de andanças da moça.
Uma andorinha espia, curiosa, com sua monótona cor preta e branca, visitando uma rosa
pálida nascida no jardim sempre trancado, mal assombrado, dizem, de dona Maricota, pálida
também, esquecida também, cheirando a cama e a tempos passados. A ave enfadada de
perfume, voa e pousa sobre o galho da goiabeira onde um azulão soberano, come uma fruta
encarnada com cor de flor, e mantêm olhos e cara satisfeita enquanto seu rabo azul remexe
cadenciado desenhando arabescos contra o céu da sua mesma cor.
Há um leve zumbido no ar, e o capim que nasce em tufos atrevidos pela praça cheia de
lembranças, parece ser o dono do ruído. Grilos sacodem ao ar do dia seus sacos cheio de
pedrinhas redondas e barulhentas e a tarde movediça avança. Já chega às cinco e meia.
A moça mantêm os olhos ardentes, quase febris, no chão, numa trilha imaginária que segue de
segunda a sábado, no mesmo horário, para comprar o pão. Ela vai e vem, num movimento
fluido que possui alguma beleza da constância.
A mãe a espera no portão despencado, meio velha, meio arrependida, meio calada, com um
meio sorriso silencioso que mostra a parte dianteira da chapa mal feita, mas com uma boa
vontade soberana do protético lerdo e mal encarado, seu velho conhecido dali mesmo. Os dois
são tão antigos que eles nem sabem mais de quando começou essa relação de vizinhança,
talvez desde a barriga das mães dos dois. A amizade imemorial não o impede de querer seu
dinheiro à vista, que chega em notas enroladas umas nas outras, entranhadas, difíceis, e vem
de uma a uma contada e recontada vezes sem fim, como quem não quer mudar de dono.
A mulher mais velha usa um vestido que já foi florido, e hoje juntas flores, quadros e listras
aleatórias e descoradas num fundo indefinível. Ela espera desolada os passos da filha forte e
moça, tão séria, sisuda e ausentada de si. A sua filha pouco fala e nunca ri.
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A vida passa lenta e lerda, com raros risos, sobre e entre o chão de paralelos toscos e muros
derreados sob o peso da pesada folhagem muito verde e ofuscante de hibiscos de um raro tom
de amarelo. O miolo quase vinho da flor mostra escancarado suas gotas aveludadas de pólen,
onde um beija flor de asas sempre invisíveis vem sempre e metódico visitar, atrevido e sem
convite, com seu bico de cegonha, afiado e ladrão.
A tarde pede licença pra morrer e o sol avermelhado de raiva incontida e impotente, após seu
reinado quente do dia, concede mais quarenta centímetros no horizonte que explode em cores.
Pássaros fazem a última chamada, uns aos outros, indistintamente, barulhentos e solenes lêem
longas listas, lembrando a hora de buscar agasalho e esconderijo nas árvores, sob o resto de
clarão que afunda rápido num oeste faminto.
A lua aparece gorda e branca, esgueirando mortiça entre as folhagens da jaqueira, puxando
conversa com os pássaros mais novos, ensinando a eles o caminho do sono e do descanso,
enquanto desautoriza a luz do sol.
É hora de dormir para frutas, flores, capins novinhos e verdes, goiabeira, gotas dágua do
regato murmurante. Apenas as calçadas e os grilos com seus saquinhos barulhentos recebem
sua permissão pra passear na noite que chega mansa e aveludada e que gosta de bichos maus e
estes dispensam listas, luas e permissões.
A moça chega em casa e descola os olhos do chão, a salvo de mais uma incomensurável
aventura fora dos seus muros. Foi mais uma vez à padaria mortiça, morna e cheirosa na praça
feia de tanto lixo. O cavalo abandonado e em desuso que mora por ali, comendo escondido o
capim que nasce em tufos curiosos pela vida e espremidos nos paralelos mais soltos, bebendo
gotas de orvalho e poças de estrada, desta vez levantou a cabeça clara de velhice e andanças e
deu-lhe um sonoro sorriso.
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II
Aquela exigência estava guardada no fundo do coração há tanto tempo, que às vezes, em
épocas de grandes faxinas, ela era só empurrada pra lá e pra cá, de um jeito indiferente,
retirado o pó grosseiramente da superfície e deixada de lado outra vez pra dormitar no seu
canto, enrolada em xales antigos.
Ultimamente ela vinha incomodando, como se fosse um produto com a validade a vencer e
atendendo a ditames legais estivesse dando uma última chamada.
Começara com um ruído baixinho e agora estava aos berros, incomodando todos os andares
da casa, desde as coisas mais simples que o coração guarda e mesmo ameaçando acordar
velhas mágoas quase esquecidas, frias e agourentas nas partes mais baixas, escuras e
umedecidas do recinto. Estava ameaçando realmente a ordem da casa e suas rotinas.
Então vamos ver do que se trata.
Começa então a procura, afinal com tanto estardalhaço, era de se esperar que estivesse ali,
bem à vista, fácil de ser chamada a depor no balcão das reclamações, mas não.
Era uma verdadeira caçada pra ver se achava a dita cuja exigência. Foram consultados velhos
mapas, novos mapas, chamou-se os entendidos de computação com seus bonés, gírias e
neologismos e nada de respostas e identificações. Clamou então para os desentendidos de
tudo, com suas roupas e chapéus desencontrados, também sem resultado algum.
Foram acesas velas encantadas,
ditas palavras mágicas, apelou-se mais tarde para
xingamentos grosseiros e nada. Nadinha.
E o ruído continuava, alto e chato, ninguém mais dormia, nem de noite nem de dia naquele
endereço. Procurava, indagava, futucava, fuçava, xingava, adulava e não se achava a pedra
angular, a porta, a chave, o cadeado, as palavras, nada que desse acesso à exigência.
Deixaram o lado de dentro e começaram a procurar pelo lado de fora, buscando pistas,
revirando pastas, cheirando e xeretando, perguntando a vizinhança, numa verdadeira caçada
policial de calças curtas.
Tudo era motivo de desconfiança. Uma criança brincando no quintal com um pirulito na boca
e pronto: é aí, na infância que tudo jaz. Questionado, o infante não diz coisa com coisa para
decifrar o enigma. Entende apenas de arraias, bolas de gude, banhos de cachoeira,
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velocípedes, cada vez mais velozes, desenhos animados, desanimados e inanimados, e assim
nada sabe de coração, de lembranças, de violações, de amarguras, de negligências. Ele pede
educadamente pra voltar dentro de uns quinze anos que aí sim, deve ter respostas mais
eficazes.
Eis a luz, agora então é buscar pessoas quinze anos mais velhas que este menino. Colocou
anúncio no jornal e apareceram pessoas às dúzias, homens curiosos farejando novidades,
garotos mal encarados, mocinhas sorridentes, senhoras amargas.
Pessoas jovens não falam bem a língua, não entendem o bom português, foi preciso fazer uma
cartilha em letras graúdas e cheias de figuras indicativas, auto explicativas, mas muito
cansativas.
Eles já começaram a responder as perguntas de respostas óbvias com uma imensa preguiça, e
logo deixaram
as cartilhas pelos meios e foram curtir uma balada na avenida mais
movimentada da cidade, sem nem um explicação, saíram à francesa. Adeus a ajuda deste
grupo. O grupo de garotos mal encarados marcaram e não compareceram ao compromisso,
surgindo então uma manhã livre em que os estudiosos procuradores resolveram tomar um
sorvete novo, com sabor de futuro, que uns adoram outros nem tanto, mas como era de graça,
lá foi o grupinho no sol chatinho, clarinho, esparramadinho com um jeitinho boçal.
Os mais velhos declaravam tanto tipo de ocupação e cansaço, que os estudiosos dormiam no
meio das explicações onde eles negavam ajuda em nome de uma coisa completamente
desconhecida e indecifrável, segundo eles, chamada compromissos anteriores assumidos.
Esse grupo inesperadamente foi taxativo, objetivo e direto, coisa tão rara entre eles, que uma
fez uma falta imensa e sonora a ambigüidade de que eles tanto gostam.
As mocinhas sorridentes respondiam a tudo com um sorriso algo estúpido e, às vezes,
parecendo ficar com vergonha pois não sabem fazer nada além disso
em resposta às
perguntas feitas, elas mudavam a estratégia e mordiam as pontas dos cabelos longos, loiros,
lisos, monotonamente iguais que vasculham com os olhos e as mãos de modo obsessivo, e
elas também não apresentaram nenhuma serventia.
O processo parou e como o ruído estava insuportável, isolaram o andar ruidoso do coração,
como se dando as costas ou abafando o problema ele se calasse. Ledo engano.
Pelas frestas mais miúdas o ruído escorreu em estado líquido, saiu de mansinho, aliciou outros
ruídos, fez uma bateria e ganhou a rua ruidosamente.
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Agora todo mundo já sabia o que devia continuar em segredo, muito bem escondido, que há
uma exigência a ser cumprida que deve ter sido solenemente ignorada e agora cobra seu
preço ruidosamente.
Ela está diferente da exigência original, hoje já apresenta-se revestida de dor de cotovelo pelo
descaso atribuído à sua causa, pois que se acha traída pelos responsáveis diretos, e que não
querendo calar diante de tamanho desaforo, botou a boca no trombone, literalmente, à frente
da bateria.
Começou então a desconfiança que a coisa devia ser muito séria, muito especial, específica.
Finíssima.
Profunda pausa para pensar. O que seria afinal que queria tanto ser atendida, após séculos de
silêncio e poeira nos recantos do coração?
Chamou-se então os geógrafos e historiadores. Esses acharam logo ali, muito fácil e ordenada
a senhora memória que exigia cumprimento dos ditames da exigência.
Foi de fácil entendimento a questão da senhora exigência.
Atendendo a ordem cultural e natural da vida, era agora por legal decurso de prazo uma
obrigação do dono da casa ser feliz. Este era o conteúdo inexorável e inegociável da
barulhenta exigência, e agora muito bem engajada e acompanhada com ruídos extras.
Assim, para a sobrevivência do todo, ser feliz era obrigatório. Numa forma popular, para
entendimento rápido e mais grosseiro, ou apruma o leme do barco na direção da felicidade ou
a exigência ameaça entornar o caldo, virar, naufragar, desistir da rota e morrer seca e tesa com
seu trombone na mão e levando o proprietário a reboque na viagem funesta. Ela ameaça
apagar as luzes, desligar os fusíveis e botar todo mundo a dormir o sono do nunca mais.
Urge, segundo ela, que o todo tome todas as providencias possíveis para ser feliz.
Prontamente e também ruidosamente questionada, a senhora exigência não sabe responder
como chegar a esse intento. Ela não sabe os caminhos pra tal felicidade, mesmo procurando
no manual antigo e seboso de manuseios seculares que a acompanha, ela não acha explicações
nem rotas a serem seguidas. A coisa fica assim então, com gosto de tesouro sem mapa.
Talvez fazendo buscas sistemáticas em órgãos competentes possamos vir um dia a dar uma
resposta. Essa foi, na íntegra, a resposta da exigência. Agora durma um sono calmo e
delicado com esse barulho.
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III
A inocência resolveu dar um baile, mas como era muito inocente precisava de ajuda.
A primeira coisa a fazer era descobrir o porque desta vontade. A outra era saber o que era
aquela dor que aparecera em seu braço, no lugar onde dobra, do lado de fora, que lhe
incomodava tanto, num local insuspeito onde ela lera na enciclopédia, traçara um projeto
complicado na mesa de um arquiteto sideral e veio a saber que tinha o nome de cotovelo.
A vontade, segundo lhe dissera o oráculo dos sentimentos que funcionava numa casinha der
fundos, com uma luz vermelha e agourenta de existência solitária, nevoenta e suja, no beco da
tesoura. O nome de beco da tesoura veio da história antiga que contavam, que ali fora o local
onde um amante tentara, sem sucesso, matar o gato da amada com uma tesoura de unhas. O
gato deu uma senhora lição de moral no amante equivocado e mal amado, e em homenagem à
tesoura, o beco levou seu nome para a posteridade.
O oráculo, homem feio, velho e cheirando a não-sei-o-quê, ficou sentado um tempão olhando
a Inocência com uma cara de pouquíssimos amigos. De repente trovejara, com um vozeirão
escandaloso que aquela dor nascera exatamente de uma grande inveja. Essa era a origem
primeira e única da vontade de festejar. Depois calou a boca e sentou com seu aspecto de
velho cansado num banco feito de uma coleção de enigmas.
Verdosa de susto com o grito e com a notícia, a Inocência quis saber.
- Mas como assim? Não é uma coisa ruim, uma dor de cotovelo, aquela coisa com fama de
horrorosa e comum em quem anda de amores?
O velho respondeu, agora com uma voz sumida, de noviça diante da madre superiora.
- É sim, mas a sua tem por motivo a inveja.
A Inocência retirou-se do recinto, algo fula da vida, entrou no jardim encantado do oráculo e
procurou a galha mais alta da laranjeira florida pra, literalmente, cair do pau.
A notícia merecia um drama.
Jogou-se espalhafatosamente ao chão, sendo aparada pelo tapete de margaridas que morava
ali, providencialmente, e lhe enxugou as lágrimas encantadas e tão inocentes, pois nem
sabiam o porque do choro, da raiva, da queda. Um pé de alface muito invejoso, oferecia-se ao
lado, também para quem quisesse jogar-se de uma altura mais modesta depois das notícias do
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oráculo rabugento, mas foi ignorado pela Inocência que via no hoje uma data para
estardalhaço.
A Inocência dormiu noites sem fim com essa pulga atrás da orelha. Não sabia que estava com
inveja, e após voltar à enciclopédia e ler várias vezes no dicionário, decidiu que, realmente
não estava com inveja. Até por que a pergunta básica não fora respondida: estava com inveja
de que? Por qual motivo ou razão? De quem?
Rolou na cama até que o lençol, numa manhã ensolarada a chamou para uma conversa séria,
dizendo que não agüentava mais ser enrolado dia e noite, que não dormia mais em paz, e que
dona Inocência me desculpe, mas ia morar com a mãe que mora num baú de esquecimento e
que está velhinha e gosta demais de companhia e jogar baralho, isso caso a senhora não
resolva seus problemas pra então voltar a dormir sossegada, sem remexer a noite toda, e o
lençol também. Tenho dito.
O queixo da Inocência caiu de susto.
Foi preciso procurar a parteira local pra botar o queixo no lugar, mas não doía, o que doía
mesmo era o cotovelo. A conversa com a parteira, mulher vivida, experiente, rendeu panos
pra mangas.
A velha cheirando a alfazema disse pra Inocência que a primeira dor de cotovelo é assim
mesmo, inesquecível, e às vezes você nem sabe a causa, que se acalmasse, fosse dormir em
paz, que tudo se ajeitaria com o tempo. E falou em festa, mulher festeira que era, aconselhou a
fazer logo uma, em homenagem à dúvida, à queda que não deu em nada e à incerteza. E
também a novidade do queixo caído. Ela, a parteira, tinha uma filha banqueteira e festeira e a
festa foi arrumada logo ali, com a Inocência segurando com muito cuidado o queixo ainda um
pouco dolorido.
A Inocência não estava convencida dos motivos pra dar uma festa. Mas como foi sugestão da
parteira, assim meio na dúvida, faz ou não faz, mas, enfim, quem sabe, vamos ver.
Acontece que só de saber da possibilidade de acontecer uma festa a alegria ficou toda
assanhada e mandou palhaços e arautos convidar todas as pessoas na rua, do reino, da galáxia
e a beleza entrou na jogada e ofereceu banhos de imersão, roupas de festa, penteados,
maquiagem, perfumes e adornos coloridos. A festa já estava andando quase sozinha, agora só
restava à Inocência exercitar a arte da paciência.
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No dia combinado, carroças enfeitadas levavam todos os convidados e penetras para o grande
pátio iluminado que a generosidade tinha dado totalmente enfeitado com orquídeas e flores
perfumadas pela noite.
A fartura colocou tudo que se imaginar de bebidas e iguarias na mesa imensa e um dos
filhotes da beleza, muito compenetrado e competente como a mãe, adornava os pratos e
travessas prateadas e douradas, cuidadosamente alternadas com vasos de flores, candelabros e
uma louça branca feita especialmente para o evento pelas mãos delicadas da leveza. Os
talheres foram forjados em prata e tinham gravado o nome da Inocência e a data da festa.
Seriam distribuídos pelos convidados, cada um levaria os seus para casa.
Baco não foi convidado, nem a inveja, nem a luxúria, a ruína, a miséria, a dor, o desencanto, a
tristeza, a mágoa, a avareza. Dessa turma só entrou na festa a dor de cotovelo, que a dona do
evento veio de braço dado.
Tudo estava ordenado com um capricho emprestado gentilmente pela paciência e a dona da
beleza, Afrodite, passou pelos ambientes rapidamente e aprovou tudo com um aceno leve de
sua cabeça majestosa.
A noite trouxe seu manto de veludo azul marinho mais bonito, completamente coberto de
galáxias que brilhavam apinhadas de estrelas, desenhando figuras benfazejas de uma forma
encantadora. As nuvens foram convidadas, a contragosto, a se retirar e acataram silenciosas as
ordens superiores saindo de fininho.
Ao entrar no salão, a Inocência sorriu sem motivo, encantada, sentindo o conforto das suas
roupas lindas, em vários tons da cor
púrpura que caía de forma majestosa em véus
esvoaçantes. Estes estavam finamente bordados e brilhavam ofuscantes a cada passo que a
Inocência dava, apenas como detalhe, tinham sido feitos com pó de estrelas. A maquiagem
perfeita fora feita pelos assistentes mais graduados e conferida pessoalmente por Afrodite.
Um jasmineiro mandara um frasco do perfume que ela usava nos pulsos e atrás das orelhas, e
agora aparecia na festa assim, bela e envolta numa nuvem cheirosa.
Neste momento, enfim, a Inocência soube de onde vinha seu tormento.
Era mesmo a pura e antiga dor de cotovelo, pois a região latejou dolorosamente ao entrar no
salão e ver grupos de jovens que distraídos, sorridentes e inocentes conversavam bobagens e
contavam lorotas na noite encantada e, ao passar pelo espelho viu a sua juventude que esvaia
lenta e inexoravelmente por um ralo insuspeito no chão.
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IV
O poleiro amanheceu silencioso
Mariinha pulou da cama e na correria esqueceu o coração no alpendre, deu meia volta e
correu rápida, pegou o danado onde ele ficara e o ajeitou no porta seios de rendinhas e flores
miúdas.
Chegou esbaforida no local, e tentando recompor as feições, passou um batom com sabor
chocolate na boca e colocou perfume de alfazema nos pulsos. Mandou mais uma vez o
coração calar a boca e desta vez foi obedecida.
Assim cheirosa e embatonzada estava pronta para ouvir as explicações do galo mor.
O local estava de pernas pro ar, parecia realmente um galinheiro, penas pra todo lado,
galinhas de cara enfunada e o pior de toda a coisa, pintinhos calados e quietos. Os frangos e
frangas faziam de conta que não existiam, com as penas coladas nas paredes caiadas, de uma
cor que um dia fora branco. Estavam na maior ordem, enfileirados com os bicos apontando
um ponto indefinido no chão de terra batida, pareciam adultos de tão sérios e compenetrados.
O galo mor andava, à moda de quem aguarda alguma coisa, pra lá e pra cá com as asas às
costas. Sua figura imponente impunha um silencio quase reverente por parte de todos os
presentes, e as suas penas muito belas e coloridas do rabo que balançava ao seu andar, não
combinavam com a gravidade emprestada ao momento.
Ao botar a cara na porta do galinheiro, Mariinha foi saudada com um sonoro e definitivo psiu,
e com um pedido eloqüente de silencio do galo dono do terreiro. Ainda assim foi convidada
a entrar no recinto apinhado de galinhas e afins.
Susto geral. Pois parecia que algum galo cantara na redondeza, ao alvorecer.
Algo deste porte era de dar tremedeira e perna bamba.
Alguém furou a greve de silêncio decretada pela espécie emplumada após descobrirem que o
homem tinha inventado uma engenhoca chocante, redonda, barulhento e estilizado chamada
relógio que pretendia marcar as horas. Agora em represália, os galos não iam mais fazer a
madrugada.
Mas um galo cantara na madrugada. Devia ser aquele galo meio surdo, dentuço e com jeitão
de otário da vizinha. Ele é e sempre foi um esquisito de marca maior. Desconectado do
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mundo, tem uma vida própria estranha e anti social, não gostava de festejos e reuniões. Tem
grafado no seu curriculum que não gosta de milho, não cata pedrinhas, nunca correu atrás de
grilo, sabe ler e escrever, gosta de poesia e curte um pagode. Sonha em conhecer a Europa,
gosta de enciclopédias e não dá bola pra falatório da família.
É uma lástima entre seus pares, e agora esta, pasmem todos, ele estava furando a greve do
silêncio na alvorada, fato notório e sonoro, sem mistificação. Não dá nem pra por panos
quentes, tamanha a falta de pejo do sujeito ao quebrar as regras, não dando a mínima pras
caras e bocas das emplumadas mais velhas e mais vividas, ele é o retrato do puro descaso
pela decisão da maioria. Vale ressaltar que ele não participou das reuniões alegando que as
decisões já estão tomadas de antemão por quem de direito e que as cartas já estão previamente
marcadas, sendo as ditas reuniões apenas um momento de legitimação do poder dos grandolas
pela massa ignorante e crédula das penosas e penosos forjados na ignorância.
Ciente de todos os fatos e correndo o olhar pelo galinheiro, Mariinha entendeu tudo sem
explicação e logo de cara. Gostava o tal galo da vizinha, ele era diferentão, mas educado,
mais estudado que ela própria e muito boa praça, e ela até já andara aprendendo umas
coisinhas com ele sobre namoros, gostares e os quatro pontos cardeais. Ele dormia tarde, e
numa noite sem lua ensinou a ela onde ficava a constelação de Orion, o caçador e o marcante
Cruzeiro do Sul. E ela achava engraçado aquela mania dele consertar os óculos sobre o bico,
pois a objeto vivia escorregando e obedecendo a lei da gravidade.
Mariinha suspirou mas aceitou a decisão a ser tomada. Como humana tinha idéia acerca de
traições, greves, desentendimentos, coisas que parecia não ser do domínio das galinhas. Sabia
que tinha que arrumar uma forma pra vizinha levar o sujeito pra panela, e logo. Como a
situação se encontrava, era melhor que a greve continuasse, que houvessem negociações
longas e cansativas, discussões, discursos, e não tinha lugar pra um fura greve. A dita greve
tinha que seguir um curso mais lento, coisa normal. A paz e a ordem do seu mundo tinha que
retornar a qualquer custo. O galo, talvez o mais capaz intelectualmente das redondezas, tinha
que sair de cena. E logo.
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V
Com aquela tranqüilidade enfadonha que tem os tabaréus, Zeca andava com a cara pra cima
dentro do mato, por perto da cachoeira barulhenta que morava altaneira e pouco acessível,
dentro de umas brenhas, atrás de uns morros, dentro de uns vales, escondida atrás das folhas
muito suculentas de bananeiras cuidadosamente pêndulas e simétricas.
Na sua caminhada por ali, Zeca não via nada de novo, nenhum encanto o espantava ou atraía.
O céu de um anil escandaloso de belo, as sombras macias e cheirosas e o canto mavioso dos
pássaros. Não dava a mínima para o ruído alegre dos animaizinhos de pelos fofos, cara de
riso e olhinhos pretos, que moram escondidos no capim da beira da água, nem pra todo aquele
verdume sem fim, ou para as flores deslumbrantes que saudavam sua passagem pressurosas e
pendendo de aromas, nem para os besourinhos coloridos e brilhentos, tudo era parte de um
espetáculo repetido dentro de uma rotina bocejante.
Assim ia andando, pisando nas belezas, esgueirando das flores, ignorando os aromas quando
ouviu um chiado diferente e parou de chofre, todo retesado, um frio na espinha e os cabelos
levantando a uma ordem de general mor comandante geral de todas as instâncias do medo.
Ali em seu ambiente tão batido e repetido, nem reparava por onde andava sem cuidados ou
atenção, mas agora ouvira um tom diferente, ameaçador. Ao olhar de frente pra um matinho
metido a besta, por baixo pra não tomar o sol na cara, lá estava uma senhora jibóia de olhos
hipnóticos fixos nos olhos do caboclo, uma língua saboreando o mundo.
O ruído, ou silvo, ou bocejo, viera daquele bicho de um alarme de tamanho, gorda pelos
meios, cabeçuda, folgada e segura em seu ambiente.
Vamos admitir que Zeca é um caboclo medroso, que sendo danado e arteiro quando em
bando, é uma moça quando está por conta própria e o momento era pra lá de muito especial.
Contar com as pernas pra sair na carreira é o máximo da sua valentia quando está no pau puro
e encarar uma jibóia no meio de um glorioso dia era tudo que Zeca não precisava. Agora
estava enrolado no meio do problema.
A bicha tinha muito bem medida, mais ou menos uma légua de tamanho, sendo medida no
medo de Zeca, fica bem entendido, centímetro por centímetro apavorante. Assim, o caboclo
contava com apenas meia légua de cobra pra cada lado, e o ele ali, no meio exato,
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milimétrico, do problema escamoso. Se correr pra cá, é enfrentar meia légua de rabo e se for
pro outro lado, o mesmo tamanho e lonjura e uma cabeça dona de um olhar malévolo.
Parou e pensou, não, não pensou porque não é possível pensar com medo, com certeza são
duas ações que ocupam o mesmo lugar no espaço da cabeça ou de algum local nobre, com
nome e sobrenome, eira e beira, dentro ou mesmo fora do corpo físico. Logo, não pode
executar as duas coisas juntas, é uma de cada vez, e naquele assombro de medo, pensar ficava
pra depois.
Foi instinto puro e cristalino que fez o caboclo dar de costas, preferindo o lado do rabo da
bicha não se sabe até hoje o motivo ou razão, com o olho fixo no olhar solene e ritualístico da
cobra, um passo de cada vez, com uma tremedeira nas pernas que não dá pra narrar. É
inenarrável, assim como a gigantesca diarréia que se avizinhava numa velocidade de quem
anda a cavalo. Zeca dava um passo pra trás e suspirava entre os dentes, quase assoviando.
Pedia mentalmente a barriga pra dar uma folga, por menor que fosse, pois era lamentável e
impossível ter que abaixar as calças naquelas circunstâncias, uma soma vexatória e
calamitosa. Decidiu não se sabe com qual neurônio que, caso a barriga se adiantasse muito,
seria assim, de calças amarradas na cintura magrela que as coisas aconteceriam.
E foi andando numa marcha a ré cheia de uma agonia paralisante. A cobra olhava, fixa e
soberba a manobra acanhada de Zeca, na sua caminhada lenta pra trás e parecia entender do
medo do rapaz pois pareceu, por um momento , piscar os olhos rasgados e também lançou um
olhar pra cima, num rabo de olho, assim meio de banda, cismando alguma ajuda celestial pro
mancebo, com certeza absoluta ela tinha o jeitão de quem intercede por ajuda pra alguém.
Zeca andava pra trás e caiu redondamente dentro do córrego que corria preguiçoso às suas
costas, afundando assombrado dentro dos juncos. Logo após, colocou pra fora da água uma
cara lavada de medo e susto, com o bigode matuto e bem aparado na gilete, torcido nas
pontas, pingando gotas translúcidas e bêbadas de beleza.
A cobra num suspiro indiferente, arrastou o rabo como uma dama que pega a cauda do
vestido preferido em noite regada a muita gala e sumiu numa velocidade tão espantosa e
desproporcional que a história toda ficou mais parecida com uma imensa mentira.
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VI
A irmã mais velha daquela meninada era, também, literalmente, o pai, a mãe, a irmã, a
parteira, e a madrasta da pirraça. Diziam que ela mamou do leite de uma tia muito pirracenta,
dessas de ganhar medalha, e ficou assim, pirracenta igual a mãe de leite. Todo dia ele enfiava
a mão bem fundo no baú da pirraça e retirava as pirraças do dia pelas orelhas. Inspecionava
tal qual fazem as donas de casa ao comprar galinhas vivas. Olham, sacodem, sopesam com a
mãos, olham a cara, às vezes dá ate uns tapas pra ver se estão fortes e reativas.
Ela escolhia suas pirraças e enfunava o peito pra começar o dia cheio de afazeres. Filha mais
velha num grupo de quinze meninos, a mãe se ocupava só do fogão que não parava das seis da
manhã até as sete da noite, cuidava de parir feito uma coelha e lamentar da vida com uns
suspiros tão fundos que as vezes parecia o nascedouro de um pé de vento. Tinha sempre um
menino na barriga, um no peito, uns tres na barra da saia, lutando por espaço e invejando o
mais novo que estava no peito. Sempre tinha uma briga correndo solta nas barras das suas
saias.
A maioria dos meninos eram catarrentos e borrados de catarro, façanha alcançada ao limpar a
meleca que escorria do nariz, assim sujavam o rosto todo de com uma competência de fazer
inveja a político muito vivido. Assim caminhavam pela infância, passando a manga da camisa
surrada periodicamente na secreção clarinha que descia nas narinas chorosas.
O voltar a pé, da missa domingueira daquele mundaréu de menino era um trovejo. A irmã
mais velha e dona da arte da pirraça, gritava para o pelotinho:
- Quem ficar atrás por ultimo é mulher do padre!
Debandada geral, ninguém queria ficar a trás, ate os menores seguiam o estouro da boiada,
sem fazer a mínima idéia do que é ser a mulher, ou muito menos do padre. A moça ria a não
mais se conter, e gritava de novo:
- Quem ficar na frente come bosta de doente!
De novo a debandada geral, todo mundo pro fim da fila. A coisa funcionava até que uns
meninos menores de tanto correr com as pernas miúdas e cansados de serem atropelados pelos
mais velho, abriam no berreiro. Juntava uns quatro chorando.
- Quem chorar não ganha doce de leite!
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Pronto, a turminha engolia os soluços na maior boa vontade. E limpava os catarros deslizantes
na expectativa. Lá pelas tantas, já cansados, aparecia um mais velho, já mais sabidinho, e
ameaçava contar pra mãe lamurienta as brincadeiras da moça, e ela dizia triunfante:
- Quem contar pra mãe, seu Nen vem pegar de noite!
Seu Nen era um velhinho dali mesmo, que morrera de velhice, feiúra, e tolice. Ele parecia
uma sombra, de tão calado e fazia um cigarro de fumo eterno entre os dedos escuros pelo
manusear do artefato. O sorriso era um esgar tão horroroso que a meninada pelava de medo
quando o velho calado abria seu arremedo de sorriso. Um horror.
Quando seu Nen passou dessa pra uma melhor, uma meninada debaixo de ordem da mãe
carola e tristonha por qualquer motivo, agora com um motivo a mais pra chorar copiosamente,
fora visitar a viúva e tomar benção de todos os mais velhos que estavam no evento. Uma
dificuldade que Tezinha, a irmã segunda, mais nova que a pirracenta, nunca tinha. Ela não
saudava ninguém, e pronto. Preferia os beliscões ocasionais da mãe e suas reclamações
infinitas ou os cocorotes da dita irmã mais velha. Ela vivia tranqüila com sua escolha.
A irmã pirracenta tanto atentou os irmãos com a história de seu Nen, que uns irmãos
arrumaram uma inssureição, fizeram uma comitiva e foram contar pra mãe. A rebelião levou
dias pra se concretizar. Pelos cantos e pelas beiradas a idéia foi tomando corpo e coragem e
enfim a mãe molemente entrou no meio e proibiu o assunto, e esse foi o estopim necessário
pra o tema ganhar força descomunal por debaixo dos panos.
Choveu tapas pra todo lado.
Ameaças, beliscões, pesadelos, menino mijando de novo nas camas, menino roendo unha,
tudo com medo de seu Nem, da irmã, da rebelião, do escuro, do novo, da mãe, de chuva, de
raio, de trovão, da mula sem cabeça, de lobisomem, de tudo junto.
O irmão mais velho dos homens, o terceiro filho, ainda imberbe e sofrendo com sua época das
mudas, com aquela voz de taquara rachada, foi por unanimidade eleito chefe inconteste da
rebelião. De imediato meteu-se a besta, foi mordido pela mosca do poder, e começou os
desmandos e o nepotismo, e da sua raia miúda, os irmão eleitores e mais novos, naturalmente
mais tolos, exigia laranja descascada na mão, com os gomos bem limpinhos, no almoço podia
pegar pedaço de carne no prato de qualquer um partícipe da empreitada, podia mandar algum
subalterno arrumar suas coisas, sua cama, e até fazer a sua ocasional tarefa de casa. Na
categoria nepotismo, elegeu a irmã mais nova que ele, e terceira filha da casa e quarta da
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turma, como seu braço direito com o fim específico de inventar mais benesses para ele, o
chefe.
Ele ia levando assim, todo prosa e deslumbrado, já desfrutando das belezas do cargo e todas
as outras inventadas e prometidas, e molemente deitado na rede no alpendre da casa paterna,
sendo embalado pra lá e pra cá por dois irmãos mais novos. Pensou e repensou, Tinha que
fazer valer o cargo e pensar em uma arte, um susto na irmã mais velha.
Coçou a barba inexistente e armou seu plano. Sorriu sozinho, o plano estava bom demais e
podia contar com a mãe como parte da arte, pois ela no seu mundo redondo, só entendia das
suas lamúrias sem fim e da tirania do seu fogão soberano na cozinha. Pouca bola dava pra
tanto menino, trocando os nomes de todos, indistintamente, assim como não sabia nunca
qual roupa era de quem. Na maioria das vezes, chamava qualquer um de Caçula, se fosse
homem, e Miúda, se fosse mulher.
Primeira coisa do plano era fingir uma doença qualquer e ficar de cama pra coisa começar a
dar certo.
Depois os irmãos, um a um iam adoecer também. Depois de todos devidamente doentes,
tossindo, gemendo, na cama, enrolados na coberta com o sol a pino, ele ia dizer com voz
rouca e muito estudada, pra aquela mãe chorosa e lamurienta, que o mal que atingia seus
filhos era matador, e que ela devia mandar com urgência a filha mais velha, a única que não
adoecia de jeito nenhum, pra casa da avó, bem longe, o mais longe possível da casa paterna.
Como os mais novinhos, que eram ainda inocentes demais pra participar da treita, também
não adoeciam, era só armar uma invenção e dizer que criança que mamava no peito estava
livre da doença, digamos até uns oitos anos, idade de corte entre os inocentes e os rebeldes.
O plano deu certo e assim uma pirracenta mudou de ares, foi zoar em outro lugar, e nasceu
um déspota novinho em folha.
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VII
Forte como um touro, alto e taludo, Pedro curtia uma preguiça por tudo, e tanto, e de tal forma
que mudava de cor.
Ficava verde de preguiça, azul de má vontade, marrom como uma mandioca sem querer nem
descascar uma cenoura, amarelo de vontade de esconder até pra lavar um pires, o pau do nariz
ficava branco de susto se fosse convocado pra algum trabalho, mesmo que fosse carregar uma
cadeira de plástico de um lado pra outro no alpendre de dois metros quadrados da casa da
roça. Ainda assim era chamado pra trabalhar, pois forte e ruralista, serviço nunca falta nas
plagas roçalianas. A labuta não para, desde cedinho da manhã até quando o sol indica o final
da lida, e vai assim, caindo forte, cheio de pompa e circunstância e literalmente de pé na boca
imensa do horizonte e levando a labuta pra descansar um pouco.
Pedro, o preguiçoso, morava entre a roça, o mato e a estrada. Por ali e cá, em todo e em
nenhum lugar, mas seu quarto, cama, travesseiro e cobertor eram seu trono, o local real de
seus sonhos.
Comilão e dorminhoco, dormia a sono solto após o almoço, antes da janta, um cochilinho
após o café farturoso da manhã pra ficar forte, um dedinho de sono no café da tarde, pra ficar
melhor ainda.
O despertar na roça parece uma prévia de festa, um ensaio geral pra baderna. A barulheira
começa em torno de cinco da manhã, quando a maior parte dos afortunados pela sorte ou
ausência total da mesma, ainda dormem a sono solto.
Após as cinco horas uns pássaros começam sua faina, cantando pulando descaradamente
satisfeitos enquanto o dia ainda nem raiou.
Naquele dia em especial, o pai de Pedro chamou o rapaz numa voz valente, que não aceitava
réplicas.
Avisou que tinha um trabalho pra ele fazer naquele dia sem falta, pois uma tia distante
precisava de ajuda e pedia pra ir até a estrada ali perto, coisa de quinhentos metros, buscar
uma encomenda que ficara na casa de uma vizinha que morava na beira da estrada onde
passava o ônibus.
Pedro azedou, azulou, afrouxou a natureza na preguiça.
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Ainda assim, seu velho pai vinha a todo momento mandar que ele andasse logo. Que tomasse
tento.
E nada de Pedro sair da cama. E quando saiu, levou mais de meia hora pra chegar ao
banheiro, assim, meio cismando acordado.
Tanto enrolou pra se arrumar porcamente e se organizar pra sair, que lá pra meio dia chegou
um primo e foi dizendo que pegara uma encomenda da tia de ambos, lá numa casa na beira da
estrada, uma caixa de papelão pequena que já estava cansada e suada de tanto esperar.
E veio com um sorriso do tamanho da boca da noite colado no rosto, pois fora do pacote
tinha a orientação específica pra ser aberta pelo sobrinho e não explicava quem e dentro do
pacote tinha uma boa soma em dinheiro e um bilhete explícito dizendo que era pra ser
entregue ao primeiro sobrinho que fosse pegar a encomenda.
Pedro ficou ali sentado e passou por todas as cores do arco íris. Experimentou vários
sentimentos e talvez a inveja o tenha mordido com muita força pela primeira vez. Mas
continuou tomando seus ares molemente na varanda tão estreita da casa dos pais.
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VIII
O dia amanheceu com uma cara triste. Já de começo o sol perdeu a hora, só vindo a tentar
aparecer às nove horas. O relógio não tocou e argumentou que perdeu a corda, depois que
emprestou a sua pro vento fazer um arreio de agarrar nuvens e ainda não recebera de volta.
Daí o sol chegou atrasado, arrastando uns raios tímidos entre suas pernas, olhos baixos,
ombros caídos, com uma cara desconfiada, aquela que todas as coisas erradas exibem.
Chegou tarde e sem graça e daí as brumas já tinham tomado conta e a penumbra dominava o
mundo, e como o galo não cantou, a vaca não mugiu, a passarada não fez sua arruaça
costumeira, o dia já veio com uma cara amassada, dormida, cheirando a ontem, a passado, a
coisa desfeita.
De mansinho e quase doce, encostou ao sol uma grande má vontade, nascida ali mesmo, no
momento, daquele jeito de quem não quer consertar as coisas, e assim o dia foi rompendo,
sem saída, sem providências, sem sabor, sem pai nem parteira.
O vento, por pura falta do que fazer, encheu as bochechas descoradas e mandou suas rajadas
do sul a assoviar entre as folhagens de forma feroz. Tanto fez e com tal vigor, que acordou a
garoa, que dormitava lá embaixo, sobre o verde do vale, entre gotas de orvalho, e então
garoou devagar uma água fina e gelada que penetrava em todos os cantos que existiam no
mundo, esgueirando em tudo que é espaço existente ou imaginado.
Uma tristeza baixou vinda do céu, tão intensa e pesada que parecia um manto sobre os
campos, os montes, os ombros das pessoas. Por onde o olhar podia alcançar, via estendida
uma enorme e incomensurável tristeza como um lençol sem cor, fantasmagórico, apavorante,
e bem baixinho se ouvia alguns soluços secos e entrecortados do vento. A lua gemeu,
assombrada com tanta dor e puxou um pedaço de nuvem fria pra esconder seu olho vazio,
ficando assim, atrás de uma nuvem esfarrapada e incompetente e seguiu como sempre,
gelando os galhos onde moravam os pássaros.
Os animais não entendiam desses códigos, apenas atendiam ao ritmo da natureza e como essa
estava quebrada, ali ficaram, sem andar, sem fazer, sem procriar. Uns olhavam para os outros,
em muda interrogação, até que uma grande indiferença pairou sobre todos os recantos da terra
e todos esqueceram que tinham como comunicar.
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O tempo dobrou a lentidão, vindo a passar de uma forma tão devagar que parece não sair do
lugar, com um rabo de olho a doer como uma chicotada calou o relógio, ressecando suas
entranhas e assim perdendo os seus ponteiros, que caíram sobre a laje de mármore branco,
quando deu um último e doloroso suspiro.
Tudo atendeu ao relógio e parou e o riso morreu murcho e sem motivos de viver.
Tudo parou sim, menos a tristeza forte de doer, essa aumentou até um ponto que a própria
parede pediu menos, que estava a desmoronar de agonia e daí faltaria também um teto para
acolher a dor. Também a dor precisa de um teto para se agasalhar, para existir e destruir seus
alvos dentro talvez de quatro paredes e um teto. Assim tem que ser, desde tempos imemoriais.
A risada fria e malévola da melancolia parecia um esgar, a escarnecer da manhã que não
nasceu. A tristeza ria do aborto do dia, da sua incapacidade de ir em frente. O relógio
ressuscitando algo da sua alma de tempo, chorou amargurado, lamentou por tudo que viu
passar sem que pudesse por a mão no destino e mudar alguma coisa dissonante do lugar.
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IX
A decisão chegou devagar. Ela veio tão lenta e esgueirando pelos cantos, que ao se fazer
presente no ambiente foi como uma brisa amena de início de verão, quase imperceptível.
Postou-se ali, no meio da cozinha, que é o lugar onde nasce a energia da casa, onde sai
comida pra alimentar o corpo e conversa mole para alimentar a alma. Tinha uma grande capa
sobre os ombros que lhe arrastava até quase os pés, dando uma aparência cansada e sábia, e
também parecia tão velha quanto é, veio embrulhada em toda a idade da vida sobre a Terra.
Tinha um jeito tão caseiro ao passar a perna sobre um canto do fogão de lenha, ali
esquentando os quartos e balançando o bule pra verificar se tinha café sobre o fogão, que as
duas ocupantes do recinto nem pensaram em parar a conversa murmurante que rolava por ali.
Apenas encostaram uma na outra e baixaram mais o tom, mas a decisão pediu pra falar mais
alto, que ela estava ali exatamente pra ouvir o desenrolar de qualquer assunto.
Dito e feito.
As duas figuras femininas, Lina e sua alma, continuaram a conversar. A alma estava dolorida,
chorosa e angustiada, sentada num banco tosco, assoava ruidosamente o nariz bem feito e
mantinha os olhos lacrimosos no chão obstinadamente. A mulher tentava manter o que lhe
restava de dignidade e argumentava que não havia outro caminho a ser trilhado, só tinha uma
saída, que era a quebra de tudo que a alma fizera até agora. A decisão a ser tomada era
necessária, que a alma lhe perdoasse, pois mesmo que a quebrasse no meio, em duas ou em
mil partes, não tinha mais o que fazer, eram favas contadas. Ademais o que precisava ser
feito era tão notório que até uma galinha gorda que morava no terreiro já olhava pra ela com
uma cara interrogativa de quem busca saber se já existia uma solução pro impasse. Todos já
andavam cheios até a tampa dessa lenga lenga.
A alma lamentou suspirosa, que não queria as coisas tivesse acontecido assim, que não andara
nestes caminhos, que não estava preparada pra essa derrocada, que não tinha feito nenhuma
poupança de energia ou talento pra enfrentar essa hora.
A mulher acudia com calma,
enquanto lhe segurava as mãos, e dizia que as vezes os caminhos se desfazem assim, durante
a caminhada alguém se perde, sem ninguém nem saber como aconteceu. Que são coisas
plausíveis. A alma falou da vergonha de admitir sua falência, e a mulher retrucou que com ou
sem vergonha, fatos são fatos e que não adianta esconder a realidade de si própria.
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Neste momento a decisão entrou com sua voz de trombone, assustando as sombras encolhidas
pelos cantos da cozinha, e avisou que tinha mais visitas a fazer e que viera ajudar a pedido de
seus superiores aquelas duas a chegar num consenso e decidir, que lhe desocupassem logo.
Diante do silêncio súbito das duas ocupantes do cômodo baixo e escuro, ela assentiu dizendo
que o melhor era dizer a palavra final, aceitar que acabou, pra que ela pudesse ir embora
cuidar de outros casos.
As duas assentiram, mas a decisão queria que a resposta fosse dita em voz alta. A alma, na sua
penúria, pediu à mulher, e esta tomado um suspiro dolorido e duas lágrimas emprestadas da
alma, viu-se dizendo que aceitava o fim.
A alma pediu pra constar em ata que o conteúdo da dor era maior que seu continente, mas a
decisão disse que nem valia a pena tocar em tal assunto. A mulher foi enfática, ou colocava
tudo dito na reunião ou ninguém assinava a ata.
A decisão levantou, colocou café numa xícara velha de tempo e uso, pegou sua ata assinada,
saudou as duas em silencio, arrumou sua capa longa e partiu, levando mais uma decisão
dolorida pra prantear na eternidade.
22
X
Aquele amor talvez não chegou a existir de fato, pois não passou dos olhares derramados e de
mãos que se seguram de forma demorada e quente, de uma forma que só eles, os envolvidos,
entendem.
Viveu forte e intenso quase de nada, de falas de ontem e sorrisos bobos enquanto espera os
amanhãs. Assim nasceu, quase de umas palavras soltas no ar, dita a terceiros e ouvida por
acaso por ela, uma frase inteira e cheia de significados, rolando no tempo, entre paredes e
jardins. Somando com aqueles sorrisos e olhares doces e demorados, nasceu um enamorar.
Veio daquele olhar verde e convidativo como o mar de verão, rasinho e morno, que ela de
início não viu, não pressentiu e nem percebeu, envolvida que estava em si mesma, na longa
caminhada estéril de um afeto antigo e sem norte.
Mas o olhar persistia longo e esverdeado, daqueles aos quais é impossível resistir, assim
plantou sua magia no terreno pedregoso, vicejou e começou a dar frutos dourados.
Aquela luz nova, clara, verde e fluída, entrava morna e delicada na alma da moça, por frestas
quase imperceptíveis que o acaso abria, sabiamente, entre passados, dores, velhos e secos
amores. As pequenas frestas abertas foram deixando a luz passar, e num lugar antes ermo e
ressequido, começou a surgir um jardim de rara beleza e encantamento. O perfume que
exalava era tão perfeito, sutil, gentil, amorável, que até outras pessoas olhavam intrigadas para
aqueles acontecimentos.
Ela entrou desavisada, alheia e triste em um dia qualquer, numa sala qualquer da vida,
recebeu sem ver um olhar, e ele viveu uma época de parar de repente, de absorver uma
curiosidade inusitada, ao avistar o motivo do seu futuro afeto.
Um pegou no ar e guardou tudo no fundo do coração, de imediato e ela, o outro, precisou de
tempos pra se descobrir, inocente e alheia.
Mas neste coração pesaroso e desavisado, de forma lenta, mas num repente fogoso as músicas
fizeram sentido, as noites ganharam perfumes, o verde significados, laços de fitas
desdobraram em beleza, a sua voz ficou mais suspirante
encantamento.
e o por de sol encheu de
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Daí, roupas foram retiradas do seu dormir de anos, madeixas foram revistas, um sorriso
brotou quase do nada, brincos novos, unhas perfeitas em esmalte com nome de sentimento e
águas de cheiro.
E assim, um coração desavisado, inocente e cheio de curiosidade entrou no compasso de
espera, tão humano quanto tudo, tão precisado de esperança.
E essa veio com todas as suas roupagens, trouxe sua presença de forma definitiva e cheia de
presságios alvissareiros, como beija flor entrando na varanda e beijando as flores aos pés da
moça, cardeal pousado na sua porta, pássaro fazendo ninho embaixo da janela larga e clara do
seu trabalho, um lindo e raro encontro nos céus de Vênus, Spiga e a Lua, verdes cheios de
significados no jardim, flores desabrochando fora de hora, amizades e afinidades entre
familiares, fuxicos dos amigos cheios de segundas intenções, dedicatórias especiais, mais
olhares, elogios feitos com voz doce.
O som da tristeza que cobria a moça ganhou uma roupagem de surdina, perdeu a força
arrasadora, baixou a medo horrendo que ela albergava e um novo mundo abriu-se cheio de
encantamentos e esperas. Aquele sorriso que surgiu no rosto sempre tão sério era uma marca
de um tempo novo, mas mesmo antes dele veio uma vontade diferente de ouvir música. Uma
vontade tão avassaladora que o velho aparelho de som pequeno e portátil foi procurado e
retirado de um sono solto que dormia numa prateleira qualquer.
A esperança viveu e dominou todos os espaços da vida dos dois, mas na dela calou fundo pois
há muito tempo que sua alma desistira de afetos e seu coração acumulava carinhos gratuitos
em caixas feitas especialmente para serem abertas em um momento mágico. Os braços
pediam abraços e apontavam o infinito.
Ela encheu o espaço dele de mimos e sua casa de cuidados e bibelôs.
Enquanto sua vida se emprenhava de uma doce e perene esperança, ela pensava nele sempre e
queria doar, agradar e presentear. Planos, músicas, cores, formas, tudo encheu a vida daquela
mulher de alma tão feminina.
O tempo passou, ela temeu, ele duvidou e não veio, ela pressentiu, ele afastou e toda a poesia
e beleza que ela guardava como um tesouro bendito, durante uma queda dela, forte e
dolorida, se quebrou.
Ela caiu junto, desmoronou. Gemeu desesperada e dolorida de uma forma imensa, Ficou ao
chão, sem acreditar nos cacos ao seu redor, que reluziam milhares de tons de verde, num
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colorido ainda doce. Juntou os pedaços do seu sonho com soluços secos e incrédulos. Sonhara
sozinha, erro comum e eloqüente e que costuma repetir na mesma pessoa mais uma vez.
A dor daquela mulher foi tão grande e desesperada, que seu grito rasgou o infinito e um anjo
ouviu. Ele baixou à Terra, e curioso voando ao seu redor, viu uma alma ainda doce, com
uma alegria inquebrantável sob a pele cansada e a abençoou. E o amor que não chegou a
existir de fato, assim mesmo, mudou a trajetória da vida futura daquela mulher.
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XI
Estelinha entrou na cozinha reluzente como uma jóia. Foi passando como um pé de vento pela
geladeira e quase abraçou o fogão, enquanto dizia emocionada pra ele, que ele era a razão da
sua vida, seu melhor amigo, seu dengo.
Derramou elogios, dizendo que o fogão emproado era a peça principal da cozinha, seu brilho
encantava o lugar e coisa e tal.
Depois de tanto ouvir elogios ao colega esquentado, a geladeira começou a encher o saco com
aquela ladainha. Puxou bicos e fez caras, sentindo que aquela conversa mole esquentava a sua
natureza sempre tão fria, e sentiu caminhando um calor nojento pelo cangote acima.
Como assim? Como o fogão era a peça principal? Quem fez a eleição? Cadê a livro da
comprovando, com assinaturas dos presentes, de toda a circunstância? E quem era ela, a
geladeira, dentro daquela estrutura? Cadê as normas, onde isso está escrito? Quem, como, e
quando foi inventada essa ordem? Derivava do Império Romano? Tinha passado? Ela, a
geladeira, não se lembrava de ter assinado nada de documento algum, nem de ter votado em
coisa alguma. Não lembrava de nada concreto, e
tinha uma memória gigantesca, que
rivalizava com o computador barulhento, cheio de fios desarrumados e sempre trabalhoso que
morava na sala de visitas.
Mas, como sua natureza era fria e ela nunca empacava, resolveu ficar quieta, no seu canto que
não mudava há anos, inclusive tinha uma casa de aranhas abestalhadas que moravam ali por
perto que já estava na sexta geração. Ficou quieta.
Mas a amolação continuou.
Estelinha estava inspirada naquela sexta feira, dizendo que ia fazer um jantar pra uns amigos
no sábado e não sabia o que seria dela se não fosse seu amado fogão.
Usou pelo menos a metade do dicionário em adjetivos pra descrever a peça quadrada, pesada
e sujona.
Ela comprou coisas, empanturrou a geladeira a um ponto que foi preciso encostar uma cadeira
pra dita ficar fechada, e a tal cadeira era chegada a um fuxico e ficou ali, no pé da orelha da
geladeira, botando gosto ruim e lenha na fogueira.
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Chamava atenção pra cara antipática do fogão que trabalhava a todo vapor, todas as bocas e o
forno ligado e mantinha um sorriso imenso na cara branca.
Qual não foi a alegria da cadeira fuxiquenta quando o botijão de gás pifou! Agora ela queria
ver a cara de desespero do fogão tão elogiado. Ele não era de nada sem o gás, e todos sabiam
que o fogão e o botijão andavam às turras há um bom tempo, pois o fogão no auge da
antipatia, chamava o bujão de redondo, feioso, e falava com a boca toda que ele tinha a cara
de uma pamonha azul. Ainda arreliava quando Estelinha colocava aquele saiote horroroso no
bujão, e aí sim, ele era a perfeita pamonha, pois o conjunto de panos de cozinha preferido da
moça tinha uma cor amarelo-pamonha. Ficava todo mundo vestido igual, mas sem dúvida o
mais feio era o saiote do bujão, pois até o saiote irmão do liquidificador ficava mais
assentado, era meio evasê e não todo franzido e cheio de bicos e babados femininos. Era o dia
mais triste do pobre bujão, vestido como uma menina em dia de festa. E ainda tinha um
laçarote nas costas. Muito feio e inadequado pra um bujão tão másculo. A salvação da turma,
era que Estelinha era meio “labuá” e pouco usava os conjuntos que a mãe trazia de presente.
O armário queixava dia e noite que suas gavetas não agüentavam mais tanto pano, tanta fita,
tanto babado, tanta enchimento, literalmente.
Neste momento a cadeira e a geladeira ouviram o fogão dizer, todo dengoso pro bujão, que
eles eram amigos inseparáveis, um não vivia um sem o outro e coisa e tal, mas o gordinho
respondeu que não adiantava adular, que ele não ia cooperar e ponto final Que nem adiantava
tentar virar de lado, pra ver se tinha um restinho de gás, que não ia ajudar e fim de papo.
O fogão abriu o berreiro, o que ia dizer pra Estelinha? Como ela ia entender? O que fazer?
Como sair da saia justa?
Não tardou e uma Estelinha agitada, estressada, pornofônica,
quebrado copos agitou a
cozinha abafada. Com a mão na cintura bradou pra todo mundo, subiu no tamanco e rodou a
baiana.
Xingou todo mundo, inclusive o fogão.
Num repente, virou pra geladeira toda agitada, dizendo que ia cancelar o almoço e que a
geladeira ia salvar a pátria, guardando a comida que daria pra semana toda. Só que a geladeira
estava cansada do descaso e armou pesado pra moça, simplesmente pifou também. Se olhasse
direito, daria pra ver o sorriso de monalisa que a geladeira mantinha na cara. Estava satisfeita,
mesmo com o pano amarelo–pamonha sobre sua cabeça.
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O moço da assistência técnica chegou antes mesmo de ser chamado. Olhou, mexeu, virou,
passou mais de duas horas por ali, daí tirou um boné cor de nuvem fresca da cabeça, coçou
os cabelos dourados, comprido num rabo de cavalo esvoaçante e muito ralo e sentenciou que
não ia cobrar o serviço, pois a geladeira não tinha absolutamente nada de errado, ela apenas
não queria funcionar.
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XII
Uma estrela surgiu, curiosa e solitária pro lado do poente. Vasculhou os quatro cantos da
Terra, sondou as nuvens, o ar, as pássaros. Questionou os pés de chuchu, que viviam
pendurados no abacateiro, assim meio bêbados, cai aqui, cai acolá, mas dando chuchu às
pencas, se tinham visto seus raios de brilho e luz mais longos, que ela esquecera numa noite
que a lua chegara sem avisar, e ela tivera que sair às pressas.
Enfim soube o que queria, os raios estavam guardados aos pés de da lamparina mais clara
que já existira por ali. Ela sorriu satisfeita, pois o que ela queria era brilhar, ela ou seus filhos,
ali, mesmo que em menor grau, naquele lugar ermo e cheirando a verde.
Muito devagar, uma tira de lua quase branca quase pálida, colocou-se por trás da estrela e
puseram-se a conversar. Falaram de coisas passadas, de presentes, festas antigas, cursos de
datilografia e corte e costura, de infâncias que já vão longe, de pontes, riachos, serpentes,
cachorro doido, mangueiras em flor, latadas de rosas, de segredos, degredos e passaredos.
Deram boas risadas e por momentos quedaram as duas caladas e pensativas quando algum
assunto as afligia. Mas voltavam aos assuntos mais amenos, pois tinha um casal de rolinhas
namorando no galho da roseira, bem fora de hora, mas estava tão bonitinho que elas não
quiseram mandar eles dormir.
Ficaram assim, vivendo de recordações enquanto o sol despejava os últimos riachos de luz
dourada sobre aqueles campos. Ele recolhia aos poucos, com mãos frouxas mas cuidadosas,
um quê de calor que espalhada vivaz por todo o dia, debaixo das plantas, sobre as cercas dos
currais, nos cobertores quadriculados estendidos no arame.
Essa era a deixa dos grilos, que começaram a afinar seus instrumentos na previsão de uma
longa noite de barulho. Com gravatas borboleta e fraques bem cortados, arrumavam a
orquestra.
O manto da noite começou a arrumar seu veludo azul marinho e majestoso com uma calma
exasperante, as mãos muito alvas e bem cuidadas, arrumando as pregas amplas e
passamanarias, pedrarias finas nas bordas, franjas riquíssimas. As damas de honra corriam
pressurosas para que nada saísse menos que perfeito, e iam espalhando devagar, muito
competentes e compenetradas, as dobras perfeitamente e previamente engomadas do manto.
As toucas brancas das meninas ainda tão novinhas e buliçosas, rivalizavam com o branco do
campo coberto de cafeeiros floridos. Estes pareciam lençóis espalhados pelos campos, numa
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beleza tão etérea que a nuvem deixou escapar uma gota, como se fosse uma lágrima de
alegria, nascida da beleza.
Um cão latiu ao longe, pingando de solidão, com uma voz tão triste e cheia de lamento que a
estrela deu um soluço melancólico e chorou, e das suas lágrimas nasceram um punhado de
estrelas novinhas em folha e cheias de uma alegria infantil e assim encheram o ar de brilho.
As meninas novinhas, tão especiais e buliçosas se recusavam a dormir com tanta magia, e
ficavam debruçadas nas janelas abertas para o campo, querendo brincar mais um pouco, que
a vida corria rápida. Desamarravam as fitas tão lindas das toucas por debaixo dos queixos
com dedos leves e graciosos, e retiravam as toucas de dormir pra brincar na varanda, e ainda
aproveitavam o momento, desamarravam também as dores de alguém que pedia por
intercessão e algum anjo soprava em seus ouvidos as necessidades alheias. Faziam tudo isso
de uma forma tão leve e tão num repente que parecia uma brincadeira fácil, mas era muito
sério para crianças tão novinhas e buliçosas a esparramar magia.
Um sapo gordo e sorridente olhou as estrelas nascidas agorinha mesmo e agradeceu por estar
vivo, enchendo o peito de ar, escorregou pela pedra lisa de limo na beira do riacho e deu um
mergulho cheio de uma alegria molhada. Voltou à tona, arrumou sua casaca de noite e o cravo
perfumado na lapela e preparou pra curtir os sons e a vida noturna daquele mundo. Arrotou
um besouro engolido com satisfação e estalou a língua, todo verde de felicidade. Também ia
cantar na noite que chegava cheia de encantos.
Em algum lugar começou a Ave Maria e vários animaizinhos ajoelharam no solo fértil da
baixada, os pássaros tinham um quê de choro sem motivo, arrependimento do que não se fez.
As seis badaladas de algum sino do além ecoaram fortes e arrastadas, numa cadencia cheia de
significados ocultos. Flores penduraram suas pétalas cheias de um belo veludo e espargiram
no ar o perfume mais doce que puderam. A música varou a boca da noite, e pungente, trouxe
lembranças doces e amargas do que passou e do que virá, tão certo e tão definitivo, como uma
saudade que não se sabe de quê.
Nada no mundo foi mais belo e mais triste do que aquela hora, nem antes nem depois em toda
a imensidão do tempo.
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XIII
O ar estava parado, tudo num imenso compasso de espera. As folhas mais novas foram
proibidas de balançar, os pássaros de voar, o sol assim proibido de brilhar encolheu os raios,
os colocou num imenso saco sideral e com muita paciência e linhas douradas costurava com
diligência a bocarra pra não escapar nem o menorzinho deles.
Tudo estava à espera, a ordem era explícita e muito clara, todos deviam esperar até segunda
ordem na maior quietude e silêncio possível. Era uma ordem paralisante e cabal.
Assim, havia um silêncio descomunal e naquela quietude toda de repente um barulho
irreverente e muito movimento.
O pé de vento entrou pela veneziana escancarada pro lado norte e muito sem modos foi logo
perguntando por que aquele paradeiro todo, aquela pasmaceira, sentou ruidoso na primeira
cadeira estofada e perguntou o que tinha pra beber e beliscar enquanto não aparecia algo
realmente especial que valesse a pena comer pra escovar os dentes depois. A estátua do
jardim caiu de susto, pois nunca imaginara nem nos sonhos mais loucos que alguém poderia
desobedecer a uma ordem explicita e caída meio de lado ficou apontando o queixo muito fino
pro céu, e enquanto alguém não aparecia pra ajudar a levantar foi devagarzinho escorando no
muro porque queria assistir ao movimento. Andava cansada do paradeiro daquele canto do
jardim, onde morava cercada de palmeiras muito certinhas e ordeiras, que não tinham flores,
nem frutos, nem beija-flores esvoaçantes, nem cheiros e nem galhos onde pudesse morar um
ninho. Fora a presença das antipáticas palmeiras imperiais que espiavam lá de cima, cheias de
empáfia, empinadas, balançantes e inegavelmente belas.
A estátua espiou enfim por sobre o muro, bem escondida pois lera num manual de
sobrevivência que ordem é tão importante que traz o progresso. Obedecer faz parte do pacote.
O pé de vento sentado na cadeira pomposa perguntou indiferente, enquanto comia umas
guloseimas que apareceram por encanto sobre a mesa de pés torneados no capricho, afinal
qual era a ordem, quem foi o autor da mesma, e naturalmente, o por quê. O silencio que
seguiu a essa pergunta foi tão forte que a tal pé de vento pegou uma faca muito afiada na
cozinha pra romper o lacre do silencio e continuou a perguntar, desbocado, pela tal ordem.
Ninguém sequer pensara em questionar de onde viera a ordem, o negócio de quem tem o juízo
em perfeito estado, era apenas obedecer.
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Descobriu fácil que não havia ordem alguma, apenas um rato roera uma parte de um
noticiário que estava muito bem guardado numa gaveta fantasma há mais de um século,
deixara ali pelo chão do mais puro e belo granito e um vento bobinho e recém nascido o
colocara sobre a mesa de recados e deu nisso.
Ou seja, tudo não passara de um grande engano.
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XIV
Um raio de luz novinho em folha soltou do céu e desceu voando nas asas de uma pomba
muito branca, passeou pela Via Láctea, visitou vários planetas, brincou pulando entre estrelas,
até chegar inadivertidamente no planeta azul e branco, a Terra.
E ali, rolando por sobre o verde tão estranho do planeta, brincou um bocado. Ainda era muito
bebe e entrou faceiro pela primeira janela aberta da moça tão cuidadosa. A cortina de organza,
muito braça abriu as dobras e o deixou passar, sorridente ainda deu um aperto levíssimo na
bochecha de neném que passava.
A moça adormecida nunca deixava nada aberto, nada no descuido, nada ao acaso. Assim,
dormia cuidadosa, cheirosa, bem penteada, com os lençóis muito alvos passados com água de
lavanda e a cabeça leve pousada numa fronha muito alva, cheia de rendas e fitas.
O viajante observou a quarto muito limpo e arrumado, as roupas em ordem, as gavetas
perfeitas, os pentes limpos, os cremes enfileirados como num desfile cívico. A cama estava
bem arrumada, um cheiro bom pairava no ar, mesmo com a moça adormecida.
Ao ouvir um suspiro dolorido no sono da moça, o raiozinho olhou seu rosto plácido e viu
rastro de lágrimas. Ele era ainda tão novo, que não entendia nada de dores, de choros nem de
suspiros, mas passou a mão leve na fronte da moça ao perceber que ela sofria mesmo
dormindo e um sentimento de uma imensa ternura encheu seu coração infantil. Junto veio um
outro, chamado compaixão e num sorriso ele gostou daqueles sentimentos cálidos, e com
doçura voltou a correr a mão jovem na face adormecida e desfeita da moça, enquanto lhe
desejava muitas alegrias.
Perguntou à memória que estava ali a postos, na cabeceira da cama aguardando a moça
acordar, por que a menina chorara.
A principio a memória ficou calada e de repente cabisbaixa, mas devido à doce insistência do
infante, ela contou. A moça chorava de desgosto, de desespero, de desencanto. Há dias vinha
assim, tristonha e desiludida com os descaminhos da sua estrada. Já perguntara ao destino o
que acontecera, mas este muito taciturno não quisera responder.
Enfim a responsabilidade pegou a covardia pela mão a convenceu a contar a verdade, e enfim
soube que ela era prisioneira do livre arbítrio de outra pessoa, e por isso ela chorava, pois
nada havia a fazer, com seu coração prisioneiro numa ilusão e na vontade de algum algoz.
33
Uma pequena ruga veio morar no rostinho do raio de sol-bebê, e ele soube de forma intuitiva
que tinha poderes especiais. Um imenso sorriso veio ao seu rosto, que ficou mais lindo, mais
luminoso, definitivamente encantador.
E este seria seu primeiro milagre naquele planeta, plantar alegria na vida de alguém, e como
segundo milagre, daria poderes desse alguém passar felicidade pra mais outra pessoa, e assim
sucessivamente.
E assim foi feito. E o pequeno raio sentiu-se mais adulto, imensamente feliz, e uma expressão
de pura bondade veio para morar pra sempre na fronte tão jovem.