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Felipe Arriaga Carriço Semelhantemente Copyright ©2013 by Felipe Arriaga Carriço Todos os direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610, de 19/2/1998. É proibida a reprodução total ou parcial, por quaisquer meios, sem autorização prévia, por escrito, do seu responsável legal. Conselho editorial: Delmo Fonseca |Sung Sim Kim | Fabbio Cortez |Adílio Jorge Marques Coordenação editorial: Delmo Fonseca Capa e diagramação: Felipe Arriaga Carriço Revisão: Equipe Mar de Letras DADOS INTERNACIONAIS PARA CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP) _______________________________________________________________ Carriço, Felipe Arriaga. Semelhantemente - Rio de Janeiro - Editora Sapere, 2013. 96 p. ; 23 cm. ISBN 978-85-64321-24-3 Conto brasileiro. I. Carriço. II. Título. CDD: B869.3 _______________________________________________________________ Sapere - selo editorial da: Editora Mar de Letras Ltda. Tel. (21) 3822-2559 Caixa Postal 63037 Rio de Janeiro – CEP: 20751-970 http://www.editorasapere.com.br E-mail: [email protected] Impresso no Brasil À minha família e aos grandes amigos que fiz até aqui, obrigado por serem os pilares desta evolução que tanto busco. Índice Sobre a obra Meu primeiro romance Sentimento imóvel Morrem os crisântemos Tempo Estarei lá Refluxo Cortiço Amor Unilateral Entre o branco e o amarelo Pintando um quadro antigo Última chamada Silva e Silva Ao rapaz que varre A fuga A liturgia Dica de amigo O beijo Chorume Não, não sinto não Nicto, meu bicho 10 centavos A quinta rodada Entalhes Mentira minha No relicário Avenida Paraíso Uma questão de refração Cincão =T3:D10 10 12 13 14 16 17 19 20 22 24 26 27 28 31 35 37 39 40 42 44 46 47 49 51 53 52 60 62 64 68 Contos inspirados em músicas para o blog Confraria dos Trouxas Viés » Garotos - Cazuza Coisa do destino » Sinceramente - Cachorro Grande Quem te viu » Santa Chuva - Los Hermanos Ao acordar dos trilhos » Sonhos - Peninha Destinataire ne se trouve pas » Outono no Rio - Ed Motta De repente fim » O nosso amor a gente inventa - Cazuza C’est la vie! » Coração - Aviões do Forró (Fagner) Do outro lado » A sua - Marisa Monte Turma de 1936 » Vou levar - Lobão Quarta de cinzas » Retalhos de Cetim - Benito de Paula Doce amor » Formato Mínimo - Skank Bem guardado » Pra você guardei o amor - Nando Reis Sr. Scotch » A história de Lily Braun - Chico Buarque Em meio segundo » Alma Nova - Zeca Baleiro Nos jardim dos otro » Prato de Flores - Nação Zumbi Dorme » Tive Sim - Cartola 72 73 75 76 78 79 80 81 82 84 85 86 90 92 93 95 Sobre a obra E m uma entrevista recente, Neil deGrasse Tyson, um dos astrofísicos mais respeitados pelos colegas de profissão, foi questionado sobre o universo e se, em meio a toda a imensidão inexplorada que abraça o planeta Terra, poderia existir vida inteligente como a nossa. Ele, de maneira bem simples, respondeu às perguntas com uma indagação: “Quem somos nós para dizermos o que é um ser inteligente?”. Ele mesmo respondeu à questão, utilizando-se de uma parábola fundamentada em anos de estudos científicos sobre os seres humanos e nossa origem genômica. Comprovadamente, nossos parentes mais próximos em toda a linha evolutiva conhecida é o chimpanzé, sendo ele um dos animais mais parecidos com os seres humano em diversos aspectos como sociabilidade, capacidade cognitiva e estrutura corporal. Estudos mais recentes sobre o genoma humano dizem que nós, seres humanos, temos 99% de semelhança com nossos ancestrais símios. Chimpanzés são capazes de utilizar objetos como ferramentas para caçar, abrir nozes e espantar outros primatas, entre outras coisas. Nós, tendo apenas 1% de diferença entre eles, somos capazes de compor sinfonias e realizar grandes feitos de arquitetura e engenharia. É este pequeno 1% que nos torna mais inteligentes que os chimpanzés. Neil deGrasse termina sua explicação com mais uma questão: “Se nós, com esta pequena diferenciação entre nossos parentes primatas, somos capazes de feitos tão extraordinários, do que seria capaz um ser neste universo desconhecido evoluído 1% além de nós, seres humanos?”. 10 SEMELHANTEMENTE é uma coletânea de contos escritos ao longo de dois anos para o blog Não Me Faz Pensar, enquanto tomava gosto pela literatura — aprendi muito tarde sobre o quanto me interessava por ler e escrever. Todos os textos estão expostos em ordem cronológica, conforme foram escritos. É nesta ordem onde se encontra o verdadeiro conceito desta obra. Assim como vimos que os seres humanos são evoluídos em apenas 1% dos chimpanzés, os leitores mais atentos poderão percerber em pequenas nuances a evolução entre os contos — quase como um darwinismo literário —, sendo que esta evolução não é apenas textual, mas minha como indivíduo pensante, buscando dia a dia, texto a texto e passo a passo ser um pouco melhor do que fui antes. Aqui você encontrará contos sobre assuntos diversos, sem nenhum apego temático, passando por histórias de amor, aventura, ficção científica e outras, as quais não saberia classificar. Além disso, estão separados na segunda parte deste livro alguns textos escritos para o blog Confraria dos Trouxas, todos sobre amor e inspirados em músicas nacionais, também em ordem cronológica, porém desconectados ao conceito principal, pois foram escritos concomitantemente aos da primeira parte. Espero que a viagem seja proveitosa e que ao final do livro você tenha alcançado um pouco da evolução que tentei passar como autor. Boa leitura! Felipe Arriaga Carriço 11 1 Meu primeiro romance F oi um romance. Não queria, mas aconteceu. Estou feliz que tenha acontecido. Tive medo de começar, bem diferente de meu papai, que nunca teve medo. Sei que ele começou e terminou muitos. Sei também que deixou alguns pela metade, sem dizer “acabou”, apenas largou mão por falta de interesse. Hoje ele tem um só, mas não sei dizer se é romance. Vivem abraçados, um ao outro, até papai pegar no sono e gentilmente deixar cair sobre o colchão. Deve ser porque ele está velhinho e não tem pique para começar um outro qualquer. E o vovô então. Ah! Esse sim teve muitos romances e aventuras. Ele me conta histórias de sua juventude, quando via princesas nas janelas a balançar suas tranças e como os pais das moças não gostavam disso. Quando vivo me chamava de princesa. Contoume também sobre o terror das guerras que viu e viveu, mas não havia nada de romântico nessas histórias, apenas nos olhos dele enquanto as contava baixinho para mim. Prefiro ter amores e paixões, beijos avassaladores como os que tive na minha primeira vez. Aliás, quero ter vários. Tantos quanto couberem em meus braços, na minha mente e no meu coração. Quero príncipes em cavalos brancos, amores latinos com nomes engraçados, feras e reinos encantados. Que seja! Vou querer sempre mais e mais. Ai, ai… O que quero mesmo é que os próximos livros sejam tão bons quanto meu primeiro romance. 12 2 Sentimento imóvel V iu nesta mesa o pai que tomava café pontualmente às 6h. Viu também nesta pia a mãe que lavava louça e gritava para os filhos, neste outro quarto, que dormiam em vez de estudar. Viu naquela cama ao fundo, um senhor de idade, o qual chamavam “vovô”, que urinava em um balde e, de tempos em tempos, chamava a filha para limpar. Viu na sala, à direita, uma senhora grisalha dormir para a eternidade, vítima de seus próprios dias, engolida pelos anos de uma idade que de longe poderia ser chamada de avançada. Viu sim, cada um deles, cada qual com suas crises de identidade, sofrimentos e alegrias. Viu traições e escândalos. Viu o sangue de cada um. Em ocasiões o bebeu de um só gole. Sentiu o calor de cada corpo e dos corpos todos juntos. Embebeu cada um em suas lágrimas diárias; uns mais, outros menos, mas todos acabou por lavar. Viu seios, costas, pernas, mãos, sexos. Viu, ano após ano, a morte que chegava sorrateira, mas que sobre si jamais lançaria seu véu. Vovó, vovô, pai, mãe, filho. Todos pereceram, exceto ela, que sofreu calada cada angústia, sorriu cada aniversário, festejou a vida e cortejou a morte, totalmente engaiolada em seus próprios membros e estrutura. Nascida e crescida sobre um alicerce eternal de madeira, ferro e pedra. Uma tumba de gente viva que aguarda por novos moradores há anos. Outrora chamada “lar doce lar”, hoje conhecida como amaldiçoada, esta pequena casa antes cheia de vida, agora, abandonada. 13 3 Morrem os crisântemos S ob uma cortina de água pôde observar quase que em câmera lenta os crisântemos que caíam sobre a amada. Era uma manhã chuvosa, mas tais águas não se comparam às lágrimas derramadas no solo arenoso. Um encontro místico entre as águas que criam a vida e destroem a alma. O doce e o salgado, o frio e o quente. Personagens antagônicos que se completam em uma mesma história. As flores continuam a cair, semeando vida após a morte e fazendo o aroma adocicado e penetrante desta flor, predestinada à angústia dos aflitos, ir de encontro à água que cai. As faces ficam ruborizadas, contrastam com o azul dos olhos desta família colocada de pé frente ao abismo, para quem os contrastes têm outros tons. As flores amarelas encontram o negro da morada eternal e repousam suavemente suas pétalas alheias ao momento fúnebre. Elas não têm culpa. Algumas vezes são atiradas com força, outras apenas deitadas com delicadeza, mas sempre com o único propósito de declarar adeus para aquele alguém que se foi e deixou saudades. Se pudessem chorariam como todos, desejariam um último abraço e diriam uma última vez “eu te amo”. Mas infelizmente não podem. 14 Agora seguem juntas uma trilha sem fim. Ambas nascidas do pó, ceifadas da terra e agora voltam, mãos dadas, caladas, frias. Os aromas se misturando, as mesmas umidades rumo à mesma podridão da terra, que nessa hora começam a cair sobre elas, pá à pá, pó a pó. Está consumado. Acabam as águas no céu e nas faces, cessam os contrastes e sobram apenas o vermelho do solo, dos olhos e o cheiro de um passado que não voltará. Morrem os crisântemos. 15 4 Tempo D esde moço, desde a mais tenra idade corria. Corria como se o tempo fosse um inimigo a ser vencido. Travou uma batalha no campo da vida contra este personagem impalpável chamado Chronos. Cresceu contando suas décadas, anos, meses e dias. Algumas vezes até minutos e segundos não passavam despercebidos pela sua mente jovem e pensadora. Passavam as estações, as luas iam se revezando, o sol descia e subia intermitente e grandioso. As velas no bolo iam aumentando em número e caloria. As rugas e o reumatismo se multiplicavam e o tempo, carrasco impiedoso, ia minando suas forças e, pouco a pouco, vencendo. Cansado, agora já não lutava, apenas se defendia, buscando métodos de enganar a ampulheta, traçando planos e se frustrando com cada batalha perdida, cada nova volta dos ponteiros em seu já claudicante relógio biológico. Hoje, caminha com dificuldades, centímetro por centímetro, vendo o tempo passar feroz por entre seus dedos e, com cerca de oito décadas sobrevividas — já não se pode dizer ao certo —, percebe que o tempo não foi suficiente e que perdeu grande parte do seu precioso tempo correndo atrás da eternidade. 16 5 Estarei lá T odos os dias estava lá, parado, olhando para o nada. Na verdade, eu é que olhava para o nada e o via, sempre lá, de braços estendidos, olhos fitos e semblante triste. Porém, com um sorriso singelo, que também estava sempre lá. Imponente, não se curvava devido à chuva, tampouco franzia a testa. Em meio à sequidão, não tossia, e nos momentos de caos mantinha-se absoluto. Era comentado por uns, ignorado por outros, referência entre ruas, becos e travessas. Na verdade, acho que era amado... Sinto inveja dele. A fome que me aflige não o toca. O medo que me guia não o rege. Minhas angústias não o abalam. Um colosso, uma fortaleza era ele. Com certeza o invejo, mas sinto pena. Quão longe consegue enxergar e escutar? Quantas pessoas deve ter conhecido? Quanto tempo vivido? Mais anos que eu? Na verdade, sinto pena de mim. Não sou, mas me sinto como ele, e esta incoerência me corrói. Difícil pensar na paz que ele tem e que eu, carne e osso, não possuo. Nesta hora sinto meu coração bater mais fraco. Estou quase lá, bem próximo à perfeição. Será ele onipotente, onisciente? Sabe quem sou? Certamente que não. Agora deve faltar bem pouco. 17 Meus ossos tremem cada vez mais vagarosamente. Minha respiração cansada aos poucos fica calma, e pesada, e profunda. Para. Sou cada vez mais ele. De braços estendidos me espera. Alto. Forte. Meu coração de pedra, sempre de pedra, agora verdadeiramente o sinto assim. Mesma pedra que o sustém, sendo ele uma estátua antiga e eu, neste momento, nada mais que um velho morto. Ambos duros, frígidos, imóveis. Pena de mim que o invejei. Serei enterrado, comido, e esquecido. Ele ficará lá. Sempre esteve e sempre estará. 18 6 Refluxo N ão pôde ver o filho lhe dar netos, se casando, crescendo ou nascendo. Tampouco ele mesmo se casar, conhecer sua esposa, noiva e namorada. Não concluiu a faculdade, não se matriculou e não se dedicou ao vestibular. Aquele emprego decente não conquistou e não foi demitido daquele outro que não lhe faria feliz. Seu colegial não curtiu, das festas não participou e não fez amigos fiéis. Não teve decepções amorosas, sem uma terceira, segunda ou primeira vez. Nunca brincou com carrinhos, bonequinhos e giz de cera. Não foi feliz, não cresceu e não nasceu. Foi abortado. 19 7 Cortiço D e um dos quartos era possível sentir um agradável cheiro da comida fresca. Arroz, talvez. De outro, ouvia-se o ruído das barrigas que se digeriam com fome, onde o cheiro que exalava do vizinho não era nada agradável, mas o aroma que realmente predominava era o mofo das paredes, que emergiam desde o chão como uma cerca viva. Do outro lado do corredor risos e gargalhadas de quem recebe cócegas. Silêncio. Outra voz e mais risadas. Ali perto, no mesmo patamar, nada de risos e alegria. Apenas o silêncio de uma das vidas ali esquecidas. No andar superior se ouviam rangidos, gemidos e estalidos. Pela fechadura crianças eufóricas, perdendo de forma trágica para o mundo real o lado lúdico da vida. Virava-se uma esquina e o fervor de orações e joelhos nas tábuas sem brilho se misturavam com o ressoar dos atabaques que do forro de estuque judiavam, lado a lado, separados por uma fina camada de cimento e esperança em busca de algum tipo de redenção. Não faziam dali seu lar. Dormir, acordar e sair era a rotina de quase todos. Alguns exerciam ali mesmo seu ofício, vendendo o que de Deus receberam de graça desde o nascimento. Aliás, Deus estava lá, contudo as pessoas se trancavam perante Ele, que vagava solitário pelos andares. 20 Havia muitas portas e poucos trincos. Salas, quartos e quase nenhuma janela. Corredores sem fim, lixo, animais. Pranto e risos. Prazeres e dores. Muitas vidas e quase nenhuma importância. Assim vivia uma enorme família, que sob o mesmo teto não se conhecia. 21 8 Amor Unilateral T inha os cabelos de um vermelho quente e rubro que se confundia com o frio em sua pele branca. Um pescoço longo de bailarina, envolto por um xale negro muito bem rendado e olhos azuis como o céu daquela época do ano. Era setembro e ele escrevia em seu diário de maneira compulsiva. Sentado ao pé de uma araucária, observava as folhas que farfalhavam e caíam, concedendo o direito de uma última dança ao vento que por ali passava. Aguardava-a pelo prazer do perfume dela que, vez em quando, era trazido pela brisa. Esperava ao máximo antes de se virar para admirar seu andar elegante, assim como um vinho que se degusta com todos os sentidos antes do paladar. Era de uma ótima safra, porém raras eram as vezes que seus olhos a tocavam. Ensaiou por diversas vezes uma aproximação. Queria cumprimentá-la, chamá-la para sair, pedi-la em namoro e casamento. Treinava na frente de um velho espelho em seu quarto, que todas as vezes dizia invariavelmente sim. Às vezes estranhava o gosto de sabão em seus lábios, fruto do esmero da mãe, que, todos os dias, com seu paninho branco, limpava as marcas de beijos ensaiados deixadas no reflexo. Ela apenas sorria dizendo: “Isso passa, logo passa”. Sonhava todas as noites em acariciar seus cabelos num longo e próximo abraço. Às vezes acordava com a sensação de tê-la beijado, mas que logo passava com o primeiro gole de um café forte e bem quente, feito daquela maneira para apaziguar um pouco o frio daqueles dias. 22 Garoava naquela manhã. De gorro e cachecol aguardava por ela no mesmo lugar de sempre, mas dessa vez ficou em pé, um pouco mais visível para todos que passavam, inclusive para ela. De repente um olhar em sua direção, um espirro, as mãos vão ao rosto por instinto, bloqueando a brevidade do momento. Meses de preparação e tudo vai por água abaixo. Muitas águas, que passavam rápido demais, dia após dia, apagando os rastros dos dias anteriores, que não eram tão diferentes dos que se seguiam. Ao menos a gripe era novidade. Certo dia, após acordar, além de café tomou coragem e resolveu correr atrás do que almejava tanto. Deu passos trêmulos em direção à passarela diária de sua Vênus. Tomou a dianteira, esgueirou-se pela esquina e, a poucos metros do alvo, de súbito, desistiu. Preferia uma rotina voyeur a uma decepção amorosa unilateral. E, no dia seguinte, estava lá, escrevendo em seu diário, compulsivamente, sem fazer questão de levar as mãos ao rosto quando espirrava. 23 9 Entre o branco e o amarelo S im, estou bem aqui. Me odeiem! Poucos centímetros me separam do êxito. Foram semanas planejando e pensando sobre como tudo deveria acontecer. Linha vermelha do metrô, bem na ponta esquerda da plataforma. De cinco em cinco minutos posso sentir o golpe do ar que se move a centenas de quilômetros por hora, criando filetes de lágrimas no meu rosto. A ardência nos olhos é mero detalhe. Foram tantos dias sofrendo com o calor de todos e com a frieza de cada empurrão, que já não posso enumerar quantas vezes saí esmigalhado poucas estações à frente. Sentia uma forte pressão vinda de todos os lados. E dor, muita dor. Está certo que as outras pessoas não tinham culpa da minha condição, mas um pingo de amor ao próximo é o mínimo que se espera. Será que eles não enxergam o quanto para mim é difícil andar com estas muletas, estes apêndices metálicos em cada um dos braços? O quanto é difícil ser diferente? Sinceramente, isto não vem ao caso. Já posso sentir o chão vibrando novamente e o vento não demora a inflar a vela deste barco à deriva que sou. Entre mim e os trilhos uma faixa amarela e outra branca. Não seria difícil cruzar as duas no momento exato e acabar com todas as mágoas. O que não esperava é que em algum lugar, entre aquelas duas faixas, existisse uma fina teia de medo que havia de se tornar a mais rígida barreira na execução do meu plano infalível. Neste momento começo a chorar, e, após cruzar o muro do amor próprio, toda aquela pressão vai embora. Mil razões inúteis em24 baçaram meu ato final. Mas, dentre elas, a de que eu mais gosto é saber que hoje o atraso e o aperto de todos serão por minha culpa. Sou eu aquele mero objeto na via. Sim, estou bem aqui. Me odeiem! 25 10 Pintando um quadro antigo Q ue multidão é essa que vejo ao longe? Será que é dia de barbárie? Dia de matar mais um que nada fez de mal? Bom, já que não tenho nada melhor para fazer, tentarei me aproximar, só para ver a aparência desfigurada do condenado. Daqui não vejo bem o seu rosto, mas pela sua cor vermelha predominante, o rei não estava em um dia bom. Chutando por baixo, acredito que foram de quinze a vinte açoites. Será que vocês podem me dar licença? Abaixem esses cotovelos, estão acertando meus rins. Só quero chegar mais perto para escutar o que o rei está falando. Puxa! Esse cara fez algo muito ruim com este povo mesmo. Veja só os rostos transtornados de raiva. Caramba, o rei falou e eu não escutei. Culpa desse pessoal maluco gritando desesperado. Já que não posso vencê-los, vou me juntar a eles. Daqui não estão escutando! E olha que já estou ficando rouco de tanto gritar. Se ao menos existisse um gesto com as mãos para este tipo de coisa. Sei lá... Vou tentar. Levo a mão à testa, deslizo para o centro do peito, passo pelo coração e trago para o lado direito. Desenho uma cruz. Espero que entendam. Isso mesmo! Repitam! Repitam! Crucifiquem-no! 26 11 Última chamada B om dia, minha querida! Tudo bem com você? Estava preocupada. Você não é de se atrasar. Faça-me um favor e abra a cortina. Água? Obrigada! Nossa, até parece que você leu meus pensamentos. Você é uma belezinha mesmo. Sempre tão prestativa. O que será que teremos hoje para o café da manhã? Não vá me dizer que é o de sempre. Humm… Pelo cheiro é o de sempre. Pela textura também. Quanto ao gosto prefiro não comentar, já que não o tem. Será que hoje eu posso ficar com as bolachinhas? Você sempre as guarda em seus bolsos e nem me oferece. Hoje eu realmente queria umas bolachinhas. Gostaria que alguém viesse me visitar. Já não sei mais há quantos dias não vejo alguém além de você. Onde fica o telefone? Sei que se tentar me lembrarei do número de alguém. Escuta! Escuta! Que barulho é esse? Acho que estão telefonando, não é mesmo?! Atende para mim, pois deve ser alguém de casa. Ei, volte aqui, por favor… Ufa! Que bom que você voltou. Quem são esses com você? Acho que já vi alguns deles, algumas vezes. Puxa. Vocês estão estranhos. Até que enfim alguém atendeu esse telefone. Eu já estava me sentindo mal com aquele barulho. Amiga, por que você está com esta cara? Pode ficar com as bolachas... Foi a ligação? Até parece que alguém morreu. 27 12 Silva e Silva T em gente que fica com a pulga atrás da orelha. Já eu tenho uma verruga e não posso coçar. A maior parte das crianças não está nem aí para pequenas imperfeições em seus corpos. Lembro-me de um amigo que tinha três mamilos, mas mesmo assim jogava bola sem camisa no pátio do orfanato. Era bom jogar no mesmo time que ele, já que encontrá-lo no campo ficava muito mais fácil devido àquela mancha disforme quase no meio do peito, feito um farol náutico que as embarcações usam para chegar a terra firme em noites de nevoeiro. Saudades do Tetinha. Quando crescemos mais um pouco tornou-se impossível vê-lo sem camiseta, pois pelo visto a idade trouxe consigo preconceitos ancestrais, sabe-se lá de onde. E a Marieta, que conheci no pátio durante as partidas de futebol, a qual se tornou minha primeira namorada? Sempre lá, sozinha, sentada no banco de cimento enquanto abraçava os próprios joelhos. Certa vez, fui expulso da partida e, como todos os bancos estavam lotados, sentei-me ao lado dela. Namoramos praticamente em silêncio durante algumas semanas, por medo de sermos pegos por alguma monitora. Porém, o medo não foi maior do que a explosão de hormônios que a puberdade nos reservava. Combinamos de nos encontrar de madrugada, nos fundos do dormitório feminino. Lá era um local reservado, cheio de camas vazias, já que o número de meninas abandonadas é bem menor do que o de meninos, além de elas serem adotadas com muito mais frequência por casais jovens e ricos que precisam de uma menininha para mimar ou de uma empregada barata. 28 Como combinado, fiquei escondido debaixo da cama, esperando que ela entrasse nas cobertas para que eu também subisse na cama. Mal havia escutado seus passos se aproximarem e já estava excitado, tão rígido quanto os pés da cama acima de mim. Ela vinha de gatinhas em meio à escuridão, até que chegou à cama combinada e pude ver seus pés pequenos e delicados. Suas unhas estavam pintadas com algum esmalte barato esquecido pelas monitoras. Todas as onze unhas. Quando percebi que seu pé tinha mais dedos do que o normal, meu estômago se revirou, meu pênis amoleceu e desisti. Esperei calado até me sentir seguro para sair de onde estava. Nunca mais a vi. Deve ter sido transferida ou quem sabe adotada; algo que acho difícil, pois as pessoas costumam avaliar, inclusive, os pés dos internos antes de adotá-los. Sabe aquela história sobre “cavalo dado não se olha os dentes”? Só funciona com cavalos. Ah, esses defeitinhos genéticos! Acho que foi uma das poucas vezes em que me interessei pelas aulas de biologia. A professora falando e eu tentando entender essa maldita verruga que tanto me coça. Descobri, inclusive, que os mais variados defeitos físicos podem aparecer devido à mistura de sangue em uma mesma família. Algo escorria pelos meus dedos. No furor da descoberta cocei-a até sangrar. Eu sempre tive essa verruga e, diferente das outras crianças, ela sempre me incomodou, desde muito novo. Meu cabelo não era tão ruim quanto o das outras crianças, então conseguia deixá-lo suficientemente grande para que meu defeito ficasse oculto. Pode até ser coisa da minha cabeça, mas já pensou se as outras crianças tivessem descoberto? Iam me apelidar de baratinha, M&Ms e outras coisas que só a mente de crianças sem pudor poderia inventar. Saí do orfanato quando era velho o bastante para tocar minha própria vida. E, engraçado, só depois que pus os pés para fora é que me dei conta do fato de ter sido abandonado quando ainda não tinha condição nenhuma de me defender, quando ainda não tinha reparado no quanto essa verruga coça. 29 Será que fui o único? Tenho irmãos? Quem será que me abandonou? Meu pai? Minha mãe? Uma vez, ainda no orfanato, tive acesso a alguns papéis antigos sobre minha internação. Sei que fui encontrado na Zona Oeste, com cinco anos de idade, mas não me lembro de nada antes dessa data. Fui recolhido, deram-me banho e roupas novas. Foi então que a Dona Clara reparou na verruga. Desde então viramos companheiros inseparáveis: Eu, Dona Clara e a verruga. Ela morreu poucos anos depois. Cresci. Encontrei emprego e aluguei um quartinho próximo ao centro da cidade. Resolvi viver a vida, já que para ela não conheço remédio. Nunca tive problemas para encontrar namoradas. Uma aqui, outra ali. Esses namoricos sempre foram bons para esquecer meus problemas. Pulei de galho em galho até que um dia me apaixonei. Foi a primeira moça que levei para o meu quartinho. Todas as outras levei para motéis, banheiros públicos e becos. Essa foi diferente. Uma menina da Zona Oeste, de cabelo crespo, longo, negro como o meu, tão negra quanto eu. A primeira vez em casa foi o que mudou tudo. Transamos ainda vestidos, no sofá, no chão e na cadeira. Uma via sacra até a cama, onde nus nos deitamos. Eu por cima, ela por cima, de ladinho, forte, fraco, até que, enquanto a pegava por trás, puxando seus cabelos, ela me pediu com vós faceira um “papai e mamãe”. Puxei seus cabelos com força, até que o tronco dela se ergueu em direção ao meu. Queria responder ao pé do ouvido algo tosco para excitá-la, contudo me deparei com o improvável. Atrás de sua orelha, uma verruga. No susto gozei. Larguei-a na cama, com minha mente em parafuso, invadida por lições de biologia. Ela engravidou. Tem gente que fica com a pulga atrás da orelha. Já eu, tenho uma verruga e não posso coçar, mas coço mesmo assim, até sangrar. 30 13 Ao rapaz que varre E sperar por ela todas as manhãs tornou-se um hobby. Sentado no chão ao lado da porta de sua casa, esperava com as mãos em concha a entrada das correspondências pela fenda reservada ao correio. Eram contas, malas-diretas, folders etc. Mas o que ele esperava não era uma carta qualquer. Era uma com envelope barato, selada amadoramente por mãos trêmulas. Mãos femininas. Conheceram-se numa manhã como as outras, na mercearia de seu pai, onde trabalhava desde pequeno, carregando caixas, empacotando compras e varrendo. Varria quando a viu de relance. Era alta, magra, tinha dedos longos e unhas bem-feitas. Não era possível ver seu rosto. Por debaixo da burca pôde ver apenas seus pés, tão delicados quanto as mãos, ornados por sandálias surradas compradas em algum brechó. Ela entrou logo atrás de um homem que parecia ser seu pai, o qual estava de visita, tratando de algum assunto que merecesse sussurros ao pé do ouvido do dono da venda. Sabia que os olhos dela tinham se cruzado com os seus, enquanto passeava despretensiosamente com as mãos sobre algumas mercadorias, dando uma volta completa no pequeno comércio para conseguir enxergar todo o local pelo pequeno vão de suas vestimentas destinado aos olhos. Antes de se despedirem, houve uma troca de envelopes por ambos os homens, saudaram-se e nunca mais os 31 viu juntos por ali. Eles não retornaram, mas por algum motivo ela fez visita em seus pensamentos. Viver em uma cidade liberal de forma tradicional não era fácil para um jovem sonhador. Não era possível renegar tudo aquilo em que sua família acreditava para sonhar. Ele achava que seria egoísmo da sua parte querer o melhor para si em detrimento do que, havia gerações, de pai para filho, era considerado o ideal. Simplesmente vivia com os pés atados ao chão, varrendo o pó vindo da rua que se acumulava pelos cantos. Recolher as cartas era uma de suas tarefas em casa. Fazia-o sempre, até que num dia como todos os outros um envelope desconhecido, sem identificação de qualquer tipo, entra porta adentro, com letra caprichosa dizendo “Ao rapaz que varre”. Uma frase tão pequena, mas suficientemente grande para acelerar seu coração, e mesmo não tendo certeza de se deveria, abriu o envelope com toda a delicadeza que as mãos de um “rapaz que varre” permitiam. “Peguei seu endereço de onde não poderia sequer ter olhado. Escrevi palavras perdidas para não ser encontrada. Elaborei frases tão curtas quanto a vida me permite enxergar. Deixei transparecer o máximo possível de mim sem deixar. Mal sei seu nome. Mal sei quem é. Mal sei quem sou. Sei que sou tão perdida quanto você, que varre o pó do chão como se só chão merecesse seus cuidados. Não tenho rosto para o mundo. Não tenho outra fé senão a dos meus pais. Não tenho coragem de continuar. Aguarde.” Leu, releu, virou do avesso o envelope e nada. Nem sequer podia acreditar que o correio pudesse entregar uma carta anônima para uma família muçulmana em tempos de medo como os atuais. De qualquer modo, esperou. Um dia após o outro, e outro, e outros. Uma semana. “Dúvidas. Sei que as deixei. Escrevi tortamente devido à pressa… desculpe-me, temo que me encontrem. Caneta e papel são armas de terrorismo. Mal sei se suas mãos chegaram a tocar a primeira carta, tampouco se tocarão esta. É errado sonhar? Pelo menos as cartas não dependem de pés no chão, pois voam e dizem sem 32 medo de serem punidas. Não ligam se serão rasgadas, querem apenas ser lidas. A mão que conduz minha mensagem tem medo de ser cortada, e reluta quanto imploro por mais um favor. O tempo está correndo. Tenho medo. Aguarde.” O tempo é carrasco. Tão carrasco quanto o medo e a vergonha. Tão carrasco quanto a insegurança e a incerteza. Sabia que ela sofria tanto quanto ele, que vivia as mesmas angústias e sentia as mesmas dores. Não podia expressar nada e, mesmo que expressasse, ninguém a veria. Uma semana, duas semanas, mas dessa vez nada de nova correspondência. A vida continuou. Seu pai se casaria novamente. Tinha dinheiro para “comprar” outra esposa e foi o que fez. Dia marcado, comida preparada, famílias reunidas e uma noiva bem arrumada, calada como um manequim. Costuma ser assim: comem e bebem chá, dão presentes para os noivos, que logo saem para uma lua de mel comprida, deixando o rapaz responsável pela mercearia. No dia da festa se vestiu com sua melhor roupa, sentou-se em um dos cantos e ficou a observar as pessoas. Homens de um lado e mulheres do outro, como reza a tradição, porém algo lhe chamou a atenção. Sentado, próximo aos parentes da noiva, ele, o pai da moça de pés delicados e até então sem rosto, que agora se revelava como sogro do seu próprio pai. Certamente o envelope que trocaram naquele dia tratava-se do acordo matrimonial, que seu pai fez às escondidas, até mesmo da primeira esposa. Seu mundo desfigurou-se. Perdeu a cor, o apetite e a vontade de pensar. Até que, ao final da lua de mel, uma surpresa o esperava junto às outras correspondências. Sem selo, num envelope novíssimo, branco, com letra caprichosa. “Não estava entendendo nada da situação até que fui informada pelo meu pai. O medo corroeu qualquer chance de entrar em contato com você. Corroeu e transformou em pó minha alegria. O mesmo pó que você varre todos os dias e varrerá sempre que eu passar por você. Passarei, e não olharei em seus olhos. Não 33 trocarei uma palavra com você. Será melhor assim. Não sustentarei meus sonhos, pois tornaram-se pesados demais com todos passando por cima deles. Desculpe-me.” Ele foi para o trabalho naquele dia, todavia varreu muito menos do que era de costume. Preferiu deixar o pó cobrir o chão, da mesma forma que cobre o seu coração, a varrê-lo com esperanças fajutas de um amor sem rosto: o amor-próprio. 34 14 A fuga D ura rotina de assalariado. Fazer o quê? Sim, esta é uma pergunta retórica, já que a resposta é simples de imaginar. Porém difícil de realizar. São 18h e volto cansado para casa depois de uma longa jornada em prol do enriquecimento alheio. A viagem de volta não é mais simples do que as oito horas que passo em frente ao computador. Na verdade, ela é a cereja no bolo de um dia como os outros. Sem ela seria como se algo não estivesse no lugar. Porém, de vez em quando uma surpresa vem para quebrar a rotina. Tirar da órbita esse planeta chamado “ego” que gira em torno de si. Saí do metrô de cabeça baixa, como quem conversa com o chão sobre as preocupações diárias — mas acho que até ele já está se cansando de mim. De repente, um vulto passa ao meu lado em marcha acelerada. Tem mulher que acerta no perfume, e esta era uma delas. Lindos cabelos longos abraçavam suas costas, indicando a direção para o seu bumbum, que logo me levaram às coxas e pés. Aos pés mais por curiosidade do que por fetiche. Não era todo dia que se via algo assim por aquelas redondezas. Certamente ela não pertencia àquela paisagem, e só não vou chamá-la de miragem para não soar poeticamente como um cantor de pagode. Aliás, pagode é o que se escuta por esses lados. Quando não um axé ou funk. Resolvi acelerar o passo apenas o 35 suficiente para segui-la sem ser notado. E assim foi. Minha sorte foi que ela ia para o mesmo lado que eu, então pude aproveitar daquela visão uns tantos quarteirões em linha reta. Tentei me aproximar algumas vezes, só para sentir novamente o perfume dela, ou quem sabe dar a sorte de recolher algo que, por algum “milagre divino”, ela viesse a deixar cair, para então devolver e arrumar pretexto para puxar assunto. Contudo, isso não aconteceu. Ela andava bem rápido para alguém que usava salto alto. Um quarteirão, dois, três. A qualquer momento ela viraria para algum lado diferente do meu e nunca mais a veria. Apertei ainda mais o passo. Foi quando um veículo lindo, vermelho-sangue, tipo sedan, fez com que ela fosse obrigada a parar no cruzamento. Eu nunca amei tanto um carro como amei esse! Consegui me aproximar da moça e, naquele instante, quando estava ao seu lado, decidi de uma vez por todas dar um jeito na rotina chata de todos os dias de um modo intrépido e inusitado, coisa a qual nunca me imaginaria fazendo. Puxei papo. — Oi, com licença. Você, por acaso, sabe me dizer a marca do carro que acaba de passar? — Ai! Acho que era um Peugeot. — Ah, tá certo. Obrigado. Foi assim, atravessei a rua, dobrei a esquina e tornei a olhar para o chão. Quanto à moça, nunca mais a vi, mas estou adorando meu carro novo. 36 15 A liturgia P é ante pé adentrou o banheiro fumegante. O vapor que ultrapassava o box ainda fechado já havia tomado todo o ambiente e embaçado o espelho sobre a pia, onde estavam cremes, pentes e outros mimos. O banho foi longo, cheio de uma deliciosa espuma, a qual só não era mais alva que sua própria pele. Lembrou-se de cada detalhe. Esquadrinhou meticulosamente com a esponja todo seu corpo antes de satisfazer-se com o resultado. Ainda sob o calor da água recém-desligada, sentou-se para depilar os poucos pelos que emergiram desde a última vez que os retirou. Pernas, virilhas, braços. Tudo ficou liso como antes da puberdade. Sacou um dos potes rebuscados que se encontravam no armário, colocou um punhado de creme em suas mãos e acarinhou todos os lugares que podia alcançar. Com a toalha enrolada no corpo saiu vagarosamente do banheiro tendo o restante do vapor como uma companhia que logo se dissiparia no ar seco do quarto. Em frente ao espelho da penteadeira, deixou cair a toalha no chão para admirar o resultado da assepsia. Gostou do que viu. A roupa estava separada, estendida sobre seu lençol de cetim, quase como uma alma sem corpo, que espera dormindo para ser resgatada. Era sua melhor lingerie, rendada, negra como seus olhos e delicada 37 como seus traços. Vestiu-a. Admirou-se. Ensaiou olhares. Estava frio e, assim que seus poros se eriçaram, desviou o olhar para o vestido que aguardava pacientemente. Este era vermelho, com finas alças ornadas com rosas de tecido, feitas à mão, diga-se de passagem. Caiu-lhe como uma luva. Nas pernas, uma grossa meia-calça para aguentar o frio. Nos pés, o mais agudo salto que possuía. No pulso, uma pulseira. Nos olhos, cílios postiços. Nas orelhas, brincos madrepérola. Dos perfumes escolheu o mais caro e não fez economia. Era doce como baunilha, porém levemente amadeirado. Quase tudo acabado. Do segundo andar pôde ouvir uma buzina de automóvel. Era a deixa final para o término dos preparativos. Dirigiu-se para a saída de casa, mas não sem antes dar uma derradeira olhada no espelho. O salto lhe concedeu alguns centímetros a mais na altura, que deram altivez ao seu olhar e andar, além de fazerem com que suas pernas ficassem ainda mais longilíneas. Outra buzinada. Se era apenas pressa ou ansiedade logo descobriria. Do mancebo ao lado da porta, para esta ocasião, pegou uma peruca de cabelos longos e negros. Vestiu-a com pressa, mas com destreza. Abriu a porta e já ia ao encontro do carro, quando percebeu que havia se esquecido do cachecol, justo dele que não poderia faltar. Ele voltou para colocá-lo ao redor do pescoço, chaveou a porta e saiu, mais mulher do que nunca. 38 16 Dica de amigo “A lô! Márcia? Tudo bom? Então tá bom! Tive ótimas recomendações suas. Você é tudo isso que dizem? Bom, sua voz é belíssima. É tão bonita quanto você? Eu não sou bobo, só estou curioso. Como você está vestida? Espero que seja algo bem sexy. Calma, não desligue. Só queria te conhecer melhor. Você realmente faz tudo isso? Muito mais? Agora que não me aguento de curiosidade! Ah, esse eco estranho? Não é nada, não. Deve ser o sinal do celular que está falhando. Já disse calma. Estou disposto a pagar o necessário. Onde podemos nos encontrar? Não poderia ser um pouco mais longe? Não gostaria que me vissem com você. Que bom! Pelo visto você está acostumada com este tipo de situação. Quer saber o nome dela? É Giovanna, com dois “enes”. Sim, ela é muito bonita. Oras! Eu vou te pagar, não quero que você faça perguntas. Apenas faça o seu trabalho, eu vou para um lado, você vai para o outro e fim de papo. EU ESTOU CALMO! Me desculpa, mas é que ando um pouco estressado e, na verdade, nunca fiz isso. Ué... Nunca me encontrei com alguém nessas condições. Humm, vai tirar meu estresse? Que maravilha. Nos vemos por lá. Beijo.” No dia seguinte voltou até o local do primeiro contato, portando uma caneta piloto, e fez um acréscimo ao anúncio: NUNCA confie no que dizem as portas de banheiros públicos. Limpou vagarosamente sua bunda, olhou o papel para ver se ainda sangrava, deu a descarga e ficou olhando o resto da sua dignidade ir por água abaixo. 39 17 O beijo D e pernas abertas. Foi assim que me deparei com ela quando adentrei o motel quatro estrelas, o qual havíamos combinado ir. Guardadas as devidas proporções dos anos, ela continuava bonita. Talvez até mais sexy do que na juventude, já que parte do jogo da sedução se aprende praticando, e, quando éramos mais novos, o que não tínhamos era experiência. Tão novos. Tanto pela frente… O tempo correu mais do que imaginávamos. No nosso caso, além de corroer as panelas que foram presente de casamento e que ela teima em guardar, corroeu parte do romance. No início as noites eram quentes, o sexo prazeroso e feito com garra. Descobertas atrás de descobertas para ambos os lados. Tudo era bom, tudo era novo. E durou por bastante tempo, até que aquela primeira chama se tornou num fogareiro a gás, daqueles que a gente liga e desliga a hora que quer. E o gás foi acabando, até que conheci outra pessoa e tive um tórrido caso cheio de volúpia e sexo sujo, que também não durou muito. De qualquer forma, ainda me lembro da maneira que entrava em casa, ainda com o cheiro de sexo nas bochechas e com pressa para me limpar. Poderia me lavar no apartamento da outra, mas preferia afivelar meu cinto e correr de volta para casa. Gostava de estar com outra, mas amava minha esposa. Amo. Tornei-me um homem de família, cheio de métricas e regras. Até o assento à mesa já havia se moldado ao meu corpo. Comia o feijão de sempre, o arroz de sempre, o bife de sempre e, vez ou 40 outra, alguma coisa fora do habitual, mesmo que já fosse de se esperar. Ela fazia de tudo para me agradar, pois sabia que me encontrava cansado da dura rotina como fiscal contábil de uma sólida empresa. O que ela não sabia é que até um macaco poderia exercer minha função. Um dia vi meu chefe entrar no escritório com uma grande caixa. Talvez dentro dela houvesse um macaco, não sei, mas no dia seguinte fui demitido. Contudo, não contei para ela. Na verdade dentro da caixa havia documentos que alguém se esquecera de entregar para alguém, que por sua vez se esquecera de entregar para outro alguém, que entregaria para mim. Fiquei em silêncio durante um mês, e ela também. (…) Não tivemos filhos. “Filhos, por que tê-los?”, eu dizia. Quando tentamos percebi que não conseguiria. A esterilidade escrotal era apenas um reflexo da vida estéril que levávamos. Eu aceitei a situação e esperei pacientemente que ela aceitasse. Esperei durante anos até me convencer de que ela havia superado. “Para de chorar e vê se dorme.” Lá estava ela, me esperando de pernas abertas, pronta para reacender a chama da nossa paixão. Brochei. Deixei cair de lado meu corpo moído pela vergonha. Ela se ergueu, encostou o peito no meu, olhou-me com seus grandes olhos castanhos e disse: “Quem sabe num cinco estrelas?” Beijei sua testa, disse que a amava e dormi. 41 18 Chorume É , meu amigo. A vida já foi boa! Como diz o ditado, eu estava por cima da carne seca e não passava vontade alguma. Era estalar os dedos e voilà, tudo o que quisesse estaria ao meu alcance. Não me faltavam empregados. Na verdade, tinha até mais empregados do que realmente precisava, para satisfazer meu gosto egocêntrico de vez ou outra demitir alguém. Estremeço só de lembrar! Aquela deliciosa sensação de poder, quase divinal. Poucas coisas me tiravam do sério: sapatos mal engraxados, café morno e lixeiros. Não faça essa cara. Sim, lixeiros! Uma vez resolvi descer pessoalmente ao patamar do prédio para pegar o jornal e reclamar diretamente com o porteiro sobre os rabiscos no elevador. Quando cheguei próximo ao portão, percebi uma pilha de lixo em frente à entrada social. O cheiro era horroroso e o chorume escorria até o meio-fio. Pedi “gentilmente” ao porteiro que abrisse o portão para mim. Do lado de fora pude perceber que o lixeiro não havia feito seu serviço de maneira decente. Várias pilhas de lixo enfeitavam a rua. Justo na minha rua, um dos IPTUs mais caros de São Paulo. Onde já se viu? Fiz o teste durante alguns dias. Saía bem cedo, verificava a rua, fechava o portão e — alto e bom som — praguejava contra os malditos lixeiros. Engraçado é que durante a noite, quando retornava para o conforto do meu lar, as pilhas de lixo não eram tantas quanto as que havia pela manhã. Em um desses dias, o porteiro colocou a cabeça para fora da gua42 rita e exclamou: “Esse ‘lixo’ é culpa de gente como o senhor. Espero que um dia você prove do próprio chorume!” Eu mesmo dei meu jeito naquele velho de família medíocre, que no outro dia já não estava mais na função. Estranhamente, depois daquele dia, minha vida deixou de ser tão boa como era. Demiti um dos meus gerentes e passei a fazer sua função. Realizei em seu lugar um investimento arriscado que infelizmente não dera tão certo. Os acionistas ficaram bravos e notificaram minha demissão via telegrama. Nem me ligaram. Foi muita falta de consideração comigo, que fiz tanto por aquela empresa. No mesmo telegrama fui informado de que a empresa não custearia mais minha estada na cidade, mas eu bati o pé e fiquei. Fiquei até perder tudo com advogados e contas. O dinheiro que havia economizado com tanto esforço sonegando alguns impostos foi por água abaixo, junto com o meu casamento. Tudo bem que ele era de fachada, porém me custou muito caro. Olha que eu não sou supersticioso, mas isso tudo foi culpa da macumba que aquele porteiro jogou contra mim. Agora, olha eu aqui. Me tornei uma pilha de “lixo”, em meio aos outros da mesma rua, enrolado em um cobertor velho e, se não fosse meu próprio chorume, não aguentaria o frio que faz em algumas manhãs. Bom, meu amigo, pare de farejar este lixo e vamos embora, que o lixeiro deve estar por vir. Aliás, eu já lhe disse o quanto que odeio lixeiros? 43 19 Não, não sinto não A noite foi mais fria, mais tediosa e mais comprida do que de costume. Nenhum pé gelado, nenhum tapa involuntário na cara, nenhuma das dezenas de idas ao banheiro me fez acordar. Nada. Apenas metade da cama amanheceu desarrumada, o que foi bom, já que levei metade do tempo para arrumá-la. Acordei ao som do meu despertador e não pela luminosidade proveniente do banheiro, que nesta manhã estava desocupado. A tampa estava levantada. Urinei de porta aberta fazendo bastante barulho e nenhum gritinho histérico me coibiu. Minha toalha estava intacta, amarrotada e ainda úmida, pendurada no box. O registro estava desobstruído, sem nenhuma peça íntima da noite passada, que estaria secando após uma detalhada lavagem com sabonete. Dessa vez foi fácil escolher o xampu, o creme e o sabão. A síntese prevalecia na prateleira. Terminado o banho, enrolei-me e saí. O piso estava frio e o encharquei com o excesso de água que escorria dos meus tornozelos. Lembro-me de que tinha sempre uma camisa de vereador esfolada sob meus pés nesse momento. Em frente ao espelho, nenhum potinho colorido obstruía meu reflexo, nenhum tufo de cabelo atrapalhava a descida da água e minha escova, cabisbaixa, aguardava-me solitária para a assepsia diária. Não encontrei nenhum creme para pentear, gel ou coisa parecida, e fui obrigado a sair do banheiro com os cabelos in natura, desgranhadamente penteados. 44 Minha roupa estava lá, me esperando, exatamente do jeito que a havia deixado, cheia de vincos e marcas de uma noite mal dobrada. No armário eu tinha diversas opções, mas não tenho plena convicção das combinações que dessa vez fiz sozinho. Era tanta coisa para ornar: gravata com camisa, camisa com meia, meia com cinto, cinto com sapato, sapato com blêizer, blêizer com gravata. E, como não encontrei perfume algum, usei um desodorante forte que havia muito estava escondido devido a uma rinite insistente. Naquela manhã abri a porta e olhei para trás. Me deparei com o apartamento desarrumado e, sem querer, suspirei. Falta dela? Não, não sinto não. 45 20 Nicto, meu bicho H á tempos eu cuido de algo. Faço dele meu bicho de estimação. Ele é pequeno, negro e vive logo ali. Ali no canto da sala. No canto onde ninguém vai. Ali, atrás de você. Bem naquele cantinho cego, que nunca viu luz nem vassoura. Às vezes ele fica no armário, espreitando pelo vão da porta. Passa correndo no rabo do olho. Outras vezes fica parado no corredor, em frente à porta do banheiro, esperando alguém passar. Ou no sótão arranhando as vigas noite após noite. Olhe bem, mas olhe com cuidado. Se prestar atenção verá seus olhos cintilantes como pequenos fachos mais negros que o negro que o envolve e poderá sentir o movimento descompassado da sua respiração. Você não vê, mas está ali. Ele sente a sua respiração. Sente sua pele que se eriça em sua presença. Ouça! Escute os dentes dele, que tilintam e rangem. Escute aquele estômago que ronca baixinho e se mistura ao som do silêncio. Ele está ali, nos observando. Olhe como ele presta atenção em você. Olhe como os olhos dele procuram os seus. Faz tempo que não se alimenta. Sinto sua fome daqui. Acho que meu medo não mais o satisfaz. O seu deve bastar. 46 21 10 centavos S eleciona o número, pressiona a tecla vermelha, acende a luz e pronto. Sua vida era simples. Simples como a de outros milhares de pessoas como ele. Pobre, mas limpinho. Um emprego digno, ganhando um salário mínimo tão mínimo quanto ele, nesse emprego o qual de digno não tinha nada. “Por fora, bela viola. Por dentro, pão bolorento.” Era assim que ele definia aquele lugar, uma antiga e requisitada papelaria do bairro. Bairro pobre, e nada limpo. Entre um cliente e outro, um corte com papel e outro, uma discussão por troco e outra, seu gosto pelo desgosto da vida foi se multiplicando. Sentia-se como mais um. Era mais um. Todos os dias vivendo mais do mesmo. Todos os dias vivendo cada vez menos. Cada dia menos ele mesmo. O tempo passava e ele via o rosto das pessoas, escutava as histórias das pessoas, escutava o rosto das pessoas e neles via suas histórias. No vinco da cara de cada preta comprando material escolar para as netas, no blush das faces das meninas mulheres do bairro, na barba falhada do homem com camisa de mangas curtas e calça cáqui, no bigode ralo dos moleques de boné e blusão que vira e mexe o assaltavam. A vida era ingrata com as pessoas. As pessoas eram ingratas com a vida. As pessoas eram ingratas com ele, que cortava os dedos com papel e não recebia um muito obrigado sequer. Pães bolorentos escondidos sob a casca, sob a maquiagem que escondia a juventude e a longa idade, sob a blusa que escondia a arma que o assaltava, sob a cara cansada da velha preta, a filha e a neta. Todos correndo atrás do próprio rabo purulento. E com as bocas cheias 47 de seus próprios rabos desaprenderam a dizer muito obrigado. Frustrado. Diariamente frustrado. Ali na sua frente a parábola verdadeira sobre a vida e tudo o mais. A fotocopiadora. A própria vida sem criatividade copiando-se hora após hora, dia após dia a própria vida. A vida copiativa da falta de expressão das 3 por 4, diariamente refiladas aos montes. Diariamente refilando cabeças sem expressões. Cabeças mortas inexpressivas. A morte todos os dias copiada pela vida. E ele ganhando a vida refilando cabeças mortas. E ele copiando a vida. Copiando mais do que o necessário, guardando cabeças em uma pequena caixa de sapatos, sob sua pequena cama, no seu pequeno quarto, da sua pequena casa. Guardava cabeças como quem coleciona selos. Colecionava cabeças copiando os assassinos da tevê. E seu prazer em colecioná -las o mantinha mínimo, em seu emprego digno, copiando a vida por 10 centavos. 48 22 A quinta rodada (…) —E ntão, doutor, eu vim aqui porque nosso namoro anda muito conturbado. — Sim. Prossiga… (…) — Aí, quando nós reatamos ele veio com essas ideias malucas. — E a senhora? — Eu fui topando, né… Tudo pra tentar salvar nosso relacionamento. — Humm… — Primeiro ele veio com esse papo de axilas… Até aí, tudo bem. Só que depois ele me pediu pra eu não depilar mais. — E você? — Não depilei. E enquanto meus pelos cresciam, ele lambia compulsivamente o suor enquanto se masturbava. Pediu até pra eu parar de usar desodorante. Veja só o senhor. (…) — A coisa foi ficando estranha, mas eu fui deixando. Ele ficava tão excitado. Lambia sem se importar em engolir alguns pentelhos. Com uma mão segurava meu braço para cima e com a outra acariciava o pinto. — Mas... Como a senhora procedeu? — Então, doutor… É que com o tempo, eu fui gostando daquilo. Vê-lo ali, ensandecido, feito um gato com fome, engolindo suor e saliva enquanto falava absurdos… Isso começou a me excitar. (…) — Logo, só se masturbar não dava conta do apetite dele. Ele colocou o treco dele debaixo do meus braço e começou a guinchar de tanto tesão, enquanto eu apenas olhava, excitadíssima. — E qual é o problema disso tudo? Nunca 49 ouviu dizer que “entre quatro paredes vale tudo”? — Ouvi, doutor… Mas quando eu falei que era minha vez e saquei o pau pra fora e pedi para foder o sovaco dele, ele fugiu. — Humm… — Doutor, tudo aqui é sigiloso, né? Fez um sinal para que o garçom se aproximasse. — Aí eu disse que “ela” poderia ficar despreocupada, pois o sigilo da profissão fazia da minha boca um túmulo. Doideira, né? — Doideira mesmo. Isso faz quanto tempo? — Foi um pouco antes de eu vir aqui pro bar. Aliás, garçom, a sexta rodada dessa turma aqui é por minha conta! 50 23 Entalhes É o fim. A duras custas a vida conseguiu calar o poeta. Prostituta. Vendeu-se barato para alguns quaisquer sem valor. Falo da vida, não das mulheres que se tornaram musas das minhas poesias. Ironicamente, ambas me trouxeram até aqui, onde finalmente descansarão de sua revolta. Conhecemos o topo — elas e eu — mas não antes de beijar a lama do fundo do poço de alguém, cujos amores beberam até restar apenas a gota salobra do orgulho próprio. A primeira decepção foi com quem me entregou a caneta, ideias e um papel pardo. Ali nasceram os primeiros rabiscos da minha jornada ao auge. Uma, duas, dez… centenas de páginas rasgavam meu peito pedindo passagem, e o monstro ganhava vida em meio à morte. Soturno, taciturno, sombrio em meio à tempestade de dor e pranto nasceu um livro, e outro, e outro. Logo, o que era uma ferida purulenta, aberta e pulsante, tornou-se uma queloide insignificante. Mesmo assim escrevia. Forjei a ferro e fogo mais dor e pranto. Conheci a luxúria de uma celebridade. Fãs surgiam pedindo autógrafos com o sangue de seus próprios pulsos. O dinheiro surgiu acompanhado dos vícios, que por sua vez me apresentou a elas, as mulheres. Excitadas pelo oculto, vinham com braços e pernas vorazes para provar um homem outrora quase morto, agora famoso e, acima de tudo, rico. 51 Escrevia inspirado na bebida, nas mulheres pelas quais me apaixonara e que bêbado perdera. Escrevia como quem pendura a alma no armário: completamente nu, porém irreconhecível. Era movido pela ira, para todos os lados e sem direção. Preso em uma lemniscata rumo à solidão. Dinheiro, bebida, mulheres, decepção, dor, letras e mais do mesmo, novamente, mas ainda assim escrevi. Até um dia conhecer aquela que romperia o ciclo. Larguei mão de mim, da dor, do vício, das letras. Amei e acreditei ter sido amado por ela. Ela que me calou para que outras não me encontrassem e ameaçassem seu (meu) dinheiro, vindo das letras, da dor e do vício. Ela, que armou minha morte, trancou minhas letras nesse infinito de nada, para ficar com as reservas de uma vida de textos sádicos, masoquistas e autodestrutivos. Contudo, não me calou. Algum dia, dentro de alguns anos, alguém sentirá falta deste que vos escreve, o qual vos escrevia como um louco, cego e bêbado. Este alguém exumará algo que não será mais eu, e encontrará a voz das letras a gritar o nome daquela, para só então se calarem como me calarei agora. Falta-me ar, unhas e espaço na tampa deste caixão, mas as letras nunca me faltarão. 52 24 Mentira minha V ocê não vai acreditar no que me aconteceu outro dia. Lembra-se daquela tatuagem que sempre tive vontade de fazer? Pois é. Arrumei tempo em meio aos estudos, tomei coragem e finalmente fui concretizar este sonho. Pesquisei preços, traços e antecedentes de alguns estúdios que me indicaram, escolhi um, marquei hora e fui. Cheguei lá um pouco adiantado, e precisei me sentar na sala de espera. Estava me borrando de medo, mas me acalmei quando percebi que não era o único que faria uma tatuagem naquele dia. Sentadas ao meu lado havia duas moças, provavelmente menores de idade, escolhendo qual desenho selaria aquela amizade. Pelo que entendi, elas estavam em dúvida sobre se tatuavam um morango ou uma cereja. Mais ao fundo um cara mal encarado, cheio de tatuagens. Não fazia ideia de onde ele faria o desenho, pois não tinha mais espaço para ser tatuado — pelo menos eu acho. Até aí nada de mais. Passeei um pouco mais com o olhar pela sala, reparei na pintura das paredes, nos quadros e em um vulto que surgiu no canto mais escuro do estúdio e veio em minha direção. Era um senhor de idade, daqueles com rosto bem familiar, cabelos bem branquinhos e olhar preocupado. Chegou e se sentou bem próximo, olhou para mim e puxou assunto, como todo senhor de idade faz em filas e salas de espera. — Não gosto muito deste lugar. E você? — Me perguntou num tom de 53 voz amigável. — O lugar é estranho, mas não que não goste. — Não gosto porque me lembro da dor que senti com minha primeira tatuagem. — Poxa. Doeu muito? — Doeu — respondeu olhando bem dentro dos meus olhos, fazendo uma pausa dramática. — Doeu muito. — Assim o senhor me deixa assustado. Justamente hoje farei minha primeira tatuagem. — Eu sei. Por isso vim até aqui. A conversa começou a ficar estanha nesse ponto. Surpreendentemente estranha, a ponto de me deixar confuso. — O que o senhor quer dizer? — Não me chame de senhor. Pode me chamar de você! — Tá bom! O que você quer dizer? — O que VOCÊ quer dizer é que não deve fazer esta tatuagem. — Como assim? Eu nem te conheço — exclamei exaltado —, por que te daria ouvidos? — Você não me conhece, mas eu te conheço há muito tempo, Alberto. Mais tempo do que você poderia imaginar. — Como é que o SENHOR sabe meu nome? Por acaso está me seguindo? De pé, com o dedo apontado para ele, prossegui com minha raiva o mais educado possível para não assustar as pessoas que estavam na sala. — Quem é o senhor, afinal? — Terminei a frase aos berros, a ponto de perceber que até o cara mal encarado no canto da sala se assustou. — Alberto. Muito prazer! — Estendeu a mão como se eu não tivesse acabado de gritar com ele. — Vim aqui para te convencer de não fazer essa tatuagem ridícula. O cara também se chamava Alberto. Uma coincidência assustadora. O tatuador chamou o cara do fundo da sala, que passou por nós nos encarando, como se fôssemos aberrações de circo. As 54 meninas levantaram-se em silêncio e dirigiram-se para a porta da rua, deixando apenas o tal de Alberto na sala. Quando o cumprimentei senti um estranho calafrio na coluna. Encarei seus óculos. Ele encarou os meus. Ele era apenas um pouco mais baixo que eu, usava roupas estranhas que revelavam sua barriga saliente. Bem mais saliente do que a minha. Na verdade ele possuía um ar extremamente simpático. Era uma pena estar velho e delirante. — É meu xará, então? Que interessante, mas isso não te dá o direito de interferir na minha vida. — Sua vida? Sente-se, por favor. Precisamos conversar e é melhor que você esteja sentado para ouvir este velho homem. Relutante me sentei, respirei fundo e ofereci meus ouvidos para aquele cara maluco, que disparou a falar sandices absurdas. — Melhor ir direto ao ponto — encheu os pulmões de ar e prosseguiu. — Eu sou você e vim do futuro para impedir que faça esta tatuagem — ergueu a manga esquerda da camisa e mostrou uma tatuagem já acinzentada. — Cara, você está louco! Quer me convencer que veio do futuro? — Gargalhava. — Olha, eu até poderia acreditar no senhor, mas vim aqui para tatuar o nome da minha namorada, não uma frase tão estranha quando a sua. — Você não é o Alberto, estudante de física, 25 anos, mora com os pais? — Imediatamente parei de gargalhar. — Assim você me assusta. Que tipo de lunático é você? Vou ligar para a polícia! — Não precisa fazer isso, Alberto — agarrou minhas mãos com força —, eu sou você! Juro! O mal encarado saiu da sala de tatuagem nesse momento, exatamente como entrou, só que andando de maneira estranha. — Alberto! — Chamou o tatuador. — Já vou — respondi. — É, pelo visto não conseguirei te impedir de fazer isso — resmungou o velho enquanto se levantava e partia rumo ao canto de onde veio. — Mas aceite minha dica. Acho melhor não tatuar o 55 nome da sua namorada, pois vai se arrepender. — Eu faço o que bem entender, velho mentiroso. Depois disso dei de ombros e fui para a sessão. Antes de começar, o tatuador perguntou se eu tinha certeza de que queria marcar o nome da minha namorada. Meditei por alguns segundos e resolvi mudar de ideia, o que foi uma sábia decisão, já que depois descobri que ela me traía com um cara mal encarado, cheio de tatuagens. Como estava em dúvida sobre o que tatuar, resolvi brincar com aquela situação que havia presenciado e tatuei a mesma frase que o velho tinha tatuada no braço: “Num futuro distante voltarei ao passado e não me deixarei tatuar”. Pode acreditar em mim. Eu não minto! 56 25 No relicário N ascida para guardar segredos, certamente não foi para este autor que se abriu. Antes, abriu-se a mente dele para revelar o segredo desta. Segredo não, já que aqui história nenhuma foi literalmente proferida por seus lábios, apenas imaginada ao som solitário de um Lago dos Cisnes abatido. Falo dela, a quem batizarei Sofia. O coração dessa bailarina teve uma única dona, chamada Madelleine — apenas mais um fruto desta imaginação, mas que carrega consigo o significado da existência de Sofia. Madelleine era uma rica e jovem senhora, muito bem sucedida com os negócios que havia herdado de seu pai, o senhor Jean Pierre: fazendas, confecções, hotéis. Administrava como se fossem seus desde sempre, com o carinho e atenção que seu pai deixara como um verdadeiro legado. Foi ele quem as apresentou em um dia comum da na infância da garota. Pierre foi ao encontro de Madelleine, que estava no campo próximo à Grane Ferme. O sol ornava a paisagem bucólica daquelas paradas, e foi seu brilho que revelou nas mãos do pai uma pequena joia familiar aos olhos da garota que não precisou de nenhuma palavra para entender o significado daquele gesto. O pingente em forma de anjo, delicadamente harmonizado em uma fina corrente dourada, pertencia à mãe de Madelleine, que acabara de falecer vítima de tuberculose. Sofia chegou no dia seguinte, também 57 trazida por Pierre, em meio ao luto da mais nova e fiel amiga, tornando-se a responsável por guardar tão bela joia e, ao mesmo tempo, acalentar o pequeno coração da órfã com seu ballet todas as vezes que a menina se dirigia ao quarto onde a bailarina ficava, e ali conseguir minorar a saudade da mãe que se fora. Os anos passaram e com eles a saudade. Sofia esperava ansiosa pelas visitas de Madelleine, cada vez menos frequentes. Ficava deitada, poupando forças para mais uma dança, por mais breve que fosse. E foi exatamente dessa maneira por muito tempo. Com o crescimento da menina, Sofia teve a oportunidade de se levantar para dançar muitas vezes, mas em praticamente todas elas a música mal chegava a começar, Madelleine atirava alguma joia qualquer aos pés da amiga e rapidamente partia, deixando a pobre bailarina à mercê da escuridão, contemplando brincos e braceletes presenteados por rapazes interessados na mão da garota que, a esta altura, tornara-se na mulher dedicada aos negócios do pai, também falecido. As visitas esporádicas terminaram quando finalmente o coração da moça fora ganho por um rapaz de boa família. Agora, Madelleine visitava a amiga com menos frequência, mas por mais tempo. Enquanto escolhia as joias para ir às festas da alta classe, Sofia dançava. Dançava enquanto escutava os lamentos da moça que envelhecia lentamente, mas não perdia o passo. Madelleine tornou-se mãe pouco tempo depois do casamento. Para comemorar, Sofia ofertou à amiga a joia que pertencera à sua mãe. Ela tomou o colar nas mãos, olhou com desprezo e o jogou contra o rosto de Sofia, dizendo não compreender o motivo de ela ter partido tão cedo, sem ensinar-lhe a maternidade. Nessa explosão de raiva, Sofia foi ao chão, levando consigo brincos, tiaras, gargantilhas e com isso não mais dançou. Madelleine recolheu as joias enquanto chorava. O pingente que sua mãe lhe dera havia se perdido em meio aos tacos da velha casa e a bailarina dedicada se quebrou na queda. Sofia aceitou as desculpas da amiga e continuou a guardar com diligência os pertences de Madelleine. Seu perdão foi tão profundo que às vezes ainda era possível escutar o triste Lago dos Cisnes, após algumas voltas no velho mecanismo da caixinha. 58 Sofia viu a menina virar mulher, e a mulher virar mãe. Viu a vida levar a beleza da jovem que não perdeu a vaidade. E viu a morte levar a cabo sua amizade. Os filhos de Madelleine, depois que venderam tudo que estava à vista, não demoraram a encontrar Sofia, que até então dormia sob o tampo dourado da caixa de madeira. Eles levaram tudo que um dia pertenceu a ela. Venderam tudo, inclusive Sofia, que hoje reside na prateleira de um antiquário, num belíssimo balé estático, encantadora aos olhos deste autor que passeava na calçada quando decifrou o segredo de sua triste melodia. 59 26 Avenida Paraíso N asceu mais um dia chuvoso diante dos meus olhos. Amanhecemos juntos; ou melhor, não dormimos. Agarrado às chaves do carro me deitei e ainda agarrado a elas me levantei, sem fazer barulho algum para não ser notado. E não fui. Cinco horas da manhã. Não faço questão de abrir o guarda-chuva para alcançar a porta do carro estacionado em frente à casa onde moramos eu, minha esposa e meu filho. Uma casa pequena, desconfortável, comprada às pressas devido a uma gravidez prematura e convenções sociais ultrapassadas, as quais apenas aceitei sem reação. Nunca soube dizer se ali habitava o amor até que em nove meses algo mudou e amei. Amei até o dia em que a criação se voltou contra o criador. Não repreendi. Afinal, quem seria eu para repreender? Uma transa de três minutos! Um mero doador de esperma que o sustenta desde os óvulos por pura obrigação! Ligo o carro e começo a me dirigir ao local que preparei durante a noite insone. Lembro-me de todos os anos que atravessei a cidade dentro de um ônibus lotado para chegar ao serviço. Um trabalho medíocre, com um chefe medíocre, digno de pena. Quantas vezes fui humilhado perante os colegas por erros que não eram meus? Quantos perdigotos da boca imunda daquele homem fui obrigado a aguentar em silêncio, de cabeça baixa, assentindo como um cão miserável? Até hoje estou lá e cada dia que passa percebo que o único digno de pena naquele local era eu. Chego ao lugar e contemplo ao longe meu destino. Arranco ao sinal vermelho. Não tenho nada a perder. Já perdi demais nessa 60 vida. Perdi oportunidades únicas, só minhas de felicidade. As garotas que não cantei na escola. Os flertes que não correspondi. Os olhares que deixei de trocar por medo de encarar a realidade da minha infelicidade amorosa. As chances de dizer não. As coisas que deixei de fazer para garantir o futuro de uma família condenada a um fracasso iminente e complacente. As viagens que não fiz. Os sonhos que não realizei. Nunca tive nada que pudesse ser perdido e, se algum dia eu tive, com certeza perdi. A cento e cinquenta quilômetros por hora viro um gigante! Que o mundo se foda! Que minha família se foda. Que toda a benevolência divina sobre essa carcaça se exploda! Logo tudo estará acabado. Chega de tolerância com aqueles que me desrespeitaram em todos esses quarenta anos de uma vida mal vivida. Nunca mais terei que olhar nos olhos de uma mulher que não me ama, nem de um filho que me enxerga como uma árvore de dinheiro que se aduba com merda. Adeus empreguinho de quinta categoria. Adeus vidinha insossa! Acelero. Sinto minhas mãos cravarem no volante. Suo frio. Minha visão periférica tornou-se um borrão. A velocidade revelouse uma metáfora aos meus olhos. Sempre prestei tanta atenção nos alvos que deixei de admirar os caminhos. Assim, tão rápido, vejo que as imperfeições do asfalto não criam mais do que uma leve vibração nos pedais. Vejo o muro à minha frente, todo meu. Gostaria de poder continuar, mas algo impeliu com que retirasse o pé do acelerador e lentamente pressionasse o freio. Paro a poucos metros dele e contemplo sua imponência perante meu caminho. Não tenho coragem de continuar. Volto para casa dirigindo com prudência, certo de que chegando lá ninguém terá dado falta de mim e a única coisa que cobrarão é uma explicação para as multas de trânsito que tomo todos os meses, na mesma rua, pelos mesmos cento e cinquenta por hora de sempre. 61 27 Uma questão de refração S empre gostei de me sentar naqueles assentos mais altos dos ônibus. Às vezes até acreditava ser algum tipo de infantilidade da minha parte este costume, já que o carrego desde pequeno, pois sempre fui obrigado a pegar condução para ir à escola primária. Certo dia, voltando para casa após uma estressante jornada de trabalho, tomei o velho ônibus e, como era de esperar, sentei-me no lugar favorito. Até aí nada fora do habitual, a não ser pela cena que estava para se desenrolar. Em pontos diferentes tomaram o ônibus uma moça loira, que se sentou na segunda fileira logo após a catraca, um rapaz alto e bem magro, que não chegou a cruzá-la, permanecendo em pé próximo ao banco reservado aos idosos, e um segundo rapaz, que ultrapassou a roleta e sentou-se na fileira atrás da moça. Como disse, eles entraram em paradas diferentes, espaçadas o suficiente para que nenhum deles se tocasse antes de alcançarem seus lugares. A moça era bonita, muito bem vestida e carregada de livros escolares. Por meio do reflexo do vidro que separa a condução em pagantes e não pagantes era possível, dependendo da qualidade da luz que vinha do exterior, que eu visse o rosto dela e, por sua vez, ela era capaz de enxergar o resto da condução como num espelho retrovisor, e era exatamente isso que ela estava fazendo. Com olhares atarantados, era nítido que ela esboçava sorrisos para o rapaz que se sentou atrás dela. Ele, por sua vez, não era lá um Don Juan, mas tinha seu carisma. Contudo, de tão absorto que estava com o movimento da rua, não dava a mínima para os esforços dela. Em compensação, e por um acaso da refração do 62 vidro, o moço que ficou na parte da frente do ônibus acreditava piamente que as investidas dela eram na direção dele. Ele não estava errado. Errado estava o ponto de vista. Esse rapaz era feio, assim mesmo, sem rodeios. Tinha o cabelo nos ombros, um ar de pseudocomunista e barba por fazer (lembrando que “barba por fazer” e “pseudocomunistas” são uma grande redundância). Em todo caso, ele resolveu ser recíproco com a moça, mandando piscadelas e sorrisinhos, mas ela não o viu. Quem o enxergou foi o rapaz sentado atrás dela, e, para minha completa surpresa, ele iniciou um flerte com o rapaz depois do vidro. Permaneceram assim durante toda a viagem. Ela olhava o de trás, que olhava o da frente, que olhava para ela. O ônibus sacudia muito, havia som de conversas misturados ao de celulares que tocavam e os barulhos comuns de um dia de trânsito. A distração era tamanha que dificilmente mais alguém teve a oportunidade de se deliciar com essa confusão. Cruzaram os olhares uma última vez e desceram, cada um em seu ponto, sem imaginar que amaram-se mutuamente e nem ao menos puderam se ver. 63 28 Cincão A bola rolou, atravessou as traves feitas com paralelepípedos, cruzou a calçada e só parou por completo dentro do motor de um Chevette 75 amarelo. Terminava enfim o verão dos garotos em uma periferia qualquer da zona sul, onde todos os meninos serão jogadores profissionais de futebol. Vestiam as camisetas dos seus respectivos times assim que acordavam, isso quando já não dormiam com elas, esperando o Sol nascer e o sono preguiçoso das férias ir embora, para então correr ao campinho improvisado e ali passar o dia. Fazia muito calor naquele ano. Tanto que praticamente todos os meninos preferiam permanecer carecas a fim de amenizar a situação, ou pelo menos o calor era uma boa desculpa para que suas mães não gastassem dinheiro com os cortes de cabelo da moda, inspirados nos jogadores favoritos de seus filhos. Cinco reais e pronto, todo aquele cabelo desnecessário estava no chão. E foi assim durante um longo período na vida daquelas crianças e cabeleireiros que, como baratas, multiplicavam-se no calor. Uns vinham, abriam seus salões, ficavam duas ou três temporadas e logo partiam sem grandes explicações. As crianças também mudavam ano após ano. Uns iam embora, outros apenas mudavam, cresciam, ganhavam novas formas, cores, cicatrizes. Viravam homens devido à idade ou necessidade. E é exatamente nessa fase de transição que se encontra o grupinho que acabara de perder a bola para o melhor carro da região. E sem bola falavam de mulheres, contavam vantagens e mentiras, disputando quem mijava mais alto, mais longe, o melhor bigode, o mais rápido, entre outras coisas que os animais fazem para disputar território e tornarem-se os alfas da região; se é que al64 gum dia conhecerão alguma letra do alfabeto grego. Chegada a noite, os que podiam ficar na rua iam à banca de jornal do velho Crispim, onde com apenas uma moedinha conseguiam comprar uma boa revista de sacanagem. Sim, revezavam-se. E de maneira muito organizada e respeitosa, o que não vem ao caso. Apenas aproveite a cadeira privilegiada sobre a qual este autor permite que você se sente para apreciar a vida pacata desses meninos que crescem adubados com vontades e hormônios. As primeiras folhas que caíam das poucas árvores do bairro eram o sinal de que dentro de alguns dias os cabelos haveriam de se tornar vastos novamente. Mas isto não foi uma regra entre os do grupo. Lucas manteve-se careca, enquanto os demais iam revelando sua natureza étnica com penteados black, tranças e descolorantes. Fato é que isto não passou despercebido, e tão logo um deles apontou, todos começaram a inquirir os motivos da drástica mudança de hábitos, pois Lucas era o que tinha passado mais vezes na fila do cabelo enquanto Deus distribuía as características para cada um deles. Vasta cabeleira, herança do pai. Contudo, ele foi obrigado a se abrir, quase com a mesma dificuldade que as revistinhas do Crispim ofereciam para serem abertas após as férias. E antes que o leitor ache que se trata de um exagero da minha parte o rapaz ser obrigado a dar satisfações sobre o cabelo, saiba que nessa idade e nessas condições ele não tinha outra opção a não ser falar seus motivos, ou viraria alvo de brincadeiras até as próximas férias ou mais. Coisa de moleques. Atentos, todos permaneceram calados enquanto ouviam o moço falar. Tratava-se de um novo salão na rua detrás do campinho. Não exatamente o salão em si, mas a dona dele. Enquanto Lucas a descrevia, era possível observar que alguns deles ficavam alvoroçados dentro de seus bermudões de náilon e calças de moletom, sendo que um deles teve que se ausentar, voltando após alguns minutos com cara de quem viu passarinho listrado. Seu nome era Odete e, como descreveria Caetano, era dona das mais divinas tetas que o bairro já vira. Mais pra gorda do que pra gostosa, mas a imaginação dos garotos era bem mais eficaz do que qualquer dieta ou cirurgia, fazendo-a uma deusa, uma Vênus, que por cinco reais fazia seu show, muito bem detalhado por Lucas logo que 65 seu amigo voltou da segunda sessão solitária de amor-próprio. Ao sentar-se pela primeira vez naquela cadeira, Lucas não fazia ideia do que viria a acontecer. Aliás, fazia, só não esperava que fosse realmente acontecer. Odete o cobriu com uma capa preta que cheirava a amaciante, coisa rara por aquelas bandas; então sacou uma máquina de cortar cabelo que estava espetada na tomada e iniciou os trabalhos. Indo e vindo, ela era meticulosa em sua função, dando atenção a cada uma das saliências do couro cabeludo do menino, sem se dar conta de que seu profundo decote hipnotizava o cliente, que agradecia silenciosamente a Deus pela descoberta que não haveria de acabar por aí. Com as mãos fixas nos braços da cadeira, Lucas percebeu que estava a poucos centímetros das partes baixas da mulher. Seu sistema nervoso estava quase entrando em colapso devido ao choque térmico causado pelo suor frio da situação sob o calor insuportável daquela capa plástica. Estava enfim explicado o motivo pelo qual Lucas havia deixado de participar das vaquinhas com a galera. Tinha que economizar dinheiro e fôlego para os cortes semanais. Era como um filme pornô de quinta. Tudo meticulosamente programado e sem grandes mudanças: cadeira, capa, corte, peitos e quase, quase um contato de primeiro grau. E foi assim na segunda, terceira e quarta semana de férias, até que na quinta semana algo fora do script aconteceu, fazendo com que tudo mudasse. Odete devia estar pronta para algum baile. Mais cheirosa do que nunca, com roupas mais justas do que a vontade divina, com direito a calça branca colada e uma calcinha teimosamente evidente. Ela estava mais distraída do que das outras vezes, ansiosa para a noite, talvez, e foi se aproximando do garoto até que encostou na sua mão. Em choque, o garoto não sabia o que fazer e acabou permanecendo estático, sentindo-a roçar em seus dedos imaginativos. Terminado o corte, Lucas reparou que o olhar da cabeleireira mudara para ele e, voltando na semana seguinte, mais uma vez, uma de suas mãos era acariciada enquanto a outra, escondida pela capa, escorregava vagarosamente para dentro da calça. Isso tornou a ser descrito por mais duas vezes antes que ele terminasse de narrar suas aventuras capilares, prometendo que voltaria 66 no dia seguinte para visitar Odete antes que as férias acabassem. Luquinhas não voltou ao grupinho no dia seguinte, tampouco na semana que se passou e, quando procurado, não encontraram vestígios dele nem de sua família. Os vizinhos recusaram-se a dar o paradeiro deles; simplesmente fechavam as portas, deixando os amigos do rapaz em frente aos barracos, a ver navios. Na comunidade não se abre a boca para dar pistas sobre ninguém. Os boatos logo correram soltos pela escola com o retorno do ano letivo. Um dos seus amigos foi até o salão da Odete para “obter informações”, porém nem tudo era como o descrito na história. Pela vidraça viu a morena atrás do balcão, fazendo alguma coisa qualquer e logo a reconheceu. As cadeiras eram as mesmas descritas por Lucas, mas as capas que esconderam as mãos do menino em vez de pretas eram transparentes. Indiscretamente translúcidas. Na fachada uma placa que não havia sido citada, simples, escrita a caneta dizia: “Corto cabelo e pinto”. Nenhum dos garotos voltaria ao local. 67 29 =T3:D10 P reciso de um café. Control, alt e del com apenas uma das mãos. Bloqueio. Arrasto a cadeira, levanto-me, sigo em direção ao café. No caminho vejo rostos conhecidos, aceno com a cabeça, digo “opa”, movo o lábio para alguns e só. Marli trabalha iluminada pelo monitor. Belos seios tem Marli. Marli olha para minha gravata, mas volta ao monitor. Tento desamassá-la com as mãos. Em vão. Quem liga? Faz calor e minhas mangas curtas não evitam o suor. Vejo meu chefe se aproximar, tomo um papel qualquer da impressora e analiso com importância. Aceno com a cabeça. “Trabalho de Marketing”. Estagiário. Tomo meu rumo. Café. Faz calor e o café não faz sentido. Tomo mesmo assim. Olho através da janela. Prédio, prédio, prédio. Janelas. Linhas horizontais, verticais. Células. A vida dos outros dentro de uma tabela. Uns digitam, outros conversam. Alguns fingem ler com importância certos papéis, enquanto seus 68 chefes passam. Levo a caneca aos lábios. O vapor embaça meus óculos. Limpo-o com a gravata e o coloco novamente. Então vejo em uma janela alguém que me vê nesta janela. Ele também toma café. Coluna T, linha 3. Naquela célula, do outro lado da avenida, a vida acontecendo dentro de uma tabela. Aceno com a cabeça. Digo “opa”. Sou retribuído. Igual, se… Saio da janela. Não há nada interessante lá fora. Largo a caneca na pia. Belos peitos tem Marli. Volto às minhas células. Coluna D, linha 10. 69 Viés » Garotos - Cazuza Coisa do destino » Sinceramente - Cachorro Grande Quem te viu » Santa Chuva - Los Hermanos Ao acordar dos trilhos » Sonhos - Peninha Destinataire ne se trouve pas » Outono no Rio - Ed Motta De repente fim » O nosso amor a gente inventa - Cazuza C’est la vie! » Coração - Aviões do Forró (Fagner) Do outro lado » A sua - Marisa Monte Turma de 1936 » Vou levar - Lobão Quarta de cinzas » Retalhos de Cetim - Benito de Paula Doce amor » Formato Mínimo - Skank Bem guardado » Pra você guardei o amor - Nando Reis Sr. Scotch » A história de Lily Braun - Chico Buarque Em meio segundo » Alma Nova - Zeca Baleiro Nos jardim dos otro » Prato de Flores - Nação Zumbi Dorme » Tive Sim - Cartola 70 72 73 75 76 78 79 80 81 82 84 85 86 90 92 93 95 Contos inspirados em músicas 71 30 Viés “C ara, que gata!”, pensava eu silenciosamente, enquanto admirava seu andar dentro de um vestido fino que marcava suas curvas, montada sobre saltos, de unhas e lábios pintados, vermelhos, prontos para morder ou arranhar como fera qualquer homem incauto, distraído ou besta por não ter reparado na presença de tão bela mulher. O vinco de suas panturrilhas, o balançar firme das nádegas, coxas que davam alô através de uma fenda quase tão profunda quanto o decote, quase revelando mais do que deveriam aos olhos, mas suficiente para uma imaginação cheia de testosterona e desejosa por ter nos braços, na cama, coisa mais sensual como ela, que, antes de dobrar a esquina, prendia seus longos cabelos de mechas douradas e colocava grandes óculos escuros. O sol fustigava o dia, fazendo-lhe o suor escorrer desde a nuca, entrepassando por pelos loiros e descendo brincalhão pelas costas até ser detido pela calcinha rendada, pequena, que amparava suas naturezas. “Que calor!”, pensava ela, enquanto andava atrasada para o trabalho, pensando na vida. Passava sempre pelos mesmos lugares, reconhecendo inúmeros rostos familiares que, de vitrine em vitrine, iam aparecendo para observá-la passar. Um velho, um moço de pasta na mão e um rapaz em especial. Este, vestia-se apressadamente todas as manhãs, mesmo sem compromisso algum, com bermuda de náilon, camiseta de surfe e um boné de crochê. De porte físico quase tísico, os ossos do seu tórax saltavam para frente, frutos de uma forte bronquite infantil. Mãos e pés enormes, braços que alcançavam os joelhos e um bigode escuro, ralo e bem mal ajambrado. “Que calor”, pensava ela, e eu, após vê-la sumir na próxima rua, encarei-me no reflexo do vidro mais próximo pensando: “Maldita puberdade!”. 72 31 Coisa do destino N unca fui humilde, e posso garantir que melhor partido do que eu você não encontra por aí. Sabem quem eu sou? O protagonista de todos os papéis de freegels que você, desesperada, comprava quando criança, com frases que de tão doces eram mais meladas do que o próprio papel daquela porcaria de bala. Sou tipo o príncipe das histórias infantis e dos contos de fadas que sua mãe lia aos pés da sua cama. Sério, parabéns! Você acertou no pulo quando me encontrou, por mais que “acertar no pulo” não faça sentido algum para mim. Agradeça ao destino por me fazer reparar no seu gingado, naquela baladinha cult. E sinta-se privilegiada com estas palavras, pois não é pra qualquer uma que me declaro assim, tão sinceramente, e nem tão tarde como é agora. Não faço ideia por que estou te falando isso. Acho que o destino também brincou comigo, quem sabe? Quem sabe você também seja a nora que minha mãe sonhava? Topa ir perguntar pra ela? Queria muito te apresentar. Espero que ela não pegue o velho álbum de família, porque sempre acaba me envergonhando com histórias bobas de quando eu nem era tão legal assim, nem tão humilde. 73 32 Quem te viu D esde pequeno, desde que me entendo por gente ela estava lá, me entretendo e me enchendo de inutilidades. Às vezes acho que aquela caixa mágica fez as vias de babá para que minha mãe pudesse tomar conta de casa. Meu padrasto ficava puto quando faltava feijão, mas só percebi isso quando me dei conta de que noite sem feijão era manhã com mamãe de olho roxo. O que não a impedia de amar mais a ele do que a mim. Quanto percebi que era dono da minha própria vida fugi sem saber para onde. Vaguei a noite inteira e acabei por me sentar num degrau qualquer. Logo em frente, viva e implacável em suas muitas polegadas, um televisor de última geração reprisava um programa pululante, cheio de orientais, incoerente com a placidez da noite. Muito linda noite, emoldurada num sereno grosso que caía sobre os carros, cada gota reluzindo as cores de uma tela. Fiquei ali, mas logo voltei para casa. Ninguém sentiu minha falta. Nunca fui feijão. A gente acaba crescendo uma hora, torcendo para fazer as coisas de maneira diferente. E foi assim. Cresci e jurei fazer diferente, amar de verdade, sem vaidades, sem medos e sem sofrimento. Sozinho, consegui emprego, aluguei um quarto com banheiro e comprei uma TV. Todos são bonitos e felizes dentro dela, não é mesmo? Queria estar lá, ou com alguém que já estivera. E aconteceu que a vi. Muito linda. Mais linda que a atriz mais linda. Chovia e nos escondemos sob a mesma marquise. “Chuvinha chata”, e daquele momento em diante passamos a nos conversar 74 todos os dias. Depois todas as noites. Quando percebi estava comprando uma cama de casal, entre outras peças da mobília. Quem diria... Cortinas! A verdade é que ela decorou bem mais do que meu apartamento. Fez do meu coração um lugar habitável como sempre sonhei em ter, mesmo sem saber o que era isso, pois os exemplos das novelas não deixam claro o que se passa verdadeiramente no peito das personagens. Pena que toda novela tem um final, e o meu foi assim, sem graça. Sem casórios e sem brindes às margens de um cenário qualquer. Ela se foi deixando em mim apenas vontade de chorar, correndo para os braços de um coadjuvante que mal cheguei a conhecer. Ela se foi e levou a TV, alegando ser dela. Não senti sua falta por algumas semanas, mas a vida aqui do lado de fora é muito chata e sem brilho. Sozinho depois de tanto tempo me lembrei da velha casa da minha mãe, hoje viúva pela segunda vez, graças a Deus. Fui visitá-la, tomei café, resgatei minha antiga babá e parti com ela sob os braços, mas por algum motivo ela não pega na minha solidão, somente chuvisca, dia e noite, me fazendo lembrar da antiga marquise e de outras reprises. 75 33 Ao acordar dos trilhos F az frio. Acordo, olho para fora e não reconheço meu reflexo nem as silhuetas que apressadamente recolhem as malas. A respiração embaçou o vidro carinhoso que me cedeu ombro durante a viagem. Meus pés ainda dormem, como tudo ao redor. O estacato das rodas do trem nos embalou até aqui. Nessa letargia pouco a pouco recobro os sentidos, escuto um apito distante, um ronronar metálico ao longe. Vejo que do outro lado do vidro as coisas tomam forma, mas falta-me coragem para levantar-me; o formigamento toma conta de mim, como quem diz que ainda é vivo. E permaneço ali, recolhendo meu entendimento sem pressa. O sol lamenta ao longe seu triste acordar, pintando o vagão com novas cores, fazendo brilhar as gotas nos vidros, aquecendo um novo dia. Quase não me lembro dos meus motivos. Minto. Faço força para não lembrar. A vida ganha verdadeira vida através das vidraças. Reflito no reflexo e ainda assim lá fora a vida não para. Vejo que ela continua apesar da distância, abraçando vazios como se fossem concretos. Finalmente me percebo aqui, novo como ontem, porém muito diferente do eu que deixei nas paradas anteriores. 76 Somos dois: eu e estes outros alheios a mim. Abro minha valise. Duas camisas, alguns trocados e uma fotografia manchada. Aquele já não sou eu. Aquela já não era mais ela. Trouxe comigo apenas o necessário para me encontrar, assim como ela fez ao tomar o trem na direção oposta aos meus sentimentos. Alguém me manda descer e apenas obedeço. Trilhos vão, trilhos vêm. Saudade. Penso em retornar, retomar os planos antigos. Até teria esperanças para queimar e abastecer a locomotiva para a viagem de volta, mas decido seguir em frente. Tudo diz bom dia, menos os trilhos que me trouxeram aqui, pois tranquilos ainda dormem. 77 34 Destinataire ne se trouve pas “H oje é primavera em Paris, e eu não posso vê-la.” Trecho de um conto publicitário Faz quatro meses desde a última ponte aérea. As flores já morreram, as folhas hoje forram o chão, e do sotaque que arranhava meus ouvidos não sobrou resquício. Troquei o frio das noites coloridas na cidade-luz pelo calor solitário deste apartamento donde lhe escrevo, acariciado pela cortina que, quando muito, recebe uma leve brisa do mar e traz vida à minha paisagem cotidiana, tão empoeirada quanto as velhas flores de plástico que você teimava em colocar sobre a mesa do café. O som da velha Olivette martela e ecoa nas paredes mofadas as palavras que não têm motivo para existir. E não existirão até que nasçam do envelope pardo, selado com os poucos trocados que tinha no bolso e com a esperança de ter escrito o endereço corretamente. Aliás, nem sei se você permanece onde a deixei. Parti sem lutar pelo seu amor, chorei tantas águas quanto a velha Veneza, e ainda afundo tão dolorosamente quanto ela a cada dia que passa. Nos distanciamos de tudo para ficarmos mais próximos, mas ofusquei a beleza da primavera com o tom pastel do meu egoísmo e não a vi em Paris. Recluso dentro de mim mal percebi que o brilho nos olhos dele contagiou os seus e que, a cada dia que passava, eles ficavam mais próximos. Você o beijou com tanto gosto que invejei. Invejei a beleza, o sotaque, o arfar da sua blusa com o desejo de se perder para sempre. Virei as costas e fui-me embora em farrapos; e só agora, alguns quilos mais leve em peso e consciência, consigo me manifestar. Já é outono, mas permaneço de braços abertos caso queira voltar e trazer minha vida de volta. Eu e o Cristo. 78 35 De repente fim D e repente fim. Eu sem ter você, você sem ter a mim, e esta coisa frágil fica em pedaços no chão, caída como uma morta que nunca gozou a vida. Ingrata coisa é essa, que enterra com as patas traseiras os cacos que não podem se defender do destino no fundo de um cesto de esquecimento. Não há cola que conserte as trincas, nem mãos diligentes o suficiente para catar os menores fragmentos dos vãos dos tacos. Pedaços eternamente faltarão, assim como fará falta na estante tão lindo ornamento. Olhando mais de perto é possível ver a silhueta que o pó deixou na madeira que envelheceu ao redor da peça de porcelana, deixando evidente uma pequena ilha de novos ares há tanto escondida sob anos de esquecimento, sendo ela tão valiosa e tão sensível que nem mesmo com espanador era permitido tocá-la. O dono chorará sua perda, lembrará o quanto lhe foi caro adquiri-la ou até mesmo da tamanha estima que lhe tinha por ter sido um presente tão raro, atribuindo-lhe significados inexistentes até este momento, onde a consciência de tê-la perdido para sempre vem à tona. Cessarão as lágrimas dentro em pouco, alguma outra velharia tomará o lugar marcado pelas arestas de algo antes tão belo, e esta nova alegoria logo se tornará tão velha quanto a anterior, irrelevante até ser derrubada no chão por uma limpeza desastrada. E as marcas acumular-se-ão, uma após outra, deixando no centro de todas elas uma mancha muito menor e mais clara do que todas juntas, até que ali não existam mais traços do antigo vaso presenteado por já não se sabe mais quem, perdido na completude de sua total e atual inexistência. 79 36 C’est la vie! Qualquer semelhança com a vida real é mera consciência. E sta é uma daquelas histórias de amor clichê que a gente sabe onde vai parar. O cara não tão bonito, nem tão popular que se apaixona pela moça mais gata do colégio. Tímido, a única coisa que consegue fazer é encará-la todos os dias no intervalo das aulas, enquanto come uma pratada de arroz parabolizado, feijão e salsichas com molho. Ela não dá bola, continua a comer sua esfiha com coca-cola, cercada de amigos, sorrisos e invejas. Ela causa inveja, com certeza. Ele sente inveja dela. Ali, encostado com seus “colegas”, imagina como seria a vida caso fosse popular. Talvez fosse mais fácil de se aproximar, contar uma piadinha na intenção de encantá-la, como acontecia com as moças não tão bonitas das mesas ao redor da sua, na sala de aula. Passa um, dois, três anos. Termina o colegial e o clichê. A moça nunca reparou no amante do outro lado do pátio. Por sua vez, ele se esqueceu dela. Saiu da escola, arrumou emprego, passou no vestibular e até arrumou uma namorada, ainda mais bonita do que sua paixonite adolescente. Nunca conseguiu um beijo, um abraço, nem uma troca de palavras qualquer. Passou esse período chato da sua vida arrependendo-se de não ser tão legal, tão bonito e tão simpático quanto os que rondavam aquela moça, que hoje em dia já não machuca nem faz chorar como antes. O que ele não sabe é que a vida tratou de cuidar de outros pontos da sua existência. Num futuro ele será feliz, mas nunca se perdoará por não ter feito aquela piada na fila da cantina quando ela estava logo atrás, toda ouvidos, só para ele. 80 37 Do outro lado P ra tudo isso digo “foda-se”! Cara, na verdade eu cansei dessa sua mania idiota de transformar tudo em poesia. A gente acabou e ponto. Não duvido das coisas que você me diz, de que me quer bem... Afinal, eu também quero seu bem, e é por isso que estou te dando este adeus, porque sei que mais para a frente eu me frustraria e te magoaria. E sendo extremamente franca, preciso lhe confessar algo. Nós ficamos juntos este tempo porque você me pegou com a guarda baixa. Tinha acabado um relacionamento longo, de cinco meses, e você surgiu com suas doçuras e carinhos. Desculpe-me se te fiz achar que havia amor nisso tudo, mas isso não está nos meus planos, pelo menos por enquanto. Você é legal e tal, só que eu quero curtir um pouco, talvez fazer uma aventura ou sei lá o quê. Tenta ocupar sua cabeça com outras coisas, estudar, fazer aula de guitarra! Adorei tudo que você compôs pra mim no violão, mas falta rock nas suas veias, you know? Enfim. Nunca fui muito boa com as palavras. Desculpe-me pela caligrafia, pois faz anos que não escrevo nada a caneta. E foi mal pelo “foda-se” no início da página. Até pensei em rasurar, mas ia ficar uma bosta e eu tô sem tempo pra reescrever. Outra coisa: não entendi muito bem a parte que você escreveu sobre o vento. Espero que o tempo melhore por aí. Desculpa qualquer coisa. Bjs! =) 81 38 Turma de 1936 C ada ano que passa parece que um degrau é acrescentado nesta escadaria. Apenas parece. Sei que, na verdade, são os anos fustigando minhas juntas e devorando meus músculos. Lentamente, um a um, vou descendo para estar com as pessoas que amo, mesmo que isto os incomode. Agarrado ao corrimão com toda a firmeza possível, passeio meus olhos pelas fotografias que forram as paredes. Vou observando o tempo voltar. No alto da escada vejo muitas crianças de que não lembro o nome, bisnetos e netos. É a vida sobrepondo o presente em molduras baratas. Desço mais um pouco e reconheço filhos, genros e noras. Aliás, muito mais genros e noras do que meus próprios filhos. Os tempos mudaram, o valor do rolo fotográfico é muito mais baixo hoje em dia e qualquer motivo é motivo para fotografar. Sempre me estranhou o fato de as esposas atuais deles não se incomodarem com o registro de antigos amores. Mas eu até entendo. O que são fotografias em relação aos negativos estampados no coração? Enfim... Passo a passo, pouco a pouco, nessa viagem no tempo começo a me reencontrar. Crianças abraçadas às minhas pernas, crianças sentadas no meu colo. Eu só. Eu e minha senhora, ambos com cabelos brancos que, degrau a degrau, vão tornando às cores originais, os olhos voltam a ficar vivos, as roupas mais estranhas e as molduras mais bonitas, de tempos em que se valorizavam os instantes muito mais do que o além. 82 Quase no térreo do sobradinho que construí as cores das fotografias vão se perdendo. Tudo agora é preto e branco. Paro no tempo, degustando os sorrisos, por mais posados que fossem, e pessoas que se foram muito antes da minha esposa. Pessoas que vimos passar e hoje estampam estes primeiros degraus. Fotografia do colégio. Será que as pessoas deixaram este costume? Não vi nenhuma destas mais acima. Me procuro por alguns instantes. Encontro-me triste, ao lado da mãe dos meus filhos que sorri com laço no cabelo. Todos olham para frente, menos uma garota que chama minha atenção. Ela olha para mim, linda. Lembro-me de que pensava nela enquanto mandavam a turma ficar quieta. Não lembro seu nome, mas recordo-me muito bem do que sentia. Sinto agora novamente. É o tipo de coisa que não explicamos, pois não sabemos como seria se fosse diferente. Alcanço o chão e dirijo-me até minha poltrona ao lado do rádio de pilhas, mas não sem antes olhar mais uma vez a fotografia do colégio e pensar, estacionar no tempo mais uma vez para provar o gostinho de um amor tão pueril. Vejo as fotografias que sobem e fazem a curva da escada, suspiro por dentro e agradeço ao tempo por tudo que me deu, tendo certeza de que valeu a pena cada lance, mesmo sem levá-la comigo para os degraus mais altos da vida. 83 39 Quarta de cinzas C omo explicar esta porra que mais parece furúnculo? Surge de repente, dói e, por mais que você tente, só vai embora quando quer. Foi assim comigo. A vadia tinha uma bunda que não era dela! Pretinha como eu gosto, com pernas com que só o morro abençoa suas filhas. Chegou faceira ao ensaio, colou no meu cavaco e logo estava no meu cangote. Todos achavam que tínhamos um caso. É certo que tínhamos, mas não do jeito que imaginavam, nem do jeito que imaginei. Latejávamos todas as semanas nos fundos do barracão, contudo as pernas se fechavam e com os retalhos das fantasias ela se cobria por inteira, dizendo não na hora agá. Eu desafinei por ela, e não existe maior prova de amor do que esta. Quanto mais ela me afastava, mais eu queria estar perto, estar dentro. Ela me prometeu, coberta de púrpura e lantejoulas que, logo após a nossa passagem na avenida, eu poderia provar dela tudo o que eu mais queria, cada gota de suor, cada espaço daquela pele de veludo, apertar cada carne como se fosse a última da minha vida. Só que a puta se foi! Antes mesmo de pisar na avenida. E sim, eu chorei. Eu e meu cavaco. Desde então eu comemoro meu luto com samba e lágrimas na mesa do bar todas as quartas de cinza, como o vestido dela estendido até hoje no galpão. Você já deve estar cansado de ouvir esta história, não é mesmo? Desce mais uma branquinha e vai embora. A branquinha nunca me deixou na mão. 84 40 Doce amor O amor em seu formato mínimo cabia na palma da mão e logo voou para dentro, aos goles de um refrigerante quente como a noite lá fora e o ambiente lá dentro. A noite então se tornou sua, pessoal e intransferível. Não existia mais dor nos pés, nem pessoas feias, nem momentos que não valessem a pena. A balada seu picadeiro. Era a malabarista! Melhor: era a trapezista! Quem sabe a corda bamba lhe fosse sua por direito. Bem... Ela podia ser quem quisesse e ninguém poderia impedi-la, ainda mais depois que o ácido bateu forte duas da madrugada. Todos eram lindos. Qualquer boca era um convite para o prazer e... por que negá-lo? Um, dois, dez e a conta se desfez, desabrochou como o efeito lisérgico da droga. Contudo, somente pela manhã é que o estrago era notado. Só, em uma cama redonda fedendo a suor e cândida, levantou-se e foi ao banheiro. Urinou sem baixar a tábua e se olhou no espelho. A maquiagem borrada ao redor dos olhos e o batom espalhado por suas bochechas davam um tom tragicômico ao dia seguinte. Sentia-se uma palhaça, mas não ligava muito. Estava acostumada com os efeitos do amor que, para ela, terminava sempre do mesmo jeito, ironicamente igual aos versos de uma música que ela imaginava ter escutado na noite anterior, mas que da letra lembravase apenas de um “tchura tchutcheu” martelante. 85 41 Bem guardado A o chegar ao escritório, perante uma vasta mesa de mogno polido cheirando a lustra-móveis, uma calva sobre óculos circulares tamborilava os dedos cheios de anéis, enquanto permanecia em uma posição que certamente a grande cadeira de couro estava habituada a lhe oferecer. — Sentem-se, por favor — em um gesto seco e cortês, levantouse, ofertando ao casal as duas cadeiras vazias que faziam jogo com o resto da mobília —, pois estamos atrasados, não é mesmo? Os dois puxaram seus assentos com grande dificuldade, deixando rastros no velho tapete felpudo do advogado, sentaram-se incomodados com os braços das cadeiras trabalhados em torno rococó e permaneceram calados enquanto o homem lia e relia alguns papéis claramente consumidos pelas traças do tempo. O homem era de uma jovialidade indescritível, charmoso e atencioso. Atencioso pelo fato de saltar aos olhos do doutor a maneira como entraram os dois de mãos dadas. Ela já não possuía beleza. Havia rugas no rosto, pouca tinta nos cabelos e suas formas eram as de uma mulher que muito batalhou para alimentar e cuidar do filho que ali a acompanhava. — Diga, Doutor, por que nos chamou tão às pressas? — Os olhos da senhora eram profundos, intensos e, enquanto falava estas poucas palavras, Dr. Carlos olhava-a fixamente, admirando a maneira como os músculos do rosto dela deram uma trégua à beleza de outrora. Dr. Carlos era observador. Prestava atenção especial a todos os clientes, atitude que lhe rendia o estigma de bom moço entre os da mesma classe. Seu esmero era tanto pelas 86 pessoas e pelas coisas do escritório que, exatamente por este motivo, papéis importantes e antiquíssimos fizeram com que mãe e filho estivessem naquela sala. — Dona Rosa. Será que posso chamá-la assim? — Como a resposta não veio, prosseguiu. — Chamei vocês aqui porque um cliente meu tinha o interesse em lhes falar. — E onde está o homem? — Infelizmente o homem já é falecido. Que Deus o tenha. Mas tenho em mãos uma carta do mesmo, e estamos aqui para que eu faça a leitura para a senhora e para o seu filho. Sem compreender de quem poderia ser a missiva, mais uma vez calaram frente à eloquência do doutor. Tratava-se de um povo simples e assustado perante o luxo da sala e as roupas do que lhes falava. — Aparentemente um senhor chamado Eudes tinha assuntos inacabados com a senhora. Procede? O semblante dela foi ao chão. Chorou copiosamente até que as lágrimas pararam de verter por meio dos afagos do filho que, assim como o doutor, não fazia ideia do que estava acontecendo. — Meu filho — um soluço, um gole de coragem —, Eudes foi um homem que conheci quando morava no nordeste. Eudes foi quem me deu você, mas eu não te dei para ele. A ficha do homem demorou alguns segundos para cair, mas nas entrelinhas do rosto sulcado da sua mãe ele entendeu o recado. Eudes era o pai que nunca conhecera e jamais conheceria. — Desculpem-me os dois. Não sabia que este era um assunto escuso para ambos. Querem remarcar a leitura do testamento? A palavra “testamento” foi como um choque para eles. Eudes era assunto esquecido para Dona Rosa, e agora isso. — Doutor, desculpe-me o senhor. Não quero tomar seu tempo. Mas, antes de ler pra gente, preciso dizer para você, meu filho, que se nunca lhe revelei sua paternidade foi para lhe proteger, pois era vergonha para mim e meus pais ser menina grávida naquelas condições. Ainda mais de um homem tão pobre. — Tudo bem, mãe — Francisco carregava o nome do avô, uma 87 forma de fazer com que o preconceito da família cedesse, coisa que não aconteceu, mas Dona Rosa cuidou do filho, não muito mais velho do que ela mesma, com todas as forçar que teve —, jamais julgaria a senhora depois de tudo que sofremos juntos. Sem esperar por mais lágrimas após a declaração de Francisco, Dr. Carlos iniciou a leitura: “Não tenho forças para escrever estas coisas, por isso quem escreve é um grande amigo, que me prometeu não sujar a folha com as mãos de carvão. Já faz tempo que você, Rosa Maria de Carvalho, saiu da minha vida levando na barriga a semente que lhe dei. Foi um erro da nossa parte, um descuido de amor, que infelizmente foi a melhor e a pior coisa que nos aconteceu. Peço desde já desculpas pela infelicidade que causei para a sua família. Espero que onde quer que você esteja a felicidade tenha lhe acompanhado. Depois que você saiu trabalhei duro, duríssimo, na esperança que você voltasse precisando de um lar. Construí uma carvoaria, com muito suor e fumaça. Fiz dinheiro e guardei, para você e meu bebê, que espero ser menino. Faz três anos que você foi embora, e nesse tempo adoeci. Quase não me levanto da cama, pois meus pulmões são frágeis. Venderei a carvoaria e juntarei com as economias da minha vida, bem debaixo deste colchão, onde aos poucos vou partindo pra uma melhor. O fogo queimou minha saúde, mas acredito que, caso você resolva voltar, ele servirá para alimentar a chama deste amor que tenho por você e por meu filho, mesmo sem conhecê-lo. Não lhe cobrarei explicações. Quero apenas que, de alguma forma, tudo o que guardei por você seja recebido e nunca falte. Volta, por favor. Com amor e sem entender o porquê, Eudes Aguiar.” — Esta carta estava anexada aos documentos do homem. Só a encontramos devido a mudanças dos sistemas de alguns cartórios antigos. A mulher voltou a chorar, dessa vez acompanhada do filho. “Como saber que a vida poderia ter sido diferente caso não tivessem cruzado a ponte para a cidade grande? Como saber da vida sem vivê-la?” Em pensamentos perdiam-se ambos, emoldurados pela voz do advogado. 88 — Infelizmente, as economias de Eudes Aguiar já não têm mais valor, pois, como diz a carta, o dinheiro todo estava debaixo de um colchão, intacto desde muito tempo atrás. — Eu só quero a carta, Doutor. Levantaram-se e foram embora. 89 42 Sr. Scotch E u estava muito bêbada. E pra falar bem a verdade, acho que ainda não me recuperei do porre daquelas noites. Ele mirou meus olhos do outro lado do salão e veio determinado, carregando dois copos, pouco gelo e um belo whisky. Foi certeiro! Observando que no seu pescoço havia uma câmera dependurada, nem esperei que ele me dirigisse a palavra, pois de cara percebi que nosso objetivo era o mesmo: a fama. Eu na frente delas, ele nos bastidores. A noite terminou na velocidade de um flash. Autografei uma das fotos que sempre carreguei comigo, beijei deixando a primeira de muitas impressões dos meus lábios naquele papel esmaltado e sumimos na noite, cada um para um lado. Seu nome? Pouco importa. Persegui o estrelato de cabaré em cabaré e ele estava lá, todas as vezes, sentado no gargarejo, segurando o mesmo velho copo. Entre uma música e outra descia e lhe beijava o gargalo do copo, deixando que ele me beijasse todas as vezes que voltasse a provar o malte, embriagando-se na bebida e no gosto do meu batom. Todas as noites como um flash. Já não sabia se era a câmera ou se era o sorriso cafajeste dele que me iluminava em meio às lantejoulas da noite. Até então nada além de uma troca de favores. Ele buscava a minha fama e eu a fama que ele me oferecia, chegando até a ser capa de uma badalada revista de segunda linha, pouco conhecida, mas eu estava deslumbrante! Mais um show. A noite estava quente e ele me esperava como 90 sempre. Terminei o show, fui até ele, agradeci pelo clique e eis que uma surpresa me esperava. Após a segunda dose virei refém do charme obscuro daqueles olhos negros da grande-angular. Saímos daquela espelunca e nos embrenhamos na escuridão sem lua do verão. Fui completamente dele, que me devorou corpo e alma, gastando rolos e rolos de filme imortalizando minha carne. Ao final de algumas noites não havia mais nada a revelar. Cada centímetro meu agora era dele e, em meio à embriaguez, percebi que só sabia seu nome e a marca da câmera que utilizava. Com isso mudei de postura, deixei de beber com ele no mesmo copo, deixei de ceder aos seus anseios fotográficos e, ao sair do palco, pela primeira vez cobri meu rosto para me defender da fome dos seus flashes. Era o término do nosso casamento, da aliança de fama e sexo que selamos no quarto de motel. Recebo então um envelope pardo, sem remetente, das mãos de um dos garçons escalados para aquela noite. Ele apontou a primeira mesa, onde havia dois copos de uísque e cinzas de um cigarro recém-fumado. O assento ainda estava quente quando me sentei para abrir a correspondência. Dentro, além de ver meu corpo exposto e praticamente virado do avesso, um bilhete que me oferecia fama e, ao mesmo tempo, o término da minha alegria. Desde então todos os olhos me comem. Maldito uísque. 91 43 Em meio segundo —N ossa! — Pois é, amigo. Não faço ideia de como chegamos até aqui. — Ué... Eu vim andando e você dentro de mim. — Não, cara. Tô falando de como a gente conseguiu uma mulher dessas. Afinal, você nem é tão bonito assim. — Verdade. Eu não sou nenhum galã de novelas. Deve ter sido meu papo. — Olha... Não é querendo me gabar, mas a gente só tá aqui com essa gata por minha causa. — Tá bom, então! Humildão! — Pensa um pouco. Você se limita a um metro de distância. Já eu sou coisa que emana e, diga-se de passagem, até que sou bem bonitinho. — Mas se não fosse por mim, o que seria de você? Talvez hoje você morasse dentro de um macaco ou algo assim, o que seria um desperdício. — Beleza, você me convenceu. Obrigado pela consideração! — Não foi nada, alma. Nós somos um time! — E que time, hein. A gente tem um belo golaço nos esperando na cama. — Com certeza! Mas será que eu posso te confessar uma coisa? — Claro, irmão. Diga. — Até quando isso vai durar? Tenho medo que acabe. — Depois de tantos anos com ela, acho que é meio difícil acabar. — Você não entendeu. Eu estou ficando velho e logo vou ter que partir. — Fica tranquilo, porque mesmo que você parta, um pedacinho seu sempre estará com ela. — E que pedacinho seria esse? — Eu. — É. Um mulherão desses a gente não pode deixar solto por aí, mesmo. Melhor perdê-la para um amigo do que para um desconhecido. — Perdê-la não, cara. Ganhá-la para todo o sempre. 92 44 Nos jardim dos otro O ia só esse povo correno feito maluco de um lado pro otro, tudo vistido de branco, mas branco bem branquinho memo. Eles nem deve me vê por aqui, varreno esse piso qui parece que num caba mais. Tamém, os dotô têm muita coisa pá fazê, doente pá cuidá, agúia pá espetá e é meió eu fazê meu trabaio, né? Ninguém mandô eu num estudá, muito pelo contrário. Minha mãe vivia dizeno pá mim sê diferente, mas parece que a jaca num cai muito longe do tronco. Num reclamo não. Bataiei demais pá tê minhas coisa e ó eu aqui, cheia de saúde. Varrê é qui mi ajuda a ficá bem assim, igual minha mãe. Ela morreu bem veinha, mas bunitona que só! Ceis tinha que vê. A preta num tinha uma ruga no rosto, e viveu até os oitenta ano varreno a casa das madama da cidade. Tá veno esse corredô? Eu faço assim: varro a recepção e vô ino até lá no fundo, depois viro e vô limpano as sala de espera. A sala de espera é triste de vê. Dói demais vê esse povo tudo caíno pelos canto, tussino, cum os machucado feio apareceno. Esses pobre coitado são diferentes dos dotô. Eles fica oiano a gente esperando qui nóis oie de volta. Deus qui mi perdoe, seu moço, mas eu acho qui é inveja de vê eu aqui, na minha idade, varreno com tanta alegria como varro. Ó. Depois que varro lá vô ino até o otro lado, onde fica os médico qui faz os parto. É coisa linda de vê! Eles corre empurrano as muié buchuda e depois elas sai magrinha com a criança nos braço. Sabe... 93 Antes de varrê aqui eu varria lá incima nos andar onde as muié qui teve nenê fica hospedada, recebe visita e presente pá mostrá a cria nova ao mundo. Minha mãe num teve isso não. Me pois no mundo sozinha, dentro do quartinho onde morava e no dia seguinte adivinha só o qui ela tava fazeno? Varreno! Senão num tinha o leite no otro dia. Essas muié aqui tem tanta sorte... recebe frada, ropa e um mundaréu de frô. E num é sorte só por causa das coisa não. Eu mema nunca consegui tê fio, e ficá perto dessas muié e essas criança chorano sem podê tê a minha me dava um aperto no coração. Por isso eu pedi pro patrão pá eu varrê lá imbaixo. Até ficava triste, mas como eu já disse, num reclamava não. No final do dia eu varria os quarto e juntava num cantinho todas pétala de frô qui caía dos buquê e ficava oiano, e só conseguia agradecê, porque minha véia me pois no mundo e me ensinô a varrê. Já pensô se a gente fosse mais parecida e ela tamém num pudesse tê fio? Eu num tava aqui pá recoiê as frô. 94 45 Dorme —E ra uma vez uma menina muito desengonçada, que vivia sozinha pelos cantos da escola. Ela tinha os cabelos tão loiros quanto os seus, olhos tão vivos quanto os seus, e era de uma pureza tão delicada quanto a sua. Mas essa menina estava triste, pois não tinha a quem abraçar nas noites de frio, nem mesmo ursinhos de pelúcia como o Ted, a Lulu e o Salsicha. Aliás, cadê o Salsicha? Ah, está aqui embaixo. Bom. Passaram os dias, meses, anos, e esta tão linda menina cresceu sem ninguém, agarrada aos sonhos durante o sono. Ela estudou muito para ficar inteligente, comeu todas as verduras para ficar forte e bonita e cultivou amizades verdadeiras para não ficar tão só. Ela cresceu. Ela ficou inteligente. Ela ficou bonita. Mas dentre todas as suas amizades não havia quem fizesse seu coraçãozinho correr em disparada, suas bochechas corarem de emoção ou suas mãos ficarem geladas com a esperança de um dia estarem eternamente agarradas às deste alguém. Mas num belo dia, quando a lua estava bem lá no alto do céu iluminando a tudo e a todos, eis que seu príncipe encantado surgiu. E como era bonito o príncipe. Ele também tinha os olhos muito vivos, como se prestasse atenção em tudo. Ele também tinha os cabelos bem loiros, como se o sol se enrolasse neles para tirar uma soneca. Tinha uma voz potente e ao mesmo tempo delicada, que embalava a menina, que já não era mais tão menina, até pegar no sono observando o movimento 95 dos seus lábios e o vaivém da camisa enquanto ele respirava. Por muitas e muitas vezes dormiu escutando o som daquele coração, tentando entender os motivos, as alegrias e as tristezas que o acompanhavam. Só que o sono sempre chegava antes de o coração começar a falar, e ela nunca conseguiu entender as coisas que passavam lá dentro de cada tum tum. E os tum tuns iam ficando cada vez mais longe, e longe. E os sonhos cada vez mais perto. E em um desses sonhos, enquanto a menina dormia, o coração daquele moço chegou de mansinho, sussurrando baixinho, muito pertinho, para lhe entregar um presente. E depois que entregou o presente o coração do moço teve que voltar para dentro do sonho e para longe da menina, que já não conseguia mais escutá-lo. Aquele foi o maior sono que ela já teve. Dormiu mais que a Margot. E olha que essa gata dorme demais! E quando a menina acordou, e se espreguiçou tão gostoso quanto a Margot, viu que tinha se tornado mulher. E no seu colo estava o presente que o coração do moço deixou no sonho. Era uma menininha tão pequena que cabia na palma da mão. E era linda, linda, linda como você. A menina, que agora já era mulher, desejou então que aquele presente pudesse crescer tão forte e tão bonito quanto ela, para poder encontrar seu próprio príncipe encantado e, quem sabe, decifrar os segredos do seu coração, sem medo de ser feliz. — Boa noite, meu amor. — Mamãe — entre bocejos e longas piscadelas não deixou que sua mãe saísse do quarto —, a moça da história é você? — Sou eu sim, pequena — voltou para a cabeceira da cama e afagou os longos cabelos loiros da filha —, e você é o melhor presente que eu já ganhei. — E o príncipe é o papai, né? — Dorme, querida. Dorme. 96 97 naomefazpensar.com [email protected] @Carrico Esta obra foi composta em fonte Baskerville. Miolo em papel Pólen 80 g/m², capa em Supremo 250 g/m², impressa pela Singular em maio de 2013.