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“Orientação Dos Gatos”
Julio Cortazar, tradução de Remy Gorga Filho
In: Orientação dos Gatos. Ed. Nova Fronteira, 1981.
Título original: “Orientación de los Gatos”
In: Queremos Tanto a Glenda, 1980
Ilustrações e Projeto Gráfico:
Marcio Zamboni
Trabalho premiado no 18o Programa Nascente
da Pró Reitoria de Cultura e Extensão da USP
(Vencedor da Categoria Design).
Versão desenvolvida para impressão,
disponível gratuitamente em:
www.marciozamboni.com.br
I.
Quando Alana e Osíris me olham não posso queixar-me da menor dissimulação, da menor falsidade.
Olham-me de frente, Alana sua luz e Osíris seu raio
verde. Também entre eles se olham assim, Alana
acariciando o negro lombo de Osíris que levanta o
focinho do prato de leite e mia satisfeito, mulher e
gato conhecendo-se em planos que me escapam,
que os meus carinhos não conseguem superar. Faz
tempo que renunciei a toda autoridade sobre Osíris,
somos bons amigos a uma distância intransponível;
mas Alana é minha mulher e a distância entre nós é
outra, algo que ela parece não sentir mas que se interpõe em minha felicidade quando Alana me olha,
quando me olha de frente que nem Osíris e me sorri
ou me fala sem a menor reserva, dando-se em cada
gesto e cada coisa como se dá no amor, ali onde seu
corpo é como seus olhos, uma entrega absoluta, uma
reciprocidade ininterrompida.
VII.
Chegávamos ao final da galeria, aproximei-me da
porta de saída, ainda ocultando o rosto, esperando
que o ar e as luzes da rua me fizessem voltar ao que
Alana conhecia de mim. Eu a vi deter-se diante de
um quadro que outros visitantes me haviam ocultado, ficar longamente imóvel olhando a pintura de
uma janela e um gato. Uma última transformação
fez dela uma lenta estátua nitidamente separada das
demais, de mim que me aproximava indeciso procurando-lhe os olhos perdidos na tela. Vi que o gato
era idêntico a Osíris e que olhava ao longe algo que a
parede da janela não nos deixava ver. Imóvel em sua
contemplação, parecia menos imóvel que a imobilidade de Alana. De algum modo senti que o triângulo
se rompera, quando Alana virou para mim a cabeça
o triângulo não mais existia, ela havia ido ao quadro
mas não estava de volta, continuava do lado do gato
olhando além da janela onde ninguém podia ver o
que eles viam, o que somente Alana e Osíris viam
cada vez que me olhavam de frente.
•
II.
É estranho, embora tenha renunciado a entrar completamente no mundo de Osíris, meu amor por Alana
não aceita essa simplicidade de coisa concluída, de
casal para sempre, de vida sem segredos. Atrás desses olhos azuis há mais, no fundo das palavras e dos
gemidos e dos silêncios anima-se outro reino, respira
outra Alana. Nunca a disse isso, quero-a demais para
não trincar essa superfície de felicidade pela qual já
deslizaram tantos dias, tantos anos. A meu modo,
teimo em compreender, em descobrir; observo-a
sem espiá-la; sigo-a sem desconfiar; amo uma maravilhosa estátua mutilada, um texto inacabado, um
fragmento de céu inscrito na janela da vida.
VI.
Diante de um barco solitário e um primeiro plano
de rochas negras, a vi permanecer imóvel um longo
tempo; um imperceptível ondular das mãos fazia-a
como nadar no espaço, buscar o mar aberto, uma
fuga de horizontes. Eu não podia mais estranhar que
essa outra pintura, onde uma cerca de agudas pontas
vedava o acesso às árvores vizinhas, a fizesse retroceder como que buscando um ponto de mira, de repente era a repulsa, a recusa de um limite inaceitável.
Pássaros, monstros marinhos, janelas dando-se ao
silêncio ou deixando entrar um simulacro da morte,
cada nova pintura arrasava Alana, despojando-a de
sua cor anterior, dela arrancando as modulações da
liberdade, do vôo, dos grandes espaços, afirmando
sua negativa diante da noite e do nada, sua ansiedade solar, seu quase terrível impulso de ave fênix.
Permaneci atrás sabendo que não me seria possível
suportar o seu olhar, a sua surpresa interrogativa
quando visse em minha cara o deslumbramento da
confirmação, porque isso era também eu, isso era o
meu projeto Alana, a minha vida Alana, isso tinha
sido desejado por mim e refreado por um presente de
cidade e moderação, isso agora afinal Alana, enfim
Alana e eu desde agora, desde agora mesmo. Teria
querido tê-la nua nos braços, amá-la de tal maneira
que tudo ficasse claro, tudo ficasse dito para sempre
entre nós, e que dessa interminável noite de amor,
nós que já conhecíamos tantas, nascesse a primeira
alvorada da vida.
III.
Houve um tempo em que a música me pareceu o
caminho que me levaria de fato a Alana; vendo-a ouvir nossos discos de Bártok, Duke Ellington, Gal Costa, uma transparência paulatina me afundava nela, a
música a despia de uma maneira diferente, a tornava
cada vez mais Alana porque Alana não podia ser somente essa mulher que sempre me tinha olhado de
frente me esconder nada. Contra Alana, mais além
de Alana, eu a buscava para amá-la melhor; e se no
começo a música me deixou entrever outras Alanas,
chegou o dia em que, diante de uma gravura de Rembrandt, eu a vi mudar ainda mais, como se um jogo
de nuvens no céu alterasse bruscamente as luzes e as
sombras de uma paisagem. Senti que a pintura a levava para além de si mesma a esse único espectador
que podia medir a instantânea metamorfose nunca
repetida, a entrevisão de Alana em Alana. Intermédiarios involuntários, Keith Jarret, Beethoven e Aníbal
Troilo me haviam ajudado na aproximação, mas frente a um quadro ou a uma gravura Alana se despojava ainda mais disso que acreditava ser, por um momento entrava em um mundo imaginário para sem
saber sair de si mesma, indo de uma pintura a outra,
comentando-as ou calando, jogo de cartas que cada
nova contemplação embaralhava para aquele que silencioso e atento, um pouco atrás ou levando-a pelo
braço, via sucederem-se as rainhas e os ases, os ouros e os paus, Alana.
V.
Até então tudo tinha sido um vago aviso, Alana na
música, Alana diante de Rembrandt. Mas agora
minha esperança começava a se cumprir quase insuportavelmente, desde nossa chegada Alana entregara-se às pinturas com uma cruel inocência de
camaleão, passando de um estado a outro sem saber
que um espectador escondido observava em sua atitude, na inclinação de sua cabeça, no movimento de
suas mãos ou seus lábios, o cromatismo interior que
a percorria até mostrá-la outra, ali onde a outra era
sempre Alana somando-se a Alana, as cartas juntando-se até completar o baralho. A seu lado, avançando
pouco a pouco ao longo das paredes da galeria, eu a
via entregar-se a cada pintura, meus olhos multiplicavam um triângulo fulminante que se estendia dela
ao quadro e do quadro a mim mesmo para voltar a
ela e apreender a transformação, a auréola diferente
que a envolvia um momento para depois ceder a uma
nova aura, a uma tonalidade que a expunha à verdadeira, à última nudez. Impossível prever até onde se
repetiria essa osmose, quantas Alanas me levariam
por fim à síntese da qual sairíamos os dois saciados,
ela sem sabê-lo e acendendo um novo cigarro antes
de me pedir que a levasse para tomar um trago, eu
sabendo que minha longa busca chegara ao fim e que
meu amor abarcaria a partir de agora, o visível e o
invisível, aceitaria o límpido olhar de Alana sem incertezas de portas fechadas, de passagens vedadas.
IV.
O que se podia fazer com Osíris? Dar-lhe seu leite, deixá-lo em seu negro novelo confortável e ronronante;
mas eu podia trazer Alana a esta galeria como o fiz
ontem, mais uma vez, para assistir a um teatro de
espelho e câmaras escuras, de imagens tensas na tela
frente a essa outra imagem de alegres jeans e blusa
vermelha que depois de esmagar o cigarro à entrada
ia de quadro em quadro, detendo-se exatamente à
distância que seu olhar requeria, voltando-se para
mim de vez em quando para comentar ou comparar.
Jamais teria podido descobrir que eu não estava
ali pelos quadros, que um pouco atrás ou de lado a
minha maneira de olhar nada tinha a ver com a dela.
Jamais perceberia que sua lenta e reflexiva passagem
de quadro em quadro a transformava até me obrigar
a fechar os olhos e lutar para não apertá-la nos braços e levá-la ao delírio, a uma loucura de correr em
plena rua. Desenvolta, leve em sua naturalidade de
prazer e descoberta, suas paradas e demoras inscreviam-se em um tempo diferente do meu, estranho à
tensa espera de minha sede.