ANO 1 N. 1 Janeiro de 2008 - CEDEM
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ANO 1 N. 1 Janeiro de 2008 - CEDEM
1 ANO 1 N. 1 Janeiro de 2008 CADERNOS CEDEM 2 SUMÁRIO Apresentação Célia Reis Camargo............................... 4 Artigos O Historiador e a Sociedade Emília Viotti da Costa ............................ 8 A biografia e a História Teresa Maria Malatian ......................... 16 Os militares e o PCB Geraldo Lesbat Cavagnari Filho .......... 32 A crítica (materialista) do mundo (descontínuo) das coisas - micrologias Sobre Rua de mão única (Benjamin), Vestígios (Bloch) e Os empregados (Kracauer) Carlos Eduardo Jordão Machado ........ 37 Depoimentos Antonio Soares Amora ......................... 49 Documentos do acervo O 1º Congresso de Escritores e o arquivo Astrojildo Pereira Tania Regina de Luca ........................ 101 Documento 1 – Declaração de Princípios aprovada pelo I Congresso Brasileiro de Escritores Documento 2 – Ata da 2ª Reunião da Comissão de Assuntos Políticos Carta assinada por “Um homem do povo” a J. N, de maio de 1936. Luis Alberto Zimbarg .......................... 111 Documento Notícias Eventos realizados no CEDEM no ano de 2007 .................................. 139 Normas para publicação ....... 143 Mário Rubens Guimarães Montenegro 76 Expediente .................................... 145 ANO 1 N. 1 Janeiro de 2008 Debates Tempos de ditadura militar: resistência e cultura ................................................... 82 3 apresentação Célia Reis Camargo Coordenadora do CEDEM UNESP/Assis Em 2007 o CEDEM comemorou 20 anos de existência. Uma idéia acalentada há muito tempo encontrou nessa efeméride o momento ideal para ser retomada, abrindo-se uma nova frente de trabalho. A publicação CADERNOS CEDEM carrega a intenção de divulgar, na forma de textos, artigos e documentos, o potencial de pesquisa do acervo gerenciado pelo CEDEM, apontando para as inúmeras possibilidades que ele encerra, dialogando com estudiosos de áreas diversas e difundindo os resultados obtidos nos vários domínios científicos, envolvidos no tratamento desse universo temático e no uso dessas fontes e informações. Atenção especial será dada à interação entre o CEDEM e a produção dos diversos departamentos da UNESP. Somos uma universidade multi-campi, distribuída por 23 cidades do Estado de São Paulo, condição que exige esforços redobrados de cooperação e de intercâmbio de informações. 4 Os temas contemplados pelos CADERNOS referem-se particularmente aos estudos e fontes sobre a história da universidade e da comunidade científica e, de outro lado, sobre a história política brasileira contemporânea, com ênfase para a atuação da esquerda e para os movimentos sociais, universos abrangidos por nossas linhas de acervo. É intenção que os CADERNOS também divulguem a produção técnica do CEDEM, de outros centros de documentação e de entidades similares, no tocante às discussões próprias da arquivística, da documentação e do gerenciamento de informações, apresentando trabalhos de natureza teórica, metodológica e – muito importante – relatos de experiências, matéria de que ainda somos muito carentes, no Brasil, nesse campo de atividade. Nesse sentido, os CADERNOS dirigem-se não apenas ao pesquisador ou ao interessado nas áreas afins ao acervo. Forma um lugar de diálogo com as instituições que perseguem os mesmos objetivos de preservação e uso do patrimônio histórico. Finalmente, um objetivo particularmente relacionado ao que fazemos no CEDEM: a publicação de produtos e resultados dos eventos promovidos (debates, entrevistas, conferências, dentre outros) e de documentos importantes e pouco conhecidos que integram os conjuntos documentais sob nossa guarda. A expectativa é que se possa ir além do simples, embora necessário e justo, propósito de criar um veículo de divulgação científica, atrelado a um órgão universitário que disponibiliza fontes para a pesquisa social. É tratar das particularidades de nosso trabalho, do potencial de uso das fontes e informações que produzimos e disponibilizamos, discutir os compromissos sociais da produção acadêmica contemporânea, posicionar as possibilidades da pesquisa voltada para os estudos políticos e dos movimentos sociais brasileiros, não deixando de levar em conta a intensa produção e as contribuições que nos tem trazido a história cultural e a as investigações focadas na interpretação das culturas. Para que fique visível, definitivamente, para os administradores da ciência, que o desenvolvimento das ciências humanas também exige a criação e manutenção de laboratórios. Os centros de documentação que foram e são criados nas universidades brasileiras são esses laboratórios. Em torno da especialização das áreas e das fontes documentais de pesquisa que eles reúnem, aproximamse diferentes tipos e grupos de pesquisadores, incluindo o cidadão comum. É inevitável surgirem projetos coletivos de pesquisa e de trabalhos cooperativos, envolvendo a universidade e inúmeros segmentos sociais. Nossos alunos, a sociedade brasileira, as gerações futuras serão gratos, certamente. Por tudo isso, o conteúdo desse primeiro número não se estrutura em uma temática específica, apresentando uma amostra do que é possível produzir e publicar a partir dessas expectativas. Os documentos de nosso acervo que estão reproduzidos neste número foram selecionados cuidadosamente, como uma das expressões possíveis de sua natureza e perfil. Integram o arquivo 5 pessoal de Astrojildo Pereira, personagem emblemático das lutas políticas no Brasil. São precedidos por notas introdutórias e comentários. Tânia Regina de Luca apresenta a Ata da Comissão de Assuntos Políticos do 1º. Congresso de Escritores, promovido pela Associação Brasileira de Escritores – ABDE, realizado em 1945, e a sua Declaração de Princípios, revelando os debates sobre a função e o papel dos intelectuais, em plena luta contra todas as formas de fascismo. Luis Zimbarg, historiógrafo do CEDEM, apresenta uma carta de 1936, de Astrojildo Pereira, identificando a busca de entendimentos entre diversas forças políticas atuantes naquele momento, para a defesa do sistema democrático. Tempos da Ditadura Militar: resistência e cultura reproduz uma das seções de debates promovidos pelo CEDEM por ocasião da passagem dos 75 anos do partido Comunista no Brasil, discussões protagonizadas por Marcelo Ridenti, Martin César Feijó e João Quartim de Moraes. O CEDEM dispõe do registro de todos os seus eventos – verdadeiros tesouros de informação e de reflexão – que serão divulgados sistematicamente, conforme os temas que futuramente venham a constituir os números da revista. Na seção Depoimentos foram editadas as entrevistas concedidas ao Projeto Memória da Universidade pelos professores Antonio Augusto Soares Amora e Mário Rubens Guimarães Montenegro, participantes fundamentais da criação, respectivamente, da Faculdade de Filosofia de Assis e da Faculdade de Medicina de Botucatu, unidades universitárias da UNESP. A publicação desses relatos contribui com o entendimento do fazer acadêmico, de suas lutas, utopias, conflitos, ideologias. Fazem parte de nossa história política. Assunto tratado de perto por Teresa Malatian ao abordar a biografia na produção historiográfica, seu estatuto na História, pontuando os diversos caminhos conceituais trilhados por estudos dessa natureza e a atual retomada, vigorosa, do gênero biográfico, discu- tindo o lugar do indivíduo na trama social. Traz subsídios fundamentais para os estudos da história política brasileira e fundamentos teóricos que apóiam o desenvolvimento dos trabalhos do Projeto Memória da Universidade, eixos de sustentação das atividades do CEDEM. Relaciona-se, inclusive por seus apontamentos, ao artigo de Geraldo Lesbat Cavagnari Filho, que analisa Luiz Carlos Prestes e a Coluna, privilegiando a dimensão militar ao invés da política, que sempre foi predominante na produção historiográfica. Nosso lastro filosófico ficou, desta vez, com Carlos Eduardo Jordão Machado, que nos trouxe Bloch, Benjamin e Kracauer, expondo e discutindo aspectos de suas narrativas e a proximidade de suas posições políticas e teóricas. Por fim, o artigo de Emília Viotti da Costa, que abre os CADERNOS. Não foi por acaso. Trata-se de aula inaugural por ela ministrada, assistida por número restrito de alunos. As questões para as quais apontou ainda não estão resolvidas pela historiografia. Algumas delas 6 tocam a base do conceito de representação social, um dos mais utilizados na pesquisa social e historiográfica das duas últimas décadas. Abordando as relações entre o historiador e a sociedade, trata das posições conservadoras assumidas por alguns de seus representantes mais notáveis. E, ao tratar de posições conservadoras, tangencia o conteúdo de nosso acervo, voltado para a história política e para os movimentos sociais. Universidade e política, pesquisa e compromissos sociais. Memória. Está aí outro grande motivo de trazer esta aula a público. Não se pode esquecer o fato de que fomos privados, durante décadas, do convívio com a Professora Emília, por ter sido obrigada a sair do país, “aposentada” pela ditadura militar, prosseguindo sua carreira acadêmica nos Estados Unidos. Suas aulas sempre foram fonte de reflexão permanente. Esta aula inaugural é um presente para nossos alunos. Afinal de contas, eles são a nossa razão maior. 7 O Historiador e a Sociedade1 ARTIGOS Emília Viotti da Costa Professora Emérita da Universidade de São Paulo As relações entre o historiador e a sociedade caminham numa via dupla. O trabalho do historiador, queira ele ou não, é produto da sociedade e do tempo em que vive. A vivência do presente afeta a construção do passado. Ao mesmo tempo, o posicionamento do historiador na sociedade marca os limites de sua visão. Suas experiências definem suas motivações e explicam porquê e para quê ele se debruça sobre a história. Seu projeto inspira-se em problemas sugeridos pela posição que assume na sociedade. Seus temas e seu método são função dos objetivos que pretende alcançar e das razões que o levam a estudar a história. Sua própria definição do que é história nasce a partir dessas coordenadas. Por outro lado, a versão que o historiador apresenta do passado, contribui para a preservação ou para a mudança da sociedade. Isso confere ao historiador enorme 1 Aula inaugural do Departamento de Historia da USP em 1998 proferida pela Professora Emília Viotti da Costa 8 responsabilidade e requer de todo aquele que se dedica a essa tarefa uma profunda reflexão sobre a natureza dessas relações, a fim de evitar que venha a descobrir tarde demais que tomou a via errada. Quem ingressa no curso de História de uma Universidade estará iniciando uma longa conversa que encaminhará a discussão desses problemas durante todo o curso. Justifica-se, assim, que, apesar da impossibilidade de levantarmos, hoje, todas as questões que o tema sugere, estejamos aqui reunidos para dar início a esse debate. Quero apresentar dois exemplos que elucidam algumas dessas questões. Para isso, escolhi deliberadamente dois historiadores conservadores. Os que me conhecem ou leram meus trabalhos, certamente, se espantarão diante dessa escolha. Minha vida tem sido uma recusa permanente da posição conservadora que no Brasil significa a perpetuação de uma sociedade imensamente desigual e injusta, que é, ao mesmo tempo, a origem e o resultado do precário desenvolvimento econômico e do crescente mal-estar social que hoje atinge não só as classes subalternas, como também setores da classe média. Porém, tendo em vista que hoje existe uma tendência conservadora bastante forte na historiografia, da qual os próprios historiadores que a praticam nem sempre chegam a ter consciência, achei conveniente examinar quais foram as origens e os pressupostos dessa historiografia. Para isso, nada melhor do que examinar momentos que no passado levaram alguns historiadores brilhantes a pôr em circulação uma visão conservadora e elitista do mundo, num movimento que hoje se repete, uma visão que, embora hoje se apresente como inovadora, representa de fato uma volta ao passado. Nesta conversa quero referir-me a dois famosos autores. O primeiro, Jacob Burkhardt, viveu no século XIX (18181893), mas até hoje é considerado um historiador exemplar. O segundo, Phillipe Ariès, (1914-1984), também muito popular nos dias que correm, publicou seus primeiros trabalhos no fim da década de 1940 e teve uma de suas primeiras obras reeditadas em português nos fins da década de 1980. Jacob Burkhardt, foi conhecido no Brasil por sua obra sobre a cultura e a Civilização da Renascença, não por acaso analisado na obra de Hayden White, Meta História: Imaginação Histórica no Século XIX, de onde extraí a maioria dos dados referentes a Burkhardt. Vivendo na Europa durante o século XIX, Burkhardt, suíço de origem e de formação calvinista, foi professor durante boa parte de sua vida na Universidade da Basiléia, onde ensinou de 1843 a 1852 e de 1858 a 1893. Durante sua vida foi testemunha de numerosas revoluções liberais e conflitos sociais que sucederam à Revolução Francesa e abalaram a Europa até pelo menos o princípio do século XX, quando a Revolução Russa deu início a um novo ciclo revolucionário. Politicamente, Burckhardt era um liberal que, como muitos outros que viveram numa época de grandes transformações sociais e políticas, reage negativamente às revoluções e aos processos de democratização que lhe parecem avassaladores. Algo parecido sucedeu 9 ao nobre francês, Alexis de Toqueville (1805-1859), o qual, diante do inevitável avanço revolucionário, lembrou às elites francesas que era melhor guiar o processo do que se opor a ele. Para isso, foi aos Estados Unidos conhecer a democracia. Dessa viagem resultou um livro: A Democracia na América, publicado em dois volumes. O primeiro em 1835 e o segundo em 1840, que posteriormente tiveram numerosas edições e são, até hoje, lidos com proveito por aqueles que se encontram diante de dilemas semelhantes e têm os mesmos receios a respeito da ascensão das massas e do pleno funcionamento da democracia. As respostas de Burkhardt aos desafios de seu tempo são, no entanto, diversas das de Tocqueville. Enquanto este parece encontrar uma solução na noção muito comum, desde então: façamos reformas antes que o povo as faça, Burckhardt se retrai diante do que pensa ser a massificação da sociedade, a decadência da cultura. Refugiase no esteticismo na histoire tableau, na contemplação de tempos, a seu ver, mais “virtuosos”. Descrevendo a experiência de Burkhardt, Hayden White, o autor de Meta História, comentou que Burkhardt observou um mundo em que a virtude fora habitualmente traída, o talento pervertido e o poder posto a serviço de causa torpe. Vira muito pouca virtude em sua própria época e não encontrara nada a que pudesse dar sua adesão irrestrita. Sua devoção era à cultura da velha Europa, mas a considerava decadente, uma ruína impossível de restaurar. Apenas lhe restava, portanto, relembrá-la com nostalgia. Burkhardt desprezava a política por julgá-la incompatível com os gostos de um cavalheiro, tão incompatível quanto os negócios. Na sua opinião, a política desviava o indivíduo daquele assíduo culto da elegância que admirava nos antigos gregos e nos italianos do Renascimento. “Nunca pensaria em me tornar um agitador e um revolucionário”, diria ele em 1843, quando por toda parte na Europa preparavam-se revoluções. As revoltas e insurreições que puseram um fecho à década de 1840 abalaram-lhe a fé no liberalismo. Sua querida Basiléia, para onde fora com o fim de ensinar na Universidade, foi violentamente sacudida pela guerra civil, e ele sentiu que tudo que valorizava na velha cultura européia estava sendo ameaçado pelos radicais. Na ocasião observou: (...) tenho demasiado conhecimento da história para saber que não devo esperar do despotismo das massas senão uma tirania futura que significará o fim da história. Quero livrar-me de todos eles, dos radicais, dos comunistas, dos industriais, dos intelectuais, dos presunçosos, dos argumentadores e assim por diante, enfim dos “istas” e dos “ismos” de toda espécie. Pretendo viver uma vida privada, ser um amigo afetuoso, uma boa alma, não posso ter nada a ver com a sociedade em geral. A partir de então, Burckhardt refugiou-se numa torre de marfim. Finalmente, a partir de 1860, embora tivesse atingido o pináculo de sua carreira e fama, recusou-se a publicar. Assistia ao fracasso do liberalismo, previa como conseqüência o nihilismo e negava-se a 10 entrar na luta. Julgava que seu isolamento o eximia de qualquer responsabilidade ulterior pelo caos vindouro. Criou uma teoria da sociedade e da história a partir dessas experiências. Dedicou-se ao estudo da cultura da Renascença e da Grécia. Nos seus trabalhos voltou-se para a arte e a arquitetura. A história da cultura o atraía, focalizou a vida social das elites. Recusou-se a aceitar a existência real dos acontecimentos e encontrou justificativa na filosofia de Schopenhauer, (1788-1860), autor de O Mundo como Vontade e Representação, com quem ele convivera na Universidade da Basiléia, filósofo que serviu no passado e continuaria a servir no presente de inspiração para a direita política. A concepção de mundo de Schopenhauer satisfaria as necessidades de muitos intelectuais do terceiro quartel do século. Sua filosofia refletia o clima que se instaurou na Europa depois da Restauração monárquica na França, quando o os Bourbons foram chamados a assumir de novo o trono da França. Embora tivesse sido concebida na segunda década do século XIX, a filosofia de Schopenhauer só recebeu atenção a partir de 1850. Todo seu sistema era uma tentativa de desqualificar a história e demonstrar porque as preocupações sociais e os interesses históricos são irrelevantes. Esta visão reacionária, egoísta e pessimista expressava, segundo Hayden White, o ponto de vista da classe média alemã da época. O mundo social de Schopenhauer era um agregado de indivíduos atomizados, cada qual aprisionado dentro dos próprios desejos, indivíduos colidindo uns com os outros em movimentos aleatórios, cada um parecendo simplesmente um possível meio de satisfação egoísta para todos os demais. No sistema de Schopenhauer, a história ocupava uma posição secundária, pois ele se fundava na convicção que não existia uma realidade objetiva independentemente da consciência que a percebe. Para ele, que não acreditava na objetividade do processo histórico, o trabalho do historiador limitava-se a selecionar os materiais históricos, aceitando-os ou rejeitando-os à vontade, a fim de convertê-los em uma imagem agradável de contemplar. O conhecimento histórico era pois uma forma de cognição de segunda ordem. Algo muito parecido acontece hoje, quando se nega qualquer objetividade ao conhecimento histórico e se fala no fim da história. A visão da história de Schopenhauer aproxima-o mais de um Tucídedes, que inventava discursos para seus personagens, do que de seu contemporâneo, o historiador Leopold Ranke, o qual vivia obcecado em descobrir o que realmente acontecera no passado e como recuperá-lo. Para Schopenhauer a ficção era superior ao fato. Todas as instituições sociais eram despojadas de qualquer valor e todos impulsos sociais eram vistos como erros ou falhas. Sua filosofia era profundamente narcisista. Sua visão ajustava-se perfeitamente às necessidades daqueles segmentos da sociedade que, como Burkhardt, queriam ignorar por completo as questões sociais. Era visível a repugnância de Schopenhauer pela sociedade em que vivia e sua recusa de qualquer ação pública ou privada, 11 visando mudar a sociedade para melhor. Para ele, a história aparecia como refúgio da realidade presente, permitindo ao historiador, isolar-se da sociedade em que vive - filosofia escapista, de que Burkhardt partilhou.2 Ao estudar a Revolução Francesa, ao contrário de Tocqueville que procurou ver o que com ela se ganhou e se perdeu, Burkhardt só viu perdas. Não é de espantar que sua visão de futuro tenha sido tão negativa quanto a de Johan Huizinga (1862-1945), autor do Ocaso da Idade Média, e de Oswald Spengler (1880-1936), autor da A Decadência do Ocidente (1919), bem como outros intelectuais preocupados com a decadência do Ocidente. Dentro desse quadro, e tendo em vista sua filosofia de vida, a única decisão que Burkardt poderia tomar era recolher-se, cultivar seu jardim, partir em busca do tempo perdido e esperar que a loucura presente se dissipasse. Talvez depois, passado o caos, a cultura mais uma vez pudesse ser revigorada. No presente, no entanto, para Burkardt, nada havia a fazer senão deixar a cidade pelo campo e aguardar; cultivar a conversa com alguns seletos espíritos afins, exibindo um consistente desdém pelas atividades dos homens práticos ou engajados. Finalmente, Bukhardt coloca-se entre os historiadores que cultivam a história monumental e os que praticam a história antiquária ou revelam uma religiosa reverência pelo passado e vêem a história como contemplação do passado e fuga do presente. Dessa breve análise, pode-se concluir que existe uma íntima relação entre a obra histórica de Burkhardt, seu pensamento sobre a história, seu posicionamento dentro da sociedade de seu tempo e as teorias filosóficas que reduzem a história a um conhecimento de segunda ordem: filosofia e histórias eminentemente conservadoras, brotadas num período histórico entre a Revolução Francesa e a Revolução Soviética, período paradoxal, agitado por muitas revoluções frustradas, como as de 1848 ou a Comuna de Paris em 1871, mas durante as quais setores populares ganharam uma presença marcante na sociedade e passaram a ser vistos como ameaça por setores das classes dominantes. Há inegavelmente um vínculo entre historiadores como Burkhardt e filósofos como Schopenhauer. Produziram uma história e uma filosofia conservadoras, numa época em que o movimento operário abria novas possibilidades para a reflexão sobre a história, e em que Karl Marx, confrontando-se com os mesmos eventos, procurava criar uma ciência da história que permitisse aos homens transformar a sociedade, a fim de torná-la mais democrática. Quase um século mais tarde, depois que o mundo assistira à Primeira Grande Guerra (1914-1918); à Revolução Bolchevique na Rússia (1917); à Grande Depressão econômica dos anos trinta; e ao início de uma nova guerra (1939-1945), um outro historiador, Philipe Ariès (1914-1984), definia sua posição em relação à história e à sociedade num 2 Hayden White observa que o filósofo Nietzsche e o escritor Thomas Mann, também, foram inicialmente influenciados por Schopenhauer, mas logo o abandonaram, enquanto o compositor Wagner continuaria por toda vida seu fiel seguidor. 12 livro publicado na França, com o título Le temps et L’histoire (posteriormente traduzido para o português). O livro reúne ensaios escritos por ele, na maioria entre o fim da Segunda Grande Guerra e o início da Guerra Fria (1947), isto é, aproximadamente entre 1946 e 1949. Para entender Ariès é preciso localizá-lo no seu tempo e examinar a posição que ocupava na sociedade, os problemas que se colocavam no período de após guerra, as opções que se abriam e as escolhas que fez Só assim poderemos começar a compreender sua posição em relação à história. Ariès, como ele mesmo nos informa, nasceu de uma família abastada, monarquista e religiosa, leitora assídua do jornal conservador Action Française. A família vivera parte de sua vida nas Antilhas e outra parte na França, numa cidade provinciana. Ariès pertencia a uma comunidade onde os laços de família lhe pareciam sólidos. Vivia num verdadeiro oásis, segundo sua própria caracterização, onde a preocupação com a vida pública não existia, Ariès confessa: “Porque vivia num oásis, eu vivia fora da História (...)”. A história que chegava a ele, através da memória familiar, era subjetiva e seletiva: falava das glórias passadas, não do sofrimento do povo. Diz Ariès: “Não era a história nua e hostil que invade e arrasta, a história onde estamos e somos, fora do frágil recinto vedado das tradições familiares”. Era uma transposição poética da História, um Mito da História. Absorvia a lenda, não a história. Seus contemporâneos eram São Luiz, Luiz XVI e os mártires da Revolução. Aos seus ouvidos atentos de criança chegavam histórias sobre os felizes tempos dos reis de França, Quando jovem devorava os livros de memórias do século XVIII, da Revolução Francesa e da Restauração. Não é, pois, de estranhar que ele nos diga que, assim que foi capaz de conceber a idéia de um tempo histórico, ela se fez acompanhar de “uma nostalgia pelo passado (...)”. Ariès olhava para o passado, não para o futuro. O passado, idealizado e poetizado, servia-lhe para avaliar o presente que lhe parecia ameaçador, como parecera a Burkhardt um século antes. Na juventude dedicou-se à genealogia dos reis de França, os Capetos. Em 1946, já homem feito, ainda se apegava à história poética e repudiava a história que almejava a foros de ciência e a busca de objetividade. Confrontando-se com os desafios que a presença do marxismo representava para os homens de sua geração, Ariès refugiava-se na história das pequenas comunidades familiares da burguesia provinciana e do campesinato. Dedicouse a elaborar questionários que visavam recapturar a memória de pessoas que viviam nessas comunidades, procurando estabelecer uma mediação entre memória e história. Seu interesse correspondia aos dos setores da burguesia francesa que cultivavam, cada vez mais, uma nostalgia pela “antiga França”, apegando-se a uma imagem idealizada, quase mítica que construíam a respeito do passado. Pouco a pouco, a interpretação desfavorável à França pré-revolucionária, que fora hegemônica desde a Revolução, cedia lugar a uma favorável que desembocaria nos nossos dias em uma total inversão 13 das teorias que avaliavam a Revolução Francesa como uma grande conquista. Ela passou a ser vista por alguns como um grande desastre, numa reversão total da historiografia tradicional. Diante da historiografia do seu tempo, Ariès fazia opção pela versão conservadora. Preocupava-se, no entanto, em dar-lhe a vida que lhe faltava. Queria escrever uma história em que os elementos humanos não perdessem nem sua individualidade, nem sua singularidade. Em lugar das crônicas políticas abstratas, tradicionais, propunha uma história dos costumes. Tentando sintetizar o dilema da história naquele momento (1947) dizia: “Confrontados com a história [e aqui ele se referia à história que vivia no presente e não à historiografia] criamos a direita e a esquerda uma máquina abstrata, cujas leis pretendemos no mesmo instante conhecer (...).” Era contra essa história que lhe parecia desumanizada e abstrata, que negligenciava a experiência individual, que Ariès, como muitos outros de sua geração, se insurgira. Entre as opções de seu tempo, à esquerda ou à di- reita, escolhera esta. Outros tentaram dar vida nova ao liberalismo, ou a promover o socialismo. Analisando o que se passava em seu tempo, Ariès contrastava um tempo passado em que as pessoas podiam viver isoladas da política, e um tempo que ele datava de 1940, quando todos foram chamados a se definir a favor ou contra a colaboração com os alemães ou a resistência, momento em que o privado foi invadido pelo público, o que ele caracteriza como uma monstruosa invasão do homem pela história, um momento em que o pacato meio familiar parece destruído pela política. Nazismo e comunismo forçam a definição política; a politização da vida privada parece-lhe total. Nessas condições proliferaram os testemunhos, os relatos pessoais e subjetivos. Os dramas pessoais tornaram-se história. Ao mesmo tempo que os indivíduos pareciam perder a individualidade nos movimentos coletivos, afirmava-se com maior intensidade a sua consciência de indivíduo. Essa contradição aparece em toda a literatura da época e é bem clara na obra do filósofo Jean Paul Sartre (1905-1980), que tenta resgatar o indivíduo dentro do Marxismo e faz a apologia do intelectual engajado. Veja-se sobre isso: Question de Methode, em Critique de la Raison Dialetique. Os que como Ariès se apegaram ao passado e recusaram os envolvimentos políticos, ao invés de historizarem a experiência dos indivíduos, como faziam os autores de testemunhos do período de pós-guerra, particularizaram a história, reduzindo-a à experiência do indivíduo. O testemunho, dirá Ariès, não é a narrativa desprendida de um observador que enumera ou de um sábio que demonstra, mas uma confissão. É para o testemunho, para a memória, para a história dos costumes que Ariès se inclina. Critica a historiografia acadêmica de seu tempo, por não arrebatar o público; põe em questão suas pretensões científicas; duvida da objetividade do fato histórico; e compara a história com a obra de arte, argumentando que o desconhecimento da natureza estética da história provocou uma descoloração completa dos tempos 14 que os historiadores se propuseram a estudar. Essa crítica dificilmente se aplicaria a Lucien Febvre, para quem a história era a ciência do homem, ou para seu amigo, o historiador Marc Bloch. Os dois exemplos, o de Ariès e o de Burkhardt, revelam algo em comum. Para ambos, o presente representa uma ameaça, e o passado um refúgio. Ambos valorizam o aspecto subjetivo e estético da história e duvidam da possibilidade de um conhecimento mais objetivo. Ambos vêem na história um meio de evitar os problemas do presente, ambos cresceram em um meio social protegido e ambos se defrontaram com um desafio das classes subalternas. Ambos assumiram uma posição conservadora, quando havia outras opções e outros caminhos. Para a nova geração de historiadores, o desafio ainda é o mesmo, embora os tempos sejam outros. Vivemos um momento conservador, e as opções radicais, que pareciam tão claras na época de Burckhardt, que assistiu às Revoluções de 1848 e à Comuna de Paris em 1872, que inspiraram as reflexões de Marx, e às Revoluções Russas, Chinesa e Cubana, que na época de Ariès produziriam as reflexões filosóficas de Sartre, estão em refluxo diante da crise do socialismo na União Soviética e da penetração capitalista na China comunista, enquanto políticas liberais e fascistas se generalizam no mundo. O aparente declínio dos projetos socialistas e dos movimentos populares organizados, que no passado serviram de ponto de referência para as visões radicais da história, gera dúvidas sobre a possibilidade do conhecimento histórico. Nega-se a existência do processo histórico. Fala-se até no fim da história. A memória toma o lugar da história, os testemunhos substituem as interpretações históricas mais amplas. A história dos costumes vira moda. As explicações culturalistas, que tinham sido abandonadas, voltam a circular. A história parece ter perdido o rumo e volta para trás. Esse é um fenômeno que não atinge apenas a história e os historiadores, mas que se observa nas demais ciências humanas. Nas filosofias e nas artes há também uma grande perplexidade. Momen- tos como este podem ser profundamente fecundos, pois permitem a experimentação, a inovação e a síntese entre o passado e o presente, assim como a busca de soluções novas, mas também podem levar a um beco sem saída, se fizermos da história um exercício meramente estético e contemplativo que visa, sobretudo, satisfazer as exigências do mercado (ou da Universidade) e os ditames dos que detêm o poder. 15 A Biografia e a História ARTIGOS Teresa Maria Malatian UNESP/Franca Por que Biografar? A multissecular desconfiança para com este gênero sedutor, afinal, os indivíduos fazem ou não a história? O gênero apresenta ainda possibilidades, ainda que tenha sido bastante criticado? O Catálogo Brasileiro de Publicações em 1994 registrava um crescimento de 55% das obras sobre o tema em relação a 1987 (Schmidt, 1997, p.1). A biografia como tendência historiográfica O estatuto da biografia em História A biografia nunca esteve ausente das reflexões historiográficas ou das práticas profissionais dos historiadores, mas muitas vezes se fez acompanhar de um mal-estar explícito ou implícito. 16 Como assinala Momigliano, em Problèmes d´historiographie ancienne et moderne (1983), trata-se de gênero antigo que conservou fronteiras fluídas com o campo do conhecimento histórico. Já na Antigüidade, despertava a desconfiança de autores como Tucídides e Políbio, que lhe atribuíam o estatuto de território sujeito à exaltação tendenciosa de um indivíduo, grupo de indivíduos ou causa. Entre a biografia e a História há um abismo de insegurança e fragilidade diante do problema da verdade da narrativa, sem contar que à primeira se reservava o estudo dos fatos e gestos dos indivíduos, enquanto à segunda cabia o relato dos acontecimentos coletivos ( Levillain, 2003, p. 145). Plutarco (45-125) construiu um modelo ao traçar as Vidas paralelas nas quais procurava evidenciar as virtudes dos homens de ação, que agiam de modo correto “no interior de duas civilizações idealizadas, a da Grécia e a de Roma”, tentando com isso escrever uma História moral estruturada em personalidades exemplares (Levillain, 2003, p.149). Sem a pretensão de percorrer de modo enciclopédico esta trajetória, é importante lembrar que a suspeita e a ambigüidade tiveram em Suetônio (75-160) uma tentativa de estabelecimento de distinções, com a individualização da biografia na direção de torná-la mais confiável, mediante desmistificação e recusa do elogio na Vida dos doze Césares. Desde a Antigüidade greco-romana construíram-se, pois, referências importantes para um gênero que nunca cessou de ser cultivado, ainda que atravessando altos e baixos na sua aceitação e viradas em sua concepção, como ocorreu com as hagiografias medievais. A construção do indivíduo na Idade Moderna se fez acompanhar pelos trabalhos modelares de tipo biográfico, como O século de Luís XIV ou Carlos XII da Suécia, de que se ocupou Voltaire (1694-1778). O herói foi colocado por ele no centro da História em trabalhos modelares . Na primeira metade do século XIX inspirou Carlyle a servir-se da biografia para questionar a linearidade tradicional da história factual. Para dar à História volume e profundidade, utilizou o herói como meio de expressão do fluxo caótico e aleatório da vida e do acesso ao universal e, com esse intuito, produziu estudos notáveis como A Vida de John Sterling e a Biografia de Cromwell. O herói individual, sujeito de exaltação, foi por Carlyle encarregado de exprimir sua época e, assim, a História se tornou o campo de afrontamento de personalidades heróicas, cada uma com sua função profética enquanto encarnação das forças do Espírito, entendidas como religião, “o fator principal na vida do homem”. Entre eles, o herói demiurgo seria capaz de dar sentido à história e forçar o destino. Em sua obra de referência e exaltação do idealismo, Os heróis e o culto dos heróis, atribuiu aos indivíduos excepcionais um papel na História da humanidade, confundindo-a com a dos “grandes homens que trabalharam a terra: eles foram os condutores, os modeladores, os padrões e, num largo sentido, os criadores de tudo o que a massa geral dos homens procurou fazer ou atingir” (Carlyle, [s.d.], p. 9). 17 Nos cinqüenta anos que se seguiram, duas posturas teórico-metodológicas viriam abalar tais convicções: de um lado, a de Michelet que colocou em primeiro plano da reflexão histórica os valores coletivos, expressos pelo povo, deixando aos indivíduos o papel de representantes de paixões coletivas; de outro, a de Marx que colocou no centro, na História, as classes sociais, reduzindo drasticamente o papel dos indivíduos no discurso histórico, ainda que se ocupasse dele pontualmente, como em O 18 Brumário de Luís Bonaparte (Marx, 1986). Não obstante, Taine e Renan percorreram o século do nacionalismo preocupados com a concepção do grande homem como produto da raça, do meio, do momento, o homem-partícula, o átomo social que tributou ao romantismo a mudança de sentido da biografia: a tensão entre indivíduo e sociedade privilegiou a primeira e a biografia visava encontrar no destino individual a força do contexto geográfico, cultural, histórico, social. Ainda que os historiadores metódicos (Monod, Langlois, Seignobos, H.Berr) criticassem os historiadores românticos e sua imagem do herói como exterior à massa humana, que realizava os desígnios da Providência, do progresso, e da oposição de Durkheim e sua desconfiança em relação ao sujeito individual quanto a seu papel na História, o século XIX continuou campo fértil para os estudos biográficos. A biografia constituía um passatempo de homens cultivados, literatura prestigiosa de acadêmicos, praticada por políticos, advogados, notáveis e letrados em geral, sem alcançar estatuto de cientificidade, como, por exemplo, a biografia de Albert de Broglie. Além disso, autores inseriram estudos biográficos ao longo de seus escritos mais generalizantes, como Jaurès que, ao escrever a História da Revolução Francesa, deu primazia às formas sociais, mas não desmereceu as personalidades individuais e suas relações com os movimentos de fundo, provocados pelas condições de produção e troca. Sua História pretendia ser materialista como queria Marx, lírica como fizera Michelet e heróica como praticara Plutarco. Neste esboço historiográfico, os Annales ocupam uma posição central, pois a esse grupo são atribuídas diversas negações: do indivíduo e da política, principalmente. Inegável que desde Febvre e Bloch, a história se torna território das massas, dos grande movimentos econômicos e sociais. No entanto, o grupo fundador da revista não conseguiu – se é que o desejou – realizar uma virada antibiográfica. Há consciência das dificuldades do gênero: Febvre apontou os problemas, perigos e tentações da biografia individual, mas escreveu, entre outros textos, Martinho Lutero, um destino, e A religião de Rabelais. Sua contribuição ao gênero consistiu em esclarecer trajetórias individuais rompendo, no entanto, com a concepção de heróis super-homens e centrando a análise na utensilagem mental específica de um período e de um grupo de homens, preparando assim terreno para o estudo das chamadas mentalidades. Em Martinho Lutero, um destino (1994), Febvre explicitou sua concepção do gênero na perspectiva renovadora que 18 logo seria veiculada pelos Annales HES: trata-se de fato de um personagem excepcional e que poderia implicar um juízo, se o biógrafo enveredasse pelos conflitos religiosos, mas a ótica de Febvre foi a da compreensão em exemplar lição de método. Sua pretensão: desenhar a curva de um destino que foi simples mas trágico; marcar com precisão os poucos pontos verdadeiramente importantes por que passou; mostrar como, sob a pressão de que circunstâncias, o seu entusiasmo inicial teve de enfraquecer e inflectir o traçado primitivo; por assim, a respeito de um homem de uma singular vitalidade, esse problema das relações do indivíduo e da coletividade, da iniciativa pessoal e da necessidade social que é, talvez, o problema capital da história. (Prefácio à 1ª edição,1945, p.11) Ao utilizar o procedimento biográfico, Febvre combinou erudição e História-problema para evidenciar uma postura epistemológica: “se os homens fazem a História, só o historiador sabe a Histó- ria que eles fazem e, conseqüentemente, é a deles” ( Levillain, 2003, p.149). Hoje, oitenta anos decorridos, ainda nos debatemos com as mesmas questões metodológicas: a necessidade de escolhas na trajetória de vida, para a composição do relato biográfico; como e quando iniciá-lo; o período a ser trabalhado como relevante...A vida de Lutero nesta biografia desenvolve-se até 1525, quando ocorre o que Febvre denomina “recuo sobre si”, “retirada” ou “refúgio em si mesmo”, conforme as diversas traduções possíveis da palavra repli. Marc Bloch igualmente se manteve próximo do gênero, ao estudar Filipe II e o franco-condado, onde abriu novos caminhos para a biografia, ao se ocupar do papel dos indivíduos, ainda que inserido no quadro das estruturas agrárias da sociedade feudal. Em Apologie pour l’Histoire (1997) chegou mesmo a defender o papel dos indivíduos na História como necessário, em L´etrange défaite (1990) refletiu sobre o papel do testemunho e foi um dos primeiros a preconizar o abandono das personalidades excepcio- nais e sua substituição pelas personagens secundárias, que seriam mais reveladoras de uma época ou de um meio. Inclusive, propôs que os historiadores deveriam, em lugar de se aterem aos grandes pensadores, freqüentar os chamados autores de segunda ordem. Em suma, não houve entre os Annalistas da primeira geração ruptura com o gênero biográfico, mas, sim, um ajuste da abordagem ao novo campo teórico e metodológico que se abria para a temporalidade ampla, o econômico e o social. A biografia que daí resultou caracterizou-se pela recusa dos exageros laudatórios do século XIX e pela busca de adequação a paradigmas historiográficos voltados para uma História objetiva, as mentalidades, os atores coletivos que, no entanto, reservavam um espaço e um protagonismo aos sujeitos individuais. Na geração de Braudel, que liderou a chamada Escola dos Annales, após a Segunda Guerra Mundial, a desconfiança em relação à História do indivíduo foi o contraponto da postura que privilegiou as estruturas e a temporalidade lon- 19 ga, ainda que seu estudo sobre o mundo mediterrâneo comportasse a dimensão individual da atuação de Felipe II, e nela constituísse um ponto interessante, o espaço biográfico reservado na obra à duração curta, ao evento, à História que se desenrola em velocidade maior que a das estruturas e conjunturas. Com os avanços da historiografia de base marxista e do estruturalismo na universidade, o gênero biográfico teve seu espaço após Segunda Guerra Mundial. A ênfase na História serial de Chaunu (1978) só fez aprofundar, nas décadas de 1960 e 1970, a minimização da presença dos sujeitos coletivos em favor dos dados quantitativos.1 Foi o apogeu da desclassificação da biografia, que no entanto, teimosamente, continuava sendo produzida pelos que afrontavam as críticas, ao mesmo tempo em que uma reação veio dos questionamentos decorrentes da crise do marxismo, do estruturalismo e de inovações em direção à revalorização do indivíduo na História. Era preciso responder às críticas que incidiam sobre o gênero em sua excessiva valorização da personalidade e da importância do sujeito individual, o perigo do falseamento das perspectivas e a heroicização dos indivíduos. Bourdieu foi um dos que se manifestaram nessa direção - L’histoire de vie est une de ces notions du sens commun qui sont entrées en contrebande dans l’univers du savant (Bourdieu, 1962/1963). Os “retornos” da História: do indivíduo, do político e da narrativa Outra crítica bastante desabonadora consistia na acusação de a História de vida pressupor noções mal definidas de coerência, continuidade do eu, identidade. Em resposta, Chartier foi um dos raros teóricos a lembrar que sociedade, classe e mentalidade, que tendiam a substituir os indivíduos na análise, eram freqüentemente tratados pela historiografia como heróis individuais, com as mesmas ilusões de reconstituição e inteligibilidade linear (1991). O gênero continuava a ser praticado, porém desvestido de glórias universitárias até que a reação, nas décadas de 1980 e 1990, acompanhou o florescimento da História narrativa, da valorização do indivíduo, que encontrou novamente espaço emergindo das estruturas e das classes sociais. Bloch, Febvre e Michelet foram revisitados em busca de inspiração. Um dos direcionamentos foi a História do movimento operário que originou o dicionário biográfico específico de Jean Maitron (1992), no qual militantes obscuros dividiram a atenção dos historiadores com os célebres. A História dos “de baixo” acompanhou também a onda da História Oral, que se centrou na construção de trajetórias individuais nas chamadas histórias de vida. Os historiadores formados na tradição dos Annales enfrentaram o gênero e produziram obras de peso, como Duby, 1 Grande parte dessas considerações vêm de CANDAR, Gilles. Le statut de la biographie, 2000. Disponível em:www.irmcmaghreb.org. 20 em Guilherme o marechal... (1995) e Le Goff, com o São Luís (1996), de que falarei adiante. Com eles a biografia ganhou prestígio na historiografia universitária, que passou a validar o gênero. Em lugar da linearidade factual da curta duração centrada na cronologia do tempo curto da vida do indivíduo, a tendência passou a ser o estabelecimento de relações desta com o contexto econômico, político, social, cultural, no qual se insere e desenvolve uma vida e que esclarece trajetórias num campo de possibilidades de escolhas e de exploração, no qual se exerce a ação individual. A micro-história de Ginzburg, O queijo e os vermes (2002) e de Giovanni, Le pouvoir au village (1989), igualmente, favoreceram o gênero. Nesse processo, Chartier foi também decisivo ao apontar a similitude dos procedimentos da disciplina histórica a serem observados em qualquer tipo de estudo, sujeito a incertezas, dúvidas e instabilidades (1998). A menor ênfase na História quantitativa e serial, com seus ciclos e mo- vimentos demográficos, o “retorno” do político reabilitado juntamente com o da curta duração do evento e o retorno da narrativa, possibilitaram um novo interesse pela escrita de si, pela vida cotidiana, dos costumes, dos homens comuns, mas também para o indivíduo e seu papel na História, em confronto com a sociedade, que coloca para o historiador do gênero a questão da liberdade de escolhas, as relações entre fenômenos coletivos e estratégias e comportamentos individuais, traduzidos em escolhas que não são inapelavelmente marcadas pela sociedade (Dumont, 1983). Em suma, a chamada crise dos paradigmas marcou o conhecimento histórico nas últimas duas décadas, ao questionar o valor analítico de estruturas e relações, modos de produção e história serial, recuperando os sujeitos individuais, estudos de caso e a micro-história. Mais descritiva e narrativa que analítica, enfocando o homem mais que as circunstâncias, incorporando aportes da literatura, a historiografia com seus diversos “retornos” abriu novamente espaço para a biografia (Schmidt, 1997). A força do retorno do gênero biográfico veio dos questionamentos sobre como distinguir o indivíduo na sociedade, na qual as análises até então mais validadas o diluíram. A tentativa de redução da concepção “hipersocializada do homem”, tal como praticada pelo marxismo e pelo estruturalismo, enveredou também pela análise psicológica que foi centrada na subjetividade da pessoa (Gay, 1999) e pela afirmação de sua autonomia na sociedade. Até mesmo as descobertas da genética têm sido chamadas para explicar os jogos entre indivíduo e sociedade, entre o hereditário e o adquirido, entre patrimônio genético e a vida socialmente construída, a exemplo do que alimentou o chamado caso Lissenko (Levillain, 2003, p.168-70). Escrita de si - fontes para a biografia Desde as décadas de 1970 e 1980, a escrita de si vem alcançando grande popularidade, abrigada pela literatura, 21 pela mídia, nas ciências humanas e nas práticas de formação. Autobiografias, diários e correspondências constituem assim um campo imenso de possibilidades para o historiador em seu intuito de construção de biografias. Resultam de atividades solitárias de introspecção, ainda que a autoria possa ser partilhada por secretários, assessores ou familiares. Trata-se, deste ponto de vista, de escritas de si nas quais o indivíduo assume uma posição reflexiva em relação à sua história e ao mundo no qual se movimenta. Na literatura, as obras de caráter autobiográfico se publicam em toda parte, colocando ao alcance do público histórias de vida em escritos tão diversos como a autobiografia literária, a autobiografia intelectual, o diário íntimo, o diário de pesquisa, o diário de escritor, os relatos de viagem, a correspondência e as memórias, em geral, enunciados na primeira pessoa, embora por vezes na segunda ou mesmo na terceira, visando à construção de um relato a ser recebido como verídico pelo leitor. Na mídia as condições e formas de escritas de si alcançaram a pletora: estrelas do mundo das artes, dos esportes, personagens da política, intelectuais, sem esquecer os anônimos “homens comuns”, personagens construídos a longo ou curto prazo inundam em longos relatos ou em curtos fragmentos, jornais, revistas, documentários, reality shows, novelas, TV, rádio, web, nas quais a exposição da vida privada se oferece ao consumo de multidões. As razões desse movimento podem ser localizadas numa angustiante busca de elementos identitários que desloca o reconhecimento de si no conhecimento do outro que se torna tempo familiar sem perder a distância física, presentificados pela atividade midiática que permite até o acompanhamento do cotidiano em tempo real dos que se colocam diante da tela da TV. Nas ciências humanas, as abordagens de histórias de vida cresceram enormemente desde que a Escola de Chicago elegeu a vida dos imigrantes como significativa para a compreensão da sociedade norte-americana e lhes deu a palavra. A história de vida e os documentos que a iluminam (cartas, diários íntimos) alcançam o estatuto de objeto científico no qual a palavra constitui o meio privilegiado de acesso a atitudes e representações do sujeito (Lewis, 1970). Em reação aos modelos teóricos totalizantes da vida social, como o marxismo e o estruturalismo, e aos métodos quantitativos, o relato de vida foi redescoberto na Europa gerando, nos anos 1970, as reflexões pioneiras na França de Daniel Bertaux sobre a aproximação biográfica. Os trabalhos sociológicos nesta vertente abrigaram a maior parte da produção do gênero e alcançaram, nos anos 1980, grande expansão e reflexões metodológicas sobre o estatuto dessa história e seu valor como documento confiável para o conhecimento reconhecido como científico. Uma quarta dimensão da escrita de si na contemporaneidade consiste na sua utilização no campo da formação, uma vez reconhecido seu papel como “arte formadora da existência”, como afirma Gaston Pineau em Práticas de 22 formação (1996). Logo apropriado pelas teorias e práticas educacionais, inclusive no Brasil, este entendimento vem sendo utilizado como estratégia de reajuste permanente do indivíduo às intensas e velozes transformações sociais do mundo contemporâneo, de modo a preservar sua própria historicidade e sua posição de sujeito histórico pela constante utilização de referentes identitários. O crescimento do gênero remonta ao século XIX, quando preenchia funções definidas como educação de si, interiorização de normas de convivência em determinados meios sociais, além de satisfazer à fome de intimidade e privacidade que acompanhou a implantação da ordem burguesa. Hoje, se os diários íntimos e as cartas perderam espaço na vida cotidiana, a busca de histórias de vida afirma o predomínio da subjetividade e do individualismo a que corresponde o fracasso do welfare state e dos regimes socialistas. O encolhimento do espaço público, a fragmentação da subjetividade em diversos espaços, a busca identitária exacerbada constituem o contraponto ao esvaziamento dos projetos coletivos e ao desencantamento do mundo nas últimas quatro décadas. A redescoberta do indivíduo e dos traços de sua trajetória individual tem sido cada vez mais valorizadas, como nos relatos sobre o Gulag e outras experiências extremas revisitadas. A história do “povo comum” igualmente contribuiu para a releitura de diários, cartas e textos memorialísticos em sua possibilidade de contribuição para a recuperação dos protagonismos individuais e de releituras da história segundo diversas ópticas. Do contato com a escrita de si em suas diversas modalidades, aflora a constatação de ser este um território marcado pelas tensões entre indivíduo e sociedade, pela dificuldade de se estabelecer limites entre ação individual e ação coletiva, pelo questionamento da liberdade de ação e do papel impositivo de grupos sociais e construções coletivas da cultura (Montagner, 2007). Uma possibilidade seria uma abordagem literária das filiações que circunscrevesse o campo histórico e formal do gênero autobiográfico. Ou, uma abordagem antropológica que inscrevesse os textos no contexto de sociedades e mentalidades nos quais foram gerados. Essas duas posições sinalizam a diversidade de constituição do objeto, porém ambas podem estar presentes e se complementar, para que se possa analisar e usufruir dos relatos pelos quais o indivíduo fala de si em determinadas condições sociais (econômicas, políticas, sociais, culturais), e constrói uma relação identitária consigo mesmo, que Foucault denomina práticas de si. A historiografia apropria-se de tais abordagens e as reconstitui de modo que o discurso de si, considerado na dimensão histórica, releva de cada época, em cada sociedade, as relações do público e do privado, da coletividade e do indivíduo, da singularidade e da pluralidade, do indivíduo consigo mesmo. Importa ocupar-se de discursos codificados historicamente e que são, portanto, portadores de relações de força e de consciência de si. Trata-se de ter constantemente em presença as formas como o indivíduo e 23 sua identidade são permanentemente inventadas e reinventadas: discursivas e materiais (suportes e técnicas de escrita da palavra), com mediações exteriores (a cidade, a religião, o poder), numa prática que é sempre implícita ou explicitamente coletiva. Dito de outra forma, a construção do discurso que carrega a construção de si não pode ser abstraída das formações históricas que regem a vida dos homens em sociedade e, ao mesmo tempo, do modo como grupos constituem práticas de si, as quais se traduzem nas representações do eu fixadas nos relatos. Pode-se rastrear desde a Antigüidade tais práticas que passam pelo mundo greco-romano como os relatos militares de Júlio César, por exemplo, e prosseguem ao longo dos séculos pelas confissões tão caras ao Cristianismo até alcançar sob múltiplas e variadas modalidades o quadro atual descrito. Do ponto de vista metodológico trata-se de considerar com Henri Lefèbvre, em A soma e o resto (1989), a existência de um espaço-tempo interior que se traduz em momentos nos quais o indivíduo constrói sua experiência, a qual o individualiza, o singulariza num campo de relações. É esta perspectiva que permite ao historiador considerar os momentos vividos como diretrizes da temática biográfica, superando a linearidade factual da narrativa, para proceder a uma operação historiográfica de tematização da existência individual, segundo o grupamento das experiências do objeto em torno de certos pontos de ancoragem específicos que podem se justapor ou desaparecer, mas que marcam seu ser no mundo. Isto é particularmente constatável no momento da escrita de si, quando o indivíduo experimenta a imersão – de extensão temporal variável – num trabalho de criação específico e distanciado, mas ao mesmo tempo próximo de outros momentos naquele instante revisitados e reelaborados, colocando à luz esse eu construído antes de tudo para si mesmo, buscando elucidar o enigma de sua própria existência (Delory-Momberger, 2000, p.11). Peter Gay, em O coração desvela- do, assinala o espaço socialmente reservado à escrita de si no século XIX na Europa, quando diários, cartas e memórias ao contarem “realidades interiores” reproduziam experiências individuais, nas quais fantasias e “realidades” se mesclam num jogo de ocultamento/revelação sempre apresentado como um compromisso com a verdade, cuja enunciação ao leitor constitui verdadeiro deleite. A partir de uma abordagem psicanalítica, Gay sinaliza o cuidado a ser tomado pelo historiador com as poses, as táticas evasivas, a exposição e a proteção do eu dirigida a um público seleto (1999, p.71-177), que mais oculta do que revela o verdadeiro “eu”. Suas constatações foram baseadas em documentos produzidos durante a chamada era vitoriana que muito diferem dos hodiernos caminhos de escancaramento da vida privada, em seus detalhes mais íntimos, pois eram altamente codificados com regras explícitas acerca do decoro a ser mantido, dos assuntos considerados tabus, do grau de expansão do eu conforme o leitor potencial. Mas se o método psicanalítico é de difícil 24 absorção pelo historiador, sua proposta metodológica não deixa de ser notável, por abrir um campo de possibilidades de análise das motivações subjetivas na elaboração da escrita de si e que, se levadas em conta, podem contribuir para a crítica do documento retirando-lhe uma postura ingênua ou desavisada num momento em que mais do que nunca se instalou um “apetite biográfico” (p.169). Na mesma linha, Artières, em Arquivar a própria vida (1998), assinala na escrita de si a presença de três elementos: a injunção social, a prática de arquivamento e a intenção autobiográfica. Em todos eles, a intenção de tomar distância em relação a si mesmo se impõe no diálogo entre o narrador e o leitor, no aludido jogo de ocultamento/revelação . Como biografar A tarefa de construção de biografias pelo historiador coloca em questão direcionamentos a serem observados desde a escolha do personagem, em função da sua atuação ou de qualidades que possam estabelecer identificações projetivas importantes. Biografar indivíduos vivos ou não? Qual o grau de exaustão do “eu” que a biografia comporta? Como biografar sem criar “tipos”? Como biografar sem cair nos elogios ou julgamentos? Não há muito como eludir a forma narrativa e cronológica que permite o acompanhamento da trajetória do personagem e o estabelecimento de “marcos temporais entre acontecimentos e história individual”. Constitui, portanto, característica da biografia a narrativa que deve levar em conta o recorte temporal da história de uma vida (Abreu, 1998). Tal constatação não implica o uso exclusivo do método discursivo, factual, centrado na existência individual. Considerada por muitos historiadores como uma arte (Oreux, in Duby et al.,1986), a biografia exige do pesquisador um cuidado que de resto não se distancia daquele que é devido a qualquer outro tipo de discurso histórico, e que caracteriza a disciplina histórica: a compreensão, a aproximação do perso- nagem até a impregnação como ponto de saturação, ideal para que se possa escrever sobre ele, o trabalho crítico sobre testemunhos diferentes e contraditórios, para que se amplie o enfoque analítico e se possam alcançar tanto aspectos desconhecidos de sua vida como ultrapassar sua opacidade para seus contemporâneos e mais próximos. Entre histórias de vida individuais e prosopografias (notícias biográficas individuais que se confrontam para que mediante amostras se possam estabelecer tipos, salientar traços comuns), o gênero se mantém próximo da literatura e, por isso mesmo, a solicitar atenção redobrada do historiador. Da literatura têm sido incorporados técnicas e recursos estilísticos como o flashback (Duby, 1995), elementos ficcionais mesclados à informação seguramente documentada, incorporação de detalhes pitorescos e da vida cotidiana, estilo cuidado, narrativa fluída, num diálogo com o hipotético leitor, inspirado também pelo jornalismo. Nem é de se desprezar a prática de deixar fluir a cons- 25 ciência do escritor na caracterização do personagem visando à produção de um efeito de realidade (Schmidt,1997). Aos historiadores e preservadores da disciplina histórica, cabe a tarefa de eliminar a mescla entre biografia e romance, de estabelecer referências documentais e empíricas seguras, de preocupar-se com a verdade ou as verdades, pelo uso de “provavelmente”, “talvez”, “pode-se presumir”, “acredita-se que” etc. (p. 10). Em todos os autores, que vêm fazendo reflexões sobre o tema, persiste o grande problema que é o de “desvendar os múltiplos fios que ligam um indivíduo ao seu contexto”, como foi mencionado, seja para revelar dimensões de problemas da pesquisa não perceptíveis nos enfoques macroscópicos, seja na comprovação ou refutação de hipóteses. A meu ver, trata-se de cultivar um gênero que comporta, em primeiro lugar, a sedução do historiador pelo personagem, por sua vida de alguma maneira considerada excepcional e digna de ser o centro de um estudo, por revelar aspectos ainda não abordados pela historiografia voltada para o macro, ou por permitir a visualização da tensão entre indivíduo e sociedade. Seja pela abordagem dos sentimentos, do inconsciente, da cultura, da vida privada, do cotidiano ou, mais adequadamente, como “um locus no qual uma incoerente e freqüentemente contraditória pluralidade de determinações relacionais interagem”, como afirmou Bourdieu em A ilusão biográfica (1976), e que permitem alcançar o sujeito para além de uma constância, a si mesmo verdadeiramente inatingível, para dar conta de um sujeito fracionado e múltiplo, tal como se apresenta aos olhos sensíveis do historiador. Esse direcionamento permite que se busquem estabelecer as articulações “entre vida pública e vida privada, entre cotidiano e não-cotidiano, entre atos racionais e motivações irracionais“ (Schmidt, 1997). Eixos analíticos importantes podem ser traçados então em função de família, estudos, trabalho e militância. Persiste ainda, todavia, a questão ética que, independentemente das ameaças no âmbito da justiça, precisam ser levadas em conta, quando o historiador se apropria da memória do biografado, expondo seus segredos, suas mazelas, suas contradições. Na mesma linha de reflexão, podese situar Franco Ferrarotti cujas reflexões se dirigem para a abordagem estruturalista das relações entre indivíduo e sociedade nos estudos biográficos, afirmando que “uma vida é uma prática que se apropria das relações sociais (as estruturas sociais) as interioriza e as retransforma em estruturas psicológicas por sua atividade de desestruturação-reestruturação” (Histoire et histoires de vie, 1990). Se o enquadramento nos parece excessivo, é bom salientar que o autor minimiza a rigidez ao apresentar a vida humana como “síntese horizontal de uma estrutura social”, mas recusa o determinismo mecânico entre história social e história de vida. Atribui ao sujeito um papel ativo ao insistir em que “Longe de refletir o social, o indivíduo se apropria dele, o mediatiza, filtra e retraduz projetando-o em uma outra dimensão(...) , a de sua subjetividade, al- 26 cançando assim a definição do indivíduo como síntese individualizada e ativa de uma sociedade(Ferrarotti, 1990). Deste ponto de vista, o relato biográfico deixa de ser uma série de anedotas para centrar-se na ação social do indivíduo, na sua relação com a sociedade, análise que sugere a partir de ancoragens antropológicas e sociológicas. Nessa perspectiva, a biografia será entendida como uma leitura do social no qual se estabelecem relações entre um indivíduo e o tempo sócio-histórico, articulando biografia e sociedade (Abreu, 1998 ). Esta é a principal ênfase da atual releitura do gênero biográfico cujas diretrizes estão nas obras de Lejeune, Bourdieu e Le Goff. Lejeune e o pacto autobiográfico As reflexões de Lejeune sobre o estatuto da autobiografia como texto literário passam pela comparação entre este gênero e a biografia e acabam por ser úteis à historiografia, na medida em que a teoria literária é chamada a integrar uma relação transdisciplinar da História. A questão central por ele abordada consiste na relação entre o autor e o leitor num “contrato de leitura” também denominado “pacto autobiográfico”. Em análise bastante sofisticada das tramas presentes na elaboração do relato autobiográfico, que incluem a relação do narrador consigo mesmo enquanto personagem, Lejeune chega a uma tipologia do gênero biográfico como “texto referencial” que, por suas exigências no campo da disciplina histórica, necessita se submeter a uma prova de verificação. Nela está presente não apenas a verossimilhança, “efeito do real”, assim como a maior ancoragem possível ao real, que lhe serve de referência. Como texto referencial inclui, portanto, uma “definição do campo real visado e um enunciado de modalidades e do grau de verossimilhança que o texto pretende” (1998, p.36). Mas a principal contribuição de Lejeune consiste no alerta sobre a relação de identidade que se estabelece entre o autor e o biografado, implícita, inde- terminada ou explícita como num ajuste de contas. Em todos os casos, em maior ou menor grau, o eu se torna o outro. É este o pacto que esse estabelece nos textos literários de tipo autobiográfico, entre o narrador e o personagem narrado e que pode ser transposto para o terreno da biografia. Na mesma direção, Bourdieu (1996) irá alertar seus leitores sobre as armadilhas do gênero, com a tônica analítica voltada, porém, para as relações entre indivíduo e sociedade . Bourdieu e o habitus Tomarei como base as considerações de Bourdieu feitas sobre a “ilusão biográfica” e apresentadas em Actes de la Recherche en Sciences Sociales (1986, p.69-72) e republicadas em Usos e abusos da História Oral, organizada por Marieta de Morais Ferreira e Janaína Amado (1996). Além disso, o diálogo que com ele estabeleceu Giovanni Levi, em Les usages de la biographie (1989), publicado também no mesmo volume. 27 O núcleo de sua análise reside na teoria da práxis construída em relação aos campos , ou seja, os “domínios específicos da vida social”. Em suas diversas obras alerta para a inexistência de uma “seqüência cronológica e lógica dos acontecimentos e ocorrências da vida de uma pessoa”, numa linha construtivista que postula a linearidade progressiva e a causalidade como construções a posteriori. Desde 1968, quando publicou o Métier de Sociologue, com Passeron e Chamboredon, Bourdieu já se ocupava desse tema, que foi percorrendo ao longo de sua obra até chegar ao conceito de ilusão biográfica, ao defender a idéia de que o sentido de causalidade e sentido coerente é algo atribuído às ações humanas. Se o sentido global do sujeito escapa até mesmo à sua autopercepção, resta aos analistas recorrer à objetivação do habitus que decorre da interiorização do social pelo indivíduo, de modo estável, porém sujeito a modificações. Habitus se torna, então, um con- ceito a ser operacionalizado na biografia, na medida em que revela sistema de disposições socialmente constituídas que, em seu constante movimento estruturante, está na origem e unifica as práticas dos agentes sociais (Economia das trocas simbólicas, 1998). 2 As marcas distintivas estão presentes no nome, no biológico e nas ações dos indivíduos, definindo trajetórias comuns nos campos nos quais se insere. Sua presença como diretriz da pesquisa permite situar os agentes sociais – os indivíduos – socialmente, pela trajetória diacrônica nos diversos campos. Tal procedimento metodológico permite escapar à ilusão biográfica pela construção de certos traços pertinentes, em termos de estratégias e injunções ocorridas em cada campo e que afetam diretamente os indivíduos, os quais se movimentam pelos traços do habitus, sujeitos a relações de poder. Se tais colocações de âmbito sociológico permitem uma sofisticação da pesquisa, requerem do historiador uma 2 Para estas considerações sobre Bourdieu, vali-me sobretudo de sua interpretação por Montagner, 2007. tomada de posição sobre o protagonismo individual e o grau de autonomia dos sujeitos individuais, ou sua vulnerabilidade diante das forças que operam nos campos nos quais eles se movem, testemunho da complexidade do trabalho de pesquisa. Recorro aqui a Giovani Levi (1996) que estabeleceu importante diálogo com Bourdieu em Usos da biografia e afirma a “irredutibilidade dos indivíduos e de seus comportamentos a sistemas normativos gerais”, embora aceite o estabelecimento da “superfície social” da ação dos indivíduos. Ainda assim, há que atentar para os elementos contraditórios, a fragmentação dos tempos e dos ritmos da vida dos indivíduos, pelos movimentos incessantes de retornos, idas e vindas que ocorrem numa rede de relações nas quais os indivíduos se definem. Levi aproxima a teoria sociológica da valorização da ação individual ao analisar o jogo entre indivíduo e grupo, entre biografia e contexto, reconhecendo a existência de determinações das quais 28 o indivíduo não consegue fugir, mas distingue um espaço de atuação individual, que é o espaço da liberdade e que se traduz em escolhas, as quais, ao evidenciarem incoerências e conflitos, promovem a mudança social. Le Goff e a Nova História Dele veio grande renovação do gênero, com uma reflexão aprofundada das condições da escrita de um estudo biográfico sobre personagem relevante para a história da França, por meio da qual buscou compreender questões não respondidas para o século XIII. Este trabalho constituiu-se numa reflexão sobre a fabricação social, ou seja, as condições de formação da memória coletiva, sobre alguns aspectos do personagem biografado. Além disso, abordou a arquitetura de sua construção com as dificuldades, os limites e as especificidades. O resultado final é a reconciliação da biografia com a História que elege o indivíduo como centro de relações sociais e estabelece em lugar da linha, a rede e a interface dos diversos planos. Do ponto de vista teórico-metodológico, o expoente da terceira geração dos Annales apontou as dificuldades de cultivo do gênero aparentemente fácil e mostrou como é possível fugir de abordagens “anacronicamente psicológicas”, ou que utilizem com facilidade a noção de mentalidades ou o recurso ao anedótico. Não faz concessões ao afirmar que os problemas enfrentados na escrita da História são os mesmos encontrados na elaboração de uma biografia cujo percurso compreende a proposição de um problema, a crítica das fontes, o tratamento na duração longa o suficiente para comportar a dialética da continuidade e da mudança, a tônica na explicação, o distanciamento do historiador em relação à questão tratada (São Luis, 1999 p. 14). Neste magistral trabalho encontrase a tradição historiográfica cujo ponto de partida está na concepção de uma história global e que a partir daí considera o indivíduo como “sujeito globalizante”, em torno do qual se organiza todo o cam- po da pesquisa” (p. 15), ainda que reconheça ser utópica a busca de um conhecimento integral do indivíduo: lacunas na documentação, silêncios, descontinuidades, incoerências estão sempre presentes. Dialogando com a literatura, vê no procedimento biográfico a necessidade de produção de “efeitos do real”, que aproximam o trabalho do historiador ao do romancista, pois eles são obtidos pela escrita, pelo estilo e pelo trabalho com as fontes (p.16). Resguarda, assim, o historiador das possíveis tentações . Os aportes dos Annales são refinados pelo diálogo que estabelece com Bourdieu, Passeron e Giovani Levi: endossa a tese da “ilusão biográfica” e vai mais longe, apontando o perigo da “utopia biográfica” que nada mais seria que o empenho em não deixar escapar nenhum detalhe insignificante (p.18). Seguindo os passos de Levi (1996), alerta para a armadilha da “cronologia ordenada”, da “personalidade coerente e estável, das ações sem inércia e das decisões sem incertezas” (p.18), ainda mais em se tratan- 29 do de seu biografado, cuja vida se faz revestir de brumas . Além da fuga dessa ilusão, foge também dos determinismos afirmando que “São Luís não vai imperturbavelmente em direção a seu destino de rei santo, nas condições do século XIII e segundo os modelos dominantes de seu tempo. Ele se constrói a si mesmo e constrói sua época tanto quanto é construído por ela. E essa construção é feita de acasos, hesitações, escolhas” (1999, p.18). Mas o mais significativo de suas posições teórico-metodológicas consiste na constante busca da afirmação da liberdade individual manifesta nas escolhas realizadas pelos indivíduos diante de possibilidades. Assim como Levi (1996), postula a liberdade de que dispõem os agentes diante de sistemas normativos que também apresentam contradições. Nos interstícios, as escolhas individuais (p.19). Recorre a Bourdieu em Coisas ditas (2004), para afirmar que o indivíduo só existe numa rede de relações sociais diversificadas e esta diversidade lhe permite também desenvolver seu jogo. Uma última questão: a relação do biografado com o tempo apresenta perspectivas próprias de cronologia e periodização, ao postular a articulação entre o tempo da biografia e os tempos da História em seus diferentes ritmos. Relembrando Marc Bloch, afirma que ”os homens são mais filhos de seu tempo do que de seus pais” (1997). E encerra com a tese de Borges: “Um homem não está verdadeiramente morto senão quando o último homem que o conheceu está também morto” (p.24-25). Referências ABREU, Alzira Alves De. Dicionário Biográfico: a organização de um saber. Caxambu, II Encontro Anual da ANPOCS, 1998. ARTIÉRES, Phillipe. Arquivar a própria vida. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, CPDOC, n.21, 1998. BLOCH, MARC.L´étrange défaite: temoignage. Paris: Gallimard, 1990. __________. Apologie pour l´histoire ou Métier d´historien. Paris: Armand Colin, 1997. DELORY-MOMBERGER, Christine. Les histoires de vie. Paris: Anthropos, 2000. BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 2004. __________.O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand-Brasil, 2002. __________. As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. __________. Actes de la Recherche en Sciences Sociales. L´ilusion biographique, p.60-72, 1986. __________. A ilusão biográfica. In: FERREIRA, Marieta De Moraes; AMADO, Janaína (Org.) 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Inicialmente agradeço ao CEDEM a oportunidade que está me proporcionando para participar deste evento. Gostaria de esclarecer, também, que nem Luiz Carlos Prestes, nem o Partido Comunista Brasileiro são meus objetos de estudo. Aliás, nunca foram. Ouvi falar de Prestes pela primeira vez em 1945, logo após a queda de Getúlio Vargas. Mas, só em 1948, é que adquiri maior conhecimento sobre ele – quando li sua biografia, escrita por Jorge Amado. E, desde então, não só ele, mas também os “tenen- 32 tes” passaram a ser para mim objeto de curiosidade histórica. A partir daí, passei a acompanhar a trajetória política deles – de Prestes e dos “tenentes”. Em 1965, servindo no CPOR de Curitiba no posto de capitão, habitueime a compulsar com relativa freqüência os boletins do Exército, editados pelo Estado-Maior do Exército, não para atender a uma necessidade burocrática, mas para satisfazer minha curiosidade histórica pelos fatos que envolveram militares no processo de insurgência desencadeado no início da década de 1920 e que se prolongou até a implantação do Estado Novo. Os boletins do Exército que mais me interessaram foram aqueles que registram fatos referentes aos “tenentes” – insubordinações, revoltas, deserções, prisões etc. Todos os envolvidos na insurgência, em algum momento, foram declarados desertores e chamados de baderneiros, de traidores da pátria pelo governo e pelas Forças Armadas. E quem são esses desertores e traidores da pátria, na década de 1920? Menciono apenas os que mais se destacaram: Prestes, Eduar- do Gomes, Siqueira Campos, os irmãos Távora (Joaquim e Juarez), João Alberto e Cordeiro de Farias. Com exceção de Eduardo Gomes e Joaquim Távora, todos eles participaram da Coluna Prestes. É claro que o meu interesse histórico pelo “tenentismo”, a Coluna Prestes, a Revolução de 30, 1935 e o Estado Novo não se limitou à consulta a tais boletins. Com o tempo esse interesse foi-se beneficiando de leituras mais profundas sobre esses acontecimentos – principalmente na década de 1970. Jamais tive algum contato pessoal com Luiz Carlos Prestes. Vim a conhecêlo na UNICAMP, no final da década de 1980, quando ele prestava depoimento no Arquivo Edgard Leuenroth. Foi a única vez que o vi pessoalmente. Em todos esses anos, o que mais me impressionou nele – além do seu caráter, da sua honestidade, da sua coerência política – foi a sua postura, a manutenção de uma postura adquirida no Colégio Militar. Para mim, Prestes nunca deixou de ser um militar. Nesta exposição, não pretendo biografá-lo. Vou apenas centrá-la em três fatos históricos que estão ligados a Luiz Carlos Prestes: a Coluna, 1935 e a Guerra Fria. A historiografia brasileira tem privilegiado mais a dimensão política que a dimensão militar da Coluna Prestes. Até hoje, não foi feito nenhum estudo dessa dimensão. É verdade que não houve por parte do Partido Comunista, nem da esquerda brasileira, assim como do meio acadêmico, preocupação em orientar o estudo também para a dimensão militar. O Exército brasileiro, por sua vez, procurou sempre desqualificá-la como seu objeto de estudo – assim como fez com Canudos e Contestado. Por quê? Porque ao estudar tais fatos históricos, teria de obrigatoriamente inseri-los na memória militar e de reconhecer sua incapacidade para lidar com conflitos de baixa intensidade. Foram necessárias várias expedições militares para aniquilar Canudos. Aniquilar não no sentido consagrado por Clausewitz – de retirar do inimigo a capacidade de reagir de modo organizado e de 33 prosseguir na guerra –, mas no sentido literal. Ou seja: eliminar todos os homens válidos, preservando apenas os idosos, as mulheres e as crianças. Na Guerra do Contestado ocorreu o mesmo, só que em menor escala e com menos violência. Os estudos sobre Canudos e o Contestado, realizados no âmbito militar, têm sido até o presente medíocres. A experiência militar adquirida nesses conflitos não foi aproveitada, no momento devido, para se repensar a doutrina e a organização militares, tendo em vista futuros conflitos de baixa intensidade. Essa experiência não produziu nenhuma modificação substantiva no Exército. Ele manteve-se inapto para dar respostas eficazes a futuros conflitos de tal natureza. Se alguns estudos foram feitos sobre Canudos e o Contestado, nenhum estudo sobre a Coluna Prestes, por sua vez, foi realizado no âmbito militar. Embora as Forças Armadas, ou mais precisamente o Exército, reconheçam aqueles dois conflitos armados como fatos históricos – não há dúvida, desagradáveis na visão militar –, o mesmo não ocorre com a Co- luna. Por quê? Porque, apesar de toda a incompetência revelada na conduta das operações militares, o Exército foi o vencedor em Canudos e no Contestado, e esse resultado não se confirmou contra a Coluna Prestes. Ou melhor, a história militar brasileira não registra as derrotas sofridas pelas Forças Armadas. É verdade que a única derrota sofrida pelo Exército brasileiro em combates de baixa intensidade – ou seja, em operações contra irregulares – foi quando se confrontou com a Coluna Prestes. Tem sido um erro mantê-la ausente da memória militar. É uma pena. Quanta experiência desperdiçada, que poderia orientar revisões profundas na doutrina e na organização militares. Assim, o Exército viu-se obrigado, meio século após, a buscar nas experiências estrangeiras (francesa e norte-americana) subsídios para sua doutrina e sua organização no combate a irregulares, durante a Guerra Fria. A rejeição de Luiz Carlos Prestes pelas Forças Armadas brasileiras não se apresentou durante a ação da Coluna, nem quando da sua dissolução. Após a Intentona de 1935 é que essa rejeição viria a se apresentar com virulência crescente. O levante de 1935 eliminou qualquer possibilidade de essas forças reconhecerem em Prestes o chefe militar vitorioso, o brilhante estrategista militar que impôs a elas a única derrota na história militar brasileira. A chamada Intentona de 1935 é o segundo fato histórico ligado a Luiz Carlos Prestes. Não pretendo emitir qualquer opinião a respeito de sua concepção e de seu desencadeamento. Pretendo apenas destacar sua conseqüência mais significativa, operacionalizada com competência por Góes Monteiro. As Forças Armadas (Marinha e Exército) estavam submetidas a um processo de desgaste desde 1922 -– desde o levante do Forte de Copacabana –, enfrentaram 24, 30 e 32, antes de culminar em 35. Em todo esse período, os militares tiveram presença política significativa, mantendo um clima indesejável de indisciplina, de afronta à hierarquia. Foi um período de instabilidade crônica. O retor- 34 no da estabilidade político-institucional, condição necessária para o desenvolvimento do País, só seria possível, segundo Góes Monteiro, se o Estado dispusesse de Forças Armadas disciplinadas. A dificuldade para impor o respeito aos princípios da hierarquia e da disciplina só foi superada em 1935. Góes Monteiro entendeu que essa dificuldade só seria superada se fosse possível unir as Forças Armadas em torno de uma causa comum – e 35 proporcionou essa causa, a do anticomunismo. O anticomunismo induziu à reintrodução de tais princípios nas Forças Armadas. Ou seja, 35 garantiu a consolidação da unidade militar. A partir daí, então, elas estariam aptas para sustentar um projeto maior – o Estado Novo. O anticomunismo alastrou-se no meio militar porque grande parte – diria maioria esmagadora – dos militares não era comunista. Mas ele seria triunfante em 1964 mesmo com a presença significativa de militares comunistas – cujo contingente de militantes superou de muito o de 1935. Daí o paradoxo: a presença comunista nas Forças Armadas foi mais significativa em 1964 que em 1935. A Guerra Fria criou o terceiro fato: a busca da decisão no âmbito militar, ansiosamente perseguida pelos anticomunistas. O conflito Leste-Oeste induziu à criação de um ambiente favorável a eles: a consolidação da hegemonia dos Estados Unidos na América Latina, o consenso ideológico em torno do anticomunismo e o alinhamento estratégico dos países latino-americanos com os EUA. Embora na clandestinidade desde 1947 – e enfrentando dificuldades de toda a ordem –, o PCB conseguiu manter uma presença significativa no meio militar. O engajamento dos militares comunistas em campanhas nacionalistas e o controle, por algum tempo, do Clube Militar não foram suficientes para neutralizar a eficiente direita militar. De certo modo, diria que a esquerda militar – majoritariamente comunista – não foi competente, durante o Governo João Goulart, no estabelecimento do controle efetivo das Forças Armadas. E, no seu esforço para alcançá-lo, reproduziu em maior escala, mas sem sucesso, o que tentara em 1935: solapar a hierarquia e a disciplina no âmbito das Forças Armadas. A partir de 1964, na visão militar, a postura ideológica do Brasil no conflito Leste-Oeste era inequívoca – anticomunista. Na frente externa, manteve-se alinhado com os Estados Unidos contra o expansionismo soviético. Na frente interna, agindo com meios próprios, buscava o aniquilamento da subversão comunista – ou seja, do “inimigo interno”. Como a direita militar rotulava de “comunista” toda a esquerda, por extensão, toda a oposição ao regime autoritário passou a ser considerada “comunista”. É claro que o anticomunismo recrudesceu no âmbito militar, durante o autoritarismo. Hoje, já com 15 anos de regime democrático e com 10 anos sem guerra fria, espera-se que, com o tempo, Prestes venha a ser recuperado para a memória militar. Prestes é reconhecido como um dos personagens mais destacados da história do Brasil, mas continua ainda estigmatizado na história militar brasileira. 35 Não há dúvida de que o tempo apagará essa marca infamante. Após sua morte, já lhe foi legalmente concedida a patente de coronel do Exército. Creio que deve ser o início de uma correção histórica. O reconhecimento de seu protagonismo destacado na história decorre tanto de seus acertos como de seus erros. Mas, de qualquer modo, Luiz Carlos Prestes “marcou a história do Brasil mais do que qualquer outro”. Do ponto de vista militar, comandou “a primeira longa marcha do século XX, uma das mais fantásticas proezas militares (guerrilheira em sua concepção e execução) de que se teve notícia até que Mao Tsé-Tung, anos depois, assombrou o Oriente com a sua longa marcha” (O Estado de S. Paulo, 8 de março de 1990). 36 A crítica (materialista) do mundo (descontínuo) das coisas - micrologias ARTIGOS Sobre Rua de mão única (Benjamin), Vestígios (Bloch) e Os empregados (Kracauer) Carlos Eduardo Jordão Machado1 Walter Benjamin redigiu entre 1923 e 1926 um conjunto de aforismos intitulado Einbahnstrasse [Rua de mão única], que apareceu em livro em 1928, tendo chegado a publicar alguns fragmentos no Frankfurter Zeitung, com a mediação de Siegfried Kracauer, que era, na ocasião, editor do caderno cultural do jornal. O livro é registro de um momento decisivo na trajetória intelectual e afetiva de Benjamin, é dedicado a Asja Lacis, uma “bolchevique de Riga”. Posso afirmar sem exagero que o projeto das Passages já está esboçado em Einbahnstrasse, sobretudo em relação ao método expositivo, à “montagem literária”. Como afirma em Passages, o seu trabalho “deve desenvolver ao máximo grau a arte de citar sem aspas. A sua teoria está intimamente relacionada 37 à da montagem” (1983, p.572). Em outro trecho dessa mesma obra, Benjamin enfatiza: “método deste trabalho: montagem literária. Não tenho nada a dizer. Só a mostrar” (1983, p.574).2 Na Obra das passagens, trata-se de aplicar a “montagem literária” à história, ao século XIX, à cidade de Paris do Segundo Império, como sendo a forma originária (Urform) da modernidade, na Rua de mão única, ao presente. Certamente é uma tentativa inicial, uma obra experimental, sem as dimensões monumentais e a complexidade do projeto das Passages. A “montagem literária” do pequeno livro permite reunir uma multiplicidade de formas de texto aparentemente disparatadas, um caleidoscópio, são citações de várias procedências: cartazes, relatos de sonhos, locais, ambientes, axiomas, fábulas, recordações, objetos, provérbios e modos de fala, utensílios domésticos, brinquedos infantis, moradias, embaixadas, roupas e apetrechos de vestuário, plantas, locais de trabalho, panoramas, provocações sobre os acadêmicos e seus “métodos críticos”, o hábito alemão de beber cerveja; mendigos, ambulantes, proletários e esnobes e gente simples povoam seus aforismos; coleção de selos das mais variadas procedências; ruas e gentes de várias cidades como Paris, Berlim, Marselha, Sevilha, Moscou, Riga etc; considerações sobre a infância e as escolas, a disciplina prussiana, o militarismo, a luta de classes; coleções de antigüidades, mapas, achados e perdidos; o poeta vienense Karl Kraus e vários personagens literários; igrejas e sinagogas, citações da Bíblia e do Talmud, museus, parques de diversões, hospitais, asilos, restaurantes, postos de gasolina e de prontos-socorros, quinquilharias, máscaras, agência de apostas, quiromantes etc. etc. Aqui me interessa destacar o diagnóstico que traça sobre o presente alemão mais próximo: “Viagem através da inflação alemã”. É o “Panorama imperial”, uma composição dividida em quatorze partes. Começa extraindo conseqüências críticas dos modos de fala [Redewendungen] do burguês alemão nos quais evidencia uma espécie de amálgama de “estupidez e covardia” [Dummheit und Feigheit], de fatalismo, já que “assim não pode mais continuar”. Com o fim da Primeira Guerra Mundial, a situação econômica do homem médio mudou drasticamente, colocando por terra a relativa estabilidade que o favorecia, criando uma nova situação, mas, observa, “já antes da guerra havia camadas para as quais as relações estabilizadas eram a miséria estabilizada” (p.94; p.20). Com a inflação, se configura-se uma nova ratio, aquela que passa a contar com “os fenômenos de declínio [Erscheinungen des Verfalls] como o puramente estável” (p.95; p.20). A contrapartida é dirigir a atenção para o extraordinário, na expectativa de um milagre, já que assim não pode continuar, senão lhe resta apenas o “aniquilamento” [Vernichtung]. Uma situação paradoxal que engendra um amesquinhamento: “as pessoas só têm em mente o mais estreito interesse privado quando agem, mas ao mesmo tempo são determinadas ... pelos instintos da massa. E mais do que nunca os instintos da massa se tornaram desatinados e alheios [fremd] à vida” (p.95; 38 p.21).3 Um estado em que o indivíduo se amesquinha, centrado no seu “próprio inferior bem-estar” e “a diversidade de alvos individuais se torna irrelevante”. Algo semelhante ao que Kracauer caracteriza como aquele processo no qual a massa se transforma em ornamento4, anulando as características individuais. Nas palavras de Benjamin: “De modo que nela a imagem da estupidez se completa: insegurança, perversão mesmo, dos instintos vitalmente importantes, e impotência, declínio mesmo, do intelecto”. E completa: “É a disposição da totalidade dos burgueses alemães” (p.95-6; p.21). No centro dos interesses está o dinheiro. É a miséria estabilizada: “É impossível viver em uma grande cidade alemã, na qual a fome força os mais miseráveis a viver das notas com as quais os passantes procuram cobrir uma nudez que os fere”. Uma situação que lembra a sordidez retratada em um quadro de Otto Dix, no qual um mutilado de guerra é ignorado pelos passantes, sem ser respeitado nem mesmo por um vira-lata que urina sobre sua perna aleijada. Outro modo de fala: “pobreza não é desonra” ou “quem não trabalha não come”. Benjamim inverte o princípio de Adam Smith, no qual haveria uma “mão invisível” a regular no mercado os apetites egoístas, para denunciar a falsidade do provérbio: “Mas é a desonra, sim, essa penúria, da qual milhões já nascem dentro, e em que são enredados centenas de milhares, que empobrecem. Sujeira e miséria crescem como muros, obra de mãos invisíveis, em torno deles” (p.97; p.22). Uma calamidade exposta aos olhos de todos, mas cujas causas reais permanecem obscuras, mesmo que sejam alardeadas diariamente pela imprensa. A falta de clareza sobre as potências efetivas da situação de crise gerada pela inflação é ilustrada ironicamente por um francês espirituoso que diz: “Nos casos mais raros, um alemão terá clareza sobre si. Se alguma vez tiver clareza, não o dirá. Se o disser, não se fará compreensível” (p.97; p.23). E conclui Benjamin: “o mais europeu de todos os bens, aquela ironia mais ou menos clara com que a vida do indivíduo pretende transcorrer em disparida- de com a existência de toda e qualquer comunidade em que ele esteja encravado, está inteiramente perdido para os alemães” (p.98; p.23). O diálogo desaparece entre as pessoas, no lugar da consideração pelo outro, impõe-se um “outro” de caráter impessoal: o dinheiro, que se torna o objeto do pensamento e da fala (p.98; p.23). Uma visão conformista, através da qual o indivíduo nada mais faz do que justificar a sua permanência, a sua atividade e sua participação “nesse caos” (p.98; p.23). É uma cegueira [Verblendung] geral. Benjamin não deixa de relevar de que modo teorias da vida e visões de mundo como sanção de uma situação privada “totalmente insignificante” (p.98; p.24). E completa: “Por isso mesmo o ar está também tão cheio de ilusões, miragens de um futuro cultural que apesar de tudo irrompe florescente da noite para o dia, porque cada qual se compromete com as ilusões óticas de seu ponto de vista isolado”(p.98-9; p.24). Perderam o contorno da pessoa humana e o calor das coisas desapareceu: “uma pesada cortina 39 cobre o céu da Alemanha”. Dos homens a seu lado não se deve esperar nenhuma ajuda. É a descrição crítica de uma situação social de decomposição, de desaparecimento de qualquer vínculo entre os indivíduos e a proliferação generalizada de um ímpeto evasivo, fértil de “falsa consciência”, conforme Kracauer analisa em Os empregados, na figura dos “quartéis do prazer” e do “asilo para os sem teto”.5 O livro de Benjamin obteve uma acolhida entusiástica tanto de Ernst Bloch como de Kracauer. Este último dedicou-lhe um ensaio, “Sobre os escritos de Walter Benjamin”, publicado no Frankfurter Zeitung, em julho de 1928, no qual saúda não só seu magistral Origens do drama barroco alemão como também Einbahnstrasse que foram publicados no mesmo ano (1928). Para Kracauer, este último, é “uma coleção de aforismos que, em uma rede de vias pouco conhecidas, se ramificam ou confluem nos fenômenos da vida contemporânea”.6 Segundo ele, Benjamin “quer despertar o mundo de seu sonho” ( 1977-p.253) com seus afo- rismos radicais. São: “relatos curiosos de sonhos; cenas de infância e inúmeros medalhões dedicados a lugares exemplares de improvisação (como mercados, portos etc.), cujos contornos delicados lembram baixo-relevos; declarações sobre o amor, a arte, livros e política, muitas das quais registram às vezes descobertas surpreendentes da meditação” (id). Destaca a importância central do capítulo “Panorama imperial”, isto é, sua tentativa de caracterizar a inflação na Alemanha. Seu alvo é claro: mostrar a “estrutura descontínua do mundo”; os aforismos anunciam “o fim da era burguesa”. Com pleno conhecimento dos propósitos intelectuais de Benjamin, traça um paralelo entre o conjunto de aforismos e o livro sobre o drama barroco, só não utiliza, como faço aqui, a definição deles como “montagem literária”: “O método de dissociar de modo direto das unidades vividas – que ele aplica em seu livro do barroco – assume necessariamente – se aplicado ao mundo de hoje – um significado explosivo, se não revolucionário”. E chama atenção sobre a novidade do método expositivo do livro, sobretudo em relação ao próprio desenvolvimento intelectual de Benjamin, o paralelo com o seu próprio desenvolvimento intelectual é evidente, basta pensar no ensaio de 1927 – “O ornamento da massa”: “o livro se diferencia dos trabalhos anteriores pelo seu materialismo particular”. Mais do que isso, ao dirigir a atenção ao que aparentemente é sem importância, aos dejetos [Abfälle]. Desse modo, a dialética das essências – o que me parece decisivo –, segundo Kracauer, “assume uma aparência estética”. É aquele lugar privilegiado, conforme formula Benjamin em seu livro sobre o drama barroco, “entre o pesquisador e o artista”. Um tipo de pensamento que caiu no esquecimento desde o advento do idealismo. Um “materialismo particular” capaz de realizar a crítica do mundo das coisas. Bloch publicou no início de agosto de 1928 A forma de revista na filosofia [Revueform], incluído posteriormente em Erbschaft dieser Zeit, 1935 (Herança deste tempo).7 Enquanto Kracauer destaca o “materialismo particular” dos 40 aforismos e de que modo a “dialética das essências” assume uma “aparência estética”, Bloch estabelece uma relação direta entre sua forma de escrita e o surrealismo, “é o surrealismo pensante”. O conjunto de aforismos é um exemplo do que denomina “montagem mediata”, não é uma mera sucessão de fragmentos extraídos arbitrariamente da realidade sem conexão entre si, mas um modo de reflexão. Não é o mero “relaxamento” [Lockerung], mas uma forma “mediata”, como forma aberta, involuntária, “mescla de fragmentos”. Desse ponto de vista, segundo Bloch, a primeira do gênero. Ele tira partido de coisas acessórias, vulgares, de segunda mão e radicaliza filosoficamente a descoberta surrealista de tornar o século XIX imediatamente observável – o passado no presente. Nos seus termos: “Seu eu está bem próximo, mas transformando-se, na verdade são muitos eus, quase que cada frase é um recomeço, uma nova maneira de tratar outra coisa. O livro utiliza meios extremamente modernos, com graça tardia, para os conteúdos freqüentemente isolados e gastos. Sua forma é uma rua, de uma sucessão de casas e lojas, de onde expõe as ocorrências” (EZ, 1985 - p.368). É uma “revista” composta de vários quadros. Diferentemente da forma quase lacônica de se expressar, muitas vezes até comedida, mas incisiva de Kracauer, Bloch, em contrapartida, se expressa de forma próxima da loquacidade,8 rica de imagens, “fabulante”, quase que se apropria do modo expositivo dos aforismos, da “montagem mediata” de Benjamin. Continua: “Os novos aspectos do ‘improviso’ não faltam na mão esquerda. Estas ações tornam-se filosóficas em Benjamin, enquanto forma, interrupção, improvisação, no súbito olhar em diagonal que quer alcançar os detalhes e os fragmentos e não um ‘sistema’” (EZ, 1985, p.369). A recusa de um sistema filosófico tradicional, a escrita que se expressa mais por meio de imagens do que por meio de conceitos, esse caráter quase que “a-lógico” (Adorno), é uma característica comum na produção teórica de Benjamin, Kracauer e Bloch, nesses anos da chamada República de Weimar, sem perder de vista a diversidade entre eles. A “revue” é uma forma “aberta”, é uma alternativa ao sistema filosófico tradicional, “fechado”. Nas palavras de Bloch: A sentença, o preceito, o diálogo, o tratado foram sempre formas filosóficas anteriores ao sistema, bem antes dos sistemas modernos. Hoje o sistema se retira com o princípio racional a priori da burguesia... Os sistemas fechados desapareceram ao mesmo tempo que o cálculo fechado e abstrato da burguesia, na mesma medida em que Nietzsche pode chamar o sistema de uma vontade de ‘má fé’ [Unehrlichkeit]! É por isso que as impressões inquiridoras e questionadoras de Simmel encontram seu lugar ( EZ, 1985, p.369). Em 1930 é publicado o livro Spuren [Vestígios] de Ernst Bloch. Uma coleção de pequenas narrativas, como o próprio Bloch define o livro: uma “narrativa de narrativas”.9 Um conglomerado de contos de fada, fábulas, lendas, provérbios, conversas e citações das mais 41 variadas procedências, ao lado de uma especulação incomum que busca captar os elementos anticapitalistas e utópicos presentes nesse universo pré-moderno, não-contemporâneo, capaz de lançar luz na “obscuridade do instante vivido” e de sugerir respostas à “figura da questão inconstruível” – usando as expressões de O espírito da Utopia. São fábulas germânicas, Märchen (contos de fada) dos irmãos Grimm a Ludwig Tieck; Kalendergeschichten [histórias de calendário] de Johann Peter Hebel; romances de folhetim (Kolportage); romances policiais; lendas chassídicas do Leste europeu; contos russos e chineses; histórias de Mil e uma noites; e da Odisséia de Homero para não falar, e nesse ponto muito próximo de Walter Benjamin, da literatura surrealista, em suma, uma “montagem mediata” – conforme a terminologia de Herança deste tempo. Sem forçar a mão, posso afirmar que se trata de uma das obras-primas da chamada República de Weimar. O livro é dividido, além da introdução, em quatro partes: lugar, destino, existência e coisas. Na Introdução, Bloch deixa claro seu propósito: “Resumindo, é bom também pensar fabulando”[fabelnd zu denken].10 O caso possui um em-si, que só é apreendido por meio de seus vestígios, pequenos testemunhos secundários, peças minúsculas, formando uma micrologia particular. São historietas desse tipo, isto é, que são não apenas narradas, mas são contadas as horas quando suas notas foram soadas e como elas entraram pelas orelhas, nos deixando a pergunta: “para onde elas foram” (ibid). Uma nota, uma advertência já presente nos pequenos acontecimentos como exemplos e pistas, vestígios, indicando um mais e um menos que só podem ser percebidos por meio dessas histórias. É um “dejeto” [Abfall] de coisas passadas, em lugares diferentes, que não pode ser esquecido – e em se tratando de dejetos, há hoje uma abundância deles (p.17). Trata-se de ler vestígios e as diferentes seções do livro se entrecruzam na transversalidade dessas pistas. Ao encontrá-las somos tomados por um choque. A proximidade com os propósitos de Rua de mão única – tirar proveito dos dejetos (Abfälle) da história para decifrar o presente, o trabalho micrológico e o uso da montagem (mediata), citações, conversas e, sobretudo, o pensar “surrealista”, o choque – salta aos olhos. Procedimentos experimentais de texto e de modos de análise que estão também presentes na “literatura sociológica”11 de Kracauer daqueles anos. Mas a peculiaridade de Bloch reside no seu pensar fabulando. O que significa isto? Na secção “Cair no agora” [Fall ins Jetzt], Bloch narra uma historieta judaica do Leste da Europa. Seu final soa como uma piada (Witz) e mostra que “o poço (Grube) é nosso agora” (p.98). Resumindo a narrativa: um grupo de judeus conversava, numa Sinagoga de uma cidadela, e começou uma espécie de jogo: cada um deveria se expressar sobre o que desejaria caso viesse um anjo. O rabino disse que ficaria contente se ele lhe aliviasse a sua tosse; o segundo falou “eu gostaria que minha filha se casasse”, e o terceiro, interrompendo, retrucou, eu não gostaria de ter uma filha, mas um fi- 42 lho para que cuidasse de meu negócio. Por último, o rabino se voltou para um mendigo que se encontrava desde o dia anterior sentado em um banco mais atrás deles e lhe perguntou: “O que gostaria de desejar, meu caro?” O mendigo lhe respondeu que gostaria de ser um grande rei que tivesse um vasto país e que em cada cidade possuísse um palácio como residência revestida de ônix, sândalo e mármore, onde se sentaria no trono e seria temido pelo seus inimigos e amado pelo povo como o rei Salomão. Mas que, infelizmente, acrescentou – mudando a forma condicional do subjuntivo para o tempo verbal do presente do indicativo – “na guerra não tenho a sorte de Salomão” (p.98). E continuou sua fala, meus inimigos se sublevam, meu exército é derrotado, queimando as cidades e os bosques e escuto nas ruas a algazarra do povo a clamar pelo meu sangue e eu deixo tudo de lado até mesmo minha camisa e vim pela estrada afora, passando pelos bosques e pradarias, vendo o meu país em chamas, caminho durante dez dias, até chegar num lugar em que ninguém me conhece, fui salvo, e conclui: “desde ontem à noite me encontro aqui”(p.99 – grifo do autor). Todos ficaram estupefatos com a narrativa do mendigo. O rabino lhe disse, o que adiantaria todo aquele poder e riqueza se ele logo perderia tudo. O mendigo lhe respondeu que ficaria muito contente se tivesse pelo menos uma camisa. Todos riram e lhe presentearam com uma camisa. Bloch comenta: “este curioso agora como fim ou o fim do agora na palavra: desde ontem à noite me encontro aqui, esta ruptura do ser aqui ao sair do sonho. Por meio de uma transição árdua comunicada lingüisticamente, na qual o mendigo começa contando a partir da forma desiderativa, passa do presente histórico subitamente ao presente efetivo. O ouvinte é tomado por um certo estremecimento ao aterrizar lá onde ele se encontra; nenhum filho para assumir o negócio” (p.99). Aqui se deve prestar atenção à sutileza da mudança de tempo verbal, que é justamente a capacidade de ler um vestígio que se manifesta na estranha forma do que é narrado que retorna ao presente real – uma “queda no agora”. Como é o “Reverso das coisas”? Como se lê em uma outra secção do livro. A questão poderia ser formulada por Berkely, que para o homem atual representaria uma condição humana primitiva, ingênua. As coisas são exatamente como se nos apresentam diante dos olhos? De que modo a sensação se torna uma propriedade das coisas? A rosa é vermelha e no entanto é rosa. O que para o realismo ingênuo de uma criança é quase um mistério. O que fazem as coisas em nossa ausência, quando lhes damos as costas? Aqui, Bloch recorre a um conto de fada, a um trecho de Simbad, o marujo e o tema de seu infortúnio, demarcando a face revertida das coisas e a sua vida própria “irracional”, além do seu uso habitual: Simbad sofre um naufrágio, e juntamente com outros sobreviventes, se refugia em uma pequena ilha repleta de árvores frutíferas, mel, coqueiros, pássaros, caça abundante e com uma fonte de água potável no centro da mata. Mas quando à noitinha os sobreviventes acendem uma fogueira para assar a caça, o chão começa a tremer e as árvores a cair 43 em pedaços: “a ilha era o lombo de um polvo (Kraken) gigantesco”(p174). A sutileza do gosto, a sensibilidade para a minúcia é ilustrada por meio de uma velha lenda chinesa, na verdade trata-se de uma micrologia: “comer minuciosamente azeitonas” (p.170-71). Na velha Nankin, um grupo de jovens escritores se reunia duas vezes por ano, cada um saboreava calmamente três azeitonas. Em seguida eram escolhidas mais azeitonas que eram alinhavadas em um pequeno tordo (Krammetsvogel), este era colocado em seguida dentro de uma perdiz, esta dentro de um pato, este dentro de um ganso, o ganso dentro de um peru, o peru dentro de um leitão, este dentro de um carneiro, o carneiro dentro de uma vitela e esta, finalmente, dentro de um boi. Todo este conjunto espetacular era cozido lentamente e com muito cuidado. Depois se abria o boi, retirava-se a vitela, o carneiro, o leitão, o peru, o ganso, o pato, a perdiz e espetava em cada um, duas azeitonas do tordo. Quando saboreavam em silêncio as azeitonas, um deles que mastigava lentamente a iguaria na ponta da língua, olhando para o teto – quebrando o silêncio –, disse: “Mal posso supor que eu esteja errado, me parece que o peru junto desta azeitona não estava inteiramente fresco” (p170). Apesar de ter quebrado o silêncio que acompanhava a refeição, foi elogiado por todos por sua ponta da língua apurada, por seu paladar que não se deixa enganar. Bloch ressalta a questão da sutileza implícita nessa história chinesa “micrológica”: capaz de ressaltar o mais importante das muitas coisas importantes que existem no mundo. Não se trata apenas de comer azeitonas, mas minuciosamente. Poderíamos enumerar muitas outras narrativas desse caleidoscópio de narrativas como os temas da “separação” (p.72), da “reclusão”(Verborgenheit)”(p. 121), da “sedução” (p.179), todos de inspiração kierkegaardiana ou mesmo aquelas em que retoma no “Tema da magia branca”, como se fosse um alquimista, a lenda de Fausto. O importante é delimitar a peculiaridade da “montagem mediata” nos textos de Bloch do período, seu “pensar fabulando”, diferenciando-o não só da “montagem literária” de Benjamin, dotada de um “materialismo particular”, como também da “literatura sociológica” de Os empregados, de Kracauer. Todos se inspiram, como no surrealismo, na literatura de folhetim, no romance do Kolportage, aquela literatura que designa em geral o comércio ambulante de livros, mas do século XVI ao XIX indica também uma forma específica de literatura, livros de pequeno formato vendidos por ambulantes e vagabundos. Uma literatura de caráter utilitário: livros de devoção, de educação, de orientação higiênica, livros de magia, almanaque etc. A literatura de Kolportage tornou-se um importante repertório da cultura popular, assegurando a transmissão de lendas de cavalaria, de mitos, provérbios etc.12 Em Bloch, o Kolportage serve como fonte das narrativas, em Benjamin, para mostrar o caráter descontínuo do mundo, em Kracauer, como forma de articular uma análise que é ao mesmo tempo uma realidade em construção. A recepção do livro de Kracauer, Os empregados, foi tímida, apesar das 44 resenhas extremamente simpáticas que recebeu de Bloch e Benjamin, ambos tinham plena clareza da importância de sua análise, que delimita um novo fenômeno – isto é uma “nova classe média” e o novo modo de escrita, próximo das experiências que ambos estavam realizando. Para Bloch, Kracauer “penetra ali onde outros apenas tagarelam. Com uma linguagem que pode dizer o que vê” (EZ, p.33). A série de artigos publicados no Frankfurter Zeitung articula – por meio das conversas desconexas do cotidiano, das situações imediatas e dispersas, dos fenômenos de superfície –, aparentemente uma “reportagem”, mas só aparentemente, pois Kracauer se posiciona claramente contra essa literatura que se tornou moda entre os escritores de esquerda e que gerou uma polêmica na revista berlinense Die Linkskurve.13 Seus argumentos críticos contra a reportagem são próximos dos de Lukács, no seu famoso ensaio, de “Reportagem ou configuração”.14 Mas a crítica de Kracauer é anterior ao ensaio de Lukács. Para Kracauer, trata-se de uma “literatura sociológica”15 e não de uma mera reportagem. É por meio de uma “literatura sociológica” que lhe permite articular uma realidade sui generis, que não é aquela da “lógica dos fatos”, nos seus próprios termos: “a realidade é uma construção”. A construção de um cotidiano específico, diretamente ligado a uma nova forma de trabalho assalariado, o empregado, que se generaliza com a emergência da sociedade de massas. Seu objetivo é mostrar, segundo Bloch, “a verdadeira situação dos empregados ou, mais ainda, a falsa consciência que eles têm de si mesmos” (EZ, 1985, p. 33). A questão da “falsa consciência” decorre da leitura de História e consciência de classe. Kracauer chegou a comentar em detalhe esse livro de Lukács, como o conceito de “falsa consciência”, em cartas dirigidas a Bloch.16 Mas o sujeito analisado por Kracauer é de outro tipo: os empregados. Diferentemente do trabalhador fabril, o empregado está afastado da produção. Sua atividade é monótona e sua atitude social apática. Está sofrendo uma rápida proletarização, mas se sente ainda ligado ao meio bur- guês. Seu número, nas primeiras décadas do século XX, quintuplicou enquanto no mesmo período o número de trabalhadores apenas duplicou. A “falsa consciência” de classe que expressam é o que Bloch denomina uma “não contemporaneidade”. Uma vez que nada tem de uma “verdadeira” consciência de classe: “são aparências exteriores de uma burguesia já extinta que ainda dominam a sua vida, sem as realidades correspondentes” (EZ, 1985, p.33). É nesse “meio artificial” que a “não contemporaneidade” assume a sua forma mais susceptível de ser apropriada pela barbárie: “uma indescritível horda oriunda do antigo filisteísmo (Spiessertum) incorpora a isso seus instintos, certamente os instintos não populares, mas os perversos, fossilizados e sobretudo sem objeto, e que são anticapitalistas somente quando espancam mortalmente o judeu enquanto ‘usurário’”(EZ, 1985, p.34). É nesse “meio artificial” que se forma o público da distração. Mas é a distração resignada que “desvia da vida real”. É a mesma distração que fomenta o esporte, os concursos de dança, os si- 45 nais ultraluminosos; introduz o banho de luz nos filmes e a “imprensa de palavras ocas e de pena hábil”. Bloch toma de Kracauer uma frase forte: “A cultura dos empregados ... é a fuga diante da revolução e da morte”(EZ, 1985, p.34). Kracauer já havia examinado anteriormente esse novo fenômeno cultural: o “culto da distração”. O patrimônio cultural, segundo Kracauer, transformou-se ao gerar um “homogêneo público cosmopolita que – do diretor de banco aos auxiliares de comércio, da diva à datilógrafa – sente do mesmo modo”.17 Na linguagem de Bloch, a distração é como “uma grande feira anual colorida” que embriaga, distrai a atenção e “levanta também pó e, desta vez, um pó já suspenso, cintilante, por assim dizer, um pó de segunda potência. Mas isto não impede que, de imediato, no inteiro afastamento haja apenas trapaça (Betrug), que deve ocultar o lugar e a base sobre os quais ele acontece” (EZ, 1985, p.35). Na sua resenha sobre Os empregados, Benjamin chama atenção para o posicionamento político de Kracauer – a politização da inteligência –, além de ressaltar de que modo ele desmascara a falsa consciência inerente aos empregados, destaca a sua atitude crítica diante da “reportagem” e da “Nova Objetividade”. Kracauer seria um “desmancha prazeres” [Spielverderber], afinal “desmascarar é para o autor uma paixão”.18 E acrescenta: “E se penetra dialeticamente na existência dos empregados, não o faz na qualidade de marxista ortodoxo, e menos ainda na qualidade de um agitador prático, senão pelo fato de que penetrar dialeticamente significa desmascarar”(p.116). A consciência do autor ou mais ainda sua autoconsciência se manifesta sobretudo no modo como sua escrita se diferencia da reportagem e da Nova Objetividade: “Esta escola radical de esquerda pode fazer o que lhe vem à mente; não pode jamais negar o fato de que inclusive a proletarização do intelectual quase nunca gera um proletário (...) Por isso que seu escrito, diferentemente dos produtos de moda radicais da escola mais recente, represente um marco no caminho da politização dos intelectuais”(p.122). Benja- min enfatiza ao longo de sua resenha que Os empregados representa uma mudança no processo de radicalização política de Kracauer, “um outsider que se faz notar” – conforme o título original do artigo. Na maneira como ele desmascara os mecanismo da falsa consciência, pode se dizer que o autor pensa em termos marxistas. Certamente, seu projeto o conduz tanto mais profundamente à estrutura global do marxismo, quanto a ideologia dos empregados representa uma projeção singular de imagens de recordações e desejos extraídos da burguesia, sobre a realidade econômica concreta, que é muito próxima do proletariado. Não existe hoje nenhuma classe cujo pensamento e sentimento se encontre mais alienado da realidade concreta de sua vida cotidiana como os empregados. (p.117) Kracauer, segundo Benjamin, é um “descontente” que propõe, como nenhum outro, “a politização da própria classe” (p.122). E referindo-se a Lênin: “A influência direta só pode surgir da práxis. Mas, em contraposição a seus colegas arrivistas, se mantém em seus pen- 46 samentos a posição de Lênin, cujos escritos demonstram do melhor modo até que ponto o valor literário da práxis política, a influência direta, está distante da rude tralha de fatos e reportagens que hoje se faz passar por essa influência” (p.122). Na verdade, Benjamin projeta em Kracauer o seu próprio processo de radicalização política, processo já perceptível desde Einbahnstrasse e, no caso de Kracauer, desde o ensaio “O ornamento da massa”. O próprio Bloch chama atenção que, no final dos anos vinte, ele, Benjamin e Kracauer tinham posições políticas e teóricas muito próximas, chega mesmo a incluir o Kierkegaard do jovem Adorno. Para ele, Einbahnstrasse, Spuren, Die Angestellten e Die Konstruktion des Ästhetischen possuem características comuns ao incluir narrativas na exposição e fazer uso da montagem “mediata”. Decerto, o livro de Adorno é um trabalho acadêmico muito diverso do experimentalismo de Benjamin e Bloch e distante do viés político-sociológico dos ensaios de Kracauer. Os empregados vai estar na base da interpretação de Kracauer do nacional-socialismo. Mas, essa relação já é assunto para outro capítulo. 1 Professor de História da Filosofia e da Arte na Faculdade de Ciências e Letras, UNESP, campus de Assis-SP, Brasil. Autor de Um capítulo da história da modernidade estética: Debate sobre o expressionismo. São Paulo: Ed. UNESP, 1998 e As formas e a vida. Estética e ética no jovem Lukács (1910-18). São Paulo: Ed. UNESP, 2004. Membro da Internationalen Georg-Lukács-Gesellschaft desde 1996. O presente texto é uma parte de um estudo maior sobre Os empregados e a análise de Kracauer do nacional-socialismo – o artigo foi publicado em VEDDA, M (org.) Aproximaciones a Walter Benjamin. Vol.II. Cuadernos de Herramienta. Buenos Aires: Herramienta, 2007. p.25-32. 2 BENJAMIN, W. Gesammelten Schriften. Bänden V 1 e 2. Frankfurt aM: Suhrkamp, 1983. 3 BENJAMIN, W. Gesammelten Schriften. Band IV-1. Frankfurt aM: Suhrkamp, 1980. Edição brasileira: Obras Escolhidas II. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1995. Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa. 4 KRACAUER, S. Das Ornament der Masse. Frankfurt aM: Suhrkamp, 1977, p.50-63. Edição brasileira. Ed. Cosac & Naify, 2007. Trad. Carlos Eduardo Jordão Machado e Marlene Holzhausen. 5 KRACAUER, S. Die Angestellten. Frankfurt aM: Suhrkamp, 1971. 6 Das Ornament Masse - cit, p.249 47 7 BLOCH, E. Erbschaft dieser Zeit. Frakfurt aM: Suhrkamp, 1985 (EZ). 8 Segundo Adorno (1981), no ensaio (magistral) que dedicou ao livro de Bloch, Spuren (Vestígios): Bloch, “aceitando o primado da expressão sobre o significado, não está preocupado em que as palavras esclareçam conceitos nem que os conceitos encontrem uma morada nas palavras”. ADORNO, Th. W. “Blochs Spuren ’in Noten zur Literatur. Frankfurt aM: Suhrkamp, 1981, p.244. 9 BLOCH, E. Marxismo e utopia. Roma: Ed. Riuniti, 1984, p.83. 10 BLOCH, E. Spuren. Frankfurt aM: Suhrkamp, 1985, p.16 11 KRACAUER, S. “Reisen, nüchtern” in Schriften 5-3. Frankfurt aM: Suhrkamp, 1990. p.88 12 Para compreender melhor a importância do Kolportage como fonte do “pensar fabulando”de Bloch, ver a sugestiva apresentação de Laura Boella à edição italiana dos Spuren: BLOCH, E. Tracce. Milano, 1989. p. I-XLVI. 13 Sobre a história desta revista berlinense, ver GALLAS, H. Teoria marxista de la literatura. Buenos Aires: Siglo XXI, 1974. Sobre os escritos de Kracauer e a polêmica na revista Die Linkskurve, ver: MÜLDER, I. Siegfried Kracauer – Grenzgänger zwischen Theorie und Literatur. Stuttgart: Metzler, 1985, pp.115-124 14 LUKÁCS, G. “Reportage oder Gestaltung” em KLEIN, A. Georg Lukács in Berlin. Berlin und Wemar: Aufbau, 1990, pp.359-381 15 Kracauer utiliza a expressão “soziologische Literatur” [literatura sociológica] em um texto de 1932, “Reisen, nüchter” [Viajar, sóbrio], ao comentar alguns livros com o de Hans Fallada Kleiner Mann- was nun? [Pequeno homem- e agora?]. KRACAUER, S. Schriften 5-3. Frankfurt aM: Suhrkamp, 1990, p.88. 16 Sobre a leitura de Kracauer da obra de Lukács ver meu ensaio: “Die Exterritorialität als transzendentale Heimatlosigkeit. Über Siegfried Kracauer und Georg Lukács” em Ibero-Amerikanisches Jahrbuch für Germanistik, 2007. 17 “Kult der Zerstreuung” in KRACAUER, S. Das Ornament der Masse (ed. cit), pp. 311-17 18 BENJAMIN, W. “Die Politisierung der Intelligenz”in KRACAUER, S. Die Angestellten. Ed. cit., p. 116 48 DEPOIMENTOS Entrevista com o Professor Antonio Augusto Soares Amora1 Nascido no município de Itaquera (São Paulo), Antonio Augusto Soares Amora bem cedo revelou sua vocação para o estudo das Letras, em parte influenciado pelo ambiente familiar. Licenciado em Letras pela Universidade de São Paulo, na mesma instituição foi construindo uma carreira universitária de prestígio, seguindo os vários degraus: assistente –- do Professor Fidelino Figueiredo, de 1942 a 1955 –; doutor em Letras; livre-docente; e professor catedrático. Em várias estadas em Portugal, Alemanha e Estados Unidos, realizou inúmeras pesquisas. Em 1955 criou, em São Paulo, o Instituto de Estudos Portugueses – hoje, Centro de Estudos Portugueses –, que teve importância decisiva no processo de organização da Faculdade de Assis. Em 1959, foi nomeado pelo governador do Estado de São Paulo para criar e organizar 1 Efetuada por Teresa Malatian, em São Paulo, em 30 de janeiro de 1992.[Doravante, entrevistado -AA; entrevistadora -TM] CEDEM – Projeto - Institutos Isolados de Ensino Superior de São Paulo (1923-1976). Memória e História. 49 a estrutura pedagógica e administrativa da Faculdade de Filosofia de Assis, em seu primeiro curso de Letras. O professor Amora foi responsável pela criação de um projeto original que deixou marca indelével na história daquela faculdade. Tereza Malatian - É sabido que a UNESP teve sua origem a partir da aglutinação de um núcleo inicial de escolas, os Institutos Isolados do Ensino Superior do Estado de São Paulo. Como o senhor foi um dos diretores responsáveis por esse início, gostaria que nos relatasse esse início. Antonio Amora - Em 1958 foram criadas as Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras. Passados mais um, dois ou três anos, em Ribeirão Preto, onde havia já uma Faculdade de Medicina da USP, criou-se mais uma Faculdade de Farmácia e Odontologia. Foi encampada uma Faculdade de Farmácia e Odontologia antiga; foi estadualizada, portanto, Ribeirão Preto. Em fins dos anos 1950, os Institutos Isolados de Ensino Supe- rior eram uma pequena rede de institutos disseminados, um pouco aleatoriamente, no Estado. Assis estava muito próximo de Prudente, Prudente estava próximo de Marília, quer dizer, ali naquelas três cidades, na Alta Paulista e Alta Sorocabana, logo três Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras. E depois, a outra estava muito longe, porque vinha aqui para Rio Claro. Logo depois, surgiu a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São José do Rio Preto, que foi encampada, era municipal e foi encampada pelo Estado e depois surgiu a de Franca, tivemos a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Franca. Nessa altura, esse sistema era gerido por um Conselho chamado Conselhinho. Era Conselho… Eu não me lembro como chamava, Conselho de Direção dos Institutos Isolados, mas enfim, Conselho dos Institutos Isolados, para não se confundir com Conselho Universitário dos Institutos Isolados de Ensino Superior do Estado de São Paulo, o dito Conselhinho era presidido pelo Zeferino Vaz. O Professor Zeferino Vaz foi, digamos assim, o construtor da Fac- uldade de Medicina de Ribeirão Preto, que estava vivendo aquela experiência de Ribeirão Preto e que tinha um grande prestígio na política universitária, no Conselho da Universidade de São Paulo, porque ele era professor também da Universidade de São Paulo. Podia ser e foi, para todos nós, um bom líder de política universitária, o Professor Zeferino Vaz. Depois o Professor Zeferino Vaz foi para Brasília, já em 1964, foi para Brasília como reitor e depois voltou a São Paulo e foi para a UNICAMP. Concluiu a UNICAMP, que era uma universidade muito mais projetada do que realizada e desenvolveu bastante a UNICAMP, na última fase de sua vida. Eu não sei exatamente o ano em que o Conselhinho foi transformado em Conselho Universitário, que é quando foi criada a UNESP, mas isso você deve saber. TM - Foi em 1976. A criação da UNESP é de 1976. AA - Já, portanto, há 15 anos, há 16 anos é a UNESP. Portanto, esse Con- 50 selhinho vem até 1976. A propósito, nesta primeira fase da criação desse sistema de ensino, desse Sistema de Institutos de Ensino Superior do Estado, fora da Universidade de São Paulo, primeiro houve o erro, como eu disse a você, que foi a disseminação sem um critério adequado, o que havia era critério político. Cada um procurou salvar as suas unidades na medida que pôde, levando para lá a sua responsabilidade profissional. Os Institutos se organizaram mais rapidamente. Eu, por exemplo, tinha uma experiência, não só porque entrei na USP em 1935 como estudante, vivi muito a USP, vivo muito USP. Eu além disso, em 1949, fui cedido pela Faculdade de Filosofia, para uma assessoria ao reitor da Universidade de São Paulo, o Professor Lineu Prestes, e acabei adquirindo um conhecimento muito útil, fui chefe de gabinete em três reitorias, sem prejuízo das minhas funções de professor de Letras. Adquiri uma experiência muito grande na Universidade de São Paulo. Além de tudo, pude levar para Assis uma experiência de como gerir um instituto universitário, isso me valeu muito, porque a questão não era apenas uma questão de competência ou não competência numa área de trabalho. Eu, Letras, Literatura Portuguesa; o João Dias, Geografia Física; o Eurípedes, História Antiga e Medieval. Não era só uma questão de competência, era uma questão de competência gerencial, em termos de criação e desenvolvimento e implantação e consolidação de um instituto universitário. Eu tinha também já trabalhado em várias universidades da Europa, dos Estados Unidos, quer dizer, tinha uma certa experiência, porque tinha visto coisas, pelo menos tinha visto coisas. E foi possível, portanto, a experiência de Assis como uma experiência peculiar, mas a experiência de Marília também foi peculiar, a experiência de Prudente, porque cada Instituto desses teve uma experiência peculiar, estava vivendo uma experiência peculiar com seus bons resultados, com seus resultados negativos. É só examinar e ver isso. Os azares dessa história são fáceis de retratar. Mas o que contou foi o que cada um, a verdade é essa, procurou, com o seu brilho pessoal, fazer da sua unidade, embora implantada sem critério nenhum, mas fazer da sua unidade uma unidade que, perante a Universidade de São Paulo, não desonrasse a nossa responsabilidade. Estávamos preocupadíssimos com isso, porque nas nossas congregações, nós éramos constantemente interpelados sobre este crime de lesa-majestade, que era levar a Universidade de São Paulo para o interior do Estado, que é desfigurar a Universidade de São Paulo. Porque a Universidade de São Paulo é uma universidade de elite e implantar uma Universidade de São Paulo numa cidade de 35 mil habitantes, na boca do sertão que era Assis, onde encontrei índios; no terreno da Faculdade eu ainda construi, para dois índios que viviam no terreno da Faculdade, a casinha deles, a agüinha deles, as coisas deles, para não mexer com eles. Por aí se vê que, realmente, sair da Dr. Arnaldo, da Maria Antônia, da Praça da República etc, enfim, da urbs paulista para a boca do sertão, isso era um crime de lesa-majes- 51 tade. Havia uma incompatibilidade entre o interior e a Universidade. Naquela época também sofremos, sofrer no bom sentido, quer dizer, fomos interpelados muitas vezes, de maneira que cada um procurou responder seriamente pela sua responsabilidade e procurou fazer o melhor possível. Portanto, as condições eram bastante adversas para cada uma dessas unidades e cada um fez o que pôde. Eu, como disse, tive a sorte de conhecer aquilo que se chama “o queijo por dentro”, conhecia a USP intimamente, sabia como movimentar uns cordeizinhos para conseguir verbas, para conseguir dotações, para conseguir planos de construção, para conseguir, com certeza. Não que a USP fosse responsável, mas me dava uma cobertura e uma projeção e consegui. Assim foi possível instalar, Assis imediatamente construiu o seu campus; instalar e levar professores e pagar tempo integral para esses professores, todos com tempo integral. Naquele tempo o professor em São Paulo ganhava 17 mil réis, 17 contos, aqui em São Paulo, o professor com tempo pleno, professor pleno e os professores foram para Assis com 35 contos cada um, ganhando o dobro do que se ganhava em São Paulo, para, integralmente, dedicar-se à organização da Faculdade. Enfim, devo dizer a você que há um capítulo aí muito importante a considerar, que é a atuação de cada responsável, de cada grupo responsável por essas unidades, porque elas são muito diferentes. A gente vê que umas se projetaram, outras não se projetaram, mas por quê? Prudente tinha muito mais condições, muito mais condições que Assis, mas o rapaz, lembrei-me o nome dele agora, o professor que foi para lá, foi o professor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, um professor distintíssimo, Fonseca, que era professor de Farmácia e Odontologia, para montar uma Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, com História, com Pedagogia e não sei o quê. Um homem distinto, mas no fim, estava completamente acuado. Depois saiu e veio um outro, que era professor da PUC, excelente pessoa, mas completamente alheio, professor de ensino particular, Professor Fonsequinha, um homem de muito prestígio nos meios católicos, mas enfim, não era um administrador e aquilo andou assim, um pouco lentamente no seu desenvolvimento, que eu não sei como está hoje Presidente Prudente. Mas sei, sei que lutou com muitas dificuldades. A própria Faculdade de Marília, o Querino Ribeiro começou muito bem, mas acontece que depois nós tivemos uma briga com o Jânio. Então o Jânio, a propósito de uma entrevista do Mário Schenberg, pediu publicamente, no jornal, uma censura pública ao Mário Schenberg. Nós nos aborrecemos porque não somos empregados do Sr. Jânio Quadros, muito menos do Governo do Estado. Somos professores e a opinião do Mário Schenberg era sobre o problema de verbas para pesquisa, para investigação, não tem nada de coisa política. Então nós entregamos ao Jânio, em 24 horas, quase 70 funções públicas que ocupávamos, sendo professores da Universidade, a maior parte delas sem ganhar nada. E 52 o Eurípedes saiu, o Querino Ribeiro saiu de Marília, o João Dias da Silveira saiu de Rio Claro, eu saí de Assis e todos, de repente, entregamos tudo isso na mão do Sr. Jânio Quadros. Depois fui chamado pelo Jânio, fomos colegas desde o tempo de professores secundários e ele me pediu para consertar as coisas e depois arrumamos as coisas. Ele se compôs publicamente com o Mário Schenberg. Enfim, por várias razões, os azares dessas instituições têm que ser vistos isoladamente, porque cada uma é uma história, cada uma dessas faculdades é uma história. E para entender a evolução dessas unidades, é preciso entender uma outra coisa: o objetivo que se estabeleceu para cada uma dessas unidades. Quando se criou a USP, o que nós tínhamos aqui? Escolas boas, mas escolas de formação profissional, escolas para formar profissionais. Formar bons médicos, bons advogados, bons engenheiros, escolas profissionais de nível superior. Era isso. Quando veio esta idéia, trazida por determinados elementos, foi o caso do Júlio Mesquita, que tinha feito curso, inclusive, em França, na Europa, a idéia de que uma universidade era uma geradora de conhecimentos; a universidade é, preliminarmente, gestatória, a universidade é uma organização gestatória, não é uma escola, uma Escola Normal Superior, não é uma escola de formação superior, ela não é uma escola técnica superior, ela é um centro de produção do saber e de divulgação do saber, é isso. Quando nós saímos daqui, cada um levou uma idéia, achei que Assis devia ser assim, achei que Assis devia ser uma Faculdade de Letras, como foi criada a Universidade de São Paulo, para gerar saber. Era preciso que, em Francês, se produzisse em Assis um produto tão bom quanto se podia produzir em qualquer centro de estudos franceses. Era necessário produzir em Literatura Brasileira, qualquer coisa tão boa quanto se podia produzir, digamos, talvez, em São Paulo, porque a coisa estava um pouco crítica em São Paulo, por isso, em Brasileira, levei o Antônio Candido. E depois levei o Jorge de Sena para a Literatura Portuguesa, ou seja, fui escolhendo professores estrangeiros que estavam em São Paulo, Professor Antonio Bento, Professor Speyer, professores estrangeiros, fui levando uma equipe de professores dispostos a gerar saber. As faculdades de Odontologia, de modo geral, foram implantadas com o espírito do Zeferino. Elas foram implantadas com o espírito da formação profissional e da prestação de serviço comunitário. É uma política completamente diferente, de maneira que era preciso um bom ambulatório, uma boa clínica, atender à população rural, para isso que se pôs uma Faculdade de Odontologia em Araçatuba, não é para que surjam em Araçatuba pesquisadores com a competência de pesquisadores da metalurgia dentária, que existe em qualquer lugar do mundo. Aquilo era uma idéia, foi uma idéia que não existiu nas faculdades de Farmácia e Odontologia, elas eram de formação profissional, de boa qualidade, mas de prestação de serviço às comunidades. Era preciso que elas se integrassem às comunidades, permeabilizassem as comunidades e dessem serviço à comunidade. E as faculdades 53 de Filosofia, algumas achavam que o problema da faculdade de Filosofia - o curso de Letras, por exemplo, eu só levei Letras -, era um problema de formação de desenvolvimento de saber, quer dizer, continuar o trabalho que desenvolvíamos em São Paulo: levar pesquisadores, levar investigadores e formar pesquisadores e investigadores. Sem prejuízo, naturalmente, de atendermos à demanda de vagas para curso superior. Mas os cursos eram todos voltados para a formação, digamos assim, do espírito de investigação do tempo integral e do espírito criativo. Sempre, todo o curso era orientado neste sentido. Outras, o caso de Marília, por exemplo, o objetivo era formar professores secundários no interior e não erradicálos do interior, porque o que se notava é que a juventude vinha para São Paulo, estudava na Maria Antônia e depois ninguém voltava mais para ser professor no interior, ficava por aqui, evidentemente. Ninguém quer voltar mais para o interior. Então formando, vamos dizer, aquelas ninhadas de licenciados interioranos, eles iam se fixando nas próprias regiões. Uma estratégia completamente diferente, foi a estratégia, portanto, de Marília, foi a estratégia de Prudente e não foi a estratégia, evidentemente, de Assis. Só para dar exemplos. Outras unidades interioranas acabaram por tentar conciliar os dois objetivos. Foi o caso de Franca. Franca procurou conciliar os dois objetivos, de um lado, contar com professores que saíam da USP ou que se aposentavam e que eram investigadores brilhantes, foi o caso do Nunes Dias, um notabilíssimo investigador, e do outro lado, também levaram bons formadores de profissionais, quer dizer, as duas coisas a atender, considerando que há alunos que são propensos mais para a carreira profissional, entram para ser professores e também não têm intenção de mais nada. Então é necessário que haja professores capazes de formar bons professores. Nas faculdades de Odontologia, a mesma coisa, umas ficaram nas clínicas, no trabalho prático, higiene bucal, era mais importante ensinar o sujeito a limpar um dente, a pôr o remédio, a fazer uma coisa, do que formar um pesquisador, sei lá, em Araçatuba, qualquer coisa. Portanto, é preciso vocês terem em conta os objetivos diferentes que se tentaram imprimir de início. Depois, esses objetivos foram alcançados. Também uma outra coisa que é preciso entender, é que alguns dos responsáveis pela criação dessas unidades, alguns tinham espírito universitário, outros não tinham espírito de universidade, o espírito universitário, quer dizer, espírito não só da universidade, como o que ela deve ser como universidade, como um estilo de vivência. Nós vivemos uma coisa chamada universidade não porque fazemos política universitária, porque vivemos dentro da universidade, porque vivemos tempo integral, porque só fazemos isso, que participamos das reuniões, que temos os colegas, a vida universitária. Tem uma coisa que as universidades inglesas, mesmo as alemãs, as inglesas e as americanas, onde eu trabalhei, o campus universitário cria logo a ambiência universitária dentro da qual se vive. Todo mundo respira universidade 54 dentro do campus. Eu, por acaso, tinha vivido e vivia essa experiência, saía, ia para cursos estrangeiros, voltava. Procurei dar a Assis um pouco desse espírito universitário, embora se tratasse de uma unidade isolada e com um curso reduzido, o curso de Letras; depois criou-se, quando eu saí, História, corretamente, complementando Letras, História, estávamos nas Humanidades, muito bem. Mas depois criou-se Psicologia, nada a propósito Psicologia em Assis. Em todo o caso, a idéia era viver em Assis um campus universitário. Então os alunos tinham o ônibus, levava todos de manhã, passavam lá as manhãs. As manhãs eram todas dedicadas à pesquisa e aos estudos. O silêncio era mantido naquele campus todo e ficavam todos lá, trabalhando nas suas coisinhas. À hora do almoço, o ônibus levava à cidade ali, a 5 km, levava, cada um ia para casa e depois voltava à tarde, para as aulas. Tentar dar um ambiente: “Eu vou para a Universidade viver um dia agradável,” uns com os outros e assim por diante. Resultou? Não resultou? Isso são os azares das coisas, são os azares das instituições. Acredito que sim, que em grande parte resultou, foi possível viver uns anos de vida universitária, com as grandes vantagens da vida universitária. Porque a vida universitária é uma vida de convívio intelectual, e isso é o mais importante. Não é o convívio afetivo, é o convívio intelectual. Não sabemos o que você está fazendo. Aí você diz: “Eu estou com este problema, têm que ser resolvidos estes problemas”. Como eram todos de Letras, então há toda uma troca, toda uma permuta. Ainda hoje há professores que dizem: “Ah, você não imagina como o Cândido me ajudou, como o Antonio Cândido me ajudou, você não imagina o que eu aprendi com o professor Bento, de Grego”. Quer dizer, vamos uns aprendendo com os outros, os mais novos com os mais velhos. Portanto, esses Institutos vieram a constituir a UNESP, depois criaram-se outros Institutos, outras faculdades, outras unidades e aí está a UNESP. Eu tenho a impressão que o próprio trabalho de vocês agora, no sentido de retraçar um pouco desses 35 anos e essencializar esta memória e conscientizar esta memória, é realmente uma medida muito importante. Eu estou sentindo isso, o Landim está muito preocupado com isto, eu tenho visto lá, ele é meu companheiro de conselho na Fundação Anchieta. A gente sente que ele está muito preocupado com isto, quer dizer, é preciso corporificar a UNESP, corporificar, dar corpo, mas é preciso também revitalizar este corpo e espiritualizar este corpo. Agora, a espiritualização depende fundamentalmente de uma consciência. Está claro que UNESP ou USP é a mesma coisa. Fundamentalmente, a UNESP não tem um papel diferente, eu não sei, está se falando muito agora da diferença do papel. Acho que não, esse negócio de universidade caipira ou qualquer coisa, eu acho isso engraçadinho, não é? Uma boa piada. Eu vi outro dia o artigo do Landim sobre isso, é uma maneira de dizer como a gente é concebido como a universidade caipira ou qualquer coisa, mas não é isso. Uma universidade é uma universidade. Uma universidade é uma instituição que, 55 fundamentalmente, só pode ser uma coisa. Ela tem que ter o seu papel, sua irradiação; seu papel é irradiante, mas ela é fundamentalmente uma instituição que tem que gerar saber. Se ela não gerar saber, ela não subsiste, porque é o que está acontecendo agora, a Universidade Paulista, Universidade não sei que, a Universidade São Judas Tadeu, a Universidade Brás Cubas, a Universidade de Mogi, a Universidade de Caixa-Pregos, a Universidade, sei lá, de Roraima, não é? Tem universidade em todo o lugar. A UNESP, acho que é muito importante, agora, que ela retraça a sua história. Veja, qual é a lição dessa história? Quer dizer, o que se perdeu ao longo do caminho, que é preciso retomar ao longo do caminho e o que é preciso conservar, a duras penas, é preciso conservar. E os objetivos, que são dois ou três objetivos das universidades, zelar por esse objetivos. Isso faz parte da própria consciência do intelectual. Faz parte do dever do intelectual, do cientista, a defesa da sua liberdade. Se ele não tem liberdade de pensar e escrever, não pode ser, de maneira que a gente briga, por isso mesmo. No mais, não confundir as brigazinhas, que nós chamamos cartoriais: há professores que, às vezes, perdem muito tempo com isto, ficam naquela luta, o espírito sindical, aumento de vencimentos, eu não sei o quê. Eu sou da ADUSP, acho que o papel da ADUSP é importantíssimo, acho que a ADUSP está aí, zelosa e vigilante, é muito importante, mas não se pode jogar, não se pode jogar todos os professores dentro dessa luta. TM - Eu vejo que o projeto dos Institutos Isolados seria uma obra que se poderia dizer “civilizatória”, entre aspas. Então, indagaria: qual foi a receptividade da comunidade de Assis a este projeto, em termos de alunos que foram enviados, até da própria arregimentação de funcionários e de professores, e a repercussão em relação à Faculdade, entre esta e o meio em que ela foi inserida? AA - A receptividade, desde aquela hora mesma foi calorosa. Foi calorosa, foi entusiástica, sem restrição nenhuma. Essa receptividade, de um lado, era a receptividade social ao processo. As famílias que receberam minha mulher e que depois receberam as famílias dos professores, que acarinharam e que, enfim, me prestigiaram, foi essa receptividade, pelo menos, social. Em Assis foi total, não tivemos um caso de restrição qualquer que pudesse haver. Aconteceu, no entanto, o que era previsível: as pessoas, naturalmente, não estavam pensando exatamente o que era que se ia fazer, não tinham uma idéia do que se ia fazer. Para alguns, era uma faculdade. Então foi preciso um certo trabalho junto a certas instituições, como o Instituto de Educação, certas instituições como os colégios, havia dois colégios, um que você sabe, um de freira. Dois colégios, colégio e um trabalho paroquial, junto ao bispo, junto ao bispado, para dizer o que é que se pretendia fazer. À proporção que se foi explicando o que é que se ia fazer, foram surgindo, senão algumas discordâncias, expectativas frustadas quanto à possibilidade, talvez, de alguma posição, ou do corpo docente, ou da direção. Todas as terras têm os seus pró-homens, não é? 56 Têm as suas pessoas proeminentes. Então foi preciso conduzir este esclarecimento, vamos dizer, conduzir essa política de acomodação entre a realidade e a expectativa, com muita arte, muito cuidado. Mas encontramos, naturalmente, a partir desta altura, sim, algumas restrições, porque frustrações houve. Depois da Faculdade implantada – ela implantou-se paulatinamente, primeiro–, organizou-se durante o primeiro ano, só um curso preparatório para vestibulares, justamente para dar tempo à complementação do projeto de instalação. O projeto foi feito em São Paulo. Ele saiu pronto e foi posto no chão pronto, foi todo preparado aqui, na USP. Até a lista dos livros, dos pacotes, os caixotes, tudo foi preparado aqui, os impressos, foi tudo prontinho. Não podia vir de lá para cá, tinha que ir daqui para lá. Mas, para dar tempo para fazer isso, durante um ano, o curso preparatório, foi possível irem as pessoas entendendo bem o que iam estudar, o que não iam estudar. Era uma Faculdade de Letras, o que era um curso de Grego, o que era um curso de Latim. E aí, naturalmente, houve tam- bém, pode-se chamar, os desencantos, umas oposições. Primeiro ideológicas, é natural, porque o corpo docente tinha professores de vários compromissos ideológicos, desde professores católicos militantes, como o Professor Lázaro de Almeida Prado, que foi um líder do movimento estudantil de católicos, a um professor absolutamente indiferente, embora uma pessoa elegantíssima, o Professor Antonio Cândido; mas o Professor Antonio Cândido era um luterano. Mais o Professor Victor, que é do Partido Comunista. Quer dizer que era assim, uma espécie de muitas hipóteses, digamos comportamentais e os alunos não estavam entendendo, uns propenderam mais para esse lado, outros mais para aquele, dentro das influências e, aí, estas influências começaram a se irradiar pela sociedade, que começou a entender que o grupo de intelectuais, cientistas e professores era um grupo estranho, um grupo exótico, não um grupo, assim, homogêneo; não é bem assim o que se pensava. Não era o corpo docente do Instituto de Educação, o corpo docente de professores do Es- tado, ou o corpo docente do colégio das freiras, professores católicos, é diferente. E aí então, era natural começarem a surgir as pequenas restrições. Mas concluindo, diga-se de passagem, reduziram-se a muito poucos. Portanto, a implantação foi feita, foi muito trabalhosa, quer dizer, este capítulo vale mais ser recordado pelo procedimento que foi preciso adotar para vencer. As resistências eram pequenas, mas havia resistências. Um exemplo: fomos inicialmente, claro, instalar imediatamente a Faculdade e as hipóteses eram as mais extravagantes possíveis, desde instalar num galpão que tinha sido depósito da Estação Sorocabana, até instalar num prédio, numa residência particular, e nós optamos por instalar, alugando o colégio das freiras. Alugando e fazendo uma maquiagem: elas ficaram com uma parte, nós alugamos a outra. O colégio tinha uma população pequena de estudantes e valeu a pena para elas e para nós, sem grandes modificações, adaptamos as instalações para o curso preparatório, enquanto começavam a construção do novo prédio. Essa história de 57 onde implantar já exigiu muito, porque há muitos interesses, sempre, dentro de uma cidade, do ponto de vista imobiliário. Há muitos interesses imobiliários. E quando foi para construir o campus então, tivemos resistências na Câmara e problemas que se levantaram etc., porque queriam que fosse instalada num bairro que era um bairro operário, que se chamava vila não sei o quê, um bairro operário, junto da Estação Sorocabana, e já veio o movimento dos funcionários da estação a favor da instalação. Portanto, foi preciso explicar-lhes porque que nós íamos para fora, porque íamos para um terreno de cinco alqueires, porque procurávamos uma mata nativa, porque isso, porque aquilo, porque aquilo outro, porque o projeto arquitetônico é esse, não é aquele. Foi preciso uma sessão tumultuada e longa e cansativa, que eu tive que enfrentar na Câmara dos Vereadores, para explicar porque estávamos indo lá. E eles depois entenderam, mas quer dizer, percebe-se que, se de um lado houve resistências, houve resistências a um estilo de vida, um estilo de comportamento que é da comu- nidade acadêmica e universitária, houve depois a resistência onde pôr, segundo os interesses locais da cidade. A idéia de uma faculdade valorizava os terrenos em volta, valorizava as lojas e a farmácia e o bar da esquina e não sei quê. Tudo isso significa que - isso explica o grande êxito do Zeferino Vaz -, a implantação dessas unidades em função dessas dificuldades sociais, do meio ambiente social, só venceram, quando quem foi levar o projeto sabia tudo sobre o projeto. Tinha que saber tudo sobre o projeto, porque, porque, porque, porque, porque, porquê. Porque realmente não há ninguém que não se renda à evidência dos argumentos, à evidência dos fatos. No dia em que se discutiu se ficava na Vila Operária ou se não ficava na Vila Operária, a Faculdade – porque o prefeito deu o terreno na Vila Operária e eu comprei por um cruzeiro, um cruzeiro, para não dizer doado, eu comprei! Comprei por um cruzeiro; paguei, fui ao cartório, custou mil réis, mil réis, um cruzeiro, os cinco alqueires do Zeca Santilli. Foi para explicar o projeto, que foi preciso uma hora de pro- jeção do projeto, com arquitetos e tudo, o que se queria fazer e aquilo para fazer. Houve, portanto, a própria implantação, no sentido da integração de uma unidade atuante intelectual e cientificamente no meio; para fazer, precisa-se saber por que se está fazendo isso e o que está por trás disso. Porque, se hesitar, não faz. E se não tiver cuidado, dá-se o que aconteceu com os ingleses. No tempo da rainha Vitória, chamava processo de “cafrialização”, entre aspas, pode-se usar essa palavra, pode ser tomada no mau sentido, quando o crioulo ia transformando aquele estilo vitoriano em estilo crioulo. Na Inglaterra se dizia: a coisa foi cafrializada, quer dizer, o crioulo digeriu a coisa. O crioulo digeriu. Eu penso que foi preciso ter muito cuidado, porque senão a coisa se interiorizava, quer dizer, você conseguir isso e, de repente, não adiantava ter levado a universidade para o interior. Então, era deixar as próprias escolas, deixar que a coisa nascesse normalmente dentro do interior. Mas não era isso o que se queria. O que se queria era levar uma unidade universitária para uma cidade do interior, 58 que podia ser em Itatiaia, em qualquer lugar, no Himalaia, em qualquer lugar. Aí é que houve dificuldade. TM - Professor, nesse sentido, fico pensando que foi preciso uma força muito grande e não só conhecimento do pessoal que organizou a Faculdade, para resistir às pressões, inclusive políticas, para manter o projeto na sua forma original e não abrir à que nós poderíamos chamar, talvez, cultura local, às elites locais, que não estariam adequadas ao projeto inicial AA - É isso mesmo. Ao lado de se saber o que se vai fazer e saber tudo o que se vai fazer, é preciso realmente um grande ideal. A história da UNESP é a história de alguns idealistas. Onde houve grandes idealistas, a coisa marchou, porque enfim, o entusiasmo é que levava aquela coisa. Muita gente não entendeu. “Ah, mas por que o Zeferino fez Ribeirão Preto?”. A Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, de repente, era melhor que a Faculdade de Medicina de Pinheiros. Mas o Zeferino tinha um entusiasmo fora do comum. Depois fez a UNICAMP. Por que o Zeferino fez a UNICAMP? Porque ele tinha realmente um grande ideal. Faltou competência, mas também faltou o ideal, a coisa não foi. TM - Fico pensando, Professor, quando o senhor mencionou os índios da região de Assis, como era esse corpo discente de Assis, o primeiro, o segundo, as primeiras turmas? AA - Olha, minha filha, a primeira turma, era um curso de Letras, só, com possibilidade de língua estrangeira e vernáculas. Quer dizer, vernáculo com Letras Clássicas, com Letras Estrangeiras. O estrangeiro era o Francês, o Italiano, o Espanhol, o Inglês, o Alemão. O primeiro corpo discente era formado de pessoas, de modo geral, que estavam disponíveis na cidade e à espera de uma oportunidade para continuar os seus estudos. Quer dizer que a maioria estava além da faixa etária normal, neste alunado montante, que é por volta dos 20 anos. Nosso primeiro corpo discente estava com o alunado à altura de quase 30 anos, 20 e tantos, 30 anos. Eram professoras que já tinham estudado, terminado seus cursos e voltaram para o interior, ou terminaram o colégio há muito tempo, mas não continuaram, não tinham meios. E eram pessoas que representavam uma classe média alta dentro da cidade, pessoas que tinham meios e tudo, algumas até senhoras com filhos e tudo. Era natural, portanto, que o primeiro grupo saísse daí. Mas o segundo, à proporção que os vestibulares se sucederam, começou a aparecer um alunado normal, da classe dos 20 anos. O que caracterizou preliminarmente esse alunado foi um desnível muito grande entre, digamos assim, a competência desse alunado em termos de preparo, no caso de Letras, um preparo elementar em Língua Portuguesa, um preparo elementar, enfim, em alguma língua estrangeira que poderiam fazer e alguma educaçãozinha literária que tivesse. Essa competência era realmente modesta e, de outro lado, estava um professorado com um nível 59 de competência muito elevado. Então foi preciso desenvolver uma estratégia muito, digamos assim, muito cuidadosa, no sentido de rever a Didática, o comportamento didático dos professores. Entramos seriamente a discutir a Didática no ensino do Latim, a Didática no ensino da Crítica Literária, a Didática no ensino da Gramática, a Didática no ensino do Francês, a Didática… O que era importante para os professores, porque eram professores que, também futuramente, teriam que preparar futuros professores e alguns nunca tinham se debruçado sobre o problema das dificuldades da transmissão do conhecimento. Porque, se a Universidade, de um lado, é geradora de conhecimentos, ela também é um centro de transmissão de conhecimento, mas a transmissão do conhecimento exige toda uma sofisticação comportamental dentro da própria ciência e de acordo com o que recebe a ciência, o que recebe aquele conhecimento. De maneira que o curso de Assis, que pretendia ser um curso, digamos assim, praticamente igual ao de São Paulo, os programas passaram a ter um curso desenvolvido em grande parte do ponto de vista, digamos, epistemológico, a teoria do conhecimento, como se chega ao conhecimento. Foi preciso, portanto, mudar a estratégia e alguns professores foram muito bons, muito bons mesmo, nunca tinham mexido com isso e de repente começaram a ver. Como é que se ensina Crítica Literária? Não é suficiente dizer: “Olha, leia, leia, leia, algum dia você acorda ou não acorda, o problema não é meu não!” É preciso, pelo menos, em dois ou três anos, modelar uma certa capacidade crítica. Como se lê um texto? Quer dizer, qual é a metodologia para se ensinar a ler um texto? O Professor Júlio Garcia Morejón vinha de Salamanca com um curso muito bom em matéria de análise estilística, de maneira que teve um papel muito importante com os colegas, mostrando como os espanhóis estavam desmontando textos e montando textos. E os alunos começaram a aprender a montar textos e desmontar textos etc., de maneira que, no ensino, houve, portanto uma mudança de comportamento, dado o fato de os alunos estarem, digamos num nível de competência modesto, não era possível levar de forma excessivamente rígida, o que não levava a nada. Criava frustrações ou criava, sobretudo, o que seria uma desonestidade. É a escolinha do faz-de-conta: faz-de-conta que eu estou ensinando, você faz-de-conta que está aprendendo, depois no exame, você faz qualquer exame, eu dou nota para você passar. Nas universidades, isto é, nas falsas universidades, há muita escolinha do faz-de-conta, faz-de-conta, não é? Até faz-de-conta que não está fazendo de conta. Não, não, faz-de-conta penso que não dava e vamos começar a ver como é que vamos fazer juntos para chegar lá. Alguns professores mesmos fizeram. Na verdade, eles começaram, nunca tinham pensado nisso, isto é, aprender a ensinar. TM - Essas sessões de estudos andei olhando um pouco a história da UNESP -, o senhor poderia falar a respeito? AA - A coisa foi feita da seguinte maneira: eu fui educado pelo meu sogro, 60 fui aluno do meu sogro, depois trabalhei com ele 25 anos como investigador, quer dizer, mamei isso e só sei fazer isso, faço mal feito, mas só sei fazer isso. Então tinha que ser tempo integral. O tempo integral era uma instituição, o full time, era uma instituição que vem dos laboratórios, porque a ameba, você tem que dar água a ela toda hora, toda hora dar a agüinha da ameba, então tem que estar olhando para ela, tem que estar lá. Portanto, havia o full time. Mas o chamado full time ou o tempo integral para as Ciências Humanas, ou as ciências do espírito, foi se transformando um pouquinho numa escola do faz-de-conta. Estou falando da minha Universidade, da minha Faculdade de Filosofia, da heróica Maria Antônia, dessas histórias todas. O pessoal ia para lá com período de aula de manhã ou de tarde. Depois, à noite, não importa, ia assistir às suas aulas, estava lá, depois ia para casa trabalhar. Cada um trabalhava em casa as coisas, os seus livros, as suas coisas, não tinha outra atividade, tinha só aquela, então, chamava isso de tempo integral. Quer dizer que não tinha a ameba, nem olhava para a ameba. Então, quando fomos para Assis, eu disse: “Não pode ser, eu acho que nós devemos criar, em Assis, o tempo integral de Letras”. E o tempo integral de Letras é, primeiro, dar material de trabalho. Professor de Letras tem que ter no seu gabinete todo o material de que precisa ou receber todo o material de que precisa e deve ter um programa de viagens para trazer material propedêutico, como se desenvolve o projeto de trabalho. Muito bem, mas é preciso que ele cumpra o seu tempo integral, quer dizer, que ele olhe para a ameba. Temos que pôr, eu posso pôr as amebas, está lá, cheio de amebas, mas tem que olhar para elas. Criamos, você conhece Assis? Aquele projeto foi bem elaborado por um casal de jovens arquitetos, os Toscano, jovens arquitetos, dois brilhantes jovens arquitetos. O casalzinho foi para lá e viveu um tempo entre nós, fez fluxograma, fez aquele projeto e ficou assim, um ambiente. Já na outra faculdade, tínhamos começado a criar, dentro do pos- sível, o ambiente para o tempo integral. Então foi isso. À tarde, como o curso era só um curso de Letras, deixamos as aulas para a tarde. De manhã, mais fresquinho, voltam mais descansados, todos preferiram a manhã para concentrar-se nos seus trabalhos. Então, de manhã, sairia às 8h, entrava na sua Faculdade, ia para o seu gabinete de trabalho e lá desenvolvia o seu trabalho. Olha para sua ameba. “Ah, não tem ameba”. Ou “Quantas amebas o senhor precisa?” “Eu preciso de x amebas”. Eu compro amebas. Ficou a chamada hora de estudos. Então, de manhã, os professores todos, mas os alunos também estavam em tempo integral, porque procuramos criar um comportamento de tempo integral. E o que o aluno vai fazer hoje de manhã na Faculdade? Ele vai estudar. Ele tem lições para fazer, ele tem livros para ler. Então o alunado ia de manhã, ia para suas sessões de estudo, que eram sessões orientadas, porque também a carga de trabalho à tarde se dirigia para criar uma situação ocupacional de manhã, de maneira que eu já dava, ele já dava ao aluno o que fazer. Então eles, de 61 manhã, já sabiam o que iam fazer, iam lá com inteira liberdade de ter a sua biblioteca, os seus livros, as suas coisas, as sessões de estudo. As próprias salas-deaula é que se transformam em sessão de estudo e com inteira liberdade de fumar etc., levantar, sair. Afinal de contas, o estudante tinha que fazer seus trabalhos. Se tinha uma dificuldade, combinava com o professor, ia ao gabinete e o professor dava uma explicação. Isto é o que se procurou fazer e isso logrou-se fazer, logrouse fazer, de certo modo, bem, o prédio, o primeiro prédio e de certo modo, muito bem, no outro prédio. Tínhamos ali um prédio mais amplo, as instalações mais adequadas. As aulas eram curtas, porque 40 minutos, aulas de 40 minutos para não cansar, não transformar a aula numa salivação exaustiva para o aluno. O professor deve ser um elemento de formação de mentes, de espírito e não um indivíduo encarregado de massacrar e salivar alunos. Foi preciso estudar os horários. As sessões de estudos funcionaram muito bem, os professores acharam a melhor solução porque as condições de habitação, numa cidade do interior, são, em geral, condições um pouco modestas, espaços, salas e gabinetes de trabalho, os professores nem ganham para a atividade. As casas eram alugadas e tudo, quer dizer, uma pessoa não tem, em casa, ambiente para trabalhar. Para se ir do centro para a Faculdade, a Faculdade dava a condução naquele horário, entrando às 8h na Faculdade. No seu gabinete, as suas coisas: tem o seu telefone, tem, como viu lá, tem enfim, tem condições, tem os seus livros, tem a sua máquina de escrever, pode trabalhar não só para preparar a aula e o curso que está dando, mas principalmente e aí que está uma coisa importante, é preciso dar uma razão de ser à chamada hora de estudo. Os alunos recebiam uma carga de ocupações para as horas de estudo, então as horas de estudo eram necessárias, porque eles tinham que fazer aquelas coisas. Estavam ocupados com as pesquisas, as leituras e à tarde, na aula e nos seminários, é possível apresentá-las. Mas o profes- sorado aceitou o contrato, foi vantajoso nesse tempo, porque era o tempo integral máximo que São Paulo pagava e recebiase em Assis, um lugar mais barato, por isso que os professores tiveram um status agradável, construíram as suas casas, compraram seu automóvel, criaram seus filhos. Ótimo, melhor do que é aqui. Mas os professores todos assinaram o contrato com obrigação de carreira de ensino. A carreira do ensino foi compulsória. Quer dizer, no contrato estava escrito que não seria renovado se o professor não tivesse feito o seu doutoramento, ou pelo menos já com tese pronta para ser defendida na Universidade de São Paulo. Bem, o que foi, sabia disso. A segunda renovação já era o encaminhamento da livre-docência. Naquele tempo não havia mestrado, era doutorado e a livre-docência. Então era preciso dois contratos de quatro anos, os que tinham doutoramento, era o caso do Professor Antônio Candido, que era professor não só em Assis, mas foi livredocente da Universidade de São Paulo, não estava em fim de carreira, porque veio a ser titular em São Paulo. Mas os 62 outros todos fizeram livre-docência. O Erwin fez livre-docência, Naief Sáfady fez livre-docência. Os estrangeiros não, porque esses, o regime europeu era diferente, dois europeus, dois alemães já tinham sido todos acadêmicos na Europa, mais os outros, todos. De maneira que a hora de estudo foi coisa providencial para esses professores. Por quê? Em casa não tinham condições. As casas são muito pequenas no interior e não tinham biblioteca. A maior parte desses professores, uns estavam desempregados, outros estavam recém-casados, outros tinham casa em São Paulo, mas não acabaram com a casa porque, enfim… De maneira que isso de chegar à Faculdade de manhã, fresquinho, ter lá a sua salinha para trabalhar, o seu livrinho, começar a escrever, preparar a sua tese doutoral... Uns voltavam de noite, lá ficavam a noite toda trabalhando. Em casa, não tinham condições, o bulício, a família, as crianças que entram, a rua ruidosa. Não havia condições, de maneira que, encurtando mais uma vez a resposta, as chamadas horas de estudo foram providenciais. Elas não resultaram porque tivessem sido imaginadas corretamente, é porque elas foram providenciais, tanto para os alunos que tinham que preparar as coisas para a tarde, como para o professor, que tinha a carreira de ensino e tinha que preparar a sua tese de doutoramento. Posso pegar teses doutorais que estão aqui: “Recursos expressivos na evolução da obra dramática de Gerhart Hauptmann”, de Erwin Theodor Rosenthal, isso foi feito em Assis e publicado. Quer dizer, respondendo à mesma pergunta, há tantas aí outras, eu posso pegar, porque eram professores que não precisavam só de uma colocação, eram professores que precisavam fazer a sua carreira de ensino. E foi por terem feito a sua carreira de ensino que vieram para a Universidade de São Paulo. O Professor Erwin Theodor veio para a cadeira de Alemão na Universidade de São Paulo, veio fazer titular em São Paulo. O Professor Júlio Garcia Morejón veio para a Universidade de São Paulo, veio fazer titular na Universidade de São Paulo. O Professor Antônio Candido voltou à Universidade de São Paulo e foi contratado como professor de Teoria Literária e depois, embora fosse antigo professor aqui, mas era de Ciências Sociais, não era de Letras, acabou fazendo sua tese para titular, titular de professor de Teoria da Literatura. O Professor Rolando Morel Pinto veio para a Universidade de São Paulo, fez a sua tese para titular de Língua Portuguesa; o Professor Naief Sáfady foi para Belo Horizonte, onde fez o concurso para professor titular de Literatura Portuguesa, foi substituído agora há poucos meses pela Leila Duarte. Quer dizer, todos esses professores foram fazer carreira de ensino, foram preparar-se para ir pleitear o seu título na USP, ou noutra universidade qualquer. De maneira que a chamada sessão de estudos foi, digamos assim, uma medida conveniente. Não foi apenas uma imposição, foi uma medida conveniente. Era conveniente a todos ter um período de absoluto silêncio, que nem campainha se tocava dentro do prédio, nada, nada, nada, para que você pudesse trabalhar sossegadinho. Estava lá, hora de silêncio, hora de silêncio. Todos os luminosos, letreiros luminosos, as 63 luzes acendem: hora de silêncio, hora de silêncio, hora de silêncio. Depois apaga e à tarde, acende outra vez: sessão docente, sessão docente, todas as luzes. O negócio condicionava o sujeito às suas atividades. Pagam-lhe bem, dão-lhe sossego, o sujeito dizia: “Preciso de tais e tais livros”. “Eu faço a lista, está aí, vou encomendá-los. Se o senhor não fizer é porque o miolo não dá, porque tempo o senhor tem”. Portanto, a sessão de estudo resultou, mas ela era uma necessidade. TM - E perdeu-se isso. Infelizmente, perdeu-se isso. AA - Olha, minha filha, a coisa é o seguinte: os processos, digamos, os processos formadores de escolas só funcionam se eles forem processos complexos e interativos, quer dizer, você tem muitas medidas, mas uma está ligada a outra, não adianta medida isolada. “Olha, a partir desse ano, todo mundo vem de manhã para estudar”. Não adianta nada. Não, porque chega lá, “O que o senhor quer que eu estude?” “Ah, isso não é comigo”. “O senhor está brincando comigo. Eu estou cheio de problemas em casa, a minha mulher, criança, isso e aquilo, eu ganho pouco”. Isso é loucura. Então, quer dizer, esses processos são processos complexíssimos, mas são interativos. Você vê, quando nós começamos a Faculdade, a Faculdade esteve um ano criada, com verbas e crescendo materialmente. Crescendo materialmente e mentalmente, porque os professores já estavam contratados, mas eles todos trabalhando no projeto, neste projeto interativo, depois, quer dizer, tudo que era preciso para que essa coisa funcionasse. E uma das coisas era material de trabalho. Você está aqui na minha casa e ao lado, há uma biblioteca. Você puxa qualquer coisa aí e você vê o que me custou, a mim, formado em 1935, entrado na universidade em 1935 e formado em 1939, para me especializar em Literatura Portuguesa, sem haver em São Paulo uma biblioteca de Literatura Portuguesa! Então, eu é que tive de ir comprando nos sebos, nos leilões, em viagem a Portugal, comprando os livrinhos aqui, aquele lá, aquele lá. Porque do contrário, a gente não tinha. É como um cirurgião que não tem ferramenta. O senhor aprendeu a cirurgia. E a ferramenta? Ferramenta não há! Mas você vai aprender, aprende no livro de cirurgia. Não havia jeito de aprender Literatura sem ler os livros e tínhamos que comprar. Assis, todas essas bibliotecas foram montadas em São Paulo, empilhadas em São Paulo. Levamos mais de um ano comprando de importadores a biblioteca italiana, a biblioteca francesa, a biblioteca inglesa, a biblioteca alemã, a biblioteca grega, a biblioteca latina, a biblioteca de Literatura Portuguesa etc. etc. etc., para a escola. O Professor Antonio Cândido disse: “As bibliotecas têm que ser organizadas”. Os professores já estavam contratados. A sua primeira tarefa, além da organização desse processo interativo, foi a organização das bibliotecas. Então, cada um tinha que organizar a sua biblioteca, partindo das obras de referência, eliminadas as obras de referência: “Quais são as suas obras de referência? Você tem que saber, na sua matéria, quais são as suas obras de referência. São es- 64 sas. Muito bem. Às vezes, as suas obras de referência são semelhantes às minhas, independente de ser Literatura Brasileira ou Portuguesa, mas as obras de referência são as mesmas. Não tem importância, não é isso, são obras de referência. Quais são os seus textos básicos? Letras. Quais são os seus livros básicos de estudo? Esse, esse, esse, sem isso eu não posso trabalhar. Muito bem. Quais são as suas obras básicas? Quais são as suas revistas especializadas? Porque o professor tem que abrir as janelas, tem que respirar lá fora. Quais são as suas revistas internacionais? O professor deve ler algumas revistas”. Então, obras de referências, obras básicas e revistas. “Aqui, o senhor faça a sua lista”. Tudo isso foi comprado, tudo isso foi posto lá. No dia em que você sentou na sua sala, a Faculdade se inaugurou, você já tinha trabalhado em São Paulo o ano todo fazendo isso, você sentou, você inaugurou, você fez assim, os seus livros estavam lá, você começava a trabalhar. As obras de referência, seus textos básicos e as suas revistas. E todos vivendo dentro e lá você vê. Agora não, agora tiraram os livros, puseram na biblioteca central, mas os gabinetes eram dentro das salas, com os livros. Então cada professor estava com seus livros. Tudo respirava material de trabalho. O tal efeito interativo. Só é possível você exigir as coisas se você fornecer as coisas, porque o argumento do professor é esse: “Falta material, eu não tenho material para trabalhar, não consigo material”. Como? Imediatamente o programa de viagens. No fim do ano, eu arranjava subsídios: “O senhor vai viajar, o senhor vai à Europa, o senhor faz isso,”tudo bem. Mas tem que provar que vai fazer isso, fazer isso, fazer projeto, arranjar uma bolsa. É preciso que todo o sistema funcione, porque se o sistema não funciona, não adianta você dizer: “Olha, você, como é? Não vai fazer doutoramento?” “Fazer doutoramento como? Não tem orientador, não tem material, não consigo arranjar bolsa, ganho pouco”. De maneira que fica registrado isso: o sistema complexo, quando possível, completo e interativo. Não há milagres. TM - Quando o senhor lança essa idéia do sistema complexo, completo e interativo, ocorre-me a idéia de um outro, de pensar a questão sob outro ângulo, que é a questão da estrutura, não departamental, mas por meio de cátedras. Porque tudo o que o senhor me disse agora, parece que converge para o catedrático, o professor trabalhando em seu gabinete, com seus assistentes e não para a estrutura departamental. O que o senhor poderia dizer a respeito disso? AA - Embora o vínculo empregatício fosse em termos de catedráticos, o sistema do Estado era o sistema de carreira de ensino, com um ponto final na cátedra, no sistema catedrático. Nós implantamos, em Assis, o sistema departamental. Mas o sistema departamental caracterizou-se, inicialmente, não por ser apenas um sistema de trabalho corporativo, não era uma corporação de trabalho. Era um sistema departamental no sentido de encontrar uma plataforma de essencialidades em termos de programa de ensino. Eu dou uma idéia. Nós aqui tínhamos Língua Portuguesa, Filologia e 65 Língua Portuguesa, Literatura Brasileira, Literatura Portuguesa, Língua e Literatura Latina, Língua e Literatura Grega, Língua e Literatura Francesa, Espanhola etc. Levamos para Assis o departamento de Letras Vernáculas. Na área do departamento de Letras Vernáculas, estivesse o Professor Antônio Cândido, que era um professor que estava saindo de uma especialidade com títulos de livre-docente para outra, onde faria carreira definitiva, que era de Letras, ele dentro do departamento, estava trabalhando em função do departamento. Então pergunta-se: o departamento de Letras Vernáculas, ele tem, digamos, umas plataformas de encontro dos professores que trabalham ali dentro? Por exemplo: eu não posso – minha matéria é Literatura Portuguesa –, eu não posso trabalhar em Literatura Portuguesa se o meu aluno não tem uma formação filológica. Eu trabalho com textos do século XIII, XIV, como trabalho com textos do século XX. Não há mais dificuldade em ler uma Cantiga de Amigo do que ler um Saramago. É a mesma coisa, quer dizer, eu trabalho com uma expressão verbal dinâmica. Então ele tem que ter uma boa formação filológica. Então o departamento em que estou, para eu poder dar o meu curso, exige que meu colega de Língua Portuguesa prepare os alunos de determinada maneira. Isso acontece com o professor de Literatura Brasileira, a mesma coisa, mas agora, no campo exclusivamente da Literatura, eu não posso trabalhar e ensinar Literatura a um estudante que não tem conceitos elementares. Por exemplo, se ele não sabe a diferença entre prosa e verso, ele não sabe. Então como é que eu posso falar em poetas e prosadores se ele não sabe nem qual é a diferença entre prosa e verso? Você dirá: “Bom, isso é um problema de Teoria Geral da Literatura, são as formas de expressão literária”. Pois bem, mas se ele não sabe o que é o literário e o não literário, se ele não sabe o que é um gênero literário? Ah, bom, é preciso então no departamento, um curso de Teoria da Literatura. Então o departamento de Letras Vernáculas exige uma preparação em Teoria da Literatura, uma preparação em Literatura Portuguesa, uma pre- paração em Literatura Brasileira, porque há paralelismo da Literatura Portuguesa, é preciso, é uma literatura de expressão portuguesa, mas que não é a portuguesa e é preciso estudar isto. Mas tudo isso implica com o Latim porque, se nós também não tivermos as bases da língua latina, não podemos nem trabalhar com a literatura humanística do século XVI, então precisamos ir para o Latim. Mas meu Deus, mas tudo isso está implicando com o Grego! Então o departamento de Letras Clássicas tem. Bem, tudo isso para dizer o seguinte: a organização dos programas, a organização do ensino e o desenvolvimento do ensino era departamental, não podia deixar de ser departamental. Agora, individualmente não, porque não existia nenhum compromisso entre o trabalho departamental e a carreira dentro do trabalho departamental. Hoje, porque antes não podia haver dois professores de Literatura Brasileira, não podia haver dois de Literatura Portuguesa. Podia haver um, enquanto aquele estivesse, o outro não podia ter acesso, um impedia o outro. Hoje não, hoje a minha cadeira aqui 66 na USP tem cinco ou seis professores de Literatura Portuguesa, porque são professores do departamento. A organização dos programas e o desenvolvimento dos programas eram rigorosamente departamentais, embora a carreira, digamos assim, a carreira funcional do professor se fizesse com o regime de carreira de cadeira de professor, catedrático, não existia outro. TM - Não sei se eu estou cansando o senhor com muitas perguntas. AA - Não, não, não. Eu não preciso ter trabalhado com tudo para ser um professor de Literatura Portuguesa. Trabalhei em certas áreas, como estou trabalhando e tal, mas tem que ter a casuística, já ter tratado todos os textos. Se você me disser: “Bom, Professor Amora, haverá dificuldades maiores em ler, vamos dizer, dos prosadores portugueses da Idade Média, o Zurara, o Gomes Ianes de Zurara será mais difícil que o Fernão Lopes, o Fernão será mais acessível ou o Rui de Pina, ou El Rei Dom Duarte, do Leal?”. Bom, tenho que ter o conhecimento dessas coisas todas, devo ter lido tudo isso, devo saber quais são as obras, porque eu não posso orientar doutoramentos sem isso, nem fazer uma carreira de professor, se eu não tiver conhecimento de obras. Eu, por exemplo, trabalhei com o Dom Duarte, século XV, trabalhei – trabalho de investigação científica –, trabalhei com o século XVII e trabalhei com o século XIV, isto é, séculos XIV, XV e XVII. Estas coisas depois, de trabalho, de conferência, é outra coisa, estou dizendo teses de investigação e tudo. Trabalhei, mas tem que conhecer tudo, não posso debruçar-me sobre um prosador do século XVIII sem dizer sei, a obra é esta, poder ler aquilo. Só para explicar a você tudo isso, voltando àquela idéia, levou a ter de suprir o professor desses materiais todos, ele tem que ter esses materiais para poder trabalhar e é para a sua própria formação. Hoje não, é diferente, sabe minha filha? Hoje é a mesma coisa. Hoje você não faz uma formação. Eu costumo dizer, tenho três netas, três moças, hoje já são formadas, eu digo sempre a elas o seguinte: “Olha, o importante no ensino superior é, primeiro, despertar uma vocação, quer dizer, é preciso gostar de uma coisa, então o professor tem que ter um leque de propostas até você poder, um dia, descobrir lá uma coisa que você gostou. E depois, você, de repente, abrir a cabeça para a criação, quer dizer, você saber que está criando um conhecimento novo, não é que você está aprendendo, não, isso é método Berlitz, então você vai para a Escola Berlitz e aprende num instantinho Inglês, Alemão, Chinês, Árabe, isso é Escola Berlitz. Não. É a tal história, não se pode fazer crítica sem um dia você não sentir dentro da cabeça qual é o drama da crítica, quer dizer, o negócio é difícil mesmo. Aí você vai começar a ser crítica literária.” De maneira que um professor precisa ter material, o professor de Letras tem muito material, tem todo o material de trabalho. Você vê isso aqui, é tudo sobre literaturas estrangeiras: Literatura Oriental, Literatura Grega, Literatura Latina, literatura não sei o quê, Literatura Francesa, Literatura Espanhola, Literatura Alemã, Literatura 67 Americana, Latino-Americana etc. etc. etc. Porque, embora eu não tenha trabalhado, não tenha nada com isso, não posso deixar de ter as informações, são obras de referência, porque eu preciso trabalhar com certas obras de referência. Não, porque o nosso Camões, ele tinha encontro, neste episódio do Adamastor, aquele célebre episódio do Polifemo, que está em Homero. Quer dizer, tem quer ter as obras de referência, tem que ir lá, por acaso sou formado em Grego, mas tenho de ir lá, ver na minha Literatura Grega, no meu Homero, na minha coisa ou na minha enciclopédia, não importa, eu tenho que ver quem é o Sr. Polifemo, entender porque o Adamastor tem relação com o Polifemo. De maneira que, isso que se passa em Letras, obriga a uma abundância de textos, oferecer ao professor, na sua formação para o estudante, sim, porque ele não forma, ele nunca se forma, ele sabe umas coisas, ele nunca se forma, estes são os chamados materiais que nós temos que oferecer. Portanto, voltamos à história das sessões de estudo: é preciso pôr os materiais lá dentro e pôr uma razão de ser para você ocupar-se do material, é a sua carreira de ensino. E se você não tem carreira de ensino, também não adianta, porque você não faz mais nada, você vai dar aula, porque o professor adquire uma certa facilidade de dar aula, o professor, no início, sempre se defende um pouco, depois é que ele cai num certo automatismo. O alunado, pela lei do mínimo esforço, quanto menos o professor vier a exigir, tanto melhor. Mas a escola não é feita por pessoas atrapalhadas que estão por aí, a tentar arranjar uma coisa para superar a trapalhice da vida. A escola é outra coisa, a escola é uma coisa feita para a pessoa abrir a cabeça e saber para onde vai. Agora, abrir a cabeça e saber para onde vai é um milagre da maiêutica. Enfim, a experiência de Assis foi uma experiência para mim, eu vivi essa experiência desde a madrugada. Eu acordei chamado às 11h30min da noite, pelo telefone dos Diários Associados, dizendo que eu tinha acabado de ser nomeado diretor de uma Faculdade em Assis. Eu não sabia nem onde era Assis. “Está aqui, está vindo do Palácio a notí- cia”; no dia seguinte eu fui saber o que era isso. Desde a primeira hora e depois, tive a sorte de reunir fabulosos professores e amigos e passamos todos a viver a mesma experiência e a enriquecê-la, não só com a competência e o trabalho de cada um, mas importantemente, com o espírito crítico de cada um, porque o exercício do espírito crítico, eu acho que foi a grande alavanca desta experiência. Porque foi feito com muita preocupação crítica. “Está certo. Está certo. É isso mesmo. É isso mesmo. Estamos acertados? É por aí que você vai, não é por aí que se vai”. Todos exercemos o espírito crítico da melhor maneira. TM - Professor, gostaria de ter um pouquinho do roteiro biográfico da sua pessoa, se possível pensando em termos, também, de formação acadêmica, desde o início. AA - Eu nasci aqui em São Paulo, sou filho de cearenses, de velha tradição cearense, deve estar com uns trezentos anos no Ceará, mas nasci aqui em São 68 Paulo e me criei no Rio. Depois, já vim rapazinho para São Paulo, voltei, tirei parte da escola primária e o ginásio em Guaratinguetá, Colégio Nogueira da Gama, um excelente educandário, tradicional educandário paulista que o meu pai, vindo do Rio, achou um bom lugar para os filhos estudarem. Depois de formado, em 1934, no ginásio, antigo ginásio, eu vim para São Paulo e logo em fevereiro procurei entrar, entrei na Universidade, através do curso universitário que a Universidade estava inaugurando, os chamados cursos universitários, o pré-universitário, o chamado pré-universitário. Pré-universitário para Direito, pré-universitário para Medicina, pré-universitário para Politécnica. O chamado curso universitário foi uma coisa que a universidade inaugurou nos anos 1935, 1936 e 1937. Eu ingressei logo num curso universitário para Direito, porque é o que havia de mais próximo para as minhas tendências para as Ciências Humanas, embora tivesse tido uma veleidade de estudar Medicina, mas não foi possível, porque meu pai era comer- ciante modesto e não dava para sustentar os filhos em São Paulo. Precisava trabalhar e cuidar da minha vida. Fiz o colégio universitário na Universidade de São Paulo, depois tive notícia da instalação do curso de Letras, já indicando para Direito, cheguei a fazer vestibular para Direito, cheguei a entrar na Faculdade de Direito, mas tinha sabido da Faculdade de Letras, o curso de Letras e tinha um certo pendor assim, para as coisas literárias, que meu pai, embora comerciante, me transmitiu. Eu procurei o curso e fiz vestibular para a Faculdade de Letras e aí, tive a sorte de ter professores extraordinários. O Professor Rebelo Gonçalves, que era o homem fabuloso que dava Filologia Portuguesa e, logo em seguida, passou para o curso de Filologia Clássica, Greco-Latina, um homem que marcou fundo o meu espírito, comecei a entender, estudar uma língua Greco-Latina, para daí ler a Gramática Duarte Ramos Pereira. Ler aquelas gramáticas era estudar, era entrar no mundo, no universo dessas línguas e o que se expressava nessas línguas e essas coisas todas. Logo em seguida, teve um professor de Literatura, que era o Professor Figueiredo. Depois vinha certa coisa, assistente e depois genro, assistente e genro e com quem trabalhei a minha carreira toda. Mas foram homens que marcaram muito a minha vida, porque foram homens com uma cabeça extraordinária, com uma formação científica muito boa, homens que nos exigem mesmo, mas homens notáveis na capacidade de formar gente jovem, de dizer: “É por aqui que se vai, só há um jeito, é por aqui, não há dois jeitos”. De maneira que eu tive essa sorte. O seu conhecido, o nosso colega, o Professor Alfredo Palermo, foi meu companheiro desde o primeiro dia de aula, tanto do Professor Rebelo Gonçalves, tanto do Professor Fidelino de Figueiredo, mas o Professor Palermo construiu a sua vida e eu tive um aceno do Professor Figueiredo para trabalhar com ele e achei que devia trabalhar e aprender o be-a-bá das coisas. E assim se, por acaso, casei com a Helena, mas isso… Várias pessoas não acreditam, eu nem sabia que ela era filha dele. Isso quase me deu uma trapalhada de- 69 pois, estava namorando uma menina na Barão de Itapetininga, depois vim a saber que era filha do professor. Nossa, que trapalhada, mas depois minha futura sogra se encarregou de evitar a trapalhada, porque podia parecer uma coisa de má intenção. Alfredo foi testemunha disso, sabe que tudo foi casual, o Alfredo é muito amigo da Helena também, sabe? Tudo foi casual. Mais ou menos ela sabia quem eu era, mas eu não sabia quem era ela, enfim, razões. Também vim a ser genro dele e depois conviver intimamente com ele. De maneira que eu tive a sorte de ter grandes professores e aprender o be-a-bá da Crítica Literária, da Crítica Portuguesa e o be-a-bá do ensino da Literatura, já com um grande mestre, com uma grande experiência. O professor me transmitiu uma experiência que começou em 1910, com a reforma da Crítica Literária Portuguesa; terminou em 1930, depois ele foi para os Estados Unidos, já estava selecionando o material dele em Berkeley, em 1931, na Califórnia; selecionando o material dele, como pediriam a Lisboa sobre isso, em 1931, na Califór- nia, ele criou o primeiro curso superior americano de Literatura Portuguesa. Aqui estão as provas todas dos alunos, estão os cadernos, as aulas, as coisas, os catálogos. Mas era um homem que trazia uma experiência. Quando ele estava na Califórnia, o Professor Almeida Prado, que estava no projeto da Fundação - pai do Décio Almeida Prado -, estava no projeto da Fundação de Educação de São Paulo, convidou-o a vir para São Paulo, para dar a Literatura Portuguesa. Ele não pôde sair da Califórnia, acabou vindo para São Paulo só em 1938, depois voltou aos Estados Unidos; em 1936, 1937, tinha várias coisas, enfim, tinha muitos compromissos internacionais, mas isso é para dizer o seguinte: quando ele veio a São Paulo e eu assisti a primeira aula do Professor Fidelino de Figueiredo, em 1938, março de 38, a gente sentia que caía no abismo. Era um curso sobre, ele abriu, estava sem livros, havia uma antologia e era uma página do Oliveira Martins, um grande historiador português, uma página sobre o triunfo de Paulo Emílio, aquela página linda, linda que ele escreveu sobre a História da Civilização Romana, dele, que ele escreveu sobre Paulo Emílio. Ele disse aquela página ilustrando o que era preciso entender para entender aquilo, porque aquilo começou a crescer, a crescer, a crescer. Tinha realmente um dom excepcional de abrir cabeças, abrir cabeças, só numa conferência abriu uma cabeça, abriu várias cabeças numa conferência. Era um homem, um espírito… Mas eu tive também esse privilégio e então vim realmente a trabalhar com ele, ali, tostão a tostão, a coisinha à toa, não foi brincadeira. Portanto, estou nisso outra vez, estou nisso outra vez. A experiência de Assis para mim foi muito importante, porque me permitiu transformar toda uma formação teórica, não didática, porque eu dava uns cursos, tudo isso, mas toda uma formação teórica sobre o que é uma universidade e eu já vinha de visitar várias universidades, eu já tinha trabalhado na Universidade de Hamburgo, tinha trabalhado, feito conferência em várias universidades francesas e italianas, universidades espanholas, portuguesas, inglesas. 70 Enfim, era o momento de eu dizer: “Bom, uma universidade se faz assim, faz assim”. Bem verdade que aquilo era uma pequenina célula de uma coisa muito grande, mas é a tal história, uma célula é realmente um microcosmos, ela é uma parte de um organismo, se ela estiver errada, o organismo vai dar tudo errado, o resto vem por multiplicação. Então eu achei que Assis me dava esta oportunidade. É sabido, é público e notório, é sabido isso, que não ganhávamos nada, não podíamos ganhar, porque éramos professores de tempo integral e assim não podíamos receber nada e era função do Estado, do próprio governo. Houve um pró-labore, mas a gente chegava a pedir o pró-labore e devia esquecer. Eu ainda, que já não trabalhava com o meu sogro, mas falei com ele, estive conversando e disse: “Eu acho que, enfim, é a hora de você saber se a coisa funciona, se é isso, se não é isso. Então vai agora, vai fazer”. Então, Assis foi a práxis, a práxis de uma longa gestação, de uma longa e demorada gestação de um ideal universitário, o que é uma universidade, uma escola superior, o que é um curso de Letras. Foi a práxis. Foi aquele momento. E tive a sorte porque logo veio o governo do Carvalho Pinto e nós fomos amigos desde rapazes, ele era mais velho do que eu, ele era de família de Guaratinguetá e eu fui estudante lá e eu ia lá visitar a família, e o nosso querido Professor Carvalho Pinto teve tudo isso e o céu também. Agora, é preciso dizer, foi posto dentro do Plano de Ação do Estado, levamos os projetos e ele imediatamente fez. Portanto, Assis me deu possibilidade de ver se as coisas funcionavam. Se é assim que, porque não adiantava nada ser professor de Faculdade de Filosofia dizendo: “Deve-se ensinar Literatura assim e não assim” e tal e dar aula para os alunos. “Então muito bem, está aqui o dinheiro, o senhor vai organizar a sua escolinha, vai infernizar aí os alunos na sua escolinha”. Realmente valeu a pena, valeu a pena. Deu muito trabalho, muito trabalho mesmo, a coitadinha da Helena e da Flora, elas dizem sempre que foram anos de sacrifício para elas, porque eu saía daqui domingo à noite ou segunda de madru- gada e voltava só quarta-feira, toda semana, isto durante nove anos. Para elas, a Flora pequena e tal, quer dizer, todos se sacrificaram. Nessa minha modesta e pobre biografia, vem depois uma outra experiência que para mim valeu muito, valeu muito e que foi a TV Educativa. A TV Educativa da Fundação Padre Anchieta. Eu fui convidado pelo Sodré para participar do projeto da TV Educativa como educador, como professor e para criar um núcleo central na Divisão de Ensino e na parte toda da programação do ensino. Isto foi em 1968. Eu saí de Assis em 1964, com a Revolução. Começaram os atos de violência, eu tive que intervir para libertar professores presos, foi o caso do chefe de polícia lá, tive que intervir. Depois fui para Brasília, no tempo do Zeferino, também para libertar o professor, que estava preso. Depois fui embora para trabalhar na Alemanha. Voltei para a Alemanha, fui trabalhar, fui para a Universidade de Berlim. Fiquei uns tempos fora, digo: “Ando farto de milicos”. Quando voltei, o governador era Sodré, o Roberto, que tinha sido meu aluno no 71 Colégio Rio Branco; me pediu para trabalhar nesse projeto e eu trabalhei nesse projeto e acho que foi um projeto, também, que valeu a pena. Eu estou até hoje na Fundação Padre Anchieta, sou membro vitalício do Conselho, fui fundador, estou até hoje lá. Mas aquilo foi feito mesmo pedra, pedra, pedra, pedra, pedra. Depois, em 1983, eu achei que já estava virando arroz de festa. Não, depois saí, depois saí da TV 2 e fiz um projeto que me encheu de alegria: foi o curso de Madureza, pelo rádio e pela televisão. Tivemos em cinco ou seis anos quase cinco milhões de alunos e com professores, alguns até dessa primeira experiência, resolvemos fazer um curso de Madureza, pelo rádio e pela televisão. E o Zara, a Editora Abril e os fascículos nas bancas toda semana, o sistema de multimeios e trabalhando maciçamente no chamado ensino supletivo. Foi bem custoso e montamos um projeto empolgante para o Brasil todo, valeu a pena. Depois a Globo ficou com o supletivo de 2º grau. Enfim, na minha experiência, na minha pobre biografia, há essa outra experiência, dig- amos educacional, numa outra galáxia, que é trabalhar com a chamada educação permanente. Eu achei que, para investigar, contribuir modestamente, não importa, o conhecimento, o aumento do conhecimento é importante, a transmissão do conhecimento. Mas trabalhar a educação permanente é outro grande desafio, sobretudo porque estava fora do sistema escolar, num país como este, onde há mais gente fora do que dentro. Eu estive na Inglaterra também. Comprei biblioteca, montei, estive num projeto da Open University; estive em Paris, em Mont Rouge, na Rádio e Televisão Francesas; que faziam filmes educativos. Vi na Itália, na RAI, na Espanha, enfim foi um projeto, só não vi no Japão. Vim para cá e realmente, um bom projeto, bom projeto! Me aposentei em 1970 na USP, para me concentrar mais no Projeto da Rádio e Televisão Educativa e para deixar a carreira, ainda era catedrático, para poder dar a vaga para o Spina, mas o Spina foi para a Língua Portuguesa, foi a vaga do Silveira Bueno, e Massaud Moisés veio para a minha cadeira e já abriu vaga para um outro. Aquilo era assim, um pouco arrumação dos sapatos na sapateira, para você tirar um par de sapatos, você tem que pôr um par de sapatos novos, senão não entra na sapateira. E, portanto, eu estou agora concentrado em outros trabalhos. Veio o centenário do meu sogro em Portugal e a Biblioteca Nacional de Lisboa, em que ele foi diretor duas vezes, pediu-me para organizar as comemorações do centenário. Organizei, recolhi trabalhos sobre ele e ainda estou terminando de organizar trabalhos para o centenário dele que já passou, mas ainda estou trabalhando nisso. Depois entrei na Academia Paulista de Letras, acho que é uma outra galáxia também, é a galáxia da Literatura como criação literária, não da Literatura como crítica, nem da Literatura como ensino e já estou lá há mais de 15 anos, e agora estou na presidência da Academia Paulista de Letras e estou também fazendo uma experiência engraçadíssima. Resolvi também fazer a minha experiência, quer dizer, como é que se dirige uma Academia de Letras? A Academia Paulista é um patrimônio de 72 quase cem anos, um belíssimo patrimônio, riquíssimo, esplêndido patrimônio e, portanto, estou já há um ano, vou para o segundo ano agora, depois desse e estou trabalhando na preservação desse patrimônio, na divulgação e no enriquecimento desse patrimônio, na dinamização desse patrimônio. Enfim, o que não falta, minha filha? A minha vida tem tudo, só não tem monotonia. TM - Perfeito, professor. Eu estou até meio sem graça de tantas perguntas. Vou fazer uma última, mas o senhor se sinta à vontade de falar quanto quiser. A colocação que o senhor fez no início, é de que a USP promoveu uma diáspora, empurrando seus pesquisadores e professores para atender a essa demanda de interiorização da cultura. Bem, em 1976, cria-se a UNESP, uma universidade que foi criada num movimento, vamos dizer - seria inverso? - de agregação. Como o senhor vê a criação da UNESP nesses moldes, de juntar escolas tão diferentes, em estágios tão diferentes, com projetos acadêmicos tão diferentes, numa única instituição, numa Universidade? AA - Um Instituto Isolado não se confunde com a Universidade, nem quantitativamente, do ponto de vista do peso absoluto, nem substancialmente, nem nas chamadas perspectivas e possibilidades. O Instituto Isolado tem muitas limitações e, portanto, a UNESP foi absolutamente necessária. Quer dizer, o risco desses Institutos Isolados era realmente eles dessorarem, perderam o soro, perdem, vai ficando caseína, acaba virando caseína. Quer dizer, é um queijinho, não é nada, caseína, ninguém vai comer aquilo, ou deixar de comer, mas também não estraga. Aquilo é capaz de ficar em estado permanente de caseína, quer dizer, dessora. Uma Universidade é em si, antes de mais nada, digamos, um volume muito grande, pela quantidade de Institutos que entram, e uma Universidade tem que ter uma política para se constituir, para se impor e para aumentar a sua potencialidade. Isso vai depender daquilo que se chama a política do reitor e de quem cerca o reitor. O reitor é a cabeça que vai, não interessa que um Instituto esteja no Amapá, outro Instituto esteja na Uganda, há universidades assim constituídas, há universidades mundiais. Há uma universidade, existe uma universidade mundial, à que contribuem vários países, unidades das mais variadas. O atual reitor é até o professor Heitor de Souza, e a sede é em Tóquio. Quer dizer, pouca gente sabe disso, mas tudo isso está se movimentando segundo uma política mundial, na Universidade. Portanto, a UNESP era uma necessidade, mas é preciso que a UNESP continue a trabalhar na política de revitalização das suas unidades. Elas não são escolas de alunos, elas são instituições de pesquisa, de publicação de trabalhos de revitalização. É preciso continuar a política que o Landim está fazendo, uma política boa de revitalização. É preciso a política de, digamos assim, de representatividade dessa instituição, isto é, ela precisa vir a público com uma personalidade, com uma produção, é o que tem a UNICAMP. A UNICAMP vem a público porque tem determinados trabalhos que projetam 73 a UNICAMP internacionalmente, nacionalmente, e certas coisas que acontecem lá. É preciso o Mengele, a cabeça do Mengele, o esqueleto do Mengele, o crânio do Mengele, tudo. Vai um técnico da UNICAMP e a UNICAMP já é projetada no mundo inteiro, porque o mundo inteiro falou do Mengele, e é preciso saber se a cabeça do Mengele é do Mengele, não é do Mengele e vem lá um matuto lá da UNICAMP etc etc.: “É sim, a cabeça do Mengele”. Quer dizer, a UNICAMP projetou-se. Então é preciso essa representatividade, quer dizer, uma política de desenvolvimento que o Zeferino tinha, deixa eu dizer entre parênteses. O Zeferino trabalhava assim: uma boa escola e alguns elementos excepcionais capazes de projetar a escola mundialmente, internacionalmente. Ele era capaz de dar a um sujeito que passava a vida procurando som em flauta, mas toda gente dizia: “O homem da flauta está na UNICAMP, ou está em Ribeirão Preto”. Não interessa se é uma flauta, não interessa, a flauta é o negócio dele. O papa-níqueis tem a flauta, ele com aquela flauta, o dinheiro com que ele ganha flauta! A política do Zeferino sempre foi essa. É preciso que a universidade se projete, se imponha. Se não é possível fazer como um todo, ela se faz com um ou outro elemento. Onde lá um professor é especialista em baba de aranha, mas é o único sujeito no mundo que mexe com baba de aranha, algum dia vão precisar da baba de aranha dele, e a UNESP terá que começar a juntar as suas potencialidades, começar a trabalhar a projeção dessas potencialidades. Evidentemente, também, tem de fazer uma política, digamos assim, de expansão, saber o que vai crescer e o que não vai crescer. O que será mantido como serviços, dentro das suas qualidades respeitáveis, de serviços e as coisas onde é preciso investir, porque elas podem subir o patamar além de simplesmente o serviço e passar a ser contribuição para o aumento… Eu acho que a UNESP está certa. Está certa começando a desenvolver uma política que visa a organizar, a reorganizar o seu corpo, não interessa onde ela esteja, onde estejam as unidades, tenho certeza. Nada mais disperso do que a Universidade da Califórnia, uma universidade mundial, a Universidade da Califórnia e tudo funciona, é uma coisa só, embora Los Angeles seja uma coisa, cada campus tem as suas peculiaridades. Realmente faça essa organização, essa reorganização, defina bem essa reorganização, imponha, quer dizer, a política, digamos assim, de prestígio, de conquista de prestígio público. Porque, minha filha, na hora de conseguir os recursos orçamentários é que o prestígio conta. Não adianta o reitor estar por dentro da maioria dos pedidos de orçamento, essas certas pessoas que não têm coragem de dizer, quando há pessoa com problemas de saúde, nem o corpo se levanta e a cabeça também perde. Quem é que vai resolver também o problema das universidades? De maneira que é preciso isso e depois começar a política de desenvolvimento, não uniforme. Eu acho que há uma conclusão em tudo isso… Na vida acadêmica, universitária, sejamos professores, ou sejamos diretores, ou sejamos alunos, 74 é preciso estarmos conscientes de uma coisa: os problemas são permanentes e a procura de solução para os problemas tem que ser permanente. Não há obra conclusa. Ninguém pode dizer: “Bem, eu vou organizar a UNESP. Pronto, está organizada. Olha, viu como está bonita?” Não, a UNESP será sempre uma instituição em expansão, uma instituição problemática, exigindo solução para os seus problemas. São instituições vivas e tudo. O que existe assim, idealmente, são os modelos que a gente persegue. Nós estamos perseguindo modelos, mas nunca se chega. Acaba um reitorado, começa outro reitorado e há outras coisas para fazermos. Agora, conduzir uma universidade ou conduzir uma escola superior sem objetivos e sem perseguir estes objetivos, não leva a nada. É preciso ter objetivos e perseguir estes objetivos, senão este chamado varejo leva a vida do reitor: “Não, agora estou, estamos aqui com um problema, o problema aqui é de reforma do telhado. O telhado precisa demolir…” O reitor está desfeito no varejo, que é isso, está tudo errado. Por isso existe um Conselho Universitário onde, senão todos, pelo menos há algumas pessoas que sabem o que é uma universidade e qual é o modelo ideal para onde devemos ir. E então temos que dar volta disso. Em São Paulo há, hoje, está em um artigo do nosso Lobo da USP, a propósito disso: de repente os professores acordaram na USP, porque a USP estava perdendo completamente a tramontana, quer dizer, estava perdendo o timão, a coisa, o barco andava aí já, parecia uma casca de noz no meio de uma enxurrada, a USP já não sabia nem mais por onde ia, se ia para a coisa política, se não ia para a coisa política. E agora o Lobo está começando… Já começou com o Goldemberg e tudo, já estão começando a dizer: “Não, espera aí, meu filho, o negócio é ir por aqui”. Eu acho que o Landim também está muito preocupado com isso e você pode discutir se o objetivo está certo ou errado, isso pode, mas tem pelo menos que discutir. TM - Certamente, é o que será feito. Professor, muito obrigada pelo seu depoimento, ele irá nos ajudar muito na compreensão da história de nossa Universidade. Muito obrigada. 75 DEPOIMENTOS Entrevista com o Professor Mário Rubens Guimarães Montenegro1 Formado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo em 1946, Montenegro, como docente daquela instituição, desenvolveu sua carreira acadêmica junto ao Departamento de Anatomia Patológica. Foi um dos principais nomes da pesquisa e ensino na disciplina de Patologia, no Brasil. Sua vida acadêmica teve seqüência em Botucatu tendo participado, em 1962 do processo de criação e instalação da Faculdade de Medicina de Botucatu. Em Botucatu, o professor Montenegro foi agraciado com a distinção de professor emérito. Esta entrevista contém um depoimento sobre sua visão a respeito da criação da UNESP e sua repercussão para a Faculdade de Ciências Médicas de Botucatu. 1 Efetuada por Isaura M. Accioli Nobre Bretan, em Botucatu, em 16 de julho de 2001. CEDEM – Projeto Memória da Universidade.[Doravante: entrevistado - MM; entrevistadora -IB.] 76 Mário Montenegro – Participei do início da Faculdade de Ciências Médicas e Biológicas de Botucatu. Nessa época, havia um órgão do Conselho Universitário da USP que era responsável pelas escolas isoladas, escolas superiores isoladas do interior, e esse Conselho participou e sugeriu a criação dessa Faculdade, velha Faculdade de Ciências Médicas e Biológicas que, na verdade, foi criada, como quase tudo no Brasil, por razões políticas. Naquela ocasião, ví-me envolvido por ser assessor do Conselho, contra a minha vontade, porque era um patologista que queria ficar fazendo patologia, mas na época, o meu ponto de vista, que passei aos colegas, aos companheiros que trabalharam com a questão, era de que nós devíamos seguir, em São Paulo, o exemplo da universidade da Califórnia, uma universidade multicampi, e cada campus com uma grande autonomia, que seria assim: USP São Paulo; USP Campinas; USP Ribeirão Preto; e USP Botucatu, e que haveria, claro, um Conselho Superior dessa instituição, mas cada um dos campus teria uma liberdade muito grande de ação. Evidentemente, esse conceito não passou, em parte porque havia muito interesse na criação dessa Faculdade; então, saiu a Faculdade de Ciências Médicas e Biológicas de Botucatu. Essa Faculdade foi um sucesso; no princípio lutou-se com enormes dificuldades, porque foi criada por razões políticas e os políticos que a criaram perderam o poder, assumiram políticos que tinham muito pouco interesse por ela e foi muito difícil fazer que ela saísse do chão. Creio que todo mundo sabe, foram os alunos da Faculdade que desempenharam um papel muito bom, muito grande nesta saída da Faculdade daquela situação precária em que estava, para se transformar numa instituição de bom nível. Esta instituição era eminentemente democrática, os docentes, os funcionários, os alunos participaram da criação de seu estatuto, foi uma época extremamente bonita, extremamente agradável, em que se criou, se discutiu detalhadamente como deveria ser essa faculdade e, a custa disso, essa faculdade cresceu de uma forma muito importante. Sempre digo que aos dez, doze anos depois de ela ter sido criada, os professores desta instituição produziram 8% de todos os trabalhos que foram apresentados à reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, em 1976. Era então um sucesso e aí, por razões políticas, mais uma vez, se resolveu criar a UNESP. A criação da UNESP foi imposta aos Institutos Isolados. Os Institutos Isolados cada um com sua história, uns mais avançados, outros menos avançados, eram instituições sérias que trabalhavam com vontade e que vinham realmente atendendo a idéia que os criou, que era colocar no interior, faculdades, escolas de ensino superior de nível bom, para que seus egressos ficassem no interior, porque até então só havia escolas de ensino superior na capital. Os alunos iam, estudavam lá e não voltavam; a idéia de criar os Institutos Isolados era essa, que os alunos se quedassem nos locais onde haviam estudado, melhorando a cultura, a tecnologia etc., de todo 77 o interior do Estado. Alguns institutos eram ótimos, eram institutos de grande responsabilidade, que formavam muito bem, que tiveram excelentes iniciadores. Por exemplo, Antonio Candido, em Assis, o próprio Ademar Freire Maia, em Marília, excelentes professores que fizeram desses Institutos, que ainda estavam crescendo, importantes instituições para o desenvolvimento do nosso Estado. Às vezes, como sou velhinho, posso dizer o que penso, essa universidade foi criada para que o Luiz Martins virasse reitor – é um homem muito inteligente, meu amigo, e fez muitas coisas boas, inclusive a faculdade de Bauru, ele teve um papel importante na Odontologia de Bauru – mas o Luiz Martins queria ser reitor, e ele não tinha chance na USP, então ele criou uma universidade para ser reitor, essa é que é a realidade. A idéia de criar a universidade multicampi, não é a USP com diferentes campus, ela não passou, então, surgiu uma, que acho legítima, de reunir os diferentes Institutos Isolados em uma univer- sidade multicampi, foi o que aconteceu; só que, quando ela foi instituída, era a época do domínio dos militares, daquela famosa maldita revolução, e isto, as idéias da revolução é que dominaram a criação da UNESP, então, foi criada uma universidade em que o poder central estava na mão do reitor. O reitor escolhia os diretores, os diretores escolhiam os chefes de departamento, era absolutamente centralizada em São Paulo. Isso causou uma enorme revolta dos Institutos Isolados, a maior parte deles, não que se opusessem à criação da UNESP, opuseram-se à criação de uma Universidade com estatuto que parecia uma regra de estação de ferro, uma coisa assim, quer dizer, é proibido cuspir no chão, só faltava isso nesse estatuto, era um estatuto absolutamente horrível, e que mantinha o poder nas mãos do reitor, que era designado pelo governador, e ele designava os diretores que designavam os chefes de departamento; na realidade, não havia representatividade do corpo das unidades, na sua administração, isso era péssimo, e os Institutos mais evoluídos tiveram uma reação muito grande, inclusive, fizeramse coisas muito ruins, por exemplo, nós tínhamos aqui na Faculdade de Ciências Médicas, um departamento de Educação, de Pedagogia, o objetivo quando se criou isso – eu participei muito ativamente disso – era que esse Instituto, esse departamento fosse voltado ao ensino na universidade, a maior parte da Pedagogia, da educação no Brasil estava voltada para educação primária, para educação secundária, pouquíssima coisa havia em relação à educação superior. No nosso departamento, o objetivo principal era a criação de condições de ensino superior, a pesquisa desse departamento seria o ensino superior na nossa Faculdade; e o que que a universidade fez? Tirou o departamento da Educação de Botucatu. Da mesma forma, professores foram deslocados para outros campi, eles tinham criado suas vidas, tinham suas casas, suas famílias, seus filhos na escola, foram tirados de um lugar para outro sem nenhuma lógica, a lógica era a cabeça do reitor, que é um homem inteligente, sem dúvida nenhuma, mas que na ocasião, ele, como 78 todos aqueles que tinham poder no Brasil, estava eminentemente aderido à idéia dos militares, do poder central e tudo o resto não interessava, todo camarada que fosse contra o poder central era comunista, subversivo, ia preso, matavam etc. A idéia de criar uma universidade multicampi é lógica, correta, acredito que seria inevitável; o problema na criação da UNESP foi a forma pela qual essa universidade foi criada, ela foi criada de cima para baixo, contra os interesses da maioria das pessoas que nela trabalhava e, freqüentemente, causando prejuízos muito grandes aos programas, àquilo que as pessoas tinham programado para que seus Institutos fossem. Ou seja, há um Instituto de Química, ele está querendo este caminho, ele fez o seu caminho, ele propôs o seu caminho e vinha caminhando no sentido de obter, de chegar ao sucesso, através do seu caminho; “ Não, não é mais você que manda, quem manda sou eu aqui em São Paulo,” que não sou químico. Essa história foi muito ruim, criou problemas horrorosos, foram coisas muito ruins que aconteceram, e que nos primeiros anos prejudicaram muito o desenvolvimento da Universidade. A nossa escola de Medicina, por exemplo, sofreu uma parada, porque ela tinha idéias que foram abandonadas. Nós, por exemplo, tínhamos a idéia de departamentos grandes que fossem voltados para a especialidade e não necessariamente para a profissão; por exemplo, tratamento de cirurgia, faz cirurgia, cirurgia de gente, cirurgia de bicho; o departamento de patologia, patologia humana, patologia veterinária, eu queria de todo jeito que tivesse também a patologia das plantas, só que os agrônomos resistiram, mas eram só os professores; os alunos da veterinária e os alunos do departamento de patologia da Faculdade, achavam certo, isso era uma idéia nova que causou, trouxe resultados excelentes, tanto que hoje o departamento de cirurgia da Faculdade de Veterinária de Botucatu é um dos melhores do Brasil, porque os seus primeiros professores foram treinados junto com os médicos, não é que os médicos sejam melhores que os veterinários, mas é que a cirurgia humana era mais desenvolvida que a cirurgia veterinária, hoje à custa desta influência, a veterinária de Botucatu, a cirurgia veterinária de Botucatu é tão boa quanto a cirurgia humana, e é a melhor, provavelmente a melhor do Brasil. Então, esse fato, essa idéia de que a gente devia trabalhar junto, foi podada completamente, criaram-se departamentos que não foram, que não saíram do desejo dos seus membros e que foram impostos pelo pessoal de São Paulo, e isso foi muito ruim. Então essa primeira fase foi, do meu ponto de vista, a criação de uma coisa contra os interesses daqueles que iam trabalhar nela, sempre é ruim, não pode ser bom, a não ser que eles fossem uns idiotas, mas não era verdade, o nosso pessoal era muito bom. Criada a Universidade, surgiram problemas, que aqui referi, mas, aos poucos, quando foi feito o regimento da Universidade, que teve uma participação maior do corpo docente dos Institutos, e quando cada Faculdade fez o seu, as coisas caminharam como deveriam ser, quer dizer, as escolas 79 passaram, se dissociaram departamentos, mas as escolas continuaram. Copiou-se o sistema USP – a nossa idéia era uma faculdade que produzisse vários cursos e que tivesse corpos docentes compatíveis e corpos docentes até entrosados no ensino –, criaram-se, então, a Faculdade de Medicina, Faculdade Veterinária e o Instituto de Biologia, isto é, aquilo que tinha na USP; não havia nenhuma originalidade nisso, e o que nós tínhamos proposto era o original. O princípio, portanto, foi muito ruim, muito traumático, uma porção de gente ficou desesperada. Depois os anos passaram e, hoje, a UNESP é aquilo que deveria ter sido desde o princípio, é uma Universidade multicampi, em que todos são representados, o ponto de vista de cada um dos docentes é ouvido, a Universidade é composta de um Conselho Universitário coerente, um conselho universitário legítimo e, hoje, ela é um sucesso, e acredito que realmente ninguém esperava que ela fosse o sucesso que ela é; há vários núcleos dos campi dessa Universidade que são dos melhores do Brasil, e a gente então fica muito contente com isso, mas sofreu-se muito no momento de sua instalação, que foi uma coisa feita na marra de cima pra baixo, sem ouvir os interessados. Isaura Bretan – Eu só queria lhe perguntar uma coisa, Professor: com a criação da UNESP, quais são as transformações que o senhor vê na Faculdade de Medicina? MM – Bom, aconteceu uma coisa que foi complicada. Inicialmente, os cursos básicos da Faculdade de Medicina eram ligados diretamente à faculdade. Quando a Faculdade de Medicina começou a funcionar, os dois primeiros anos eram no Instituto de Biociências. Isto não era bom, porque na realidade a maior parte dos professores dos cursos básicos não é nem médica, nem veterinária, nem agrônoma, nem da agronomia, então, eles não têm idéia do que seja o curso de agronomia, o curso veterinário, o curso de medicina, eles são bioquímicos, farmacologistas, biólogos que trabalham com genética, e no departamento de ge- nética só têm um médico; o departamento de morfologia não tem nenhum médico; o departamento de fisiologia tinha um médico, então houve uma dissociação muito grande do ensino de ciências básicas em relação ao ensino profissionalizante e isso foi um defeito muito grande que permanece. Todo mundo se dá muito bem, tal, muito bonitinho, mas, na realidade, os alunos sofrem, porque aquilo que é ensinado nos departamentos básicos pouco tem a ver com aquilo que eles vão fazer nos cursos profissionais, não é exagero, pouco tem a ver, mas poderia ser melhor se em cada um dos departamentos básicos houvesse médicos, veterinários, agrônomos, em quantidade que pudesse influir no programa, isso seria muito melhor, e é isso que a gente queria quando começou a Faculdade de Ciências Médicas e Biológicas. IB – O Instituto de Biociências, que se cria, que surge com a UNESP, até hoje ele permanece com a mesma estrutura com que foi criado. Como se explica a criação desse Instituto, dessa forma? 80 MM – Na marra, na marra, na realidade nós queríamos fugir dos ‘uspianos’, da USP. Na USP, antigamente, a Faculdade de Medicina tinha os seus departamentos de ciência básica, a Faculdade de Veterinária, tinha os departamentos de ciência básica; e a Agronomia sempre teve, porque ela estava lá longe; também a faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, tinha seus departamentos de ciências básicas. Então, com a reforma se separaram, a Medicina ficou lá em Pinheiros, os departamentos de ciência básica ficaram lá na Cidade Universitária; na Universidade Federal de Minas Gerais, o mesmo aconteceu, a faculdade de Medicina ficou no centro da cidade e o departamento de ciência básica lá na Pampulha. Isso é muito ruim, e nós não queríamos que isso acontecesse, nós éramos favoráveis a que os nossos colegas geneticistas, botânicos, fisiólogos etc. trabalhassem conosco, com aquela idéia do departamento de educação, orientando o ensino; esse departamento deveria fazer integração entre aqueles, os diferentes especialistas e isso não aconteceu, quer dizer, então nós voltamos para trás, voltamos no sistema uspiano, que era o sistema brasileiro, porque os indivíduos que estavam lá em cima, e que tomavam as decisões, eram indivíduos retrógrados, eles não puderam entender que é muito mais importante que a gente tivesse o departamento de fisiologia ligado às faculdades do que dissociado das faculdades. IB – Obrigada. 81 DEBATES Tempos de ditadura militar: resistência e cultura Para inaugurar a sessão Debates dos Cadernos CEDEM, selecionamos o texto transcrito de uma das mesas-redondas que compuseram o Ciclo de Debates: 75 anos do Partido Comunista no Brasil, realizado durante o ano de 1997, entre 01 de abril e 30 de setembro. Tempos de ditadura militar: resistência e cultura, ocorrida em 30/09/1997, contou com a coordenação do Professor Marcos Del Roio, da Faculdade de Filosofia e Ciência da UNESP, campus de Marília, e a participação dos professores Martim Cézar Feijó, da FAAP e Universidade Mackenzie, Marcelo Ridenti e João Quartim de Moraes, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da UNICAMP. A parte relativa à transcrição da fala de Marcelo Ridenti traz notas de rodapé inseridas a partir de revisão feita pelo autor, em dezembro de 2007. Marcos del Roio - Colegas, companheiros. Vamos dar início a mesa número seis do ciclo sobre os 75 anos do Partido Comunista no Brasil. O tema dessa mesa é a resistência e a cultura de resistência em tempos de ditadura mili- 82 tar. Passo a palavra inicialmente a Martim Cézar Feijó. Martim Cézar Feijó – Em primeiro lugar, agradeço o convite de participar deste debate. Gostaria de dizer algumas palavras introdutórias, diante de um tema que merece uma reflexão, e até uma pesquisa, maior do que aquela que vem sendo feita. Trabalho atualmente na área de comunicação, sou professor de Comunicação Comparada na FAAP, mas durante muitos anos eu me dediquei à prática da política cultural, inclusive durante a ditadura, fazendo teatro popular, como diretor de teatro e, depois, sendo editor da área de cultura do jornal Voz da Unidade, na década de 1980. A partir da experiência nesse período e dessa prática, acabei produzindo uma reflexão que redundou num livrinho, da Coleção Primeiros Passos, sobre o que vinha a ser Política Cultural. E, de lá pra cá, sempre estou às voltas com essa questão, mesmo quando tento fugir dela. Inclusive, minha tese, atualmente em andamento, que é sobre Astrojildo Pereira - fundador do Partido Comunista Brasileiro - trata, de certa forma, desse tema•. Principalmente no que se refere à relação do Partido com os intelectuais, no caso do Astrojildo foi bastante dramática; mesmo sendo fundador, acabou sendo expulso do partido. Também a formulação que ele tenta fazer de uma política cultural para o Brasil, mostra a importância da política cultural voltada para a transformação social, voltada para a revolução. Nesse sentido, esse tema me acompanha nesses anos todos, mesmo agora, que meu trabalho está mais voltado para a área de comunicação. E, ao me acompanhar, algumas questões foram surgindo e fui me defrontando com outras não muito cômodas. Então, aceito o desafio de ser o primeiro a falar nesta sessão, por considerar que algumas coisas que tenho a dizer, no atual estágio da minha reflexão, não sejam muito agradáveis de serem ouvidas e possam, talvez, gerar algum questionamento. O que importa, inclusive como vemos na proposta do CEDEM, é formular algum problema que nos interessa enfrentar. Assim, a questão da resistência aos efeitos da ditadura ou das ditaduras, é algo que não se esgota no plano histórico. Não se esgota no plano de uma reflexão sobre o que foi, mas sim, sobre o que está sendo e como temos enfrentado esse problema. Em primeiro lugar, com relação à ditadura militar. A ditadura militar é, a meu ver, fruto de um processo que não se inicia em 1964 e não se esgota com a democratização, após o período chamado militar. Ou seja, ela é desdobramento de um processo anterior, principalmente no plano cultural, o ponto que mais me interessa. Portanto, o processo não se inicia em 64. A política cultural do Estado brasileiro, como forma de estabelecer uma relação com a cultura, de pensar a cultura brasileira, começa de uma forma articulada no Estado Novo. Nisso, a contribuição de um modernista como Mário de Andrade é decisiva na formulação do Ministério da Educação e Saúde, durante a gestão de Gustavo Capanema, que contou com Carlos Drummond de Andrade, como chefe de gabinete. É dessa formulação de política cultural que a gente vai ter um desenvolvimento, um desdobramento e 83 há uma continuidade que a ditadura não nega, que a ditadura não rejeita. Nesse sentido, o campo da cultura, da perspectiva do Estado do Brasil, não sofreu com a transformação provocada com as restrições das liberdades democráticas; com o golpe de 64, ela não sofreu uma ruptura. É evidente que para todos nós, tanto do ponto de vista conceitual como político, 64 não pode ser considerado como tendo trazido uma revolução, da mesma forma como temos claro que 64 representou uma ruptura com relação ao Estado Democrático, ao Estado que vinha sendo organizado a partir da redemocratização de 1946. No que se refere à cultura, além de não ter havido essa quebra, houve sim um certo reforço de algumas questões que já estavam dadas no projeto inicial do IPHAN, do Mário de Andrade, e depois no projeto do Ministério de Educação e Cultura, de Gustavo Capanema. Durante a ditadura militar, a política nacional de cultura - que foi estudada inclusive por Octavio Ianni - visava exatamente, de um lado, preservar o patrimônio cultural, visto por exemplo, nas cidades históricas, no sentido de uma identidade nacional. Por outro lado, nós tivemos a organização de uma empresa do Estado, poderosa e importante no plano do cinema, que foi a Embrafilme. Tanto a preservação do patrimônio histórico quanto a criação da Embrafilme são dimensões do projeto da Política Nacional de Cultura que não nega as formulações anteriores, de um viés, vamos dizer assim, nacionalista, de busca de uma identidade nacional. Essa é a política cultural direta do Estado; sua relação com o cinema e com o patrimônio histórico. Nesse sentido, há um lado produtivo: ela financia filmes que, em alguns momentos, vão na contramão da linha ideológica que o Estado estabelece. Estou dizendo a ditadura como um todo, não nas suas diversas fases, em momentos mais dramáticos ou menos dramáticos, mais tensos ou menos tensos, mais violentos ou menos violentos. E considerando a produção e o investimento, no caso do cinema, reunimos elementos para pensar no desdobramento disso, posteriormente, quando do desmanche da Embrafilme e suas conseqüências. Mas há uma política cultural, em linha direta, que não só permite a produção ou a defesa do patrimônio; mas também há uma que cerceia, ou seja, que retoma algumas coisas do Estado Novo, ou seja, o restabelecimento da censura, que é próprio de qualquer ditadura. O restabelecimento de uma política de cerceamento a qualquer atividade artística - principalmente artística - que venha combater, questionar e dar alternativas à política mais geral do Estado. Então, nesse sentido, a censura teve um papel importante, porém não decisivo na questão da resistência. Teve um papel de cerceamento, em que o lado violento não foi exatamente o da censura, foi mais exatamente o da perseguição física aos agentes culturais, no caso, os artistas, sobretudo o pessoal do teatro, do cinema, da literatura, que sofreu a violência que toda a oposição ao regime sofria. Portanto, temos de um lado a Política Nacional de Cultura e, de outro, a censura. O Estado permite e cerceia ao mesmo 84 tempo, o que no caso do Estado Novo, foi mais leve. Mas a mão que afaga é a mesma que apedreja. A relação do Estado com a cultura é complexa e tensa, mesmo no contexto posterior, no Estado Democrático. Uma outra linha, indireta, mas muito mais poderosa, talvez muito mais importante para se pensar a resistência no plano específico da cultura, não a resistência no plano político, no plano das várias alternativas políticas que se apresentavam naquele contexto de violência de Estado, mas no sentido específico da cultura, da atividade cultural, diz respeito à política de telecomunicações. Via Embratel, tal política vai permitir a unificação do país pela primeira vez pelas redes de comunicação e por satélites. Ou seja, a possibilidade de operação de uma comunicação nacional, da qual a Rede Globo é o seu lado mais visível, foi propiciada pela ação do Estado e também pelo capital estrangeiro, que permitiu o estabelecimento de uma indústria cultural pela primeira vez no país, de forma extremamente organizada, profissionali- zada e competente. Assim, permite-se a existência do outro lado da política cultural do Estado, essa sim, indireta, não concebida nos gabinetes de Capanema ou de Aloísio Magalhães, mas como parte da formulação estratégica do Estado Militar, a partir da relação entre o investimento em infraestrutura que permitisse a unificação nacional pelos meios de comunicação – a atuação da Rede Globo é sua parte mais importante, mais visível. Estabelece-se um link direto entre a consolidação do Jornal Nacional e das telenovelas como formas de produção cultural compatíveis com a formulação estratégica do Estado, de criar bases para a consolidação do capitalismo monopolista no Brasil. Temos, então, de um lado, a unificação das comunicações através de uma política cultural indireta, que permite do ponto de vista físico e tecnológico a organização dos meios de comunicação. A publicidade desempenha, aí, um papel importantíssimo, pois ela vai desenvolver exatamente a dimensão ideológica, as justificativas para a implantação e for- talecimento do capitalismo no Brasil. Por outro, a política mais direta, que é aquela a qual nós nos apegamos muito. Ficamos muito presos à questão da censura, da repressão, da perseguição e não nos demos conta deste complexo maior, de uma política cultural estrategicamente muito bem formulada, muito mais poderosa, porque ultrapassa os limites da ditadura, segue seu curso mesmo após o desmantelamento ou não desmantelamento do Estado autoritário que se viveu. Esse é um contexto. O outro é o da resistência propriamente dita, que se deu em vários níveis. Um, mais direto, é aquele que aponta para o processo político e cultural que antecede a ditadura, ou seja, é aquela geração do Cinema Novo, do Tropicalismo que, de uma certa forma, já atuava no começo de 1960. Muitos artistas eram ligados a movimentos populares como o CPC da UNE, ou ligados ao teatro, como o ARENA e o Oficina, em São Paulo, que tinham um projeto cultural e estético diversificado, voltado para a transformação social e para a resistência ao capitalismo. Não era questão 85 só de resistência à possível ditadura que viria, mas é o processo que inicia o preparo de uma nova sociedade. Um processo no qual a esquerda hegemônica, como o Roberto Schwartz percebeu bem com relação à década de 1960, ocupa espaços estratégicos na imprensa, uma vez que o papel da crítica é importante para fundamentar, justificar, facilitar, e favorecer a difusão dessa produção cultural através da mídia. Tal mídia, mesmo que ainda tendo atuação localizada, limitada ao plano da linguagem verbal, como no caso da imprensa escrita, vai sofrer o baque de 64. Esse baque vai provocar em cineastas como Glauber Rocha, músicos como Caetano Veloso, escritores como Antonio Callado, a busca de formas de enfrentar a nova realidade através de sua produção cultural. Vão produzir refletindo exatamente isso, e nessa busca nós encontramos a transição. No caso de Glauber Rocha, alguém a quem eu me dediquei um pouco mais, a mudança de enfoque que vai desde Deus e o diabo na terra do sol, em que temos exatamente isso: a terra é do homem, de deus, do diabo e, no fim, do camponês que, evidentemente, é identificado ideologicamente com as ligas camponesas, encontra o seu caminho na revolução. Em seguida, temos a reflexão e a melancolia do Terra em Transe, a melancolia da derrota, o barroco estabelecido como possibilidade estética, numa determinada linha de reflexão ante ao Estado que se impõe. Em Quarup, Antonio Callado apresenta a luta armada como possibilidade de resistência política àquele estado de coisas. Na música, a explosão da música popular brasileira vai ressaltar dois nomes de grande destaque. Na chamada linha evolutiva temos Chico Buarque de Holanda e, noutra, mais voltada para a ruptura estética contaminada pela contracultura e pela Jovem Guarda, o Tropicalismo, liderado e capitaneado por Caetano Veloso, perspectiva já antecipada por Hélio Oiticica que, aliás, deu nome ao movimento a partir de seu trabalho Tropicália. Esse contexto de resistência cultural ao regime, tal como a política cultural da ditadura, é algo que vem de um pro- cesso anterior, mas que, esse sim, vive uma ruptura, vê recusada a possibilidade da sua atuação e, frente a isso, passa a atuar especificamente na atividade artística. Mas há ainda alguns pontos para os quais eu gostaria de chamar a atenção, para dois pontos. Inicialmente, há outro tipo de resistência cultural que não é tão destacada, que é aquela que inclui jovens que não tinham nenhuma vinculação com a tradição ideológica de esquerda, com a luta política, mas que encontram canais de resistência a um estado de coisas que não suportam, não aceitam. Isso também é resistência, é algo que busca o enfrentamento por vias que não são necessariamente as vias da política conhecida, mas que, de uma certa forma, recusam o estado ditatorial militar em que nós vivíamos. Eram exatamente grupos urbanos, no caso também de classe média, vinculados a setores universitários ou pré-universitários que encontram o movimento, muito menos nacional e mais internacional, que recebeu o nome de contra-cultura. Nascido nas barricadas de Paris, em 1968 e nas universida- 86 des norte-americanas protestando, entre outras coisas, contra a guerra do Vietnã, tal movimento foi aqui visto, por alguns, como algo ligado ao chamado desbunde, algo que não apontava em direção ao plano político. Tudo que não remetia diretamente ao plano político, era visto como descartável para a luta política imediata, na medida em que só era aceito pelas esquerdas, aquilo que estivesse ideologicamente comprometimento com ela. Tudo o que não estivesse ou por não estar comprometido ou por ser entendido como tal, por exemplo, a introdução das guitarras no tropicalismo, era associada ao chamado imperialismo ou ao processo de internacionalização dos movimentos juvenis que não eram aceitos como resistência. Isso gera dois problemas do ponto de vista da interpretação mais global do contexto em que a ditadura militar se instalou no Brasil, e do processo do qual ela fez parte. Trata-se muito mais de apontar uma contradição, que deixaria para o debate, porque é muito mais uma inquietação do que algo sobre o que eu tivesse uma resposta neste momento. Primeiro, abstraindo a questão de que o estado ditatorial censurou, perseguiu, matou, mutilou, impediu e, colocando também de lado, exatamente a questão da política indireta que permitiu a unificação dos meios de comunicação através da publicidade e da Rede Globo, eu não tenho visto nas formulações do nosso campo, do campo de quem se coloca ideologicamente contra o capitalismo, eu não vejo formulações que questionem essas políticas nacionais de cultura, que apontam ainda em direção à chamada identidade nacional. Ou seja, a perspectiva do conceito de nacional popular, - com todo o respeito à nossa tradição gramsciana, à qual eu me considero incluído, - é algo que tem de ser melhor questionada, melhor trabalhada e até criticamente resolvida. Nesse sentido, vamos ver esse desdobramento tanto nas políticas de cultura que ainda se mantêm na atuação do Ministério da Cultura, atualmente exercido por um sociólogo, que não só é de esquerda, mas alguém que inclusive saiu dos quadros ou entrou nos quadros ou se manteve até certo momento, nos quadros do Partido dos Trabalhadores, o PT, que é o caso do ministro Weffort. O Ministério mantém a citada linha de defesa do patrimônio como base da discussão da política nacional de cultura. Por outro lado, permanece a dificuldade de lidar com o específico cultural, com o produto cultural, com o produto artístico, considerando, por exemplo, o debate gerado em torno do filme O que é isso companheiro?. Essa questão demonstra, a meu ver, que somos bons de política, podemos ser bons em projetos históricos, mas ainda somos ruins em estética. Ou seja, aquela frase do Caetano Veloso, dita ao enfrentar a juventude de esquerda – há indícios de que era uma parcela do CCC que provocou aquela grita toda em torno do É proibido proibir do Caetano Veloso, mas que depois foi aumentado, foi ampliado, com o pessoal da UNE tendo resolvido considerar um ato político o de impedir que Caetano Veloso cantasse ao som das guitarras, com os Mutantes que vinham da Jovem Guarda, de uma linha mais voltada para a contra-cultura. O 87 Tropicalismo estaria contaminado e seria uma forma de luta contra o imperialismo impedir que Caetano Veloso cantasse ao som da guitarra e que ele, em seu discurso, que era também um discurso de resistência não só à ditadura militar, mas a qualquer forma de ditadura, chamou a atenção para a questão de que nós temos que parar de matar amanhã o velhote que morreu ontem. Ou seja, se formos em estética o que somos em política, estamos feitos! Acho que a permanência dessas duas práticas, a que aponta para o risco de matar amanhã o velhote que morreu ontem e a de não compreender o específico da atividade cultural, nos leva à possibilidade de continuar repetindo jargões, repetindo formulações que não têm respaldo na ação política concreta, e, portanto, dificulta a existência, primeiro, de uma política cultural efetiva, democrática e ampla, que seja, também, essencialmente transformadora. O que temos visto em toda política cultural, seja ela formulada por quem for, é que toda política cultural eficaz, eficiente, é conservadora, é feita para conservar algo. As políticas restringem-se ao circuito da identidade e do patrimônio nacionais, mas apresentam-se no discurso como transformadoras. Nós vamos manter o patrimônio, porque isso é uma revolução, nós vamos manter a identidade, porque isso é uma revolução, e esse discurso retórico em cima de uma prática concreta é que muitas vezes prejudica a própria eficácia política. Eu considero necessária a proteção ao nosso patrimônio histórico. Mas a grande questão está em considerá-la a base de uma política cultural que gere ou que possa gerar, que possa levar a uma transformação social, quando, na verdade, busca apenas e tão-somente cuidar dos equipamentos existentes e não da criação de condições para produções novas. As condições para as produções novas implicam, exatamente, ter-se um debate franco, aberto, sobre todos esse temas. São essas linhas que eu gostaria de poder voltar a discutir. Obrigado. Marcos Del Roio – Obrigado professor Martim. Por favor, Marcelo Ridenti. Marcelo Ridenti – Começo agradecendo ao convite dos colegas aqui do CEDEM. Sempre que tenho oportunidade, gosto de realçar a importância das atividades que o CEDEM promove, não só do ponto de vista dos debates, mas especialmente como arquivo, pela possibilidade de fornecer oportunidades para que pesquisadores venham a conhecer os movimentos de esquerda, movimentos populares e outros. Certamente é uma das grandes coisas que se faz na UNESP. Eu me sinto muito satisfeito por estar aqui, contribuindo um pouco para esses debates. Gostaria de colocar algumas coisas sobre o romantismo revolucionário dos anos 60. Tomo como base o conceito que Michael Lowy e Robert Sayre desenvolvem no livro chamado Revolta e melancolia no romantismo na contramão da modernidade,1 para poder entender um pouco a esquerda brasileira naqueles anos. Mas, antes de falar sobre o tema, não vou resistir a começar retomando o que o Martim colocou no final de sua exposição. Concordo que existe a 88 necessidade de compreender o específico da atividade cultural, mas não sei se existe um buraco tão grande assim. Por exemplo, no número três da revista Praga, há um belo artigo do Ismail Xavier justamente nesse sentido, dizendo que o filme O que é isso, companheiro? foi muito combatido, mais do ponto de vista da reconstituição histórica e, então, ele faz uma dura crítica ao filme do ponto de vista estético, especificamente. A meu ver, o filme não se salva nem estética, nem politicamente. Pensando na questão proposta da identidade nacional como elemento da política cultural desde os anos do Estado Novo, como Martim coloca, o meu ver, essa questão ganha um colorido à esquerda nos anos 60 e 70 e, ele tem razão, o tema precisa ser melhor trabalhado. A idéia da identidade nacional está muito impregnada daquela atmosfera política dos anos 50 e 60, que pode até ser vista como um certo populismo no campo da cultura, mas diria que tem um outro lado, que não é só isso. É preciso trabalhar todas essas ambigüidades que vão desde um discurso nacionalista de extrema direita, até um discurso nacional à esquerda. Nesse ponto, proponho a idéia do romantismo revolucionário que marca os anos 60 no campo da cultura, da literatura, do cinema, do teatro, e está também na luta política, especificamente da esquerda armada. Há uma frase romântica de Goethe, que modifiquei um pouco para tentar entender ou resumir o espírito dos anos 60, e essa modificação daria algo assim: “cinzenta é toda a teoria e vermelho o sangue esplêndido da vida”. Ou seja, havia uma ênfase apaixonada na vontade, na experiência vivida, na ação para transformar uma realidade aparentemente difícil de ser transformada, em direção ao futuro, um certo voluntarismo para resolver na prática os problemas seculares da sociedade brasileira. Indo além, por outro lado, nessa luta, buscava-se recuperar uma tradição cultural passada, enraizada no povo ou na nação, algo típico do romantismo, até nos seus sinais de direita. Vou tentar desenvolver como isso tem alguns sinais à esquerda. A hipótese aqui esboçada é a de que a luta da esquerda armada não foi senão uma das manifestações mais extremadas do romantismo revolucionário naquele período. Diria que, no campo da literatura, o romance mais marcante para entender o imaginário dos militantes dos anos 60 não sei se do ponto de vista estético, mas certamente no aspecto político e sociológico - foi o livro Quarup, de Antonio Callado, muito representativo daquela utopia romântica do período, livro que Ferreira Gullar chamou de “Quarup, ensaio de deseducação para brasileiro virar gente”.2 Naquela busca do padre Nando – de ir ao interior do Brasil, de seguir ao Xingu para encontrar os índios e, depois, no final da história, juntar-se aos camponeses revolucionários – há essa valorização da vontade de transformação, uma aposta na ação dos seres humanos para mudar a história, num processo de construção do homem novo, nos termos do jovem Marx, recuperado por Che Guevara. Mas o modelo para esse homem novo estava paradoxalmente no passado, envolvendo certa idealização do autên- 89 tico homem do povo, com raízes rurais, do interior, do coração do Brasil. Um homem que ainda não estaria contaminado pela modernidade urbana capitalista que, como a ditadura viria revelar, era geradora de um desenvolvimento desigual e combinado, no qual a ampla maioria da população se via despossuída dos frutos do progresso. Com relação aos anos 60, pode-se falar em vários movimentos: dos sargentos e marinheiros, dos trabalhadores urbanos e rurais do pré-64, dos estudantes e intelectuais, sobretudo depois do golpe, passando pelos grupos de esquerda que procuravam organizar esses movimentos, que por sua vez produziram diferentes versões do romantismo revolucionário, visíveis, por exemplo, na trajetória da esquerda católica, da Ação Popular (AP), que partiu do cristianismo para chegar ao maoísmo, sempre valorizando a ação, a vivência dos problemas do homem do povo, encarnado sobretudo nos camponeses, sem contar o guevarismo das diversas dissidências do Partido Comunista Brasileiro (PCB), a valorizar a necessidade da guerrilha rural, caso típico da Ação Libertadora Nacional (ALN), e de outros grupos com origens diversas, mas que viam a necessidade da ação revolucionária imediata, como foi o caso da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Michael Löwy e Robert Sayre dizem que “o romantismo apresenta uma crítica da modernidade, isto é, da civilização capitalista moderna em nome de valores e ideais do passado pré-capitalista, pré-moderno”. Segundo eles, haveria vários tipos de crítica romântica ao capitalismo, alguns claramente conservadores, que simplesmente proporiam uma volta ao passado. Eles falam em várias vertentes do romantismo, desde aquela que inspira o nazismo, até a que chamam de romantismo revolucionário ou utópico, de esquerda, que visaria instaurar um futuro novo no qual a humanidade encontraria uma parte das qualidades e valores que tinha perdido com a modernidade: comunidade, gratuidade, doação, harmonia com a natureza, trabalho como arte, encantamento da vida. Então, a ação transformadora revolucionária seria animada pela utopia anti-capitalista que desenha o homem novo, mas ela seria indissociável do resgate de uma tradição cultural, digamos assim, não contaminada pela modernidade capitalista. Esse romantismo das esquerdas não seria uma volta ao passado, senão seria um reacionarismo; ele busca no passado elementos para a construção da utopia do futuro. Não um romantismo qualquer de uma perspectiva anticapitalista, prisioneira do passado, geradora de uma utopia irrealizável na prática, mas um romantismo revolucionário que visava resgatar o encantamento da vida, uma comunidade inspirada na idealização do homem do povo, cuja essência estaria no espírito do camponês e do migrante favelado a trabalhar nas cidades. Buscavamse, então, no passado, elementos que permitiriam uma alternativa de modernização da sociedade que não implicasse a desumanização, o consumismo, o império do fetichismo da mercadoria e do dinheiro. Não se tratava de meramente propor uma condenação moral das cidades 90 e a volta ao campo, mas sim, de pensar, com base na ação revolucionária, a partir do campo, a superação da modernidade capitalista cristalizada nas cidades, tidas na época na expressão famosa de Debray, como túmulos dos revolucionários. Fazendo um parênteses aqui, é interessante notar que existem vertentes do marxismo que têm alguma proximidade com esse tipo de idéia, em autores como Walter Benjamin, Herbert Marcuse, Henry Lefebvre, E. P. Thompson, Raymond Williams, dentre outros. No entanto, como observam Michael Löwy e Robert Sayre, sempre houve uma certa ambigüidade entre o marxismo e o romantismo, porque justamente o romantismo tem esse caráter por vezes reacionário; dizem eles: “até os autores marxistas mais atraídos pelos temas românticos conservam uma distância crítica inspirada pela herança progressista do iluminismo”. Enfim, podemos deixar eventuais questões teóricas para o debate. Mas é preciso salientar que essas características do romantismo revolucionário nos anos 60 não se dão gratuitamente. Há uma sé- rie de acontecimentos no plano nacional ou internacional que, de alguma maneira, alimenta esse tipo de resistência ao capitalismo com características românticas e que chega até à via armada, privilegiando a figura do camponês. Vejam o que estava acontecendo no cenário internacional – guerra de libertação na Argélia, uma aposta significativa na libertação nacional presente no movimento dos países não alinhados. Tínhamos a guerra no Vietnã, um pequeno povo camponês subdesenvolvido enfrentando a maior máquina de guerra, a norte-americana. Havia, enfim, a revolução cultural chinesa que, como já salientou Perry Anderson, teve um impacto no imaginário da juventude ocidental, independentemente do que tenha efetivamente significado na China.3 O aparente combate ao processo de burocratização dos países socialistas, uma política externa de solidariedade com as nações do terceiro mundo, a ênfase na espontaneidade das massas no processo revolucionário, a aparente realização da utopia marxista de romper com a separação entre traba- lho intelectual e o manual, um igualitarismo social em detrimento das forças do mercado, a administração direta, o uso da energia e do entusiasmo da juventude. Todas essas características, positivas, mostravam-se para a juventude européia e também para a latino-americana, como fatores de aproximação a posições políticas maoístas. Lembre-se, ainda, de que o modelo soviético de socialismo também era colocado em questão, especialmente após a invasão da Checoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia em 1968. Para muitos jovens parecia que a União Soviética, naquele cenário da Guerra Fria, estava mais interessada em manter seu campo de influências do que em promover a revolução. Por outro lado, o exemplo e a vitória da revolução cubana de 1959 abriam novas perspectivas para a esquerda na América Latina Atravessava-se, ainda, um processo intenso de proletarização do trabalho intelectual, em termos internacionais. A figura do profissional liberal autônomo estava sendo superada por aquela do tra- 91 balhador assalariado, profissional liberal assalariado que hoje está muito disseminada, tendo talvez até gerado uma transformação na própria composição da classe dos trabalhadores assalariados. É preciso lembrar também que o movimento hippie e a contracultura surgiram naquela época. Há um texto do Leandro Konder, de 1967, mostrando como os sentimentos e práticas de rebeldia contra a ordem, ou de revolução por uma nova ordem, mesclavam-se de maneira criativa nos anos 60.4 Isso foi marcante do período. No Brasil, o golpe de 1964 veio jogar areia nos projetos revolucionários, os mais diversificados, que começavam a frutificar no início dos anos 60. Ele veio dar fim às crescentes reivindicações de lavradores, operários, estudantes, militares de baixa patente, cuja politização do pré-64 ameaçava a ordem estabelecida. Ameaçava porque talvez os aspectos políticos e culturais ditos “populistas” estivessem ganhando uma feição popular; esse nacionalismo “populista”, talvez, estivesse caminhando efetivamente para o nacional-popular no sentido gramsciano, que fugiria do controle das classes dominantes. O golpe veio e praticamente não houve resistência a ele. Todo esse movimento que se desenhou no início dos anos 60 acabou por gerar acusações às direções, não só do PCB, mas também das outras organizações de esquerda. O próprio Partido Comunista do Brasil (PC do B), a Ação Popular (AP), a Política Operária (POLOP), todos sofreram inúmeras cisões e deles surgiram grupos que vieram a pegar em armas nas cidades. Ou seja, foi se formando, depois do golpe, uma corrente de opinião difusa em vários segmentos da esquerda, que colocava a necessidade de construir uma vanguarda realmente revolucionária, que rompesse com o imobilismo e opusesse uma resistência armada à força das armas do governo, não só para restabelecer a democracia mas, sobretudo, para avançar decisivamente em direção à superação do capitalismo. Gostaria de ressaltar, ainda, o fato de que o Brasil foi um dos países que, na história mundial, sofreu um dos mais rápidos processos de urbanização. Se pegarmos os censos, desde a década de 1940 até a última, vamos ver que a sociedade brasileira num período de 50 anos passou de 80% da população vivendo no campo e 20% na cidade para uma sociedade que tem, atualmente, 20% da população no campo e 80% nas cidades. Se olharmos os dados estatísticos da década de 1960, veremos que naquela altura estávamos no meio desse processo. Os dados sobre as pessoas perseguidas durante a ditadura, levantados pelo projeto Brasil Nunca Mais, mostram que a ampla maioria foi processada nas cidades, mesmo que tenha nascido no interior, provavelmente filhos ou netos de pessoas com raízes rurais. 5 Enfim, o resgate romântico de um autêntico homem do povo brasileiro deve ser pensado também nesse contexto, de um profundo e rápido processo de urbanização e de desenvolvimento capitalista no Brasil, posto na ordem do dia, sobretudo, a partir dos anos JK e depois, com a modernização conservadora da ditadura. 92 Nesse sentido, geraram-se reações políticas e culturais a essas transformações profundas que estavam acontecendo na vida cultural, política e econômica no plano nacional e no plano internacional. Reações a que se podem atribuir traços românticos, comuns na história recente do Brasil. Questionava-se a modernização capitalista e conservadora, identificada pelo rápido processo de industrialização, urbanização, concentração de riquezas e ausência de liberdades democráticas. Combatia-se o dinheiro, a indústria cultural e a fetichização impostas pela sociedade de consumo do mercado capitalista. Havia identificação com o camponês, tomado como autêntico representante do povo oprimido, principal agente da revolução social, como aparece no citado Quarup, como aparece em Deus e o diabo na terra do sol, filme de Glauber Rocha. Valorizavam-se a ação e a vivência revolucionária, por vezes em detrimento da teoria, teoria que só poderia brotar da experiência de grupo. Todas essas seriam características do romantismo revolucionário que, em versões di- ferenciadas, podem ser encontradas nos programas de várias organizações de esquerda. Essas características também se encontravam na produção artística do período entre 1964 e 1968. Por exemplo, a revolução brasileira com base na ação do camponês e das massas populares, em cuja luta a intelectualidade estaria organicamente engajada, é cantada em verso e prosa em músicas como Terra Plana e Pra não dizer que não falei de flores (Caminhando), de Geraldo Vandré; Procissão, de Gilberto Gil do pré-tropicalismo,; Viola enluarada, dos irmãos Vale. Soy loco por ti América é uma canção dedicada ao Che Guevara, com versos de Capinam – originário do Centro Popular de Cultura (CPC) de Salvador – com música de Gil, cantada por Caetano Veloso. Essa canção já pertence à estética tropicalista, que veio a ser um veio um pouco diferenciado desse romantismo revolucionário mas, a meu ver, está dentro dele.6 Em suma, há traços que permitem fazer uma análise política e cultural glo- bal daquele momento, não só no campo especificamente político, mas também de uma maneira mais ampla, no campo cultural. Vejam-se as composições de Sérgio Ricardo, Edu Lobo, Chico Buarque, Milton Nascimento e seus parceiros. Os espetáculos do Opinião, no Rio de Janeiro; do Teatro de Arena e do Oficina, da primeira fase, em São Paulo. Aquelas mobilizações todas que foram feitas pelo que se chamou, na época, de classe teatral. Nas produções do Cinema Novo, já foi falado aqui de Deus e o Diabo... mas poderíamos lembrar de Os fuzis, do Ruy Guerra, um belo filme que vai no mesmo sentido da literatura de Antonio Callado, de Moacyr Felix, de Ferreira Gullar, nas exposições de artes plásticas da Nova Objetividade Brasileira. Para encerrar, gostaria de dizer que não estou tomando o romantismo revolucionário da época num sentido pejorativo, nem mistificador. É muito comum hoje se falar do romantismo dos anos 60, tanto por aqueles que hoje são adeptos da “política do possível” – que estão submetidos à nova ordem mundial e acham 93 que essa nova ordem é inexorável e, portanto, aquele passado romântico deve ser esquecido –, como por aqueles que, mesmo sendo políticos de esquerda até hoje, às vezes, desqualificam as lutas dos anos 60 como tendo constituído uma utopia irrealizável. Ao contrário, nesse fim de século, que é aparentemente sombrio para as forças transformadoras da ordem estabelecida, é preciso lembrar que a questão das reformas e da revolução social estava colocada no mundo todo por movimentos políticos significativos há relativamente pouco tempo, especialmente nos anos 60. Dos anos 60 para cá, a contra-revolução triunfou em escala internacional, mas não foi capaz de dar resposta aos graves problemas sociais que se anunciavam naqueles anos e que, hoje, estão muito mais agravados, especialmente na sociedade brasileira. Às portas dos anos 2000, apesar de ter acabado a ditadura, perpetuam e alargam-se as intensas desigualdades. As forças hegemônicas nos governos, hoje democraticamente eleitos, ainda são as mesmas que deram sus- tentação política à ditadura. Um ou outro tucano entrou no ninho, mas o ninho é aquele mesmo. Infelizmente o projeto de Golbery deu certo. A transição lenta, gradual e segura, do ponto de vista das classes dominantes, realmente triunfou no Brasil e, vejam só, tendo à frente, o Príncipe dos Sociólogos.7 Vale a pena, então, recuperar aspectos desse romantismo revolucionário da década de 1960, para aqueles que sabem que “tudo que é sólido desmancha no ar” – para usar uma frase célebre de Marx e Engels – e também que “tudo o que existe merece perecer”, para usar a frase de Goethe, poeta romântico. Não se trata, no entanto, de idealizar as lutas passadas, nem de buscar uma repetição anacrônica da história, mas de desvendar os alcances e os limites daquelas lutas no seu contexto histórico específico. Na minha geração, a dos anos 70, cantávamos o Hino Nacional, as músicas do Vandré, como Caminhando, nas manifestações estudantis de 77, 78, em São Paulo e, para nós, havia uma certa idealização da geração passada que havia com- batido nos chamados anos de chumbo. Mas, como dizia Florestan Fernandes, não se deve ficar encantado por um passado que não pode ser reconstruído e que também não foi tão legendário, nem tão heróico assim, como certas idealizações sublinham. Mas, se devemos combater essas idealizações do passado, devemos também combater as versões conciliadoras da história recente, que vêem as lutas dos anos 60 meramente como lutas de meninos ingênuos e rebeldes e é nisso que se encaixa ao filme O que é isso, companheiro?, de Bruno Barreto. Meninos cheios de boas intenções, mas promotores, como diz Daniel Aarão, de uma grande aventura no limite da irresponsabilidade.8 E o que se oculta com isso? Os projetos de resistência, os projetos de revolução, a indignação mesma dos intelectuais contra a situação de miséria e desigualdade em que vivia e vive o país. Esse tipo de leitura, que às vezes aparece até nas memórias dos ex-guerrilheiros, teria permitido dialogar com esse passado, sem se atormentar com ele, num contexto de redemocratização da socie- 94 dade brasileira dos anos 80. Diz Daniel Aarão: “deixa-se cair sobre esse passado um manto de compreensão e boa vontade”, e eu acrescento: enquanto permanecem as desigualdades gritantes da sociedade brasileira que deram base àqueles projetos revolucionários. Então é preciso, por um lado, desmistificar esse passado recente de lutas, um certo encantamento de versões idealizadas desse passado “romântico”, mas, de outro, e, ao mesmo tempo, questionar o desencanto de outras versões, por vezes particularistas, muito personalizadas, a fim de retomar o espírito transformador. Intelectuais e militantes de esquerda, preocupados com a construção de uma alternativa socialista e inovadora, devem retomar e recriar em nova chave o aspecto libertário, transformador, romântico, de não se contentar com o possível, dentro do que a globalização da nova ordem internacional nos relega. É isso que eu tinha a dizer. Muito obrigado. Marcos Del Roio – Obrigado, professor Marcelo. Passo a palavra para o professor João Quartim de Moraes. João Quartim de Moraes - Havia previsto como minha intervenção, simplesmente retomar dois tópicos de um texto que fiz para um dos volumes da História do Marxismo no Brasil. Mas considerando as questões já tratadas, levantaria sobretudo o primeiro deles. A formulação, que é um tanto geral, mas geral no bom sentido, no sentido conceitual, quer ressaltar a inarredável dualidade de todo o combate político marxista, do marxismo revolucionário. É inarredável porque um partido político não é uma academia de ciências, ele é uma organização de luta, uma organização capaz se é revolucionária - de travar a luta de todas as formas em que ela for necessária. Mas, ao mesmo tempo, ele é o que Antonio Gramsci - que foi um grande comunista, grande intelectual, embora idealista em filosofia, tendo sido, até por causa desse seu idealismo, utilizado de uma maneira um tanto deformadora no Brasil, é coisa cultural do gramscianismo no Brasil, nos anos 1970 – o grande Antonio Gramsci, identificava como sendo o intelectual coletivo. A minha reserva ao gramscianismo é ao modo como isso se difundiu no Brasil nos anos 70 e não em relação a esse homem que foi extraordinário, um homem que, como me dizia Domenico Losurdo - com quem eu debati na UNICAMP há dois anos atrás : “Gramsci era um idealista em filosofia”. Ele diz: “a cosi detta, a realidade objetiva, a coisa dita não é realidade objetiva, é cosa detta, a assim chamada realidade objetiva do mundo. Tudo é relativo à consciência humana, a experiência é uma maneira um pouco envergonhada de falar em consciência humana, tudo isso se chama idealismo em filosofia. Gramsci é um filósofo idealista, de base idealista”. Mas é claro que ele não ficou nisso, porque se ele fosse apenas um discípulo de Gentile ou de Croce, nós não estaríamos aqui debatendo. Hoje em dia, ninguém consegue discutir política sem ser gramsciano, sem usar conceitos que ele inventou. Então a gente é acostumado com esse paradoxo, quer dizer, é um homem que inclusive para racionalizar a sua derrota, escreveu coisas lamentá- 95 veis. Enquanto o grande Astrojildo Pereira, não sendo comunista, defendia a revolução Russa aqui, explicava contra os escribas primitivos e outros das classes dominantes, enquanto ele defendia a Revolução Russa, explicava o que era a revolução Russa, desmentia aquelas afirmações mais grotescas. Mas quando Gramsci escreveu aquela beleza, Rivoluzione contra il Capitale, ele não tinha entendido nada, nem da Revolução Russa nem do Capital, dizendo que a Revolução Russa, a bolchevista tinha desmentido O capital, o que não é verdade. Mas estou me estendendo demais neste considerando. Eu diria, então, inspirado no léxico desse grande pensador, esse homem que renovou o pensamento político de todo o século XX, eu diria: todo partido revolucionário tem uma inarredável dualidade. Ele tem esse duplo componente, por um lado, é uma organização de combate, de luta, capaz de travar qualquer luta e agir na clandestinidade, na ilegalidade, de disputar uma eleição, de dirigir uma insurreição - isso é um partido revolucio- nário. E, de outro, ao mesmo tempo, ele é um intelectual coletivo, portador não só de uma cultura, mas de uma análise, de uma compreensão do curso concreto da história, do processo histórico. Essas duas coisas, às vezes, são diferentes, não conheço uma forma de conciliar essas duas determinações. Ser um intelectual coletivo, ter a lucidez, a compreensão do processo histórico e de como adequar essa análise ao programa partidário, às experiências coletivas das quais o partido é portador e, ao mesmo tempo, na ação, agir com disciplina, como um só homem. Executar a disciplina coletiva sem a qual nós retrocedemos ao aventureirismo, ao diletantismo, à impotência na matéria de revolução. Portanto, há a lucidez do pensamento, o próprio Gramsci observa isso, de um lado, a lucidez do pensamento e, do outro lado, a organização da vontade. Organização à qual o grande Lênin associou o seu nome e que sabia reconhecer; até em correntes, na luta contra o czarismo, cuja visão de mundo reprovava. Mas vou desistir de desenvolver essas questões, preferindo abrir uma discussão com os dois amigos, camaradas, que me precederam. Alguns temas que me chamaram muito a atenção nas duas falas e que eu poderia contribuir, não polemizando, porque a idéia não é essa, mas quem sabe salientando, enfatizando, ou dando até uma perspectiva crítica em relação ao que eu ouvi, tanto de um como do outro. É curioso como a idéia do nacional popular estava no Brasil muito antes da influência de Gramsci. Sobre isso é só ler Nelson Werneck Sodré. Hoje o que é nacional? A última frase do livro A História da burguesia brasileira, diz assim: “Hoje, só é nacional o que é popular”. A frase pode até ter uma matriz abstrata. Se eu identificar a nação ao povo, sim. O livro está aí e toda a argumentação dele demonstrava isso. O que é popular e o que é nacional. Poderia ser uma espécie de tolstoísmo. Mais você está ancorado no seu país, mais você está prisioneiro desse abismo sem fundo que é o idioma, da língua em que você sonha. A língua está profundamente arraigada em nós. 96 Apesar de seu caráter cultural, nós somos prisioneiros dela, querendo ou não. Igual ao Tolstoi daquela passagem célebre de Ana Karenina. Há uma passagem em que ele diz que o povo russo morreu. É uma festa camponesa e aí entra o romantismo camponês ou, dizendo de outra forma, o fundo do povo, o fundo do romantismo popular. Então esse nacional popular, segundo Gramsci, vem muito depois. Na verdade. no pensamento do Partido Comunista Brasileiro, dos intelectuais comunistas dos anos 60, isso já estava perfeitamente claro. Obras de envergadura, como a do Nelson Werneck Sodré, que acho que é o que tem de mais sólido, que é o que vai ficar, a despeito dos defeitos literários, de ser repetitivo, prolixo, de época, é o que vai ficar. Mas podemos destacar mais dois livros que influenciaram muito a geração de que falamos aqui, o Celso Furtado, o livro sobre a estagnação, as teses estagnacionistas e o livro de Caio Prado, A Revolução Brasileira. A Revolução Brasileira, para quem não leu, é uma crítica de direita ao PCB. Aliás, na época, na Revista da Civilização Brasileira, alguns intelectuais do PCB o criticaram. É um livro que defende, em substância, além de outros retrocessos teóricos em relação ao marxismo–leninismo, o acerto entre Marx e Lênin. Nesse sentido, não há um objetivo político, jamais aparece no livro palavras de ordem de combate à ditadura, como objetivo central. Não há política ali, é um livro sem política. A Revolução Brasileira é um livro sem política, mas, sobretudo, é uma tese extraordinária. Ele debocha do PCB. Eu fui do PCB um pedacinho de tempo muito curto. Fui da VPR, fundador da VPR, de modo que no Partidão fiquei pouco, quando tentei cair de paraquedas no Comitê Estadual, em 1982, quando eu voltei do exílio. Mas retomando, fundamentalmente o Caio Prado, em A Revolução Brasileira, criticava o PCB, porque o PCB dizia que a questão da terra e da reforma agrária era uma questão importante. O Caio Prado demonstrava como não tinha havido aldeia camponesa no Brasil, não havia essa questão. A questão do acesso a terra era absolutamente irrelevante e o importante era construir sindicatos rurais de trabalhadores assalariados. Não que não fosse importante construir sindicatos dos trabalhadores assalariados. Mas hoje, dia 30 de setembro de 1997, admitir a profundidade da análise, a profundidade de um livro consagrado a demonstrar que não existe questão da terra nem da reforma agrária no Brasil... A moçada pegava isso para jogar contra o Partidão e, naquela época, tudo era bom para bater no Partidão. Um segundo elemento de contextualização, é, portanto, 68. Sobre isso eu até fiz um artigo que saiu na Revista USP. Cronologicamente, não houve nenhuma espécie de influência do chamado maio de 68, na França, sobre o processo de luta armada e mesmo processo de mobilização estudantil no Brasil. Nós estávamos na rua em março. A VPR começou a fazer suas primeiras ações, a ALN também, com o Sérgio Ferro. Sérgio Ferro jogou aquela bomba, na Praça 14 Bis, um pouco antes. Mas, a VPR começou a fazer algumas coisas, a bomba no Con- 97 sulado Americano, isso foi no comecinho do ano. Até porque Maio não tinha nada a ver com esses tipos de ação política; na França não era assim. No primeiro mundo não é assim, não se vai invadindo banco assim como fizemos por aqui. Então não houve nenhuma espécie de influência de maio de 68 sobre a situação brasileira, nenhuma. Outro tema que está presente de várias formas, nas questões levantadas por vocês, tratadas por vocês, é um tema fundamental no marxismo, que é o papel de vanguarda da classe operária. É importante, porque é portadora da tecnologia, da instrução, é aquele setor do povo que tem a cultura moderna na cabeça. Além de, claro, estar no centro vital da produção capitalista. Nisso, não há nenhuma idolatria da pobreza enquanto tal. Lembro aqui da famosa troca de correspondência entre Marx e Vera Zassulitch, onde a questão é tratada. Podemos, então, perguntar: a retomada dessas idéias dos anos 60, traz consigo uma nostalgia do passado? É claro que traz. E essa nostalgia tem uma razão de ser que pode até fazer dela reacionária, como eram reacionários aqueles artesãos que jogavam as máquinas no rio. Os primeiros operários reagiram contra o progresso de uma maneira reacionária. Eu diria, concordando com Domenico Losurdo, que pode ser que um dos grandes erros de avaliação presente nos estudos históricos de Marx e também de Lênin, com relação às revoluções de 1848 e 1871, que inspiraram a elaboração da teoria política revolucionária do marxismo, foi o de valorizarem o que era, na realidade, um forte elemento reacionário nesse sentido aqui discutido, de saudades do passado. E aí, Marx se enganou, ele achava que já era a poesia do futuro. Era uma promessa de futuro, muito permeada pela lembrança histórica do tempo em que o produtor era proprietário dos meios de produção. Que tempo era esse? A corporação medieval, até hoje, deu a melhor situação que a história conheceu para o produtor, para o trabalhador. Portanto, a grande derrota que sofremos não foi agora, em 1968. A grande derrota que sofremos foi entre 1918 e 1924. Esse é o problema. Foi aí que o curso histórico da revolução, previsto no Manifesto Comunista, desviou. Não deu para recuperar. Teve a fortaleza isolada, o socialismo num só país, porque não tinha jeito. Então, a nostalgia, esse elemento nostálgico, romântico - e aqui estou sendo dialético demais, quem sabe se até vertiginosamente dialético - é o elemento reacionário de toda a revolução. Por isso, aquele católico de esquerda, que no fundo também é um reacionário, acredita que Deus criou o mundo e está aí, enfrentando o latifúndio. Nossa visão, lembrando aqui posturas fundamentais do marxismo, é a de que a religião é a expressão do sofrimento do mundo. O mundo que tem Deus é um mundo dilacerado. Isso está no jovem Marx. É belíssimo, vale lembrar. A religião é o ópio do povo, mas também o coração do mundo sem coração. Todos vocês conhecem essas idéias; é muito bonito. Na visão marxista, a religião é a expressão de que há algo errado, de que o sofrimento da humanidade é muito grande. 98 Alguns disseram no século XIX, que quem não conheceu o Ancién Régime, não conheceu la douceur de vivre. Pode ser que haja alguma verdade nisso. Essa nostalgia do passado é uma questão interessantíssima para nós, mas nós não podemos nos deixar cair na armadilha do romantismo, porque no romantismo há uma armadilha. É o próprio desenvolvimento do capitalismo que engendra a necessidade do socialismo, que engendra o desemprego crônico, que li- mita o desenvolvimento da tecnologia, a lógica da valorização do capital. Isso é cristalino, isso não se perdeu nunca. Da mesma forma que não se pode perder, também, a visão crítica de que o romantismo nos leva a perder a visão crítica, e nem por isso, perder a esperança nas possibilidades de transformação. Mas o romantismo sozinho não tem destino, é cego, é produto da emoção. Mas vamos encontrar em cada processo revolucionário um elemento claro de romantis- mo, compondo uma das dimensões que mais merece a nossa atenção crítica. Terminada a exposição dos componentes da mesa, passou-se ao debate, a partir de questões levantadas pelo público presente. Por razões técnicas, esse debate não está aqui reproduzido. No entanto, aos interessados, o CEDEM possibilita, em sua sede, a consulta da íntegra do debate (N.E.). •A referida tese foi publicada pela Boitempo Editorial em 2001, com o título O revolucionário cordial: Astrojildo Pereira e as origens de uma política cultural. (N.E.). 1 LÖWY, Michael; SAYRE, Robert. Revolta e melancolia - o romantismo na contramão da modernidade. Petrópolis: Vozes, 1995. 2 CALLADO, Antonio. Quarup. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. GULLAR, Ferreira. “Quarup ou ensaio de deseducação para brasileiro virar gente”. Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, n.15, p. 251-58, set. 1967. 3 ANDERSON, Perry. A crise da crise do marxismo. 2a. ed. São Paulo, Brasiliense, 1985. 4 KONDER, Leandro. “A rebeldia, os intelectuais e a juventude”. Revista Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, n.15,p.135-45, set. 1967. 5 ARNS, Paulo Evaristo (Prefácio). Perfil dos atingidos. Petrópolis, Vozes, 1988. RIDENTI, Marcelo O fantasma da revolução brasileira. São Paulo:Ed. UNESP/ FAPESP, 1993. 6 No momento desse debate, em 1997, estava elaborando tese de livre-docência que daria base a um livro em que desenvolvo melhor essa hipótese do romantismo revolucionário. RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro – artistas da revolução, do CPC à era da TV. Rio de Janeiro, Record, 2000 (N.D.). 99 7 O debate aqui transcrito foi realizado durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, não poderia contemplar a análise do que viria depois. Apenas as notas foram acrescentadas agora a um texto que é fruto do tempo em que foi escrito, uma reação ao conformismo imperante nos anos 1990 . 8 REIS FILHO, Daniel A. et al. Versões e ficções: o seqüestro da história. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1997. 100 DOCUMENTOS DO ACERVO O 1º Congresso de Escritores e o arquivo Astrojildo Pereira Tania Regina de Luca UNESP/Assis; Pesquisadora do CNPq Em março de 1942 foi fundada em São Paulo a Sociedade dos Escritores Brasileiros, sob a liderança de Sérgio Milliet. Ainda em novembro, seu Conselho Federal, presidido por Manoel Bandeira e integrado por Astrojildo Pereira, Carlos Drummond de Andrade, José Lins do Rego, Prudente de Moraes Neto, José Lins do Rego, entre vários outros nomes de destaque nas letras nacionais, recebeu a incumbência de reorganizar a entidade de forma a lhe dar dimensões efetivamente nacionais.1 O conselho levou a cabo o trabalho e elaborou os estatutos da Associação Brasileira de Escritores (ABDE), novo nome da entidade, cuja estrutura previa seções autônomas nas capitais dos estados e territórios, além da central, com sede no Distrito Federal, todas coordenadas por um conselho nacional. Os estatutos foram aprovados em assembléia realizada em fevereiro de 1943. Nessa oportunidade, elegeu-se a primeira diretoria, biênio 1943-1944, encabeçada pelo historiador e Ministro do Tribunal de Contas da União, Otávio Tarquínio 101 (Presidente); Carlos Drummond de Andrade (Vice-Presidente); Álvaro Lins (1º Secretário); Dante Costa (2º Secretário); Marques Rebelo (Tesoureiro); Manuel Bandeira; Rodrigo Melo Franco de Andrade; José Lins do Rego; Astrojildo Pereira e Dinah Silveira de Queiroz (Conselho Fiscal). Tratava-se de uma associação que tinha por objetivo defender os interesses específicos dos escritores em todos os seus aspectos, entre os quais se destacava a espinhosa questão dos direitos autorais. Na avaliação de Tarquínio, ainda não havíamos chegado à “situação dos países em que se tem na devida conta a dignidade do trabalho intelectual [aliás de todo e qualquer trabalho] e em que a profissão de escritor é considerada em toda a sua importância”. Daí continuar sem solução a questão da justa remuneração devida à atividade literária que, de acordo com o Presidente, corresponderia ao exercício de um ofício ou profissão e faria jus a retribuições pecuniárias. Entretanto, a ABDE logo extrapolou tal problemática para assumir as vezes de um espaço de aglutinação e debate em torno da função e do papel dos intelectuais, da defesa da liberdade de expressão e da luta contra o fascismo, em todas as suas formas. Antonio Candido, que acompanhou de perto as atividades da agremiação, assinalou que: (...) o grosso das preocupações foi estabelecer uma agremiação que organizasse os escritores e intelectuais para a oposição à ditadura do Estado Novo. Tanto assim que da ABDE (sigla rapidamente consagrada) não faziam parte os mais ou menos chegados ao governo, seja porque o apoiavam ideologicamente, seja porque trabalhavam, com ou sem convicção política, em organismos oficiais de informação e propaganda, que então proliferavam, ou escreviam assiduamente em publicações orientadas neste sentido.2 Em 1944, a ABDE decidiu organizar o 1º Congresso de Escritores. À seção São Paulo coube sediar e organizar o evento, realizado na capital paulista entre 22 e 27 de janeiro de 1945, sob coordenação de Sérgio Milliet, presidente da seção paulista, e de Aníbal Machado, então exercendo o cargo de presidente da entidade. A abertura solene e o encerra- mento ocorreram no Teatro Municipal e as sessões de trabalho no Centro do Professorado Paulista. O conclave contou com a participação de intelectuais dos mais expressivos, filiados a diferentes correntes políticas e unidos em torno do combate à ditadura de Vargas.3 É preciso não perder de vista o momento político então vivido: a ditadura do Estado Novo, ainda que evidenciando sinais de declínio, continuava a vigorar e, às vésperas do Congresso, havia o temor de que o encontro acabasse sendo proibido. Em sua correspondência, Mário de Andrade expressou suas dúvidas quanto à oportunidade da realização. Para Rodrigo Mello Franco de Andrade, Mário confidenciava em 8/12/1944: Eu confesso a você que estou intimamente desesperado com esse Congresso (...). Comparecer? Não comparecer? Um congresso de Intelectuais num regime destes, ou sai bagunça, tiro, prisão, ou é o avacalhamento da Intelligentsia nacioná (sic). Não encontro argumento que me tire desse dilema porque não vejo possível um Congresso de escritores não se pronunciar, agora, sobre o primeiro, 102 senão único, alimento vital do que seja inteligência, liberdade de pensar, Você nâo acha?4 Dez dias depois, em carta à Henriqueta Lisboa, já havia decidido participar, sob o argumento de que “fica muito ridículo e bancar o besta, brilhar pela ausência. Prefiro a humilhação de ir numa coisa que sou contra, neste regime de DIP e ditadura”.5 Enquanto Mário hesitava, outros estavam convencidos do significado do evento. No arquivo Astrojildo Pereira, há recorte do jornal Folha Carioca, datado de 29 de novembro de 1944, no qual vários escritores comentam o futuro Congresso e esclarecem seus objetivos, a exemplo de Lia Correa Duarte, que advertia: – Que ninguém imagine que essa reunião de intelectuais seja um pretexto para conversinhas, troca de amabilidades sociais, chás, coquetéis e banquetes. Não haverá oportunidade para isso. Trabalharemos muito. Os temas a serem discutidos são todos de grande importância e gravidade, essenciais a nossa profissão e de interesse para o público em geral. Entre as teses recomendadas pela comissão organizadora figuram: direitos autorais; democratização da cultura; bibliotecas populares; o escritor e a luta contra o fascismo; a liberdade de criação literária. Assim, nenhum setor da atividade nacional poderá permanecer indiferente a essa realização. Com tanta responsabilidade e trabalho (pensa-se em fazer duas reuniões por dia) e com assuntos tão vastos para tratar, creio que não sobrará, felizmente, tempo para as questõezinhas pessoais tão em moda, nem para questões bizantinas (...). A época não é para essas coisas. Há guerra, nazismo, fome, campos de concentração, intolerância, vida cara e analfabetismo. Pensemos nisso primeiro. O resto fica para depois.6 O clima que cercava o Congresso deve ter contribuído para dissipar as dúvidas de Mário de Andrade, que integrou a comissão de recepção das delegações de outros estados, compareceu a todas as sessões e remeteu cartas convocando os jovens: “Não é possível, Guilherme, nem pensar em você não vir, tenha paciência por esta vez, e por favor faça toda a força pra uns como o Carlos [Drummond de Andrade] vir também.” E fazia a mea culpa ao amigo, “mas acabei me convencendo que é impossível pra dignidade nossa de todos em geral e de cada um em particular, não comparecer.”7 E para Fernando Sabino pedia: “Você absolutamente não deixe de vir pro Congresso de Escritores”.8 O Congresso organizou-se em várias comissões destinadas a tratar de questões específicas – direitos autorais; cultura e assuntos gerais; teatro , imprensa, rádio e cinema e assuntos políticos –, além de uma de redação e coordenação. A Declaração de Princípios, redigida pela comissão de assuntos políticos da qual participaram, entre outros, Astrojildo Pereira, José Eduardo Prado Kelly e Caio Prado Júnior, foi lida em plenário por Dionélio Machado. Como recorda Antonio Candido, foi Astrojildo Pereira quem propôs que todos se levantassem para ouvir a leitura, “sob uma enorme tensão emocional, naquela atmosfera de opressão política onde a palavra democracia era subversiva e falar em eleição podia dar cadeia”. 9 No texto clamavase por legalidade democrática; eleições diretas por sufrágio universal, direto e secreto; soberania popular e liberdade 103 de expressão, isso num evento de caráter público. Nas suas memórias, Álvaro Moreyra registrou o clima geral de satisfação que contagiou os participantes: São para lembrar com orgulho esses dias de 22 a 27/1/1945. Grande congresso! Congresso de defesa de todos os direitos. Muita palavra se pediu na sessão inicial. Bastante tempo se perdeu. Esquecimento. Falta de prática. Nas outras sessões, foi como se houvesse sempre Congresso. Estudou-se, discutiu-se, esclareceu-se a tarefa numerosa da inteligência no mundo que quer a paz para viver. Dos que partiram do Rio, o regresso foi alegria (...). Noite luminosa, vento fresco, prazer imenso. Cada um sorria para o outro. Trazíamos todos umas caras de feliz ano novo...10 A seguir reproduzem-se dois documentos manuscritos, que integram o arquivo de Astrojildo Pereira. O primeiro é a Ata da segunda reunião da Comissão de Assuntos Políticos e o segundo é a Declaração de Princípios aprovada pelo 1º Congresso. 1 Sobre as questões mais amplas da intelectualidade paulista e carioca, que explicam as mudanças ocorridas na entidade, ver a instigante análise de LAHUERTA, Milton. Elitismo, autonomia, populismo. Os intelectuais na transição dos anos 40. Dissertação (Mestrado em Ciência Política). São Paulo: FFLCH/USP, 1992, especialmente capítulo 4. 2 CANDIDO, Antonio. O Congresso dos Escritores. In: CANDIDO, Antonio. Teresina etc. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p. 108. 3 Sobre o Congresso, além do trabalho de Milton Lahuerta e Antonio Candido, consultar: ABREU, Alzira Alves. 1º Congresso de Escritores. IN: ABREU, Alzira Alves de (coord.). Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro pós-1930. 2a ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: FGV, CPDOC, 2001, v. II, p. 1535-1536 e MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira (1933-1974). 4a ed. São Paulo: Ática, 1978, 137-153. 4 ANDRADE, Mário de. Cartas de trabalho. Correspondência com Rodrigo Mello Franco de Andrade. Brasília, MEC, 1981, p. 185. 5 ANDRADE, Mário. Querida 104 Henriqueta. Cartas de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa. 2a ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991, p. 171. E em 24/12/1944, para Guilherme de Figueiredo, praticamente nos mesmos termos: ‘Que vazio... Esse Congresso de Escritores está cada vez mais me irritando. Considero isso uma loucura, numa época destas. Hesitei muito em comparecer, mas afinal acabei decidindo que compareço. Prefiro até a humilhação de um Congresso inócuo no ponto principal ou de talvez tomar cadeia inutilmente, a bancar o besta e o não-participante não comparecendo. Idem. A lição do guru. Cartas a Guilherme de Figueiredo (1937-1945). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989, p. 143. 6 No Primeiro Congresso Brasileiro de Escritores, a se realizar em São Paulo, serão traçadas importantes diretrizes. Folha Carioca, 29/11/9944. Arquivo Astrojildo Pereira, 172, 35 (3)-1, CEDEM/UNESP. 7 ANDRADE, Mário. A lição do guru, p. 145, carta datada de 3/1/1945. 8 Idem. Cartas a um jovem escritor. De Mário de Andrade a Fernando Sabino. Rio de Janeiro: Record, 1981, p. 143. 9 CANDIDO, Antônio, 1980, p. 109-12, refere-se ao impacto, significado e importância da declaração, tendo em vista o clima reinante na época. Observe-se que o belo texto de Candido, escrito em 1975, dialoga fortemente com a conjuntura de exceção que novamente dominava o país. 10 MOREYRA, Álvaro. As amargas, não... (Lembranças). 2a ed. Rio de Janeiro: Editora Lux, 1955. p. 221-222. 105 ANEXO: O 1º Congresso de Escritores e o arquivo Astrojildo Pereira 106 ANEXO: O 1º Congresso de Escritores e o arquivo Astrojildo Pereira 107 ANEXO: O 1º Congresso de Escritores e o arquivo Astrojildo Pereira 108 ANEXO: O 1º Congresso de Escritores e o arquivo Astrojildo Pereira 109 ANEXO: O 1º Congresso de Escritores e o arquivo Astrojildo Pereira 110 DOCUMENTOS DO ACERVO Carta de “Um homem do povo” [Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura] Luiz Alberto Zimbarg Historiógrafo do CEDEM O ano de 1936 passou em meio a uma conturbada conjuntura política. Na esteira do movimento de novembro de 1935, o governo federal iniciou uma dura vaga repressiva, desarticulando a maior parte das organizações ligadas aos movimentos sociais, utilizando-se do “espantalho” do radicalismo, tanto de esquerda (consubstanciado pela tentativa revolucionária da ANL), como de direita (a Ação Integralista Brasileira observava então grande expansão, obtendo influência nas esferas governamentais e começando a constituir-se como alternativa viável de poder). Já em dezembro de 1935 a Lei de Segurança Nacional, promulgada em abril, é reforçada com novos dispositivos, que tornavam a sua aplicação mais fácil. O Estado de Sítio por noventa dias é aprovado no Congresso com ampla maioria (172 votos contra 52), e o governo ganha autorização para equipará-lo a Estado de Guerra. Também são retiradas as garantias aos funcionários públicos civis e militares suspeitos de comunismo. 111 Em janeiro de 1936 é criada a Comissão Nacional de Repressão ao Comunismo – CNRC, que tem a função de investigar e solicitar punição de funcionários públicos suspeitos. No início de março, Luiz Carlos Prestes é preso, com vasta documentação da ANL, o que dá grande força à CNRP, sendo excelente munição contra seus adversários políticos. Seu diretor, o deputado gaúcho Adalberto Correia, passa a pressionar o governo pela prisão de Pedro Ernesto (que ocorre no dia 3 de abril), governador do Distrito Federal e membro, nos primeiros anos do governo, do chamado “gabinete negro”, círculo dos colaboradores mais íntimos de Getúlio Vargas. Adalberto Correia passa a defender enfaticamente a necessidade de decretação imediata do Estado de Guerra, a instauração de uma ditadura e reforma da Constituição e até mesmo o fuzilamento de presos. Ao final de março, o Estado de Guerra é decretado por noventa dias, suspendendo a maior parte das garantias constitucionais e permitindo o funcionamento de um tribunal de exceção, o Tri- bunal de Segurança Nacional – TSN, que será instalado no mês de setembro. A conjuntura internacional não era mais alentadora, o fascismo avançara em todo o mundo, impulsionado pela terrível recessão econômica da primeira metade da década de 1930. As instituições republicanas estavam sendo duramente questionadas em todo lugar. O movimento comunista internacional, capitaneado pelo Komintern, havia mudado sua postura sectária dos anos anteriores e iniciado a política de Frentes Populares, participando do processo eleitoral e coligando-se aos governos republicanos, especialmente na Espanha e na França. Na Espanha, o governo republicano, eleito em fevereiro com o apoio dos partidos de esquerda, sofria ameaça, consubstanciada pelo golpe de Estado que levou o país à Guerra Civil, iniciada em julho daquele ano. O governo brasileiro rumava decisivamente para o autoritarismo, mal disfarçado de luta contra a subversão. Os agrupamentos políticos ligados aos sindicatos e aos movimentos sociais se encontravam desarticulados e a oposição parlamentar era capitaneada por uma coligação envolvendo, principalmente, a Frente Única Gaúcha, formada pelo Partido Republicano Riograndense–PRR, liderado pelo velho Borges de Medeiros, coligado com o Partido Libertador, de Raul Pilla e Batista Luzardo; do Partido Republicano Paulista – PRP; pelo Partido Republicano Mineiro, com Arthur Bernardes à frente e a Concentração Autonomista da Bahia, de Otavio Mangabeira. Essa oposição parlamentar constitui-se como uma coligação, que adotou a denominação de Oposições Coligadas, ou Minoria Parlamentar, e teve, a partir de maio de 1935, o deputado gaúcho João Neves da Fontoura como líder da bancada. Também entre os membros desta congregação sentiu-se a repressão política, e, em março de 1936, foram presos os parlamentares filiados à ANL: Abguar Bastos, Domingos Velasco, João Magabeira, Otavio Silveira e Abel Chermont, todos membros da Minoria. A partir de janeiro de 1936, iniciou-se um movimento de parte da ban- 112 cada gaúcha das Oposições Coligadas no sentido de aproximação com os governos federal e estadual. Esse movimento, aqui denominado de “pacificação”, teve por objetivo costurar um acordo entre a Frente Única Gaúcha e o Partido Republicano Liberal – PRL, do governador Flores da Cunha, e estabelecer um modus vivendi que selasse um acordo entre o governo estadual, a oposição e Getúlio Vargas, figura política oriunda do PRR, do qual sofria a oposição mais ferrenha. A “pacificação” culminou com uma reunião, em abril, entre Getúlio Vargas, Maurício Cardoso, João Neves da Fontoura, Batista Luzardo e Firmino Paim. Nesta reunião acertou-se uma trégua entre este bloco parlamentar e o governo federal. O acordo iniciou uma crise na Minoria, pois a bancada paulista era então irreconciliável com o governo federal. A crise foi resolvida com a prorrogação de Estado de Guerra, em junho, que resultou no encerramento dos acordos entre a bancada gaúcha das Oposições Coligadas com o governo. É nessa conjuntura que se encaixa o texto a seguir de Astrojildo Pereira, redigido em maio de 1936, na forma de um apelo, em defesa, não mais do PCB, mas do sistema democrático, como ele frisa: “a luta atual está travada não entre a liberal-democracia de um lado e o comunismo de outro” ou, mais à frente, “No Brasil a revolução a se fazer (...) é ainda a revolução democrático-burguesa”. O texto aqui rascunhado, vê com bastante clareza o processo de concentração de poder, iniciado por Getúlio Vargas, ocultado sob o manto da luta contra a subversão e dá um panorama da conjuntura política (no Brasil e no mundo) e também da retificação da linha política do PCB, que abandona o sectarismo de até então, para buscar um entendimento das forças políticas simpáticas à democracia. Ademais, este texto é uma amostra de como questões aparentemente regionais são encadeadas com uma conjuntura mais ampla. Há, no entanto, mais um elemento de interesse neste documento, pois se trata de um registro de intervenção política, ainda que oculta pelo anonimato, de Astrojildo Pereira, numa época obscura na biografia deste personagem, que fora oficialmente expulso do Partido Comunista em 1931, ficando afastado deste até 1945. É pois um documento que revela um gesto de intenções políticas sob uma crosta de repressão e de aparente ostracismo. Notas biográficas Astrojildo Pereira Nascido em Rio Bonito (RJ), em 8 de outubro de 1890, aos 19 anos iniciou sua militância nas organizações operárias, filiando-se ao Centro de Resistência Operária de Niterói e colaborando com a imprensa operária. Exerceu intensa atividade no movimento anarquista no Estado do Rio de Janeiro, até 1921, quando, em novembro do mesmo ano, participa da criação do Grupo Comunista do Rio de Janeiro. Em março de 1922 foi fundado, com sua participação, o Partido Comunista do Brasil. Astrojildo foi o principal dirigente deste Partido até novembro de 1930, quando foi destituído 113 do cargo de Secretário Geral. Em julho do ano seguinte se afastaria oficialmente das fileiras do Partido, sendo readmitido somente em 1945. Com a renovação da linha política do PCB, em 1958, passou a dirigir a revista de formação teórica do Partido: Estudos Sociais. Sofrendo com problemas cardíacos, foi preso em outubro de 1964, cumprindo a pena no Hospital da Polícia Militar do Rio de Janeiro até janeiro de 1965, quando foi contemplado com um habeas corpus. Faleceu em 20 de novembro de 1965. Seu acervo foi conservado a salvo da repressão, na Fundação Feltrinelli, em Milão (Itália) até 1994, quando foi remetido de volta ao Brasil e acolhido pela Universidade Julio Mesquita Filho, sob os cuidados do CEDEM. 114 Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo” [Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura] 115 Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo” [Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura] 116 Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo” [Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura] 117 Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo” [Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura] 118 Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo” [Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura] 119 Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo” [Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura] 120 Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo” [Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura] 121 Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo” [Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura] 122 Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo” [Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura] 123 Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo” [Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura] 124 Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo” [Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura] 125 Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo” [Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura] 126 Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo” [Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura] 127 Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo” [Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura] 128 Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo” [Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura] 129 Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo” [Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura] 130 Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo” [Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura] 131 Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo” [Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura] 132 Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo” [Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura] 133 Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo” [Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura] 134 Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo” [Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura] 135 Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo” [Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura] 136 Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo” [Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura] 137 Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo” [Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura] 138 Notícias Desde 1995, o CEDEM vem realizando eventos, na forma de seminários, debates, mesas-redondas e conferências, em torno de temas relativos ao seu acervo e a outros, de amplo interesse. Do conjunto, destaca-se a série Teses em Debate, destinada à discussão de trabalhos acadêmicos desenvolvidos na UNESP e fora dela. Os encontros acontecem no CEDEM e seus registros encontram-se, em sua maioria, disponíveis à consulta pública. No ano de 2007 foram realizados os seguintes eventos: Estado e Extrativismo Vegetal no Império do Brasil (1822 – 1831) 28 de março Expositor: Paulo Henrique Martinez – UNESP/Assis Debatedoras: Cecília Helena de Salles Oliveira – Museu Paulista/USP Andréa Slemian – IEB/USP Moderadora: Célia Reis Camargo – UNESP/Assis e CEDEM O Império dos Livros: Instituições e Práticas na São Paulo Oitocentista 17 de abril Expositora: Marisa Midori – USP Debatedores: Antonio Celso Ferreira – UNESP/Assis Tânia de Luca – UNESP/Assis Moderador: Célia Reis Camargo – UNESP/Assis 139 Imprensa e Cidade 24 de abril Expositoras: Tania Regina de Luca – UNESP/Assis Ana Luiza Martins - CONDEPHAAT Debatedores: João Luis Ceccantini – UNESP/Assis Marly Rodrigues - CONDEPHAAT Moderador: Paulo Cunha – UNESP/Marília Lampião e o Cangaço 08 de maio Expositor: Moacyr Assunção – Jornal O Estado de São Paulo Debatedores: Marco Antonio Villa - UFSCAR Marco Antonio Teixeira - FGV Moderador: Paulo Cunha – UNESP/Marília Transformações na Historiografia Nacional 14 de maio Expositor: Fábio Franzini - USP Debatedores: Danilo José Zioni Ferretti – UFSJ Eduardo Santos - USP Moderador: Célia Reis Camargo – UNESP/Assis e CEDEM Democracia e Segurança Pública em São Paulo (19461964) 05 de junho Expositor: Thaís Battibugli - USP Debatedores: Luis Antonio Francisco de Souza – UNESP/Marília Marcos Bretãs - UFRJ Moderador: Paulo Cunha – UNESP/Marília Editoras de Oposição no Período da Abertura (1974 – 1985): Negócio e Política 12 de junho Expositor: Flamarion Maués Pelúcio Silva – Editora Perseu Abramo Debatedores: Marcelo Ridenti – UNICAMP Bernardo Kucinski - USP Moderador: Paulo Cunha - UNESP/Marília 140 Figurações do Ritmo – Da Sala de Cinema ao Salão de Baile Paulista (1930 – 1950) 08 de agosto Expositor: Francisco Rocha – USP Debatedoras: Helouise Costa – Museu de Arte Contemporânea / USP Tania Regina de Luca – UNESP/Assis Moderadora: Célia Reis Camargo – UNESP/Assis e CEDEM Novas Perspectivas Sobre as Práticas Editoriais de Monteiro Lobato (1918-1925) 14 de agosto Expositora: Cilza Bignotto – UNICAMP Debatedores: Marisa Lajolo – UNICAMP João Luis Ceccantini – UNESP/Assis Moderador: Lincoln Secco - USP A Luta pela terra dos posseiros no interior de Goiás (1950-1964) 04 de setembro Expositor: Paulo Cunha – UNESP/Marília Debatedores: Edmilson Costa - FMU Odair Paiva – UNESP/Marília Moderadora: Sandra Santos - CEDEM Marxismo e a sua história no Brasil – 6º Volume 11 de setembro Debatedores: Marcelo Ridenti - UNICAMP Dainis Karepovs - UNICAMP Moderador: Marcos Del Roio – UNESP/Marília Cine Debate – Documentário: Terrorista 24 de setembro Debatedores: Percy Sampaio Camargo - ex-docente da UNESP César Meneghetti – cineasta / FAAP Carlos Botazzo – pesquisador do Instituto de Saúde de São Paulo Moderadora: Anna Maria Martinez Correa – UNESP/CEDEM A Herança de Um Sonho 02 de outubro Expositor: 141 Marco Antônio Coelho - USP Debatedores: Paulo Cunha – UNESP/Marília José Antonio Segatto – UNESP/Araraquara Moderador: Lincoln Secco - USP Cuba e Brasil: Revolução e comunismo (1959-1974) 09 de outubro Expositor: Jean Rodrigues Sales - USP Debatedores: Dainis Karepovs - UNICAMP Marcelo Ridenti - UNICAMP Moderador: Paulo Cunha – UNESP/Marília Parceria entre o CEDEM e a Fundação Bunge Aula: Conservação e preservação de documentos textuais 06 de novembro Tietê, o rio que a cidade perdeu (1890-1940) 28 de novembro Expositor: Janes Jorge - USP e PUC/SP Debatedores: Patrícia Tavares Raffaini – USP e Universidade Anhembi Morumbi Miguel Tadeu Campos Morata – Faculdades Oswaldo Cruz Moderadora: Célia Reis Camargo – UNESP/Assis e CEDEM Revoluções Boliviana e Russa - lançamento de livro e debate 08 de dezembro Debatedores: Everaldo de Oliveira Andrade – CEMAP e UNG Antonio Rago Filho – PUC/SP Murilo Leal Pereira Neto – FACCAMP e CEMAP 142 Instruções e Normas para Publicação Colaborações A Revista publicará artigos, resenhas, traduções, documentos comentados, experiências técnicas e metodológicas, e outros de natureza similar, que tratem do patrimônio cultural; de estudos e fontes sobre a história da universidade e da comunidade científica e sobre a história política brasileira contemporânea, com ênfase para a atuação da esquerda e para os movimentos sociais. Os artigos deverão ser originais, resultantes de pesquisas científicas e significativas para o perfil do periódico. Poderão ser incluídos outros tipos de contribuições como artigos de revisão, comunicações, resenhas e estudos de caso. As referidas publicações não serão consideradas artigos originais. Normas para publicação As colaborações para a Revista Eletrônica CADERNOS CEDEM devem seguir as seguintes especificações: Os trabalhos a serem submetidos para publicação devem ser digitados em Word 7.0 (ou superior), fonte Arial 10, espaço 1,5, formato A 4. Os artigos deverão ter, no mínimo 15 (quinze) e no máximo, 25 (vinte e cinco) páginas. As notas devem vir no final do texto e devem conter todas as referências bibliográficas. Não será incluída bibliografia. Os artigos deverão apresentar título, resumo, palavras-chave em português e inglês. O resumo deverá ter, no máximo, 150 palavras e deverão ser apresentadas três palavras-chave. Os textos poderão ser apresentados com ilustrações, em jpg, e gráficos com as fontes devidamente mencionadas. As Resenhas devem ter de 4 a 6 páginas. Após o título deverá constar o nome do Autor(es), por extenso e apenas o sobrenome em maiúscula. A filiação científica do(s) autor(es) deverá constar em nota de rodapé. A publicação e os comentários a respeito de documentos inéditos seguirão as normas especificadas para os artigos. As traduções devem vir acompanhadas de autorização do autor. Caso o trabalho tenha apoio financeiro de alguma instituição, esta deverá ser 143 mencionada. Os artigos deverão observar as normas de estrutura fixadas pela ABNT. As referências bibliográficas devem seguir a seguinte normatização: SOBRENOME, Nome. Título do Livro em Itálico: subtítulo. Tradução, edição, Cidade: Editora, ano, página. SOBRENOME, Nome. Título do capítulo. In: Título da obra em itálico. Tradução, edição, Cidade: Editora, ano, p. SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Título do periódico em itálico. Cidade: Editora, vol., fascículo, p, ano. Sobre a publicação on line e direitos autorais As contribuições serão aceitas para publicação em CADERNOS CEDEM mediante aprovação do seu Conselho Editorial, a partir de dois pareceres, um interno e outro externo. Em caso de avaliação conflitante o texto será enviado para um terceiro parecerista. Os textos não serão identificados, man- tendo-se assim o sigilo da avaliação. Os casos conflitantes serão resolvidos pelo Conselho Editorial. Todo artigo submetido para publicação on line deverá vir acompanhado de uma declaração do seu autor, ou de um responsável quando for o caso de co-autoria, nos seguintes termos: “Autorizo a revista eletrônica CADERNOS CEDEM a publicar o artigo (citar o título), de minha autoria/responsabilidade, caso seja aceito para publicação on line. Declaro que esta contribuição é original, que não está sendo submetida a outro editor para publicação e que os direitos autorais sobre ela não foram anteriormente cedidos a outra pessoa, física ou jurídica. Declaro que transfiro à revista eletrônica CADERNOS CEDEM o direito de publicação on line, não podendo reclamar, em qualquer época ou sob qualquer pretexto, qualquer remuneração ou indenização, a que título seja, pela publicação on line. Eu, (colocar o nome completo), assino a presente declaração como expressão absoluta da verdade e me responsabilizo integralmente, em meu nome e de eventuais co-autores, pelo material apresentado. (local e data) Nome: (completo) CPF: (indicar o CIC) Documento de identidade: (citar tipo, número e órgão emissor) Endereço: (citar por completo, inclusive telefone) E-mail: (citar o do responsável quando se tratar de mais de autor) Encaminhamento dos originais O material para publicação na deverá ser encaminhado via e-mail para o seguinte endereço: [email protected], em arquivo anexado à mensagem de encaminhamento que conterá a identificação e endereços comum e eletrônico do remetente. O material também poderá ser enviado em arquivo de dados gravado CD-ROM e postado no Correio para o endereço convencional do CEDEM, aos cuidados da Comissão Editorial dos CADERNOS CEDEM: Praça da Sé 108, 1º. Andar – CEP 01001-900, São Paulo – SP. 144 UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA CADERNOS CEDEM “JULIO DE MESQUITA FILHO” - UNESP Comissão Editorial Reitor Anna Maria Martinez Corrêa Marcos Macari Célia Reis Camargo Vice-reitor Márcia Tosta Dias Herman Jacobus Cornelis Voorwald Sandra Moraes EXPEDIENTE Sandra Santos CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO E MEMÓRIA - CEDEM Conselho Editorial Coordenadora Anna Maria Martinez Corrêa (UNESP) Célia Reis Camargo Áureo Bussetto (UNESP) Secretária Carlos Bauer (Uninove) Rosemeire Aparecida Francelin Célia Reis Camargo (UNESP) Equipe técnica Clifford Andrew Welch (UNESP) Ana Sena Emilia Viotti da Costa (USP) Jacy Machado Barletta Francisco Alambert (USP) Luis Alberto Zimbarg Gildo Marçal Brandão (USP) Márcia Dias Jaime Antunes da Silva (Arquivo Nacional) Sandra Moraes Jô Azevedo (PUC) Sandra Santos José Antonio Segatto (UNESP) Solange de Souza José Augusto Chaves Guimarães (UNESP) José Ênio Casalecchi (UNESP) Coordenadora do projeto José Luis del Roio (IAP) Memória da Universidade José Maria Jardim (UFF) Anna Maria Martinez Corrêa José Marques Castilho Neto (UNESP) Lincohn Secco (USP) 145 Marcelo Ridenti (UNICAMP) Márcia Tosta Dias (CEDEM/UNESP) Marcos del Roio (UNESP) Paulo Cunha (UNESP) Pedro Paulo Funari (UNICAMP) Sidney Barbosa (UNESP) Tania Regina de Luca (UNESP) Teresa Malatian (UNESP) Ulpiano Toledo Bezerra de Menezes (USP) Yara Aun Khoury (PUC) Zélia Lopes da Silva (UNESP) Editor Célia Reis Camargo 146 Revisão Ano 1 - Volume 1 Maria Apparecida Faria Marcondes Bussolotti Janeiro de 2008 Edição de textos Anna Maria Martinez Corrêa Marcia Tosta Dias Maria Lúcia Torres Interface / Projeto gráfico Paulo Alves de Lima