ANO 1 N. 1 Janeiro de 2008 - CEDEM

Transcrição

ANO 1 N. 1 Janeiro de 2008 - CEDEM
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ANO 1 N. 1
Janeiro de 2008
CADERNOS
CEDEM
2
SUMÁRIO
Apresentação
Célia Reis Camargo............................... 4
Artigos
O Historiador e a Sociedade
Emília Viotti da Costa ............................ 8
A biografia e a História
Teresa Maria Malatian ......................... 16
Os militares e o PCB
Geraldo Lesbat Cavagnari Filho .......... 32
A crítica (materialista) do mundo (descontínuo) das coisas - micrologias
Sobre Rua de mão única (Benjamin),
Vestígios (Bloch) e Os empregados
(Kracauer)
Carlos Eduardo Jordão Machado ........ 37
Depoimentos
Antonio Soares Amora ......................... 49
Documentos do acervo
O 1º Congresso de Escritores e o arquivo
Astrojildo Pereira
Tania Regina de Luca ........................ 101
Documento 1 – Declaração de Princípios
aprovada pelo I Congresso Brasileiro de
Escritores
Documento 2 – Ata da 2ª Reunião da
Comissão de Assuntos Políticos
Carta assinada por “Um homem do povo”
a J. N, de maio de 1936.
Luis Alberto Zimbarg .......................... 111
Documento
Notícias
Eventos realizados no CEDEM
no ano de 2007 .................................. 139
Normas para publicação ....... 143
Mário Rubens Guimarães Montenegro 76
Expediente .................................... 145
ANO 1 N. 1
Janeiro de 2008
Debates
Tempos de ditadura militar: resistência e
cultura ................................................... 82
3
apresentação
Célia Reis Camargo
Coordenadora do CEDEM
UNESP/Assis
Em 2007 o CEDEM comemorou 20 anos de existência. Uma idéia acalentada há muito tempo encontrou nessa efeméride o momento ideal para ser retomada,
abrindo-se uma nova frente de trabalho.
A publicação CADERNOS CEDEM carrega a intenção de divulgar, na forma
de textos, artigos e documentos, o potencial de pesquisa do acervo gerenciado pelo
CEDEM, apontando para as inúmeras possibilidades que ele encerra, dialogando com
estudiosos de áreas diversas e difundindo os resultados obtidos nos vários domínios
científicos, envolvidos no tratamento desse universo temático e no uso dessas fontes
e informações.
Atenção especial será dada à interação entre o CEDEM e a produção dos diversos departamentos da UNESP. Somos uma universidade multi-campi, distribuída
por 23 cidades do Estado de São Paulo, condição que exige esforços redobrados de
cooperação e de intercâmbio de informações.
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Os temas contemplados pelos
CADERNOS referem-se particularmente aos estudos e fontes sobre a história
da universidade e da comunidade científica e, de outro lado, sobre a história
política brasileira contemporânea, com
ênfase para a atuação da esquerda e para
os movimentos sociais, universos abrangidos por nossas linhas de acervo.
É intenção que os CADERNOS
também divulguem a produção técnica
do CEDEM, de outros centros de documentação e de entidades similares, no
tocante às discussões próprias da arquivística, da documentação e do gerenciamento de informações, apresentando
trabalhos de natureza teórica, metodológica e – muito importante – relatos
de experiências, matéria de que ainda
somos muito carentes, no Brasil, nesse
campo de atividade. Nesse sentido, os
CADERNOS dirigem-se não apenas ao
pesquisador ou ao interessado nas áreas
afins ao acervo. Forma um lugar de diálogo com as instituições que perseguem
os mesmos objetivos de preservação e
uso do patrimônio histórico.
Finalmente, um objetivo particularmente relacionado ao que fazemos
no CEDEM: a publicação de produtos e
resultados dos eventos promovidos (debates, entrevistas, conferências, dentre
outros) e de documentos importantes e
pouco conhecidos que integram os conjuntos documentais sob nossa guarda.
A expectativa é que se possa ir
além do simples, embora necessário e
justo, propósito de criar um veículo de
divulgação científica, atrelado a um órgão universitário que disponibiliza fontes para a pesquisa social. É tratar das
particularidades de nosso trabalho, do
potencial de uso das fontes e informações que produzimos e disponibilizamos, discutir os compromissos sociais
da produção acadêmica contemporânea,
posicionar as possibilidades da pesquisa
voltada para os estudos políticos e dos
movimentos sociais brasileiros, não deixando de levar em conta a intensa produção e as contribuições que nos tem trazido a história cultural e a as investigações
focadas na interpretação das culturas.
Para que fique visível, definitivamente,
para os administradores da ciência, que
o desenvolvimento das ciências humanas também exige a criação e manutenção de laboratórios. Os centros de documentação que foram e são criados nas
universidades brasileiras são esses laboratórios. Em torno da especialização
das áreas e das fontes documentais de
pesquisa que eles reúnem, aproximamse diferentes tipos e grupos de pesquisadores, incluindo o cidadão comum. É
inevitável surgirem projetos coletivos de
pesquisa e de trabalhos cooperativos, envolvendo a universidade e inúmeros segmentos sociais. Nossos alunos, a sociedade brasileira, as gerações futuras serão
gratos, certamente.
Por tudo isso, o conteúdo desse
primeiro número não se estrutura em
uma temática específica, apresentando
uma amostra do que é possível produzir
e publicar a partir dessas expectativas.
Os documentos de nosso acervo
que estão reproduzidos neste número
foram selecionados cuidadosamente,
como uma das expressões possíveis de
sua natureza e perfil. Integram o arquivo
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pessoal de Astrojildo Pereira, personagem emblemático das lutas políticas no
Brasil. São precedidos por notas introdutórias e comentários. Tânia Regina de
Luca apresenta a Ata da Comissão de
Assuntos Políticos do 1º. Congresso de
Escritores, promovido pela Associação
Brasileira de Escritores – ABDE, realizado em 1945, e a sua Declaração de
Princípios, revelando os debates sobre
a função e o papel dos intelectuais, em
plena luta contra todas as formas de fascismo. Luis Zimbarg, historiógrafo do
CEDEM, apresenta uma carta de 1936,
de Astrojildo Pereira, identificando a
busca de entendimentos entre diversas
forças políticas atuantes naquele momento, para a defesa do sistema democrático.
Tempos da Ditadura Militar: resistência e cultura reproduz uma das
seções de debates promovidos pelo CEDEM por ocasião da passagem dos 75
anos do partido Comunista no Brasil,
discussões protagonizadas por Marcelo Ridenti, Martin César Feijó e João
Quartim de Moraes. O CEDEM dispõe
do registro de todos os seus eventos –
verdadeiros tesouros de informação e de
reflexão – que serão divulgados sistematicamente, conforme os temas que futuramente venham a constituir os números
da revista.
Na seção Depoimentos foram editadas as entrevistas concedidas ao Projeto Memória da Universidade pelos professores Antonio Augusto Soares Amora
e Mário Rubens Guimarães Montenegro,
participantes fundamentais da criação,
respectivamente, da Faculdade de Filosofia de Assis e da Faculdade de Medicina de Botucatu, unidades universitárias
da UNESP. A publicação desses relatos
contribui com o entendimento do fazer
acadêmico, de suas lutas, utopias, conflitos, ideologias. Fazem parte de nossa
história política.
Assunto tratado de perto por Teresa Malatian ao abordar a biografia na
produção historiográfica, seu estatuto
na História, pontuando os diversos caminhos conceituais trilhados por estudos dessa natureza e a atual retomada,
vigorosa, do gênero biográfico, discu-
tindo o lugar do indivíduo na trama social. Traz subsídios fundamentais para
os estudos da história política brasileira e fundamentos teóricos que apóiam o
desenvolvimento dos trabalhos do Projeto Memória da Universidade, eixos de
sustentação das atividades do CEDEM.
Relaciona-se, inclusive por seus apontamentos, ao artigo de Geraldo Lesbat Cavagnari Filho, que analisa Luiz Carlos
Prestes e a Coluna, privilegiando a dimensão militar ao invés da política, que
sempre foi predominante na produção
historiográfica.
Nosso lastro filosófico ficou, desta vez, com Carlos Eduardo Jordão Machado, que nos trouxe Bloch, Benjamin
e Kracauer, expondo e discutindo aspectos de suas narrativas e a proximidade de
suas posições políticas e teóricas.
Por fim, o artigo de Emília Viotti
da Costa, que abre os CADERNOS. Não
foi por acaso. Trata-se de aula inaugural
por ela ministrada, assistida por número
restrito de alunos. As questões para as
quais apontou ainda não estão resolvidas pela historiografia. Algumas delas
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tocam a base do conceito de representação social, um dos mais utilizados na
pesquisa social e historiográfica das duas
últimas décadas. Abordando as relações
entre o historiador e a sociedade, trata
das posições conservadoras assumidas
por alguns de seus representantes mais
notáveis. E, ao tratar de posições conservadoras, tangencia o conteúdo de nosso
acervo, voltado para a história política e
para os movimentos sociais. Universidade e política, pesquisa e compromissos
sociais. Memória.
Está aí outro grande motivo de
trazer esta aula a público. Não se pode
esquecer o fato de que fomos privados,
durante décadas, do convívio com a Professora Emília, por ter sido obrigada a
sair do país, “aposentada” pela ditadura
militar, prosseguindo sua carreira acadêmica nos Estados Unidos. Suas aulas
sempre foram fonte de reflexão permanente. Esta aula inaugural é um presente para nossos alunos. Afinal de contas,
eles são a nossa razão maior.
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O Historiador
e a Sociedade1
ARTIGOS
Emília Viotti da Costa
Professora Emérita da Universidade de São Paulo
As relações entre o historiador e a sociedade caminham numa via dupla. O
trabalho do historiador, queira ele ou não, é produto da sociedade e do tempo em
que vive. A vivência do presente afeta a construção do passado. Ao mesmo tempo, o
posicionamento do historiador na sociedade marca os limites de sua visão. Suas experiências definem suas motivações e explicam porquê e para quê ele se debruça sobre a
história. Seu projeto inspira-se em problemas sugeridos pela posição que assume na
sociedade. Seus temas e seu método são função dos objetivos que pretende alcançar
e das razões que o levam a estudar a história. Sua própria definição do que é história
nasce a partir dessas coordenadas.
Por outro lado, a versão que o historiador apresenta do passado, contribui para
a preservação ou para a mudança da sociedade. Isso confere ao historiador enorme
1 Aula inaugural do Departamento de Historia da USP em 1998 proferida pela Professora Emília Viotti da
Costa
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responsabilidade e requer de todo aquele
que se dedica a essa tarefa uma profunda
reflexão sobre a natureza dessas relações,
a fim de evitar que venha a descobrir tarde demais que tomou a via errada.
Quem ingressa no curso de História de uma Universidade estará iniciando
uma longa conversa que encaminhará a
discussão desses problemas durante todo
o curso. Justifica-se, assim, que, apesar
da impossibilidade de levantarmos, hoje,
todas as questões que o tema sugere, estejamos aqui reunidos para dar início a
esse debate.
Quero apresentar dois exemplos
que elucidam algumas dessas questões.
Para isso, escolhi deliberadamente dois
historiadores conservadores. Os que me
conhecem ou leram meus trabalhos, certamente, se espantarão diante dessa escolha. Minha vida tem sido uma recusa
permanente da posição conservadora que
no Brasil significa a perpetuação de uma
sociedade imensamente desigual e injusta, que é, ao mesmo tempo, a origem e
o resultado do precário desenvolvimento econômico e do crescente mal-estar
social que hoje atinge não só as classes
subalternas, como também setores da
classe média. Porém, tendo em vista que
hoje existe uma tendência conservadora
bastante forte na historiografia, da qual
os próprios historiadores que a praticam
nem sempre chegam a ter consciência,
achei conveniente examinar quais foram
as origens e os pressupostos dessa historiografia. Para isso, nada melhor do que
examinar momentos que no passado levaram alguns historiadores brilhantes a
pôr em circulação uma visão conservadora e elitista do mundo, num movimento que hoje se repete, uma visão que, embora hoje se apresente como inovadora,
representa de fato uma volta ao passado.
Nesta conversa quero referir-me a
dois famosos autores. O primeiro, Jacob
Burkhardt, viveu no século XIX (18181893), mas até hoje é considerado um
historiador exemplar. O segundo, Phillipe Ariès, (1914-1984), também muito
popular nos dias que correm, publicou
seus primeiros trabalhos no fim da década de 1940 e teve uma de suas primeiras
obras reeditadas em português nos fins
da década de 1980.
Jacob Burkhardt, foi conhecido no
Brasil por sua obra sobre a cultura e a
Civilização da Renascença, não por acaso analisado na obra de Hayden White,
Meta História: Imaginação Histórica no
Século XIX, de onde extraí a maioria
dos dados referentes a Burkhardt.
Vivendo na Europa durante o século XIX, Burkhardt, suíço de origem e
de formação calvinista, foi professor durante boa parte de sua vida na Universidade da Basiléia, onde ensinou de 1843
a 1852 e de 1858 a 1893. Durante sua
vida foi testemunha de numerosas revoluções liberais e conflitos sociais que
sucederam à Revolução Francesa e abalaram a Europa até pelo menos o princípio do século XX, quando a Revolução
Russa deu início a um novo ciclo revolucionário. Politicamente, Burckhardt era
um liberal que, como muitos outros que
viveram numa época de grandes transformações sociais e políticas, reage negativamente às revoluções e aos processos de democratização que lhe parecem
avassaladores. Algo parecido sucedeu
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ao nobre francês, Alexis de Toqueville
(1805-1859), o qual, diante do inevitável
avanço revolucionário, lembrou às elites
francesas que era melhor guiar o processo do que se opor a ele. Para isso, foi
aos Estados Unidos conhecer a democracia. Dessa viagem resultou um livro: A
Democracia na América, publicado em
dois volumes. O primeiro em 1835 e o
segundo em 1840, que posteriormente tiveram numerosas edições e são, até hoje,
lidos com proveito por aqueles que se
encontram diante de dilemas semelhantes e têm os mesmos receios a respeito da
ascensão das massas e do pleno funcionamento da democracia. As respostas de
Burkhardt aos desafios de seu tempo são,
no entanto, diversas das de Tocqueville.
Enquanto este parece encontrar uma solução na noção muito comum, desde então: façamos reformas antes que o povo
as faça, Burckhardt se retrai diante do
que pensa ser a massificação da sociedade, a decadência da cultura. Refugiase no esteticismo na histoire tableau, na
contemplação de tempos, a seu ver, mais
“virtuosos”.
Descrevendo a experiência de
Burkhardt, Hayden White, o autor de
Meta História, comentou que Burkhardt observou um mundo em que a virtude fora habitualmente traída, o talento
pervertido e o poder posto a serviço de
causa torpe. Vira muito pouca virtude em
sua própria época e não encontrara nada
a que pudesse dar sua adesão irrestrita.
Sua devoção era à cultura da velha Europa, mas a considerava decadente, uma
ruína impossível de restaurar. Apenas lhe
restava, portanto, relembrá-la com nostalgia.
Burkhardt desprezava a política
por julgá-la incompatível com os gostos de um cavalheiro, tão incompatível
quanto os negócios. Na sua opinião, a
política desviava o indivíduo daquele
assíduo culto da elegância que admirava nos antigos gregos e nos italianos do
Renascimento. “Nunca pensaria em me
tornar um agitador e um revolucionário”,
diria ele em 1843, quando por toda parte
na Europa preparavam-se revoluções. As
revoltas e insurreições que puseram um
fecho à década de 1840 abalaram-lhe a
fé no liberalismo. Sua querida Basiléia,
para onde fora com o fim de ensinar na
Universidade, foi violentamente sacudida pela guerra civil, e ele sentiu que tudo
que valorizava na velha cultura européia
estava sendo ameaçado pelos radicais.
Na ocasião observou:
(...) tenho demasiado conhecimento da
história para saber que não devo esperar
do despotismo das massas senão uma tirania futura que significará o fim da história. Quero livrar-me de todos eles, dos
radicais, dos comunistas, dos industriais,
dos intelectuais, dos presunçosos, dos argumentadores e assim por diante, enfim
dos “istas” e dos “ismos” de toda espécie. Pretendo viver uma vida privada, ser
um amigo afetuoso, uma boa alma, não
posso ter nada a ver com a sociedade em
geral.
A partir de então, Burckhardt refugiou-se numa torre de marfim. Finalmente, a partir de 1860, embora tivesse atingido o pináculo de sua carreira e
fama, recusou-se a publicar. Assistia ao
fracasso do liberalismo, previa como
conseqüência o nihilismo e negava-se a
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entrar na luta. Julgava que seu isolamento o eximia de qualquer responsabilidade
ulterior pelo caos vindouro.
Criou uma teoria da sociedade e
da história a partir dessas experiências.
Dedicou-se ao estudo da cultura da Renascença e da Grécia. Nos seus trabalhos
voltou-se para a arte e a arquitetura. A
história da cultura o atraía, focalizou a
vida social das elites. Recusou-se a aceitar a existência real dos acontecimentos
e encontrou justificativa na filosofia de
Schopenhauer, (1788-1860), autor de O
Mundo como Vontade e Representação,
com quem ele convivera na Universidade
da Basiléia, filósofo que serviu no passado e continuaria a servir no presente de
inspiração para a direita política.
A concepção de mundo de Schopenhauer satisfaria as necessidades de
muitos intelectuais do terceiro quartel do
século. Sua filosofia refletia o clima que
se instaurou na Europa depois da Restauração monárquica na França, quando o
os Bourbons foram chamados a assumir
de novo o trono da França.
Embora tivesse sido concebida na
segunda década do século XIX, a filosofia de Schopenhauer só recebeu atenção
a partir de 1850. Todo seu sistema era
uma tentativa de desqualificar a história
e demonstrar porque as preocupações sociais e os interesses históricos são irrelevantes. Esta visão reacionária, egoísta e
pessimista expressava, segundo Hayden
White, o ponto de vista da classe média
alemã da época. O mundo social de Schopenhauer era um agregado de indivíduos
atomizados, cada qual aprisionado dentro dos próprios desejos, indivíduos colidindo uns com os outros em movimentos
aleatórios, cada um parecendo simplesmente um possível meio de satisfação
egoísta para todos os demais.
No sistema de Schopenhauer, a
história ocupava uma posição secundária, pois ele se fundava na convicção
que não existia uma realidade objetiva
independentemente da consciência que
a percebe. Para ele, que não acreditava
na objetividade do processo histórico, o
trabalho do historiador limitava-se a selecionar os materiais históricos, aceitando-os ou rejeitando-os à vontade, a fim
de convertê-los em uma imagem agradável de contemplar. O conhecimento histórico era pois uma forma de cognição
de segunda ordem. Algo muito parecido
acontece hoje, quando se nega qualquer
objetividade ao conhecimento histórico e
se fala no fim da história.
A visão da história de Schopenhauer aproxima-o mais de um Tucídedes, que inventava discursos para seus
personagens, do que de seu contemporâneo, o historiador Leopold Ranke, o
qual vivia obcecado em descobrir o que
realmente acontecera no passado e como
recuperá-lo. Para Schopenhauer a ficção
era superior ao fato. Todas as instituições
sociais eram despojadas de qualquer valor e todos impulsos sociais eram vistos como erros ou falhas. Sua filosofia
era profundamente narcisista. Sua visão
ajustava-se perfeitamente às necessidades daqueles segmentos da sociedade
que, como Burkhardt, queriam ignorar
por completo as questões sociais. Era
visível a repugnância de Schopenhauer
pela sociedade em que vivia e sua recusa de qualquer ação pública ou privada,
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visando mudar a sociedade para melhor.
Para ele, a história aparecia como refúgio da realidade presente, permitindo
ao historiador, isolar-se da sociedade
em que vive - filosofia escapista, de que
Burkhardt partilhou.2
Ao estudar a Revolução Francesa, ao contrário de Tocqueville que procurou ver o que com ela se ganhou e se
perdeu, Burkhardt só viu perdas. Não é
de espantar que sua visão de futuro tenha sido tão negativa quanto a de Johan
Huizinga (1862-1945), autor do Ocaso
da Idade Média, e de Oswald Spengler
(1880-1936), autor da A Decadência do
Ocidente (1919), bem como outros intelectuais preocupados com a decadência
do Ocidente. Dentro desse quadro, e tendo em vista sua filosofia de vida, a única
decisão que Burkardt poderia tomar era
recolher-se, cultivar seu jardim, partir em
busca do tempo perdido e esperar que a
loucura presente se dissipasse. Talvez depois, passado o caos, a cultura mais uma
vez pudesse ser revigorada. No presente,
no entanto, para Burkardt, nada havia a
fazer senão deixar a cidade pelo campo e
aguardar; cultivar a conversa com alguns
seletos espíritos afins, exibindo um consistente desdém pelas atividades dos homens práticos ou engajados. Finalmente,
Bukhardt coloca-se entre os historiadores que cultivam a história monumental
e os que praticam a história antiquária ou
revelam uma religiosa reverência pelo
passado e vêem a história como contemplação do passado e fuga do presente.
Dessa breve análise, pode-se concluir que existe uma íntima relação entre
a obra histórica de Burkhardt, seu pensamento sobre a história, seu posicionamento dentro da sociedade de seu tempo
e as teorias filosóficas que reduzem a história a um conhecimento de segunda ordem: filosofia e histórias eminentemente conservadoras, brotadas num período
histórico entre a Revolução Francesa e a
Revolução Soviética, período paradoxal,
agitado por muitas revoluções frustradas,
como as de 1848 ou a Comuna de Paris
em 1871, mas durante as quais setores
populares ganharam uma presença marcante na sociedade e passaram a ser vistos como ameaça por setores das classes
dominantes. Há inegavelmente um vínculo entre historiadores como Burkhardt e filósofos como Schopenhauer. Produziram uma história e uma filosofia
conservadoras, numa época em que o
movimento operário abria novas possibilidades para a reflexão sobre a história, e
em que Karl Marx, confrontando-se com
os mesmos eventos, procurava criar uma
ciência da história que permitisse aos homens transformar a sociedade, a fim de
torná-la mais democrática.
Quase um século mais tarde, depois que o mundo assistira à Primeira
Grande Guerra (1914-1918); à Revolução Bolchevique na Rússia (1917); à
Grande Depressão econômica dos anos
trinta; e ao início de uma nova guerra
(1939-1945), um outro historiador, Philipe Ariès (1914-1984), definia sua posição
em relação à história e à sociedade num
2 Hayden White observa que o filósofo Nietzsche e o escritor Thomas Mann, também, foram inicialmente influenciados por Schopenhauer, mas logo o abandonaram, enquanto o compositor Wagner continuaria por toda vida seu fiel seguidor.
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livro publicado na França, com o título
Le temps et L’histoire (posteriormente
traduzido para o português). O livro reúne ensaios escritos por ele, na maioria
entre o fim da Segunda Grande Guerra
e o início da Guerra Fria (1947), isto é,
aproximadamente entre 1946 e 1949.
Para entender Ariès é preciso localizá-lo no seu tempo e examinar a posição que ocupava na sociedade, os problemas que se colocavam no período de
após guerra, as opções que se abriam e
as escolhas que fez Só assim poderemos
começar a compreender sua posição em
relação à história.
Ariès, como ele mesmo nos informa, nasceu de uma família abastada, monarquista e religiosa, leitora assídua do
jornal conservador Action Française. A
família vivera parte de sua vida nas Antilhas e outra parte na França, numa cidade provinciana. Ariès pertencia a uma
comunidade onde os laços de família lhe
pareciam sólidos. Vivia num verdadeiro
oásis, segundo sua própria caracterização, onde a preocupação com a vida pública não existia, Ariès confessa: “Porque
vivia num oásis, eu vivia fora da História
(...)”. A história que chegava a ele, através
da memória familiar, era subjetiva e seletiva: falava das glórias passadas, não do
sofrimento do povo. Diz Ariès: “Não era
a história nua e hostil que invade e arrasta, a história onde estamos e somos, fora
do frágil recinto vedado das tradições familiares”. Era uma transposição poética
da História, um Mito da História. Absorvia a lenda, não a história. Seus contemporâneos eram São Luiz, Luiz XVI e os
mártires da Revolução. Aos seus ouvidos
atentos de criança chegavam histórias
sobre os felizes tempos dos reis de França, Quando jovem devorava os livros de
memórias do século XVIII, da Revolução Francesa e da Restauração.
Não é, pois, de estranhar que ele
nos diga que, assim que foi capaz de
conceber a idéia de um tempo histórico,
ela se fez acompanhar de “uma nostalgia
pelo passado (...)”. Ariès olhava para o
passado, não para o futuro. O passado,
idealizado e poetizado, servia-lhe para
avaliar o presente que lhe parecia ameaçador, como parecera a Burkhardt um
século antes. Na juventude dedicou-se à
genealogia dos reis de França, os Capetos. Em 1946, já homem feito, ainda se
apegava à história poética e repudiava a
história que almejava a foros de ciência e
a busca de objetividade.
Confrontando-se com os desafios
que a presença do marxismo representava para os homens de sua geração, Ariès
refugiava-se na história das pequenas
comunidades familiares da burguesia
provinciana e do campesinato. Dedicouse a elaborar questionários que visavam
recapturar a memória de pessoas que viviam nessas comunidades, procurando
estabelecer uma mediação entre memória e história. Seu interesse correspondia
aos dos setores da burguesia francesa que
cultivavam, cada vez mais, uma nostalgia
pela “antiga França”, apegando-se a uma
imagem idealizada, quase mítica que
construíam a respeito do passado. Pouco
a pouco, a interpretação desfavorável à
França pré-revolucionária, que fora hegemônica desde a Revolução, cedia lugar a uma favorável que desembocaria
nos nossos dias em uma total inversão
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das teorias que avaliavam a Revolução
Francesa como uma grande conquista.
Ela passou a ser vista por alguns como
um grande desastre, numa reversão total
da historiografia tradicional.
Diante da historiografia do seu
tempo, Ariès fazia opção pela versão conservadora. Preocupava-se, no entanto,
em dar-lhe a vida que lhe faltava. Queria escrever uma história em que os elementos humanos não perdessem nem sua
individualidade, nem sua singularidade.
Em lugar das crônicas políticas abstratas, tradicionais, propunha uma história
dos costumes. Tentando sintetizar o dilema da história naquele momento (1947)
dizia: “Confrontados com a história [e
aqui ele se referia à história que vivia no
presente e não à historiografia] criamos
a direita e a esquerda uma máquina abstrata, cujas leis pretendemos no mesmo
instante conhecer (...).” Era contra essa
história que lhe parecia desumanizada e
abstrata, que negligenciava a experiência
individual, que Ariès, como muitos outros de sua geração, se insurgira. Entre as
opções de seu tempo, à esquerda ou à di-
reita, escolhera esta. Outros tentaram dar
vida nova ao liberalismo, ou a promover
o socialismo.
Analisando o que se passava em
seu tempo, Ariès contrastava um tempo
passado em que as pessoas podiam viver isoladas da política, e um tempo que
ele datava de 1940, quando todos foram
chamados a se definir a favor ou contra
a colaboração com os alemães ou a resistência, momento em que o privado foi
invadido pelo público, o que ele caracteriza como uma monstruosa invasão do
homem pela história, um momento em
que o pacato meio familiar parece destruído pela política. Nazismo e comunismo
forçam a definição política; a politização
da vida privada parece-lhe total.
Nessas condições proliferaram os
testemunhos, os relatos pessoais e subjetivos. Os dramas pessoais tornaram-se
história. Ao mesmo tempo que os indivíduos pareciam perder a individualidade
nos movimentos coletivos, afirmava-se
com maior intensidade a sua consciência
de indivíduo. Essa contradição aparece
em toda a literatura da época e é bem
clara na obra do filósofo Jean Paul Sartre
(1905-1980), que tenta resgatar o indivíduo dentro do Marxismo e faz a apologia
do intelectual engajado. Veja-se sobre
isso: Question de Methode, em Critique
de la Raison Dialetique.
Os que como Ariès se apegaram
ao passado e recusaram os envolvimentos políticos, ao invés de historizarem a
experiência dos indivíduos, como faziam
os autores de testemunhos do período de
pós-guerra, particularizaram a história,
reduzindo-a à experiência do indivíduo.
O testemunho, dirá Ariès, não é
a narrativa desprendida de um observador que enumera ou de um sábio que
demonstra, mas uma confissão. É para o
testemunho, para a memória, para a história dos costumes que Ariès se inclina.
Critica a historiografia acadêmica de seu
tempo, por não arrebatar o público; põe
em questão suas pretensões científicas;
duvida da objetividade do fato histórico;
e compara a história com a obra de arte,
argumentando que o desconhecimento
da natureza estética da história provocou
uma descoloração completa dos tempos
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que os historiadores se propuseram a estudar. Essa crítica dificilmente se aplicaria a Lucien Febvre, para quem a história
era a ciência do homem, ou para seu amigo, o historiador Marc Bloch.
Os dois exemplos, o de Ariès e o
de Burkhardt, revelam algo em comum.
Para ambos, o presente representa uma
ameaça, e o passado um refúgio. Ambos
valorizam o aspecto subjetivo e estético
da história e duvidam da possibilidade de
um conhecimento mais objetivo. Ambos
vêem na história um meio de evitar os
problemas do presente, ambos cresceram
em um meio social protegido e ambos se
defrontaram com um desafio das classes
subalternas. Ambos assumiram uma posição conservadora, quando havia outras
opções e outros caminhos.
Para a nova geração de historiadores, o desafio ainda é o mesmo, embora os tempos sejam outros. Vivemos
um momento conservador, e as opções
radicais, que pareciam tão claras na época de Burckhardt, que assistiu às Revoluções de 1848 e à Comuna de Paris
em 1872, que inspiraram as reflexões de
Marx, e às Revoluções Russas, Chinesa
e Cubana, que na época de Ariès produziriam as reflexões filosóficas de Sartre,
estão em refluxo diante da crise do socialismo na União Soviética e da penetração capitalista na China comunista,
enquanto políticas liberais e fascistas se
generalizam no mundo. O aparente declínio dos projetos socialistas e dos movimentos populares organizados, que no
passado serviram de ponto de referência
para as visões radicais da história, gera
dúvidas sobre a possibilidade do conhecimento histórico. Nega-se a existência
do processo histórico. Fala-se até no fim
da história. A memória toma o lugar da
história, os testemunhos substituem as
interpretações históricas mais amplas. A
história dos costumes vira moda. As explicações culturalistas, que tinham sido
abandonadas, voltam a circular. A história parece ter perdido o rumo e volta para
trás. Esse é um fenômeno que não atinge
apenas a história e os historiadores, mas
que se observa nas demais ciências humanas. Nas filosofias e nas artes há também uma grande perplexidade. Momen-
tos como este podem ser profundamente
fecundos, pois permitem a experimentação, a inovação e a síntese entre o passado e o presente, assim como a busca
de soluções novas, mas também podem
levar a um beco sem saída, se fizermos
da história um exercício meramente estético e contemplativo que visa, sobretudo,
satisfazer as exigências do mercado (ou
da Universidade) e os ditames dos que
detêm o poder.
15
A Biografia e a História
ARTIGOS
Teresa Maria Malatian
UNESP/Franca
Por que Biografar?
A multissecular desconfiança para com este gênero sedutor, afinal, os indivíduos fazem ou não a história? O gênero apresenta ainda possibilidades, ainda que tenha
sido bastante criticado? O Catálogo Brasileiro de Publicações em 1994 registrava um
crescimento de 55% das obras sobre o tema em relação a 1987 (Schmidt, 1997, p.1).
A biografia como tendência historiográfica
O estatuto da biografia em História
A biografia nunca esteve ausente das reflexões historiográficas ou das práticas
profissionais dos historiadores, mas muitas vezes se fez acompanhar de um mal-estar
explícito ou implícito.
16
Como assinala Momigliano, em
Problèmes d´historiographie ancienne et
moderne (1983), trata-se de gênero antigo que conservou fronteiras fluídas com
o campo do conhecimento histórico. Já
na Antigüidade, despertava a desconfiança de autores como Tucídides e Políbio,
que lhe atribuíam o estatuto de território
sujeito à exaltação tendenciosa de um indivíduo, grupo de indivíduos ou causa.
Entre a biografia e a História há um abismo de insegurança e fragilidade diante
do problema da verdade da narrativa,
sem contar que à primeira se reservava
o estudo dos fatos e gestos dos indivíduos, enquanto à segunda cabia o relato
dos acontecimentos coletivos ( Levillain,
2003, p. 145).
Plutarco (45-125) construiu um
modelo ao traçar as Vidas paralelas nas
quais procurava evidenciar as virtudes
dos homens de ação, que agiam de modo
correto “no interior de duas civilizações
idealizadas, a da Grécia e a de Roma”,
tentando com isso escrever uma História moral estruturada em personalidades
exemplares (Levillain, 2003, p.149).
Sem a pretensão de percorrer de
modo enciclopédico esta trajetória, é importante lembrar que a suspeita e a ambigüidade tiveram em Suetônio (75-160)
uma tentativa de estabelecimento de distinções, com a individualização da biografia na direção de torná-la mais confiável, mediante desmistificação e recusa
do elogio na Vida dos doze Césares.
Desde a Antigüidade greco-romana construíram-se, pois, referências
importantes para um gênero que nunca
cessou de ser cultivado, ainda que atravessando altos e baixos na sua aceitação
e viradas em sua concepção, como ocorreu com as hagiografias medievais.
A construção do indivíduo na Idade Moderna se fez acompanhar pelos
trabalhos modelares de tipo biográfico,
como O século de Luís XIV ou Carlos
XII da Suécia, de que se ocupou Voltaire (1694-1778). O herói foi colocado por
ele no centro da História em trabalhos
modelares .
Na primeira metade do século XIX
inspirou Carlyle a servir-se da biografia
para questionar a linearidade tradicional
da história factual. Para dar à História
volume e profundidade, utilizou o herói
como meio de expressão do fluxo caótico
e aleatório da vida e do acesso ao universal e, com esse intuito, produziu estudos
notáveis como A Vida de John Sterling e
a Biografia de Cromwell. O herói individual, sujeito de exaltação, foi por Carlyle encarregado de exprimir sua época
e, assim, a História se tornou o campo
de afrontamento de personalidades heróicas, cada uma com sua função profética enquanto encarnação das forças do
Espírito, entendidas como religião, “o
fator principal na vida do homem”. Entre eles, o herói demiurgo seria capaz de
dar sentido à história e forçar o destino.
Em sua obra de referência e exaltação do
idealismo, Os heróis e o culto dos heróis,
atribuiu aos indivíduos excepcionais um
papel na História da humanidade, confundindo-a com a dos “grandes homens que
trabalharam a terra: eles foram os condutores, os modeladores, os padrões e, num
largo sentido, os criadores de tudo o que
a massa geral dos homens procurou fazer
ou atingir” (Carlyle, [s.d.], p. 9).
17
Nos cinqüenta anos que se seguiram, duas posturas teórico-metodológicas viriam abalar tais convicções: de
um lado, a de Michelet que colocou em
primeiro plano da reflexão histórica os
valores coletivos, expressos pelo povo,
deixando aos indivíduos o papel de representantes de paixões coletivas; de
outro, a de Marx que colocou no centro,
na História, as classes sociais, reduzindo
drasticamente o papel dos indivíduos no
discurso histórico, ainda que se ocupasse
dele pontualmente, como em O 18 Brumário de Luís Bonaparte (Marx, 1986).
Não obstante, Taine e Renan percorreram o século do nacionalismo preocupados com a concepção do grande homem como produto da raça, do meio, do
momento, o homem-partícula, o átomo
social que tributou ao romantismo a mudança de sentido da biografia: a tensão
entre indivíduo e sociedade privilegiou
a primeira e a biografia visava encontrar
no destino individual a força do contexto
geográfico, cultural, histórico, social.
Ainda que os historiadores metódicos (Monod, Langlois, Seignobos,
H.Berr) criticassem os historiadores românticos e sua imagem do herói como
exterior à massa humana, que realizava
os desígnios da Providência, do progresso, e da oposição de Durkheim e sua
desconfiança em relação ao sujeito individual quanto a seu papel na História, o
século XIX continuou campo fértil para
os estudos biográficos. A biografia constituía um passatempo de homens cultivados, literatura prestigiosa de acadêmicos,
praticada por políticos, advogados, notáveis e letrados em geral, sem alcançar estatuto de cientificidade, como, por exemplo, a biografia de Albert de Broglie.
Além disso, autores inseriram estudos biográficos ao longo de seus escritos mais generalizantes, como Jaurès
que, ao escrever a História da Revolução
Francesa, deu primazia às formas sociais, mas não desmereceu as personalidades individuais e suas relações com
os movimentos de fundo, provocados
pelas condições de produção e troca. Sua
História pretendia ser materialista como
queria Marx, lírica como fizera Michelet
e heróica como praticara Plutarco.
Neste esboço historiográfico, os
Annales ocupam uma posição central,
pois a esse grupo são atribuídas diversas negações: do indivíduo e da política,
principalmente. Inegável que desde Febvre e Bloch, a história se torna território
das massas, dos grande movimentos econômicos e sociais. No entanto, o grupo
fundador da revista não conseguiu – se é
que o desejou – realizar uma virada antibiográfica. Há consciência das dificuldades do gênero: Febvre apontou os problemas, perigos e tentações da biografia
individual, mas escreveu, entre outros
textos, Martinho Lutero, um destino, e A
religião de Rabelais. Sua contribuição ao
gênero consistiu em esclarecer trajetórias
individuais rompendo, no entanto, com
a concepção de heróis super-homens e
centrando a análise na utensilagem mental específica de um período e de um grupo de homens, preparando assim terreno
para o estudo das chamadas mentalidades.
Em Martinho Lutero, um destino
(1994), Febvre explicitou sua concepção
do gênero na perspectiva renovadora que
18
logo seria veiculada pelos Annales HES:
trata-se de fato de um personagem excepcional e que poderia implicar um juízo,
se o biógrafo enveredasse pelos conflitos
religiosos, mas a ótica de Febvre foi a da
compreensão em exemplar lição de método. Sua pretensão:
desenhar a curva de um destino que
foi simples mas trágico; marcar
com precisão os poucos pontos verdadeiramente importantes por que
passou; mostrar como, sob a pressão de que circunstâncias, o seu entusiasmo inicial teve de enfraquecer
e inflectir o traçado primitivo; por
assim, a respeito de um homem de
uma singular vitalidade, esse problema das relações do indivíduo e
da coletividade, da iniciativa pessoal e da necessidade social que é, talvez, o problema capital da história.
(Prefácio à 1ª edição,1945, p.11)
Ao utilizar o procedimento biográfico, Febvre combinou erudição e História-problema para evidenciar uma postura epistemológica: “se os homens fazem
a História, só o historiador sabe a Histó-
ria que eles fazem e, conseqüentemente,
é a deles” ( Levillain, 2003, p.149).
Hoje, oitenta anos decorridos,
ainda nos debatemos com as mesmas
questões metodológicas: a necessidade
de escolhas na trajetória de vida, para a
composição do relato biográfico; como e
quando iniciá-lo; o período a ser trabalhado como relevante...A vida de Lutero
nesta biografia desenvolve-se até 1525,
quando ocorre o que Febvre denomina
“recuo sobre si”, “retirada” ou “refúgio
em si mesmo”, conforme as diversas traduções possíveis da palavra repli.
Marc Bloch igualmente se manteve próximo do gênero, ao estudar Filipe
II e o franco-condado, onde abriu novos
caminhos para a biografia, ao se ocupar
do papel dos indivíduos, ainda que inserido no quadro das estruturas agrárias
da sociedade feudal. Em Apologie pour
l’Histoire (1997) chegou mesmo a defender o papel dos indivíduos na História
como necessário, em L´etrange défaite
(1990) refletiu sobre o papel do testemunho e foi um dos primeiros a preconizar
o abandono das personalidades excepcio-
nais e sua substituição pelas personagens
secundárias, que seriam mais reveladoras
de uma época ou de um meio. Inclusive,
propôs que os historiadores deveriam,
em lugar de se aterem aos grandes pensadores, freqüentar os chamados autores
de segunda ordem.
Em suma, não houve entre os Annalistas da primeira geração ruptura com
o gênero biográfico, mas, sim, um ajuste
da abordagem ao novo campo teórico e
metodológico que se abria para a temporalidade ampla, o econômico e o social. A
biografia que daí resultou caracterizou-se
pela recusa dos exageros laudatórios do
século XIX e pela busca de adequação
a paradigmas historiográficos voltados
para uma História objetiva, as mentalidades, os atores coletivos que, no entanto,
reservavam um espaço e um protagonismo aos sujeitos individuais.
Na geração de Braudel, que liderou a chamada Escola dos Annales, após
a Segunda Guerra Mundial, a desconfiança em relação à História do indivíduo
foi o contraponto da postura que privilegiou as estruturas e a temporalidade lon-
19
ga, ainda que seu estudo sobre o mundo
mediterrâneo comportasse a dimensão
individual da atuação de Felipe II, e nela
constituísse um ponto interessante, o espaço biográfico reservado na obra à duração curta, ao evento, à História que se
desenrola em velocidade maior que a das
estruturas e conjunturas.
Com os avanços da historiografia
de base marxista e do estruturalismo na
universidade, o gênero biográfico teve
seu espaço após Segunda Guerra Mundial. A ênfase na História serial de Chaunu (1978) só fez aprofundar, nas décadas de 1960 e 1970, a minimização da
presença dos sujeitos coletivos em favor
dos dados quantitativos.1 Foi o apogeu da
desclassificação da biografia, que no entanto, teimosamente, continuava sendo
produzida pelos que afrontavam as críticas, ao mesmo tempo em que uma reação
veio dos questionamentos decorrentes da
crise do marxismo, do estruturalismo e
de inovações em direção à revalorização
do indivíduo na História.
Era preciso responder às críticas
que incidiam sobre o gênero em sua excessiva valorização da personalidade e
da importância do sujeito individual, o
perigo do falseamento das perspectivas e
a heroicização dos indivíduos. Bourdieu
foi um dos que se manifestaram nessa direção - L’histoire de vie est une de ces
notions du sens commun qui sont entrées
en contrebande dans l’univers du savant
(Bourdieu, 1962/1963).
Os “retornos” da História:
do indivíduo, do político
e da narrativa
Outra crítica bastante desabonadora consistia na acusação de a História
de vida pressupor noções mal definidas
de coerência, continuidade do eu, identidade. Em resposta, Chartier foi um dos
raros teóricos a lembrar que sociedade,
classe e mentalidade, que tendiam a substituir os indivíduos na análise, eram freqüentemente tratados pela historiografia
como heróis individuais, com as mesmas
ilusões de reconstituição e inteligibilidade linear (1991).
O gênero continuava a ser praticado, porém desvestido de glórias universitárias até que a reação, nas décadas
de 1980 e 1990, acompanhou o florescimento da História narrativa, da valorização do indivíduo, que encontrou novamente espaço emergindo das estruturas
e das classes sociais. Bloch, Febvre e
Michelet foram revisitados em busca de
inspiração. Um dos direcionamentos foi
a História do movimento operário que
originou o dicionário biográfico específico de Jean Maitron (1992), no qual militantes obscuros dividiram a atenção dos
historiadores com os célebres. A História
dos “de baixo” acompanhou também a
onda da História Oral, que se centrou na
construção de trajetórias individuais nas
chamadas histórias de vida.
Os historiadores formados na tradição dos Annales enfrentaram o gênero
e produziram obras de peso, como Duby,
1 Grande parte dessas considerações vêm de CANDAR, Gilles. Le statut de la biographie, 2000. Disponível em:www.irmcmaghreb.org.
20
em Guilherme o marechal... (1995) e
Le Goff, com o São Luís (1996), de que
falarei adiante. Com eles a biografia ganhou prestígio na historiografia universitária, que passou a validar o gênero. Em
lugar da linearidade factual da curta duração centrada na cronologia do tempo
curto da vida do indivíduo, a tendência
passou a ser o estabelecimento de relações desta com o contexto econômico,
político, social, cultural, no qual se insere e desenvolve uma vida e que esclarece
trajetórias num campo de possibilidades
de escolhas e de exploração, no qual se
exerce a ação individual.
A micro-história de Ginzburg, O
queijo e os vermes (2002) e de Giovanni,
Le pouvoir au village (1989), igualmente, favoreceram o gênero.
Nesse processo, Chartier foi também decisivo ao apontar a similitude dos
procedimentos da disciplina histórica a
serem observados em qualquer tipo de
estudo, sujeito a incertezas, dúvidas e
instabilidades (1998).
A menor ênfase na História quantitativa e serial, com seus ciclos e mo-
vimentos demográficos, o “retorno” do
político reabilitado juntamente com o da
curta duração do evento e o retorno da
narrativa, possibilitaram um novo interesse pela escrita de si, pela vida cotidiana, dos costumes, dos homens comuns,
mas também para o indivíduo e seu papel
na História, em confronto com a sociedade, que coloca para o historiador do gênero a questão da liberdade de escolhas,
as relações entre fenômenos coletivos e
estratégias e comportamentos individuais, traduzidos em escolhas que não são
inapelavelmente marcadas pela sociedade (Dumont, 1983).
Em suma, a chamada crise dos paradigmas marcou o conhecimento histórico nas últimas duas décadas, ao questionar o valor analítico de estruturas e
relações, modos de produção e história
serial, recuperando os sujeitos individuais, estudos de caso e a micro-história.
Mais descritiva e narrativa que analítica,
enfocando o homem mais que as circunstâncias, incorporando aportes da literatura, a historiografia com seus diversos
“retornos” abriu novamente espaço para
a biografia (Schmidt, 1997).
A força do retorno do gênero biográfico veio dos questionamentos sobre
como distinguir o indivíduo na sociedade, na qual as análises até então mais
validadas o diluíram. A tentativa de redução da concepção “hipersocializada
do homem”, tal como praticada pelo
marxismo e pelo estruturalismo, enveredou também pela análise psicológica
que foi centrada na subjetividade da pessoa (Gay, 1999) e pela afirmação de sua
autonomia na sociedade. Até mesmo as
descobertas da genética têm sido chamadas para explicar os jogos entre indivíduo e sociedade, entre o hereditário e o
adquirido, entre patrimônio genético e a
vida socialmente construída, a exemplo
do que alimentou o chamado caso Lissenko (Levillain, 2003, p.168-70).
Escrita de si - fontes para
a biografia
Desde as décadas de 1970 e 1980,
a escrita de si vem alcançando grande
popularidade, abrigada pela literatura,
21
pela mídia, nas ciências humanas e nas
práticas de formação. Autobiografias,
diários e correspondências constituem
assim um campo imenso de possibilidades para o historiador em seu intuito
de construção de biografias. Resultam
de atividades solitárias de introspecção,
ainda que a autoria possa ser partilhada
por secretários, assessores ou familiares.
Trata-se, deste ponto de vista, de escritas
de si nas quais o indivíduo assume uma
posição reflexiva em relação à sua história e ao mundo no qual se movimenta.
Na literatura, as obras de caráter autobiográfico se publicam em toda
parte, colocando ao alcance do público
histórias de vida em escritos tão diversos como a autobiografia literária, a autobiografia intelectual, o diário íntimo, o
diário de pesquisa, o diário de escritor,
os relatos de viagem, a correspondência
e as memórias, em geral, enunciados na
primeira pessoa, embora por vezes na segunda ou mesmo na terceira, visando à
construção de um relato a ser recebido
como verídico pelo leitor.
Na mídia as condições e formas
de escritas de si alcançaram a pletora: estrelas do mundo das artes, dos esportes,
personagens da política, intelectuais, sem
esquecer os anônimos “homens comuns”,
personagens construídos a longo ou curto prazo inundam em longos relatos ou
em curtos fragmentos, jornais, revistas,
documentários, reality shows, novelas,
TV, rádio, web, nas quais a exposição da
vida privada se oferece ao consumo de
multidões.
As razões desse movimento podem
ser localizadas numa angustiante busca
de elementos identitários que desloca o
reconhecimento de si no conhecimento
do outro que se torna tempo familiar sem
perder a distância física, presentificados
pela atividade midiática que permite até
o acompanhamento do cotidiano em tempo real dos que se colocam diante da tela
da TV.
Nas ciências humanas, as abordagens de histórias de vida cresceram enormemente desde que a Escola de Chicago
elegeu a vida dos imigrantes como significativa para a compreensão da sociedade norte-americana e lhes deu a palavra.
A história de vida e os documentos que
a iluminam (cartas, diários íntimos) alcançam o estatuto de objeto científico no
qual a palavra constitui o meio privilegiado de acesso a atitudes e representações do sujeito (Lewis, 1970).
Em reação aos modelos teóricos
totalizantes da vida social, como o marxismo e o estruturalismo, e aos métodos
quantitativos, o relato de vida foi redescoberto na Europa gerando, nos anos
1970, as reflexões pioneiras na França de
Daniel Bertaux sobre a aproximação biográfica. Os trabalhos sociológicos nesta
vertente abrigaram a maior parte da produção do gênero e alcançaram, nos anos
1980, grande expansão e reflexões metodológicas sobre o estatuto dessa história
e seu valor como documento confiável
para o conhecimento reconhecido como
científico.
Uma quarta dimensão da escrita
de si na contemporaneidade consiste na
sua utilização no campo da formação,
uma vez reconhecido seu papel como
“arte formadora da existência”, como
afirma Gaston Pineau em Práticas de
22
formação (1996). Logo apropriado pelas
teorias e práticas educacionais, inclusive
no Brasil, este entendimento vem sendo utilizado como estratégia de reajuste
permanente do indivíduo às intensas e
velozes transformações sociais do mundo contemporâneo, de modo a preservar
sua própria historicidade e sua posição
de sujeito histórico pela constante utilização de referentes identitários.
O crescimento do gênero remonta
ao século XIX, quando preenchia funções definidas como educação de si, interiorização de normas de convivência
em determinados meios sociais, além de
satisfazer à fome de intimidade e privacidade que acompanhou a implantação da
ordem burguesa. Hoje, se os diários íntimos e as cartas perderam espaço na vida
cotidiana, a busca de histórias de vida
afirma o predomínio da subjetividade e
do individualismo a que corresponde o
fracasso do welfare state e dos regimes
socialistas. O encolhimento do espaço
público, a fragmentação da subjetividade
em diversos espaços, a busca identitária
exacerbada constituem o contraponto ao
esvaziamento dos projetos coletivos e ao
desencantamento do mundo nas últimas
quatro décadas.
A redescoberta do indivíduo e dos
traços de sua trajetória individual tem
sido cada vez mais valorizadas, como
nos relatos sobre o Gulag e outras experiências extremas revisitadas. A história
do “povo comum” igualmente contribuiu
para a releitura de diários, cartas e textos
memorialísticos em sua possibilidade de
contribuição para a recuperação dos protagonismos individuais e de releituras da
história segundo diversas ópticas.
Do contato com a escrita de si em
suas diversas modalidades, aflora a constatação de ser este um território marcado
pelas tensões entre indivíduo e sociedade, pela dificuldade de se estabelecer
limites entre ação individual e ação coletiva, pelo questionamento da liberdade
de ação e do papel impositivo de grupos
sociais e construções coletivas da cultura
(Montagner, 2007).
Uma possibilidade seria uma
abordagem literária das filiações que circunscrevesse o campo histórico e formal
do gênero autobiográfico. Ou, uma abordagem antropológica que inscrevesse os
textos no contexto de sociedades e mentalidades nos quais foram gerados.
Essas duas posições sinalizam a
diversidade de constituição do objeto,
porém ambas podem estar presentes e se
complementar, para que se possa analisar
e usufruir dos relatos pelos quais o indivíduo fala de si em determinadas condições sociais (econômicas, políticas, sociais, culturais), e constrói uma relação
identitária consigo mesmo, que Foucault
denomina práticas de si.
A historiografia apropria-se de tais
abordagens e as reconstitui de modo que
o discurso de si, considerado na dimensão histórica, releva de cada época, em
cada sociedade, as relações do público e
do privado, da coletividade e do indivíduo, da singularidade e da pluralidade,
do indivíduo consigo mesmo. Importa
ocupar-se de discursos codificados historicamente e que são, portanto, portadores de relações de força e de consciência
de si. Trata-se de ter constantemente em
presença as formas como o indivíduo e
23
sua identidade são permanentemente inventadas e reinventadas: discursivas e
materiais (suportes e técnicas de escrita
da palavra), com mediações exteriores (a
cidade, a religião, o poder), numa prática
que é sempre implícita ou explicitamente
coletiva.
Dito de outra forma, a construção
do discurso que carrega a construção de
si não pode ser abstraída das formações
históricas que regem a vida dos homens
em sociedade e, ao mesmo tempo, do
modo como grupos constituem práticas
de si, as quais se traduzem nas representações do eu fixadas nos relatos. Pode-se
rastrear desde a Antigüidade tais práticas
que passam pelo mundo greco-romano
como os relatos militares de Júlio César, por exemplo, e prosseguem ao longo
dos séculos pelas confissões tão caras ao
Cristianismo até alcançar sob múltiplas
e variadas modalidades o quadro atual
descrito.
Do ponto de vista metodológico
trata-se de considerar com Henri Lefèbvre, em A soma e o resto (1989), a existência de um espaço-tempo interior que
se traduz em momentos nos quais o indivíduo constrói sua experiência, a qual o
individualiza, o singulariza num campo
de relações.
É esta perspectiva que permite ao
historiador considerar os momentos vividos como diretrizes da temática biográfica, superando a linearidade factual da
narrativa, para proceder a uma operação
historiográfica de tematização da existência individual, segundo o grupamento
das experiências do objeto em torno de
certos pontos de ancoragem específicos
que podem se justapor ou desaparecer,
mas que marcam seu ser no mundo. Isto é
particularmente constatável no momento
da escrita de si, quando o indivíduo experimenta a imersão – de extensão temporal variável – num trabalho de criação
específico e distanciado, mas ao mesmo
tempo próximo de outros momentos naquele instante revisitados e reelaborados,
colocando à luz esse eu construído antes
de tudo para si mesmo, buscando elucidar o enigma de sua própria existência
(Delory-Momberger, 2000, p.11).
Peter Gay, em O coração desvela-
do, assinala o espaço socialmente reservado à escrita de si no século XIX na Europa, quando diários, cartas e memórias
ao contarem “realidades interiores” reproduziam experiências individuais, nas
quais fantasias e “realidades” se mesclam
num jogo de ocultamento/revelação sempre apresentado como um compromisso
com a verdade, cuja enunciação ao leitor
constitui verdadeiro deleite. A partir de
uma abordagem psicanalítica, Gay sinaliza o cuidado a ser tomado pelo historiador com as poses, as táticas evasivas,
a exposição e a proteção do eu dirigida a
um público seleto (1999, p.71-177), que
mais oculta do que revela o verdadeiro
“eu”. Suas constatações foram baseadas em documentos produzidos durante
a chamada era vitoriana que muito diferem dos hodiernos caminhos de escancaramento da vida privada, em seus detalhes mais íntimos, pois eram altamente
codificados com regras explícitas acerca
do decoro a ser mantido, dos assuntos
considerados tabus, do grau de expansão
do eu conforme o leitor potencial. Mas
se o método psicanalítico é de difícil
24
absorção pelo historiador, sua proposta
metodológica não deixa de ser notável,
por abrir um campo de possibilidades de
análise das motivações subjetivas na elaboração da escrita de si e que, se levadas
em conta, podem contribuir para a crítica
do documento retirando-lhe uma postura ingênua ou desavisada num momento
em que mais do que nunca se instalou um
“apetite biográfico” (p.169).
Na mesma linha, Artières, em Arquivar a própria vida (1998), assinala na
escrita de si a presença de três elementos: a injunção social, a prática de arquivamento e a intenção autobiográfica. Em
todos eles, a intenção de tomar distância
em relação a si mesmo se impõe no diálogo entre o narrador e o leitor, no aludido jogo de ocultamento/revelação .
Como biografar
A tarefa de construção de biografias pelo historiador coloca em questão
direcionamentos a serem observados
desde a escolha do personagem, em função da sua atuação ou de qualidades que
possam estabelecer identificações projetivas importantes. Biografar indivíduos
vivos ou não? Qual o grau de exaustão
do “eu” que a biografia comporta? Como
biografar sem criar “tipos”? Como biografar sem cair nos elogios ou julgamentos?
Não há muito como eludir a forma narrativa e cronológica que permite
o acompanhamento da trajetória do personagem e o estabelecimento de “marcos
temporais entre acontecimentos e história individual”. Constitui, portanto, característica da biografia a narrativa que
deve levar em conta o recorte temporal
da história de uma vida (Abreu, 1998).
Tal constatação não implica o uso exclusivo do método discursivo, factual, centrado na existência individual.
Considerada por muitos historiadores como uma arte (Oreux, in Duby
et al.,1986), a biografia exige do pesquisador um cuidado que de resto não se
distancia daquele que é devido a qualquer outro tipo de discurso histórico, e
que caracteriza a disciplina histórica: a
compreensão, a aproximação do perso-
nagem até a impregnação como ponto
de saturação, ideal para que se possa escrever sobre ele, o trabalho crítico sobre
testemunhos diferentes e contraditórios,
para que se amplie o enfoque analítico
e se possam alcançar tanto aspectos desconhecidos de sua vida como ultrapassar
sua opacidade para seus contemporâneos
e mais próximos.
Entre histórias de vida individuais e prosopografias (notícias biográficas
individuais que se confrontam para que
mediante amostras se possam estabelecer
tipos, salientar traços comuns), o gênero
se mantém próximo da literatura e, por
isso mesmo, a solicitar atenção redobrada do historiador.
Da literatura têm sido incorporados técnicas e recursos estilísticos como
o flashback (Duby, 1995), elementos ficcionais mesclados à informação seguramente documentada, incorporação de
detalhes pitorescos e da vida cotidiana,
estilo cuidado, narrativa fluída, num diálogo com o hipotético leitor, inspirado
também pelo jornalismo. Nem é de se
desprezar a prática de deixar fluir a cons-
25
ciência do escritor na caracterização do
personagem visando à produção de um
efeito de realidade (Schmidt,1997). Aos
historiadores e preservadores da disciplina histórica, cabe a tarefa de eliminar a mescla entre biografia e romance,
de estabelecer referências documentais
e empíricas seguras, de preocupar-se
com a verdade ou as verdades, pelo uso
de “provavelmente”, “talvez”, “pode-se
presumir”, “acredita-se que” etc. (p. 10).
Em todos os autores, que vêm fazendo reflexões sobre o tema, persiste o
grande problema que é o de “desvendar
os múltiplos fios que ligam um indivíduo
ao seu contexto”, como foi mencionado,
seja para revelar dimensões de problemas da pesquisa não perceptíveis nos enfoques macroscópicos, seja na comprovação ou refutação de hipóteses.
A meu ver, trata-se de cultivar um
gênero que comporta, em primeiro lugar,
a sedução do historiador pelo personagem, por sua vida de alguma maneira
considerada excepcional e digna de ser o
centro de um estudo, por revelar aspectos
ainda não abordados pela historiografia
voltada para o macro, ou por permitir a
visualização da tensão entre indivíduo e
sociedade. Seja pela abordagem dos sentimentos, do inconsciente, da cultura, da
vida privada, do cotidiano ou, mais adequadamente, como “um locus no qual
uma incoerente e freqüentemente contraditória pluralidade de determinações
relacionais interagem”, como afirmou
Bourdieu em A ilusão biográfica (1976),
e que permitem alcançar o sujeito para
além de uma constância, a si mesmo verdadeiramente inatingível, para dar conta
de um sujeito fracionado e múltiplo, tal
como se apresenta aos olhos sensíveis do
historiador.
Esse direcionamento permite que
se busquem estabelecer as articulações
“entre vida pública e vida privada, entre
cotidiano e não-cotidiano, entre atos racionais e motivações irracionais“ (Schmidt, 1997). Eixos analíticos importantes
podem ser traçados então em função de
família, estudos, trabalho e militância.
Persiste ainda, todavia, a questão
ética que, independentemente das ameaças no âmbito da justiça, precisam ser
levadas em conta, quando o historiador
se apropria da memória do biografado,
expondo seus segredos, suas mazelas,
suas contradições.
Na mesma linha de reflexão, podese situar Franco Ferrarotti cujas reflexões
se dirigem para a abordagem estruturalista das relações entre indivíduo e sociedade nos estudos biográficos, afirmando
que “uma vida é uma prática que se apropria das relações sociais (as estruturas
sociais) as interioriza e as retransforma
em estruturas psicológicas por sua atividade de desestruturação-reestruturação”
(Histoire et histoires de vie, 1990).
Se o enquadramento nos parece excessivo, é bom salientar que o autor minimiza a rigidez ao apresentar a
vida humana como “síntese horizontal
de uma estrutura social”, mas recusa o
determinismo mecânico entre história
social e história de vida. Atribui ao sujeito um papel ativo ao insistir em que
“Longe de refletir o social, o indivíduo
se apropria dele, o mediatiza, filtra e
retraduz projetando-o em uma outra dimensão(...) , a de sua subjetividade, al-
26
cançando assim a definição do indivíduo
como síntese individualizada e ativa de
uma sociedade(Ferrarotti, 1990).
Deste ponto de vista, o relato biográfico
deixa de ser uma série de anedotas para
centrar-se na ação social do indivíduo, na
sua relação com a sociedade, análise que
sugere a partir de ancoragens antropológicas e sociológicas.
Nessa perspectiva, a biografia será
entendida como uma leitura do social no
qual se estabelecem relações entre um
indivíduo e o tempo sócio-histórico, articulando biografia e sociedade (Abreu,
1998 ). Esta é a principal ênfase da atual
releitura do gênero biográfico cujas diretrizes estão nas obras de Lejeune, Bourdieu e Le Goff.
Lejeune e o pacto
autobiográfico
As reflexões de Lejeune sobre o
estatuto da autobiografia como texto literário passam pela comparação entre
este gênero e a biografia e acabam por
ser úteis à historiografia, na medida em
que a teoria literária é chamada a integrar
uma relação transdisciplinar da História.
A questão central por ele abordada consiste na relação entre o autor e o
leitor num “contrato de leitura” também
denominado “pacto autobiográfico”.
Em análise bastante sofisticada das tramas presentes na elaboração do relato
autobiográfico, que incluem a relação
do narrador consigo mesmo enquanto
personagem, Lejeune chega a uma tipologia do gênero biográfico como “texto
referencial” que, por suas exigências no
campo da disciplina histórica, necessita
se submeter a uma prova de verificação.
Nela está presente não apenas a verossimilhança, “efeito do real”, assim como
a maior ancoragem possível ao real, que
lhe serve de referência. Como texto referencial inclui, portanto, uma “definição
do campo real visado e um enunciado de
modalidades e do grau de verossimilhança que o texto pretende” (1998, p.36).
Mas a principal contribuição de
Lejeune consiste no alerta sobre a relação de identidade que se estabelece entre
o autor e o biografado, implícita, inde-
terminada ou explícita como num ajuste
de contas. Em todos os casos, em maior
ou menor grau, o eu se torna o outro. É
este o pacto que esse estabelece nos textos literários de tipo autobiográfico, entre
o narrador e o personagem narrado e que
pode ser transposto para o terreno da biografia.
Na mesma direção, Bourdieu
(1996) irá alertar seus leitores sobre as
armadilhas do gênero, com a tônica analítica voltada, porém, para as relações
entre indivíduo e sociedade .
Bourdieu e o habitus
Tomarei como base as considerações de Bourdieu feitas sobre a “ilusão
biográfica” e apresentadas em Actes de
la Recherche en Sciences Sociales (1986,
p.69-72) e republicadas em Usos e abusos da História Oral, organizada por
Marieta de Morais Ferreira e Janaína
Amado (1996). Além disso, o diálogo
que com ele estabeleceu Giovanni Levi,
em Les usages de la biographie (1989),
publicado também no mesmo volume.
27
O núcleo de sua análise reside na
teoria da práxis construída em relação
aos campos , ou seja, os “domínios específicos da vida social”. Em suas diversas obras alerta para a inexistência de
uma “seqüência cronológica e lógica dos
acontecimentos e ocorrências da vida de
uma pessoa”, numa linha construtivista
que postula a linearidade progressiva e
a causalidade como construções a posteriori. Desde 1968, quando publicou o
Métier de Sociologue, com Passeron e
Chamboredon, Bourdieu já se ocupava
desse tema, que foi percorrendo ao longo de sua obra até chegar ao conceito de
ilusão biográfica, ao defender a idéia de
que o sentido de causalidade e sentido
coerente é algo atribuído às ações humanas. Se o sentido global do sujeito escapa até mesmo à sua autopercepção, resta
aos analistas recorrer à objetivação do
habitus que decorre da interiorização do
social pelo indivíduo, de modo estável,
porém sujeito a modificações.
Habitus se torna, então, um con-
ceito a ser operacionalizado na biografia,
na medida em que revela sistema de disposições socialmente constituídas que,
em seu constante movimento estruturante, está na origem e unifica as práticas
dos agentes sociais (Economia das trocas simbólicas, 1998). 2
As marcas distintivas estão presentes no nome, no biológico e nas ações dos
indivíduos, definindo trajetórias comuns
nos campos nos quais se insere. Sua presença como diretriz da pesquisa permite
situar os agentes sociais – os indivíduos
– socialmente, pela trajetória diacrônica
nos diversos campos. Tal procedimento
metodológico permite escapar à ilusão
biográfica pela construção de certos traços pertinentes, em termos de estratégias
e injunções ocorridas em cada campo e
que afetam diretamente os indivíduos, os
quais se movimentam pelos traços do habitus, sujeitos a relações de poder.
Se tais colocações de âmbito sociológico permitem uma sofisticação da
pesquisa, requerem do historiador uma
2 Para estas considerações sobre Bourdieu, vali-me sobretudo de sua interpretação por Montagner, 2007.
tomada de posição sobre o protagonismo
individual e o grau de autonomia dos sujeitos individuais, ou sua vulnerabilidade
diante das forças que operam nos campos
nos quais eles se movem, testemunho da
complexidade do trabalho de pesquisa.
Recorro aqui a Giovani Levi
(1996) que estabeleceu importante diálogo com Bourdieu em Usos da biografia
e afirma a “irredutibilidade dos indivíduos e de seus comportamentos a sistemas
normativos gerais”, embora aceite o estabelecimento da “superfície social” da
ação dos indivíduos. Ainda assim, há que
atentar para os elementos contraditórios,
a fragmentação dos tempos e dos ritmos
da vida dos indivíduos, pelos movimentos incessantes de retornos, idas e vindas
que ocorrem numa rede de relações nas
quais os indivíduos se definem.
Levi aproxima a teoria sociológica da valorização da ação individual ao
analisar o jogo entre indivíduo e grupo,
entre biografia e contexto, reconhecendo
a existência de determinações das quais
28
o indivíduo não consegue fugir, mas distingue um espaço de atuação individual,
que é o espaço da liberdade e que se traduz em escolhas, as quais, ao evidenciarem incoerências e conflitos, promovem
a mudança social.
Le Goff e a Nova História
Dele veio grande renovação do
gênero, com uma reflexão aprofundada
das condições da escrita de um estudo
biográfico sobre personagem relevante
para a história da França, por meio da
qual buscou compreender questões não
respondidas para o século XIII. Este trabalho constituiu-se numa reflexão sobre
a fabricação social, ou seja, as condições
de formação da memória coletiva, sobre
alguns aspectos do personagem biografado. Além disso, abordou a arquitetura de
sua construção com as dificuldades, os
limites e as especificidades. O resultado
final é a reconciliação da biografia com
a História que elege o indivíduo como
centro de relações sociais e estabelece
em lugar da linha, a rede e a interface dos
diversos planos.
Do ponto de vista teórico-metodológico, o expoente da terceira geração
dos Annales apontou as dificuldades de
cultivo do gênero aparentemente fácil e
mostrou como é possível fugir de abordagens “anacronicamente psicológicas”,
ou que utilizem com facilidade a noção
de mentalidades ou o recurso ao anedótico.
Não faz concessões ao afirmar que
os problemas enfrentados na escrita da
História são os mesmos encontrados na
elaboração de uma biografia cujo percurso compreende a proposição de um problema, a crítica das fontes, o tratamento
na duração longa o suficiente para comportar a dialética da continuidade e da
mudança, a tônica na explicação, o distanciamento do historiador em relação à
questão tratada (São Luis, 1999 p. 14).
Neste magistral trabalho encontrase a tradição historiográfica cujo ponto
de partida está na concepção de uma história global e que a partir daí considera
o indivíduo como “sujeito globalizante”,
em torno do qual se organiza todo o cam-
po da pesquisa” (p. 15), ainda que reconheça ser utópica a busca de um conhecimento integral do indivíduo: lacunas na
documentação, silêncios, descontinuidades, incoerências estão sempre presentes.
Dialogando com a literatura, vê
no procedimento biográfico a necessidade de produção de “efeitos do real”, que
aproximam o trabalho do historiador ao
do romancista, pois eles são obtidos pela
escrita, pelo estilo e pelo trabalho com as
fontes (p.16). Resguarda, assim, o historiador das possíveis tentações .
Os aportes dos Annales são refinados pelo diálogo que estabelece com
Bourdieu, Passeron e Giovani Levi: endossa a tese da “ilusão biográfica” e vai
mais longe, apontando o perigo da “utopia biográfica” que nada mais seria que o
empenho em não deixar escapar nenhum
detalhe insignificante (p.18). Seguindo
os passos de Levi (1996), alerta para a
armadilha da “cronologia ordenada”, da
“personalidade coerente e estável, das
ações sem inércia e das decisões sem incertezas” (p.18), ainda mais em se tratan-
29
do de seu biografado, cuja vida se faz
revestir de brumas .
Além da fuga dessa ilusão, foge
também dos determinismos afirmando
que “São Luís não vai imperturbavelmente em direção a seu destino de rei santo,
nas condições do século XIII e segundo
os modelos dominantes de seu tempo.
Ele se constrói a si mesmo e constrói sua
época tanto quanto é construído por ela.
E essa construção é feita de acasos, hesitações, escolhas” (1999, p.18).
Mas o mais significativo de suas
posições teórico-metodológicas consiste
na constante busca da afirmação da liberdade individual manifesta nas escolhas
realizadas pelos indivíduos diante de
possibilidades. Assim como Levi (1996),
postula a liberdade de que dispõem os
agentes diante de sistemas normativos
que também apresentam contradições.
Nos interstícios, as escolhas individuais
(p.19). Recorre a Bourdieu em Coisas ditas (2004), para afirmar que o indivíduo
só existe numa rede de relações sociais
diversificadas e esta diversidade lhe permite também desenvolver seu jogo.
Uma última questão: a relação do
biografado com o tempo apresenta perspectivas próprias de cronologia e periodização, ao postular a articulação entre
o tempo da biografia e os tempos da
História em seus diferentes ritmos. Relembrando Marc Bloch, afirma que ”os
homens são mais filhos de seu tempo do
que de seus pais” (1997). E encerra com
a tese de Borges: “Um homem não está
verdadeiramente morto senão quando o
último homem que o conheceu está também morto” (p.24-25).
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31
Prestes, os militares
e o PCB
ARTIGOS
Geraldo Lesbat Cavagnari Filho
Comunicação apresentada por Geraldo Lesbat Cavagnari Filho, coronel da reserva do Exército e pesquisador do Núcleo de Estudos Estratégicos da Universidade
Estadual de Campinas – NEE/ UNICAMP, no seminário Centenário de Luís Carlos
Prestes, na sessão de 07/05/1998, intitulada Prestes, os militares e o PCB. A mesa
contou com a participação do Prof. Gildo Marçal Brandão (USP) e de Salomão Malina, do PPS. A moderação foi feita pelo Prof. José Luís Beired, da UNESP/ Assis.
Inicialmente agradeço ao CEDEM a oportunidade que está me proporcionando
para participar deste evento. Gostaria de esclarecer, também, que nem Luiz Carlos
Prestes, nem o Partido Comunista Brasileiro são meus objetos de estudo. Aliás, nunca
foram.
Ouvi falar de Prestes pela primeira vez em 1945, logo após a queda de Getúlio
Vargas. Mas, só em 1948, é que adquiri maior conhecimento sobre ele – quando li sua
biografia, escrita por Jorge Amado. E, desde então, não só ele, mas também os “tenen-
32
tes” passaram a ser para mim objeto de
curiosidade histórica. A partir daí, passei
a acompanhar a trajetória política deles –
de Prestes e dos “tenentes”.
Em 1965, servindo no CPOR de
Curitiba no posto de capitão, habitueime a compulsar com relativa freqüência
os boletins do Exército, editados pelo Estado-Maior do Exército, não para atender
a uma necessidade burocrática, mas para
satisfazer minha curiosidade histórica
pelos fatos que envolveram militares no
processo de insurgência desencadeado no
início da década de 1920 e que se prolongou até a implantação do Estado Novo.
Os boletins do Exército que mais
me interessaram foram aqueles que registram fatos referentes aos “tenentes”
– insubordinações, revoltas, deserções,
prisões etc. Todos os envolvidos na insurgência, em algum momento, foram
declarados desertores e chamados de baderneiros, de traidores da pátria pelo governo e pelas Forças Armadas. E quem
são esses desertores e traidores da pátria,
na década de 1920? Menciono apenas os
que mais se destacaram: Prestes, Eduar-
do Gomes, Siqueira Campos, os irmãos
Távora (Joaquim e Juarez), João Alberto e Cordeiro de Farias. Com exceção de
Eduardo Gomes e Joaquim Távora, todos
eles participaram da Coluna Prestes.
É claro que o meu interesse histórico
pelo “tenentismo”, a Coluna Prestes, a
Revolução de 30, 1935 e o Estado Novo
não se limitou à consulta a tais boletins.
Com o tempo esse interesse foi-se beneficiando de leituras mais profundas sobre
esses acontecimentos – principalmente
na década de 1970.
Jamais tive algum contato pessoal
com Luiz Carlos Prestes. Vim a conhecêlo na UNICAMP, no final da década de
1980, quando ele prestava depoimento
no Arquivo Edgard Leuenroth. Foi a única vez que o vi pessoalmente. Em todos
esses anos, o que mais me impressionou
nele – além do seu caráter, da sua honestidade, da sua coerência política – foi a
sua postura, a manutenção de uma postura adquirida no Colégio Militar. Para
mim, Prestes nunca deixou de ser um
militar.
Nesta exposição, não pretendo
biografá-lo. Vou apenas centrá-la em três
fatos históricos que estão ligados a Luiz
Carlos Prestes: a Coluna, 1935 e a Guerra Fria.
A historiografia brasileira tem privilegiado mais a dimensão política que a
dimensão militar da Coluna Prestes. Até
hoje, não foi feito nenhum estudo dessa
dimensão. É verdade que não houve por
parte do Partido Comunista, nem da esquerda brasileira, assim como do meio
acadêmico, preocupação em orientar o
estudo também para a dimensão militar.
O Exército brasileiro, por sua vez, procurou sempre desqualificá-la como seu
objeto de estudo – assim como fez com
Canudos e Contestado. Por quê? Porque
ao estudar tais fatos históricos, teria de
obrigatoriamente inseri-los na memória
militar e de reconhecer sua incapacidade
para lidar com conflitos de baixa intensidade.
Foram necessárias várias expedições militares para aniquilar Canudos. Aniquilar
não no sentido consagrado por Clausewitz – de retirar do inimigo a capacidade de reagir de modo organizado e de
33
prosseguir na guerra –, mas no sentido literal. Ou seja: eliminar todos os homens
válidos, preservando apenas os idosos,
as mulheres e as crianças. Na Guerra do
Contestado ocorreu o mesmo, só que em
menor escala e com menos violência.
Os estudos sobre Canudos e o
Contestado, realizados no âmbito militar, têm sido até o presente medíocres.
A experiência militar adquirida nesses
conflitos não foi aproveitada, no momento devido, para se repensar a doutrina e
a organização militares, tendo em vista
futuros conflitos de baixa intensidade.
Essa experiência não produziu nenhuma
modificação substantiva no Exército. Ele
manteve-se inapto para dar respostas eficazes a futuros conflitos de tal natureza.
Se alguns estudos foram feitos sobre Canudos e o Contestado, nenhum estudo sobre a Coluna Prestes, por sua vez,
foi realizado no âmbito militar. Embora
as Forças Armadas, ou mais precisamente o Exército, reconheçam aqueles dois
conflitos armados como fatos históricos
– não há dúvida, desagradáveis na visão
militar –, o mesmo não ocorre com a Co-
luna. Por quê? Porque, apesar de toda a
incompetência revelada na conduta das
operações militares, o Exército foi o
vencedor em Canudos e no Contestado,
e esse resultado não se confirmou contra
a Coluna Prestes. Ou melhor, a história
militar brasileira não registra as derrotas
sofridas pelas Forças Armadas.
É verdade que a única derrota sofrida pelo Exército brasileiro em combates de baixa intensidade – ou seja, em
operações contra irregulares – foi quando se confrontou com a Coluna Prestes.
Tem sido um erro mantê-la ausente da
memória militar. É uma pena. Quanta
experiência desperdiçada, que poderia
orientar revisões profundas na doutrina e
na organização militares. Assim, o Exército viu-se obrigado, meio século após,
a buscar nas experiências estrangeiras
(francesa e norte-americana) subsídios
para sua doutrina e sua organização no
combate a irregulares, durante a Guerra
Fria.
A rejeição de Luiz Carlos Prestes
pelas Forças Armadas brasileiras não se
apresentou durante a ação da Coluna,
nem quando da sua dissolução. Após a Intentona de 1935 é que essa rejeição viria
a se apresentar com virulência crescente. O levante de 1935 eliminou qualquer
possibilidade de essas forças reconhecerem em Prestes o chefe militar vitorioso,
o brilhante estrategista militar que impôs
a elas a única derrota na história militar
brasileira.
A chamada Intentona de 1935 é o
segundo fato histórico ligado a Luiz Carlos Prestes. Não pretendo emitir qualquer
opinião a respeito de sua concepção e de
seu desencadeamento. Pretendo apenas
destacar sua conseqüência mais significativa, operacionalizada com competência por Góes Monteiro.
As Forças Armadas (Marinha e
Exército) estavam submetidas a um processo de desgaste desde 1922 -– desde
o levante do Forte de Copacabana –, enfrentaram 24, 30 e 32, antes de culminar
em 35. Em todo esse período, os militares
tiveram presença política significativa,
mantendo um clima indesejável de indisciplina, de afronta à hierarquia. Foi um
período de instabilidade crônica. O retor-
34
no da estabilidade político-institucional,
condição necessária para o desenvolvimento do País, só seria possível, segundo
Góes Monteiro, se o Estado dispusesse
de Forças Armadas disciplinadas.
A dificuldade para impor o respeito aos princípios da hierarquia e da disciplina só foi superada em 1935. Góes
Monteiro entendeu que essa dificuldade
só seria superada se fosse possível unir as
Forças Armadas em torno de uma causa
comum – e 35 proporcionou essa causa,
a do anticomunismo. O anticomunismo
induziu à reintrodução de tais princípios
nas Forças Armadas. Ou seja, 35 garantiu a consolidação da unidade militar. A
partir daí, então, elas estariam aptas para
sustentar um projeto maior – o Estado
Novo.
O anticomunismo alastrou-se no
meio militar porque grande parte – diria maioria esmagadora – dos militares
não era comunista. Mas ele seria triunfante em 1964 mesmo com a presença
significativa de militares comunistas –
cujo contingente de militantes superou
de muito o de 1935. Daí o paradoxo: a
presença comunista nas Forças Armadas
foi mais significativa em 1964 que em
1935.
A Guerra Fria criou o terceiro fato:
a busca da decisão no âmbito militar, ansiosamente perseguida pelos anticomunistas. O conflito Leste-Oeste induziu à
criação de um ambiente favorável a eles:
a consolidação da hegemonia dos Estados Unidos na América Latina, o consenso ideológico em torno do anticomunismo e o alinhamento estratégico dos
países latino-americanos com os EUA.
Embora na clandestinidade desde
1947 – e enfrentando dificuldades de toda
a ordem –, o PCB conseguiu manter uma
presença significativa no meio militar. O engajamento dos militares comunistas
em campanhas nacionalistas e o controle, por algum tempo, do Clube Militar
não foram suficientes para neutralizar a
eficiente direita militar. De certo modo,
diria que a esquerda militar – majoritariamente comunista – não foi competente, durante o Governo João Goulart, no
estabelecimento do controle efetivo das
Forças Armadas. E, no seu esforço para
alcançá-lo, reproduziu em maior escala,
mas sem sucesso, o que tentara em 1935:
solapar a hierarquia e a disciplina no âmbito das Forças Armadas.
A partir de 1964, na visão militar,
a postura ideológica do Brasil no conflito
Leste-Oeste era inequívoca – anticomunista. Na frente externa, manteve-se alinhado com os Estados Unidos contra o
expansionismo soviético. Na frente interna, agindo com meios próprios, buscava
o aniquilamento da subversão comunista
– ou seja, do “inimigo interno”. Como
a direita militar rotulava de “comunista” toda a esquerda, por extensão, toda a
oposição ao regime autoritário passou a
ser considerada “comunista”. É claro que
o anticomunismo recrudesceu no âmbito
militar, durante o autoritarismo.
Hoje, já com 15 anos de regime
democrático e com 10 anos sem guerra
fria, espera-se que, com o tempo, Prestes
venha a ser recuperado para a memória
militar. Prestes é reconhecido como um
dos personagens mais destacados da história do Brasil, mas continua ainda estigmatizado na história militar brasileira.
35
Não há dúvida de que o tempo apagará
essa marca infamante. Após sua morte, já
lhe foi legalmente concedida a patente de
coronel do Exército. Creio que deve ser o
início de uma correção histórica.
O reconhecimento de seu protagonismo destacado na história decorre
tanto de seus acertos como de seus erros. Mas, de qualquer modo, Luiz Carlos
Prestes “marcou a história do Brasil mais
do que qualquer outro”. Do ponto de vista militar, comandou “a primeira longa
marcha do século XX, uma das mais fantásticas proezas militares (guerrilheira
em sua concepção e execução) de que se
teve notícia até que Mao Tsé-Tung, anos
depois, assombrou o Oriente com a sua
longa marcha” (O Estado de S. Paulo, 8
de março de 1990).
36
A crítica (materialista)
do mundo (descontínuo)
das coisas - micrologias
ARTIGOS
Sobre Rua de mão única
(Benjamin), Vestígios (Bloch)
e Os empregados (Kracauer)
Carlos Eduardo Jordão Machado1
Walter Benjamin redigiu entre 1923 e 1926 um conjunto de aforismos intitulado
Einbahnstrasse [Rua de mão única], que apareceu em livro em 1928, tendo chegado a
publicar alguns fragmentos no Frankfurter Zeitung, com a mediação de Siegfried Kracauer, que era, na ocasião, editor do caderno cultural do jornal. O livro é registro de um
momento decisivo na trajetória intelectual e afetiva de Benjamin, é dedicado a Asja
Lacis, uma “bolchevique de Riga”. Posso afirmar sem exagero que o projeto das Passages já está esboçado em Einbahnstrasse, sobretudo em relação ao método expositivo,
à “montagem literária”. Como afirma em Passages, o seu trabalho “deve desenvolver
ao máximo grau a arte de citar sem aspas. A sua teoria está intimamente relacionada
37
à da montagem” (1983, p.572). Em outro trecho dessa mesma obra, Benjamin
enfatiza: “método deste trabalho: montagem literária. Não tenho nada a dizer. Só
a mostrar” (1983, p.574).2 Na Obra das
passagens, trata-se de aplicar a “montagem literária” à história, ao século XIX,
à cidade de Paris do Segundo Império,
como sendo a forma originária (Urform)
da modernidade, na Rua de mão única,
ao presente. Certamente é uma tentativa
inicial, uma obra experimental, sem as
dimensões monumentais e a complexidade do projeto das Passages.
A “montagem literária” do pequeno livro permite reunir uma multiplicidade de formas de texto aparentemente
disparatadas, um caleidoscópio, são citações de várias procedências: cartazes,
relatos de sonhos, locais, ambientes,
axiomas, fábulas, recordações, objetos,
provérbios e modos de fala, utensílios
domésticos, brinquedos infantis, moradias, embaixadas, roupas e apetrechos
de vestuário, plantas, locais de trabalho,
panoramas, provocações sobre os acadêmicos e seus “métodos críticos”, o hábito
alemão de beber cerveja; mendigos, ambulantes, proletários e esnobes e gente
simples povoam seus aforismos; coleção
de selos das mais variadas procedências;
ruas e gentes de várias cidades como Paris, Berlim, Marselha, Sevilha, Moscou,
Riga etc; considerações sobre a infância
e as escolas, a disciplina prussiana, o militarismo, a luta de classes; coleções de
antigüidades, mapas, achados e perdidos; o poeta vienense Karl Kraus e vários personagens literários; igrejas e sinagogas, citações da Bíblia e do Talmud,
museus, parques de diversões, hospitais,
asilos, restaurantes, postos de gasolina
e de prontos-socorros, quinquilharias,
máscaras, agência de apostas, quiromantes etc. etc. Aqui me interessa destacar
o diagnóstico que traça sobre o presente
alemão mais próximo: “Viagem através
da inflação alemã”.
É o “Panorama imperial”, uma
composição dividida em quatorze partes.
Começa extraindo conseqüências críticas dos modos de fala [Redewendungen]
do burguês alemão nos quais evidencia
uma espécie de amálgama de “estupidez
e covardia” [Dummheit und Feigheit],
de fatalismo, já que “assim não pode
mais continuar”. Com o fim da Primeira
Guerra Mundial, a situação econômica
do homem médio mudou drasticamente, colocando por terra a relativa estabilidade que o favorecia, criando uma
nova situação, mas, observa, “já antes
da guerra havia camadas para as quais as
relações estabilizadas eram a miséria estabilizada” (p.94; p.20). Com a inflação,
se configura-se uma nova ratio, aquela
que passa a contar com “os fenômenos
de declínio [Erscheinungen des Verfalls]
como o puramente estável” (p.95; p.20).
A contrapartida é dirigir a atenção para o
extraordinário, na expectativa de um milagre, já que assim não pode continuar,
senão lhe resta apenas o “aniquilamento”
[Vernichtung]. Uma situação paradoxal
que engendra um amesquinhamento: “as
pessoas só têm em mente o mais estreito
interesse privado quando agem, mas ao
mesmo tempo são determinadas ... pelos
instintos da massa. E mais do que nunca
os instintos da massa se tornaram desatinados e alheios [fremd] à vida” (p.95;
38
p.21).3 Um estado em que o indivíduo se
amesquinha, centrado no seu “próprio
inferior bem-estar” e “a diversidade de
alvos individuais se torna irrelevante”.
Algo semelhante ao que Kracauer caracteriza como aquele processo no qual
a massa se transforma em ornamento4,
anulando as características individuais.
Nas palavras de Benjamin: “De modo
que nela a imagem da estupidez se completa: insegurança, perversão mesmo, dos
instintos vitalmente importantes, e impotência, declínio mesmo, do intelecto”. E
completa: “É a disposição da totalidade
dos burgueses alemães” (p.95-6; p.21).
No centro dos interesses está o dinheiro.
É a miséria estabilizada: “É impossível
viver em uma grande cidade alemã, na
qual a fome força os mais miseráveis a
viver das notas com as quais os passantes procuram cobrir uma nudez que os
fere”. Uma situação que lembra a sordidez retratada em um quadro de Otto Dix,
no qual um mutilado de guerra é ignorado pelos passantes, sem ser respeitado
nem mesmo por um vira-lata que urina
sobre sua perna aleijada.
Outro modo de fala: “pobreza não
é desonra” ou “quem não trabalha não
come”. Benjamim inverte o princípio de
Adam Smith, no qual haveria uma “mão
invisível” a regular no mercado os apetites egoístas, para denunciar a falsidade
do provérbio: “Mas é a desonra, sim, essa
penúria, da qual milhões já nascem dentro, e em que são enredados centenas de
milhares, que empobrecem. Sujeira e miséria crescem como muros, obra de mãos
invisíveis, em torno deles” (p.97; p.22).
Uma calamidade exposta aos olhos de
todos, mas cujas causas reais permanecem obscuras, mesmo que sejam alardeadas diariamente pela imprensa. A falta
de clareza sobre as potências efetivas da
situação de crise gerada pela inflação é
ilustrada ironicamente por um francês
espirituoso que diz: “Nos casos mais raros, um alemão terá clareza sobre si. Se
alguma vez tiver clareza, não o dirá. Se o
disser, não se fará compreensível” (p.97;
p.23). E conclui Benjamin: “o mais europeu de todos os bens, aquela ironia mais
ou menos clara com que a vida do indivíduo pretende transcorrer em disparida-
de com a existência de toda e qualquer
comunidade em que ele esteja encravado, está inteiramente perdido para os alemães” (p.98; p.23).
O diálogo desaparece entre as
pessoas, no lugar da consideração pelo
outro, impõe-se um “outro” de caráter
impessoal: o dinheiro, que se torna o objeto do pensamento e da fala (p.98; p.23).
Uma visão conformista, através da qual
o indivíduo nada mais faz do que justificar a sua permanência, a sua atividade
e sua participação “nesse caos” (p.98;
p.23). É uma cegueira [Verblendung] geral. Benjamin não deixa de relevar de que
modo teorias da vida e visões de mundo
como sanção de uma situação privada
“totalmente insignificante” (p.98; p.24).
E completa: “Por isso mesmo o ar está
também tão cheio de ilusões, miragens
de um futuro cultural que apesar de tudo
irrompe florescente da noite para o dia,
porque cada qual se compromete com
as ilusões óticas de seu ponto de vista
isolado”(p.98-9; p.24). Perderam o contorno da pessoa humana e o calor das
coisas desapareceu: “uma pesada cortina
39
cobre o céu da Alemanha”. Dos homens
a seu lado não se deve esperar nenhuma
ajuda. É a descrição crítica de uma situação social de decomposição, de desaparecimento de qualquer vínculo entre os
indivíduos e a proliferação generalizada
de um ímpeto evasivo, fértil de “falsa
consciência”, conforme Kracauer analisa
em Os empregados, na figura dos “quartéis do prazer” e do “asilo para os sem
teto”.5
O livro de Benjamin obteve uma
acolhida entusiástica tanto de Ernst Bloch como de Kracauer. Este último dedicou-lhe um ensaio, “Sobre os escritos de
Walter Benjamin”, publicado no Frankfurter Zeitung, em julho de 1928, no qual
saúda não só seu magistral Origens do
drama barroco alemão como também
Einbahnstrasse que foram publicados no
mesmo ano (1928). Para Kracauer, este
último, é “uma coleção de aforismos que,
em uma rede de vias pouco conhecidas,
se ramificam ou confluem nos fenômenos
da vida contemporânea”.6 Segundo ele,
Benjamin “quer despertar o mundo de
seu sonho” ( 1977-p.253) com seus afo-
rismos radicais. São: “relatos curiosos de
sonhos; cenas de infância e inúmeros medalhões dedicados a lugares exemplares
de improvisação (como mercados, portos etc.), cujos contornos delicados lembram baixo-relevos; declarações sobre o
amor, a arte, livros e política, muitas das
quais registram às vezes descobertas surpreendentes da meditação” (id). Destaca
a importância central do capítulo “Panorama imperial”, isto é, sua tentativa
de caracterizar a inflação na Alemanha.
Seu alvo é claro: mostrar a “estrutura
descontínua do mundo”; os aforismos
anunciam “o fim da era burguesa”. Com
pleno conhecimento dos propósitos intelectuais de Benjamin, traça um paralelo
entre o conjunto de aforismos e o livro
sobre o drama barroco, só não utiliza,
como faço aqui, a definição deles como
“montagem literária”: “O método de dissociar de modo direto das unidades vividas – que ele aplica em seu livro do
barroco – assume necessariamente – se
aplicado ao mundo de hoje – um significado explosivo, se não revolucionário”.
E chama atenção sobre a novidade do
método expositivo do livro, sobretudo
em relação ao próprio desenvolvimento
intelectual de Benjamin, o paralelo com
o seu próprio desenvolvimento intelectual é evidente, basta pensar no ensaio de
1927 – “O ornamento da massa”: “o livro se diferencia dos trabalhos anteriores
pelo seu materialismo particular”. Mais
do que isso, ao dirigir a atenção ao que
aparentemente é sem importância, aos
dejetos [Abfälle]. Desse modo, a dialética das essências – o que me parece decisivo –, segundo Kracauer, “assume uma
aparência estética”. É aquele lugar privilegiado, conforme formula Benjamin em
seu livro sobre o drama barroco, “entre o
pesquisador e o artista”. Um tipo de pensamento que caiu no esquecimento desde
o advento do idealismo. Um “materialismo particular” capaz de realizar a crítica
do mundo das coisas.
Bloch publicou no início de agosto de 1928 A forma de revista na filosofia [Revueform], incluído posteriormente
em Erbschaft dieser Zeit, 1935 (Herança deste tempo).7 Enquanto Kracauer
destaca o “materialismo particular” dos
40
aforismos e de que modo a “dialética
das essências” assume uma “aparência
estética”, Bloch estabelece uma relação
direta entre sua forma de escrita e o surrealismo, “é o surrealismo pensante”.
O conjunto de aforismos é um exemplo
do que denomina “montagem mediata”,
não é uma mera sucessão de fragmentos
extraídos arbitrariamente da realidade
sem conexão entre si, mas um modo de
reflexão. Não é o mero “relaxamento”
[Lockerung], mas uma forma “mediata”,
como forma aberta, involuntária, “mescla de fragmentos”. Desse ponto de vista, segundo Bloch, a primeira do gênero. Ele tira partido de coisas acessórias,
vulgares, de segunda mão e radicaliza
filosoficamente a descoberta surrealista
de tornar o século XIX imediatamente
observável – o passado no presente. Nos
seus termos: “Seu eu está bem próximo,
mas transformando-se, na verdade são
muitos eus, quase que cada frase é um recomeço, uma nova maneira de tratar outra coisa. O livro utiliza meios extremamente modernos, com graça tardia, para
os conteúdos freqüentemente isolados e
gastos. Sua forma é uma rua, de uma sucessão de casas e lojas, de onde expõe as
ocorrências” (EZ, 1985 - p.368). É uma
“revista” composta de vários quadros.
Diferentemente da forma quase
lacônica de se expressar, muitas vezes
até comedida, mas incisiva de Kracauer,
Bloch, em contrapartida, se expressa de
forma próxima da loquacidade,8 rica de
imagens, “fabulante”, quase que se apropria do modo expositivo dos aforismos,
da “montagem mediata” de Benjamin.
Continua: “Os novos aspectos do ‘improviso’ não faltam na mão esquerda.
Estas ações tornam-se filosóficas em
Benjamin, enquanto forma, interrupção,
improvisação, no súbito olhar em diagonal que quer alcançar os detalhes e
os fragmentos e não um ‘sistema’” (EZ,
1985, p.369). A recusa de um sistema filosófico tradicional, a escrita que se expressa mais por meio de imagens do que
por meio de conceitos, esse caráter quase
que “a-lógico” (Adorno), é uma característica comum na produção teórica de
Benjamin, Kracauer e Bloch, nesses anos
da chamada República de Weimar, sem
perder de vista a diversidade entre eles.
A “revue” é uma forma “aberta”, é uma
alternativa ao sistema filosófico tradicional, “fechado”. Nas palavras de Bloch:
A sentença, o preceito, o diálogo,
o tratado foram sempre formas filosóficas anteriores ao sistema, bem
antes dos sistemas modernos. Hoje
o sistema se retira com o princípio
racional a priori da burguesia... Os
sistemas fechados desapareceram
ao mesmo tempo que o cálculo fechado e abstrato da burguesia, na
mesma medida em que Nietzsche
pode chamar o sistema de uma vontade de ‘má fé’ [Unehrlichkeit]! É
por isso que as impressões inquiridoras e questionadoras de Simmel
encontram seu lugar ( EZ, 1985,
p.369).
Em 1930 é publicado o livro Spuren [Vestígios] de Ernst Bloch. Uma coleção de pequenas narrativas, como o
próprio Bloch define o livro: uma “narrativa de narrativas”.9 Um conglomerado
de contos de fada, fábulas, lendas, provérbios, conversas e citações das mais
41
variadas procedências, ao lado de uma
especulação incomum que busca captar
os elementos anticapitalistas e utópicos
presentes nesse universo pré-moderno,
não-contemporâneo, capaz de lançar luz
na “obscuridade do instante vivido” e de
sugerir respostas à “figura da questão inconstruível” – usando as expressões de
O espírito da Utopia. São fábulas germânicas, Märchen (contos de fada) dos
irmãos Grimm a Ludwig Tieck; Kalendergeschichten [histórias de calendário]
de Johann Peter Hebel; romances de folhetim (Kolportage); romances policiais;
lendas chassídicas do Leste europeu;
contos russos e chineses; histórias de Mil
e uma noites; e da Odisséia de Homero
para não falar, e nesse ponto muito próximo de Walter Benjamin, da literatura
surrealista, em suma, uma “montagem
mediata” – conforme a terminologia de
Herança deste tempo. Sem forçar a mão,
posso afirmar que se trata de uma das
obras-primas da chamada República de
Weimar.
O livro é dividido, além da introdução, em quatro partes: lugar, destino,
existência e coisas. Na Introdução, Bloch
deixa claro seu propósito: “Resumindo, é
bom também pensar fabulando”[fabelnd
zu denken].10 O caso possui um em-si, que
só é apreendido por meio de seus vestígios, pequenos testemunhos secundários,
peças minúsculas, formando uma micrologia particular. São historietas desse
tipo, isto é, que são não apenas narradas,
mas são contadas as horas quando suas
notas foram soadas e como elas entraram
pelas orelhas, nos deixando a pergunta:
“para onde elas foram” (ibid). Uma nota,
uma advertência já presente nos pequenos acontecimentos como exemplos e
pistas, vestígios, indicando um mais e
um menos que só podem ser percebidos
por meio dessas histórias. É um “dejeto”
[Abfall] de coisas passadas, em lugares
diferentes, que não pode ser esquecido –
e em se tratando de dejetos, há hoje uma
abundância deles (p.17). Trata-se de ler
vestígios e as diferentes seções do livro
se entrecruzam na transversalidade dessas pistas. Ao encontrá-las somos tomados por um choque.
A proximidade com os propósitos de Rua
de mão única – tirar proveito dos dejetos
(Abfälle) da história para decifrar o presente, o trabalho micrológico e o uso da
montagem (mediata), citações, conversas e, sobretudo, o pensar “surrealista”,
o choque – salta aos olhos. Procedimentos experimentais de texto e de modos
de análise que estão também presentes
na “literatura sociológica”11 de Kracauer
daqueles anos. Mas a peculiaridade de
Bloch reside no seu pensar fabulando. O
que significa isto?
Na secção “Cair no agora” [Fall
ins Jetzt], Bloch narra uma historieta judaica do Leste da Europa. Seu final soa
como uma piada (Witz) e mostra que “o
poço (Grube) é nosso agora” (p.98). Resumindo a narrativa: um grupo de judeus
conversava, numa Sinagoga de uma cidadela, e começou uma espécie de jogo:
cada um deveria se expressar sobre o que
desejaria caso viesse um anjo. O rabino
disse que ficaria contente se ele lhe aliviasse a sua tosse; o segundo falou “eu
gostaria que minha filha se casasse”, e
o terceiro, interrompendo, retrucou, eu
não gostaria de ter uma filha, mas um fi-
42
lho para que cuidasse de meu negócio.
Por último, o rabino se voltou para um
mendigo que se encontrava desde o dia
anterior sentado em um banco mais atrás
deles e lhe perguntou: “O que gostaria
de desejar, meu caro?” O mendigo lhe
respondeu que gostaria de ser um grande
rei que tivesse um vasto país e que em
cada cidade possuísse um palácio como
residência revestida de ônix, sândalo e
mármore, onde se sentaria no trono e seria temido pelo seus inimigos e amado
pelo povo como o rei Salomão. Mas que,
infelizmente, acrescentou – mudando a
forma condicional do subjuntivo para o
tempo verbal do presente do indicativo –
“na guerra não tenho a sorte de Salomão”
(p.98). E continuou sua fala, meus inimigos se sublevam, meu exército é derrotado, queimando as cidades e os bosques e
escuto nas ruas a algazarra do povo a clamar pelo meu sangue e eu deixo tudo de
lado até mesmo minha camisa e vim pela
estrada afora, passando pelos bosques e
pradarias, vendo o meu país em chamas,
caminho durante dez dias, até chegar
num lugar em que ninguém me conhece,
fui salvo, e conclui: “desde ontem à noite
me encontro aqui”(p.99 – grifo do autor).
Todos ficaram estupefatos com a narrativa do mendigo. O rabino lhe disse, o que
adiantaria todo aquele poder e riqueza se
ele logo perderia tudo. O mendigo lhe
respondeu que ficaria muito contente se
tivesse pelo menos uma camisa. Todos riram e lhe presentearam com uma camisa.
Bloch comenta: “este curioso agora como
fim ou o fim do agora na palavra: desde
ontem à noite me encontro aqui, esta ruptura do ser aqui ao sair do sonho. Por meio
de uma transição árdua comunicada lingüisticamente, na qual o mendigo começa
contando a partir da forma desiderativa,
passa do presente histórico subitamente
ao presente efetivo. O ouvinte é tomado
por um certo estremecimento ao aterrizar
lá onde ele se encontra; nenhum filho para
assumir o negócio” (p.99). Aqui se deve
prestar atenção à sutileza da mudança de
tempo verbal, que é justamente a capacidade de ler um vestígio que se manifesta
na estranha forma do que é narrado que
retorna ao presente real – uma “queda no
agora”.
Como é o “Reverso das coisas”?
Como se lê em uma outra secção do livro. A questão poderia ser formulada por
Berkely, que para o homem atual representaria uma condição humana primitiva,
ingênua. As coisas são exatamente como
se nos apresentam diante dos olhos? De
que modo a sensação se torna uma propriedade das coisas? A rosa é vermelha
e no entanto é rosa. O que para o realismo ingênuo de uma criança é quase um
mistério. O que fazem as coisas em nossa ausência, quando lhes damos as costas? Aqui, Bloch recorre a um conto de
fada, a um trecho de Simbad, o marujo
e o tema de seu infortúnio, demarcando
a face revertida das coisas e a sua vida
própria “irracional”, além do seu uso
habitual: Simbad sofre um naufrágio, e
juntamente com outros sobreviventes, se
refugia em uma pequena ilha repleta de
árvores frutíferas, mel, coqueiros, pássaros, caça abundante e com uma fonte
de água potável no centro da mata. Mas
quando à noitinha os sobreviventes acendem uma fogueira para assar a caça, o
chão começa a tremer e as árvores a cair
43
em pedaços: “a ilha era o lombo de um
polvo (Kraken) gigantesco”(p174).
A sutileza do gosto, a sensibilidade para a minúcia é ilustrada por meio
de uma velha lenda chinesa, na verdade
trata-se de uma micrologia: “comer minuciosamente azeitonas” (p.170-71). Na
velha Nankin, um grupo de jovens escritores se reunia duas vezes por ano, cada
um saboreava calmamente três azeitonas. Em seguida eram escolhidas mais
azeitonas que eram alinhavadas em um
pequeno tordo (Krammetsvogel), este era
colocado em seguida dentro de uma perdiz, esta dentro de um pato, este dentro
de um ganso, o ganso dentro de um peru,
o peru dentro de um leitão, este dentro
de um carneiro, o carneiro dentro de uma
vitela e esta, finalmente, dentro de um
boi. Todo este conjunto espetacular era
cozido lentamente e com muito cuidado.
Depois se abria o boi, retirava-se a vitela, o carneiro, o leitão, o peru, o ganso,
o pato, a perdiz e espetava em cada um,
duas azeitonas do tordo. Quando saboreavam em silêncio as azeitonas, um deles
que mastigava lentamente a iguaria na
ponta da língua, olhando para o teto –
quebrando o silêncio –, disse: “Mal posso supor que eu esteja errado, me parece
que o peru junto desta azeitona não estava inteiramente fresco” (p170). Apesar
de ter quebrado o silêncio que acompanhava a refeição, foi elogiado por todos
por sua ponta da língua apurada, por seu
paladar que não se deixa enganar. Bloch ressalta a questão da sutileza implícita nessa história chinesa “micrológica”:
capaz de ressaltar o mais importante das
muitas coisas importantes que existem
no mundo. Não se trata apenas de comer
azeitonas, mas minuciosamente.
Poderíamos enumerar muitas outras narrativas desse caleidoscópio de
narrativas como os temas da “separação”
(p.72), da “reclusão”(Verborgenheit)”(p.
121), da “sedução” (p.179), todos de inspiração kierkegaardiana ou mesmo aquelas em que retoma no “Tema da magia
branca”, como se fosse um alquimista, a
lenda de Fausto. O importante é delimitar a peculiaridade da “montagem mediata” nos textos de Bloch do período, seu
“pensar fabulando”, diferenciando-o não
só da “montagem literária” de Benjamin,
dotada de um “materialismo particular”,
como também da “literatura sociológica”
de Os empregados, de Kracauer. Todos
se inspiram, como no surrealismo, na
literatura de folhetim, no romance do
Kolportage, aquela literatura que designa em geral o comércio ambulante de livros, mas do século XVI ao XIX indica
também uma forma específica de literatura, livros de pequeno formato vendidos por ambulantes e vagabundos. Uma
literatura de caráter utilitário: livros de
devoção, de educação, de orientação higiênica, livros de magia, almanaque etc.
A literatura de Kolportage tornou-se um
importante repertório da cultura popular,
assegurando a transmissão de lendas de
cavalaria, de mitos, provérbios etc.12 Em
Bloch, o Kolportage serve como fonte
das narrativas, em Benjamin, para mostrar o caráter descontínuo do mundo, em
Kracauer, como forma de articular uma
análise que é ao mesmo tempo uma realidade em construção.
A recepção do livro de Kracauer,
Os empregados, foi tímida, apesar das
44
resenhas extremamente simpáticas que
recebeu de Bloch e Benjamin, ambos
tinham plena clareza da importância de
sua análise, que delimita um novo fenômeno – isto é uma “nova classe média”
e o novo modo de escrita, próximo das
experiências que ambos estavam realizando. Para Bloch, Kracauer “penetra ali
onde outros apenas tagarelam. Com uma
linguagem que pode dizer o que vê” (EZ,
p.33). A série de artigos publicados no
Frankfurter Zeitung articula – por meio
das conversas desconexas do cotidiano,
das situações imediatas e dispersas, dos
fenômenos de superfície –, aparentemente uma “reportagem”, mas só aparentemente, pois Kracauer se posiciona
claramente contra essa literatura que se
tornou moda entre os escritores de esquerda e que gerou uma polêmica na revista
berlinense Die Linkskurve.13 Seus argumentos críticos contra a reportagem são
próximos dos de Lukács, no seu famoso
ensaio, de “Reportagem ou configuração”.14 Mas a crítica de Kracauer é anterior ao ensaio de Lukács. Para Kracauer,
trata-se de uma “literatura sociológica”15
e não de uma mera reportagem. É por
meio de uma “literatura sociológica” que
lhe permite articular uma realidade sui
generis, que não é aquela da “lógica dos
fatos”, nos seus próprios termos: “a realidade é uma construção”. A construção
de um cotidiano específico, diretamente
ligado a uma nova forma de trabalho assalariado, o empregado, que se generaliza com a emergência da sociedade de
massas. Seu objetivo é mostrar, segundo
Bloch, “a verdadeira situação dos empregados ou, mais ainda, a falsa consciência
que eles têm de si mesmos” (EZ, 1985,
p. 33). A questão da “falsa consciência”
decorre da leitura de História e consciência de classe. Kracauer chegou a comentar em detalhe esse livro de Lukács,
como o conceito de “falsa consciência”,
em cartas dirigidas a Bloch.16 Mas o sujeito analisado por Kracauer é de outro
tipo: os empregados. Diferentemente
do trabalhador fabril, o empregado está
afastado da produção. Sua atividade é
monótona e sua atitude social apática.
Está sofrendo uma rápida proletarização,
mas se sente ainda ligado ao meio bur-
guês. Seu número, nas primeiras décadas
do século XX, quintuplicou enquanto no
mesmo período o número de trabalhadores apenas duplicou. A “falsa consciência” de classe que expressam é o que
Bloch denomina uma “não contemporaneidade”. Uma vez que nada tem de uma
“verdadeira” consciência de classe: “são
aparências exteriores de uma burguesia
já extinta que ainda dominam a sua vida,
sem as realidades correspondentes” (EZ,
1985, p.33). É nesse “meio artificial” que
a “não contemporaneidade” assume a sua
forma mais susceptível de ser apropriada
pela barbárie: “uma indescritível horda oriunda do antigo filisteísmo (Spiessertum) incorpora a isso seus instintos,
certamente os instintos não populares,
mas os perversos, fossilizados e sobretudo sem objeto, e que são anticapitalistas
somente quando espancam mortalmente
o judeu enquanto ‘usurário’”(EZ, 1985,
p.34). É nesse “meio artificial” que se
forma o público da distração. Mas é a
distração resignada que “desvia da vida
real”. É a mesma distração que fomenta
o esporte, os concursos de dança, os si-
45
nais ultraluminosos; introduz o banho de
luz nos filmes e a “imprensa de palavras
ocas e de pena hábil”. Bloch toma de
Kracauer uma frase forte: “A cultura dos
empregados ... é a fuga diante da revolução e da morte”(EZ, 1985, p.34). Kracauer já havia examinado anteriormente
esse novo fenômeno cultural: o “culto da
distração”. O patrimônio cultural, segundo Kracauer, transformou-se ao gerar um
“homogêneo público cosmopolita que –
do diretor de banco aos auxiliares de comércio, da diva à datilógrafa – sente do
mesmo modo”.17 Na linguagem de Bloch, a distração é como “uma grande feira anual colorida” que embriaga, distrai
a atenção e “levanta também pó e, desta
vez, um pó já suspenso, cintilante, por
assim dizer, um pó de segunda potência.
Mas isto não impede que, de imediato,
no inteiro afastamento haja apenas trapaça (Betrug), que deve ocultar o lugar e
a base sobre os quais ele acontece” (EZ,
1985, p.35).
Na sua resenha sobre Os empregados, Benjamin chama atenção para o
posicionamento político de Kracauer –
a politização da inteligência –, além de
ressaltar de que modo ele desmascara a
falsa consciência inerente aos empregados, destaca a sua atitude crítica diante da
“reportagem” e da “Nova Objetividade”.
Kracauer seria um “desmancha prazeres” [Spielverderber], afinal “desmascarar é para o autor uma paixão”.18 E acrescenta: “E se penetra dialeticamente na
existência dos empregados, não o faz na
qualidade de marxista ortodoxo, e menos
ainda na qualidade de um agitador prático, senão pelo fato de que penetrar dialeticamente significa desmascarar”(p.116).
A consciência do autor ou mais ainda sua
autoconsciência se manifesta sobretudo
no modo como sua escrita se diferencia
da reportagem e da Nova Objetividade:
“Esta escola radical de esquerda pode
fazer o que lhe vem à mente; não pode
jamais negar o fato de que inclusive a
proletarização do intelectual quase nunca gera um proletário (...) Por isso que
seu escrito, diferentemente dos produtos
de moda radicais da escola mais recente,
represente um marco no caminho da politização dos intelectuais”(p.122). Benja-
min enfatiza ao longo de sua resenha que
Os empregados representa uma mudança
no processo de radicalização política de
Kracauer, “um outsider que se faz notar”
– conforme o título original do artigo. Na
maneira como ele desmascara os mecanismo da falsa consciência, pode se dizer
que o autor pensa em termos marxistas.
Certamente, seu projeto o conduz tanto
mais profundamente à estrutura global
do marxismo, quanto a ideologia dos
empregados representa uma projeção
singular de imagens de recordações e desejos extraídos da burguesia, sobre a realidade econômica concreta, que é muito próxima do proletariado. Não existe
hoje nenhuma classe cujo pensamento e
sentimento se encontre mais alienado da
realidade concreta de sua vida cotidiana
como os empregados. (p.117)
Kracauer, segundo Benjamin, é
um “descontente” que propõe, como nenhum outro, “a politização da própria
classe” (p.122). E referindo-se a Lênin:
“A influência direta só pode surgir da
práxis. Mas, em contraposição a seus colegas arrivistas, se mantém em seus pen-
46
samentos a posição de Lênin, cujos escritos demonstram do melhor modo até que
ponto o valor literário da práxis política,
a influência direta, está distante da rude
tralha de fatos e reportagens que hoje se
faz passar por essa influência” (p.122).
Na verdade, Benjamin projeta em Kracauer o seu próprio processo de radicalização política, processo já perceptível
desde Einbahnstrasse e, no caso de Kracauer, desde o ensaio “O ornamento da
massa”. O próprio Bloch chama atenção
que, no final dos anos vinte, ele, Benjamin e Kracauer tinham posições políticas e teóricas muito próximas, chega
mesmo a incluir o Kierkegaard do jovem
Adorno. Para ele, Einbahnstrasse, Spuren, Die Angestellten e Die Konstruktion
des Ästhetischen possuem características
comuns ao incluir narrativas na exposição e fazer uso da montagem “mediata”.
Decerto, o livro de Adorno é um trabalho
acadêmico muito diverso do experimentalismo de Benjamin e Bloch e distante
do viés político-sociológico dos ensaios
de Kracauer. Os empregados vai estar na
base da interpretação de Kracauer do nacional-socialismo. Mas, essa relação já é
assunto para outro capítulo.
1 Professor de História da Filosofia e da Arte na Faculdade de Ciências e Letras, UNESP, campus de Assis-SP, Brasil. Autor de Um capítulo da história da modernidade estética: Debate sobre o expressionismo. São Paulo: Ed. UNESP, 1998 e As formas e a vida. Estética e ética no jovem Lukács (1910-18). São Paulo:
Ed. UNESP, 2004. Membro da Internationalen Georg-Lukács-Gesellschaft desde 1996. O presente texto é uma parte de um estudo maior sobre Os empregados e a
análise de Kracauer do nacional-socialismo – o artigo foi publicado em VEDDA, M (org.) Aproximaciones a Walter Benjamin. Vol.II. Cuadernos de Herramienta.
Buenos Aires: Herramienta, 2007. p.25-32.
2 BENJAMIN, W. Gesammelten Schriften. Bänden V 1 e 2. Frankfurt aM: Suhrkamp, 1983.
3 BENJAMIN, W. Gesammelten Schriften. Band IV-1. Frankfurt aM: Suhrkamp, 1980. Edição brasileira: Obras Escolhidas II. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1995.
Trad. Rubens Rodrigues Torres Filho e José Carlos Martins Barbosa.
4 KRACAUER, S. Das Ornament der Masse. Frankfurt aM: Suhrkamp, 1977, p.50-63. Edição brasileira. Ed. Cosac & Naify, 2007. Trad. Carlos Eduardo Jordão
Machado e Marlene Holzhausen.
5 KRACAUER, S. Die Angestellten. Frankfurt aM: Suhrkamp, 1971.
6 Das Ornament Masse - cit, p.249
47
7 BLOCH, E. Erbschaft dieser Zeit. Frakfurt aM: Suhrkamp, 1985 (EZ).
8 Segundo Adorno (1981), no ensaio (magistral) que dedicou ao livro de Bloch, Spuren (Vestígios): Bloch, “aceitando o primado da expressão sobre o significado,
não está preocupado em que as palavras esclareçam conceitos nem que os conceitos encontrem uma morada nas palavras”. ADORNO, Th. W. “Blochs Spuren ’in
Noten zur Literatur. Frankfurt aM: Suhrkamp, 1981, p.244.
9 BLOCH, E. Marxismo e utopia. Roma: Ed. Riuniti, 1984, p.83.
10 BLOCH, E. Spuren. Frankfurt aM: Suhrkamp, 1985, p.16
11 KRACAUER, S. “Reisen, nüchtern” in Schriften 5-3. Frankfurt aM: Suhrkamp, 1990. p.88
12 Para compreender melhor a importância do Kolportage como fonte do “pensar fabulando”de Bloch, ver a sugestiva apresentação de Laura Boella à edição italiana
dos Spuren: BLOCH, E. Tracce. Milano, 1989. p. I-XLVI.
13 Sobre a história desta revista berlinense, ver GALLAS, H. Teoria marxista de la literatura. Buenos Aires: Siglo XXI, 1974. Sobre os escritos de Kracauer e a
polêmica na revista Die Linkskurve, ver: MÜLDER, I. Siegfried Kracauer – Grenzgänger zwischen Theorie und Literatur. Stuttgart: Metzler, 1985, pp.115-124
14 LUKÁCS, G. “Reportage oder Gestaltung” em KLEIN, A. Georg Lukács in Berlin. Berlin und Wemar: Aufbau, 1990, pp.359-381
15 Kracauer utiliza a expressão “soziologische Literatur” [literatura sociológica] em um texto de 1932, “Reisen, nüchter” [Viajar, sóbrio], ao comentar alguns livros
com o de Hans Fallada Kleiner Mann- was nun? [Pequeno homem- e agora?]. KRACAUER, S. Schriften 5-3. Frankfurt aM: Suhrkamp, 1990, p.88.
16 Sobre a leitura de Kracauer da obra de Lukács ver meu ensaio: “Die Exterritorialität als transzendentale Heimatlosigkeit. Über Siegfried Kracauer und Georg
Lukács” em Ibero-Amerikanisches Jahrbuch für Germanistik, 2007.
17 “Kult der Zerstreuung” in KRACAUER, S. Das Ornament der Masse (ed. cit), pp. 311-17
18 BENJAMIN, W. “Die Politisierung der Intelligenz”in KRACAUER, S. Die Angestellten. Ed. cit., p. 116
48
DEPOIMENTOS
Entrevista com o Professor
Antonio Augusto Soares Amora1
Nascido no município de Itaquera (São Paulo), Antonio Augusto Soares Amora
bem cedo revelou sua vocação para o estudo das Letras, em parte influenciado pelo
ambiente familiar. Licenciado em Letras pela Universidade de São Paulo, na mesma
instituição foi construindo uma carreira universitária de prestígio, seguindo os vários
degraus: assistente –- do Professor Fidelino Figueiredo, de 1942 a 1955 –; doutor
em Letras; livre-docente; e professor catedrático. Em várias estadas em Portugal,
Alemanha e Estados Unidos, realizou inúmeras pesquisas. Em 1955 criou, em São
Paulo, o Instituto de Estudos Portugueses – hoje, Centro de Estudos Portugueses –,
que teve importância decisiva no processo de organização da Faculdade de Assis. Em
1959, foi nomeado pelo governador do Estado de São Paulo para criar e organizar
1 Efetuada por Teresa Malatian, em São Paulo, em 30 de janeiro de 1992.[Doravante, entrevistado -AA;
entrevistadora -TM] CEDEM – Projeto - Institutos Isolados de Ensino Superior de São Paulo (1923-1976).
Memória e História.
49
a estrutura pedagógica e administrativa
da Faculdade de Filosofia de Assis, em
seu primeiro curso de Letras. O professor Amora foi responsável pela criação
de um projeto original que deixou marca
indelével na história daquela faculdade.
Tereza Malatian - É sabido que a
UNESP teve sua origem a partir da aglutinação de um núcleo inicial de escolas,
os Institutos Isolados do Ensino Superior
do Estado de São Paulo. Como o senhor
foi um dos diretores responsáveis por
esse início, gostaria que nos relatasse
esse início.
Antonio Amora - Em 1958 foram
criadas as Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras. Passados mais um, dois
ou três anos, em Ribeirão Preto, onde
havia já uma Faculdade de Medicina da
USP, criou-se mais uma Faculdade de
Farmácia e Odontologia. Foi encampada
uma Faculdade de Farmácia e Odontologia antiga; foi estadualizada, portanto,
Ribeirão Preto. Em fins dos anos 1950,
os Institutos Isolados de Ensino Supe-
rior eram uma pequena rede de institutos
disseminados, um pouco aleatoriamente,
no Estado. Assis estava muito próximo
de Prudente, Prudente estava próximo
de Marília, quer dizer, ali naquelas três
cidades, na Alta Paulista e Alta Sorocabana, logo três Faculdades de Filosofia, Ciências e Letras. E depois, a outra
estava muito longe, porque vinha aqui
para Rio Claro. Logo depois, surgiu a
Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de São José do Rio Preto, que foi encampada, era municipal e foi encampada
pelo Estado e depois surgiu a de Franca,
tivemos a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Franca. Nessa altura, esse
sistema era gerido por um Conselho chamado Conselhinho. Era Conselho… Eu
não me lembro como chamava, Conselho
de Direção dos Institutos Isolados, mas
enfim, Conselho dos Institutos Isolados,
para não se confundir com Conselho
Universitário dos Institutos Isolados de
Ensino Superior do Estado de São Paulo,
o dito Conselhinho era presidido pelo
Zeferino Vaz. O Professor Zeferino Vaz
foi, digamos assim, o construtor da Fac-
uldade de Medicina de Ribeirão Preto,
que estava vivendo aquela experiência
de Ribeirão Preto e que tinha um grande
prestígio na política universitária, no
Conselho da Universidade de São Paulo,
porque ele era professor também da Universidade de São Paulo. Podia ser e foi,
para todos nós, um bom líder de política
universitária, o Professor Zeferino Vaz.
Depois o Professor Zeferino Vaz foi para
Brasília, já em 1964, foi para Brasília
como reitor e depois voltou a São Paulo
e foi para a UNICAMP. Concluiu a UNICAMP, que era uma universidade muito
mais projetada do que realizada e desenvolveu bastante a UNICAMP, na última
fase de sua vida. Eu não sei exatamente
o ano em que o Conselhinho foi transformado em Conselho Universitário, que
é quando foi criada a UNESP, mas isso
você deve saber.
TM - Foi em 1976. A criação da
UNESP é de 1976.
AA - Já, portanto, há 15 anos, há
16 anos é a UNESP. Portanto, esse Con-
50
selhinho vem até 1976. A propósito, nesta primeira fase da criação desse sistema
de ensino, desse Sistema de Institutos de
Ensino Superior do Estado, fora da Universidade de São Paulo, primeiro houve
o erro, como eu disse a você, que foi a
disseminação sem um critério adequado,
o que havia era critério político. Cada
um procurou salvar as suas unidades na
medida que pôde, levando para lá a sua
responsabilidade profissional. Os Institutos se organizaram mais rapidamente.
Eu, por exemplo, tinha uma experiência,
não só porque entrei na USP em 1935
como estudante, vivi muito a USP, vivo
muito USP. Eu além disso, em 1949, fui
cedido pela Faculdade de Filosofia, para
uma assessoria ao reitor da Universidade
de São Paulo, o Professor Lineu Prestes,
e acabei adquirindo um conhecimento muito útil, fui chefe de gabinete em
três reitorias, sem prejuízo das minhas
funções de professor de Letras. Adquiri
uma experiência muito grande na Universidade de São Paulo. Além de tudo,
pude levar para Assis uma experiência
de como gerir um instituto universitário,
isso me valeu muito, porque a questão
não era apenas uma questão de competência ou não competência numa área
de trabalho. Eu, Letras, Literatura Portuguesa; o João Dias, Geografia Física; o
Eurípedes, História Antiga e Medieval.
Não era só uma questão de competência,
era uma questão de competência gerencial, em termos de criação e desenvolvimento e implantação e consolidação de
um instituto universitário.
Eu tinha também já trabalhado
em várias universidades da Europa, dos
Estados Unidos, quer dizer, tinha uma
certa experiência, porque tinha visto coisas, pelo menos tinha visto coisas. E foi
possível, portanto, a experiência de Assis como uma experiência peculiar, mas
a experiência de Marília também foi peculiar, a experiência de Prudente, porque
cada Instituto desses teve uma experiência peculiar, estava vivendo uma experiência peculiar com seus bons resultados, com seus resultados negativos. É
só examinar e ver isso. Os azares dessa
história são fáceis de retratar. Mas o que
contou foi o que cada um, a verdade é
essa, procurou, com o seu brilho pessoal,
fazer da sua unidade, embora implantada
sem critério nenhum, mas fazer da sua
unidade uma unidade que, perante a Universidade de São Paulo, não desonrasse a
nossa responsabilidade. Estávamos preocupadíssimos com isso, porque nas nossas congregações, nós éramos constantemente interpelados sobre este crime de
lesa-majestade, que era levar a Universidade de São Paulo para o interior do
Estado, que é desfigurar a Universidade
de São Paulo. Porque a Universidade de
São Paulo é uma universidade de elite e
implantar uma Universidade de São Paulo numa cidade de 35 mil habitantes, na
boca do sertão que era Assis, onde encontrei índios; no terreno da Faculdade
eu ainda construi, para dois índios que
viviam no terreno da Faculdade, a casinha deles, a agüinha deles, as coisas deles, para não mexer com eles. Por aí se
vê que, realmente, sair da Dr. Arnaldo,
da Maria Antônia, da Praça da República
etc, enfim, da urbs paulista para a boca do
sertão, isso era um crime de lesa-majes-
51
tade. Havia uma incompatibilidade entre o interior e a Universidade. Naquela
época também sofremos, sofrer no bom
sentido, quer dizer, fomos interpelados
muitas vezes, de maneira que cada um
procurou responder seriamente pela sua
responsabilidade e procurou fazer o melhor possível. Portanto, as condições eram
bastante adversas para cada uma dessas
unidades e cada um fez o que pôde.
Eu, como disse, tive a sorte de conhecer aquilo que se chama “o queijo por
dentro”, conhecia a USP intimamente,
sabia como movimentar uns cordeizinhos para conseguir verbas, para conseguir dotações, para conseguir planos de
construção, para conseguir, com certeza.
Não que a USP fosse responsável, mas
me dava uma cobertura e uma projeção e
consegui. Assim foi possível instalar, Assis imediatamente construiu o seu campus; instalar e levar professores e pagar
tempo integral para esses professores, todos com tempo integral. Naquele tempo
o professor em São Paulo ganhava 17
mil réis, 17 contos, aqui em São Paulo,
o professor com tempo pleno, professor
pleno e os professores foram para Assis com 35 contos cada um, ganhando o
dobro do que se ganhava em São Paulo,
para, integralmente, dedicar-se à organização da Faculdade.
Enfim, devo dizer a você que há
um capítulo aí muito importante a considerar, que é a atuação de cada responsável, de cada grupo responsável por
essas unidades, porque elas são muito
diferentes. A gente vê que umas se projetaram, outras não se projetaram, mas
por quê? Prudente tinha muito mais
condições, muito mais condições que
Assis, mas o rapaz, lembrei-me o nome
dele agora, o professor que foi para lá,
foi o professor da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, um professor distintíssimo, Fonseca, que era professor
de Farmácia e Odontologia, para montar
uma Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras, com História, com Pedagogia e
não sei o quê. Um homem distinto, mas
no fim, estava completamente acuado.
Depois saiu e veio um outro, que era
professor da PUC, excelente pessoa, mas
completamente alheio, professor de ensino particular, Professor Fonsequinha,
um homem de muito prestígio nos meios
católicos, mas enfim, não era um administrador e aquilo andou assim, um pouco lentamente no seu desenvolvimento,
que eu não sei como está hoje Presidente
Prudente. Mas sei, sei que lutou com
muitas dificuldades. A própria Faculdade
de Marília, o Querino Ribeiro começou
muito bem, mas acontece que depois nós
tivemos uma briga com o Jânio. Então o
Jânio, a propósito de uma entrevista do
Mário Schenberg, pediu publicamente,
no jornal, uma censura pública ao Mário
Schenberg. Nós nos aborrecemos porque
não somos empregados do Sr. Jânio
Quadros, muito menos do Governo do
Estado. Somos professores e a opinião do
Mário Schenberg era sobre o problema de
verbas para pesquisa, para investigação,
não tem nada de coisa política. Então
nós entregamos ao Jânio, em 24 horas,
quase 70 funções públicas que ocupávamos, sendo professores da Universidade,
a maior parte delas sem ganhar nada. E
52
o Eurípedes saiu, o Querino Ribeiro saiu
de Marília, o João Dias da Silveira saiu
de Rio Claro, eu saí de Assis e todos, de
repente, entregamos tudo isso na mão do
Sr. Jânio Quadros. Depois fui chamado
pelo Jânio, fomos colegas desde o tempo
de professores secundários e ele me pediu para consertar as coisas e depois arrumamos as coisas. Ele se compôs publicamente com o Mário Schenberg.
Enfim, por várias razões, os azares dessas instituições têm que ser vistos
isoladamente, porque cada uma é uma
história, cada uma dessas faculdades é
uma história. E para entender a evolução
dessas unidades, é preciso entender uma
outra coisa: o objetivo que se estabeleceu
para cada uma dessas unidades. Quando
se criou a USP, o que nós tínhamos aqui?
Escolas boas, mas escolas de formação
profissional, escolas para formar profissionais. Formar bons médicos, bons
advogados, bons engenheiros, escolas
profissionais de nível superior. Era isso.
Quando veio esta idéia, trazida por determinados elementos, foi o caso do Júlio
Mesquita, que tinha feito curso, inclusive, em França, na Europa, a idéia de
que uma universidade era uma geradora
de conhecimentos; a universidade é, preliminarmente, gestatória, a universidade
é uma organização gestatória, não é uma
escola, uma Escola Normal Superior,
não é uma escola de formação superior,
ela não é uma escola técnica superior, ela
é um centro de produção do saber e de
divulgação do saber, é isso. Quando nós
saímos daqui, cada um levou uma idéia,
achei que Assis devia ser assim, achei que
Assis devia ser uma Faculdade de Letras,
como foi criada a Universidade de São
Paulo, para gerar saber. Era preciso que,
em Francês, se produzisse em Assis um
produto tão bom quanto se podia produzir em qualquer centro de estudos franceses. Era necessário produzir em Literatura
Brasileira, qualquer coisa tão boa quanto
se podia produzir, digamos, talvez, em
São Paulo, porque a coisa estava um
pouco crítica em São Paulo, por isso, em
Brasileira, levei o Antônio Candido. E
depois levei o Jorge de Sena para a Literatura Portuguesa, ou seja, fui escolhendo
professores estrangeiros que estavam em
São Paulo, Professor Antonio Bento, Professor Speyer, professores estrangeiros,
fui levando uma equipe de professores
dispostos a gerar saber. As faculdades
de Odontologia, de modo geral, foram
implantadas com o espírito do Zeferino.
Elas foram implantadas com o espírito
da formação profissional e da prestação
de serviço comunitário. É uma política
completamente diferente, de maneira
que era preciso um bom ambulatório,
uma boa clínica, atender à população rural, para isso que se pôs uma Faculdade
de Odontologia em Araçatuba, não é
para que surjam em Araçatuba pesquisadores com a competência de pesquisadores da metalurgia dentária, que existe
em qualquer lugar do mundo. Aquilo era
uma idéia, foi uma idéia que não existiu
nas faculdades de Farmácia e Odontologia, elas eram de formação profissional,
de boa qualidade, mas de prestação de
serviço às comunidades. Era preciso que
elas se integrassem às comunidades, permeabilizassem as comunidades e dessem
serviço à comunidade. E as faculdades
53
de Filosofia, algumas achavam que o
problema da faculdade de Filosofia - o
curso de Letras, por exemplo, eu só levei
Letras -, era um problema de formação
de desenvolvimento de saber, quer dizer,
continuar o trabalho que desenvolvíamos
em São Paulo: levar pesquisadores, levar
investigadores e formar pesquisadores
e investigadores. Sem prejuízo, naturalmente, de atendermos à demanda de
vagas para curso superior. Mas os cursos
eram todos voltados para a formação, digamos assim, do espírito de investigação
do tempo integral e do espírito criativo.
Sempre, todo o curso era orientado neste
sentido. Outras, o caso de Marília, por exemplo, o objetivo era formar professores
secundários no interior e não erradicálos do interior, porque o que se notava
é que a juventude vinha para São Paulo,
estudava na Maria Antônia e depois ninguém voltava mais para ser professor no
interior, ficava por aqui, evidentemente.
Ninguém quer voltar mais para o interior. Então formando, vamos dizer, aquelas ninhadas de licenciados interioranos,
eles iam se fixando nas próprias regiões.
Uma estratégia completamente diferente,
foi a estratégia, portanto, de Marília, foi a
estratégia de Prudente e não foi a estratégia, evidentemente, de Assis. Só para dar
exemplos. Outras unidades interioranas
acabaram por tentar conciliar os dois
objetivos. Foi o caso de Franca. Franca
procurou conciliar os dois objetivos, de
um lado, contar com professores que
saíam da USP ou que se aposentavam e
que eram investigadores brilhantes, foi
o caso do Nunes Dias, um notabilíssimo
investigador, e do outro lado, também
levaram bons formadores de profissionais, quer dizer, as duas coisas a atender,
considerando que há alunos que são propensos mais para a carreira profissional,
entram para ser professores e também
não têm intenção de mais nada. Então é
necessário que haja professores capazes
de formar bons professores. Nas faculdades de Odontologia, a mesma coisa,
umas ficaram nas clínicas, no trabalho
prático, higiene bucal, era mais importante ensinar o sujeito a limpar um dente,
a pôr o remédio, a fazer uma coisa, do
que formar um pesquisador, sei lá, em
Araçatuba, qualquer coisa. Portanto, é
preciso vocês terem em conta os objetivos diferentes que se tentaram imprimir
de início. Depois, esses objetivos foram
alcançados.
Também uma outra coisa que é
preciso entender, é que alguns dos responsáveis pela criação dessas unidades,
alguns tinham espírito universitário,
outros não tinham espírito de universidade, o espírito universitário, quer dizer,
espírito não só da universidade, como
o que ela deve ser como universidade,
como um estilo de vivência. Nós vivemos
uma coisa chamada universidade não
porque fazemos política universitária,
porque vivemos dentro da universidade,
porque vivemos tempo integral, porque
só fazemos isso, que participamos das
reuniões, que temos os colegas, a vida
universitária. Tem uma coisa que as universidades inglesas, mesmo as alemãs,
as inglesas e as americanas, onde eu trabalhei, o campus universitário cria logo a
ambiência universitária dentro da qual se
vive. Todo mundo respira universidade
54
dentro do campus. Eu, por acaso, tinha
vivido e vivia essa experiência, saía, ia
para cursos estrangeiros, voltava. Procurei dar a Assis um pouco desse espírito
universitário, embora se tratasse de uma
unidade isolada e com um curso reduzido, o curso de Letras; depois criou-se,
quando eu saí, História, corretamente,
complementando Letras, História, estávamos nas Humanidades, muito bem.
Mas depois criou-se Psicologia, nada a
propósito Psicologia em Assis. Em todo
o caso, a idéia era viver em Assis um
campus universitário. Então os alunos
tinham o ônibus, levava todos de manhã,
passavam lá as manhãs. As manhãs eram
todas dedicadas à pesquisa e aos estudos.
O silêncio era mantido naquele campus
todo e ficavam todos lá, trabalhando nas
suas coisinhas. À hora do almoço, o ônibus levava à cidade ali, a 5 km, levava,
cada um ia para casa e depois voltava à
tarde, para as aulas. Tentar dar um ambiente: “Eu vou para a Universidade viver
um dia agradável,” uns com os outros e
assim por diante. Resultou? Não resultou? Isso são os azares das coisas, são os
azares das instituições. Acredito que sim,
que em grande parte resultou, foi possível viver uns anos de vida universitária,
com as grandes vantagens da vida universitária. Porque a vida universitária é
uma vida de convívio intelectual, e isso é
o mais importante. Não é o convívio afetivo, é o convívio intelectual. Não sabemos o que você está fazendo. Aí você diz:
“Eu estou com este problema, têm que ser
resolvidos estes problemas”. Como eram
todos de Letras, então há toda uma troca,
toda uma permuta. Ainda hoje há professores que dizem: “Ah, você não imagina
como o Cândido me ajudou, como o Antonio Cândido me ajudou, você não imagina o que eu aprendi com o professor
Bento, de Grego”. Quer dizer, vamos uns
aprendendo com os outros, os mais novos com os mais velhos. Portanto, esses
Institutos vieram a constituir a UNESP,
depois criaram-se outros Institutos, outras faculdades, outras unidades e aí está
a UNESP.
Eu tenho a impressão que o próprio trabalho de vocês agora, no sentido
de retraçar um pouco desses 35 anos e
essencializar esta memória e conscientizar esta memória, é realmente uma medida muito importante. Eu estou sentindo
isso, o Landim está muito preocupado
com isto, eu tenho visto lá, ele é meu
companheiro de conselho na Fundação
Anchieta. A gente sente que ele está
muito preocupado com isto, quer dizer,
é preciso corporificar a UNESP, corporificar, dar corpo, mas é preciso também
revitalizar este corpo e espiritualizar este
corpo. Agora, a espiritualização depende
fundamentalmente de uma consciência.
Está claro que UNESP ou USP é a mesma coisa. Fundamentalmente, a UNESP
não tem um papel diferente, eu não sei,
está se falando muito agora da diferença
do papel. Acho que não, esse negócio de
universidade caipira ou qualquer coisa, eu
acho isso engraçadinho, não é? Uma boa
piada. Eu vi outro dia o artigo do Landim
sobre isso, é uma maneira de dizer como
a gente é concebido como a universidade
caipira ou qualquer coisa, mas não é isso.
Uma universidade é uma universidade.
Uma universidade é uma instituição que,
55
fundamentalmente, só pode ser uma coisa. Ela tem que ter o seu papel, sua irradiação; seu papel é irradiante, mas ela
é fundamentalmente uma instituição que
tem que gerar saber. Se ela não gerar saber, ela não subsiste, porque é o que está
acontecendo agora, a Universidade Paulista, Universidade não sei que, a Universidade São Judas Tadeu, a Universidade
Brás Cubas, a Universidade de Mogi, a
Universidade de Caixa-Pregos, a Universidade, sei lá, de Roraima, não é? Tem
universidade em todo o lugar. A UNESP,
acho que é muito importante, agora, que
ela retraça a sua história. Veja, qual é a
lição dessa história? Quer dizer, o que se
perdeu ao longo do caminho, que é preciso retomar ao longo do caminho e o que
é preciso conservar, a duras penas, é preciso conservar. E os objetivos, que são
dois ou três objetivos das universidades,
zelar por esse objetivos. Isso faz parte da
própria consciência do intelectual. Faz
parte do dever do intelectual, do cientista, a defesa da sua liberdade. Se ele não
tem liberdade de pensar e escrever, não
pode ser, de maneira que a gente briga,
por isso mesmo. No mais, não confundir
as brigazinhas, que nós chamamos cartoriais: há professores que, às vezes, perdem muito tempo com isto, ficam naquela luta, o espírito sindical, aumento de
vencimentos, eu não sei o quê. Eu sou da
ADUSP, acho que o papel da ADUSP é
importantíssimo, acho que a ADUSP está
aí, zelosa e vigilante, é muito importante,
mas não se pode jogar, não se pode jogar
todos os professores dentro dessa luta.
TM - Eu vejo que o projeto dos
Institutos Isolados seria uma obra que se
poderia dizer “civilizatória”, entre aspas. Então, indagaria: qual foi a receptividade da comunidade de Assis a este
projeto, em termos de alunos que foram
enviados, até da própria arregimentação
de funcionários e de professores, e a repercussão em relação à Faculdade, entre
esta e o meio em que ela foi inserida?
AA - A receptividade, desde aquela hora mesma foi calorosa. Foi calorosa,
foi entusiástica, sem restrição nenhuma.
Essa receptividade, de um lado, era a
receptividade social ao processo. As
famílias que receberam minha mulher
e que depois receberam as famílias dos
professores, que acarinharam e que, enfim, me prestigiaram, foi essa receptividade, pelo menos, social. Em Assis foi
total, não tivemos um caso de restrição
qualquer que pudesse haver. Aconteceu,
no entanto, o que era previsível: as pessoas, naturalmente, não estavam pensando exatamente o que era que se ia fazer,
não tinham uma idéia do que se ia fazer.
Para alguns, era uma faculdade. Então
foi preciso um certo trabalho junto a certas instituições, como o Instituto de Educação, certas instituições como os colégios, havia dois colégios, um que você
sabe, um de freira. Dois colégios, colégio
e um trabalho paroquial, junto ao bispo,
junto ao bispado, para dizer o que é que
se pretendia fazer. À proporção que se foi
explicando o que é que se ia fazer, foram
surgindo, senão algumas discordâncias,
expectativas frustadas quanto à possibilidade, talvez, de alguma posição, ou do
corpo docente, ou da direção. Todas as
terras têm os seus pró-homens, não é?
56
Têm as suas pessoas proeminentes. Então
foi preciso conduzir este esclarecimento,
vamos dizer, conduzir essa política de
acomodação entre a realidade e a expectativa, com muita arte, muito cuidado.
Mas encontramos, naturalmente, a partir
desta altura, sim, algumas restrições,
porque frustrações houve. Depois da
Faculdade implantada – ela implantou-se
paulatinamente, primeiro–, organizou-se
durante o primeiro ano, só um curso preparatório para vestibulares, justamente
para dar tempo à complementação do
projeto de instalação. O projeto foi feito
em São Paulo. Ele saiu pronto e foi posto
no chão pronto, foi todo preparado aqui,
na USP. Até a lista dos livros, dos pacotes,
os caixotes, tudo foi preparado aqui, os
impressos, foi tudo prontinho. Não podia
vir de lá para cá, tinha que ir daqui para
lá. Mas, para dar tempo para fazer isso,
durante um ano, o curso preparatório, foi
possível irem as pessoas entendendo bem
o que iam estudar, o que não iam estudar.
Era uma Faculdade de Letras, o que era
um curso de Grego, o que era um curso
de Latim. E aí, naturalmente, houve tam-
bém, pode-se chamar, os desencantos,
umas oposições. Primeiro ideológicas,
é natural, porque o corpo docente tinha
professores de vários compromissos ideológicos, desde professores católicos
militantes, como o Professor Lázaro de
Almeida Prado, que foi um líder do movimento estudantil de católicos, a um professor absolutamente indiferente, embora uma pessoa elegantíssima, o Professor
Antonio Cândido; mas o Professor Antonio Cândido era um luterano. Mais o
Professor Victor, que é do Partido Comunista. Quer dizer que era assim, uma espécie de muitas hipóteses, digamos comportamentais e os alunos não estavam
entendendo, uns propenderam mais para
esse lado, outros mais para aquele, dentro das influências e, aí, estas influências
começaram a se irradiar pela sociedade,
que começou a entender que o grupo de
intelectuais, cientistas e professores era
um grupo estranho, um grupo exótico,
não um grupo, assim, homogêneo; não é
bem assim o que se pensava. Não era o
corpo docente do Instituto de Educação,
o corpo docente de professores do Es-
tado, ou o corpo docente do colégio das
freiras, professores católicos, é diferente.
E aí então, era natural começarem a surgir as pequenas restrições. Mas concluindo, diga-se de passagem, reduziram-se a
muito poucos. Portanto, a implantação
foi feita, foi muito trabalhosa, quer dizer,
este capítulo vale mais ser recordado pelo
procedimento que foi preciso adotar para
vencer. As resistências eram pequenas,
mas havia resistências. Um exemplo:
fomos inicialmente, claro, instalar imediatamente a Faculdade e as hipóteses
eram as mais extravagantes possíveis,
desde instalar num galpão que tinha sido
depósito da Estação Sorocabana, até instalar num prédio, numa residência particular, e nós optamos por instalar, alugando o colégio das freiras. Alugando e
fazendo uma maquiagem: elas ficaram
com uma parte, nós alugamos a outra. O
colégio tinha uma população pequena de
estudantes e valeu a pena para elas e para
nós, sem grandes modificações, adaptamos as instalações para o curso preparatório, enquanto começavam a construção do novo prédio. Essa história de
57
onde implantar já exigiu muito, porque há
muitos interesses, sempre, dentro de uma
cidade, do ponto de vista imobiliário. Há
muitos interesses imobiliários. E quando
foi para construir o campus então, tivemos resistências na Câmara e problemas
que se levantaram etc., porque queriam
que fosse instalada num bairro que era
um bairro operário, que se chamava vila
não sei o quê, um bairro operário, junto da Estação Sorocabana, e já veio o
movimento dos funcionários da estação
a favor da instalação. Portanto, foi preciso explicar-lhes porque que nós íamos
para fora, porque íamos para um terreno
de cinco alqueires, porque procurávamos
uma mata nativa, porque isso, porque aquilo, porque aquilo outro, porque o projeto arquitetônico é esse, não é aquele.
Foi preciso uma sessão tumultuada e longa e cansativa, que eu tive que enfrentar
na Câmara dos Vereadores, para explicar
porque estávamos indo lá. E eles depois
entenderam, mas quer dizer, percebe-se
que, se de um lado houve resistências,
houve resistências a um estilo de vida, um
estilo de comportamento que é da comu-
nidade acadêmica e universitária, houve
depois a resistência onde pôr, segundo
os interesses locais da cidade. A idéia de
uma faculdade valorizava os terrenos em
volta, valorizava as lojas e a farmácia e
o bar da esquina e não sei quê. Tudo isso
significa que - isso explica o grande êxito do Zeferino Vaz -, a implantação dessas unidades em função dessas dificuldades sociais, do meio ambiente social,
só venceram, quando quem foi levar o
projeto sabia tudo sobre o projeto. Tinha
que saber tudo sobre o projeto, porque,
porque, porque, porque, porque, porquê.
Porque realmente não há ninguém que
não se renda à evidência dos argumentos,
à evidência dos fatos. No dia em que se
discutiu se ficava na Vila Operária ou se
não ficava na Vila Operária, a Faculdade
– porque o prefeito deu o terreno na Vila
Operária e eu comprei por um cruzeiro, um cruzeiro, para não dizer doado,
eu comprei! Comprei por um cruzeiro;
paguei, fui ao cartório, custou mil réis,
mil réis, um cruzeiro, os cinco alqueires
do Zeca Santilli. Foi para explicar o projeto, que foi preciso uma hora de pro-
jeção do projeto, com arquitetos e tudo,
o que se queria fazer e aquilo para fazer.
Houve, portanto, a própria implantação,
no sentido da integração de uma unidade
atuante intelectual e cientificamente no
meio; para fazer, precisa-se saber por que
se está fazendo isso e o que está por trás
disso. Porque, se hesitar, não faz. E se não
tiver cuidado, dá-se o que aconteceu com
os ingleses. No tempo da rainha Vitória,
chamava processo de “cafrialização”, entre aspas, pode-se usar essa palavra, pode
ser tomada no mau sentido, quando o crioulo ia transformando aquele estilo vitoriano em estilo crioulo. Na Inglaterra se
dizia: a coisa foi cafrializada, quer dizer,
o crioulo digeriu a coisa. O crioulo digeriu. Eu penso que foi preciso ter muito
cuidado, porque senão a coisa se interiorizava, quer dizer, você conseguir isso
e, de repente, não adiantava ter levado a
universidade para o interior. Então, era
deixar as próprias escolas, deixar que a
coisa nascesse normalmente dentro do
interior. Mas não era isso o que se queria.
O que se queria era levar uma unidade
universitária para uma cidade do interior,
58
que podia ser em Itatiaia, em qualquer
lugar, no Himalaia, em qualquer lugar.
Aí é que houve dificuldade.
TM - Professor, nesse sentido, fico
pensando que foi preciso uma força muito grande e não só conhecimento do pessoal que organizou a Faculdade, para
resistir às pressões, inclusive políticas,
para manter o projeto na sua forma original e não abrir à que nós poderíamos
chamar, talvez, cultura local, às elites
locais, que não estariam adequadas ao
projeto inicial
AA - É isso mesmo. Ao lado de
se saber o que se vai fazer e saber tudo
o que se vai fazer, é preciso realmente
um grande ideal. A história da UNESP
é a história de alguns idealistas. Onde
houve grandes idealistas, a coisa marchou, porque enfim, o entusiasmo é que
levava aquela coisa. Muita gente não
entendeu. “Ah, mas por que o Zeferino
fez Ribeirão Preto?”. A Faculdade de
Medicina de Ribeirão Preto, de repente,
era melhor que a Faculdade de Medicina
de Pinheiros. Mas o Zeferino tinha um
entusiasmo fora do comum. Depois fez
a UNICAMP. Por que o Zeferino fez a
UNICAMP? Porque ele tinha realmente
um grande ideal. Faltou competência,
mas também faltou o ideal, a coisa não
foi.
TM - Fico pensando, Professor,
quando o senhor mencionou os índios da
região de Assis, como era esse corpo discente de Assis, o primeiro, o segundo, as
primeiras turmas?
AA - Olha, minha filha, a primeira
turma, era um curso de Letras, só, com
possibilidade de língua estrangeira e vernáculas. Quer dizer, vernáculo com Letras Clássicas, com Letras Estrangeiras.
O estrangeiro era o Francês, o Italiano, o
Espanhol, o Inglês, o Alemão. O primeiro
corpo discente era formado de pessoas,
de modo geral, que estavam disponíveis
na cidade e à espera de uma oportunidade
para continuar os seus estudos. Quer dizer
que a maioria estava além da faixa etária
normal, neste alunado montante, que é
por volta dos 20 anos. Nosso primeiro
corpo discente estava com o alunado à
altura de quase 30 anos, 20 e tantos, 30
anos. Eram professoras que já tinham estudado, terminado seus cursos e voltaram
para o interior, ou terminaram o colégio
há muito tempo, mas não continuaram,
não tinham meios. E eram pessoas que
representavam uma classe média alta
dentro da cidade, pessoas que tinham
meios e tudo, algumas até senhoras com
filhos e tudo. Era natural, portanto, que
o primeiro grupo saísse daí. Mas o segundo, à proporção que os vestibulares
se sucederam, começou a aparecer um
alunado normal, da classe dos 20 anos.
O que caracterizou preliminarmente esse
alunado foi um desnível muito grande entre, digamos assim, a competência desse
alunado em termos de preparo, no caso
de Letras, um preparo elementar em Língua Portuguesa, um preparo elementar,
enfim, em alguma língua estrangeira que
poderiam fazer e alguma educaçãozinha
literária que tivesse. Essa competência
era realmente modesta e, de outro lado,
estava um professorado com um nível
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de competência muito elevado. Então
foi preciso desenvolver uma estratégia
muito, digamos assim, muito cuidadosa,
no sentido de rever a Didática, o comportamento didático dos professores. Entramos seriamente a discutir a Didática
no ensino do Latim, a Didática no ensino
da Crítica Literária, a Didática no ensino
da Gramática, a Didática no ensino do
Francês, a Didática… O que era importante para os professores, porque eram
professores que, também futuramente,
teriam que preparar futuros professores
e alguns nunca tinham se debruçado sobre o problema das dificuldades da transmissão do conhecimento. Porque, se a
Universidade, de um lado, é geradora de
conhecimentos, ela também é um centro
de transmissão de conhecimento, mas a
transmissão do conhecimento exige toda
uma sofisticação comportamental dentro da própria ciência e de acordo com o
que recebe a ciência, o que recebe aquele
conhecimento. De maneira que o curso de
Assis, que pretendia ser um curso, digamos assim, praticamente igual ao de São
Paulo, os programas passaram a ter um
curso desenvolvido em grande parte do
ponto de vista, digamos, epistemológico,
a teoria do conhecimento, como se chega
ao conhecimento. Foi preciso, portanto,
mudar a estratégia e alguns professores
foram muito bons, muito bons mesmo,
nunca tinham mexido com isso e de repente começaram a ver. Como é que se
ensina Crítica Literária? Não é suficiente
dizer: “Olha, leia, leia, leia, algum dia
você acorda ou não acorda, o problema
não é meu não!” É preciso, pelo menos,
em dois ou três anos, modelar uma certa
capacidade crítica. Como se lê um texto?
Quer dizer, qual é a metodologia para se
ensinar a ler um texto? O Professor Júlio
Garcia Morejón vinha de Salamanca
com um curso muito bom em matéria de
análise estilística, de maneira que teve um
papel muito importante com os colegas,
mostrando como os espanhóis estavam
desmontando textos e montando textos.
E os alunos começaram a aprender a
montar textos e desmontar textos etc., de
maneira que, no ensino, houve, portanto
uma mudança de comportamento, dado o
fato de os alunos estarem, digamos num
nível de competência modesto, não era
possível levar de forma excessivamente
rígida, o que não levava a nada. Criava
frustrações ou criava, sobretudo, o que
seria uma desonestidade. É a escolinha
do faz-de-conta: faz-de-conta que eu estou ensinando, você faz-de-conta que está
aprendendo, depois no exame, você faz
qualquer exame, eu dou nota para você
passar. Nas universidades, isto é, nas falsas universidades, há muita escolinha do
faz-de-conta, faz-de-conta, não é? Até
faz-de-conta que não está fazendo de
conta. Não, não, faz-de-conta penso que
não dava e vamos começar a ver como
é que vamos fazer juntos para chegar lá.
Alguns professores mesmos fizeram. Na
verdade, eles começaram, nunca tinham
pensado nisso, isto é, aprender a ensinar.
TM - Essas sessões de estudos andei olhando um pouco a história da
UNESP -, o senhor poderia falar a respeito?
AA - A coisa foi feita da seguinte
maneira: eu fui educado pelo meu sogro,
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fui aluno do meu sogro, depois trabalhei
com ele 25 anos como investigador, quer
dizer, mamei isso e só sei fazer isso, faço
mal feito, mas só sei fazer isso. Então
tinha que ser tempo integral. O tempo integral era uma instituição, o full time, era
uma instituição que vem dos laboratórios,
porque a ameba, você tem que dar água
a ela toda hora, toda hora dar a agüinha
da ameba, então tem que estar olhando
para ela, tem que estar lá. Portanto, havia
o full time. Mas o chamado full time ou
o tempo integral para as Ciências Humanas, ou as ciências do espírito, foi se
transformando um pouquinho numa escola do faz-de-conta. Estou falando da
minha Universidade, da minha Faculdade
de Filosofia, da heróica Maria Antônia,
dessas histórias todas. O pessoal ia para
lá com período de aula de manhã ou de
tarde. Depois, à noite, não importa, ia assistir às suas aulas, estava lá, depois ia
para casa trabalhar. Cada um trabalhava
em casa as coisas, os seus livros, as suas
coisas, não tinha outra atividade, tinha só
aquela, então, chamava isso de tempo integral. Quer dizer que não tinha a ameba,
nem olhava para a ameba. Então, quando
fomos para Assis, eu disse: “Não pode
ser, eu acho que nós devemos criar, em
Assis, o tempo integral de Letras”. E o
tempo integral de Letras é, primeiro, dar
material de trabalho. Professor de Letras tem que ter no seu gabinete todo o
material de que precisa ou receber todo
o material de que precisa e deve ter um
programa de viagens para trazer material
propedêutico, como se desenvolve o projeto de trabalho. Muito bem, mas é preciso que ele cumpra o seu tempo integral,
quer dizer, que ele olhe para a ameba.
Temos que pôr, eu posso pôr as amebas,
está lá, cheio de amebas, mas tem que
olhar para elas. Criamos, você conhece
Assis?
Aquele projeto foi bem elaborado
por um casal de jovens arquitetos, os Toscano, jovens arquitetos, dois brilhantes
jovens arquitetos. O casalzinho foi para
lá e viveu um tempo entre nós, fez fluxograma, fez aquele projeto e ficou assim,
um ambiente. Já na outra faculdade, tínhamos começado a criar, dentro do pos-
sível, o ambiente para o tempo integral.
Então foi isso. À tarde, como o curso era
só um curso de Letras, deixamos as aulas
para a tarde. De manhã, mais fresquinho,
voltam mais descansados, todos preferiram a manhã para concentrar-se nos seus
trabalhos. Então, de manhã, sairia às 8h,
entrava na sua Faculdade, ia para o seu
gabinete de trabalho e lá desenvolvia o
seu trabalho. Olha para sua ameba. “Ah,
não tem ameba”. Ou “Quantas amebas o
senhor precisa?” “Eu preciso de x amebas”. Eu compro amebas. Ficou a chamada hora de estudos. Então, de manhã,
os professores todos, mas os alunos também estavam em tempo integral, porque
procuramos criar um comportamento
de tempo integral. E o que o aluno vai
fazer hoje de manhã na Faculdade? Ele
vai estudar. Ele tem lições para fazer, ele
tem livros para ler. Então o alunado ia
de manhã, ia para suas sessões de estudo,
que eram sessões orientadas, porque também a carga de trabalho à tarde se dirigia
para criar uma situação ocupacional de
manhã, de maneira que eu já dava, ele já
dava ao aluno o que fazer. Então eles, de
61
manhã, já sabiam o que iam fazer, iam
lá com inteira liberdade de ter a sua biblioteca, os seus livros, as suas coisas, as
sessões de estudo. As próprias salas-deaula é que se transformam em sessão de
estudo e com inteira liberdade de fumar
etc., levantar, sair. Afinal de contas, o estudante tinha que fazer seus trabalhos. Se
tinha uma dificuldade, combinava com o
professor, ia ao gabinete e o professor
dava uma explicação. Isto é o que se procurou fazer e isso logrou-se fazer, logrouse fazer, de certo modo, bem, o prédio, o
primeiro prédio e de certo modo, muito
bem, no outro prédio. Tínhamos ali um
prédio mais amplo, as instalações mais
adequadas.
As aulas eram curtas, porque 40
minutos, aulas de 40 minutos para não
cansar, não transformar a aula numa salivação exaustiva para o aluno. O professor deve ser um elemento de formação de
mentes, de espírito e não um indivíduo
encarregado de massacrar e salivar alunos. Foi preciso estudar os horários. As
sessões de estudos funcionaram muito
bem, os professores acharam a melhor
solução porque as condições de habitação, numa cidade do interior, são, em
geral, condições um pouco modestas,
espaços, salas e gabinetes de trabalho,
os professores nem ganham para a atividade. As casas eram alugadas e tudo,
quer dizer, uma pessoa não tem, em
casa, ambiente para trabalhar. Para se ir
do centro para a Faculdade, a Faculdade
dava a condução naquele horário, entrando às 8h na Faculdade. No seu gabinete,
as suas coisas: tem o seu telefone, tem,
como viu lá, tem enfim, tem condições,
tem os seus livros, tem a sua máquina de
escrever, pode trabalhar não só para preparar a aula e o curso que está dando, mas
principalmente e aí que está uma coisa
importante, é preciso dar uma razão de
ser à chamada hora de estudo. Os alunos
recebiam uma carga de ocupações para
as horas de estudo, então as horas de estudo eram necessárias, porque eles tinham que fazer aquelas coisas. Estavam
ocupados com as pesquisas, as leituras
e à tarde, na aula e nos seminários, é
possível apresentá-las. Mas o profes-
sorado aceitou o contrato, foi vantajoso
nesse tempo, porque era o tempo integral
máximo que São Paulo pagava e recebiase em Assis, um lugar mais barato, por
isso que os professores tiveram um status agradável, construíram as suas casas,
compraram seu automóvel, criaram seus
filhos. Ótimo, melhor do que é aqui. Mas
os professores todos assinaram o contrato com obrigação de carreira de ensino. A
carreira do ensino foi compulsória. Quer
dizer, no contrato estava escrito que não
seria renovado se o professor não tivesse
feito o seu doutoramento, ou pelo menos
já com tese pronta para ser defendida na
Universidade de São Paulo. Bem, o que
foi, sabia disso. A segunda renovação já
era o encaminhamento da livre-docência.
Naquele tempo não havia mestrado, era
doutorado e a livre-docência. Então era
preciso dois contratos de quatro anos,
os que tinham doutoramento, era o caso
do Professor Antônio Candido, que era
professor não só em Assis, mas foi livredocente da Universidade de São Paulo,
não estava em fim de carreira, porque
veio a ser titular em São Paulo. Mas os
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outros todos fizeram livre-docência. O
Erwin fez livre-docência, Naief Sáfady
fez livre-docência. Os estrangeiros não,
porque esses, o regime europeu era diferente, dois europeus, dois alemães já tinham sido todos acadêmicos na Europa,
mais os outros, todos. De maneira que
a hora de estudo foi coisa providencial
para esses professores. Por quê? Em casa
não tinham condições. As casas são muito pequenas no interior e não tinham biblioteca. A maior parte desses professores,
uns estavam desempregados, outros estavam recém-casados, outros tinham casa
em São Paulo, mas não acabaram com a
casa porque, enfim… De maneira que isso
de chegar à Faculdade de manhã, fresquinho, ter lá a sua salinha para trabalhar,
o seu livrinho, começar a escrever, preparar a sua tese doutoral... Uns voltavam
de noite, lá ficavam a noite toda trabalhando. Em casa, não tinham condições, o
bulício, a família, as crianças que entram,
a rua ruidosa. Não havia condições, de
maneira que, encurtando mais uma vez
a resposta, as chamadas horas de estudo
foram providenciais. Elas não resultaram
porque tivessem sido imaginadas corretamente, é porque elas foram providenciais, tanto para os alunos que tinham
que preparar as coisas para a tarde, como
para o professor, que tinha a carreira de
ensino e tinha que preparar a sua tese de
doutoramento. Posso pegar teses doutorais que estão aqui: “Recursos expressivos na evolução da obra dramática de
Gerhart Hauptmann”, de Erwin Theodor
Rosenthal, isso foi feito em Assis e publicado. Quer dizer, respondendo à mesma
pergunta, há tantas aí outras, eu posso
pegar, porque eram professores que não
precisavam só de uma colocação, eram
professores que precisavam fazer a sua
carreira de ensino. E foi por terem feito
a sua carreira de ensino que vieram para
a Universidade de São Paulo. O Professor Erwin Theodor veio para a cadeira de
Alemão na Universidade de São Paulo,
veio fazer titular em São Paulo. O Professor Júlio Garcia Morejón veio para a
Universidade de São Paulo, veio fazer
titular na Universidade de São Paulo. O
Professor Antônio Candido voltou à Universidade de São Paulo e foi contratado
como professor de Teoria Literária e depois, embora fosse antigo professor aqui,
mas era de Ciências Sociais, não era de
Letras, acabou fazendo sua tese para
titular, titular de professor de Teoria da
Literatura. O Professor Rolando Morel
Pinto veio para a Universidade de São
Paulo, fez a sua tese para titular de Língua Portuguesa; o Professor Naief Sáfady
foi para Belo Horizonte, onde fez o concurso para professor titular de Literatura
Portuguesa, foi substituído agora há poucos meses pela Leila Duarte. Quer dizer,
todos esses professores foram fazer carreira de ensino, foram preparar-se para
ir pleitear o seu título na USP, ou noutra
universidade qualquer. De maneira que a
chamada sessão de estudos foi, digamos
assim, uma medida conveniente. Não
foi apenas uma imposição, foi uma medida conveniente. Era conveniente a todos ter um período de absoluto silêncio,
que nem campainha se tocava dentro do
prédio, nada, nada, nada, para que você
pudesse trabalhar sossegadinho. Estava
lá, hora de silêncio, hora de silêncio. Todos os luminosos, letreiros luminosos, as
63
luzes acendem: hora de silêncio, hora de
silêncio, hora de silêncio. Depois apaga
e à tarde, acende outra vez: sessão docente, sessão docente, todas as luzes. O
negócio condicionava o sujeito às suas
atividades. Pagam-lhe bem, dão-lhe
sossego, o sujeito dizia: “Preciso de tais
e tais livros”. “Eu faço a lista, está aí, vou
encomendá-los. Se o senhor não fizer é
porque o miolo não dá, porque tempo o
senhor tem”. Portanto, a sessão de estudo
resultou, mas ela era uma necessidade.
TM - E perdeu-se isso. Infelizmente, perdeu-se isso.
AA - Olha, minha filha, a coisa é o
seguinte: os processos, digamos, os processos formadores de escolas só funcionam se eles forem processos complexos e
interativos, quer dizer, você tem muitas
medidas, mas uma está ligada a outra, não
adianta medida isolada. “Olha, a partir
desse ano, todo mundo vem de manhã
para estudar”. Não adianta nada. Não,
porque chega lá, “O que o senhor quer
que eu estude?” “Ah, isso não é comigo”.
“O senhor está brincando comigo. Eu estou cheio de problemas em casa, a minha
mulher, criança, isso e aquilo, eu ganho
pouco”. Isso é loucura. Então, quer dizer, esses processos são processos complexíssimos, mas são interativos. Você
vê, quando nós começamos a Faculdade,
a Faculdade esteve um ano criada, com
verbas e crescendo materialmente. Crescendo materialmente e mentalmente,
porque os professores já estavam contratados, mas eles todos trabalhando no
projeto, neste projeto interativo, depois,
quer dizer, tudo que era preciso para que
essa coisa funcionasse. E uma das coisas
era material de trabalho. Você está aqui
na minha casa e ao lado, há uma biblioteca. Você puxa qualquer coisa aí e você
vê o que me custou, a mim, formado em
1935, entrado na universidade em 1935
e formado em 1939, para me especializar em Literatura Portuguesa, sem haver
em São Paulo uma biblioteca de Literatura Portuguesa! Então, eu é que tive de
ir comprando nos sebos, nos leilões, em
viagem a Portugal, comprando os livrinhos aqui, aquele lá, aquele lá. Porque
do contrário, a gente não tinha. É como
um cirurgião que não tem ferramenta.
O senhor aprendeu a cirurgia. E a ferramenta? Ferramenta não há! Mas você vai
aprender, aprende no livro de cirurgia.
Não havia jeito de aprender Literatura
sem ler os livros e tínhamos que comprar. Assis, todas essas bibliotecas foram
montadas em São Paulo, empilhadas em
São Paulo. Levamos mais de um ano
comprando de importadores a biblioteca
italiana, a biblioteca francesa, a biblioteca inglesa, a biblioteca alemã, a biblioteca grega, a biblioteca latina, a biblioteca de Literatura Portuguesa etc. etc. etc.,
para a escola. O Professor Antonio Cândido disse: “As bibliotecas têm que ser
organizadas”. Os professores já estavam
contratados. A sua primeira tarefa, além
da organização desse processo interativo, foi a organização das bibliotecas.
Então, cada um tinha que organizar a sua
biblioteca, partindo das obras de referência, eliminadas as obras de referência:
“Quais são as suas obras de referência?
Você tem que saber, na sua matéria, quais
são as suas obras de referência. São es-
64
sas. Muito bem. Às vezes, as suas obras
de referência são semelhantes às minhas,
independente de ser Literatura Brasileira
ou Portuguesa, mas as obras de referência são as mesmas. Não tem importância,
não é isso, são obras de referência. Quais
são os seus textos básicos? Letras. Quais
são os seus livros básicos de estudo?
Esse, esse, esse, sem isso eu não posso
trabalhar. Muito bem. Quais são as suas
obras básicas? Quais são as suas revistas
especializadas? Porque o professor tem
que abrir as janelas, tem que respirar lá
fora. Quais são as suas revistas internacionais? O professor deve ler algumas
revistas”. Então, obras de referências,
obras básicas e revistas. “Aqui, o senhor
faça a sua lista”. Tudo isso foi comprado, tudo isso foi posto lá. No dia em que
você sentou na sua sala, a Faculdade se
inaugurou, você já tinha trabalhado em
São Paulo o ano todo fazendo isso, você
sentou, você inaugurou, você fez assim,
os seus livros estavam lá, você começava
a trabalhar. As obras de referência, seus
textos básicos e as suas revistas. E todos
vivendo dentro e lá você vê. Agora não,
agora tiraram os livros, puseram na biblioteca central, mas os gabinetes eram dentro das salas, com os livros. Então cada
professor estava com seus livros. Tudo
respirava material de trabalho. O tal efeito interativo. Só é possível você exigir as
coisas se você fornecer as coisas, porque
o argumento do professor é esse: “Falta
material, eu não tenho material para trabalhar, não consigo material”. Como?
Imediatamente o programa de viagens.
No fim do ano, eu arranjava subsídios:
“O senhor vai viajar, o senhor vai à Europa, o senhor faz isso,”tudo bem. Mas
tem que provar que vai fazer isso, fazer
isso, fazer projeto, arranjar uma bolsa.
É preciso que todo o sistema funcione,
porque se o sistema não funciona, não
adianta você dizer: “Olha, você, como
é? Não vai fazer doutoramento?” “Fazer
doutoramento como? Não tem orientador, não tem material, não consigo arranjar bolsa, ganho pouco”. De maneira que
fica registrado isso: o sistema complexo,
quando possível, completo e interativo.
Não há milagres.
TM - Quando o senhor lança essa
idéia do sistema complexo, completo
e interativo, ocorre-me a idéia de um
outro, de pensar a questão sob outro ângulo, que é a questão da estrutura, não
departamental, mas por meio de cátedras. Porque tudo o que o senhor me
disse agora, parece que converge para o
catedrático, o professor trabalhando em
seu gabinete, com seus assistentes e não
para a estrutura departamental. O que o
senhor poderia dizer a respeito disso?
AA - Embora o vínculo empregatício fosse em termos de catedráticos,
o sistema do Estado era o sistema de
carreira de ensino, com um ponto final
na cátedra, no sistema catedrático. Nós
implantamos, em Assis, o sistema departamental. Mas o sistema departamental
caracterizou-se, inicialmente, não por
ser apenas um sistema de trabalho corporativo, não era uma corporação de trabalho. Era um sistema departamental no
sentido de encontrar uma plataforma de
essencialidades em termos de programa
de ensino. Eu dou uma idéia. Nós aqui
tínhamos Língua Portuguesa, Filologia e
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Língua Portuguesa, Literatura Brasileira,
Literatura Portuguesa, Língua e Literatura Latina, Língua e Literatura Grega,
Língua e Literatura Francesa, Espanhola
etc. Levamos para Assis o departamento
de Letras Vernáculas. Na área do departamento de Letras Vernáculas, estivesse
o Professor Antônio Cândido, que era um
professor que estava saindo de uma especialidade com títulos de livre-docente
para outra, onde faria carreira definitiva,
que era de Letras, ele dentro do departamento, estava trabalhando em função
do departamento. Então pergunta-se: o
departamento de Letras Vernáculas, ele
tem, digamos, umas plataformas de encontro dos professores que trabalham
ali dentro? Por exemplo: eu não posso
– minha matéria é Literatura Portuguesa
–, eu não posso trabalhar em Literatura
Portuguesa se o meu aluno não tem uma
formação filológica. Eu trabalho com textos do século XIII, XIV, como trabalho
com textos do século XX. Não há mais
dificuldade em ler uma Cantiga de Amigo do que ler um Saramago. É a mesma
coisa, quer dizer, eu trabalho com uma
expressão verbal dinâmica. Então ele
tem que ter uma boa formação filológica.
Então o departamento em que estou, para
eu poder dar o meu curso, exige que meu
colega de Língua Portuguesa prepare
os alunos de determinada maneira. Isso
acontece com o professor de Literatura
Brasileira, a mesma coisa, mas agora, no
campo exclusivamente da Literatura, eu
não posso trabalhar e ensinar Literatura
a um estudante que não tem conceitos elementares. Por exemplo, se ele não sabe
a diferença entre prosa e verso, ele não
sabe. Então como é que eu posso falar
em poetas e prosadores se ele não sabe
nem qual é a diferença entre prosa e verso? Você dirá: “Bom, isso é um problema
de Teoria Geral da Literatura, são as formas de expressão literária”. Pois bem,
mas se ele não sabe o que é o literário e o
não literário, se ele não sabe o que é um
gênero literário? Ah, bom, é preciso então no departamento, um curso de Teoria
da Literatura. Então o departamento de
Letras Vernáculas exige uma preparação
em Teoria da Literatura, uma preparação
em Literatura Portuguesa, uma pre-
paração em Literatura Brasileira, porque
há paralelismo da Literatura Portuguesa,
é preciso, é uma literatura de expressão
portuguesa, mas que não é a portuguesa
e é preciso estudar isto. Mas tudo isso
implica com o Latim porque, se nós
também não tivermos as bases da língua
latina, não podemos nem trabalhar com a
literatura humanística do século XVI, então precisamos ir para o Latim. Mas meu
Deus, mas tudo isso está implicando com
o Grego! Então o departamento de Letras
Clássicas tem. Bem, tudo isso para dizer
o seguinte: a organização dos programas,
a organização do ensino e o desenvolvimento do ensino era departamental, não
podia deixar de ser departamental. Agora,
individualmente não, porque não existia
nenhum compromisso entre o trabalho
departamental e a carreira dentro do trabalho departamental. Hoje, porque antes
não podia haver dois professores de Literatura Brasileira, não podia haver dois
de Literatura Portuguesa. Podia haver
um, enquanto aquele estivesse, o outro
não podia ter acesso, um impedia o outro. Hoje não, hoje a minha cadeira aqui
66
na USP tem cinco ou seis professores de
Literatura Portuguesa, porque são professores do departamento. A organização
dos programas e o desenvolvimento dos
programas eram rigorosamente departamentais, embora a carreira, digamos assim, a carreira funcional do professor se
fizesse com o regime de carreira de cadeira de professor, catedrático, não existia outro.
TM - Não sei se eu estou cansando o senhor com muitas perguntas.
AA - Não, não, não. Eu não preciso ter trabalhado com tudo para ser um
professor de Literatura Portuguesa. Trabalhei em certas áreas, como estou trabalhando e tal, mas tem que ter a casuística,
já ter tratado todos os textos. Se você me
disser: “Bom, Professor Amora, haverá
dificuldades maiores em ler, vamos dizer, dos prosadores portugueses da Idade
Média, o Zurara, o Gomes Ianes de Zurara será mais difícil que o Fernão Lopes,
o Fernão será mais acessível ou o Rui de
Pina, ou El Rei Dom Duarte, do Leal?”.
Bom, tenho que ter o conhecimento dessas coisas todas, devo ter lido tudo isso,
devo saber quais são as obras, porque eu
não posso orientar doutoramentos sem
isso, nem fazer uma carreira de professor, se eu não tiver conhecimento de
obras. Eu, por exemplo, trabalhei com o
Dom Duarte, século XV, trabalhei – trabalho de investigação científica –, trabalhei com o século XVII e trabalhei com
o século XIV, isto é, séculos XIV, XV e
XVII. Estas coisas depois, de trabalho,
de conferência, é outra coisa, estou dizendo teses de investigação e tudo. Trabalhei, mas tem que conhecer tudo, não
posso debruçar-me sobre um prosador
do século XVIII sem dizer sei, a obra é
esta, poder ler aquilo. Só para explicar
a você tudo isso, voltando àquela idéia,
levou a ter de suprir o professor desses
materiais todos, ele tem que ter esses materiais para poder trabalhar e é para a sua
própria formação. Hoje não, é diferente,
sabe minha filha? Hoje é a mesma coisa.
Hoje você não faz uma formação. Eu costumo dizer, tenho três netas, três moças,
hoje já são formadas, eu digo sempre a
elas o seguinte: “Olha, o importante no
ensino superior é, primeiro, despertar
uma vocação, quer dizer, é preciso gostar
de uma coisa, então o professor tem que
ter um leque de propostas até você poder,
um dia, descobrir lá uma coisa que você
gostou. E depois, você, de repente, abrir
a cabeça para a criação, quer dizer, você
saber que está criando um conhecimento
novo, não é que você está aprendendo,
não, isso é método Berlitz, então você
vai para a Escola Berlitz e aprende num
instantinho Inglês, Alemão, Chinês,
Árabe, isso é Escola Berlitz. Não. É a tal
história, não se pode fazer crítica sem um
dia você não sentir dentro da cabeça qual
é o drama da crítica, quer dizer, o negócio é difícil mesmo. Aí você vai começar
a ser crítica literária.” De maneira que
um professor precisa ter material, o professor de Letras tem muito material, tem
todo o material de trabalho. Você vê isso
aqui, é tudo sobre literaturas estrangeiras: Literatura Oriental, Literatura Grega, Literatura Latina, literatura não sei
o quê, Literatura Francesa, Literatura
Espanhola, Literatura Alemã, Literatura
67
Americana, Latino-Americana etc. etc.
etc. Porque, embora eu não tenha trabalhado, não tenha nada com isso, não
posso deixar de ter as informações, são
obras de referência, porque eu preciso
trabalhar com certas obras de referência.
Não, porque o nosso Camões, ele tinha
encontro, neste episódio do Adamastor,
aquele célebre episódio do Polifemo, que
está em Homero. Quer dizer, tem quer ter
as obras de referência, tem que ir lá, por
acaso sou formado em Grego, mas tenho
de ir lá, ver na minha Literatura Grega,
no meu Homero, na minha coisa ou na
minha enciclopédia, não importa, eu tenho que ver quem é o Sr. Polifemo, entender porque o Adamastor tem relação
com o Polifemo. De maneira que, isso
que se passa em Letras, obriga a uma
abundância de textos, oferecer ao professor, na sua formação para o estudante,
sim, porque ele não forma, ele nunca se
forma, ele sabe umas coisas, ele nunca se
forma, estes são os chamados materiais
que nós temos que oferecer. Portanto,
voltamos à história das sessões de estudo:
é preciso pôr os materiais lá dentro e pôr
uma razão de ser para você ocupar-se do
material, é a sua carreira de ensino. E se
você não tem carreira de ensino, também
não adianta, porque você não faz mais
nada, você vai dar aula, porque o professor adquire uma certa facilidade de dar
aula, o professor, no início, sempre se
defende um pouco, depois é que ele cai
num certo automatismo. O alunado, pela
lei do mínimo esforço, quanto menos o
professor vier a exigir, tanto melhor. Mas
a escola não é feita por pessoas atrapalhadas que estão por aí, a tentar arranjar
uma coisa para superar a trapalhice da
vida. A escola é outra coisa, a escola é
uma coisa feita para a pessoa abrir a cabeça e saber para onde vai. Agora, abrir a
cabeça e saber para onde vai é um milagre da maiêutica. Enfim, a experiência de
Assis foi uma experiência para mim, eu
vivi essa experiência desde a madrugada. Eu acordei chamado às 11h30min da
noite, pelo telefone dos Diários Associados, dizendo que eu tinha acabado de ser
nomeado diretor de uma Faculdade em
Assis. Eu não sabia nem onde era Assis.
“Está aqui, está vindo do Palácio a notí-
cia”; no dia seguinte eu fui saber o que
era isso. Desde a primeira hora e depois,
tive a sorte de reunir fabulosos professores e amigos e passamos todos a viver
a mesma experiência e a enriquecê-la,
não só com a competência e o trabalho
de cada um, mas importantemente, com
o espírito crítico de cada um, porque o
exercício do espírito crítico, eu acho que
foi a grande alavanca desta experiência.
Porque foi feito com muita preocupação
crítica. “Está certo. Está certo. É isso
mesmo. É isso mesmo. Estamos acertados? É por aí que você vai, não é por aí
que se vai”. Todos exercemos o espírito
crítico da melhor maneira.
TM - Professor, gostaria de ter um
pouquinho do roteiro biográfico da sua
pessoa, se possível pensando em termos,
também, de formação acadêmica, desde
o início.
AA - Eu nasci aqui em São Paulo,
sou filho de cearenses, de velha tradição
cearense, deve estar com uns trezentos
anos no Ceará, mas nasci aqui em São
68
Paulo e me criei no Rio. Depois, já vim
rapazinho para São Paulo, voltei, tirei
parte da escola primária e o ginásio em
Guaratinguetá, Colégio Nogueira da
Gama, um excelente educandário, tradicional educandário paulista que o meu
pai, vindo do Rio, achou um bom lugar
para os filhos estudarem. Depois de formado, em 1934, no ginásio, antigo ginásio, eu vim para São Paulo e logo em fevereiro procurei entrar, entrei na
Universidade, através do curso universitário que a Universidade estava inaugurando, os chamados cursos universitários, o pré-universitário, o chamado
pré-universitário. Pré-universitário para
Direito, pré-universitário para Medicina,
pré-universitário para Politécnica. O chamado curso universitário foi uma coisa
que a universidade inaugurou nos anos
1935, 1936 e 1937. Eu ingressei logo
num curso universitário para Direito,
porque é o que havia de mais próximo
para as minhas tendências para as Ciências Humanas, embora tivesse tido uma
veleidade de estudar Medicina, mas não
foi possível, porque meu pai era comer-
ciante modesto e não dava para sustentar
os filhos em São Paulo. Precisava trabalhar e cuidar da minha vida. Fiz o colégio
universitário na Universidade de São
Paulo, depois tive notícia da instalação
do curso de Letras, já indicando para Direito, cheguei a fazer vestibular para Direito, cheguei a entrar na Faculdade de
Direito, mas tinha sabido da Faculdade
de Letras, o curso de Letras e tinha um
certo pendor assim, para as coisas literárias, que meu pai, embora comerciante, me transmitiu. Eu procurei o curso e fiz vestibular para a Faculdade de
Letras e aí, tive a sorte de ter professores
extraordinários. O Professor Rebelo
Gonçalves, que era o homem fabuloso
que dava Filologia Portuguesa e, logo em
seguida, passou para o curso de Filologia
Clássica, Greco-Latina, um homem que
marcou fundo o meu espírito, comecei a
entender, estudar uma língua Greco-Latina, para daí ler a Gramática Duarte Ramos Pereira. Ler aquelas gramáticas era
estudar, era entrar no mundo, no universo
dessas línguas e o que se expressava nessas línguas e essas coisas todas. Logo em
seguida, teve um professor de Literatura,
que era o Professor Figueiredo. Depois
vinha certa coisa, assistente e depois
genro, assistente e genro e com quem trabalhei a minha carreira toda. Mas foram
homens que marcaram muito a minha
vida, porque foram homens com uma cabeça extraordinária, com uma formação
científica muito boa, homens que nos exigem mesmo, mas homens notáveis na
capacidade de formar gente jovem, de
dizer: “É por aqui que se vai, só há um
jeito, é por aqui, não há dois jeitos”. De
maneira que eu tive essa sorte. O seu
conhecido, o nosso colega, o Professor
Alfredo Palermo, foi meu companheiro
desde o primeiro dia de aula, tanto do
Professor Rebelo Gonçalves, tanto do
Professor Fidelino de Figueiredo, mas o
Professor Palermo construiu a sua vida e
eu tive um aceno do Professor Figueiredo
para trabalhar com ele e achei que devia
trabalhar e aprender o be-a-bá das coisas.
E assim se, por acaso, casei com a Helena, mas isso… Várias pessoas não acreditam, eu nem sabia que ela era filha dele.
Isso quase me deu uma trapalhada de-
69
pois, estava namorando uma menina na
Barão de Itapetininga, depois vim a saber
que era filha do professor. Nossa, que
trapalhada, mas depois minha futura
sogra se encarregou de evitar a trapalhada, porque podia parecer uma coisa de
má intenção. Alfredo foi testemunha disso, sabe que tudo foi casual, o Alfredo é
muito amigo da Helena também, sabe?
Tudo foi casual. Mais ou menos ela sabia
quem eu era, mas eu não sabia quem era
ela, enfim, razões. Também vim a ser
genro dele e depois conviver intimamente com ele. De maneira que eu tive a
sorte de ter grandes professores e aprender
o be-a-bá da Crítica Literária, da Crítica
Portuguesa e o be-a-bá do ensino da Literatura, já com um grande mestre, com
uma grande experiência. O professor me
transmitiu uma experiência que começou
em 1910, com a reforma da Crítica Literária Portuguesa; terminou em 1930,
depois ele foi para os Estados Unidos, já
estava selecionando o material dele em
Berkeley, em 1931, na Califórnia; selecionando o material dele, como pediriam
a Lisboa sobre isso, em 1931, na Califór-
nia, ele criou o primeiro curso superior
americano de Literatura Portuguesa.
Aqui estão as provas todas dos alunos,
estão os cadernos, as aulas, as coisas, os
catálogos. Mas era um homem que trazia
uma experiência. Quando ele estava na
Califórnia, o Professor Almeida Prado,
que estava no projeto da Fundação - pai
do Décio Almeida Prado -, estava no projeto da Fundação de Educação de São
Paulo, convidou-o a vir para São Paulo,
para dar a Literatura Portuguesa. Ele não
pôde sair da Califórnia, acabou vindo
para São Paulo só em 1938, depois voltou
aos Estados Unidos; em 1936, 1937, tinha várias coisas, enfim, tinha muitos
compromissos internacionais, mas isso é
para dizer o seguinte: quando ele veio a
São Paulo e eu assisti a primeira aula do
Professor Fidelino de Figueiredo, em
1938, março de 38, a gente sentia que
caía no abismo. Era um curso sobre, ele
abriu, estava sem livros, havia uma antologia e era uma página do Oliveira Martins, um grande historiador português,
uma página sobre o triunfo de Paulo
Emílio, aquela página linda, linda que
ele escreveu sobre a História da Civilização Romana, dele, que ele escreveu sobre Paulo Emílio. Ele disse aquela página
ilustrando o que era preciso entender
para entender aquilo, porque aquilo
começou a crescer, a crescer, a crescer.
Tinha realmente um dom excepcional de
abrir cabeças, abrir cabeças, só numa
conferência abriu uma cabeça, abriu
várias cabeças numa conferência. Era um
homem, um espírito… Mas eu tive também esse privilégio e então vim realmente a trabalhar com ele, ali, tostão a
tostão, a coisinha à toa, não foi brincadeira. Portanto, estou nisso outra vez, estou nisso outra vez. A experiência de Assis para mim foi muito importante, porque
me permitiu transformar toda uma formação teórica, não didática, porque eu
dava uns cursos, tudo isso, mas toda uma
formação teórica sobre o que é uma universidade e eu já vinha de visitar várias
universidades, eu já tinha trabalhado na
Universidade de Hamburgo, tinha trabalhado, feito conferência em várias universidades francesas e italianas, universidades espanholas, portuguesas, inglesas.
70
Enfim, era o momento de eu dizer: “Bom,
uma universidade se faz assim, faz assim”. Bem verdade que aquilo era uma
pequenina célula de uma coisa muito
grande, mas é a tal história, uma célula é
realmente um microcosmos, ela é uma
parte de um organismo, se ela estiver errada, o organismo vai dar tudo errado, o
resto vem por multiplicação. Então eu
achei que Assis me dava esta oportunidade. É sabido, é público e notório, é
sabido isso, que não ganhávamos nada,
não podíamos ganhar, porque éramos
professores de tempo integral e assim
não podíamos receber nada e era função
do Estado, do próprio governo. Houve
um pró-labore, mas a gente chegava a
pedir o pró-labore e devia esquecer. Eu
ainda, que já não trabalhava com o meu
sogro, mas falei com ele, estive conversando e disse: “Eu acho que, enfim, é a
hora de você saber se a coisa funciona, se
é isso, se não é isso. Então vai agora, vai
fazer”. Então, Assis foi a práxis, a práxis
de uma longa gestação, de uma longa e
demorada gestação de um ideal universitário, o que é uma universidade, uma
escola superior, o que é um curso de Letras. Foi a práxis. Foi aquele momento. E
tive a sorte porque logo veio o governo
do Carvalho Pinto e nós fomos amigos
desde rapazes, ele era mais velho do que
eu, ele era de família de Guaratinguetá e
eu fui estudante lá e eu ia lá visitar a
família, e o nosso querido Professor Carvalho Pinto teve tudo isso e o céu também. Agora, é preciso dizer, foi posto
dentro do Plano de Ação do Estado, levamos os projetos e ele imediatamente fez.
Portanto, Assis me deu possibilidade de
ver se as coisas funcionavam. Se é assim
que, porque não adiantava nada ser professor de Faculdade de Filosofia dizendo:
“Deve-se ensinar Literatura assim e não
assim” e tal e dar aula para os alunos.
“Então muito bem, está aqui o dinheiro,
o senhor vai organizar a sua escolinha,
vai infernizar aí os alunos na sua escolinha”. Realmente valeu a pena, valeu a
pena. Deu muito trabalho, muito trabalho
mesmo, a coitadinha da Helena e da Flora, elas dizem sempre que foram anos de
sacrifício para elas, porque eu saía daqui
domingo à noite ou segunda de madru-
gada e voltava só quarta-feira, toda semana, isto durante nove anos. Para elas, a
Flora pequena e tal, quer dizer, todos se
sacrificaram. Nessa minha modesta e pobre biografia, vem depois uma outra experiência que para mim valeu muito, valeu muito e que foi a TV Educativa. A TV
Educativa da Fundação Padre Anchieta.
Eu fui convidado pelo Sodré para participar do projeto da TV Educativa como
educador, como professor e para criar um
núcleo central na Divisão de Ensino e na
parte toda da programação do ensino.
Isto foi em 1968. Eu saí de Assis em
1964, com a Revolução. Começaram os
atos de violência, eu tive que intervir
para libertar professores presos, foi o
caso do chefe de polícia lá, tive que intervir. Depois fui para Brasília, no tempo
do Zeferino, também para libertar o professor, que estava preso. Depois fui embora para trabalhar na Alemanha. Voltei
para a Alemanha, fui trabalhar, fui para a
Universidade de Berlim. Fiquei uns tempos fora, digo: “Ando farto de milicos”.
Quando voltei, o governador era Sodré, o
Roberto, que tinha sido meu aluno no
71
Colégio Rio Branco; me pediu para trabalhar nesse projeto e eu trabalhei nesse
projeto e acho que foi um projeto, também, que valeu a pena. Eu estou até hoje
na Fundação Padre Anchieta, sou membro vitalício do Conselho, fui fundador,
estou até hoje lá. Mas aquilo foi feito
mesmo pedra, pedra, pedra, pedra, pedra.
Depois, em 1983, eu achei que já estava
virando arroz de festa. Não, depois saí,
depois saí da TV 2 e fiz um projeto que
me encheu de alegria: foi o curso de Madureza, pelo rádio e pela televisão. Tivemos em cinco ou seis anos quase cinco
milhões de alunos e com professores, alguns até dessa primeira experiência, resolvemos fazer um curso de Madureza,
pelo rádio e pela televisão. E o Zara, a
Editora Abril e os fascículos nas bancas
toda semana, o sistema de multimeios e
trabalhando maciçamente no chamado
ensino supletivo. Foi bem custoso e montamos um projeto empolgante para o
Brasil todo, valeu a pena. Depois a Globo
ficou com o supletivo de 2º grau. Enfim,
na minha experiência, na minha pobre
biografia, há essa outra experiência, dig-
amos educacional, numa outra galáxia,
que é trabalhar com a chamada educação
permanente. Eu achei que, para investigar, contribuir modestamente, não importa, o conhecimento, o aumento do
conhecimento é importante, a transmissão do conhecimento. Mas trabalhar a
educação permanente é outro grande desafio, sobretudo porque estava fora do
sistema escolar, num país como este,
onde há mais gente fora do que dentro.
Eu estive na Inglaterra também. Comprei
biblioteca, montei, estive num projeto da
Open University; estive em Paris, em
Mont Rouge, na Rádio e Televisão Francesas; que faziam filmes educativos. Vi na
Itália, na RAI, na Espanha, enfim foi um
projeto, só não vi no Japão. Vim para cá
e realmente, um bom projeto, bom projeto! Me aposentei em 1970 na USP, para
me concentrar mais no Projeto da Rádio
e Televisão Educativa e para deixar a carreira, ainda era catedrático, para poder
dar a vaga para o Spina, mas o Spina foi
para a Língua Portuguesa, foi a vaga do
Silveira Bueno, e Massaud Moisés veio
para a minha cadeira e já abriu vaga para
um outro. Aquilo era assim, um pouco
arrumação dos sapatos na sapateira, para
você tirar um par de sapatos, você tem
que pôr um par de sapatos novos, senão
não entra na sapateira. E, portanto, eu estou agora concentrado em outros trabalhos. Veio o centenário do meu sogro em
Portugal e a Biblioteca Nacional de Lisboa, em que ele foi diretor duas vezes,
pediu-me para organizar as comemorações do centenário. Organizei, recolhi
trabalhos sobre ele e ainda estou terminando de organizar trabalhos para o centenário dele que já passou, mas ainda estou trabalhando nisso. Depois entrei na
Academia Paulista de Letras, acho que é
uma outra galáxia também, é a galáxia da
Literatura como criação literária, não da
Literatura como crítica, nem da Literatura como ensino e já estou lá há mais de
15 anos, e agora estou na presidência da
Academia Paulista de Letras e estou também fazendo uma experiência engraçadíssima. Resolvi também fazer a minha experiência, quer dizer, como é que se
dirige uma Academia de Letras? A
Academia Paulista é um patrimônio de
72
quase cem anos, um belíssimo patrimônio,
riquíssimo, esplêndido patrimônio e,
portanto, estou já há um ano, vou para o
segundo ano agora, depois desse e estou
trabalhando na preservação desse
patrimônio, na divulgação e no enriquecimento desse patrimônio, na dinamização desse patrimônio. Enfim, o que não
falta, minha filha? A minha vida tem
tudo, só não tem monotonia.
TM - Perfeito, professor. Eu estou
até meio sem graça de tantas perguntas.
Vou fazer uma última, mas o senhor se
sinta à vontade de falar quanto quiser. A
colocação que o senhor fez no início, é
de que a USP promoveu uma diáspora,
empurrando seus pesquisadores e professores para atender a essa demanda de
interiorização da cultura. Bem, em 1976,
cria-se a UNESP, uma universidade que
foi criada num movimento, vamos dizer
- seria inverso? - de agregação. Como
o senhor vê a criação da UNESP nesses
moldes, de juntar escolas tão diferentes,
em estágios tão diferentes, com projetos
acadêmicos tão diferentes, numa única
instituição, numa Universidade?
AA - Um Instituto Isolado não
se confunde com a Universidade, nem
quantitativamente, do ponto de vista do
peso absoluto, nem substancialmente,
nem nas chamadas perspectivas e possibilidades. O Instituto Isolado tem muitas limitações e, portanto, a UNESP foi
absolutamente necessária. Quer dizer,
o risco desses Institutos Isolados era
realmente eles dessorarem, perderam o
soro, perdem, vai ficando caseína, acaba
virando caseína. Quer dizer, é um queijinho, não é nada, caseína, ninguém vai
comer aquilo, ou deixar de comer, mas
também não estraga. Aquilo é capaz de
ficar em estado permanente de caseína,
quer dizer, dessora. Uma Universidade é
em si, antes de mais nada, digamos, um
volume muito grande, pela quantidade
de Institutos que entram, e uma Universidade tem que ter uma política para se
constituir, para se impor e para aumentar
a sua potencialidade. Isso vai depender
daquilo que se chama a política do reitor e de quem cerca o reitor. O reitor é
a cabeça que vai, não interessa que um
Instituto esteja no Amapá, outro Instituto
esteja na Uganda, há universidades assim constituídas, há universidades mundiais. Há uma universidade, existe uma
universidade mundial, à que contribuem
vários países, unidades das mais variadas. O atual reitor é até o professor Heitor
de Souza, e a sede é em Tóquio. Quer
dizer, pouca gente sabe disso, mas tudo
isso está se movimentando segundo uma
política mundial, na Universidade. Portanto, a UNESP era uma necessidade,
mas é preciso que a UNESP continue a
trabalhar na política de revitalização das
suas unidades. Elas não são escolas de
alunos, elas são instituições de pesquisa,
de publicação de trabalhos de revitalização. É preciso continuar a política que o
Landim está fazendo, uma política boa
de revitalização. É preciso a política de,
digamos assim, de representatividade
dessa instituição, isto é, ela precisa vir
a público com uma personalidade, com
uma produção, é o que tem a UNICAMP.
A UNICAMP vem a público porque tem
determinados trabalhos que projetam
73
a UNICAMP internacionalmente, nacionalmente, e certas coisas que acontecem lá. É preciso o Mengele, a cabeça
do Mengele, o esqueleto do Mengele, o
crânio do Mengele, tudo. Vai um técnico
da UNICAMP e a UNICAMP já é projetada no mundo inteiro, porque o mundo
inteiro falou do Mengele, e é preciso saber se a cabeça do Mengele é do Mengele,
não é do Mengele e vem lá um matuto lá
da UNICAMP etc etc.: “É sim, a cabeça
do Mengele”. Quer dizer, a UNICAMP
projetou-se. Então é preciso essa representatividade, quer dizer, uma política de
desenvolvimento que o Zeferino tinha,
deixa eu dizer entre parênteses. O Zeferino trabalhava assim: uma boa escola e
alguns elementos excepcionais capazes
de projetar a escola mundialmente, internacionalmente. Ele era capaz de dar a um
sujeito que passava a vida procurando
som em flauta, mas toda gente dizia: “O
homem da flauta está na UNICAMP, ou
está em Ribeirão Preto”. Não interessa
se é uma flauta, não interessa, a flauta
é o negócio dele. O papa-níqueis tem a
flauta, ele com aquela flauta, o dinheiro
com que ele ganha flauta! A política do
Zeferino sempre foi essa. É preciso que a
universidade se projete, se imponha. Se
não é possível fazer como um todo, ela
se faz com um ou outro elemento. Onde
lá um professor é especialista em baba de
aranha, mas é o único sujeito no mundo
que mexe com baba de aranha, algum
dia vão precisar da baba de aranha dele,
e a UNESP terá que começar a juntar as
suas potencialidades, começar a trabalhar a projeção dessas potencialidades.
Evidentemente, também, tem de fazer
uma política, digamos assim, de expansão, saber o que vai crescer e o que não
vai crescer. O que será mantido como
serviços, dentro das suas qualidades respeitáveis, de serviços e as coisas onde
é preciso investir, porque elas podem
subir o patamar além de simplesmente o
serviço e passar a ser contribuição para o
aumento…
Eu acho que a UNESP está certa.
Está certa começando a desenvolver uma
política que visa a organizar, a reorganizar o seu corpo, não interessa onde ela
esteja, onde estejam as unidades, tenho
certeza. Nada mais disperso do que a
Universidade da Califórnia, uma universidade mundial, a Universidade da
Califórnia e tudo funciona, é uma coisa
só, embora Los Angeles seja uma coisa,
cada campus tem as suas peculiaridades.
Realmente faça essa organização, essa
reorganização, defina bem essa reorganização, imponha, quer dizer, a política, digamos assim, de prestígio, de conquista
de prestígio público. Porque, minha filha,
na hora de conseguir os recursos orçamentários é que o prestígio conta. Não
adianta o reitor estar por dentro da maioria dos pedidos de orçamento, essas certas pessoas que não têm coragem de dizer, quando há pessoa com problemas de
saúde, nem o corpo se levanta e a cabeça
também perde. Quem é que vai resolver
também o problema das universidades?
De maneira que é preciso isso e depois
começar a política de desenvolvimento,
não uniforme. Eu acho que há uma conclusão em tudo isso… Na vida acadêmica, universitária, sejamos professores,
ou sejamos diretores, ou sejamos alunos,
74
é preciso estarmos conscientes de uma
coisa: os problemas são permanentes e
a procura de solução para os problemas
tem que ser permanente. Não há obra
conclusa. Ninguém pode dizer: “Bem,
eu vou organizar a UNESP. Pronto, está
organizada. Olha, viu como está bonita?”
Não, a UNESP será sempre uma instituição em expansão, uma instituição problemática, exigindo solução para os seus
problemas. São instituições vivas e tudo.
O que existe assim, idealmente, são os
modelos que a gente persegue. Nós estamos perseguindo modelos, mas nunca
se chega. Acaba um reitorado, começa
outro reitorado e há outras coisas para
fazermos. Agora, conduzir uma universidade ou conduzir uma escola superior
sem objetivos e sem perseguir estes objetivos, não leva a nada. É preciso ter objetivos e perseguir estes objetivos, senão
este chamado varejo leva a vida do reitor:
“Não, agora estou, estamos aqui com um
problema, o problema aqui é de reforma
do telhado. O telhado precisa demolir…”
O reitor está desfeito no varejo, que é
isso, está tudo errado. Por isso existe um
Conselho Universitário onde, senão todos, pelo menos há algumas pessoas que
sabem o que é uma universidade e qual
é o modelo ideal para onde devemos ir.
E então temos que dar volta disso. Em
São Paulo há, hoje, está em um artigo
do nosso Lobo da USP, a propósito disso: de repente os professores acordaram
na USP, porque a USP estava perdendo
completamente a tramontana, quer dizer,
estava perdendo o timão, a coisa, o barco
andava aí já, parecia uma casca de noz
no meio de uma enxurrada, a USP já não
sabia nem mais por onde ia, se ia para
a coisa política, se não ia para a coisa
política. E agora o Lobo está começando… Já começou com o Goldemberg e
tudo, já estão começando a dizer: “Não,
espera aí, meu filho, o negócio é ir por
aqui”. Eu acho que o Landim também
está muito preocupado com isso e você
pode discutir se o objetivo está certo ou
errado, isso pode, mas tem pelo menos
que discutir.
TM - Certamente, é o que será
feito. Professor, muito obrigada pelo seu
depoimento, ele irá nos ajudar muito na
compreensão da história de nossa Universidade. Muito obrigada.
75
DEPOIMENTOS
Entrevista com o Professor
Mário Rubens Guimarães Montenegro1
Formado pela Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo em 1946,
Montenegro, como docente daquela instituição, desenvolveu sua carreira acadêmica
junto ao Departamento de Anatomia Patológica. Foi um dos principais nomes da pesquisa e ensino na disciplina de Patologia, no Brasil. Sua vida acadêmica teve seqüência em Botucatu tendo participado, em 1962 do processo de criação e instalação da
Faculdade de Medicina de Botucatu. Em Botucatu, o professor Montenegro foi agraciado com a distinção de professor emérito. Esta entrevista contém um depoimento
sobre sua visão a respeito da criação da UNESP e sua repercussão para a Faculdade
de Ciências Médicas de Botucatu.
1 Efetuada por Isaura M. Accioli Nobre Bretan, em Botucatu, em 16 de julho de 2001.
CEDEM – Projeto Memória da Universidade.[Doravante: entrevistado - MM; entrevistadora -IB.]
76
Mário Montenegro – Participei
do início da Faculdade de Ciências Médicas e Biológicas de Botucatu. Nessa
época, havia um órgão do Conselho Universitário da USP que era responsável
pelas escolas isoladas, escolas superiores
isoladas do interior, e esse Conselho participou e sugeriu a criação dessa Faculdade, velha Faculdade de Ciências Médicas e Biológicas que, na verdade, foi
criada, como quase tudo no Brasil, por
razões políticas. Naquela ocasião, ví-me
envolvido por ser assessor do Conselho,
contra a minha vontade, porque era um
patologista que queria ficar fazendo patologia, mas na época, o meu ponto de
vista, que passei aos colegas, aos companheiros que trabalharam com a questão,
era de que nós devíamos seguir, em São
Paulo, o exemplo da universidade da Califórnia, uma universidade multicampi,
e cada campus com uma grande autonomia, que seria assim: USP São Paulo;
USP Campinas; USP Ribeirão Preto; e
USP Botucatu, e que haveria, claro, um
Conselho Superior dessa instituição, mas
cada um dos campus teria uma liberdade
muito grande de ação. Evidentemente,
esse conceito não passou, em parte porque havia muito interesse na criação dessa Faculdade; então, saiu a Faculdade de
Ciências Médicas e Biológicas de Botucatu. Essa Faculdade foi um sucesso; no
princípio lutou-se com enormes dificuldades, porque foi criada por razões políticas e os políticos que a criaram perderam
o poder, assumiram políticos que tinham
muito pouco interesse por ela e foi muito
difícil fazer que ela saísse do chão. Creio
que todo mundo sabe, foram os alunos da
Faculdade que desempenharam um papel muito bom, muito grande nesta saída
da Faculdade daquela situação precária
em que estava, para se transformar numa
instituição de bom nível.
Esta instituição era eminentemente democrática, os docentes, os funcionários, os alunos participaram da criação
de seu estatuto, foi uma época extremamente bonita, extremamente agradável,
em que se criou, se discutiu detalhadamente como deveria ser essa faculdade
e, a custa disso, essa faculdade cresceu
de uma forma muito importante. Sempre
digo que aos dez, doze anos depois de ela
ter sido criada, os professores desta instituição produziram 8% de todos os trabalhos que foram apresentados à reunião da
Sociedade Brasileira para o Progresso da
Ciência, em 1976. Era então um sucesso
e aí, por razões políticas, mais uma vez,
se resolveu criar a UNESP.
A criação da UNESP foi imposta aos Institutos Isolados. Os Institutos
Isolados cada um com sua história, uns
mais avançados, outros menos avançados, eram instituições sérias que trabalhavam com vontade e que vinham realmente atendendo a idéia que os criou,
que era colocar no interior, faculdades,
escolas de ensino superior de nível bom,
para que seus egressos ficassem no interior, porque até então só havia escolas
de ensino superior na capital. Os alunos
iam, estudavam lá e não voltavam; a
idéia de criar os Institutos Isolados era
essa, que os alunos se quedassem nos
locais onde haviam estudado, melhorando a cultura, a tecnologia etc., de todo
77
o interior do Estado. Alguns institutos
eram ótimos, eram institutos de grande
responsabilidade, que formavam muito
bem, que tiveram excelentes iniciadores.
Por exemplo, Antonio Candido, em Assis, o próprio Ademar Freire Maia, em
Marília, excelentes professores que fizeram desses Institutos, que ainda estavam
crescendo, importantes instituições para
o desenvolvimento do nosso Estado. Às
vezes, como sou velhinho, posso dizer o
que penso, essa universidade foi criada
para que o Luiz Martins virasse reitor – é
um homem muito inteligente, meu amigo, e fez muitas coisas boas, inclusive a
faculdade de Bauru, ele teve um papel
importante na Odontologia de Bauru –
mas o Luiz Martins queria ser reitor, e
ele não tinha chance na USP, então ele
criou uma universidade para ser reitor,
essa é que é a realidade.
A idéia de criar a universidade
multicampi, não é a USP com diferentes campus, ela não passou, então, surgiu
uma, que acho legítima, de reunir os diferentes Institutos Isolados em uma univer-
sidade multicampi, foi o que aconteceu;
só que, quando ela foi instituída, era a
época do domínio dos militares, daquela famosa maldita revolução, e isto, as
idéias da revolução é que dominaram a
criação da UNESP, então, foi criada uma
universidade em que o poder central estava na mão do reitor. O reitor escolhia os
diretores, os diretores escolhiam os chefes de departamento, era absolutamente
centralizada em São Paulo. Isso causou
uma enorme revolta dos Institutos Isolados, a maior parte deles, não que se
opusessem à criação da UNESP, opuseram-se à criação de uma Universidade
com estatuto que parecia uma regra de
estação de ferro, uma coisa assim, quer
dizer, é proibido cuspir no chão, só faltava isso nesse estatuto, era um estatuto
absolutamente horrível, e que mantinha
o poder nas mãos do reitor, que era designado pelo governador, e ele designava
os diretores que designavam os chefes de
departamento; na realidade, não havia representatividade do corpo das unidades,
na sua administração, isso era péssimo, e
os Institutos mais evoluídos tiveram uma
reação muito grande, inclusive, fizeramse coisas muito ruins, por exemplo, nós
tínhamos aqui na Faculdade de Ciências
Médicas, um departamento de Educação, de Pedagogia, o objetivo quando
se criou isso – eu participei muito ativamente disso – era que esse Instituto, esse
departamento fosse voltado ao ensino na
universidade, a maior parte da Pedagogia, da educação no Brasil estava voltada
para educação primária, para educação
secundária, pouquíssima coisa havia em
relação à educação superior. No nosso
departamento, o objetivo principal era
a criação de condições de ensino superior, a pesquisa desse departamento seria
o ensino superior na nossa Faculdade;
e o que que a universidade fez? Tirou o
departamento da Educação de Botucatu.
Da mesma forma, professores foram deslocados para outros campi, eles tinham
criado suas vidas, tinham suas casas, suas
famílias, seus filhos na escola, foram tirados de um lugar para outro sem nenhuma lógica, a lógica era a cabeça do reitor,
que é um homem inteligente, sem dúvida
nenhuma, mas que na ocasião, ele, como
78
todos aqueles que tinham poder no Brasil, estava eminentemente aderido à idéia
dos militares, do poder central e tudo o
resto não interessava, todo camarada que
fosse contra o poder central era comunista, subversivo, ia preso, matavam etc.
A idéia de criar uma universidade multicampi é lógica, correta, acredito que
seria inevitável; o problema na criação
da UNESP foi a forma pela qual essa
universidade foi criada, ela foi criada de
cima para baixo, contra os interesses da
maioria das pessoas que nela trabalhava
e, freqüentemente, causando prejuízos
muito grandes aos programas, àquilo que
as pessoas tinham programado para que
seus Institutos fossem. Ou seja, há um
Instituto de Química, ele está querendo
este caminho, ele fez o seu caminho, ele
propôs o seu caminho e vinha caminhando no sentido de obter, de chegar ao sucesso, através do seu caminho; “ Não,
não é mais você que manda, quem manda sou eu aqui em São Paulo,” que não
sou químico.
Essa história foi muito ruim, criou
problemas horrorosos, foram coisas muito ruins que aconteceram, e que nos primeiros anos prejudicaram muito o desenvolvimento da Universidade. A nossa
escola de Medicina, por exemplo, sofreu
uma parada, porque ela tinha idéias que
foram abandonadas. Nós, por exemplo, tínhamos a idéia de departamentos
grandes que fossem voltados para a especialidade e não necessariamente para
a profissão; por exemplo, tratamento de
cirurgia, faz cirurgia, cirurgia de gente,
cirurgia de bicho; o departamento de
patologia, patologia humana, patologia
veterinária, eu queria de todo jeito que
tivesse também a patologia das plantas,
só que os agrônomos resistiram, mas
eram só os professores; os alunos da veterinária e os alunos do departamento de
patologia da Faculdade, achavam certo,
isso era uma idéia nova que causou, trouxe resultados excelentes, tanto que hoje
o departamento de cirurgia da Faculdade de Veterinária de Botucatu é um dos
melhores do Brasil, porque os seus primeiros professores foram treinados junto
com os médicos, não é que os médicos
sejam melhores que os veterinários, mas
é que a cirurgia humana era mais desenvolvida que a cirurgia veterinária, hoje
à custa desta influência, a veterinária de
Botucatu, a cirurgia veterinária de Botucatu é tão boa quanto a cirurgia humana,
e é a melhor, provavelmente a melhor do
Brasil. Então, esse fato, essa idéia de que
a gente devia trabalhar junto, foi podada
completamente, criaram-se departamentos que não foram, que não saíram do desejo dos seus membros e que foram impostos pelo pessoal de São Paulo, e isso
foi muito ruim. Então essa primeira fase
foi, do meu ponto de vista, a criação de
uma coisa contra os interesses daqueles
que iam trabalhar nela, sempre é ruim,
não pode ser bom, a não ser que eles fossem uns idiotas, mas não era verdade, o
nosso pessoal era muito bom. Criada a
Universidade, surgiram problemas, que
aqui referi, mas, aos poucos, quando foi
feito o regimento da Universidade, que
teve uma participação maior do corpo
docente dos Institutos, e quando cada Faculdade fez o seu, as coisas caminharam
como deveriam ser, quer dizer, as escolas
79
passaram, se dissociaram departamentos,
mas as escolas continuaram. Copiou-se
o sistema USP – a nossa idéia era uma
faculdade que produzisse vários cursos e
que tivesse corpos docentes compatíveis
e corpos docentes até entrosados no ensino –, criaram-se, então, a Faculdade de
Medicina, Faculdade Veterinária e o Instituto de Biologia, isto é, aquilo que tinha
na USP; não havia nenhuma originalidade nisso, e o que nós tínhamos proposto
era o original. O princípio, portanto, foi
muito ruim, muito traumático, uma porção de gente ficou desesperada. Depois os
anos passaram e, hoje, a UNESP é aquilo
que deveria ter sido desde o princípio, é
uma Universidade multicampi, em que
todos são representados, o ponto de vista de cada um dos docentes é ouvido, a
Universidade é composta de um Conselho Universitário coerente, um conselho
universitário legítimo e, hoje, ela é um
sucesso, e acredito que realmente ninguém esperava que ela fosse o sucesso
que ela é; há vários núcleos dos campi
dessa Universidade que são dos melhores do Brasil, e a gente então fica muito
contente com isso, mas sofreu-se muito
no momento de sua instalação, que foi
uma coisa feita na marra de cima pra baixo, sem ouvir os interessados.
Isaura Bretan – Eu só queria lhe
perguntar uma coisa, Professor: com a
criação da UNESP, quais são as transformações que o senhor vê na Faculdade
de Medicina?
MM – Bom, aconteceu uma coisa que foi complicada. Inicialmente, os
cursos básicos da Faculdade de Medicina eram ligados diretamente à faculdade.
Quando a Faculdade de Medicina começou a funcionar, os dois primeiros anos
eram no Instituto de Biociências. Isto
não era bom, porque na realidade a maior
parte dos professores dos cursos básicos
não é nem médica, nem veterinária, nem
agrônoma, nem da agronomia, então,
eles não têm idéia do que seja o curso de
agronomia, o curso veterinário, o curso
de medicina, eles são bioquímicos, farmacologistas, biólogos que trabalham
com genética, e no departamento de ge-
nética só têm um médico; o departamento
de morfologia não tem nenhum médico;
o departamento de fisiologia tinha um
médico, então houve uma dissociação
muito grande do ensino de ciências básicas em relação ao ensino profissionalizante e isso foi um defeito muito grande
que permanece. Todo mundo se dá muito
bem, tal, muito bonitinho, mas, na realidade, os alunos sofrem, porque aquilo
que é ensinado nos departamentos básicos pouco tem a ver com aquilo que eles
vão fazer nos cursos profissionais, não é
exagero, pouco tem a ver, mas poderia
ser melhor se em cada um dos departamentos básicos houvesse médicos, veterinários, agrônomos, em quantidade que
pudesse influir no programa, isso seria
muito melhor, e é isso que a gente queria
quando começou a Faculdade de Ciências Médicas e Biológicas.
IB – O Instituto de Biociências,
que se cria, que surge com a UNESP, até
hoje ele permanece com a mesma estrutura com que foi criado. Como se explica
a criação desse Instituto, dessa forma?
80
MM – Na marra, na marra, na
realidade nós queríamos fugir dos ‘uspianos’, da USP. Na USP, antigamente,
a Faculdade de Medicina tinha os seus
departamentos de ciência básica, a Faculdade de Veterinária, tinha os departamentos de ciência básica; e a Agronomia
sempre teve, porque ela estava lá longe;
também a faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, tinha seus departamentos
de ciências básicas. Então, com a reforma se separaram, a Medicina ficou lá em
Pinheiros, os departamentos de ciência
básica ficaram lá na Cidade Universitária; na Universidade Federal de Minas
Gerais, o mesmo aconteceu, a faculdade
de Medicina ficou no centro da cidade e
o departamento de ciência básica lá na
Pampulha. Isso é muito ruim, e nós não
queríamos que isso acontecesse, nós éramos favoráveis a que os nossos colegas
geneticistas, botânicos, fisiólogos etc.
trabalhassem conosco, com aquela idéia
do departamento de educação, orientando o ensino; esse departamento deveria
fazer integração entre aqueles, os diferentes especialistas e isso não aconteceu,
quer dizer, então nós voltamos para trás,
voltamos no sistema uspiano, que era o
sistema brasileiro, porque os indivíduos
que estavam lá em cima, e que tomavam
as decisões, eram indivíduos retrógrados,
eles não puderam entender que é muito
mais importante que a gente tivesse o departamento de fisiologia ligado às faculdades do que dissociado das faculdades.
IB – Obrigada.
81
DEBATES
Tempos de ditadura militar:
resistência e cultura
Para inaugurar a sessão Debates dos Cadernos CEDEM, selecionamos o texto transcrito de uma das mesas-redondas que compuseram o Ciclo de Debates: 75
anos do Partido Comunista no Brasil, realizado durante o ano de 1997, entre 01 de
abril e 30 de setembro. Tempos de ditadura militar: resistência e cultura, ocorrida em
30/09/1997, contou com a coordenação do Professor Marcos Del Roio, da Faculdade
de Filosofia e Ciência da UNESP, campus de Marília, e a participação dos professores
Martim Cézar Feijó, da FAAP e Universidade Mackenzie, Marcelo Ridenti e João
Quartim de Moraes, do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, da UNICAMP. A
parte relativa à transcrição da fala de Marcelo Ridenti traz notas de rodapé inseridas
a partir de revisão feita pelo autor, em dezembro de 2007.
Marcos del Roio - Colegas, companheiros. Vamos dar início a mesa número seis do ciclo sobre os 75 anos do
Partido Comunista no Brasil. O tema
dessa mesa é a resistência e a cultura de
resistência em tempos de ditadura mili-
82
tar. Passo a palavra inicialmente a Martim Cézar Feijó.
Martim Cézar Feijó – Em primeiro lugar, agradeço o convite de participar deste debate. Gostaria de dizer algumas palavras introdutórias, diante de
um tema que merece uma reflexão, e até
uma pesquisa, maior do que aquela que
vem sendo feita. Trabalho atualmente na
área de comunicação, sou professor de
Comunicação Comparada na FAAP, mas
durante muitos anos eu me dediquei à
prática da política cultural, inclusive durante a ditadura, fazendo teatro popular,
como diretor de teatro e, depois, sendo
editor da área de cultura do jornal Voz da
Unidade, na década de 1980. A partir da
experiência nesse período e dessa prática, acabei produzindo uma reflexão que
redundou num livrinho, da Coleção Primeiros Passos, sobre o que vinha a ser
Política Cultural. E, de lá pra cá, sempre
estou às voltas com essa questão, mesmo
quando tento fugir dela. Inclusive, minha tese, atualmente em andamento, que
é sobre Astrojildo Pereira - fundador do
Partido Comunista Brasileiro - trata, de
certa forma, desse tema•. Principalmente
no que se refere à relação do Partido com
os intelectuais, no caso do Astrojildo foi
bastante dramática; mesmo sendo fundador, acabou sendo expulso do partido.
Também a formulação que ele tenta fazer de uma política cultural para o Brasil,
mostra a importância da política cultural voltada para a transformação social,
voltada para a revolução. Nesse sentido,
esse tema me acompanha nesses anos todos, mesmo agora, que meu trabalho está
mais voltado para a área de comunicação.
E, ao me acompanhar, algumas questões
foram surgindo e fui me defrontando
com outras não muito cômodas. Então,
aceito o desafio de ser o primeiro a falar
nesta sessão, por considerar que algumas
coisas que tenho a dizer, no atual estágio da minha reflexão, não sejam muito
agradáveis de serem ouvidas e possam,
talvez, gerar algum questionamento. O
que importa, inclusive como vemos na
proposta do CEDEM, é formular algum
problema que nos interessa enfrentar. Assim, a questão da resistência aos efeitos
da ditadura ou das ditaduras, é algo que
não se esgota no plano histórico. Não se
esgota no plano de uma reflexão sobre o
que foi, mas sim, sobre o que está sendo
e como temos enfrentado esse problema.
Em primeiro lugar, com relação à ditadura militar. A ditadura militar é, a meu ver,
fruto de um processo que não se inicia
em 1964 e não se esgota com a democratização, após o período chamado militar.
Ou seja, ela é desdobramento de um processo anterior, principalmente no plano
cultural, o ponto que mais me interessa.
Portanto, o processo não se inicia em 64.
A política cultural do Estado brasileiro,
como forma de estabelecer uma relação
com a cultura, de pensar a cultura brasileira, começa de uma forma articulada no
Estado Novo. Nisso, a contribuição de
um modernista como Mário de Andrade
é decisiva na formulação do Ministério
da Educação e Saúde, durante a gestão
de Gustavo Capanema, que contou com
Carlos Drummond de Andrade, como
chefe de gabinete. É dessa formulação de
política cultural que a gente vai ter um
desenvolvimento, um desdobramento e
83
há uma continuidade que a ditadura não
nega, que a ditadura não rejeita.
Nesse sentido, o campo da cultura, da perspectiva do Estado do Brasil,
não sofreu com a transformação provocada com as restrições das liberdades democráticas; com o golpe de 64, ela não
sofreu uma ruptura. É evidente que para
todos nós, tanto do ponto de vista conceitual como político, 64 não pode ser considerado como tendo trazido uma revolução, da mesma forma como temos claro
que 64 representou uma ruptura com relação ao Estado Democrático, ao Estado
que vinha sendo organizado a partir da
redemocratização de 1946.
No que se refere à cultura, além de
não ter havido essa quebra, houve sim um
certo reforço de algumas questões que
já estavam dadas no projeto inicial do
IPHAN, do Mário de Andrade, e depois
no projeto do Ministério de Educação e
Cultura, de Gustavo Capanema. Durante
a ditadura militar, a política nacional de
cultura - que foi estudada inclusive por
Octavio Ianni - visava exatamente, de
um lado, preservar o patrimônio cultural,
visto por exemplo, nas cidades históricas,
no sentido de uma identidade nacional.
Por outro lado, nós tivemos a organização de uma empresa do Estado, poderosa e importante no plano do cinema, que
foi a Embrafilme. Tanto a preservação
do patrimônio histórico quanto a criação
da Embrafilme são dimensões do projeto
da Política Nacional de Cultura que não
nega as formulações anteriores, de um
viés, vamos dizer assim, nacionalista, de
busca de uma identidade nacional. Essa
é a política cultural direta do Estado; sua
relação com o cinema e com o patrimônio histórico. Nesse sentido, há um lado
produtivo: ela financia filmes que, em
alguns momentos, vão na contramão da
linha ideológica que o Estado estabelece.
Estou dizendo a ditadura como um todo,
não nas suas diversas fases, em momentos mais dramáticos ou menos dramáticos, mais tensos ou menos tensos, mais
violentos ou menos violentos. E considerando a produção e o investimento,
no caso do cinema, reunimos elementos
para pensar no desdobramento disso,
posteriormente, quando do desmanche
da Embrafilme e suas conseqüências.
Mas há uma política cultural, em linha
direta, que não só permite a produção ou
a defesa do patrimônio; mas também há
uma que cerceia, ou seja, que retoma algumas coisas do Estado Novo, ou seja, o
restabelecimento da censura, que é próprio de qualquer ditadura. O restabelecimento de uma política de cerceamento a
qualquer atividade artística - principalmente artística - que venha combater,
questionar e dar alternativas à política
mais geral do Estado.
Então, nesse sentido, a censura
teve um papel importante, porém não
decisivo na questão da resistência. Teve
um papel de cerceamento, em que o lado
violento não foi exatamente o da censura, foi mais exatamente o da perseguição
física aos agentes culturais, no caso, os
artistas, sobretudo o pessoal do teatro, do
cinema, da literatura, que sofreu a violência que toda a oposição ao regime sofria.
Portanto, temos de um lado a Política
Nacional de Cultura e, de outro, a censura. O Estado permite e cerceia ao mesmo
84
tempo, o que no caso do Estado Novo,
foi mais leve. Mas a mão que afaga é a
mesma que apedreja. A relação do Estado com a cultura é complexa e tensa,
mesmo no contexto posterior, no Estado
Democrático.
Uma outra linha, indireta, mas
muito mais poderosa, talvez muito mais
importante para se pensar a resistência
no plano específico da cultura, não a resistência no plano político, no plano das
várias alternativas políticas que se apresentavam naquele contexto de violência
de Estado, mas no sentido específico da
cultura, da atividade cultural, diz respeito à política de telecomunicações. Via
Embratel, tal política vai permitir a unificação do país pela primeira vez pelas
redes de comunicação e por satélites. Ou
seja, a possibilidade de operação de uma
comunicação nacional, da qual a Rede
Globo é o seu lado mais visível, foi propiciada pela ação do Estado e também
pelo capital estrangeiro, que permitiu o
estabelecimento de uma indústria cultural pela primeira vez no país, de forma
extremamente organizada, profissionali-
zada e competente.
Assim, permite-se a existência do outro
lado da política cultural do Estado, essa
sim, indireta, não concebida nos gabinetes de Capanema ou de Aloísio Magalhães, mas como parte da formulação
estratégica do Estado Militar, a partir da
relação entre o investimento em infraestrutura que permitisse a unificação nacional pelos meios de comunicação – a
atuação da Rede Globo é sua parte mais
importante, mais visível.
Estabelece-se um link direto entre
a consolidação do Jornal Nacional e das
telenovelas como formas de produção
cultural compatíveis com a formulação
estratégica do Estado, de criar bases para
a consolidação do capitalismo monopolista no Brasil. Temos, então, de um lado,
a unificação das comunicações através de
uma política cultural indireta, que permite do ponto de vista físico e tecnológico a
organização dos meios de comunicação.
A publicidade desempenha, aí, um papel
importantíssimo, pois ela vai desenvolver exatamente a dimensão ideológica,
as justificativas para a implantação e for-
talecimento do capitalismo no Brasil. Por
outro, a política mais direta, que é aquela
a qual nós nos apegamos muito. Ficamos
muito presos à questão da censura, da
repressão, da perseguição e não nos demos conta deste complexo maior, de uma
política cultural estrategicamente muito
bem formulada, muito mais poderosa,
porque ultrapassa os limites da ditadura,
segue seu curso mesmo após o desmantelamento ou não desmantelamento do
Estado autoritário que se viveu.
Esse é um contexto. O outro é o
da resistência propriamente dita, que se
deu em vários níveis. Um, mais direto, é
aquele que aponta para o processo político e cultural que antecede a ditadura, ou
seja, é aquela geração do Cinema Novo,
do Tropicalismo que, de uma certa forma, já atuava no começo de 1960. Muitos artistas eram ligados a movimentos
populares como o CPC da UNE, ou ligados ao teatro, como o ARENA e o Oficina, em São Paulo, que tinham um projeto
cultural e estético diversificado, voltado
para a transformação social e para a resistência ao capitalismo. Não era questão
85
só de resistência à possível ditadura que
viria, mas é o processo que inicia o preparo de uma nova sociedade. Um processo no qual a esquerda hegemônica, como
o Roberto Schwartz percebeu bem com
relação à década de 1960, ocupa espaços estratégicos na imprensa, uma vez
que o papel da crítica é importante para
fundamentar, justificar, facilitar, e favorecer a difusão dessa produção cultural
através da mídia. Tal mídia, mesmo que
ainda tendo atuação localizada, limitada
ao plano da linguagem verbal, como no
caso da imprensa escrita, vai sofrer o baque de 64. Esse baque vai provocar em
cineastas como Glauber Rocha, músicos
como Caetano Veloso, escritores como
Antonio Callado, a busca de formas de
enfrentar a nova realidade através de sua
produção cultural. Vão produzir refletindo exatamente isso, e nessa busca nós
encontramos a transição.
No caso de Glauber Rocha, alguém
a quem eu me dediquei um pouco mais, a
mudança de enfoque que vai desde Deus
e o diabo na terra do sol, em que temos
exatamente isso: a terra é do homem, de
deus, do diabo e, no fim, do camponês
que, evidentemente, é identificado ideologicamente com as ligas camponesas,
encontra o seu caminho na revolução.
Em seguida, temos a reflexão e a melancolia do Terra em Transe, a melancolia
da derrota, o barroco estabelecido como
possibilidade estética, numa determinada linha de reflexão ante ao Estado que
se impõe. Em Quarup, Antonio Callado
apresenta a luta armada como possibilidade de resistência política àquele estado
de coisas. Na música, a explosão da música popular brasileira vai ressaltar dois
nomes de grande destaque. Na chamada
linha evolutiva temos Chico Buarque de
Holanda e, noutra, mais voltada para a
ruptura estética contaminada pela contracultura e pela Jovem Guarda, o Tropicalismo, liderado e capitaneado por Caetano Veloso, perspectiva já antecipada por
Hélio Oiticica que, aliás, deu nome ao
movimento a partir de seu trabalho Tropicália.
Esse contexto de resistência cultural ao regime, tal como a política cultural
da ditadura, é algo que vem de um pro-
cesso anterior, mas que, esse sim, vive
uma ruptura, vê recusada a possibilidade
da sua atuação e, frente a isso, passa a
atuar especificamente na atividade artística. Mas há ainda alguns pontos para os
quais eu gostaria de chamar a atenção,
para dois pontos. Inicialmente, há outro
tipo de resistência cultural que não é tão
destacada, que é aquela que inclui jovens
que não tinham nenhuma vinculação
com a tradição ideológica de esquerda,
com a luta política, mas que encontram
canais de resistência a um estado de coisas que não suportam, não aceitam. Isso
também é resistência, é algo que busca
o enfrentamento por vias que não são
necessariamente as vias da política conhecida, mas que, de uma certa forma,
recusam o estado ditatorial militar em
que nós vivíamos. Eram exatamente grupos urbanos, no caso também de classe
média, vinculados a setores universitários ou pré-universitários que encontram
o movimento, muito menos nacional e
mais internacional, que recebeu o nome
de contra-cultura. Nascido nas barricadas de Paris, em 1968 e nas universida-
86
des norte-americanas protestando, entre
outras coisas, contra a guerra do Vietnã,
tal movimento foi aqui visto, por alguns,
como algo ligado ao chamado desbunde, algo que não apontava em direção
ao plano político. Tudo que não remetia
diretamente ao plano político, era visto como descartável para a luta política
imediata, na medida em que só era aceito pelas esquerdas, aquilo que estivesse
ideologicamente comprometimento com
ela. Tudo o que não estivesse ou por não
estar comprometido ou por ser entendido
como tal, por exemplo, a introdução das
guitarras no tropicalismo, era associada
ao chamado imperialismo ou ao processo de internacionalização dos movimentos juvenis que não eram aceitos como
resistência.
Isso gera dois problemas do ponto
de vista da interpretação mais global do
contexto em que a ditadura militar se instalou no Brasil, e do processo do qual ela
fez parte. Trata-se muito mais de apontar
uma contradição, que deixaria para o debate, porque é muito mais uma inquietação do que algo sobre o que eu tivesse
uma resposta neste momento.
Primeiro, abstraindo a questão de que
o estado ditatorial censurou, perseguiu,
matou, mutilou, impediu e, colocando
também de lado, exatamente a questão
da política indireta que permitiu a unificação dos meios de comunicação através da publicidade e da Rede Globo, eu
não tenho visto nas formulações do nosso campo, do campo de quem se coloca
ideologicamente contra o capitalismo,
eu não vejo formulações que questionem essas políticas nacionais de cultura,
que apontam ainda em direção à chamada identidade nacional. Ou seja, a perspectiva do conceito de nacional popular,
- com todo o respeito à nossa tradição
gramsciana, à qual eu me considero incluído, - é algo que tem de ser melhor
questionada, melhor trabalhada e até criticamente resolvida. Nesse sentido, vamos ver esse desdobramento tanto nas
políticas de cultura que ainda se mantêm
na atuação do Ministério da Cultura, atualmente exercido por um sociólogo, que
não só é de esquerda, mas alguém que
inclusive saiu dos quadros ou entrou nos
quadros ou se manteve até certo momento, nos quadros do Partido dos Trabalhadores, o PT, que é o caso do ministro Weffort. O Ministério mantém a citada linha
de defesa do patrimônio como base da
discussão da política nacional de cultura.
Por outro lado, permanece a dificuldade
de lidar com o específico cultural, com o
produto cultural, com o produto artístico, considerando, por exemplo, o debate
gerado em torno do filme O que é isso
companheiro?. Essa questão demonstra,
a meu ver, que somos bons de política,
podemos ser bons em projetos históricos, mas ainda somos ruins em estética.
Ou seja, aquela frase do Caetano Veloso,
dita ao enfrentar a juventude de esquerda
– há indícios de que era uma parcela do
CCC que provocou aquela grita toda em
torno do É proibido proibir do Caetano
Veloso, mas que depois foi aumentado,
foi ampliado, com o pessoal da UNE tendo resolvido considerar um ato político o
de impedir que Caetano Veloso cantasse
ao som das guitarras, com os Mutantes
que vinham da Jovem Guarda, de uma linha mais voltada para a contra-cultura. O
87
Tropicalismo estaria contaminado e seria
uma forma de luta contra o imperialismo
impedir que Caetano Veloso cantasse ao
som da guitarra e que ele, em seu discurso, que era também um discurso de
resistência não só à ditadura militar, mas
a qualquer forma de ditadura, chamou a
atenção para a questão de que nós temos
que parar de matar amanhã o velhote que
morreu ontem. Ou seja, se formos em estética o que somos em política, estamos
feitos!
Acho que a permanência dessas
duas práticas, a que aponta para o risco de
matar amanhã o velhote que morreu ontem e a de não compreender o específico
da atividade cultural, nos leva à possibilidade de continuar repetindo jargões, repetindo formulações que não têm respaldo na ação política concreta, e, portanto,
dificulta a existência, primeiro, de uma
política cultural efetiva, democrática e
ampla, que seja, também, essencialmente transformadora. O que temos visto em
toda política cultural, seja ela formulada
por quem for, é que toda política cultural
eficaz, eficiente, é conservadora, é feita
para conservar algo. As políticas restringem-se ao circuito da identidade e do patrimônio nacionais, mas apresentam-se
no discurso como transformadoras. Nós
vamos manter o patrimônio, porque isso
é uma revolução, nós vamos manter a
identidade, porque isso é uma revolução,
e esse discurso retórico em cima de uma
prática concreta é que muitas vezes prejudica a própria eficácia política. Eu considero necessária a proteção ao nosso patrimônio histórico. Mas a grande questão
está em considerá-la a base de uma política cultural que gere ou que possa gerar, que possa levar a uma transformação
social, quando, na verdade, busca apenas
e tão-somente cuidar dos equipamentos
existentes e não da criação de condições
para produções novas. As condições para
as produções novas implicam, exatamente, ter-se um debate franco, aberto, sobre
todos esse temas. São essas linhas que eu
gostaria de poder voltar a discutir. Obrigado.
Marcos Del Roio – Obrigado professor
Martim. Por favor, Marcelo Ridenti.
Marcelo Ridenti – Começo agradecendo ao convite dos colegas aqui do
CEDEM. Sempre que tenho oportunidade, gosto de realçar a importância das
atividades que o CEDEM promove, não
só do ponto de vista dos debates, mas
especialmente como arquivo, pela possibilidade de fornecer oportunidades para
que pesquisadores venham a conhecer
os movimentos de esquerda, movimentos populares e outros. Certamente é uma
das grandes coisas que se faz na UNESP.
Eu me sinto muito satisfeito por estar
aqui, contribuindo um pouco para esses
debates.
Gostaria de colocar algumas coisas sobre o romantismo revolucionário
dos anos 60. Tomo como base o conceito
que Michael Lowy e Robert Sayre desenvolvem no livro chamado Revolta e
melancolia no romantismo na contramão da modernidade,1 para poder entender um pouco a esquerda brasileira
naqueles anos. Mas, antes de falar sobre
o tema, não vou resistir a começar retomando o que o Martim colocou no final
de sua exposição. Concordo que existe a
88
necessidade de compreender o específico da atividade cultural, mas não sei se
existe um buraco tão grande assim. Por
exemplo, no número três da revista Praga, há um belo artigo do Ismail Xavier
justamente nesse sentido, dizendo que
o filme O que é isso, companheiro? foi
muito combatido, mais do ponto de vista
da reconstituição histórica e, então, ele
faz uma dura crítica ao filme do ponto
de vista estético, especificamente. A meu
ver, o filme não se salva nem estética,
nem politicamente.
Pensando na questão proposta da
identidade nacional como elemento da
política cultural desde os anos do Estado Novo, como Martim coloca, o meu
ver, essa questão ganha um colorido à
esquerda nos anos 60 e 70 e, ele tem razão, o tema precisa ser melhor trabalhado. A idéia da identidade nacional está
muito impregnada daquela atmosfera
política dos anos 50 e 60, que pode até
ser vista como um certo populismo no
campo da cultura, mas diria que tem um
outro lado, que não é só isso. É preciso
trabalhar todas essas ambigüidades que
vão desde um discurso nacionalista de
extrema direita, até um discurso nacional à esquerda. Nesse ponto, proponho a
idéia do romantismo revolucionário que
marca os anos 60 no campo da cultura,
da literatura, do cinema, do teatro, e está
também na luta política, especificamente
da esquerda armada.
Há uma frase romântica de Goethe, que modifiquei um pouco para tentar
entender ou resumir o espírito dos anos
60, e essa modificação daria algo assim:
“cinzenta é toda a teoria e vermelho o
sangue esplêndido da vida”. Ou seja, havia uma ênfase apaixonada na vontade,
na experiência vivida, na ação para transformar uma realidade aparentemente difícil de ser transformada, em direção ao
futuro, um certo voluntarismo para resolver na prática os problemas seculares da
sociedade brasileira. Indo além, por outro lado, nessa luta, buscava-se recuperar
uma tradição cultural passada, enraizada
no povo ou na nação, algo típico do romantismo, até nos seus sinais de direita.
Vou tentar desenvolver como isso tem
alguns sinais à esquerda. A hipótese aqui
esboçada é a de que a luta da esquerda
armada não foi senão uma das manifestações mais extremadas do romantismo
revolucionário naquele período.
Diria que, no campo da literatura,
o romance mais marcante para entender
o imaginário dos militantes dos anos 60 não sei se do ponto de vista estético, mas
certamente no aspecto político e sociológico - foi o livro Quarup, de Antonio
Callado, muito representativo daquela
utopia romântica do período, livro que
Ferreira Gullar chamou de “Quarup, ensaio de deseducação para brasileiro virar
gente”.2 Naquela busca do padre Nando
– de ir ao interior do Brasil, de seguir ao
Xingu para encontrar os índios e, depois,
no final da história, juntar-se aos camponeses revolucionários – há essa valorização da vontade de transformação, uma
aposta na ação dos seres humanos para
mudar a história, num processo de construção do homem novo, nos termos do
jovem Marx, recuperado por Che Guevara. Mas o modelo para esse homem
novo estava paradoxalmente no passado,
envolvendo certa idealização do autên-
89
tico homem do povo, com raízes rurais,
do interior, do coração do Brasil. Um homem que ainda não estaria contaminado
pela modernidade urbana capitalista que,
como a ditadura viria revelar, era geradora de um desenvolvimento desigual e
combinado, no qual a ampla maioria da
população se via despossuída dos frutos
do progresso.
Com relação aos anos 60, pode-se
falar em vários movimentos: dos sargentos e marinheiros, dos trabalhadores urbanos e rurais do pré-64, dos estudantes
e intelectuais, sobretudo depois do golpe,
passando pelos grupos de esquerda que
procuravam organizar esses movimentos, que por sua vez produziram diferentes versões do romantismo revolucionário, visíveis, por exemplo, na trajetória
da esquerda católica, da Ação Popular
(AP), que partiu do cristianismo para
chegar ao maoísmo, sempre valorizando
a ação, a vivência dos problemas do homem do povo, encarnado sobretudo nos
camponeses, sem contar o guevarismo
das diversas dissidências do Partido Comunista Brasileiro (PCB), a valorizar a
necessidade da guerrilha rural, caso típico da Ação Libertadora Nacional (ALN),
e de outros grupos com origens diversas,
mas que viam a necessidade da ação revolucionária imediata, como foi o caso
da Vanguarda Popular Revolucionária
(VPR).
Michael Löwy e Robert Sayre dizem que “o romantismo apresenta uma
crítica da modernidade, isto é, da civilização capitalista moderna em nome de
valores e ideais do passado pré-capitalista, pré-moderno”. Segundo eles, haveria
vários tipos de crítica romântica ao capitalismo, alguns claramente conservadores, que simplesmente proporiam uma
volta ao passado. Eles falam em várias
vertentes do romantismo, desde aquela
que inspira o nazismo, até a que chamam
de romantismo revolucionário ou utópico, de esquerda, que visaria instaurar
um futuro novo no qual a humanidade
encontraria uma parte das qualidades e
valores que tinha perdido com a modernidade: comunidade, gratuidade, doação,
harmonia com a natureza, trabalho como
arte, encantamento da vida. Então, a
ação transformadora revolucionária seria
animada pela utopia anti-capitalista que
desenha o homem novo, mas ela seria
indissociável do resgate de uma tradição
cultural, digamos assim, não contaminada pela modernidade capitalista.
Esse romantismo das esquerdas
não seria uma volta ao passado, senão
seria um reacionarismo; ele busca no
passado elementos para a construção da
utopia do futuro. Não um romantismo
qualquer de uma perspectiva anticapitalista, prisioneira do passado, geradora de
uma utopia irrealizável na prática, mas
um romantismo revolucionário que visava resgatar o encantamento da vida, uma
comunidade inspirada na idealização do
homem do povo, cuja essência estaria no
espírito do camponês e do migrante favelado a trabalhar nas cidades. Buscavamse, então, no passado, elementos que
permitiriam uma alternativa de modernização da sociedade que não implicasse a
desumanização, o consumismo, o império do fetichismo da mercadoria e do dinheiro. Não se tratava de meramente propor uma condenação moral das cidades
90
e a volta ao campo, mas sim, de pensar,
com base na ação revolucionária, a partir
do campo, a superação da modernidade
capitalista cristalizada nas cidades, tidas
na época na expressão famosa de Debray,
como túmulos dos revolucionários.
Fazendo um parênteses aqui, é interessante notar que existem vertentes do
marxismo que têm alguma proximidade
com esse tipo de idéia, em autores como
Walter Benjamin, Herbert Marcuse, Henry Lefebvre, E. P. Thompson, Raymond
Williams, dentre outros. No entanto,
como observam Michael Löwy e Robert
Sayre, sempre houve uma certa ambigüidade entre o marxismo e o romantismo,
porque justamente o romantismo tem
esse caráter por vezes reacionário; dizem
eles: “até os autores marxistas mais atraídos pelos temas românticos conservam
uma distância crítica inspirada pela herança progressista do iluminismo”.
Enfim, podemos deixar eventuais
questões teóricas para o debate. Mas é
preciso salientar que essas características
do romantismo revolucionário nos anos
60 não se dão gratuitamente. Há uma sé-
rie de acontecimentos no plano nacional
ou internacional que, de alguma maneira,
alimenta esse tipo de resistência ao capitalismo com características românticas e
que chega até à via armada, privilegiando a figura do camponês. Vejam o que
estava acontecendo no cenário internacional – guerra de libertação na Argélia,
uma aposta significativa na libertação
nacional presente no movimento dos países não alinhados. Tínhamos a guerra
no Vietnã, um pequeno povo camponês
subdesenvolvido enfrentando a maior
máquina de guerra, a norte-americana.
Havia, enfim, a revolução cultural chinesa que, como já salientou Perry
Anderson, teve um impacto no imaginário da juventude ocidental, independentemente do que tenha efetivamente
significado na China.3 O aparente combate ao processo de burocratização dos
países socialistas, uma política externa
de solidariedade com as nações do terceiro mundo, a ênfase na espontaneidade
das massas no processo revolucionário,
a aparente realização da utopia marxista
de romper com a separação entre traba-
lho intelectual e o manual, um igualitarismo social em detrimento das forças do
mercado, a administração direta, o uso
da energia e do entusiasmo da juventude. Todas essas características, positivas,
mostravam-se para a juventude européia
e também para a latino-americana, como
fatores de aproximação a posições políticas maoístas.
Lembre-se, ainda, de que o modelo soviético de socialismo também
era colocado em questão, especialmente
após a invasão da Checoslováquia pelas
tropas do Pacto de Varsóvia em 1968.
Para muitos jovens parecia que a União
Soviética, naquele cenário da Guerra
Fria, estava mais interessada em manter seu campo de influências do que em
promover a revolução. Por outro lado, o
exemplo e a vitória da revolução cubana
de 1959 abriam novas perspectivas para
a esquerda na América Latina
Atravessava-se, ainda, um processo intenso de proletarização do trabalho
intelectual, em termos internacionais. A
figura do profissional liberal autônomo
estava sendo superada por aquela do tra-
91
balhador assalariado, profissional liberal
assalariado que hoje está muito disseminada, tendo talvez até gerado uma transformação na própria composição da classe dos trabalhadores assalariados.
É preciso lembrar também que o
movimento hippie e a contracultura surgiram naquela época. Há um texto do Leandro Konder, de 1967, mostrando como
os sentimentos e práticas de rebeldia
contra a ordem, ou de revolução por uma
nova ordem, mesclavam-se de maneira
criativa nos anos 60.4 Isso foi marcante
do período.
No Brasil, o golpe de 1964 veio
jogar areia nos projetos revolucionários,
os mais diversificados, que começavam a
frutificar no início dos anos 60. Ele veio
dar fim às crescentes reivindicações de
lavradores, operários, estudantes, militares de baixa patente, cuja politização do
pré-64 ameaçava a ordem estabelecida.
Ameaçava porque talvez os aspectos políticos e culturais ditos “populistas” estivessem ganhando uma feição popular;
esse nacionalismo “populista”, talvez,
estivesse caminhando efetivamente para
o nacional-popular no sentido gramsciano, que fugiria do controle das classes
dominantes.
O golpe veio e praticamente não
houve resistência a ele. Todo esse movimento que se desenhou no início dos
anos 60 acabou por gerar acusações às
direções, não só do PCB, mas também
das outras organizações de esquerda. O
próprio Partido Comunista do Brasil (PC
do B), a Ação Popular (AP), a Política
Operária (POLOP), todos sofreram inúmeras cisões e deles surgiram grupos que
vieram a pegar em armas nas cidades. Ou
seja, foi se formando, depois do golpe,
uma corrente de opinião difusa em vários
segmentos da esquerda, que colocava a
necessidade de construir uma vanguarda
realmente revolucionária, que rompesse
com o imobilismo e opusesse uma resistência armada à força das armas do
governo, não só para restabelecer a democracia mas, sobretudo, para avançar
decisivamente em direção à superação
do capitalismo.
Gostaria de ressaltar, ainda, o fato de
que o Brasil foi um dos países que, na
história mundial, sofreu um dos mais rápidos processos de urbanização. Se pegarmos os censos, desde a década de 1940
até a última, vamos ver que a sociedade
brasileira num período de 50 anos passou
de 80% da população vivendo no campo
e 20% na cidade para uma sociedade que
tem, atualmente, 20% da população no
campo e 80% nas cidades. Se olharmos
os dados estatísticos da década de 1960,
veremos que naquela altura estávamos
no meio desse processo. Os dados sobre
as pessoas perseguidas durante a ditadura, levantados pelo projeto Brasil Nunca Mais, mostram que a ampla maioria
foi processada nas cidades, mesmo que
tenha nascido no interior, provavelmente filhos ou netos de pessoas com raízes
rurais. 5
Enfim, o resgate romântico de um
autêntico homem do povo brasileiro deve
ser pensado também nesse contexto, de
um profundo e rápido processo de urbanização e de desenvolvimento capitalista
no Brasil, posto na ordem do dia, sobretudo, a partir dos anos JK e depois, com a
modernização conservadora da ditadura.
92
Nesse sentido, geraram-se reações políticas e culturais a essas transformações
profundas que estavam acontecendo na
vida cultural, política e econômica no
plano nacional e no plano internacional.
Reações a que se podem atribuir traços
românticos, comuns na história recente
do Brasil. Questionava-se a modernização capitalista e conservadora, identificada pelo rápido processo de industrialização, urbanização, concentração de
riquezas e ausência de liberdades democráticas. Combatia-se o dinheiro, a indústria cultural e a fetichização impostas
pela sociedade de consumo do mercado
capitalista. Havia identificação com o
camponês, tomado como autêntico representante do povo oprimido, principal
agente da revolução social, como aparece no citado Quarup, como aparece em
Deus e o diabo na terra do sol, filme de
Glauber Rocha. Valorizavam-se a ação e
a vivência revolucionária, por vezes em
detrimento da teoria, teoria que só poderia brotar da experiência de grupo. Todas
essas seriam características do romantismo revolucionário que, em versões di-
ferenciadas, podem ser encontradas nos
programas de várias organizações de esquerda.
Essas características também se
encontravam na produção artística do
período entre 1964 e 1968. Por exemplo,
a revolução brasileira com base na ação
do camponês e das massas populares, em
cuja luta a intelectualidade estaria organicamente engajada, é cantada em verso
e prosa em músicas como Terra Plana
e Pra não dizer que não falei de flores
(Caminhando), de Geraldo Vandré; Procissão, de Gilberto Gil do pré-tropicalismo,; Viola enluarada, dos irmãos Vale.
Soy loco por ti América é uma canção
dedicada ao Che Guevara, com versos de
Capinam – originário do Centro Popular de Cultura (CPC) de Salvador – com
música de Gil, cantada por Caetano Veloso. Essa canção já pertence à estética
tropicalista, que veio a ser um veio um
pouco diferenciado desse romantismo
revolucionário mas, a meu ver, está dentro dele.6
Em suma, há traços que permitem
fazer uma análise política e cultural glo-
bal daquele momento, não só no campo
especificamente político, mas também de
uma maneira mais ampla, no campo cultural. Vejam-se as composições de Sérgio Ricardo, Edu Lobo, Chico Buarque,
Milton Nascimento e seus parceiros. Os
espetáculos do Opinião, no Rio de Janeiro; do Teatro de Arena e do Oficina,
da primeira fase, em São Paulo. Aquelas
mobilizações todas que foram feitas pelo
que se chamou, na época, de classe teatral. Nas produções do Cinema Novo, já
foi falado aqui de Deus e o Diabo... mas
poderíamos lembrar de Os fuzis, do Ruy
Guerra, um belo filme que vai no mesmo
sentido da literatura de Antonio Callado,
de Moacyr Felix, de Ferreira Gullar, nas
exposições de artes plásticas da Nova
Objetividade Brasileira.
Para encerrar, gostaria de dizer
que não estou tomando o romantismo revolucionário da época num sentido pejorativo, nem mistificador. É muito comum
hoje se falar do romantismo dos anos 60,
tanto por aqueles que hoje são adeptos da
“política do possível” – que estão submetidos à nova ordem mundial e acham
93
que essa nova ordem é inexorável e, portanto, aquele passado romântico deve ser
esquecido –, como por aqueles que, mesmo sendo políticos de esquerda até hoje,
às vezes, desqualificam as lutas dos anos
60 como tendo constituído uma utopia irrealizável. Ao contrário, nesse fim de século, que é aparentemente sombrio para
as forças transformadoras da ordem estabelecida, é preciso lembrar que a questão
das reformas e da revolução social estava
colocada no mundo todo por movimentos políticos significativos há relativamente pouco tempo, especialmente nos
anos 60.
Dos anos 60 para cá, a contra-revolução triunfou em escala internacional, mas não foi capaz de dar resposta aos
graves problemas sociais que se anunciavam naqueles anos e que, hoje, estão
muito mais agravados, especialmente na
sociedade brasileira. Às portas dos anos
2000, apesar de ter acabado a ditadura,
perpetuam e alargam-se as intensas desigualdades. As forças hegemônicas nos
governos, hoje democraticamente eleitos, ainda são as mesmas que deram sus-
tentação política à ditadura. Um ou outro
tucano entrou no ninho, mas o ninho é
aquele mesmo. Infelizmente o projeto
de Golbery deu certo. A transição lenta,
gradual e segura, do ponto de vista das
classes dominantes, realmente triunfou
no Brasil e, vejam só, tendo à frente, o
Príncipe dos Sociólogos.7
Vale a pena, então, recuperar aspectos desse romantismo revolucionário
da década de 1960, para aqueles que sabem que “tudo que é sólido desmancha
no ar” – para usar uma frase célebre de
Marx e Engels – e também que “tudo o
que existe merece perecer”, para usar a
frase de Goethe, poeta romântico. Não
se trata, no entanto, de idealizar as lutas
passadas, nem de buscar uma repetição
anacrônica da história, mas de desvendar
os alcances e os limites daquelas lutas no
seu contexto histórico específico.
Na minha geração, a dos anos 70,
cantávamos o Hino Nacional, as músicas
do Vandré, como Caminhando, nas manifestações estudantis de 77, 78, em São
Paulo e, para nós, havia uma certa idealização da geração passada que havia com-
batido nos chamados anos de chumbo.
Mas, como dizia Florestan Fernandes,
não se deve ficar encantado por um passado que não pode ser reconstruído e que
também não foi tão legendário, nem tão
heróico assim, como certas idealizações
sublinham. Mas, se devemos combater
essas idealizações do passado, devemos
também combater as versões conciliadoras da história recente, que vêem as lutas dos anos 60 meramente como lutas
de meninos ingênuos e rebeldes e é nisso que se encaixa ao filme O que é isso,
companheiro?, de Bruno Barreto. Meninos cheios de boas intenções, mas promotores, como diz Daniel Aarão, de uma
grande aventura no limite da irresponsabilidade.8 E o que se oculta com isso?
Os projetos de resistência, os projetos de
revolução, a indignação mesma dos intelectuais contra a situação de miséria e
desigualdade em que vivia e vive o país.
Esse tipo de leitura, que às vezes
aparece até nas memórias dos ex-guerrilheiros, teria permitido dialogar com esse
passado, sem se atormentar com ele, num
contexto de redemocratização da socie-
94
dade brasileira dos anos 80. Diz Daniel
Aarão: “deixa-se cair sobre esse passado
um manto de compreensão e boa vontade”, e eu acrescento: enquanto permanecem as desigualdades gritantes da sociedade brasileira que deram base àqueles
projetos revolucionários. Então é preciso,
por um lado, desmistificar esse passado
recente de lutas, um certo encantamento de versões idealizadas desse passado
“romântico”, mas, de outro, e, ao mesmo tempo, questionar o desencanto de
outras versões, por vezes particularistas,
muito personalizadas, a fim de retomar o
espírito transformador. Intelectuais e militantes de esquerda, preocupados com a
construção de uma alternativa socialista
e inovadora, devem retomar e recriar em
nova chave o aspecto libertário, transformador, romântico, de não se contentar
com o possível, dentro do que a globalização da nova ordem internacional nos
relega. É isso que eu tinha a dizer. Muito
obrigado.
Marcos Del Roio – Obrigado,
professor Marcelo. Passo a palavra para
o professor João Quartim de Moraes.
João Quartim de Moraes - Havia previsto como minha intervenção,
simplesmente retomar dois tópicos de
um texto que fiz para um dos volumes
da História do Marxismo no Brasil. Mas
considerando as questões já tratadas, levantaria sobretudo o primeiro deles. A
formulação, que é um tanto geral, mas
geral no bom sentido, no sentido conceitual, quer ressaltar a inarredável dualidade de todo o combate político marxista,
do marxismo revolucionário. É inarredável porque um partido político não é uma
academia de ciências, ele é uma organização de luta, uma organização capaz se é revolucionária - de travar a luta de
todas as formas em que ela for necessária. Mas, ao mesmo tempo, ele é o que
Antonio Gramsci - que foi um grande
comunista, grande intelectual, embora
idealista em filosofia, tendo sido, até por
causa desse seu idealismo, utilizado de
uma maneira um tanto deformadora no
Brasil, é coisa cultural do gramscianismo
no Brasil, nos anos 1970 – o grande Antonio Gramsci, identificava como sendo
o intelectual coletivo.
A minha reserva ao gramscianismo é ao modo como isso se difundiu no
Brasil nos anos 70 e não em relação a
esse homem que foi extraordinário, um
homem que, como me dizia Domenico
Losurdo - com quem eu debati na UNICAMP há dois anos atrás : “Gramsci era
um idealista em filosofia”. Ele diz: “a
cosi detta, a realidade objetiva, a coisa
dita não é realidade objetiva, é cosa detta, a assim chamada realidade objetiva
do mundo. Tudo é relativo à consciência humana, a experiência é uma maneira um pouco envergonhada de falar em
consciência humana, tudo isso se chama
idealismo em filosofia. Gramsci é um filósofo idealista, de base idealista”.
Mas é claro que ele não ficou nisso, porque se ele fosse apenas um discípulo de Gentile ou de Croce, nós não
estaríamos aqui debatendo. Hoje em dia,
ninguém consegue discutir política sem
ser gramsciano, sem usar conceitos que
ele inventou. Então a gente é acostumado com esse paradoxo, quer dizer, é um
homem que inclusive para racionalizar
a sua derrota, escreveu coisas lamentá-
95
veis. Enquanto o grande Astrojildo Pereira, não sendo comunista, defendia a
revolução Russa aqui, explicava contra
os escribas primitivos e outros das classes dominantes, enquanto ele defendia
a Revolução Russa, explicava o que era
a revolução Russa, desmentia aquelas
afirmações mais grotescas. Mas quando
Gramsci escreveu aquela beleza, Rivoluzione contra il Capitale, ele não tinha
entendido nada, nem da Revolução Russa nem do Capital, dizendo que a Revolução Russa, a bolchevista tinha desmentido O capital, o que não é verdade.
Mas estou me estendendo demais neste
considerando.
Eu diria, então, inspirado no léxico
desse grande pensador, esse homem que
renovou o pensamento político de todo o
século XX, eu diria: todo partido revolucionário tem uma inarredável dualidade. Ele tem esse duplo componente, por
um lado, é uma organização de combate,
de luta, capaz de travar qualquer luta e
agir na clandestinidade, na ilegalidade,
de disputar uma eleição, de dirigir uma
insurreição - isso é um partido revolucio-
nário. E, de outro, ao mesmo tempo, ele
é um intelectual coletivo, portador não
só de uma cultura, mas de uma análise,
de uma compreensão do curso concreto
da história, do processo histórico. Essas
duas coisas, às vezes, são diferentes, não
conheço uma forma de conciliar essas
duas determinações. Ser um intelectual
coletivo, ter a lucidez, a compreensão
do processo histórico e de como adequar
essa análise ao programa partidário, às
experiências coletivas das quais o partido
é portador e, ao mesmo tempo, na ação,
agir com disciplina, como um só homem.
Executar a disciplina coletiva sem a qual
nós retrocedemos ao aventureirismo, ao
diletantismo, à impotência na matéria de
revolução.
Portanto, há a lucidez do pensamento, o próprio Gramsci observa isso,
de um lado, a lucidez do pensamento e,
do outro lado, a organização da vontade.
Organização à qual o grande Lênin associou o seu nome e que sabia reconhecer;
até em correntes, na luta contra o czarismo, cuja visão de mundo reprovava.
Mas vou desistir de desenvolver essas
questões, preferindo abrir uma discussão
com os dois amigos, camaradas, que me
precederam. Alguns temas que me chamaram muito a atenção nas duas falas e
que eu poderia contribuir, não polemizando, porque a idéia não é essa, mas
quem sabe salientando, enfatizando, ou
dando até uma perspectiva crítica em relação ao que eu ouvi, tanto de um como
do outro.
É curioso como a idéia do nacional popular estava no Brasil muito antes
da influência de Gramsci. Sobre isso é só
ler Nelson Werneck Sodré. Hoje o que é
nacional? A última frase do livro A História da burguesia brasileira, diz assim:
“Hoje, só é nacional o que é popular”.
A frase pode até ter uma matriz abstrata.
Se eu identificar a nação ao povo, sim. O
livro está aí e toda a argumentação dele
demonstrava isso. O que é popular e o
que é nacional. Poderia ser uma espécie
de tolstoísmo. Mais você está ancorado
no seu país, mais você está prisioneiro
desse abismo sem fundo que é o idioma,
da língua em que você sonha. A língua
está profundamente arraigada em nós.
96
Apesar de seu caráter cultural, nós somos
prisioneiros dela, querendo ou não. Igual
ao Tolstoi daquela passagem célebre de
Ana Karenina. Há uma passagem em que
ele diz que o povo russo morreu. É uma
festa camponesa e aí entra o romantismo
camponês ou, dizendo de outra forma, o
fundo do povo, o fundo do romantismo
popular.
Então esse nacional popular, segundo Gramsci, vem muito depois. Na
verdade. no pensamento do Partido Comunista Brasileiro, dos intelectuais comunistas dos anos 60, isso já estava perfeitamente claro. Obras de envergadura,
como a do Nelson Werneck Sodré, que
acho que é o que tem de mais sólido, que
é o que vai ficar, a despeito dos defeitos
literários, de ser repetitivo, prolixo, de
época, é o que vai ficar.
Mas podemos destacar mais dois
livros que influenciaram muito a geração
de que falamos aqui, o Celso Furtado, o
livro sobre a estagnação, as teses estagnacionistas e o livro de Caio Prado, A
Revolução Brasileira. A Revolução Brasileira, para quem não leu, é uma crítica
de direita ao PCB. Aliás, na época, na
Revista da Civilização Brasileira, alguns
intelectuais do PCB o criticaram. É um
livro que defende, em substância, além
de outros retrocessos teóricos em relação
ao marxismo–leninismo, o acerto entre
Marx e Lênin. Nesse sentido, não há um
objetivo político, jamais aparece no livro
palavras de ordem de combate à ditadura, como objetivo central. Não há política
ali, é um livro sem política. A Revolução
Brasileira é um livro sem política, mas,
sobretudo, é uma tese extraordinária.
Ele debocha do PCB. Eu fui do PCB um
pedacinho de tempo muito curto. Fui da
VPR, fundador da VPR, de modo que no
Partidão fiquei pouco, quando tentei cair
de paraquedas no Comitê Estadual, em
1982, quando eu voltei do exílio.
Mas retomando, fundamentalmente o Caio Prado, em A Revolução Brasileira, criticava o PCB, porque o PCB
dizia que a questão da terra e da reforma
agrária era uma questão importante. O
Caio Prado demonstrava como não tinha
havido aldeia camponesa no Brasil, não
havia essa questão. A questão do acesso
a terra era absolutamente irrelevante e o
importante era construir sindicatos rurais
de trabalhadores assalariados. Não que
não fosse importante construir sindicatos dos trabalhadores assalariados. Mas
hoje, dia 30 de setembro de 1997, admitir a profundidade da análise, a profundidade de um livro consagrado a demonstrar que não existe questão da terra nem
da reforma agrária no Brasil... A moçada
pegava isso para jogar contra o Partidão
e, naquela época, tudo era bom para bater no Partidão.
Um segundo elemento de contextualização, é, portanto, 68. Sobre isso
eu até fiz um artigo que saiu na Revista
USP. Cronologicamente, não houve nenhuma espécie de influência do chamado
maio de 68, na França, sobre o processo de luta armada e mesmo processo de
mobilização estudantil no Brasil. Nós estávamos na rua em março. A VPR começou a fazer suas primeiras ações, a ALN
também, com o Sérgio Ferro. Sérgio Ferro jogou aquela bomba, na Praça 14 Bis,
um pouco antes. Mas, a VPR começou a
fazer algumas coisas, a bomba no Con-
97
sulado Americano, isso foi no comecinho do ano. Até porque Maio não tinha
nada a ver com esses tipos de ação política; na França não era assim. No primeiro
mundo não é assim, não se vai invadindo banco assim como fizemos por aqui.
Então não houve nenhuma espécie de influência de maio de 68 sobre a situação
brasileira, nenhuma.
Outro tema que está presente de
várias formas, nas questões levantadas
por vocês, tratadas por vocês, é um tema
fundamental no marxismo, que é o papel
de vanguarda da classe operária. É importante, porque é portadora da tecnologia, da instrução, é aquele setor do povo
que tem a cultura moderna na cabeça.
Além de, claro, estar no centro vital da
produção capitalista. Nisso, não há nenhuma idolatria da pobreza enquanto tal.
Lembro aqui da famosa troca de correspondência entre Marx e Vera Zassulitch,
onde a questão é tratada. Podemos, então, perguntar: a retomada dessas idéias
dos anos 60, traz consigo uma nostalgia
do passado? É claro que traz. E essa nostalgia tem uma razão de ser que pode até
fazer dela reacionária, como eram reacionários aqueles artesãos que jogavam as
máquinas no rio. Os primeiros operários
reagiram contra o progresso de uma maneira reacionária. Eu diria, concordando
com Domenico Losurdo, que pode ser
que um dos grandes erros de avaliação
presente nos estudos históricos de Marx
e também de Lênin, com relação às revoluções de 1848 e 1871, que inspiraram
a elaboração da teoria política revolucionária do marxismo, foi o de valorizarem o que era, na realidade, um forte
elemento reacionário nesse sentido aqui
discutido, de saudades do passado. E aí,
Marx se enganou, ele achava que já era
a poesia do futuro. Era uma promessa de
futuro, muito permeada pela lembrança
histórica do tempo em que o produtor era
proprietário dos meios de produção. Que
tempo era esse? A corporação medieval,
até hoje, deu a melhor situação que a história conheceu para o produtor, para o
trabalhador.
Portanto, a grande derrota que sofremos não foi agora, em 1968. A grande derrota que sofremos foi entre 1918
e 1924. Esse é o problema. Foi aí que o
curso histórico da revolução, previsto no
Manifesto Comunista, desviou. Não deu
para recuperar. Teve a fortaleza isolada,
o socialismo num só país, porque não tinha jeito.
Então, a nostalgia, esse elemento nostálgico, romântico - e aqui estou
sendo dialético demais, quem sabe se
até vertiginosamente dialético - é o elemento reacionário de toda a revolução.
Por isso, aquele católico de esquerda,
que no fundo também é um reacionário,
acredita que Deus criou o mundo e está
aí, enfrentando o latifúndio. Nossa visão,
lembrando aqui posturas fundamentais
do marxismo, é a de que a religião é a
expressão do sofrimento do mundo. O
mundo que tem Deus é um mundo dilacerado. Isso está no jovem Marx. É belíssimo, vale lembrar. A religião é o ópio do
povo, mas também o coração do mundo
sem coração. Todos vocês conhecem essas idéias; é muito bonito. Na visão marxista, a religião é a expressão de que há
algo errado, de que o sofrimento da humanidade é muito grande.
98
Alguns disseram no século XIX,
que quem não conheceu o Ancién Régime, não conheceu la douceur de vivre.
Pode ser que haja alguma verdade nisso.
Essa nostalgia do passado é uma questão
interessantíssima para nós, mas nós não
podemos nos deixar cair na armadilha
do romantismo, porque no romantismo
há uma armadilha. É o próprio desenvolvimento do capitalismo que engendra a necessidade do socialismo, que
engendra o desemprego crônico, que li-
mita o desenvolvimento da tecnologia,
a lógica da valorização do capital. Isso é
cristalino, isso não se perdeu nunca. Da
mesma forma que não se pode perder,
também, a visão crítica de que o romantismo nos leva a perder a visão crítica,
e nem por isso, perder a esperança nas
possibilidades de transformação. Mas o
romantismo sozinho não tem destino, é
cego, é produto da emoção. Mas vamos
encontrar em cada processo revolucionário um elemento claro de romantis-
mo, compondo uma das dimensões que
mais merece a nossa atenção crítica.
Terminada a exposição dos componentes
da mesa, passou-se ao debate, a partir
de questões levantadas pelo público presente. Por razões técnicas, esse debate
não está aqui reproduzido. No entanto,
aos interessados, o CEDEM possibilita,
em sua sede, a consulta da íntegra do debate (N.E.).
•A referida tese foi publicada pela Boitempo Editorial em 2001, com o título O revolucionário cordial: Astrojildo Pereira e as origens de uma política cultural.
(N.E.).
1 LÖWY, Michael; SAYRE, Robert. Revolta e melancolia - o romantismo na contramão da modernidade. Petrópolis: Vozes, 1995.
2 CALLADO, Antonio. Quarup. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967. GULLAR, Ferreira. “Quarup ou ensaio de deseducação para brasileiro virar
gente”. Revista Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, n.15, p. 251-58, set. 1967.
3 ANDERSON, Perry. A crise da crise do marxismo. 2a. ed. São Paulo, Brasiliense, 1985.
4 KONDER, Leandro. “A rebeldia, os intelectuais e a juventude”. Revista Civilização Brasileira. Rio de Janeiro, n.15,p.135-45, set. 1967.
5 ARNS, Paulo Evaristo (Prefácio). Perfil dos atingidos. Petrópolis, Vozes, 1988. RIDENTI, Marcelo O fantasma da revolução brasileira. São Paulo:Ed. UNESP/
FAPESP, 1993.
6 No momento desse debate, em 1997, estava elaborando tese de livre-docência que daria base a um livro em que desenvolvo melhor essa hipótese do romantismo
revolucionário. RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro – artistas da revolução, do CPC à era da TV. Rio de Janeiro, Record, 2000 (N.D.).
99
7 O debate aqui transcrito foi realizado durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, não poderia contemplar a análise do que viria depois. Apenas as notas
foram acrescentadas agora a um texto que é fruto do tempo em que foi escrito, uma reação ao conformismo imperante nos anos 1990 .
8 REIS FILHO, Daniel A. et al. Versões e ficções: o seqüestro da história. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 1997.
100
DOCUMENTOS DO
ACERVO
O 1º Congresso de
Escritores e o arquivo
Astrojildo Pereira
Tania Regina de Luca
UNESP/Assis; Pesquisadora do CNPq
Em março de 1942 foi fundada em São Paulo a Sociedade dos Escritores Brasileiros, sob a liderança de Sérgio Milliet. Ainda em novembro, seu Conselho Federal,
presidido por Manoel Bandeira e integrado por Astrojildo Pereira, Carlos Drummond
de Andrade, José Lins do Rego, Prudente de Moraes Neto, José Lins do Rego, entre
vários outros nomes de destaque nas letras nacionais, recebeu a incumbência de reorganizar a entidade de forma a lhe dar dimensões efetivamente nacionais.1
O conselho levou a cabo o trabalho e elaborou os estatutos da Associação Brasileira de Escritores (ABDE), novo nome da entidade, cuja estrutura previa seções
autônomas nas capitais dos estados e territórios, além da central, com sede no Distrito
Federal, todas coordenadas por um conselho nacional. Os estatutos foram aprovados
em assembléia realizada em fevereiro de 1943.
Nessa oportunidade, elegeu-se a primeira diretoria, biênio 1943-1944, encabeçada pelo historiador e Ministro do Tribunal de Contas da União, Otávio Tarquínio
101
(Presidente); Carlos Drummond de Andrade (Vice-Presidente); Álvaro Lins (1º
Secretário); Dante Costa (2º Secretário);
Marques Rebelo (Tesoureiro); Manuel
Bandeira; Rodrigo Melo Franco de Andrade; José Lins do Rego; Astrojildo Pereira e Dinah Silveira de Queiroz (Conselho Fiscal). Tratava-se de uma associação
que tinha por objetivo defender os interesses específicos dos escritores em todos os seus aspectos, entre os quais se
destacava a espinhosa questão dos direitos autorais. Na avaliação de Tarquínio,
ainda não havíamos chegado à “situação
dos países em que se tem na devida conta
a dignidade do trabalho intelectual [aliás de todo e qualquer trabalho] e em que
a profissão de escritor é considerada em
toda a sua importância”. Daí continuar
sem solução a questão da justa remuneração devida à atividade literária que, de
acordo com o Presidente, corresponderia
ao exercício de um ofício ou profissão e
faria jus a retribuições pecuniárias.
Entretanto, a ABDE logo extrapolou tal problemática para assumir as vezes de um espaço de aglutinação e debate
em torno da função e do papel dos intelectuais, da defesa da liberdade de expressão e da luta contra o fascismo, em
todas as suas formas. Antonio Candido,
que acompanhou de perto as atividades
da agremiação, assinalou que:
(...) o grosso das preocupações
foi estabelecer uma agremiação que organizasse os escritores e intelectuais para a
oposição à ditadura do Estado Novo. Tanto assim que da ABDE (sigla rapidamente
consagrada) não faziam parte os mais ou
menos chegados ao governo, seja porque
o apoiavam ideologicamente, seja porque
trabalhavam, com ou sem convicção política, em organismos oficiais de informação
e propaganda, que então proliferavam, ou
escreviam assiduamente em publicações
orientadas neste sentido.2
Em 1944, a ABDE decidiu organizar o 1º Congresso de Escritores. À seção São Paulo coube sediar e organizar
o evento, realizado na capital paulista
entre 22 e 27 de janeiro de 1945, sob coordenação de Sérgio Milliet, presidente
da seção paulista, e de Aníbal Machado,
então exercendo o cargo de presidente da
entidade. A abertura solene e o encerra-
mento ocorreram no Teatro Municipal e
as sessões de trabalho no Centro do Professorado Paulista. O conclave contou
com a participação de intelectuais dos
mais expressivos, filiados a diferentes
correntes políticas e unidos em torno do
combate à ditadura de Vargas.3
É preciso não perder de vista o momento político então vivido: a ditadura
do Estado Novo, ainda que evidenciando
sinais de declínio, continuava a vigorar e,
às vésperas do Congresso, havia o temor
de que o encontro acabasse sendo proibido. Em sua correspondência, Mário de
Andrade expressou suas dúvidas quanto
à oportunidade da realização. Para Rodrigo Mello Franco de Andrade, Mário
confidenciava em 8/12/1944:
Eu confesso a você que estou intimamente desesperado com esse Congresso (...). Comparecer? Não comparecer?
Um congresso de Intelectuais num regime
destes, ou sai bagunça, tiro, prisão, ou é
o avacalhamento da Intelligentsia nacioná (sic). Não encontro argumento que me
tire desse dilema porque não vejo possível um Congresso de escritores não se
pronunciar, agora, sobre o primeiro,
102
senão único, alimento vital do que seja inteligência, liberdade de pensar, Você nâo
acha?4
Dez dias depois, em carta à Henriqueta Lisboa, já havia decidido participar, sob o argumento de que “fica muito
ridículo e bancar o besta, brilhar pela ausência. Prefiro a humilhação de ir numa
coisa que sou contra, neste regime de
DIP e ditadura”.5
Enquanto Mário hesitava, outros
estavam convencidos do significado do
evento. No arquivo Astrojildo Pereira, há
recorte do jornal Folha Carioca, datado de
29 de novembro de 1944, no qual vários
escritores comentam o futuro Congresso
e esclarecem seus objetivos, a exemplo
de Lia Correa Duarte, que advertia:
– Que ninguém imagine que essa
reunião de intelectuais seja um pretexto
para conversinhas, troca de amabilidades
sociais, chás, coquetéis e banquetes. Não
haverá oportunidade para isso. Trabalharemos muito. Os temas a serem discutidos são todos de grande importância e
gravidade, essenciais a nossa profissão e
de interesse para o público em geral. Entre as teses recomendadas pela comissão
organizadora figuram: direitos autorais;
democratização da cultura; bibliotecas
populares; o escritor e a luta contra o fascismo; a liberdade de criação literária.
Assim, nenhum setor da atividade nacional poderá permanecer indiferente a essa
realização. Com tanta responsabilidade e
trabalho (pensa-se em fazer duas reuniões
por dia) e com assuntos tão vastos para
tratar, creio que não sobrará, felizmente,
tempo para as questõezinhas pessoais tão
em moda, nem para questões bizantinas
(...). A época não é para essas coisas. Há
guerra, nazismo, fome, campos de concentração, intolerância, vida cara e analfabetismo. Pensemos nisso primeiro. O
resto fica para depois.6
O clima que cercava o Congresso
deve ter contribuído para dissipar as dúvidas de Mário de Andrade, que integrou
a comissão de recepção das delegações
de outros estados, compareceu a todas as
sessões e remeteu cartas convocando os
jovens: “Não é possível, Guilherme, nem
pensar em você não vir, tenha paciência
por esta vez, e por favor faça toda a força pra uns como o Carlos [Drummond
de Andrade] vir também.” E fazia a mea
culpa ao amigo, “mas acabei me convencendo que é impossível pra dignidade
nossa de todos em geral e de cada um
em particular, não comparecer.”7 E para
Fernando Sabino pedia: “Você absolutamente não deixe de vir pro Congresso de
Escritores”.8
O Congresso organizou-se em
várias comissões destinadas a tratar de
questões específicas – direitos autorais;
cultura e assuntos gerais; teatro , imprensa, rádio e cinema e assuntos políticos –,
além de uma de redação e coordenação.
A Declaração de Princípios, redigida pela comissão de assuntos políticos
da qual participaram, entre outros, Astrojildo Pereira, José Eduardo Prado Kelly
e Caio Prado Júnior, foi lida em plenário
por Dionélio Machado. Como recorda
Antonio Candido, foi Astrojildo Pereira
quem propôs que todos se levantassem
para ouvir a leitura, “sob uma enorme
tensão emocional, naquela atmosfera de
opressão política onde a palavra democracia era subversiva e falar em eleição
podia dar cadeia”. 9 No texto clamavase por legalidade democrática; eleições
diretas por sufrágio universal, direto e
secreto; soberania popular e liberdade
103
de expressão, isso num evento de caráter
público.
Nas suas memórias, Álvaro Moreyra registrou o clima geral de satisfação que contagiou os participantes:
São para lembrar com orgulho esses dias
de 22 a 27/1/1945. Grande congresso! Congresso
de defesa de todos os direitos. Muita palavra se
pediu na sessão inicial. Bastante tempo se perdeu. Esquecimento. Falta de prática. Nas outras
sessões, foi como se houvesse sempre Congresso. Estudou-se, discutiu-se, esclareceu-se a tarefa
numerosa da inteligência no mundo que quer a
paz para viver. Dos que partiram do Rio, o regresso foi alegria (...). Noite luminosa, vento fresco,
prazer imenso. Cada um sorria para o outro. Trazíamos todos umas caras de feliz ano novo...10
A seguir reproduzem-se dois documentos manuscritos, que integram o
arquivo de Astrojildo Pereira. O primeiro é a Ata da segunda reunião da Comissão de Assuntos Políticos e o segundo é a
Declaração de Princípios aprovada pelo
1º Congresso.
1 Sobre as questões mais amplas da intelectualidade paulista e carioca, que explicam as mudanças ocorridas na entidade, ver a instigante análise de LAHUERTA,
Milton. Elitismo, autonomia, populismo. Os intelectuais na transição dos anos 40. Dissertação (Mestrado em Ciência Política). São Paulo: FFLCH/USP, 1992, especialmente capítulo 4.
2 CANDIDO, Antonio. O Congresso dos Escritores. In: CANDIDO, Antonio. Teresina etc. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1980, p. 108.
3 Sobre o Congresso, além do trabalho de Milton Lahuerta e Antonio Candido, consultar: ABREU, Alzira Alves. 1º Congresso de Escritores. IN: ABREU, Alzira
Alves de (coord.). Dicionário Histórico-Biográfico Brasileiro pós-1930. 2a ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: FGV, CPDOC, 2001, v. II, p. 1535-1536 e MOTA, Carlos Guilherme. Ideologia da cultura brasileira (1933-1974). 4a ed. São Paulo: Ática, 1978, 137-153.
4 ANDRADE, Mário de. Cartas de trabalho. Correspondência com Rodrigo Mello Franco de Andrade. Brasília, MEC, 1981, p. 185. 5 ANDRADE, Mário. Querida
104
Henriqueta. Cartas de Mário de Andrade a Henriqueta Lisboa. 2a ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1991, p. 171. E em 24/12/1944, para Guilherme de Figueiredo, praticamente nos mesmos termos: ‘Que vazio... Esse Congresso de Escritores está cada vez mais me irritando. Considero isso uma loucura, numa época destas.
Hesitei muito em comparecer, mas afinal acabei decidindo que compareço. Prefiro até a humilhação de um Congresso inócuo no ponto principal ou de talvez tomar
cadeia inutilmente, a bancar o besta e o não-participante não comparecendo. Idem. A lição do guru. Cartas a Guilherme de Figueiredo (1937-1945). Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1989, p. 143.
6 No Primeiro Congresso Brasileiro de Escritores, a se realizar em São Paulo, serão traçadas importantes diretrizes. Folha Carioca, 29/11/9944. Arquivo Astrojildo
Pereira, 172, 35 (3)-1, CEDEM/UNESP.
7 ANDRADE, Mário. A lição do guru, p. 145, carta datada de 3/1/1945.
8 Idem. Cartas a um jovem escritor. De Mário de Andrade a Fernando Sabino. Rio de Janeiro: Record, 1981, p. 143.
9 CANDIDO, Antônio, 1980, p. 109-12, refere-se ao impacto, significado e importância da declaração, tendo em vista o clima reinante na época. Observe-se que o
belo texto de Candido, escrito em 1975, dialoga fortemente com a conjuntura de exceção que novamente dominava o país.
10 MOREYRA, Álvaro. As amargas, não... (Lembranças). 2a ed. Rio de Janeiro: Editora Lux, 1955. p. 221-222.
105
ANEXO: O 1º Congresso de Escritores e o arquivo Astrojildo Pereira
106
ANEXO: O 1º Congresso de Escritores e o arquivo Astrojildo Pereira
107
ANEXO: O 1º Congresso de Escritores e o arquivo Astrojildo Pereira
108
ANEXO: O 1º Congresso de Escritores e o arquivo Astrojildo Pereira
109
ANEXO: O 1º Congresso de Escritores e o arquivo Astrojildo Pereira
110
DOCUMENTOS DO
ACERVO
Carta de “Um homem do povo”
[Astrojildo Pereira]
a J. N. [João Neves da Fontoura]
Luiz Alberto Zimbarg
Historiógrafo do CEDEM
O ano de 1936 passou em meio a uma conturbada conjuntura política. Na esteira
do movimento de novembro de 1935, o governo federal iniciou uma dura vaga repressiva, desarticulando a maior parte das organizações ligadas aos movimentos sociais,
utilizando-se do “espantalho” do radicalismo, tanto de esquerda (consubstanciado pela
tentativa revolucionária da ANL), como de direita (a Ação Integralista Brasileira observava então grande expansão, obtendo influência nas esferas governamentais e começando a constituir-se como alternativa viável de poder).
Já em dezembro de 1935 a Lei de Segurança Nacional, promulgada em abril, é
reforçada com novos dispositivos, que tornavam a sua aplicação mais fácil. O Estado
de Sítio por noventa dias é aprovado no Congresso com ampla maioria (172 votos
contra 52), e o governo ganha autorização para equipará-lo a Estado de Guerra. Também são retiradas as garantias aos funcionários públicos civis e militares suspeitos de
comunismo.
111
Em janeiro de 1936 é criada a Comissão Nacional de Repressão ao Comunismo – CNRC, que tem a função de
investigar e solicitar punição de funcionários públicos suspeitos. No início de
março, Luiz Carlos Prestes é preso, com
vasta documentação da ANL, o que dá
grande força à CNRP, sendo excelente munição contra seus adversários políticos. Seu diretor, o deputado gaúcho
Adalberto Correia, passa a pressionar
o governo pela prisão de Pedro Ernesto
(que ocorre no dia 3 de abril), governador do Distrito Federal e membro, nos
primeiros anos do governo, do chamado
“gabinete negro”, círculo dos colaboradores mais íntimos de Getúlio Vargas.
Adalberto Correia passa a defender enfaticamente a necessidade de decretação
imediata do Estado de Guerra, a instauração de uma ditadura e reforma da
Constituição e até mesmo o fuzilamento
de presos. Ao final de março, o Estado
de Guerra é decretado por noventa dias,
suspendendo a maior parte das garantias
constitucionais e permitindo o funcionamento de um tribunal de exceção, o Tri-
bunal de Segurança Nacional – TSN, que
será instalado no mês de setembro.
A conjuntura internacional não era
mais alentadora, o fascismo avançara em
todo o mundo, impulsionado pela terrível recessão econômica da primeira metade da década de 1930. As instituições
republicanas estavam sendo duramente
questionadas em todo lugar. O movimento comunista internacional, capitaneado pelo Komintern, havia mudado
sua postura sectária dos anos anteriores e
iniciado a política de Frentes Populares,
participando do processo eleitoral e coligando-se aos governos republicanos, especialmente na Espanha e na França. Na
Espanha, o governo republicano, eleito
em fevereiro com o apoio dos partidos
de esquerda, sofria ameaça, consubstanciada pelo golpe de Estado que levou o
país à Guerra Civil, iniciada em julho
daquele ano.
O governo brasileiro rumava decisivamente para o autoritarismo, mal
disfarçado de luta contra a subversão.
Os agrupamentos políticos ligados aos
sindicatos e aos movimentos sociais se
encontravam desarticulados e a oposição parlamentar era capitaneada por uma
coligação envolvendo, principalmente, a
Frente Única Gaúcha, formada pelo Partido Republicano Riograndense–PRR,
liderado pelo velho Borges de Medeiros,
coligado com o Partido Libertador, de
Raul Pilla e Batista Luzardo; do Partido
Republicano Paulista – PRP; pelo Partido
Republicano Mineiro, com Arthur Bernardes à frente e a Concentração Autonomista da Bahia, de Otavio Mangabeira.
Essa oposição parlamentar constitui-se
como uma coligação, que adotou a denominação de Oposições Coligadas, ou
Minoria Parlamentar, e teve, a partir de
maio de 1935, o deputado gaúcho João
Neves da Fontoura como líder da bancada. Também entre os membros desta
congregação sentiu-se a repressão política, e, em março de 1936, foram presos
os parlamentares filiados à ANL: Abguar
Bastos, Domingos Velasco, João Magabeira, Otavio Silveira e Abel Chermont,
todos membros da Minoria.
A partir de janeiro de 1936, iniciou-se um movimento de parte da ban-
112
cada gaúcha das Oposições Coligadas no
sentido de aproximação com os governos
federal e estadual. Esse movimento, aqui
denominado de “pacificação”, teve por
objetivo costurar um acordo entre a Frente Única Gaúcha e o Partido Republicano
Liberal – PRL, do governador Flores da
Cunha, e estabelecer um modus vivendi
que selasse um acordo entre o governo
estadual, a oposição e Getúlio Vargas,
figura política oriunda do PRR, do qual
sofria a oposição mais ferrenha. A “pacificação” culminou com uma reunião,
em abril, entre Getúlio Vargas, Maurício Cardoso, João Neves da Fontoura,
Batista Luzardo e Firmino Paim. Nesta
reunião acertou-se uma trégua entre este
bloco parlamentar e o governo federal.
O acordo iniciou uma crise na Minoria,
pois a bancada paulista era então irreconciliável com o governo federal. A crise
foi resolvida com a prorrogação de Estado de Guerra, em junho, que resultou no
encerramento dos acordos entre a bancada gaúcha das Oposições Coligadas com
o governo.
É nessa conjuntura que se encaixa
o texto a seguir de Astrojildo Pereira, redigido em maio de 1936, na forma de um
apelo, em defesa, não mais do PCB, mas
do sistema democrático, como ele frisa:
“a luta atual está travada não entre a liberal-democracia de um lado e o comunismo de outro” ou, mais à frente, “No
Brasil a revolução a se fazer (...) é ainda
a revolução democrático-burguesa”. O
texto aqui rascunhado, vê com bastante
clareza o processo de concentração de
poder, iniciado por Getúlio Vargas, ocultado sob o manto da luta contra a subversão e dá um panorama da conjuntura política (no Brasil e no mundo) e também
da retificação da linha política do PCB,
que abandona o sectarismo de até então,
para buscar um entendimento das forças
políticas simpáticas à democracia. Ademais, este texto é uma amostra de como
questões aparentemente regionais são
encadeadas com uma conjuntura mais
ampla.
Há, no entanto, mais um elemento de interesse neste documento, pois se
trata de um registro de intervenção política, ainda que oculta pelo anonimato, de
Astrojildo Pereira, numa época obscura
na biografia deste personagem, que fora
oficialmente expulso do Partido Comunista em 1931, ficando afastado deste até
1945. É pois um documento que revela
um gesto de intenções políticas sob uma
crosta de repressão e de aparente ostracismo.
Notas biográficas
Astrojildo Pereira
Nascido em Rio Bonito (RJ), em 8
de outubro de 1890, aos 19 anos iniciou
sua militância nas organizações operárias, filiando-se ao Centro de Resistência Operária de Niterói e colaborando
com a imprensa operária. Exerceu intensa atividade no movimento anarquista
no Estado do Rio de Janeiro, até 1921,
quando, em novembro do mesmo ano,
participa da criação do Grupo Comunista do Rio de Janeiro. Em março de 1922
foi fundado, com sua participação, o
Partido Comunista do Brasil. Astrojildo
foi o principal dirigente deste Partido até
novembro de 1930, quando foi destituído
113
do cargo de Secretário Geral. Em julho
do ano seguinte se afastaria oficialmente
das fileiras do Partido, sendo readmitido
somente em 1945.
Com a renovação da linha política do
PCB, em 1958, passou a dirigir a revista de formação teórica do Partido: Estudos Sociais. Sofrendo com problemas
cardíacos, foi preso em outubro de 1964,
cumprindo a pena no Hospital da Polícia
Militar do Rio de Janeiro até janeiro de
1965, quando foi contemplado com um
habeas corpus. Faleceu em 20 de novembro de 1965. Seu acervo foi conservado a
salvo da repressão, na Fundação Feltrinelli, em Milão (Itália) até 1994, quando
foi remetido de volta ao Brasil e acolhido
pela Universidade Julio Mesquita Filho,
sob os cuidados do CEDEM.
114
Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo”
[Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura]
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Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo”
[Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura]
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Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo”
[Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura]
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Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo”
[Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura]
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Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo”
[Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura]
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Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo”
[Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura]
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Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo”
[Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura]
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Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo”
[Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura]
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Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo”
[Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura]
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Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo”
[Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura]
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Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo”
[Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura]
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Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo”
[Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura]
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Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo”
[Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura]
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Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo”
[Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura]
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Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo”
[Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura]
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Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo”
[Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura]
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Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo”
[Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura]
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Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo”
[Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura]
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Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo”
[Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura]
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Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo”
[Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura]
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Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo”
[Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura]
135
Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo”
[Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura]
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Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo”
[Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura]
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Nota introdutória ao texto Carta de “Um homem do povo”
[Astrojildo Pereira] a J. N. [João Neves da Fontoura]
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Notícias
Desde 1995, o CEDEM vem realizando eventos, na forma de seminários,
debates, mesas-redondas e conferências, em torno de temas relativos ao seu acervo e
a outros, de amplo interesse. Do conjunto, destaca-se a série Teses em Debate, destinada à discussão de trabalhos acadêmicos desenvolvidos na UNESP e fora dela.
Os encontros acontecem no CEDEM e seus registros encontram-se, em sua maioria,
disponíveis à consulta pública.
No ano de 2007 foram realizados os seguintes eventos:
Estado e Extrativismo Vegetal no Império do Brasil (1822 – 1831)
28 de março
Expositor:
Paulo Henrique Martinez – UNESP/Assis
Debatedoras:
Cecília Helena de Salles Oliveira – Museu Paulista/USP
Andréa Slemian – IEB/USP
Moderadora:
Célia Reis Camargo – UNESP/Assis e CEDEM
O Império dos Livros: Instituições e Práticas na São Paulo Oitocentista
17 de abril
Expositora:
Marisa Midori – USP
Debatedores:
Antonio Celso Ferreira – UNESP/Assis
Tânia de Luca – UNESP/Assis
Moderador:
Célia Reis Camargo – UNESP/Assis
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Imprensa e Cidade
24 de abril
Expositoras:
Tania Regina de Luca – UNESP/Assis
Ana Luiza Martins - CONDEPHAAT
Debatedores:
João Luis Ceccantini – UNESP/Assis
Marly Rodrigues - CONDEPHAAT
Moderador:
Paulo Cunha – UNESP/Marília
Lampião e o Cangaço
08 de maio
Expositor:
Moacyr Assunção – Jornal O Estado de São Paulo
Debatedores:
Marco Antonio Villa - UFSCAR
Marco Antonio Teixeira - FGV
Moderador:
Paulo Cunha – UNESP/Marília
Transformações na Historiografia Nacional
14 de maio
Expositor:
Fábio Franzini - USP
Debatedores:
Danilo José Zioni Ferretti – UFSJ
Eduardo Santos - USP
Moderador:
Célia Reis Camargo – UNESP/Assis e CEDEM
Democracia e Segurança Pública em São Paulo (19461964)
05 de junho
Expositor:
Thaís Battibugli - USP
Debatedores:
Luis Antonio Francisco de Souza – UNESP/Marília
Marcos Bretãs - UFRJ
Moderador:
Paulo Cunha – UNESP/Marília
Editoras de Oposição no Período da Abertura
(1974 – 1985): Negócio e Política
12 de junho
Expositor:
Flamarion Maués Pelúcio Silva – Editora Perseu Abramo
Debatedores:
Marcelo Ridenti – UNICAMP
Bernardo Kucinski - USP
Moderador:
Paulo Cunha - UNESP/Marília
140
Figurações do Ritmo – Da Sala de Cinema ao Salão
de Baile Paulista (1930 – 1950)
08 de agosto
Expositor:
Francisco Rocha – USP
Debatedoras:
Helouise Costa – Museu de Arte Contemporânea / USP
Tania Regina de Luca – UNESP/Assis
Moderadora:
Célia Reis Camargo – UNESP/Assis e CEDEM
Novas Perspectivas Sobre as Práticas Editoriais de
Monteiro Lobato (1918-1925)
14 de agosto
Expositora:
Cilza Bignotto – UNICAMP
Debatedores:
Marisa Lajolo – UNICAMP
João Luis Ceccantini – UNESP/Assis
Moderador:
Lincoln Secco - USP
A Luta pela terra dos posseiros no interior de Goiás
(1950-1964)
04 de setembro
Expositor:
Paulo Cunha – UNESP/Marília
Debatedores:
Edmilson Costa - FMU
Odair Paiva – UNESP/Marília
Moderadora:
Sandra Santos - CEDEM
Marxismo e a sua história no Brasil – 6º Volume
11 de setembro
Debatedores:
Marcelo Ridenti - UNICAMP
Dainis Karepovs - UNICAMP
Moderador:
Marcos Del Roio – UNESP/Marília
Cine Debate – Documentário: Terrorista
24 de setembro
Debatedores:
Percy Sampaio Camargo - ex-docente da UNESP
César Meneghetti – cineasta / FAAP
Carlos Botazzo – pesquisador do Instituto de Saúde de São
Paulo
Moderadora:
Anna Maria Martinez Correa – UNESP/CEDEM
A Herança de Um Sonho
02 de outubro
Expositor:
141
Marco Antônio Coelho - USP
Debatedores:
Paulo Cunha – UNESP/Marília
José Antonio Segatto – UNESP/Araraquara
Moderador:
Lincoln Secco - USP
Cuba e Brasil: Revolução e comunismo (1959-1974)
09 de outubro
Expositor:
Jean Rodrigues Sales - USP
Debatedores:
Dainis Karepovs - UNICAMP
Marcelo Ridenti - UNICAMP
Moderador:
Paulo Cunha – UNESP/Marília
Parceria entre o CEDEM e a Fundação Bunge
Aula: Conservação e preservação de documentos textuais
06 de novembro
Tietê, o rio que a cidade perdeu (1890-1940)
28 de novembro
Expositor:
Janes Jorge - USP e PUC/SP
Debatedores:
Patrícia Tavares Raffaini – USP e Universidade Anhembi
Morumbi
Miguel Tadeu Campos Morata – Faculdades Oswaldo Cruz
Moderadora:
Célia Reis Camargo – UNESP/Assis e CEDEM
Revoluções Boliviana e Russa - lançamento de livro
e debate
08 de dezembro
Debatedores:
Everaldo de Oliveira Andrade – CEMAP e UNG
Antonio Rago Filho – PUC/SP
Murilo Leal Pereira Neto – FACCAMP e CEMAP
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Instruções e Normas
para Publicação
Colaborações
A Revista publicará artigos, resenhas,
traduções, documentos comentados, experiências técnicas e metodológicas, e outros de
natureza similar, que tratem do patrimônio
cultural; de estudos e fontes sobre a história
da universidade e da comunidade científica
e sobre a história política brasileira contemporânea, com ênfase para a atuação da esquerda e para os movimentos sociais.
Os artigos deverão ser originais, resultantes de pesquisas científicas e significativas
para o perfil do periódico. Poderão ser incluídos outros tipos de contribuições como artigos
de revisão, comunicações, resenhas e estudos
de caso. As referidas publicações não serão
consideradas artigos originais.
Normas para publicação
As colaborações para a Revista
Eletrônica CADERNOS CEDEM devem
seguir as seguintes especificações:
Os trabalhos a serem submetidos para publicação devem ser digitados em Word 7.0 (ou
superior), fonte Arial 10, espaço 1,5, formato
A 4.
Os artigos deverão ter, no mínimo
15 (quinze) e no máximo, 25 (vinte e cinco)
páginas. As notas devem vir no final do texto
e devem conter todas as referências bibliográficas. Não será incluída bibliografia.
Os artigos deverão apresentar título, resumo, palavras-chave em português
e inglês. O resumo deverá ter, no máximo,
150 palavras e deverão ser apresentadas três
palavras-chave.
Os textos poderão ser apresentados
com ilustrações, em jpg, e gráficos com as
fontes devidamente mencionadas.
As Resenhas devem ter de 4 a 6 páginas.
Após o título deverá constar o nome do
Autor(es), por extenso e apenas o sobrenome
em maiúscula. A filiação científica do(s)
autor(es) deverá constar em nota de rodapé.
A publicação e os comentários a
respeito de documentos inéditos seguirão as
normas especificadas para os artigos.
As traduções devem vir acompanhadas de
autorização do autor.
Caso o trabalho tenha apoio financeiro de alguma instituição, esta deverá ser
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mencionada.
Os artigos deverão observar as normas
de estrutura fixadas pela ABNT. As referências bibliográficas devem seguir a seguinte
normatização:
SOBRENOME, Nome. Título do Livro em
Itálico: subtítulo. Tradução, edição, Cidade:
Editora, ano, página.
SOBRENOME, Nome. Título do capítulo. In:
Título da obra em itálico. Tradução, edição,
Cidade: Editora, ano, p.
SOBRENOME, Nome. Título do artigo. Título
do periódico em itálico. Cidade: Editora, vol.,
fascículo, p, ano.
Sobre a publicação on line e
direitos autorais
As contribuições serão aceitas para
publicação em CADERNOS CEDEM mediante aprovação do seu Conselho Editorial,
a partir de dois pareceres, um interno e outro
externo. Em caso de avaliação conflitante o
texto será enviado para um terceiro parecerista. Os textos não serão identificados, man-
tendo-se assim o sigilo da avaliação. Os casos
conflitantes serão resolvidos pelo Conselho
Editorial.
Todo artigo submetido para publicação on line deverá vir acompanhado de uma
declaração do seu autor, ou de um responsável
quando for o caso de co-autoria, nos seguintes
termos:
“Autorizo a revista eletrônica CADERNOS
CEDEM a publicar o artigo (citar o título),
de minha autoria/responsabilidade, caso seja
aceito para publicação on line.
Declaro que esta contribuição é original, que
não está sendo submetida a outro editor para
publicação e que os direitos autorais sobre
ela não foram anteriormente cedidos a outra
pessoa, física ou jurídica.
Declaro que transfiro à revista eletrônica
CADERNOS CEDEM o direito de publicação
on line, não podendo reclamar, em qualquer
época ou sob qualquer pretexto, qualquer remuneração ou indenização, a que título seja,
pela publicação on line.
Eu, (colocar o nome completo), assino a presente declaração como expressão absoluta da
verdade e me responsabilizo integralmente,
em meu nome e de eventuais co-autores, pelo
material apresentado.
(local e data)
Nome: (completo)
CPF: (indicar o CIC)
Documento de identidade: (citar tipo, número
e órgão emissor)
Endereço: (citar por completo, inclusive
telefone)
E-mail: (citar o do responsável quando se
tratar de mais de autor)
Encaminhamento dos originais
O material para publicação na deverá
ser encaminhado via e-mail para o seguinte
endereço: [email protected], em arquivo
anexado à mensagem de encaminhamento
que conterá a identificação e endereços comum e eletrônico do remetente.
O material também poderá ser enviado em arquivo de dados gravado CD-ROM e postado
no Correio para o endereço convencional do
CEDEM, aos cuidados da Comissão Editorial
dos CADERNOS CEDEM: Praça da Sé 108,
1º. Andar – CEP 01001-900, São Paulo – SP.
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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
CADERNOS CEDEM
“JULIO DE MESQUITA FILHO” - UNESP
Comissão Editorial
Reitor
Anna Maria Martinez Corrêa
Marcos Macari
Célia Reis Camargo
Vice-reitor
Márcia Tosta Dias
Herman Jacobus Cornelis Voorwald
Sandra Moraes
EXPEDIENTE
Sandra Santos
CENTRO DE DOCUMENTAÇÃO
E MEMÓRIA - CEDEM
Conselho Editorial
Coordenadora
Anna Maria Martinez Corrêa (UNESP)
Célia Reis Camargo
Áureo Bussetto (UNESP)
Secretária
Carlos Bauer (Uninove)
Rosemeire Aparecida Francelin
Célia Reis Camargo (UNESP)
Equipe técnica
Clifford Andrew Welch (UNESP)
Ana Sena
Emilia Viotti da Costa (USP)
Jacy Machado Barletta
Francisco Alambert (USP)
Luis Alberto Zimbarg
Gildo Marçal Brandão (USP)
Márcia Dias
Jaime Antunes da Silva (Arquivo Nacional)
Sandra Moraes
Jô Azevedo (PUC)
Sandra Santos
José Antonio Segatto (UNESP)
Solange de Souza
José Augusto Chaves Guimarães (UNESP)
José Ênio Casalecchi (UNESP)
Coordenadora do projeto
José Luis del Roio (IAP)
Memória da Universidade
José Maria Jardim (UFF)
Anna Maria Martinez Corrêa
José Marques Castilho Neto (UNESP)
Lincohn Secco (USP)
145
Marcelo Ridenti (UNICAMP)
Márcia Tosta Dias (CEDEM/UNESP)
Marcos del Roio (UNESP)
Paulo Cunha (UNESP)
Pedro Paulo Funari (UNICAMP)
Sidney Barbosa (UNESP)
Tania Regina de Luca (UNESP)
Teresa Malatian (UNESP)
Ulpiano Toledo Bezerra de Menezes (USP)
Yara Aun Khoury (PUC)
Zélia Lopes da Silva (UNESP)
Editor
Célia Reis Camargo
146
Revisão
Ano 1 - Volume 1
Maria Apparecida Faria Marcondes Bussolotti
Janeiro de 2008
Edição de textos
Anna Maria Martinez Corrêa
Marcia Tosta Dias
Maria Lúcia Torres
Interface / Projeto gráfico
Paulo Alves de Lima

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