Resenhas das obras do vestibular da UEL

Transcrição

Resenhas das obras do vestibular da UEL
Celso Leopoldo Pagnan
Doutor em literaturas de língua portuguesa
Resenhas dos livros de
leitura obrigatória da
UEL 2017/2018
Londrina, 2016
1a edição
1
Direção-Geral
Virgílio Tomasetti Jr.
Direção administrativo-financeira
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Coordenação de novos produtos
Cássia Gimenes Barcaro
Coordenação Editorial
Joaquim Luís de Almeida
Supevisão de Editoração
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Organização e Revisão
Celso Leopoldo Pagnan
Capa
João Paulo Fidellis da Silva
Diagramação
Glauber Damasceno
808.8
P156r
Pagnan, Celso Leopoldo.
Resenhas dos livros de leitura obrigatória da UEL 2017-2018. Celso Leopoldo
Pagnan. – Londrina : Colégio Maxi, 2016. – 85p.
1. Resenhas – vestibular. 2. Literatura. 3. UEL – vestibular. I. Colégio Maxi.
Ficha Catalográfica elaborada pelo Bibliotecário
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2
Apresentação
Vestibulando(a)!
Estas são as resenhas de leituras obrigatórias destinadas
especificamente, e com antecedência, aos candidatos a cursos de
graduação da UEL – Universidade Estadual de Londrina (PR), nos
concursos vestibulares de 2017 e 2018.
Uma lista com 10 obras literárias é sugerida pela Universidade a
cada dois anos. A atual compõe-se de 3 obras remanescentes da lista
anterior e 7 novas:
Eurico, o Presbítero, de Alexandre Herculano
O pagador de promessas, de Dias Gomes
Toda poesia, de Paulo Leminski
Vozes anoitecidas, de Mia Couto
Uma menina está perdida no seu século à procura do seu pai, de Gonçalo Tavares
O Ateneu, de Raul Pompéia
Alguma poesia, de Carlos Drummond de Andrade
A hora da estrela, de Clarice Lispector
Melhores contos de Nélida Piñon, de Nélida Piñon
Topless, de Martha Medeiros
As resenhas foram feitas pelo prof. Celso Leopoldo Pagnan, com a intenção
de oferecer a você informações e análises indispensáveis ao seu preparo
imediato para o vestibular, sem a pretensão de substituir a leitura do texto
literário integral.
Ora, detalhes importantes como ambientação da obra, estilo do
autor, caracterização dos personagens, ritmo da narrativa e a própria
“mensagem” são objetos da tratativa desta resenha, mas podem ficar
incompletos para o leitor apenas de uma resenha, por mais fiel que ela
tente ser. Daí, nossa recomendação de que estas resenhas sirvam de
preparação ou de complementação à leitura do texto integral das
respectivas obras, pois nossa intenção é tanto abrir caminhos a
quem vai lê-las quanto preencher eventuais lacunas a quem as
leu.
Seja a leitura destas resenhas uma introdução e, ao
mesmo tempo, um complemento ao seu estudo da
literatura luso-brasileira no que tange às exigências
do vestibular de 2017 e 2018 na UEL.
Bom estudo!
3
Sumário
Eurico, o Presbítero, de Alexandre Herculano .................. 5
O pagador de promessas, de Dias Gomes ......................... 13
Toda poesia, de Paulo Leminski ............................................. 19
Vozes anoitecidas, de Mia Couto ........................................... 27
Uma menina está perdida no seu século à procura
do seu pai, de Gonçalo Tavares ............................................... 35
O Ateneu, de Raul Pompéia .................................................... 41
Alguma poesia, de Carlos Drummond de Andrade .................. 49
A hora da estrela, de Clarice Lispector ................................ 57
Melhores contos de Nélida Piñon, de Nélida Piñon ....... 65
Topless, de Martha Medeiros ........................................ 77
Referências bibliográficas ................................. 85
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Eurico, o presbítero
Eurico, o presbítero, de Alexandre Herculano, é um
romance histórico, bem ao gosto romântico. Isto porque
o conceito de história, tal e qual conhecemos hoje, o
de uma progressão seja teleológica (com a perspectiva
de um fim da história), seja a evolucionista (a que
considera um contínuo processo de melhoramento
em vários aspectos da vida), seja ainda a dialética
(a que revela um processo entre idas e vindas, sem
que se chegue a um determinado fim sintético). No
caso específico, a visão romântica era a que buscava
explicar as origens de algo para compreender o
momento presente e projetar a vida futura. Neste
sentido, Alexandre Herculano (1810-1877) situa o
enredo de seu romance no século VIII, quando houve
a invasão muçulmana à Península Ibérica, chamada
pelo autor toda ela de Espanha (ou Hispânia), afinal
Portugal ainda não existia.
de Alexandre Herculano
A raça dos visigodos, conquistadora das Espanhas,
subjugara toda a Península havia mais de um
século. Nenhuma das tribos germânicas que,
dividindo entre si as províncias do império dos
césares, tinham tentado vestir sua bárbara nudez
com os trajos despedaçados, mas esplêndidos, da
civilização romana soubera como os godos ajuntar
esses fragmentos de púrpura e ouro, para se
compor a exemplo de povo civilizado. Leovigildo
expulsara da Espanha quase que os derradeiros
soldados dos imperadores gregos, reprimira
a audácia dos francos, que em suas correrias
assolavam as províncias visigóticas d’além dos
Pireneus, acabara com a espécie de monarquia
que os suevos tinham instituído na Galécia e
expirara em Toletum depois de ter estabelecido
leis políticas e civis e a paz e ordem públicas nos
seus vastos domínios, que se estendiam de mar
a mar e, ainda, transpondo as montanhas da
Vascônia, abrangiam grande porção da antiga
Gália narbonense. (2014, p. 21)
Para poder se entender esse momento é preciso
retornar ainda mais no tempo e dizer que os romanos,
no seu intento expansionista, chegaram à Península no
século II a.C., subjugando os lusos ao seu domínio. Os
romanos não apenas conquistavam um território como
também impunham sua cultura, seu modo de vida, sua
língua (o latim). Permaneceram dominando a região
até o século V, quando o Império Romano do Ocidente
começou a ruir, ante as invasões dos chamados povos
bárbaros (os povos do norte da Europa, os suevos, os
vândalos e os godos), que conquistaram boa parte dos
territórios dominados pelos romanos.
Leovigildo (572-586), no caso, é uma referência
a um dos reis godos, governantes da região de Toledo,
que conseguiu impor-se como rei no século VI.
No século VIII, porém, mais precisamente no ano
de 711 d. C., houve a invasão muçulmana. Em maior
número, e com um exército mais bem preparado para a
guerra, os árabes conquistaram palmo a palmo toda a
península, deixando aos godos apenas a região norte,
isto é, parte da Galícia e das Astúrias, conforme se pode
observar no mapa abaixo, que mostra a dominação
muçulmana na região.
Esse povos, porém, tinham outra mentalidade. O
objetivo maior era o de conquistar, sem necessariamente
impor sua cultura ao povo conquistado. Por isso mesmo,
a cultura romana permaneceu bastante influente na
região, fosse a língua latina, fosse a religião cristã.
Durante os cerca de duzentos anos que esses povos
ficaram na região foram se alternando no domínio,
até que os godos, especialmente os visigodos, se
estabeleceram no poder. Desse modo, foram aos poucos
criando o que viria a ser a aristocracia da Espanha,
a nobreza, que, ao lado da Igreja cristã, sobretudo a
católica se constituiu na liderança de todos os povos
que habitavam a Península.
Os godos, a princípio eram arianos, isto é,
pertencentes a uma seita que pregava a separação
entre a figura de Jesus e de Deus. Para os arianos, não
formariam, com o Espírito Santo, uma trindade. Jesus
seria uma pessoa comum, embora o predileto de Deus,
mas não seria deus. Aos poucos, porém, aderiram
ao culto romano e se converteram ao catolicismo, ao
menos parte dos godos.
http://raffaelbarbosa.blogspot.com.br/2009/07/sobre-presenca-arabena-iberia-medieval.html
É exatamente desse processo de conquista que
trata Eurico, o presbítero. É verdade que o autor situa
a ação no ano 748. Seu objetivo, mais que a precisão
histórica, é revelar esse momento que se tornou, mais
tarde, crucial para a formação dos estados modernos
de Portugal e da Espanha.
No romance, o narrador faz essa contextualização,
ainda que sempre com alguma liberdade poética,
alguma liberdade de criação:
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Eurico, o presbítero, de Alexandre Herculano
Outro dado importante a relatar é que os árabes
também não procuraram impor totalmente sua cultura
aos povos conquistados. Eram mais tolerantes em
relação a isso. Queriam mesmo era a conquista dos
territórios e a dominação política. Graças a isso, a
cultura romana continuou bastante presente e base das
relações sociais do ibéricos. Não por acaso, a região
manteve-se firme na fé cristã e o latim, em contato com
outros idiomas, foi aos poucos se modificando até se
transformar no galego-português (língua das cantigas,
dos primeiros textos em língua local) e depois no
português e no espanhol (galego, castelhano, catalão,
conforme a região).
Alexandre Herculano era também historiador,
tendo escrito alguns livros sobre a história de Portugal.
Como romancista, interessou-se por momentos
simbólicos da formação de Portugal, e seguiu um
determinado estilo legado por romancistas como
Victor Hugo e Walter Scott. Por isso mesmo, este
romance sobre qual estamos tratando, apresenta, além
da narração do enredo, notas de rodapé, como meio
de explicar alguma decisão narrativa, explicar algum
termo histórico. No prefácio, faz considerações sobre
o momento histórico de que trata. Nesse prefácio,
ele próprio ficou em dúvida sobre como classificar o
gênero literário escolhido e também revela de modo
mais explícito seu intento que é o de determinar o
início da formação portucalense.
A Espanha romano-germânica transformou-se
na Espanha rigorosamente moderna no terrível
caminho da conquista árabe. A obra literária
(novela ou poema – verso ou prosa – que importa?)
relativa a essa transição deve combinar as duas
fórmulas – indicar as duas extremidades a que
se prende; fazer sentir que o descendente de
Teodorico ou de Leovigildo será o ascendente do
Cid ou do Lidador, que entre o homem e coisa,
começa a converter-se em altivo e irrequieto
burguês. (2014, p. 17)
Essa Espanha romano-germânica são exatamente
os godos, romanizados e cristianizados e que, unida,
em prol de um ideal comum, a expulsão dos invasores,
vai aos poucos se recuperando até a construção dos
estados modernos.
É bem verdade que o exército árabe acabou
sendo formado não apenas pelos próprios árabes ou
muçulmanos, mas também se constituiu de traidores,
fossem os próprios cristãos de outras igrejas ou seitas
(denominados de moçárabes), fossem os berberes. No
caso dos cristãos, isso de fato aconteceu. No romance,
essa traição é representada por Juliano, conde de
Septum, e Opas, bispo de Hispalis. Ou seja, ao invés
de lutarem unidos pela Espanha e pelo cristianismo,
deixaram-se levar por vantagens que obteriam com a
subserviência aos novos conquistadores.
O romance tem como foco também o frustrado
relacionamento amoroso entre Eurico e Hemengarda.
Esta era filha de Fávila e irmã de Pelágio, que irá
desempenhar grande papel no romance. Embora
se amassem, os dois jovens são impedidos de se
relacionarem, pois cada um pertencia a uma crença
religiosa diferente, o que era proibido pelas leis
visigodas. No caso, o casamento entre os godos arianos
e os cristãos católicos era proibido. Hemengarda
prefere a obediência ao pai a ter de enfrentar tudo por
amor. Por isso, Eurico se afasta de todos e se ordena
padre, sendo elevado a pároco do presbitério da Carteia
no sul da Espanha, no estreito de Gibraltar, parte do
mar mediterrâneo que separa os continentes africano
e europeu, e que acabou sendo porta de entrada para a
invasão muçulmana.
Uma destas revoluções morais que as grandes
crises produzem no espírito humano se operou
então no moço Eurico. Educado na crença viva
daqueles tempos; naturalmente religioso porque
poeta, foi procurar abrigo e consolações aos pés
d’Aquele cujos braços estão sempre abertos para
receber o desgraçado que neles vai buscar o
derradeiro refúgio. Ao cabo das grandezas cortesãs
o pobre gardingo encontrara a morte do espírito, o
desengano do mundo. A cabo da estreita senda da
cruz acharia ele, porventura, a vida e o repouso
íntimos? Era este problema, no qual se resumia
todo o seu futuro, que tentava resolver o pastor
do pobre presbitério da velha cidade do Calpe.
(2014, p. 27-28)
Em tempo, gardingo seria um antigo nobre dos
visigodos. Eurico ali permaneceria até a morte caso
não houvesse sido conclamado pelo Duque Teodomiro,
governador do condado de Córdoba, uma das
primeiras regiões a serem conquistadas pelos árabes.
A princípio, Eurico, por meio de cartas trocadas com o
Duque, afirma não se importar com mais nada, a não
ser o cuidado com seus fiéis. Sabe, porém, que o fim
é próximo, sabe que a opressão tolherá a liberdade.
A bem da verdade, por seu presbitério ser no sul da
Espanha, próximo do estreito de Gibraltar, já tinha visto
a chegada dos árabes e antevisto o que se passaria.
Contam-se coisas incríveis desses povos que
assolam a África, chamados os árabes, e que, em
nome de uma crença nova, pretendem apagar na
terra os vestígios da cruz. Quem sabe se aos árabes
foi confiado o castigo desta nação corrupta?
Já as nossas praias foram visitadas por eles, e para
os repelir cumpriu que desembainhasse a espada
o ilustre Teodomiro, o último guerreiro, talvez, que
mereça o nome de neto dos godos.
Terra em que nasci, se o teu dia de morrer é
chegado, eu morrerei contigo. Na procela que
se alevanta de África deixarei submergir o meu
débil esquife, sem que a esses gemidos que ouvi
se vão ajuntar os meus. Que me importa a vida ou
a morte, se o padecer é eterno? (2014, p. 56)
Essa fuga de Eurico para um local ermo, bem
como a ideia mesmo de se ordenar padre é uma
solução tipicamente romântica, de busca da expiação
da dor em contato com a natureza ou mesmo em
aproximação com as dores de Cristo. Ou por outra, o
herói romântico percebe o mundo corrompido, que lhe
veda a felicidade, no caso casar-se com Hemengarda,
aí tem de isolar-se e buscar a expiação de sua dor em
meio àqueles que sofrem por outros motivos.
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Eurico, o presbítero, de Alexandre Herculano
De sua parte, Teodomiro reúne todo o exército
que consegue. Porém, sabe que teria pouca chance
de resistir. Vai até Crissus pedir apoio ao bispo Opas,
mas, depois de certo tempo, percebe que isso não seria
possível. A verdade é que Opas tenta dissuadi-lo a lutar
com Tárique, uma vez que tinha se unido, juntamente
com Juliano, ao invasor.
A verdade, porém, é que nem o Cavaleiro Negro,
nem outro combatente poderia vencer em definitivo
os invasores, isto porque muitos godos se aliaram aos
árabes. Dessa feita, os que permaneciam fieis ao reino
foram, pouco a pouco, perdendo espaço e batalhas
sucessivas até que sucedeu o esperado: a morte do
último rei godo, a morte de Roderico (ou Rodrigo).
Poucos dias haviam passado depois que o
duque de Córduba recebera a última carta do
infeliz Eurico. A frente das suas tiufadias ele se
encaminhara para Híspalís, seguindo as margens
do Bétis. Ao chegar à antiga Rômula, o bispo Opas
recebeu-o com demonstrações de alegria tais, que
as suspeitas de Teodomiro, suscitadas, malgrado
seu, pelas revelações do presbítero, quase se
desvaneceram. Na linguagem do sacerdote
parecia reverberar-se indignação profunda contra
o conde de Septum e contra os demais godos que
tentavam unidos com os bárbaros, assolar a terra
natal. (2014, p. 71)
Roderico, porém, estava aí! mas retalhado de
golpes; mas sem vida! Já não seria debaixo de
seus pés que o trono da Espanha se desfaria aos
golpes do machado dos árabes. Um cetro sem
dono em Toletum e mais um cadáver junto às
margens do Críssus, eis o que restava do último
rei dos godos! Com a sua morte fenecera ao redor
dele a esperança, e com a esperança dera em terra
o esforço dos ânimos mais robustos. (2014, p. 92)
Apesar dos esforços de alguns combatentes e
do próprio Cavaleiro Negro o fim estava próximo.
Com efeito, a narrativa de Herculano leva o leitor a
experimentar o desalento do período que marca o fim
de um reino, mas, ao mesmo tempo, a preparação do
que viria a ser os reinos modernos tanto de Portugal
quanto da Espanha, quando os últimos, sob a liderança
de Pelágio, entre outros de família nobre, conseguiram
estabelecer-se nas Astúrias, no norte da Espanha. E daí,
durante os séculos seguintes (até o XII), ir expulsando
os árabes da Península.
Na primeira batalha, fica clara a traição de
Juliano; e ele e Teodomiro têm um encontro nada
amistoso, como se poderia esperar:
Os dois cavaleiros godos acometeram-se com
toda a fúria de rancor entranhável: as espadas,
encontrando-se no ar, faiscaram como o ferro
abrasado na incude: mas a de Teodomiro fora
vibrada por braço mais robusto, e, posto que
o golpe descesse amortecido, ainda entrou
profundamente no escudo que o seu adversário
levava erguido sobre a cabeça. Entretanto Juliano,
revolvendo ligeiro a espada, rompeu a couraça do
duque de Córduba e feriu-o levemente no lado.
(2014, p. 84)
Mesmo Teodomiro teve de render-se ao invasor.
Não que tenha se aliado aos invasores, mas, como
meio de salvar o pouco que lhe restara, fez um pacto
de não mais agressão, restando a Pelágio o comando
do último foco da resistência. Antes disso houve um
Importante acontecimento para o desenrolar do enredo.
Inspirado em fato histórico é o suicídio das freiras do
mosteiro da Virgem Dolorosa, localizada na região da
Galícia, norte da Lusitânia, onde hoje fica Santiago
de Compostela. Esse suicídio se deu como meio de as
freiras protegerem sua honra ante a iminente invasão
dos árabes ao mosteiro. Dispersos, alguns cavaleiros,
que levavam consigo Hemengarda, até o norte,
pararam no mosteiro para descansarem. Outros tantos
nobres também viram no mosteiro um local para se
protegerem do ataque dos inimigos. Porém, o intento
de um e de outro foi malogrado.
Da batalha particular entre ambos, Teodomiro a
princípio se sai melhor, mas não demora muito para que
os aliados de Juliano interfiram no combate e avancem
sobre o comandante godo. É aí que surge um salvador,
um cavaleiro todo vestido de negro. Após as últimas
cartas trocadas com o conde de Córduba, Eurico já
tinha traçado seu destino. Sabia que estava morto
para o mundo, quis apenas buscar a morte efetiva do
corpo, por isso traveste-se de um Cavaleiro com vestes
negras, despertando em batalha as mais diversas
suspeitas de quem seria ou do que de fato seria. Se
homem, se fantasma, se anjo ou se demônio. O fato é
que consegue se destacar nas diversas batalhas. Nesta
primeira, salva o amigo e desperta a imaginação de
todos.
Naquela noite muitos nobres senhores de terras
tinham chegado ao mosteiro, vindos da banda de
Légio. Um numeroso exército de árabes aparecera
subitamente na véspera junto aos muros da
cidade, que logo fora acometida pelos pagãos. Era
o que sabiam. Fugitivos desde o aparecimento dos
inimigos, ao anoitecer haviam enxergado para
aquela parte um clarão grande e duradouro. Se
eram as fogueiras dos arraiais árabes, se o incêndio
de Légio, não o podiam resolver: só, sim, que seria
impossível resistir por largo tempo cidade tão mal
defendida a tamanha cópia de infiéis, que não
tardariam a derramar-se para o lado do mosteiro,
prosseguindo nas suas devastadoras conquistas
pela Galécia e pela Tarraconense. (2014, p. 104)
Os godos, espantados, perguntavam uns aos
outros quem seria aquele temeroso guerreiro; mas
entre eles ninguém havia que pudesse dizê-lo.
Se combatesse pelos muçulmanos, crê-lo-iam o
demônio da assolação; mas, pelejando pela cruz,
dir-se-ia que era o arcanjo das batalhas mandado
por Deus para salvar Teodomiro e, com ele, os
esquadrões da Bética. (2014, p. 86)
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Eurico, o presbítero, de Alexandre Herculano
E, com efeito, após um pequeno período dado
pelos árabes para que todos se entregassem, iniciaram
a invasão. A monja, porém, para evitar que as freiras
pudessem servir de escravas sexuais aos árabes, se
entregam ao sacrifício.
Depois de subirem a encosta, o cavaleiro negro
e os que o seguiam viram alongar-se diante
deles uma chapada plana, em cujo topo a serra
se alteava de novo, com os seus mil acidentes de
cordilheiras cortadas, de algares profundos, de
gargantas selvosas, ao lado das quais os picos
agudos se atiravam para o ar ou pendiam sobre
os abismos e torrentes. A natureza, mais rude
naquelas paragens, tinha um aspecto soturno,
vista assim, ao perto e à luz da lua: era como um
oceano tempestuoso, onde todas as gradações da
morte-cor se confundiam e misturavam, desde
a brancura desbotada e pálida do rochedo até
a pretidão fechada dos pinheiros retintos nas
sombras da noite. (2014, p. 157)
Com efeito, há diversos momentos no romance
em que se pode observar essa simbologia entre claro e
escuro, entre esperança de vida e iminência da morte,
representado pela descrição da natureza e também por
objetos em geral.
A hora de amanhecer aproximava-se: o crepúsculo
matutino alumiava frouxamente as margens de
rio mal-assombrado, que corria turvo e caudal
com as torrentes do inverno. Apertado entre ribas
fragosas e escarpadas, sentia-se mugir ao longe
com incessante ruído. (2014, p. 161)
Com o apoio dos outros cavaleiros, que seguem
em galope levando Hemengarda, Eurico vai armando
emboscadas contra os que o perseguiam. Sabe, porém,
que só conseguirá a salvação nas terras dominadas
por Pelágio. E o capítulo que marca a chegada dos
cavaleiros a Covadonga é intitulado de “A aurora da
redenção”, como complemento a essa simbologia entre
claro e escuro.
Já nos domínios de Pelágio, Eurico e Hemengarda
têm uma conversa reveladora sobre a possibilidade do
relacionamento entre os dois. A moça, com a morte
do pai e com a demonstração de bravura e lealdade a
Pelágio por parte Eurico, acredita que não haveria mais
impedimentos para que ambos pudessem se casar.
Ela ainda não sabia que Eurico tinha feito votos de
castidade por conta do sacerdócio. Diante desse novo
impedimento, não há escapatória para a felicidade
do casal. E cada um se entrega a seu próprio destino,
individualizado, e que, simbolicamente também,
indica as divisões da Espanha nesse momento, e que
ainda dependia de ações pessoais para se fortalecer.
Trata-se de uma conversa carregada de sofrimento
mútuo, de tentativa de entender o que se passara e o
que se passava. Um momento dramático, tipicamente
romântico.
– Que tens tu com o presbítero de Carteia; com esse
ilustre sacerdote, cujos hinos sacros reboavam
ainda há pouco pelos templos da Espanha, e
a quem, decerto, o ferro ímpio dos árabes não
respeitou? A tua glória é outra e mais bela; a
glória de seres o vencedor dos vencedores da cruz.
A sua era santa e pacífica. Deus chamou-o para
si, e tu vives para ser meu. Ninguém existe hoje
no mundo que possa embaraçá-lo. Esquece o
passado; esquece-o por amor de mim!
Em nota de rodapé, Herculano faz uma explicação
para o episódio. Tal explicação, como de resto outras
tantas, serve como meio de conferir veracidade ao
relato, como meio de tornar a narrativa, ainda que
idealizada, próxima da realidade.
Diz o autor:
O fato narrado neste capítulo é histórico. O lugar
da cena e a época é que são inventados. Foram
as monjas de Nossa Senhora do Vale, junto de
Ecija, que, em tempos posteriores, praticaram este
feito heróico, para se esquivarem à sensualidade
brutal dos árabes. Parece que o procedimento
das freiras de Ecija foi imitado em muitas outras
partes. Consulte-se Berganza, Antiguidades de
España, t. I, p. 139, e Morales, Cron. Gener., t. III,
p. 105. (2014, p. 118)
Quando chegava o momento do sacrifício de
Hemengarda, esta acabou capturada pelos soldados
de Abdulaziz, um dos líderes árabes. Ele a toma como
sua possível “esposa” e a leva para sua tenda. Ordena
a ela que se curve para que isso possa poupar outros
de sua ira, inclusive o irmão de Hemengarda, Pelágio.
Ela, porém, permanece irresoluta ante as ameaças e
diz preferir a morte a ter de servir a um invasor de sua
pátria:
Mas Hermengarda só vira afronta e opróbrio
nas palavras do amir, e o ódio a este homem,
cuja natural fereza e orgulho o amor convertera
em brandura e, talvez, em submissão, tornou-se
ainda maior ao ouvi-lo. (2014, p. 140)
Em paralelo a esses acontecimentos, o próprio
Pelágio e demais cavaleiros, bem como Eurico estão
próximos de Cavadonga, nas Astúrias, onde poderiam
se reorganizar. Porém, Pelágio sabe, por intermédio de
alguns cavaleiros, que sua irmã estava sob os domínios
de Abdulaziz. Pensa ele próprio em partir para salvar
Hemengarda, mas é impedido por Eurico, que estava
com eles. Oferece-se no lugar para, com poucos
cavaleiros, resgatar a mulher que ele ainda amava.
Fingindo-se de serviçal, Eurico consegue entrar
no acampamento do inimigo e, mais, aproximarse da tenda de Abdulaziz. Com rapidez e agilidade,
consegue ferir o inimigo e tomar Hemengarda em
seus braços e iniciar uma fuga por entre as florestas
até retornar a Covadonga na região das Astúrias. É
um dos momentos mais empolgantes e simbólicos do
livro, uma vez que alterna a esperança da liberdade
e a certeza da morte iminente, representado ora pelo
clarão da paisagem, ora pela paisagem mais soturna,
fechada:
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Eurico, o presbítero, de Alexandre Herculano
O cavaleiro sorriu de novo dolorosamente e disselhe:
Nas mil tradições diversas, quer antigas, quer
inventadas em tempos mais modernos, sobre
o modo como se constituiu a monarquia das
Astúrias procurei cingir-me, ao menos no desenho
geral, ao que passa por mais proximamente
histórico. Todavia, cumpre advertir que Pelágio
viveu, segundo todas as probabilidades em
tempos um pouco posteriores à conquista árabe,
e que a morte de Opas e de Juliano na batalha
de Cangas de Onis, sucesso narrado por alguns
escritores, tem sobrado caracteres de fabulosa. A
minha intenção, porém, foi, como já notei, pintar
os homens da época de transição, digamos assim,
dos tempos heróicos da história moderna para o
período da cavalaria, brilhante ainda, mas já de
dimensões ordinárias. O meu herói do Críssus é
como o último semideus que combate na terra;
os foragidos de Covadonga são os primeiros
cavaleiros da longa, patriótica e tenaz cruzada
da Península contra os sarracenos. Deste modo,
sendo hoje dificultoso separar, em relação àquelas
eras, o histórico do fabuloso, aproveitei de um e de
outro o que me pareceu mais apropriado ao meu
fim. (2014, p. 200-201)
Para finalizar, digamos um pouco mais sobre o
autor. Alexandre Herculano de Carvalho e Araújo nasceu
em Lisboa no ano de 1810. Sua vida foi marcada por
lutas políticas e pela reconstrução literária da história
de Portugal. Um dos mais importantes romancistas
do século XIX, suas obras são de cunho romântico e
vão desde a poesia ao drama e ao romance. É um dos
grandes escritores de sua geração, desenvolvendo o
tema romântico por excelência: a incompatibilidade
do indivíduo com o meio social.
Devido ao seu envolvimento na Revolta do 4
de Infantaria, emigrou para Inglaterra em 1831. No
ano seguinte, tendo retornado a Portugal, Herculano
começa a trabalhar na Biblioteca Pública do Porto,
como segundo bibliotecário. Em 1839, é nomeado
diretor das bibliotecas reais das Necessidades e da
Ajuda. No ano de 1853, o romancista funda o Partido
Progressista Histórico. Quatro anos depois, manifesta
sua discordância em relação à Concordata de Roma,
que restringia os direitos do padroado português na
Índia.
Em 1859, adquire a quinta de Vale de Lobos,
perto de Santarém, onde, embora retirado, continua
a receber correspondência e muitas personalidades
ligadas à cultura e ao poder. No ano seguinte, participa
na redação do primeiro Código Civil português.
Em 1866, casa-se com uma senhora por quem
era apaixonado desde a juventude. Morre em 1877,
rodeado de enorme prestígio, traduzido numa
manifestação nacional de luto organizada pelo escritor
João de Deus.
Além de Eurico, o presbítero escreveu:
 A Voz do Profeta (prosa poética) – 1836
 Harpa do Crente – 1837
 O Bobo – 1843
– Que tenho eu com o presbítero de Carteia?!...
Hermengarda, lembras-te do seu nome?
Os lábios da donzela fizeram-se brancos ao ouvir
esta pergunta: um pensamento monstruoso e
incrível lhe passara pelo espírito. Com voz afogada
e quase imperceptível replicou:
– Era... era o teu, Eurico!... Mas que pode haver
comum entre o guerreiro e o sacerdote? Que
importa um nome... uma palavra?... que...
O cavaleiro pôs-se em pé e, deixando descair os
braços e pender o rosto sobre o peito, murmurou:
– Há comum, que o guerreiro e presbítero são um
desgraçado só!... Importa, que esse desgraçado é
neste momento um sacerdote sacrílego. O pastor
de Cartéia... – Oh, não acabes! – interrompeu
Hermengarda, com indizível aflição. – Era Eurico,
o gardingo! (2014, p. 195)
O romance finaliza com a loucura de Hemengarda,
com a morte de Eurico, que se atira de modo suicida na
batalha final contra os árabes, com a conquista quase
plena de toda a Península e com a semente plantada
nos que permaneceram fiéis à fé cristã e à defesa de
sua pátria. E foi essa fé que possibilitou o início da
expulsão dos árabes, levando a formação dos primeiros
reinos que, desmembrados, viriam a se constituir
em Portugal e na Espanha. Eram os reinos de Leão,
Castela, Navarra e Aragão, conforme se pode observar
no mapa a seguir.
Fonte: http://raffaelbarbosa.blogspot.com.br/2009/07/sobre-presencaarabe-na-iberia-medieval.html
O romance não aborda isso, apenas sugere,
posto que termina com Pelágio mantendo-se firme na
liderança do castelo nas Astúrias. Assim, apenas a título
de curiosidade, a reconquista se inicia no século IX e
passa por diversos momentos até a expulsão completa
dos muçulmanos da península, ou particularmente de
Portugal, no século XII, quando finalmente é instituído
o reinado portucalense e se inicia a dinastia afonsina,
com o rei D. Afonso Henriques.
A última nota de rodapé do livro é indicativo
desses acontecimentos futuros:
9
Eurico, o presbítero, de Alexandre Herculano
ante os altares para orar ao Senhor. Qual era o
melhor dos dois templos? Foi depois que o teu
desabou, que eu me acolhi ao outro para sempre.
Por que vens, pois, pedir-me adorações quando
entre mim e ti está a Cruz ensanguentada do
Calvário; quando a mão inexorável do sacerdócio
soldou a cadeia da minha vida às lájeas frias da
igreja; quando o primeiro passo além do limiar
desta será a perdição eterna? Mas, ai de mim!
essa imagem que parece sorrir-me nas solidões
do espaço está estampada unicamente na minha
alma e reflete-se no céu do oriente através destes
olhos perturbados pela febre da loucura, que lhes
queimou as lágrimas.
 Lendas e Narrativas I e II –1839 e 1844
 O Pároco da Aldeia – 1844
 O Monge de Cister – 1848

História da Origem e Estabelecimento da
Inquisição em Portugal – 1850
 História de Portugal I, II, III e IV – 1846 e 1853
Herculano fez parte da primeira fase do
Romantismo português, oficialmente iniciado com
o poema Camões (1825), de Almeida Garrett. Essa
primeira geração está ligada à ideologia liberal, à visão
burguesa, bem como à ideia de regenerar a pátria, os
valores patrióticos. Por isso, o autor passou a escrever
romances históricos.
Do ponto de vista estético, Herculano, em sua
tentativa de resgate histórico, se perde um pouco,
posto que seu romance não apresenta a mesma força
dramática que os de outros autores, como Camilo
Castelo Branco. Em outros termos, a leitura pode não
fluir como seria de esperar de um livro com tantos
componentes épicos, pelas batalhas, pelo suspense
ou pela história de amor. Claro que há momentos
sublimes, como a fuga de Hemengarda das mãos de
Abdulaziz, ou mesmo o momento de revelação mútua
entre Hemengarda e Eurico. Porém, no geral, trata-se
de uma leitura pesada e pouco fluente.
HERCULANO, Alexandre. Eurico, o presbítero. Edição crítica,
dirigida e prefaciada por Vitorino Nemésio. 41ª ed. Lisboa:
Livraria Bertrand, [s.d.], p. 42-43.
EXERCÍCIOS
1.(Vunesp)
Eurico, o Presbítero
Os raios derradeiros do sol desapareceram: o
clarão avermelhado da tarde vai quase vencido
pelo grande vulto da noite, que se alevanta do
lado de Septum. Nesse chão tenebroso do oriente
a tua imagem serena e luminosa surge a meus
olhos, ó Hermengarda, semelhante à aparição
do anjo da esperança nas trevas do condenado.
E essa imagem é pura e sorri; orna-lhe a fronte a
coroa das virgens; sobe-lhe ao rosto a vermelhidão
do pudor; o amículo alvíssimo da inocência,
flutuando-lhe em volta dos membros, escondelhe as formas divinas, fazendo-as, porventura,
suspeitar menos belas que a realidade. É assim
que eu te vejo em meus sonhos de noites de
atroz saudade: mas, em sonhos ou desenhada no
vapor do crepúsculo, tu não és para mim mais
do que uma imagem celestial; uma recordação
indecifrável; um consolo e ao mesmo tempo
um martírio. Não eras tu emanação e reflexo do
céu? Por que não ousaste, pois, volver os olhos
para o fundo abismo do meu amor? Verias que
esse amor do poeta é maior que o de nenhum
homem; porque é imenso, como o ideal, que
ele compreende; eterno, como o seu nome, que
nunca perece. Hermengarda, Hermengarda, eu
amava-te muito! Adorava-te só no santuário do
meu coração, enquanto precisava de ajoelhar
10
O Missionário
Entregara-se, corpo e alma, à sedução da linda
rapariga que lhe ocupara o coração. A sua
natureza ardente e apaixonada, extremamente
sensual, mal contida até então pela disciplina
do Seminário e pelo ascetismo que lhe dera a
crença na sua predestinação, quisera saciarse do gozo por muito tempo desejado, e sempre
impedido. Não seria filho de Pedro Ribeiro de
Morais, o devasso fazendeiro do Igarapé-mirim,
se o seu cérebro não fosse dominado por instintos
egoísticos, que a privação de prazeres açulava
e que uma educação superficial não soubera
subjugar. E como os senhores padres do Seminário
haviam pretendido destruir ou, ao menos, regular
e conter a ação determinante da hereditariedade
psicofisiológica sobre o cérebro do seminarista?
Dando-lhe uma grande cultura de espírito, mas
sob um ponto de vista acanhado e restrito, que
lhe excitara o instinto da própria conservação, o
interesse individual, pondo-lhe diante dos olhos,
como supremo bem, a salvação da alma, e como
meio único, o cuidado dessa mesma salvação.
Que acontecera? No momento dado, impotente o
freio moral para conter a rebelião dos apetites, o
instinto mais forte, o menos nobre, assenhorearase daquele temperamento de matuto, disfarçado
em padre de S. Sulpício. Em outras circunstâncias,
colocado em meio diverso, talvez que padre
Antônio de Morais viesse a ser um santo, no
sentido puramente católico da palavra, talvez que
viesse a realizar a aspiração da sua mocidade,
deslumbrando o mundo com o fulgor das suas
virtudes ascéticas e dos seus sacrifícios inauditos.
Mas nos sertões do Amazonas, numa sociedade
quase rudimentar, sem moral, sem educação...
vivendo no meio da mais completa liberdade de
costumes, sem a coação da opinião pública, sem a
disciplina duma autoridade espiritual fortemente
constituída... sem estímulos e sem apoio... devia
cair na regra geral dos seus colegas de sacerdócio,
sob a influência enervante e corruptora do
isolamento, e entregara-se ao vício e à depravação,
perdendo o senso moral e rebaixando-se ao
Eurico, o presbítero, de Alexandre Herculano
nível dos indivíduos que fora chamado a dirigir.
Esquecera o seu caráter sacerdotal, a sua missão e
a reputação do seu nome, para mergulhar-se nas
ardentes sensualidades dum amor físico, porque
a formosa Clarinha não podia oferecer-lhe outros
atrativos além dos seus frescos lábios vermelhos,
tentação demoníaca, das suas formas esculturais,
assombro dos sertões de Guaranatuba.
4.
(UEL) Leia o trecho a seguir.
Como um rochedo pendurado sobre as ribanceiras
do mar, que, estalando, rola pelos despenhadeiros
e abrindo um abismo se atufa nas águas, assim
o cavaleiro desconhecido, rompendo por entre os
godos, precipitou-se para onde mais cerrado em
redor de Teodomiro e Muguite fervia o pelejar.
(HERCULANO, A. Eurico, o presbítero. 2.ed. São Paulo:
Martin Claret, 2014. p.85.)
SOUSA, Inglês de. O missionário. São Paulo: Ática, 1987, p. 198.
A visão que o amante tem de sua amada constitui
um dos temas eternos da Literatura. Uma leitura
comparativa dos dois fragmentos apresentados,
que exploram tal tema, nos revela dois perfis
bastante distintos de mulher. Considerando esta
informação,
(A)aponte a diferença que há entre Hermengarda
e Clarinha, no que diz respeito ao predomínio
dos traços físicos sobre os espirituais, ou viceversa, segundo as visões de seus respectivos
amantes;
(B)justifique as diferenças com base nos
fundamentos do estilo de época em que se
enquadra cada romance.
2. (FGV - modificada) Assinale a alternativa em
que aparecem duas obras que vtratam do conflito
entre vocação sacerdotal e a busca da realização
amorosa.
(A)O crime do padre Amaro, de Eça de Queirós, e
O mulato, de Aluízio de Azevedo.
(B)Amor de perdição, de Camilo Castelo Branco,
e Quincas Borba, de Machado de Assis.
(C)Amar, verbo intransitivo, de Mário de Andrade,
e São Bernardo, de Graciliano Ramos.
(D)Eurico, o presbítero, de Alexandre Herculano
e O seminarista, de Bernardo Guimarães.
(E)Olhai os lírios do campo, de Érico Veríssimo, e
Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett.
3. (URCA) Marque a alternativa INCORRETA
acerca de Alexandre Herculano e/ou sua obra:
(A)Viagens na minha Terra é uma obra de
Alexandre Herculano que se classifica entre a
prosa de ficção e as memórias de viagens.
(B)Eurico, o Presbítero é considerado o melhor
romance de Alexandre Herculano.
(C)O Monge de Cister aborda aspectos históricos
e culturais de Portugal.
(D)Sua obra insere­se no contexto do Romantismo
português.
(E)Temas religiosos, históricos e medievais estão
presentes na prosa de Alexandre Herculano.
11
No romance Eurico, o presbítero, há um diálogo
com a história da formação territorial da Península
Ibérica.
Nesse sentido, alguns episódios retomam
batalhas reais com o intuito de afirmar o heroísmo
português frente aos árabes. Associado a certo
“realismo” histórico, no entanto, encontra-se a
figura do herói, representada por Eurico. Como
a imagem do herói está construída nesse cenário
real de batalhas?
Eurico, o presbítero, de Alexandre Herculano
(UEL) Leia o trecho a seguir e responda às
questões 5 e 6.
O presbítero Eurico era o pastor da pobre paróquia
de Carteia. Descendente de uma antiga família
bárbara, gardingo na corte de Vítiza, depois de
ter sido tiufado ou milenário do exército visigótico
vivera os ligeiros dias da mocidade no meio dos
deleites da opulenta Toletum. Rico, poderoso,
gentil, o amor viera, apesar disso, quebrar a
cadeia brilhante da sua felicidade. Namorado
de Hermengarda, filha de Favila, Duque de
Cantábria, e irmã do valoroso e depois tão célebre
Pelágio, o seu amor fora infeliz. O orgulhoso
Favila não consentira que o menos nobre
gardingo pusesse tão alto a mira dos seus desejos.
Depois de mil provas de um afeto imenso, de uma
paixão ardente, o moço guerreiro vira submergir
todas as suas esperanças. Eurico era uma destas
almas ricas de sublime poesia a que o mundo deu
o nome de imaginações desregradas, porque não
é para o mundo entendê-las. Desventurado, o seu
coração de fogo queimou-lhe o viço da existência
ao despertar dos sonhos do amor que o tinham
embalado. A ingratidão de Hermengarda, que
parecera ceder sem resistência à vontade de seu
pai, e o orgulho insultuoso do velho prócer deram
em terra com aquele ânimo, que o aspecto da
morte não seria capaz de abater. A melancolia que
o devorava, consumindo-lhe as forças, fê-lo cair
em longa e perigosa enfermidade, e, quando a
energia de uma constituição vigorosa o arrancou
das bordas do túmulo, semelhante ao anjo rebelde,
os toques belos e puros do seu gesto formoso e
varonil transpareciam-lhe a custo através do véu
de muda tristeza que lhe entenebrecia a fronte. O
cedro pendia fulminado pelo fogo do céu.
Assinale a alternativa correta.
(A)Somente as afirmativas I e II são corretas.
(B)Somente as afirmativas I e IV são corretas.
(C)Somente as afirmativas III e IV são corretas.
(D)Somente as afirmativas I, II e III são corretas.
(E)Somente as afirmativas II, III e IV são corretas.
6. Com base na leitura do romance Eurico,
o presbítero e, especificamente, do trecho
apresentado, é correto afirmar que este é o
momento em que o narrador conta
(A)a saga de Eurico perante sua família e a de
Hermengarda, que eram as responsáveis pelo
seu sofrimento.
(B)o desencanto de Eurico diante de um amor
impossível, o que o levaria a dedicar sua vida
a professar a fé.
(C)como Eurico abandona a batina para lutar por
seu grande amor, a nobre Hermengarda.
(D)como Eurico se torna um guerreiro contra a
Igreja Católica, a quem responsabiliza pelo
fim de seu noivado.
(E)como Hermengarda abandona Eurico diante
do altar, apenas porque ele não é de família
nobre como a dela.
gABARITO
1.a) Hermengarda: há a predominância de traços
espirituais sobre os físicos Clarinha: os atributos
físicos dominam nessa personagem. b) O primeiro
romântico, idealizado; o segundo naturalista,
mais preso a uma visão materialista e cienfiticista.
2.D 3.A 4.O romance Eurico, o presbítero pertence
à primeira fase do Romantismo português e
apresenta feição histórica e nacionalista, na
medida em que retoma a formação territorial da
Península Ibérica, atribuindo aos portugueses uma
imagem de heroísmo. O autor se utiliza de uma
série de eventos verídicos, como, por exemplo, a
invasão ao convento pelos árabes, além de várias
batalhas enfrentadas pelos povos ibéricos. A
organização social da época, com suas “leis, usos
e costumes”, é base da representação histórica
do romance, que prima pela valorização dos
heróis nacionais. Nesse sentido, Eurico encarna
o herói que representa todo o povo português e
sua coragem diante dos “invasores bárbaros”,
capazes de atos desumanos, como estuprar freiras
indefesas. O jovem presbítero não luta apenas pela
manutenção do território com os povos ibéricos,
mas também para difundir a religião católica,
representada como a única capaz de levar ao
reino dos céus. Nesse sentido, a sua religiosidade
surge como um dado essencial para a formação de
seu caráter de herói sobre-humano, um indivíduo
com força e coragem acima do homem comum
e que vence batalhas que já haviam sido dadas
como perdidas por um exército inteiro. Eurico, o
presbítero traz, portanto, o diálogo com a História,
ao mesmo tempo em que apresenta um indivíduo
legendário, que mistura características humanas
à fantasia do super-herói.
5.B 6.B
(HERCULANO, A. Eurico, o presbítero. 2.ed. São Paulo:
Martin Claret, 2014. p.26-27.)
5.
Sobre o romance Eurico, o presbítero, considere
as afirmativas a seguir.
I. A
história das personagens se passa em meio
às lutas pela defesa do território da Península
Ibérica diante da tentativa de dominação
pelos muçulmanos.
II.
A guerra santa, que é pano de fundo do
romance, diz respeito ao contexto da reforma
protestante, em que católicos e reformistas se
enfrentam em batalhas sangrentas.
III. Hermengarda escapa do clichê romântico e é
a única personagem da obra cujo final é feliz,
visto que consegue se casar com um soldado
e dar à luz três filhos.
IV. Romance da primeira geração romântica,
coloca a história de amor em segundo plano,
na medida em que evidencia a questão
histórica.
12
O pagador de promessas
Alfredo de Freitas Dias Gomes nasceu em 1922
e faleceu em 1999. Autor de diversas peças de teatro
e novelas de sucesso, entre as quais Bandeira 2, 1971;
O Bem Amado, 1973; Saramandaia, 1976; Roque
Santeiro, 1985. Sua marca, tanto como teatrólogo como
autor de novelas, é a observação da realidade brasileira,
revelada em meio a muito fantasia, formando assim
um realismo-fantástico. Outra característica de sua
produção é a presença constante de cultura popular,
com todos os seus componentes, como crendices,
danças e comidas típicas de determinadas regiões, em
especial o Nordeste.
Em O pagador de promessas, escrito em 1960,
há isso tudo. A história se passa em Salvador, na
parte mais velha da cidade, onde permanecem traços
colonialistas. O objetivo é marcar o cenário pelo
contraste, elemento que dá sustentação à peça.
No caso, há um Brasil antigo, religioso e rural,
personificado em Zé-do-Burro, em contraste com
outro, moderno e dinâmico. Na peça, o drama é
estabelecido pelo fosso que separa as duas realidades,
os dois Brasis, por assim dizer. Não se compreendem
as razões da existência do outro. Confrontados, erigese um labirinto, cuja saída só pode ser trágica.
A peça, que ganhou diversos prêmios, entre eles
o Prêmio Nacional de Teatro, de 1960, bem como a
Palma de Ouro, no Festival de Cannes de 1962 em sua
versão cinematográfica, é dividida em três atos. No
primeiro, acompanhamos a chegada de Zé-do-burro e
sua esposa Rosa à praça da Igreja de Santa Bárbara
em Salvador. Ainda é madrugada, por isto encontram
a igreja com as portas fechadas. Sua promessa era
trazer do sítio onde morava, há sete léguas, ou cerca
de 40 km, uma cruz de madeira e depositá-la no altar.
Conforme a promessa feita, Zé deveria cumpri-la no
dia em que se homenageia a santa guerreira, no caso
dia 04/12.
O espectador percebe já o primeiro contraste:
enquanto Zé é um homem contemplativo, desligado das
coisas terrenas, cuja fé é mais importante que qualquer
coisa, Rosa tem outros desejos. Quer uma vida melhor
e sua fé não é tão forte quanto a do marido. Segue-o
mais por obrigação que por convicção. Além disso,
procura esconder uma sensualidade latente. Neste
primeiro ato, conhecemos outros dois personagens:
Bonitão e Marli. Um cafetão e sua prostituta preferida,
ao menos a que lhe dá mais dinheiro. O papel de
bonitão é o de, sutilmente, plantar a discórdia entre
Zé e Rosa. Como era de madrugada, Bonitão propôs ao
casal que fosse dormir num hotel à espera da abertura
da igreja. Zé não quis deixar a cruz, como medo de a
roubarem, mas permite que Rosa vá ao hotel dormir
um pouco. Bonitão deixa Marli ir embora e leva Rosa
ao hotel, onde a seduz.
de Dias Gomes
missa e para onde foram levados os primeiros escravos
com suas crenças e deuses. Como é de conhecimento
comum, o sincretismo religioso entre o cristianismo,
a Igreja Católica, e o candomblé se deu à época da
colonização, e mesmo no Brasil Império por conta da
proibição de os negros manifestarem sua fé de origem.
Assim, os orixás dos candomblés foram relacionados
aos santos católicos. No caso, toda a peça gira em
torno de Santa Bárbara, conhecida por ser uma santa
guerreira e ter como armas o relâmpago e o raio. O
orixá equivalente é Oyá ou Iansã, também senhora dos
raios e das tempestades. Outra atribuição de Yansã é
ser deusa dos cemitérios, dos mortos. A propriedade
de Santa Bárbara e Yansã fica mais clara no final da
peça. Mas não adiantemo-lo. Analisemos antes outros
aspectos presentes em O pagador de promessas.
O drama da peça se dá exatamente por conta do
sincretismo. Zé-do-Burro tinha essa alcunha por ter
como principal companheiro um equus asinus, ou seja,
um burro. O espectador fica sabendo qual promessa
fizera e por que apenas no segundo quadro do primeiro
ato. O burro se chama Nicolau, que, pela tradição
cristã, significa o que ajuda os outros. O nome também
pode ser uma referência a são Nicolau, que acabou
dando origem ao Papai Noel. Dessa feita, Nicolau é
para o personagem Zé-do-burro praticamente um ser
humano, a quem trata como a um igual. Em um dia de
grande tempestade, Nicolau se protegia sob uma árvore
quando um raio a atingiu e derrubou-a na cabeça do
burro. Devido à clara crendice, Zé fez uma promessa
à santa Bárbara que se o burro se curasse, levaria uma
cruz tão pesada quanto a de Cristo até a igreja mais
perto dedicada à santa. E assim o faz. No entanto,
fizera promessa em um terreiro de Candomblé. Em
sua simplicidade, Zé-do-burro não cometera qualquer
falha grave. Fizera a promessa e vinha agora pagá-la,
porém impedido pelo padre local, chamado Pe. Olavo.
Zé – Padre, é preciso explicar que Nicolau não é
um burro comum... o senhor não conhece Nicolau,
por isso... é um burro com alma de gente...
Padre – Pois nem que tenha alma de anjo, nesta
igreja você não entrará com essa cruz! (p. 38)
Em favor dessa deliberação, padre Olavo busca
argumentos teológicos para impedir a entrada do
pagador de promessa no interior da igreja. Entre
os quais, parte do princípio de que a caminhada do
sitiante teria uma intenção oculta: a de imitar Cristo
e de a ele igualar-se, não do modo pelo qual todo fiel
deveria fazer, e sim para ombrear o ato salvifíco de
Cristo.
Padre – Isso prova que você está sendo submetido
a uma tentação ainda maior.
Zé – Qual, padre?
Padre – A de igualar-se ao Filho de Deus.
Zé – Não, padre.
Padre – Por que então repete a Divina Paixão?
Para salvar a humanidade? Não, para salvar um
burro! (p. 37)
Há na peça quase naturalmente o sincretismo
religioso. Quase naturalmente porque a história se
passa em Salvador; na Bahia onde foi rezada a primeira
13
O pagador de promessas, de Dias Gomes
Assim, a promessa do Zé-do-Burro é interpretada
pelo padre como uma afronta a Deus e à autoridade
da Igreja. Não consegue compreender em sua
simplicidade a promessa do sitiante, que por sua
vez também não compreende o porquê o impendem
de entrar na igreja e cumprir a promessa. Com isso,
Zé-do-Burro tem um caminho trilhado em direção
à sua martirização, a despeito de seu real propósito.
Zé é um mártir sem querer ser. Apoiado por uma
fé incondicional, que beira ao fanatismo, trilha o
caminho da sua crença em meio às forças e instituições
da civilização contemporânea. Como D. Quixote, não
consegue se fazer entender, nem é capaz de entender as
ideologias. Assim, a peça se constitui numa espécie de
tragédia moderna com um herói sem a consciência do
papel que acaba exercendo; sua simplicidade é densa
e responsável pela tragédia que Rosa antevê. Embora
sem o mesmo significado que nas tragédias gregas, em
que o destino é força catalizadora dos personagens,
em que os deuses cumprem papel determinante
para o cumprimento desse destino, em O pagador de
promessa o destino é fruto das ações humanas, mesmo
assim Zé-do-Burro é um Édipo que não consegue e
não quer fugir a seu destino, traçado por ele mesmo,
mas, segundo sua leitura, com a anuência de Santa
Bárbara/Yansã, que salvara seu burro da morte.
Zé – Sarou em dois tempos. Milagre mesmo. No
outro dia já estava de orelha em pé, relinchando.
E uma semana depois todo o mundo me apontava
na rua: - “Lá vai Zé-do-Burro com o burro de novo
atrás!” E eu nem dava confiança. E Nicolau muito
menos. Só eu e ele sabíamos do milagre. Eu, ele e
Santa Bárbara. (p. 36)
Como não pode se liberar da promessa até que
esteja cumprida, seu destino é, neste sentido, traçado
por forças externas a ele, qualquer coisa que faça o
levará a cumprir seu destino, que só pode ser trágico.
Zé – O senhor me liberta... mas não foi ao senhor
que eu fiz a promessa, foi a Santa Bárbara. E
quem me garante que como castigo, quando eu
voltar pra minha roça não vou encontrar meu
burro morto. (p. 72)
presença quando o repórter pensa ser o Zé-do-Burro
um político se autopromovendo. Assim, a sociedade
como um todo tem seu representante na peça. E essa é
a ideia do teatro de Dias Gomes, marcado por explícita
preocupação político-social.
O terceiro e último ato da peça inicia-se com uma
roda de capoeira. Era já o final da tarde do dia 04 de
dezembro. Zé-do-Burro estava na praça havia mais
de 12 horas. A roda de capoeira é marcada por canto
e dança; na peça, a cantoria ganha uma dimensão
extra, o coro da cantoria faz mais uma vez o espectador
evocar aspectos do teatro clássico, a presença de
um coro, ou seja, grupo de pessoas representando a
consciência social; o coro era responsável pela análise
moral, pelo comentário que fazia o espectador da
tragédia compreender ao que estava assistindo. O
coro em O pagador não comenta, antes brinca e serve
para compor o cenário, a roda da capoeira, no entanto,
implicitante, anuncia o que virá, demonstra que não
há mais como o caminho escolhido pelo sitiante levá-lo
a cumprir seu intento. Diz o mestre do coro:
Vou pidi a Santa Bárbara.
Pra ela me ajudá
Coro – Santa Bárbara que relampuê/ Santa
Bárbara que relampuá. (p. 78)
O refrão é repetido em ritmo acelerado vários
vezes, acompanhado pela dança, pelo jogo da capoeira.
Embora no texto escrito isso não seja explícito, a
encenação leva o espectador a perceber que a senhora
dos raios e relâmpagos logo se manifestará e o choque
terá um fim não feliz. Não se deve entender, porém,
que a peça encerre uma defesa do candomblé em
detrimento do catolicismo, do cristianismo. O objetivo
maior é mostrar como o Brasil é um país de contraste e
que o mito propalado da cordialidade, da democracia
cultural e racial, em que todos teriam seu espaço, em
que todos poderiam manifestar-se livremente, revelase uma falácia. Essa democracia existe até o ponto em
que não altera a ordem estabelecida.
A intransigência do padre em negar ao sitiante o
cumprimento de sua promessa é a mesma que tem a
autoridade policial, que vê na atitude do personagem
um desrespeito à autoridade e uma ameaça à ordem.
Por outro lado, embora consiga a simpatia de Minha
tia, dona de um tabuleiro, do poeta malandro Dedé e
do Galego, dono de um bar em frente à igreja, nenhum
é capaz de compreender por inteiro o porquê da
insistência de Zé-do-Burro em cumprir sua promessa.
Mesmo assim, acabam apoiando-o porque vêem nele
a possibilidade de ganhar algo, sobretudo o Galego,
que as vendas aumentarem significativamente nesse
dia a ponto de oferecer ao sitiante e à sua esposa Rosa
comida de graça. Mesmo Rosa não compreende o
porquê do radicalismo do marido, e vê na situação a
possibilidade de ter uma vida melhor. Não é por acaso
que, a despeito de algum pudor e remorso, entrega-se
ao prazer com Bonitão. Ele promete a ela dar-lhe uma
vida melhor, mais digna:
Uma outra característica do teatro clássico
presente na peça de maneira modificada é a
personificação de arquétipos, de tipos representativos
da sociedade. Isso pode ser verificado na Farsa
Atelana ou nas peças de Gil Vicente, em que não
há aprofundamento psicológico dos personagens,
mas apenas conhecemo-los pelas ações e por nomes
genéricos: o padre, o fidalgo etc. No caso do teatro
de Dias Gomes, cada personagem tem seu nome, ou
ao menos uma alcunha, como o gigolô Bonitão, mas
particularmente em O pagador de promessas, as
individualidades são arquetípicas, lembrando, pois,
o teatro clássico. Há o padre, representando a Igreja,
há o guarda, representando a força pública; há o
repórter, obviamente fazendo o papel da imprensa; há
as pessoas comuns, que representam o povo; embora
não apareça nenhum político, fica sugerida sua
14
O pagador de promessas, de Dias Gomes
espanto de Zé-do-Burro e Rosa, eles colocam a
barraca no meio da praça e o colchão dentro da
barraca.
Repórter – Fomos aos nossos clientes e eles se
dispuseram prontamente a colaborar conosco.
(p. 86)
Isto ocorre porque o repórter a todo instante
faz uma interpretação à luz do que ele conhecia, do
contexto com o qual estava acostumado. Num país
que, impulsionado pelo Plano de Metas do governo
de Juscelino Kubitschek (1955-1961), cujo objetivo era
levar modernidade a todas as regiões brasileiras, soava
estranho a alguns a permanência de uma crendice tão
piegas, no caso acreditar que uma santa ou uma orixá
pudesse intervir para salvar um burro. Assim, para o
repórter tudo não passaria de um golpe publicitário,
com objetivo claramente político, visando às próximas
eleições.
Repórter – Hum... bem me pareceu que por trás
dessa história do burro, da promessa, havia
qualquer coisa... uma intenção oculta e um
objetivo político. A polícia, naturalmente, percebeu
também. (p. 87)
Em resumo, o padre interpreta o ato como uma
afronta à autoridade eclesiástica e à História Sagrada,
o repórter o vê como um golpe político, a polícia como
um ato de desordem, o povo em geral trata Zé-do-Burro
como um louco, ainda que possa ser visto também
como herói, Rosa o considera seu atraso, mas a quem
deve respeito como esposa, a despeito de tê-lo traído
com Bonitão; no fim, o próprio Zé-do-Burro chega a
pensar que teria sido traído pela santa de sua devoção.
Apenas não abandona o cumprimento da promessa por
um fanatismo no compromisso assumido.
Outro aspecto a se considerar na peça diz respeito
à reforma agrária. Se nos últimos vinte anos passou
a ser plano efetivo de governo, com assentamento
de milhares de famílias, no final da década de
1950 e início dos anos 60, eram antes um projeto,
praticamente interrompido com o governo militar
em 1964. Não que a peça aprofunde o debate ou ao
menos faça uma discussão rasa sobre o assunto, há tão
somente uma alusão ao tema, quando, de passagem,
Rosa diz a Bonitão no primeiro ato que dividir parte de
sua propriedade, que era pouca, entre os agricultores
sem terra como complemento da promessa. Bonitão
interpreta o ato de maneira debochada, o repórter,
porém, ao saber disso, escreve na reportagem que Zédo-Burro era a favor da Reforma Agrária no país.
Repórter – Repartir o sítio... diga-me, o senhor é a
favor da reforma agrária?
Zé – (não entende) Reforma agrária? Que é isso?
Repórter – É o que senhor acaba de fazer em seu
sítio. Redistribuição das terras entre aqueles que
não as possuem. (p. 51)
Bonitão – Se você viesse pra cidade, eu podia lhe
garantir um bonito futuro...
Rosa – Fazendo o quê?
Bonitão – Isso depois se via.
Rosa – eu não sei fazer nada.
Bonitão – Mulheres como você não precisam
saber coisa alguma, a não ser o que a natureza
ensinou... (p. 24)
No entanto, percebe a real intenção de Bonitão.
Ainda assim Rosa libera-se sexualmente e tem seu
drama particular, que se resume em voltar a ser fiel
ao marido e manter-se presa a uma realidade arcaica,
asfixiante para ela ou conquistar a liberdade definitiva
e realizar-se por inteiro como mulher, como participante
de um mundo em transformação.
Depois, quando o repórter aparece para fazer
uma matéria sobre o que estava ocorrendo, Rosa fica
feliz ao ser fotografada e sonha com a possibilidade
de ser conhecida por meio de um jornal. Seria talvez o
caminho para escapar às forças do destino.
Rosa – (Ela vislumbrou nas palavras do repórter
uma possibilidade confusa de libertação, ouviuas num entusiasmo crescente) Oxente! Não seja
estúpido, homem! O moço está querendo a gente.
(p. 53)
Ela diz isso ao ouvir que o repórter estava
organizando entrevistas, apresentações para que Zé
contasse sua história a mais gente. Seria assim meio de
libertar-se por completo de um estilo de vida arcaico,
que impedia uma experiência mais ampla da própria
vida.
Mulher do sitiante, Rosa cumpre também o papel
de antagonista, posto que o trai e não se deixa absorver
inteiramente pela crença do marido. Porém, antevendo
a tragédia para qual se encaminha Zé-do-Burro, tenta
dissuadi-lo da promessa, sobretudo no final da peça. O
máximo que obtêm dele é a certeza de que irá embora
ao final do dia dedicado à santa Bárbara.
Zé – Esta noite a gente vai embora.
Rosa – E por que não agora?
Zé – Vamos deixar passar o dia de santa Bárbara.
Rosa – De noite, talvez seja tarde...
Zé – Tarde pra quê?
Rosa – Pra voltar! (p. 85)
O contraste no qual se assenta a peça também
passa pela presença da sociedade de consumo,
capitalista, cujo processo de formação se ampliava na
década de 1960, momento da redação e encenação
do texto. Este papel está representado pelo vendeiro,
o Galego, mas especialmente pelo repórter, que, para
ajudar a promover o jornal pelo evento do pagador de
promessa, consegue patrocínio de empresas, as quais
cedem algum produto que poderia servir de uso pelo
sitiante.
Neste instante, entram os capoeiristas conduzindo
primeiro uma tenda de pano já armada e em
seguida um colchão de molas. Na tenda, há um
letreiro: Oferta da Casa da Lona. No colchão há
outro: Gentileza da Loja Sonho Azul. Com enorme
Temos na figura do repórter, cujo trabalho
principal é com a linguagem, apontamentos sobre o
processo criativo, sobre a ficcionalização da realidade.
Ora, ao repórter, isto é, à imprensa interessa mais a
15
O pagador de promessas, de Dias Gomes
construção verossímil de fatos, por meio do texto
jornalístico que propriamente a verdade factual.
Claro, Dias Gomes escreve num período em que a
preocupação ética da imprensa parecia menor em
comparação com o momento atual. De qualquer modo,
é visível o poder da mídia em geral de criar factóides,
de criar heróis efêmeros, seja com objetivo político,
meramente comercial ou ambos. O próprio Dias
Gomes exploraria mais tarde o processo de criação de
falsos heróis ou santificações de pessoas comuns na
novela Roque Santeiro, escrita em 1975, mas que, por
conta da censura militar, só pôde ir ao ar em entre 1985
e 1986.
Por fim, vale a pena chamar a atenção para o
tipo de rubrica que é usado no texto de Dias Gomes.
Além das tradicionais indicações feitas para o ator e o
diretor da peça, o autor do texto faz algumas rubricas
que quase se assemelham, em função, a um narrador
(e isso não existe em peças de teatro, a não ser quando
se trata de personagem-narrador). Elas são altamente
descritivas e dão detalhes extremamente minuciosos
sobre os personagens, o que delimita muito bem
as possibilidades de improvisação dos atores, pois
indicam mais do que as ações daqueles, descrevendo
características psicológicas que poderiam estar
presentes nas falas.
Esse processo é largamente explorado nas
diversas referências bíblicas. A mais forte está na
associação feita pelo padre e pelos populares entre
Zé-do-Burro e Jesus Cristo. O primeiro de modo
negativo, os segundos como um santo popular,
incompreendido pelo discurso oficial eclesiástico e
laico. No entanto, essa relação é estabelecida antes pelo
próprio narrador da peça, quando, na apresentação do
“Primeiro Quadro”, diz tratar-se de “um homem ainda
moço, de 30 anos presumíveis, magro, de estatura
média. (...) Tem barba de dois ou três dias e traja-se
decentemente, embora sua roupa seja mal talhada
e esteja amarrotada e suja de poeira.” (p. 13) Uma
descrição que faz o leitor/espectador lembrar-se de
Jesus de Nazaré, sobretudo porque, como se sabe,
iniciou sua pregação pública aos 30 anos. Ao final,
após a morte de Zé-do-Burro, os populares pegamno e o colocam sobre a cruz; em procissão, levam-no
finalmente para dentro da igreja, ante a impassibilidade
das autoridades religiosa e policial.
Dias Gomes, de certa forma, recupera, com
esta peça, a origem do teatro pela temática religiosa.
Obviamente que aqui o tratamento é crítico e
irônico. Mesmo assim, erige-se um personagem com
características religiosas para além da sua consciência.
Toda a história tem uma sequência linear, com
progressão contínua, sem flash back ou tergiversações,
que costumam romper a linearidade. Isto também
colabora para a tipificação dos personagens, ou seja,
são indivíduos que representam uma coletividade.
Já nos referimos a alguns personagens neste sentido,
lembremos apenas de mais um, no caso a beata,
que carrega em si todos os estereótipos desse tipo
de personagem. Temente a Deus, à autoridade do
padre, suas roupas sóbrias indicam claramente tal
característica, é incapaz de pensar por si mesma,
tudo o que diz ou suas ações denotam a subserviência
temerária a que está sujeita.
Beata – É o cúmulo! Ainda está aí!
Minha tia – Não vai abrir a igreja hoje, Iaiá? Dia
de Santa Bárbara...
Beata – Não enquanto esse indivíduo não for
embora.
Minha tia – Que foi que ele fez?
Beata – Quer entrar com essa cruz na igreja. (...)
promessa de candomblé. (...) Herege! (p. 44-45)
16
O pagador de promessas, de Dias Gomes
(C)bate na prostituta, até matá-la, pela traição em
roubar-lhe o amante, Bonitão.
(D)cansada do descaso de Zé-do-Burro, quebra
a cruz, impossibilitando-o de cumprir sua
promessa.
(E)delata o marido para o Secreta a fim de vingarse da traição de Zé-do- Burro com Iansan.
EXERCÍCIOS
1. (CEFET-PR) Leia atentamente as afirmações
abaixo sobre O Pagador de Promessas e assinale a
verdadeira:
(A)Zé-do-Burro e sua esposa, Rosa, mantêm um
relacionamento amoroso conflituoso devido a
ele ser um revolucionário do campo e ela, uma
beata devota.
(B)O Secreta, o Delegado e o Guarda demonstram
a nova face da polícia, após a ditadura de
Vargas, preocupada com os direitos humanos.
(C)Minha Tia e Mestre Coca são representantes
do povo, católicos ardorosos, que se revoltam
com as heresias cometidas por Marli e Zé-doBurro.
(D)Bonitão e Marli são o exemplo de um
relacionamento moderno, em que homem e
mulher usufruem dos mesmos direitos.
(E)O Monsenhor e Padre Olavo representam
a rigidez de princípios teóricos da doutrina
católica diante de situações práticas inusitadas.
(UTFPR) Leia atentamente os excertos de rubricas
retirados da peça O Pagador de Promessas, de
Dias Gomes.
I.“É uma bela mulher, embora seus traços sejam
um tanto grosseiros, tal como suas maneiras.
(...) É agressiva em seu “sexy”, revelando,
logo à primeira vista, uma insatisfação sexual
e uma ânsia recalcada de romper com o
ambiente em que se sente sufocar. Veste-se
como uma provinciana que vem à cidade, mas
também como uma mulher que não deseja
ocultar os encantos que possui”.
II.“Ela tem, na realidade, vinte e oito anos, mas
aparenta mais dez. Pinta-se com exagero, mas
mesmo assim não consegue esconder a tez
amarelo-esverdeada. Possui alguns traços de
uma beleza doentia, uma beleza triste e suicida.
Usa um vestido muito curto e decotado, já um
tanto gasto e fora de moda, mas ainda de bom
efeito visual. Seus gestos e atitudes refletem o
conflito da mulher que quer libertar-se de uma
tirania que, no entanto, é necessária ao seu
equilíbrio psíquico...”.
Em relação às assertivas I e II é correto afirmar
que:
(A)em I e II tem-se a descrição da mesma mulher,
Rosa, amante de Bonitão, o malandro cafetão.
(B)em I tem-se a descrição de Rosa, mulher
do personagem principal de O pagador de
promessas.
(C)em II tem-se a descrição de Rosa, amante de
Bonitão, o malandro cafetão.
(D)em II tem-se a descrição de Marli, mulher
do personagem principal de O pagador de
promessas.
(E)em I e II tem-se a descrição da mesma mulher,
Marli, mulher do personagem principal,
Zé-do-Burro.
5. (UTFPR) Na obra O Pagador de Promessas,
circulam pela praça, onde se passa a história,
diversos personagens que retratam diferentes
questões. Estabelecendo uma correlação entre
personagens e temas, teremos:
I. Zé-do-Burro e a fé; Padre Olavo e a
intransigência
II. Bonitão e o amor; Rosa e a traição
III. Galego e a ambição; Mestre Coca e o
sentimento de coletividade
IV. Repórter e a vaidade; Marli e a pureza
4.
2. (UTFPR) Em O Pagador de Promessas, de Dias
Gomes, “ABC da Mulata Esmeralda” de Dedé
Cospe-Rima que conta a história dessa mulher,
“desde o nascimento, no Beco das Inocências, até
a morte, por trinta facadas, na Rua da Perdição”,
é de certa forma um prenúncio da própria história
narrada na peça, pois:
Encontre a faculdade certa pra você
I. a mulher de Zé-do-Burro é morta com trinta
facadas quando se aproxima da roda de
capoeiristas.
II. a trajetória dos personagens Zé-do-Burro e
Rosa segue o mesmo caminho, da inocência à
perdição.
III. Zé-do-Burro, trinta anos presumíveis, acaba
morto na “rua da perdição” de sua mulher,
que o traiu.
Está(ão) correta(s) somente:
(A)I.
(B)II.
(C)III.
(D)II e III.
(E)I e II.
3. (UTFPR) Em O Pagador de Promessas, de Dias
Gomes, o personagem central, Zé-do-Burro, é
casado com uma mulher que, segundo a rubrica
da peça, “parece pouco ter de comum com ele.
(...) Ao contrário do marido, tem “sangue quente”.
“Demonstração do “sangue quente” da esposa se
dá quando ela:
(A)sem resistir, seduzida por Bonitão, entrega-se
ao sensual cafetão traindo o marido.
(B)enfrenta a vendedora de Beiju devido aos
ciúmes que sente do relacionamento desta
com o marido.
17
O pagador de promessas, de Dias Gomes
9. (UEL) Sobre o intertexto bíblico presente em
O Pagador de Promessas, considere as frases a
seguir.
I. “Mas eu conheço seus adeptos! Mesmo
quando se disfarçam sob a pele do cordeiro!”
II. “Por que então repete a Divina Paixão? Para
salvar a humanidade?”
III. “Uma epopeia. Uma nova Ilíada, onde Troia
é a Lua e o cavalo de Troia é o cavalo de São
Jorge!”
IV. “É até bom demais. Nunca fez mal a ninguém,
nem mesmo a um passarinho.”
Assinale
a
alternativa
que
apresenta,
corretamente, frases com intertexto bíblico.
(A)Somente as frases I e II.
(B)Somente as frases I e IV.
(C)Somente as frases III e IV.
(D)Somente as frases I, II e III.
(E)Somente as frases II, III e IV.
Estão corretas somente as assertivas:
(A)I e II.
(B)III e IV.
(C)II e III.
(D)II e IV.
(E)I e III.
6.
(UEL) Sobre o motivo da jornada da personagem
Zé-do-Burro até Salvador, no livro O Pagador de
Promessas, de Dias Gomes, assinale a alternativa
correta.
(A)Pagamento de promessa pela conquista de
suas terras.
(B)Pagamento de promessa pela recuperação de
Rosa.
(C)Pagamento de promessa pelo restabelecimento
do burro.
(D)Pretexto para fazer campanha a favor da
reforma agrária.
(E)Pretexto para protestar contra a ditadura.
7. (UEL) Sobre as personagens de O Pagador de
Promessas, assinale a alternativa correta.
(A)Galego e Bonitão são artistas populares
nordestinos.
(B)Minha Tia e os capoeiristas são católicos
praticantes do candomblé.
(C)O repórter e o fotógrafo são policiais disfarçados
que manipulam Zé-do-Burro.
(D)O padre e a beata ilustram a intolerância
religiosa.
(E)Rosa e Marli representam o movimento de
liberação feminina dos anos 1990.
8. (UEL) Com base em O Pagador de Promessas,
assinale a alternativa que apresenta, corretamente,
o parecer crítico que analisa a obra.
(A)“A mola propulsora da peça – o autor deixou
bem claro – é a espinafração.”
(B)“Nunca um escritor nacional se preocupou
tanto em investigar sem lentes embelezadoras
a realidade, mostrando-a ao público na crueza
de matéria bruta.”
(C)“Sério exercício de introspecção, o texto se
passa em uma viagem de volta ao interior, ao
encontro do pai distante.”
(D)“O espectador que desejar a diversão
desabrida da farsa encontrará na peça um
motivo inesgotável de comicidade.”
(E)“Essa intolerância erige-se, na peça, em
símbolo da tirania de qualquer sistema
organizado contra o indivíduo desprotegido e
só.”
gABARITO
1.E 2.D 3.A 4.B 5.E 6.C 7.D 8.E 9.A
18
Toda poesia
Paulo Leminski nasceu em 1944 em Curitiba,
mas morou um bom tempo em São Paulo, onde atuou
como publicitário, compositor, professor, além de ter
se aproximado da poesia concreta paulista. Faleceu
prematuramente em 1989, deixando uma vasta obra
poética, que foi publicada postumamente.
Leminski estreou na poesia publicando livros
à maneira marginal, isto é, à margem das grandes
editoras. Participou da chamada geração do
mimeógrafo, porque muitas vezes era usando essa
técnica meio caseira que se publicavam livros. O
primeiro foi Quarenta clics em Curitiba, de 1976, a que
se seguiram Polonaises, de 1980, Não fosse isso e era
menos/ não fosse tanto e era quase, também de 1980.
Logo em seguida, publicou Caprichos e relaxos, em
1983, pela Brasiliense, uma das principais editoras do
país, entrando assim, de vez, no mercado regular das
edições no Brasil. O segundo e o terceiro livro foram
integrados a essa mesma edição da Brasiliense.
Depois, vieram Distraídos Venceremos, também
pela Brasiliense em 1987; pela mesma editora La vie
en close, já publicação póstuma de 1991, Winterverno,
pela Fundação Cultural de Curitiba, em 1994 e
O ex-estranho, pela Iluminuras, em 1996.
Todos esses livros, além de alguns outros poemas,
sob o título de Poemas esparsos, integram o volume ora
editado pela Companhia das Letras em 2013 e que já
chegou a treze reimpressões, atestando, desse modo, a
importância da poesia de Leminski no cenário literário
nacional e mesmo internacional.
Escrever uma resenha sobre um livro de poesia
é tarefa um tanto complexa, pois cada texto teria
uma explicação específica. Que dirá então de uma
coletânea com toda ou a maior parte da produção
poética de um autor? Não há como, pois, darmos conta
dessa tarefa. Queremos, de qualquer modo, destacar
as principais linhas da poesia de Leminski, para que
assim o leitor possa ter um fio condutor, como o fio
de Ariadne, para poder entrar no labirinto e sair dele
(caso queira) de uma poesia muito rica de significados
e capaz de dialogar com a tradição e com o mundo
contemporâneo, tão fluído e com pouco tempo para a
própria poesia.
Há, pois, dois aspectos que temos de considerar
na poesia de Leminski: sua preocupação com o fazer
poético, o que inclui um cuidado na escolha dos
termos, o modo de construir o texto, e, ao mesmo
tempo, um certo relaxamento com esses aspectos, de
modo a deixar fluir o texto naturalmente.
Trata-se de uma figura bifronte, que toma o texto
poético ao modo romântico, do gênio criador, inspirado,
e também ao modo racionalista, pelo qual procura
trabalhar o texto, extraindo dele todas as possibilidades
estéticas. Em outros termos, sua poesia fica entre o
capricho, o cuidado e o relaxo, o descuido, o deixar
fluir, bem no estilo entre o erudito e o marginal. Esse
jogo criativo está presente nos títulos de alguns de seus
livros: Caprichos & relaxos, Distraídos venceremos e O
ex-estranho, por exemplo.
de Paulo Leminski
O planejado está na própria ideia de retomar toda
uma tradição de poetas. Há um eu que fala, e um eu
que dialoga com a tradição, seja a imediata, seja a que
busca a universalidade. Em rigor, Leminski é um poeta
inovador, mas que não despreza o que se fez antes
dele, até porque reconhece toda uma tradição que vem
dos gregos até os modernos, passando pelos clássicos
e que ajudaram, de um modo ou de outro, a construir
a poética. Sabe também na literatura, ou em qualquer
processo criativo, a despeito da ideia de posse ou de
propriedade intelectual, não existe algo exclusivo,
tudo pertence a todos.
nada tão comum
que não possa chamá-lo
meu
nada tão meu
que não possa dizê-lo
nosso
[...]
(2013, p. 41)
Essa comunhão tem um objetivo maior, que é o
da universalidade da poesia. Embora haja autores que
tenham uma preocupação com as questões nacionais,
como Luis de Camões ou Fernando Pessoa, a poesia de
ambos ultrapassa o próprio conceito de nacionalismo
português, em busca de uma integração mais ampla,
posto que são obras que também se comunicam com a
tradição helênica, por exemplo. Nesse sentido, a poesia
de Leminski, que tem com berço uma Curitiba, capital
de um estado, mas provinciana em termos nacionais,
quer a comunicação mais ampla, quer estabelecer
pontos de contato com outros autores, e toda uma
tradição inventiva, consoante até com o projeto da
Poesia Concreta, de que fez parte quando morou em
São Paulo.
um dia
a gente ia ser Homero
a obra nada menos que uma ilíada
depois
a barra pesando
dava pra ser aí um Rimbaud
[...]
por fim
acabamos o pequeno poeta de província
que sempre fomos
[...]
(2013, p. 71)
Há diversos outros poemas nessa linha, que
buscam esse diálogo com a tradição, como “aviso
aos náufragos”, em que há de novo uma retomada
do poema de Homero, atualizando o princípio da
busca, da conquista, da descoberta ou “limites ao léu”
(p. 246), em que toma definições sobre linguagem e
criação de diversos artistas, e conclui com uma frase
sua mesmo: “a liberdade da minha linguagem”. Isto
é, trata-se de um liberdade criativa, ao mesmo tempo
19
Toda poesia, de Paulo Leminski
Leminski nem sempre obedece ao rigor do
Haikai, embora a ideia (geral, particular, conclusão)
seja respeitada. Em outros termos, nem sempre segue
a quantidade de sílabas poéticas, nem mesmo a
quantidade de versos, que deveriam ser sempre três,
há alguns com quatro versos. Claro, alguém mais
rigoroso poderia dizer: então não se trata de Haicai.
Mas vivemos em tempos de renovação, reescrita,
redescobertas e reinvenções. Pois bem, há um Haicai
de particular importância, inclusive intitulado:
Mallarmé Bashô, que faz clara referência ao de Bashô
já especificado.
Um salto de sapo
jamais abolirá
o velho poço
que uma relação constante que estabelece com outros
criadores. Como exemplo, em “Papajoyceatwork”,
temos um poema escrito à maneira do autor irlandês,
James Joyce, com termos criados ou recriados, em
português e em inglês
Mustmakesomething! Reverythming! (2013, p. 157)
Ou outros poemas, em que revela suas
preferências, suas leituras e sua filiação literária, como
“Rosa rilke raimundo correia” (p. 213). Outro é “m,
de memória”, em que exalta o poder de determinados
autores que continuam a ser lidos, relidos, lembrados,
posto que no jogo entre ficção e realidade, entre vida
literária e vida real, o que importa é o constructo que
fazemos de tudo isso. O que é real vira ficção e viceversa. Eis o papel fundador da literatura, de erigir
mundos e reconstruir a realidade.
Os livros sabem de cor
milhares de poemas.
[...]
Ulisses voltou de Troia,
Assim como Dante disse.
[...]
Byron era verdadeiro.
Fernando, pessoa, era falso.
Os livros sabem de tudo.
Já sabem desse dilema.
Só não sabem que, no fundo,
Ler não passa de uma lenda.
(2013, p. 306)
Trata-se de uma dupla referência, primeiro ao
famoso Haicai, de Bashô, depois ao título de um livro
do poeta simbolista francês Stéphane Mallarmé (18421898), Un coup de dès jamais n’abolira le hasard (um
jogo de dados jamais abolirá o acaso).
Observe-se como Leminski estabelece uma
relação entre os dois poetas para dizer que as coisas
existem para além do que possamos querer, ou
possamos controlar. Mesmo que se queira controlar
o resultado do jogo ou se queira controlar a natureza,
os acontecimentos estão repletos de acaso, de
possibilidades.
(2013, p. 226)
O Haicai acaba servindo como mote para uma
reflexão sobre questões comuns, situações exemplares,
que podem servir como expressão do universal.
Seguindo dessa busca pela universalidade
poética e comunicação com uma tradição, um tipo de
poesia predominante na obra de Leminski é o Haicai,
forma poética criada e desenvolvida por Bashô (16441694), samurai, que após a morte de seu mestre,
transformou-se em Rônin, um samurai sem mestre. Há
uma série de Haicais em La vie en close, no caso da
edição de que estamos nos servindo entre as páginas
306 e 322. Há outros tantos em Ideolágrimas. Além dos
espalhados nos demais livros do autor e reunidos neste
Toda Poesia.
viver é superficial
o mais fundo
está sempre na superfície
(2013, p. 246)
São diversos haicais, uma de suas formas poéticas
preferidas, e trata de diferentes temas. Considerando
um dos pontos deste texto, podemos nos referir a mais
um, em que se refere a um dos princípios criativos que
norteiam sua produção poética, o diálogo.
Um Haicai é um poema de 17 sílabas, distribuídos
em três versos (na tradução nem sempre se obedece
a essa quantidade de sílabas), sendo o primeiro e o
terceiro com cinco sílabas, e o do meio com sete. Este
tipo de poema é baseado em certo silogismo. Um dos
Haicais mais famosos de Bashô é o seguinte:
A velha lagoa
o sapo salta
o som da água

O primeiro verso expressa uma visão geral, o
cosmos
A velha lagoa
No segundo verso, exprime-se o particular, um
determinado evento
O sapo salta
No terceiro, tem-se o resultado, a conclusão
lógica entre o geral e o específico
O som da água
lá vamos nós
lendo sempre
a mesma voz
(2013, p. 363)
No livro La vie en close, por referência a uma
música interpretada pela cantora francesa Edith Piaf,
La vie en rose, Leminski revela a vida ao saber do
acaso, mas também do controle, como um coup de dès,
o jogo de dados de Mallarmé já referido acima, cujo
resultado pode-se tentar, mas é de difícil previsão. Na
música, Piaf canta a felicidade da descoberta do amor,
do encontro feliz, canta a perfeita comunhão dos que
se amam. Leminski, ao contrário, fala a respeito da
necessidade de se submeter a alguns caminhos, por
isso a vida fechada, sem escolhas (la vie en close).
Em rigor, até fazemos escolhas, mas essas escolhas já
estariam definidas previamente.
20
Toda poesia, de Paulo Leminski
[...]
c’est la vie des choses
qui n’ont pas
un autre choix1
Ou mais adiante:
Ambígua volta
em torno da ambígua ida,
quantas ambiguidades
se pode cometer na vida?
[...]
(2013, p. 243)
Tal possibilidade de escolha está relacionado,
mais uma vez, a esse princípio criativo que revela o
jogo entre o acaso e o planejado. Ora, se as coisas não
podem escolher, elas devem ser guiadas pelo acaso.
Isso inclui a poesia, o objeto por excelência do poeta,
que, como ser, quer fazer escolhas, quer planejar,
direcionar. Nesse sentido, é preciso às vezes deixarse levar, é preciso mesmo ir contra si mesmo, conta a
lógica criativa, como propõe em “motim de mim”:
xx anos de xis,
xx anos de xerox,
xx anos de xadrez,
não busquei o sucesso,
não busquei o fracasso,
busquei o acaso,
esse deus que eu desfaço.
(2013, p. 194)
Nessa linha de reflexão sobre a linguagem
poética, uma das questões levantadas por Leminski
e por tantos outros escritores é o que significa ser
poeta. Qual o papel da poesia no mundo moderno?
Ora, talvez a condição do poeta e da própria poesia
seja a de exercer um papel de estranheza, de desleixo,
mas ao mesmo tempo é conhecida, é algo comum,
posto que seu material de trabalho é a palavra, é a
língua, sem a qual a comunicação se realizaria com
a maior dificuldade. Além de que a linguagem cria e
recria o mundo. Explicando melhor, o mundo moderno
(entenda-se desde o século XIX), é marcado pela
busca frenética por dinheiro, por mercados, é o mundo
baseado na economia, nas relações comerciais. Assim,
quanto dinheiro dá a poesia? Que tipo de produto é
a poesia? O que fazer com ela e como negociá-la?
Ora, essas perguntas não têm respostas certas. Em
rigor, claro, poesia é transformada em livro e livros são
vendidos. Porém, há dois pontos: excluindo um autor
ou outro, poesia vende muito pouco, não compensa
financeiramente às editoras; segundo, para além
dessa questão econômica, poesia é um trabalho com
a palavra e vai muito além de aspectos econômicos.
Então, volta-se à pergunta: qual o papel do poeta e da
poesia no mundo moderno? Observe como o poeta, em
uma autorreferência, buscar compreender esse papel
e como ele pode ser visto pela sociedade, aquele que
chama a atenção e atrapalha a vida dos que seguem o
padrão:
o pauloleminski
é um cachorro louco
que deve ser morto
a pau e pedra
a fogo a pique
senão é bem capaz
o filhodaputa
de fazer chover
em nosso piquenique.
(2013, p. 257)
Entenda-se xerox como a cópia ou diálogo com a
tradição, e xadrez como a lógica, o planejado. Nessa
linha, pode-se ler “ímpar ou ímpar”, “quem sai aos
seus” ou “andar e pensar um pouco”. Todos publicados
e em La vie en close.
Leminski é um desses poetas, como os escritores
que lhe serviram de base (Rimbaud, Mallarmé, Joyce,
Rosa, entre outros) que procura fazer uma revolução
com a palavra, com o jogo poético, ao constantemente
buscar novas formas de expressão. É bem verdade,
porém, que, uma vez estabelecida sua linguagem,
procurou manter-se naquela linha, qual seja: a do
culto ao Haicai, à da poesia concreta, a da poesia
fragmentada, a jogo entre o coloquialismo e a poesia
erudita. Em todos esses casos, procurou tratar sobre
questões comezinhas da vidas, isto é, sobre o cotidiano,
mas também procurou explicações para a existência,
explicações para as contradições da vida e para muitas
vezes o sentimento de mal estar que acontece a
qualquer um. A poesia seria, pois, um caminho entre o
sentido da vida, se é que existe, e a própria vida. Esse
papel mediador da arte e da linguagem não é nenhuma
novidade. Remonta especialmente aos simbolistas,
como Cruz e Souza, mas também a diversos outros
artistas. De qualquer modo, Leminski procurou dar
sua visão sobre esse ponto. E o fez de modo inventivo
e provocador.
Mandei a palavra rimar,
ela não me obedeceu.
[...]
Mandei a frase sonhar,
e ela se foi num labirinto.
Fazer poesia, eu sinto, apenas isso.
Dar ordens a um exército,
para conquistar um império extinto.
(2013, p. 102)
Matar significa aqui eliminar a poesia, eliminar
os que olham para o mundo de modo diverso do
padrão. Eis o papel do poeta e mesmo da poesia, o que
quase nunca é vista de modo aceitável.
Nesse sentido, a poesia seria algo marginal, algo
não central na vida das pessoas. Apesar disso, cabe ao
poeta buscar sentido para sua atividade, mesmo em
um mundo onde mais vale a prosa (entenda-se, a vida
prática, pragmática, que a poesia):
Não há verso,
tudo é prosa,
passos de luz
num espelho,
verso, ilusão
de ótica,
verde,
o sinal vermelho.
[...]
(2013, p. 190)
(2013, p. 189)
1 “É a vida das coisas que não têm outra escolha”
21
Toda poesia, de Paulo Leminski
Há diversos outros poemas nessa linha de
confronto entre a resistência da poesia e o ter de buscar
a segurança econômica, ou entre a vida poética e a
vida pragmática, entre o sonho e o mundo real. Bem
significativo nesse sentido é o que segue:
quando eu tiver setenta anos
então vai acabar esta adolescência
vou largar da vida louca
e terminar minha livre-docência
[...]
vou fazer o que minha deseja
aproveitar as oportunidades
de virar um pilar da sociedade
e terminar meu curso de direito
[...]
intertextuais para se chegar a um determinando
sentido. Outro aspecto presente no poema acima
é o cinema, assim como as artes em geral, é capaz
de criar outro mundo, outra realidade, bem melhor
que a própria realidade, uma vez que no cinema os
problemas são resolvidos, os desencontros têm um
final feliz e tudo se resolve até que o filme termine; ao
passo que no mundo real, na vida, muitos problemas
ficam pendentes e não se tem certeza se até o fim (a
morte) tudo estará resolvido.
Entre os diversos poemas cartaz, destaquemos um:
(2013, p. 55)
E outro, talvez até mais claro sobre o que
significa ser poeta ao tratar a escrita em âmbito da
marginalidade, do fora do centro ou do ex-cêntrico.
Ora, marginal é usado aqui no sentido de não ocupar
papel central na sociedade, não no sentido de um
bandido, ou fora da lei.
Marginal é quem escreve à margem,
deixando branca a página
para que a paisagem passe
e deixe tudo claro à sua passagem.
[...]
(2013, p. 213)
(2013, p. 146)
Talvez por isso (e também como meio de
sobrevivência da pessoa Paulo Leminski), o autor tenha
ido trabalhar como publicitário, o que o fez estabelecer
relações mais próximas entre a linguagem literária e a
publicitária. Embora os objetivos sejam outros, o fato
é que essa aproximação fez de Leminski um poeta ao
mesmo tempo de formação erudita e prática mais pop
(não por acaso, é um poeta que está entre os primeiros
em termos de vendagem de livros...)
Essa relação se dá também pela uso de técnicas
da poesia concretista, que explora muito a imagem, a
escrita outdoor por assim dizer (poemas que parecem
cartazes) e, claro, pela referência ao mundo pop, ao
mundo da música (Leminski era compositor e teve
vários parceiros, entre os quais Caetano Veloso) e do
cinema.
podem ficar com a realidade
esse baixo astral
em que tudo entra pelo cano
eu quero viver de verdade
eu fico com o cinema americano
A mensagem não é muito diferente daquilo que
está presente em sua poesia como um todo. Ora, mais
uma vez vem a pergunta: o que significa escrever?
Deixar-se levar pela inspiração, pelo desleixo, ou antes
significa um trabalho com a palavra, ser caprichoso?
A frase “ao que tudo indica” sugere uma certeza, um
cuidado, um caminho certo (tudo indica...). Porém,
essa certeza é embaralhada, é desfeita pelas letras,
dispostas de maneira aleatória, uma sobre as outras.
A certeza assim se desfaz, e é preciso esperar “como
tudo fica”.
Em outros momentos, diz escrever pela simples
atividade de escrever, como se fosse uma atividade
natural, mesmo sabendo que não é.
Escrevo. E pronto.
Escrevo porque preciso,
Preciso porque estou tonbto.
[...]
Eu escrevo apenas.
Tem que ter por quê?
(2013, p. 218)
(2013, p. 200)
Há um tom de ironia aí, mas que também serve
para dizer, entre as artes, o cinema é aquela mais bem
preparada para atender às necessidades do mercado,
é o que dá mais dinheiro, é a que cria mundos nos
quais qualquer pessoa, mesmo a sem maior preparo,
pode entrar. Ora, ler poesia pressupõe primeiro ser
alfabetizado, depois significa ter alguma sensibilidade,
por fim saber estabelecer relações contextuais e
Em Quarenta clics de Curitiba, uma constante é
o tempo, a passagem do tempo, em relação ao com a
literatura, com a arte da escrita, posto que esta, como
um clic, isto é, um foto, eterniza um momento. De
qualquer modo, mesmo eternizado, o tempo é uma
constante. De todos, o poema mais caraterístico dessa
visão é o seguinte:
22
Toda poesia, de Paulo Leminski
O tempo fica
cada vez
mais lento
e eu
lendo
lendo
lendo
vou acabar
virando lenda
Foi infeliz.
Era possessivo como um pronome.
E ela era bitransitiva.
Tentou ir para os EUA.
Não deu.
Acharam um artigo indefinido em sua bagagem.
A interjeição do bigode declinava partículas
expletivas,
conetivos e agentes da passiva, o tempo todo.
Um dia, matei-o com um objeto direto na cabeça.
(21013, p. 23)
(2013, p. 158)
Neste caso, há um trocadilho entre lento, lendo
e lenda. O tempo é, em rigor, inexorável, isto é "o
tempo passa", mas pode ficar lento pela leitura, pode
se eternizar pela escrita, pela lenda, pela literatura.
Leminski também é conhecido por sua grande
capacidade de síntese. Dizer muito em poucas palavras.
Isso é próprio também da estética concretista, cujo
fundamento era o de explorar ao máximo o significante,
a palavra. Esse caso pode ser exemplificado por
diversos poemas do livro, mas destaquemos um em
especial. Trata-se de “Rimas de moda”:
193019601980
Amorhomemama
Dor
come
cama
fome
Três momentos do século XX que podem significar,
em poucas palavras, contextos diferentes, perspectivas
diferentes. Se na primeira metade do século há uma
pretensa ideia de que o amor está diretamente ligado
ao sofrimento (uma visão romântica); na metade há
uma visão de caráter mais social; por fim, na segunda
metade do século, uma visão de liberação sexual.
Claro que o segundo grupo também pode indicar uma
conotação sexual, de expressão do desejo, talvez como
referência à revolução sexual. De qualquer modo,
o poema expressa, sinteticamente, a perspectivas
diferentes sobre um mesmo tema.
A preocupação metalinguística, já referida, é
uma constante em Leminski, mas também é uma
constante a preocupação com a reflexão em torno da
língua e em torno de estudiosos da língua, vista como
meio de comunicação e como material de trabalho
do poeta. Há, por isso, poemas que refletem sobre
o uso da língua de um ponto de vista pragmático
(comunicativo), linguístico, filológico (a história da
língua) e/ou gramatical. Entre os quais, destaquemos
três poemas: “Ouverture la vie en close” e “EU RO
PA”, de La vie en close, “O assassino era o escriba”, de
Caprichos & relaxos. Destaquemos versos de cada um
desses poemas, a começar por este último.
Meu professor de análise sintática era o tipo do
sujeito
Inexistente.
Um pleonasmo, o principal predicado da sua vida,
regular com um paradigma da 1ª conjugação.
Entre uma oração subordinada e um adjunto
adverbial,
ele não tinha dúvidas: sempre achava um jeito
assindético de nos torturar com um aposto.
Casou com uma regência.
Observe que o poema faz uma mescla de gêneros
textuais (o próprio poema, o gênero descritivo, o
narrativo) e observe também como o autor brinca
com a função metalinguística, para caracterizar seu
personagem (o tal professor). No caso, esse professor
preso a regras de condutas morais, mas que, após um
casamento infeliz, uma desilusão amorosa, se perde na
vida, e enfrenta uma série de situações impensáveis
para alguém tão correto quanto ele.
em latim
“porta” se diz “janua”
e “janela” se diz “fenestra”
[...]
já em inglês
“janela” se diz “window”
porque por ela entra
o vento (“wind”) frio do norte
a menos que a fechemos
como quem abre
o grande dicionário etimológico
dos espaços interiores
(2013, p. 248)
Neste caso, o poeta busca compreender o sentido
das palavras de acordo com suas raízes. Trata-se de um
princípio poético disseminado ao longo do livro, afinal
resgatar uma tradição poética é também estabelecer
os parâmetros de compreensão da própria poesia, é
expressar possibilidades de leitura.
EU
O mundo desabava em tua volta,
e tu buscavas a alma que se esconde
no coração da sílaba SIM.
[...]
RO
Um mundo, o velho mundo, árvore no outono,
Hitler entra em Praga, Rússia, revolútzia,
[...]
PA
Roma, Rôman, romântico romã,
Jak, Jákob, Jákobson, filho de Jacó,
preservar as palavras dos homens.
Enquanto houver um fonema,
Eu nunca vou estar só.
(2013, p. 272)
Por fim, neste poema, tem-se uma alusão a
momentos da vida do linguista Roman Jakobson (18961982), responsável por estudos na área de comunicação
e da linguística na linha estruturalista. Foi ele quem
pensou os elementos da comunicação e suas respectivas
23
Toda poesia, de Paulo Leminski
funções, entre as quais a metalinguística, tão comum
na poesia de Leminski. Os estudos do linguista foram
também responsáveis pela base teórica da Poesia
Concreta, formulada pelo poeta Haroldo de Campos,
de quem Leminski foi seguidor e amigo pessoal.
Leminski tem uma variedade grande de poemas,
mas aqui procuramos detalhar as principais linhas
poéticas de sua produção literária. Com base nesses
elementos, é possível ler os demais poemas do livro.
Para finalizar, destaquemos um último poema extraído
de Caprichos & relaxos e que acaba sintetizando as
aspirações nem sempre realizadas, o choque entre a
poesia, isto é, a vida simbólica, de busca de significados,
de elevação espiritual, de comunicação sensorial, e a
vida prosaica, representada na última estrofe:
Manchete
CHUTES DE POETA
NÃO LEVAM PERIGO À META
eu queria tanto
ser um poeta maldito
a massa sofrendo
enquanto eu profundo medito
eu queria tanto
ser um poeta social
rosto queimado
pelo hálito das multidões
em vez
olha eu aqui
pondo sal
nesta sopa rala
que mal vai dar para dois
EXERCÍCIOS
1.
2.
(PUC-PR) Leia o poema:
“podem ficar com a realidade
esse baixo astral
em que tudo entra pelo cano
eu quero viver de verdade
eu fico com o cinema americano”
O poeta Paulo Leminski neste poema usa de
procedimento redundante em sua obra. Assinale
a alternativa que identifica esse procedimento:
(A)Intertextualidade.
(B)Ironia.
(C)Crítica à sociedade de massa.
(D)Fuga à realidade.
(E)Desejo de viver intensamente.
(PUC-PR) Identifique as alternativas verdadeiras
a respeito do poema transcrito, de autoria de
Paulo Leminski:
RIMAS DA MODA
1930
1960
1980
amor
homem
ama
dor
come
cama
fome
I.O título do poema, metalinguístico, indica a
importância das semelhanças sonoras na sua
composição.
II.O poema traça um breve histórico da sucessão
de temas privilegiados pela poesia brasileira
ao longo do século 20.
III. Segundo o texto, em 1960 a poesia voltou-se
mais para a problemática social do que para
os relacionamentos amorosos.
IV. A distribuição espacial das palavras e a presença
de números exemplificam a aproximação de
Paulo Leminski à Geração de 45.
Estão corretas apenas:
(A)II, III e IV
(B)I e II
(C)II e III
(D)II e IV
(E)I, II e III
(2013, p. 90)
Sempre importante lembrar, na esteira de
Fernando Pessoa, que “o poeta é um fingidor”, isto
é, o poeta é um construtor de mitos, de mundos. A
expressão do eu não é necessariamente a expressão
da subjetividade pessoal. Trata-se de um eu particular,
simbólico, expressão, pois, de um sujeito universal em
busca da compreensão mais ampla do estar no mundo,
tendo a linguagem poética como mediadora entre
nossa percepção e a realidade objetiva.
Escrevia no espaço.
Hoje, grafo no tempo,
na pele, na palma, na pétala,
luz do momento.
Soo na dúvida que separa
o silêncio de quem grita
do escândalo que cala,
no tempo, distância, praça,
que a pausa, asa, leva
para ir do percalço ao espasmo.
Eis a voz, eis o deus, eis a fala,
eis que a luz se acendeu na casa
e não cabe mais na sala.
3.
(ESPM) Leia:
noite sem sono
o cachorro late
um sonho sem dono
A forma poética acima é um haicai, de origem
japonesa, que valoriza a concisão e a objetividade.
Das características abaixo, também do haicai,
assinale a que não foi utilizada pelo autor:
(Paulo Leminski)
24
Toda poesia, de Paulo Leminski
(A)não revelar um “eu” poético subjetivo;
5. Sobre o texto de Paulo Leminski todas as
alternativas estão corretas, EXCETO
(A)a terminologia sintática e morfológica,
que em um primeiro momento é motivo de
estranhamento, concede o efeito de humor ao
poema.
(B)o eu lírico demonstra por meio da composição
de texto pessoal e confessional o seu
desconhecimento gramatical.
(C)nos primeiros sete versos o eu-lírico apresenta
seu professor, que, por meio de suas ações e
funções, é caracterizado como um torturador.
(D)entre os versos 8 e 16 o leitor toma consciência
de todos os fracassos que compuseram a vida
do professor.
(E)o texto é estruturado em forma de narrativa
policial, mas em função de sua organização
gráfica, métrica e rítmica é considerado um
poema.
(B)apresentar três versos metrificados;
(C)referenciar a solidão e uma estação do ano;
(D)oferecer um momento de reflexão para causar
uma descoberta;
(E)conter poucas palavras, com predominância
de substantivos.
4.
Leia o poema a seguir:
o bicho alfabeto
tem vinte e três patas
ou quase
por onde ele passa
nascem palavras
e frases
com frases
se fazem asas
palavras
o vento leve
o bicho alfabeto
passa
fica o que não se escreve.
6.
(LEMINSKI, Paulo. Melhores poemas de Paulo Leminski.
São Paulo: Global Editora, 2001.)
O tema do texto de Paulo Leminski é o processo
e o sentido da escrita associados aos atos de
semear e de soltar a imaginação. Transcreva do
texto os versos que comprovam cada uma dessas
associações.
semear imaginação =
por onde ele passa
nascem palavras
Pelos versos, percebe-se que a poesia de Leminski
(A)mantém relação com a geometrização das
formas e volumes cubista.
(B)tem como base os dilemas financeiros do ser
humano.
(C)valoriza a concisão e é transgressora.
(D)é composta por uma observação rigorosa do
mundo material.
(E)é composta por personagens positivamente
idealizados.
7. (Unisinos) Dos trechos abaixo, qual aquele que
melhor representa a literatura contemporânea
(atual):
(A)Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida descontente,
Repousa lá no Céu eternamente,
E viva eu cá na terra sempre triste. (Camões)
(B)Minha terra tem palmeiras,
Onde canta o Sabiá;
As aves, que aqui gorjeiam,
Não gorjeiam como lá. (Gonçalves Dias)
(C)não fosse isso
e era menos
não fosse tanto
e era quase (Paulo Leminski)
(D)Última flor do Lácio, inculta e bela,
És, a um tempo, esplendor e sepultura:
Ouro nativo, que na ganga impura
A bruta mina entre os cascalhos vela...(Olavo
Bilac)
(E)Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão – esta pantera –
Foi tua companheira inseparável (Augusto dos
Anjos)
soltar a imaginação =
o vento leve
o bicho alfabeto
passa
fica o que não se escreve.
(Mackenzie) Leia o poema a seguir e responda às questões 5 e 6:
Meu professor de análise sintática era o tipo do
sujeito inexistente.
Um pleonasmo, o principal predicado da sua vida,
regular como um paradigma da 1.ª conjugação.
Entre uma oração subordinada e um adjunto
adverbial, ele não tinha dúvidas: sempre achava um
jeito assindético de nos torturar com um aposto.
Casou com uma regência.
Foi infeliz.
Era possessivo como um pronome.
E ela era bitransitiva.
Tentou ir para os EUA.
Não deu.
Acharam um artigo indefinido em sua bagagem.
A interjeição do bigode declinava partículas
expletivas,
conectivos e agentes da passiva, o tempo todo.
Um dia, matei-o com um objeto direto na cabeça.
25
Toda poesia, de Paulo Leminski
(UEL) Leia o poema, a seguir, e responda às
questões 8 e 9:
estupor
esse súbito não ter
esse estúpido querer
que me leva a duvidar
quando eu devia crer
esse sentir-se cair
quando não existe lugar
aonde se possa ir
esse pegar ou largar
essa poesia vulgar
que não me deixa mentir
No que diz respeito aos procedimentos formais
verificados (rimas, sonoridade e jogos de palavras) e
aos sentidos construídos, relacione os dois primeiros
versos ao restante do poema.
Resposta oficial: Os dois primeiros versos
do poema “Mandei a palavra rimar, / Ela não me
obedeceu” mostram o eu lírico em seu processo de
criação. Ali, há a expectativa de que a palavra rime,
seguida da constatação de que ela desobedece a essa
ordem. Ao longo do poema, quanto à forma, encontramse rimas externas rosa/prosa e internas sinto/extinto,
sonoridade “sílaba silenciosa” e jogos de palavras,
embora o eu lírico afirme que ela não obedeceu a ele.
No que diz respeito aos sentidos, o poema mantém
o tom conflituoso e até paradoxal, que descreve esse
embate entre poeta e palavra. A ideia de liberdade e
desobediência, exposta nos versos iniciais, confirmase ao longo do poema em versos como “parecia fora de
si” ou “se foi num labirinto”.
(LEMINSKI, P. Toda Poesia. São Paulo:
Companhia das Letras, 2013. p.249.)
8.
O título do poema refere-se
(A)ao efeito da poesia vulgar sobre o leitor
estúpido.
(B)ao estado do eu lírico, dividido entre o crer e
o duvidar.
(C)ao fazer poético, atividade vulgar que engana
o receptor.
(D)ao poeta, estupefato com a carência de
sensações.
(E)à poesia, que inspira o súbito desejo de fuga
de um lugar inóspito.
9.
Considerando o poema no conjunto da obra Toda
Poesia, de Paulo Leminski, é correto afirmar que
(A)exemplifica a metalinguagem praticada pelo
autor.
(B)a poesia de Leminski é vulgar porque utiliza
formas poéticas livres.
(C)a adjetivação intensa no poema é um traço
recorrente em sua obra.
(D)o heptassílabo é o verso mais cultivado na
produção leminskiana.
(E)o esquema de rimas encontra equivalência na
obra Ideolágrimas.
gABARITO
1.D 2.E 3.C
4. semear imaginação = por onde ele passa
nascem palavras
soltar a imaginação = o vento leve
o bicho alfabeto
passa
fica o que não se escreve.
5.B 6.C 7.C 8.B 9.A
10. Os dois primeiros versos do poema “Mandei a
palavra rimar, / Ela não me obedeceu” mostram o eu
lírico em seu processo de criação. Ali, há a expectativa
de que a palavra rime, seguida da constatação de que
ela desobedece a essa ordem. Ao longo do poema,
quanto à forma, encontram-se rimas externas rosa/
prosa e internas sinto/extinto, sonoridade “sílaba
silenciosa” e jogos de palavras, embora o eu lírico
afirme que ela não obedeceu a ele. No que diz respeito
aos sentidos, o poema mantém o tom conflituoso e até
paradoxal, que descreve esse embate entre poeta e
palavra. A ideia de liberdade e desobediência, exposta
nos versos iniciais, confirma-se ao longo do poema
em versos como “parecia fora de si” ou “se foi num
labirinto”.
10. (UEL) Leia o poema a seguir.
desencontrários
ela Mandei a palavra rimar,
ela não me obedeceu.
ela Falou em mar, em céu, em rosa,
em grego, em silêncio, em prosa.
ela Parecia fora de si,
a sílaba silenciosa.
ela Mandei a frase sonhar,
e ela se foi num labirinto.
ela Fazer poesia, eu sinto, apenas isso.
Dar ordens a um exército,
ela para conquistar um império extinto.
(LEMINSKI, P. Toda poesia. São Paulo:
Companhia das Letras, 2013. p.190.)
26
Vozes anoitecidas
de Mia Couto
Durante duas semanas o velho dedicou-se
ao buraco. Quanto mais perto do fim mais se
demorava. (p. 23)
Porém, durante a execução desse trabalho, que
não foi fácil, e devido à chuva que tomou, o velho
ficou doente. Acamado, volta a ter a preocupação pela
mulher, afinal quem a colocaria na cova se ele viesse
a morrer. Por isso mesmo, decide que a cova não pode
ficar sem serventia e que o melhor a se fazer é matar
a mulher antes que ele próprio morra. Ainda que seja
estranho, não se trata de uma decisão com ódio ou
outro sentimento ruim. Acredita, segundo sua visão
de mundo, que esse é o correto a se fazer. A mulher,
comunicada pelo marido sobre tal decisão, aceita
passivamente, sem admoestá-lo, sem se revoltar ou
falar qualquer coisa em contrário.
– É verdade, marido. Você teve tanto trabalho para
fazer aquele buraco. É uma pena ficar assim.
(p. 25)
No dia seguinte, o marido não resiste e é
encontrado morto pela mulher. Durante a noite, a
velha sonhara com os antepassados, sonhara com as
histórias contadas e o sentido que faziam para manter
a integridade do grupo. O que se deve, portanto,
destacar no conto é, além da extrema pobreza em que
vivem, a singeleza e a harmonia do casal, é. Se falta
riqueza material, sobram a eles exatamente elementos
da cultura local, o respeito à sabedoria dos mais velhos,
o respeito às decisões. Esse primeiro conto revela já o
contraste entre o mundo moderno, egoísta, de busca
por novidades e a harmonia de uma sociedade que,
como os velhos, morrem e eles próprios têm de cavar
a própria cova.
No segundo conto, “O último aviso do corvo
falador”, temos uma história que se aproxima do
maravilhoso, embora tenha um tanto de enganação
também. Isso porque, como o título indica, um corvo
seria capaz de falar com os mortos e prever o futuro.
Seu nascimento foi um tanto esdrúxulo, se é que tenha
ocorrido como narrado de fato. Zuzé Peraza, um pintor,
teria “vomitado” o corvo e de imediato mostrara sua
habilidade em falar. Porém, o único a compreender sua
fala era o próprio Zuzé.
Verdade ou não, o pintor de parede passou a
ser visto pela comunidade como alguém detentor de
poderes mágicos e era sempre consultado por essa
pretensa habilidade que teria o corvo.
Os pedidos logo acorreram numerosos. Zuzé já não
tinha quarto, era gabinete. Não dava conversa,
eram consultas. [...] E assim entra na história
Dona Cândida, mulata de volumosa bondade,
mulher sem inimigos. (p. 30)
Dona Cândida fora casada com Evaristo, um
negro da região. Porém, com a morte dele, e sem
esperar muito, casou-se com um comerciante de
origem indiana, chamado Sulemane, um comerciante
da região.
Vozes anoitecidas é o primeiro livro de contos de
Mia Couto, pseudônimo de António Emílio Leite Couto.
O escritor moçambicano, nascido em 1955, publicou
esse livro em 1987. São doze contos que levam o leitor
a ter experiências ora um tanto absurdas, ora um tanto
fantásticas, mas cujo objetivo é sempre o de chamar a
atenção para os conflitos da vida, as situações em que
o drama e a angústia se fazem presentes pelos mais
variados motivos.
O título do livro apresenta um tanto de metafórico.
O termo vozes remete à construção discursiva, à
possibilidade de se expressar, oralmente em especial,
o que é bastante pertinente, considerando que a
ancestralidade africana se faz presente. E o termo
anoitecidas nos remete igualmente a uma tradição
moçambicana, pois segundo Henri Junod, que
fez um profundo estudo sob re a cultura no sul de
Moçambique, a narração dos contos africanos obedece
a determinados rituais:
Há que tomar uma bizarra precaução quando se
contam contos: é um tabu fazê-lo durante o dia;
trata-se de um entretenimento da noite; o que
transgredir essa regra torna-se calvo! (...) Penso
que essa proibição provém de que, como esse jogo
é tão popular, os indígenas receiam consagrarlhe tempo demasiado: perderiam toda vontade de
trabalhar, se começassem a jogá-lo logo a meio
dia. Por isso se interditaram, instintivamente, a
narração de contos durante o dia (JUNOD, apud
LOPES, 2004, p. 185).
Apesar desse componente mais local, o leitor
brasileiro ou de outros países pode bem se deparar
com situações similares, pois Couto consegue abordar
temáticas abrangentes, especialmente as relações
mais diversas.
O próprio Mia Couto em prefácio revela que
anoitecer as vozes significa impedir o desenvolvimento
da imaginação, da fantasia. Quer dizer, um discurso
que é impedido de se manifestar por estar nas trevas,
no esquecimento. Contra isso, contra o esquecimento,
manifesta-se a literatura, que tira do limbo, da
escuridão as histórias ou esquecidas ou não contadas.
Esse é, pois, o papel do escritor, o de inventar ou
o de resgatar histórias orais. O que chama a atenção
inicialmente na literatura de Couto é a semelhança com
a obra de Guimarães Rosa, especialmente por conta
dessa oralidade, do trabalho estético da oralidade.
Sem dúvida, o leitor experiente conseguirá perceber
as semelhanças entre os dois autores.
No primeiro conto do livro, “A fogueira”, tem-se
a história de um casal de idosos. Como estão velhos e
sozinhos, o marido tem uma preocupação: saber quem
enterraria a mulher se ele morresse antes dela. Por este
motivo, resolve, com a anuência da esposa, cavar uma
cova para a esposa. E faz isso todos os dias, devagar
devido à idade e à pouca força.
27
Vozes anoitecidas, de Bia Couto
Segundo o que foi relatado no conto, a morte de
um marido deveria suceder um ritual de modo dar-lhe
sossego espiritual na outra vida. Mudando aqui ou ali,
as culturas em geral têm grande respeito pelos mortos.
Lembrando-se que no Brasil, o dia 02 de novembro
é dedicado a eles. Tais crenças despertam também
crendices. No caso, Sulemane parecia não conseguir
ter relações com Dona Cândida, e ela acreditava que
poderia ser devido a algum feitiço do marido morto.
Zuzé Paraza cruzou as mãos, acariciou corvo.
Tinha suas suspeitas: Evaristo era da raça negra,
natural da região. Dona Cândida, com certeza não
cumprira as cerimónias da tradição para afastar a
morte do primeiro marido. (p. 32)
Obrigava-o a trabalhar o dia todo e ainda o ameaçava
caso perdesse algum boi. Por isso, o jovem pastor
ficou preocupado em retornar sem o principal boi do
rebanho.
A ameaça do tio soprava-lhe os ouvidos. Aquela
angústia comia-lhe o ar todo. Que podia fazer? Os
pensamentos corriam-lhe como sombras, mas não
encontrava saída. (p. 42)
Azarias gostaria muito de estudar, ter perspectivas
de uma vida melhor, assim como, inclusive, ter tempo
para se divertir, brincar, o que o tio impedia de ele fazer
porque tinha sempre de trabalhar.
O conto explora, pois, o estado de pobreza de
muitos moçambicanos, bem como reproduz a tirania
de determinados grupos sobre os demais. No conto
isso ocorre mesmo entre parentes. Além disso, a
presença de minas é indicativa das guerras travadas
em Moçambique após o processo de independência do
país, ocorrido nas décadas de 60 e 70 do século XX.
Apesar da suspeita, ela confirma que fizera tudo
quanto mandaram. Zuzé pede ao corvo que investigue
o caso. Mesmo com algum temor da mulher, ele pousa
em seu ombro. O conto tem um tanto de cômico
também, pelo inusitado da cena. O leitor é capaz de
perceber as intenções de Zuzé. Após ouvir o corvo,
ele conclui que Everisto deveria estar passando frio
e que precisaria das suas roupas. Como ela, no ritual
de encomendação, já se desfizera das roupas, Zuzé
propõe que dê roupas do atual noivo, que o Evaristo
certamente não se importaria.
– O Sulemane não pode saber disto. Meu Deus! Se
ele desconfia!
– Fica descansada, dona Candida. Ninguém vai
saber. Só eu e o corvo. (p. 34)
Já era noite e Raul estava preocupado com o
sumiço do sobrinho. Não tanto com o bem-estar dele,
e sim porque achava que o menino estaria vadiando.
Ameaçava-o e rogava pragas contra o menino. Nesse
momento, soube por soldados locais o que ocorrera.
Raul, mesmo alertado para a possibilidade de pisarem
outras minas, decide ir atrás do menino, que, mesmo
não tendo culpa, ainda assim pensava em castigá-lo.
Carolina vai atrás dos dois. A senhora, mais
compreensível, localiza o neto e tenta convencê-lo a se
apresentar, dizendo que Raul não bateria nele.
De fato, Zuzé vestir as roupas entregues por Dona
Cândida. Mais tarde, Sulemane toma conhecimento
que as suas roupas estavam com Zuzé e, procura-o
para ajustar as contas. O encontro resulta em agressão
física e na morte do pássaro por um acidente. Na
discussão, Sulemane cai sobre a ave.
Diante da situação, Azarias faz uma exigência:
que pudesse começar a estudar no ano seguinte.
Aparentemente o tio Raul concorda com o pedido.
Porém, ao sair para ir ao encontro do tio e a da avó,
Azarias aciona uma mina e morre. A descrição é um
tanto poética e sugere uma espécie de libertação da
opressão a que era submetido o menino.
O pequeno pastor saiu da sombra e correu o areal
onde o rio dava passagem. De súbito, deflagrou
um clarão, parecia o meio-dia da noite. [...] Azaria
correu e abraçou-a [ndlati] na viagem da sua
chama. (p. 47)
Zuzé, aproveitando-se da atitude intempestiva
de Sulemane que acaba mantando por acidente a
ave, faz profecias malignas contra. Sulemane, logo
em seguida, começa a passar mal. O fato serviu para
reforçar a crença nos poderes de Zuzé.
A notícia, como um relâmpago, correu a povoação.
Afinal, esse Zuzé! Era mesmo, o gajo. Dono de
bruxezas, realmente. (p. 38)
Em “De como vazou a vida de Ascolino do
Perpétuo Socorro”, conforme indica o título, o conto
tem como personagem principal Ascolino do Perpétuo
Socorro, casado com a dona Epifania e, tinha Vasco João
Joãoquinho como seu empregado e que manobrava a
bicicleta que carregava Ascolino pela cidade. Tratase de um conto em que a comédia prevalece. Outra
característica é a semelhança com a narrativa de
Guimarães Rosa. Ascolino é um personagem um tanto
caricato, seu modo de falar é bem marcado, revelando
uma pretensa nobreza.
Após esses acontecimentos, Zuzé tem de
abandonar o local, porque também previra dificuldades
para todos na região. Crendo nisso e na atitude do
pintor elevado à condição de bruxo, um a um, os
moradores abandonaram suas casas e partiram para
outras terras.
O conto explora, portanto, as crendices populares.
“O dia em que explodiu Mabata-bata” também o
início marcado por crendice. No caso, um boi chamado
Mabata-bata explode quando pastava em um campo
minado. O pastor, o jovem Azarias, acredita que tenha
sido obra de ndlati, a ave do relâmpago, que teria
enviado um raio, mesmo em um dia claro, sem nuvens.
Originário de Goa, morava em Moçambique
e se intitulava “indo-português [...], católico de fé
e costume” (p. 59). Apenas como referência, Goa é
atualmente um dos estados da Índia, mas foi território
português na Ásia entre 1510 e 1961.
Azarias era órfão e morava com um tio, Raul, e
a avó, Carolina. O tio, no entanto, não o tratava bem.
28
Vozes anoitecidas, de Bia Couto
louco do local. Tentaram tirá-lo da margem, mas,
estranhamente, parecia colado à terra. Mesmo os
homens mais fortes da aldeia não conseguiram tirar o
cadáver de onde estava.
Vestia sempre de rigor, fato de linho branco, sapatos
de igual branco, chapéu de idem cor. Cerimonioso,
emendado, Ascolino costurava no discurso os
rendilhados lusitanos da sua admiração. [...]
Qui tém, homem? Essetragô sapúe de nosso. Não
obstante, qui vai pagar?” (p. 59 e 61)
Começou, nesse momento, uma tempestade, o
que muito assustou os moradores, imaginando que
poderia ser o castigo anunciado por Timba. E esta
chuva que consegue mover seu corpo rio abaixo.
Plácido, o rio foi ficando longe, a rir-se da
ignorância dos homens. E num embalo terno
foi lavando Ernesto Timba, corrente abaixo, a
mostrar-lhe os caminhos que ele apenas tinha
aflorado em sonhos. (p. 56)
O drama de Ascolino é que ele era infeliz no
casamento, pois Dona Epifânia não lhe dava atenção
e o carinho que ele desejava. Era uma mulher muito
devota a Deus. Com isso, a diversão de Ascolino
era beber no bar do Meneses, na companhia do seu
empregado João. Porém, para não se misturarem,
Ascolino ficava na parte de frente com outros brancos;
João, por sua vez, ficava na parte traseira com outros
homens negros.
Com esse término, o narrador faz uma oposição
entre a racionalidade que contraria a fantasia, o sonho.
Esse contraste é tipificado entre o pescador e demais
moradores, que o viam como um desequilibrado.
Já a diversão de João era narrar aos amigos
as peripécias de Ascolino, o que ele fazia para ter a
atenção da esposa. Certa feita, destruiu móveis da
casa, quis destruir as imagens dos santos e símbolos
religiosos, para ver se a esposa olhava para ele.
Porém, o efeito foi o contrário. Dona Epifânia resolve
abandonar o marido.
Já em “Afinal, Carlota Gentina não chegou de
voar”, também remete o leitor a Guimarães Rosa, pois
o narrador se dirige a um interlocutor ausente, no
caso um advogado. Na esteira de Riobaldo (de Grande
sertão: veredas), o narrador quer confessar seu crime.
Alertado por Vasco, Ascolino diz que eles têm de
perseguir o caminhão que estava levando a mudança
da esposa. Manda Vasco pegar a bicicleta e irem atrás
dela. Evidente que jamais alcançariam a esposa assim.
Apesar disso, Vasco prepara a bicicleta em partem em
busca dela. Não, sem antes Ascolino dizer:
– Pedal, pedal depresse. Não obstante, temos que
chegar cedo. Hora de cinco hora temos que volta
na cantina de Meneses. (p. 71)
A história, dividida em quatro partes, trata como o
narrador matou sua esposa, os motivos que o levaram a
cometer o crime, bem como sobre seu arrependimento
e necessidade de pagar pelo crime. Seu objetivo é
explicar ao advogado como ocorreu tudo.
O senhor, doutor das leis, me pediu de escrever
a minha história. Aos poucos, um pedaço cada
dia. Isto que eu vou contar o senhor vai usar no
tribunal para me defender. [...] Afinal, estou aqui
na prisão porque me destinei prisioneiro. Nada,
não foi ninguém que queixou. Farto de mim me
denunciei. (p. 75-76)
Em “Os pássaros de Deus”, conta-se a história de
Ernesto Timba, pescador, que também acaba por ser
adotado por um pássaro. Ernesto passou a acreditar
que o pássaro seria um mensageiro de Deus. Isso
porque, enquanto pescava, um pássaro pousou em sua
canoa. Tentou afugentá-lo, mas ele não ia embora.
Nada, o pássaro não se mexia. Foi então que o
pescador suspeitou: aquilo não era um pássaro,
era um sinal de Deus. Esse aviso do céu havia de
matar, para sempre o seu sossego. (p. 53)
O caso tem início quando Bartolomeu, cunhado
do narrador, deixa cair, acidentalmente, em sua esposa
uma lenha em brasa. A mulher emite um grito estranho,
como se fosse de um animal. Na cultura moçambicana
tradicional, o fato indica que ela seria uma nóii, isto é,
uma feiticeira. Alertado por Bartolomeu, o narrador fica
preocupado e imagina ser casado com uma também,
afinal eram irmãs. Por isso, resolve tirar a prova. Joga
em Carlota água fervendo. Porém, para sua surpresa,
ela não gritou, apenas chorou sem muito barulho. Ele,
então, ficou em dúvida, imaginava que ela poderia se
transformar em um animal. Por isso o título do conto.
Ela não virou um pássaro ou coisa parecida. Apenas
sofreu até a morte. Ainda assim, o narrador continuou
a acreditar que ela seria uma nóii.
Conclusão que tirei dos pensamentos: Carlota
Gentina era um pássaro, desses que perdem voz
nos contraventos. (p. 79)
Resolveu levá-lo para sua casa. Não demorou
muito para que surgisse outro pássaro. Era um casal,
que gerou filhotes. Como chegava a desviar comida
destinada à família para alimentar o pássaro, a
comunidade passou a vê-lo como.
Na aldeia, espalhou-se a suspeita: Ernesto Timba
estava era maluco. A própria mulher, depois de
muito ameçar, abandonou o lar, levando com ela
todos os filhos. (p. 55)
Em certo momento, após voltar do trabalho,
Timba encontra o pássaro morto, havia sido queimado
na gaiola. O fato o leva a acreditar que os assassinos
do pássaro seriam amaldiçoados por serem pássaros
divinos.
Por isso, ele sabe que cometeu um crime, mas
não contra os homens, e sim contra a cultura local.
Ele se divide entre o mundo português, com suas leis,
cultura e a cultura moçambicana. Chega a dizer que
“mesmo brancos somos pretos”, ou seja, não porque
houve a colonização que o ser moçambicano está
totalmente morto. Trata-se, portanto, de um conto
Em certo momento, Timba, que tinha muita
tristeza, é encontrado morto às margens do rio onde
costumava pescar. Logo anunciaram a morte do
29
Vozes anoitecidas, de Bia Couto
efeitos, a história de que ele teria tido contado com
esses animais marinhos seria verdadeira. Na verdade,
eram submarinos. João acaba morrendo em uma
tempestade sem avistar as tais baleias.
que revela a preocupação localista de Mia Couto. Em
resumo, o narrador acredita que deva ser julgado pela
justiça tradicional, pois seria julgado considerando a
tradição. Partindo do princípio de que o seu crime foi
por uma justa causa, a desconfiança que teve.
Outra narrativa em que a água é importante é “De
como o velho Jossias foi salvo das águas”. No caso, há
uma enchente, mas Jossias, antigo morador da região,
não queria abandonar o local. Imaginava que morrer
ali seria uma honra. Mas os salva-vidas procuravam
por sobreviventes em uma das enchentes e, mesmo a
contragosto, Jossias acaba sendo salvo.
Desejou que a viagem não tivesse fim como se o
salvassem do tempo e não das águas, como se o
tivessem liberto não da morte mas da sua terrível
e solitária espera. Com olhos de menino, fixou
o escuro engolindo a terra, a tarde anoitecendo
tudo. (p. 113-114)
“Saíde, o Lata de Água” é um interessante conto
por dois motivos: primeiro por jogar com o binômio
fantasia e verdade, invenção e realidade; depois,
porque aborda o machismo sob ótica pós-moderna.
No caso, Saíde se casa com uma mulher, Júlia, que já
havia se relacionado com outros homens. A despeito
de muitos criticarem Saíde, que acreditavam que ele
deveria se casar com uma virgem, insiste no casamento.
Quando souberam que andava com ela,
condenaram-no. Ela estava muito usada. Devia
escolher uma intacta, para ser estreada com seu
corpo. (p. 88)
Em “A menina de futuro torcido”, tem-se uma
história comum a pessoas de países subdesenvolvidos,
em que a pobreza prevalece. A perspectiva de um
futuro fica tolhida pela falta de oportunidade. Com
isso, quando surge uma, por absurda que seja, agarrase com toda a gana. É o que fez Joseldo Bastante. Pai
de doze filhos, em certa feita em que apareceu uma
trupe de contorcionistas na aldeia, decidiu que uma
de suas filhas, por ser magrinha, a Filomeninha, seria
uma artista, seria uma contorcionista.
– A partir desse momento, vais treinas curvar-te,
levar a cabeça até no chão e vice-versa. (p. 128)
Trata-se de um discurso machista recorrente,
a ideia segundo a qual a mulher para se casar deve
permanecer virgem.
Casados, precisavam de filhos, “é um documento
exigido pelos respeitos”. No entanto, Saíde é estéril.
Por isso, pede à mulher que se deite com outro homem
para poder engravidar. Apesar do absurdo da situação,
ela aceita, e passa a dormir com homens diferentes,
até que consegue engravidar. Em um acesso de raiva
e ciúmes, exija saber que seria o verdadeiro pai. Júlia,
porém, se recusa a falar, afirmando apenas que ele era
o pai verdadeiro.
E assim fez. Com base na própria intuição, Joseldo
iniciou treinamentos com a filha, os mais disparatados,
como amarrar a filha para esticá-la ou jogar água
quente de modo a deixá-la mole... Também quase
não alimentava a filha, que começou a ficar doente.
Joseldo, de sua parte, acreditava estava fazendo de
maneira correta o treinamento e não dava ouvidos às
reclamações da filha.
Em princípio, o casamento se assenta, ainda mais
com o nascimento do filho. Assim, para encobrir uma
mentira, teve de inventar outra. Ninguém poderia
saber que ele era incapaz de fazer filhos em uma
mulher. Também não podiam saber que ele havia sido
traído com seu consentimento.
De qualquer modo, passa a ameaçar a esposa,
que decide ir embora às escondidas da cidade.
Para completar o mundo de mentiras, fantasioso,
passa a bater na mulher quase todas as noites. A
vizinhança quer saber o que estava acontecendo e um
representante, Severino, inquire de Saíde o porquê
de tanta violência contra a esposa. Conta então uma
das verdades, que ela havia partido, mas para manter
a aparência de que o casamento ainda continuava,
inventava que estaria batendo nela.
– Eu faço isto não sei porquê. É para vocês
pensarem que ela ainda está. Ninguém pode
saber que fui abandonado. Sempre que bato não
é ninguém que está por baixo desse barulho.
Vocês todos pensam que ela não si porque sofre
da vergonha dos vizinhos. Enquanto não... (p. 92)
Até que resolve partir com Filomena para a
cidade e mostrá-la ao empresário de circo, que a vê,
adverte o pai de que a menina parecia doente e ainda
diz que contorcionismo já era. Nem queria mais ver
esse número.
– A única coisa que me interessa agora esses tipos
com dentes de aço. Umas dessas dentaduras que
vocês às vezes têm, capazes de roer madeira e
mastigar pregos. (p. 131)
De volta à aldeia, Joseldo imaginou que a filha
parecia ter esses tais dentes fortes... Porém, no mesmo
instante em que olhou para ela, esperando uma
resposta para a nova empreitada, a menina tombou
desfalecida nos braços do pai.
Em respeito ao amigo, Severino decide manter o
segredo.
“A história dos aparecidos” é o conto mais
denso do livro. Retrata o desaparecimento de alguns
cidadãos, cuja morte foi operada pelo Estado, mas
oficialmente teriam se afogado ou morrido de alguma
doença. Moçambique viveu sob o regime português
até 1975. Depois disso houve guerra civil em busca
da consolidação do poder por grupos ideológicos
diferentes, ou sob inspiração marxista ou sob inspiração
Nessa mesma linha de jogo entre fantasia e
realidade, está “As baleias de Quissico”, me que o
mágico parece mais plausível que a própria realidade.
É a história de Bento João Mussavele, que acreditava
que um dia encontraria baleias na praia. Isso não
acontece de verdade, mesmo assim para todos os
30
Vozes anoitecidas, de Bia Couto
mais liberalista. Em momentos assim, é comum que
haja uma perseguição aos direitos civis, e os cidadãos
fiquem sem a devida liberdade de expressão. No
caso do conto, a ideia é falar sobre a morte civil. Se
o indivíduo está vivo, oficialmente está morto. E é
contra isso que devem lutar alguns personagens, Luís
e Aníbal.
– Como não estamos? Vocês riscam a pessoa assim
qualquer maneira?
– Mas vocês morreram, nem sei como que estão
aqui.
– Morremos como? Não acredita que estamos
vivos?
– Talvez, estou confuso. Mas este assunto de
vivo não-vivo é melhor falarmos com os outros
camaradas. (p. 118-119)
A história tem como ponto central o assassinato
de uma chinesa, chamada Mississe. Em princípio,
o autor do crime seria Panhoca, referido no título do
conto.
A narrativa vai sendo construída aos poucos.
Primeiros sabemos quem é Mississe, uma viúva
chinesa, que morava em Muchatazina, Moçambique
e que, pelo exotismo, era assediada por muitos
portugueses e também moçambicanos. Mas ela não
demonstrava interesse por ninguém.
A viúva embrulhava-se nos azedos, enviuvando
sempre mais. Os portugueses, ricos até, saíam de
ombros cabisbaixos. (p. 138)
Patanhoca, que significa na língua local aquele
que pega cobra, era um domador de serpentes. Embora
tivesse essa habilidade, era, segundo o narrador, um
coitado, alguém sem posses materiais ou possuidor
de vasta cultura. O narrador não sabe muito sobre sua
vida pregressa. Sabe apenas que ele lida com cobras,
que as doma e que tira o couro delas. Conhecendo
a história da viúva, decidiu que a protegeria dos
assediadores, dos que porventura quisessem lhe fazer
mal. Por isso, soltava suas cobras no entorno da casa
da chinesa, impedindo que ela saísse ou que alguém
se aproximasse durante a noite. “Tudo isso, todo esse
serviço de guarda, o Patanhoca fazia sem pedir a
troca”. (p. 140)
Toda a aldeia ficou surpresa. Não sabiam o que
fazer, como agir. Depreende-se daí a importância maior
que se dá à burocracia que a aspectos reais e efetivos
do ser humano, como estar vivo de fato e necessitar de
suprimentos básicos para a sobrevivência.
A resolução vem de uma comissão governamental,
que conclui estarem de fatos os dois vivos, mas que
deveriam estar mais atentos para que isso não viesse
a se repetir.
– Mas os dois aparecidos é bom serem avisados
que não devem repetir essa saída da aldeia ou
da vida ou seja lá de onde. Aplicamos a política
da clemência, mas não iremos permitir a próxima
vez. (p. 123)
Após esse acontecimento, quatro noites se
passaram. Na primeira, a chinesa convidou o domador
de cobras para que entrasse em sua casa. Ele não
entendeu o motivo ou se fez de inocente. Ela o chamou
de João, o que causou mais descontentamento ainda,
pois preferia ser chamado por seu apelido. É provável
que quisesse esquecer o passado.
– Sou Patanhoca, eu mesmo. Não é só nome que
fui dado. Tenho focinho, não é cara de pessoa. (p.
142)
Apesar de algum non sense, a decisão tem um
tanto de irônico, e para isso que o narrador chama
a atenção, para o absurdo da sociedade totalmente
controlada por um poder estatal, que retira dos
indivíduos a autonomia até mesmo para ser, para
existir.
Mia Couto escreve sobre diversas temáticas,
desde aquelas mais cômicas, até essas mais trágicas,
sempre com o intuito de retratar Moçambique em toda
a sua riqueza cultural. Como país colonizado, caso do
Brasil também, há sempre um choque cultural, entre a
tradição local e a trazida pelos colonizadores. Às vezes,
dessa mistura, surge uma cultura mestiça; às vezes,
surge também o conflito, o embate entre perspectivas.
“Patanhoca, o cobreiro apaixonado” é o último
conto do livro. Dividido em seis partes, tematiza
assuntos diversos: da eutanásia à xenofobia.
Na segunda noite, ela o espera ainda mais
bonita e ele chega mais cedo. Apesar de ela mostrar
verdadeiro interesse por ele, Patanhoca quer manterse distante. Parece que são mundos que colidem e
ele quer preservar o que é, sem misturar-se com uma
mulher de outro país, outra cultura. Mesmo assim,
aproximam-se sem ter algo efetivo. Por isso mesmo,
nessa segunda noite, têm uma primeira briga, motivado
por um pretenso ciúmes. “A china Mississe roubara-lhe
o fogo que a gente acende nos outros”. (p. 145)
No início, há uma pequena reflexão sobre o
narrado. Se aquilo que se narra é a verdade, ou apenas
um modo de olhar para a verdade. Se é possível
apreender o todo ou apenas parte dele. Em rigor, a
literatura tem como um de seus objetivos explicar o
real com base na fantasia, na imaginação. E o todo
depende de várias partes: do olhar de quem escreve,
de quem conta, ao olhar de quem lê.
Não quero mostrar verdade, disse nunca soube. Se
invento é culpa da vida. A verdade, afinal, é filha
mulata de uma pergunta mentirosa. (p. 135)
A terceira noite é marcada pelo conflito dele,
quer esquecê-la, não quer ser envolver com essa
mulher, isso significaria mudar sua vida, seu estilo de
vida que havia adotado, inclusive com outro nome, não
mais o nome de batismo, um nome cristão. Tem dúvida
também se ela ainda o iria querer por conta da briga da
segunda noite. Teve então um sonho.
Ouviu as visões com atenção. Diziam o seguinte:
ela estava arrependida, perdoara. Ele seria aceite,
outra vez João, outra vez nome e cara. Outra vez
gostado. (p. 147)
31
Vozes anoitecidas, de Bia Couto
E, de acordo com que sonhara, ela o esperava na
outra noite, ainda mais bonita. Ele se sentiu confiante,
sentiu-se não mais o Patanhoca, e sim o João, como
ela preferia chamá-lo. Ela o chamou para beberem,
deixarem-se levar pelo desejo, pelas sensações. Ele
fica confuso com isso. “Agora, sou João ou Patanhoca?”
Ela então lhe pede um favor, queria que buscasse um
remédio, um mitombo. Não fica claro o que seria isso.
Ele próprio fica em dúvida qual seria a razão do pedido:
“talvez era uma armadilha, aldrabice de esperanças”.
Seria um remédio devido a uma picada de cobras?
3.
(UEL) Algumas expressões idiomáticas da língua
portuguesa são recriadas em O outro pé da
sereia, de Mia Couto, como ocorre no seguinte
fragmento:
(F)“O navio é uma ilha habitada por homens e
seus fantasmas”.
(G)“Quem tem insônia é o peixe que só adormece
na frigideira”.
(H)“É que isto, em Vila Longe, vai de animal a
pior”.
Na verdade, o final, um tanto ambíguo, revela
a real intenção da chinesa: ela queria se matar, queria
o tal remédio, que na verdade seria o veneno da cobra
para poder se matar. Por esse motivo, João passou
como o assassino da viúva, mas isso fica no plano da
ambiguidade, conforme anunciara desde o início o
narrador.
(I) “A melhor maneira de mentir é ficar calado”.
(J) “As mãos eram um incêndio”.
4. Leia o seguinte fragmento do conto “Afinal,
Carlota Gentina não chegou de voar” e analise as
afirmativas a seguir:
Com esse Vozes anoitecidas, Mia Couto revela
um mundo que ficaria esquecido sem o discurso
literário, quer, pois, revelar a cultura moçambicana,
os contrastes dessa cultura que tenta libertar-se das
amarras coloniais, mas reconhece a importância dessa
mistura para ser o que é.
EXERCÍCIOS
O senhor, doutor das leis, me pediu de escrever
a minha história. Aos poucos, um pedaço cada
dia. Isto que eu vou contar o senhor vai usar no
tribunal para me defender. [...] Afinal, estou aqui
na prisão porque me destinei prisioneiro. Nada,
não foi ninguém que queixou. Farto de mim me
denunciei. (p. 75-76)
I. O marido, nesse conto, afirma ter matado sua
esposa por acreditar que ela era uma bruxa.
Obs.: Como não há questões de vestibulares sobre Vozes anoitecidas, colocamos algumas outras sobre livros
diversos de Mia Couto.
II. Ele prontamente se entrega à polícia após o
acontecido.
III. Supôs que a mulher fosse uma bruxa porque
o cunhado narrador havia lhe dito que desconfiava da
esposa, que era irmã de Carlota.
1. Conto em que se tem a história de um casal de
idosos, e o marido decide fazer uma cova para
enterrar sua esposa.
(A)Patanhoca, o cobreiro apaixonado
(B)A menina de futuro torcido
(C)A história dos aparecidos
(D)Saíde, o Lata de Água
(E)A fogueira
Está correto o que se afirma em:
(A)Apenas I e III
(B)Apenas I e II
(C)Apenas II
(D)Apenas III
(E)Em I, II e III
2. (UEL) A crítica literária tem aproximado
o moçambicano Mia Couto do brasileiro
Guimarães Rosa, em particular pelo fato de
ambos empregarem neologismos em suas obras.
No trecho “as mãos calosas, de enxadachim”,
extraído do conto “Fatalidade”, de autoria do
autor brasileiro, o neologismo “enxadachim” é
construído pelo mesmo processo de formação de
palavras utilizado pelo autor moçambicano para a
criação de
(A)vitupérios.
(B)bebericava.
(C)tamanhoso.
(D)mudançarinos.
(E)malfadado.
5.
Vozes anoitecidas, de Mia Couto, é um:
(A)romance que trata da vida dos imigrantes
africanos que decidem ir até Portugal.
(B)livro de contos, que tematizam diversos
aspectos da cultura moçambicana.
(C)livro de crônicas, que falam sobre a vide em
Portugal e também em Moçambique.
(D)romance em que se verifica a preocupação
do autor em resgatar a cultura oral de
Moçambique.
(E)livro de contos, que fazem uma inter-relação
entre Brasil, Portugal e Moçambique.
32
Vozes anoitecidas, de Bia Couto
7.
6.((PUC_MG) Fragmento do ensaio “Língua que
não sabíamos que sabíamos”, de Mia Couto.
Num conto que nunca cheguei a publicar acontece
o seguinte: uma mulher, em fase terminal de
doença, pede ao marido que lhe conte uma
história para apaziguar as insuportáveis dores.
Mal ele inicia a narração, ela o faz parar:
— Não, assim não. Eu quero que me fale numa
língua desconhecida.
— Desconhecida? — pergunta ele.
— Uma língua que não exista. Que eu preciso
tanto de não compreender nada!
O marido se interroga: como se pode saber falar
uma língua que não existe? Começa por balbuciar
umas palavras estranhas e sente-se ridículo como
se a si mesmo desse provas da incapacidade de
ser humano.
Aos poucos, porém, vai ganhando mais à-vontade
nesse idioma sem regra. E ele já não sabe se
fala, se canta, se reza. Quando se detém, repara
que a mulher está adormecida, e mora em seu
rosto o mais tranquilo sorriso. Mais tarde, ela
lhe confessa: aqueles murmúrios lhe trouxeram
lembranças de antes de ter memória. E lhe deram
o conforto desse mesmo sono que nos liga ao que
havia antes de estarmos vivos. [...]
Moçambique é um extenso país, tão extenso quanto
recente. Existem mais de 25 línguas distintas.
Desde o ano da Independência, alcançada em
1975, o português é a língua oficial. Há trinta
anos apenas, uma minoria absoluta falava essa
língua ironicamente tomada de empréstimo do
colonizador para negar o passado colonial. Há
trinta anos, quase nenhum moçambicano tinha o
português como língua materna. Agora, mais de
12% dos moçambicanos têm o português como
seu primeiro idioma. E a grande maioria entende
e fala português inculcando na norma portuguesa
as marcas das culturas de raiz africana.
(A)I, apenas.
(B)II, apenas.
(C)I e III, apenas.
(D)II e III, apenas.
(E)I, II e III.
In: COUTO, Mia. E se Obama fosse africano? e outras
interinvenções. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 11-18.
(PUC-RS) Leia o trecho extraído do romance Terra
Sonâmbula, de Mia Couto, e responda à questão.
De imediato, centenas de pessoas se lançaram em
todo tipo de embarcações, das pequenas às mais
mínimas, para assaltarem o navio malfragado,
afim de se servirem das ditas xicalamidades. [...]
Desde então, a situação só piorou pois, consoante
o secretário do administrador, a população não
se comporta civilmente na presença da fome.
Muita gente insistia agora em voltar ao tal navio
pois lá sobrava comida que daria para salvar
filhos, mães e uma africanidade de parentes. [...]
Assame foi preso, sujado por mil bocas. Na prisão
lhe bateram, chambocado nas costas até que as
pernas se exilaram daquele sofrimento que lhe
era infligido. Perdeu o sentimento da cintura para
baixo. Assane passou as palmas das mãos pelas
desempregadas coxas. Tinha sido apenas há dias
que lhe abriram a porta da prisão. Ainda nem
sabia bem se arrastar de mão pelo chão. Por isso
as sacudia, limpando essas mãos que ele sempre
aplicara nos documentos.
Com base no trecho e em seu contexto, leia as
seguintes afirmativas.
I.
As obras de Mia Couto exploram, de modo
geral, o mundo simbólico moçambicano, a
guerra e as tensas relações entre o africano e o
europeu.
II.O trabalho com a linguagem literária torna-se
evidente a partir da criação de novos vocábulos
e da utilização de outros com diferentes
sentidos.
III. Para narrar a violência sofrida pelo
personagem, o autor vale-se de eufemismos
como “sujado por mil bocas”, “as pernas se
exilaram daquele sofrimento”, “perdeu o
sentimento da cintura”.
A(s) afirmativa(s) correta(s) é/são
A colonização portuguesa na África perdurou
até o fim do século XX, com as guerras de
independência. As tensões políticas e sociais
repercutiram e ainda repercutem fortemente na
produção literária desses países, especialmente
nas literaturas angolana e moçambicana.
Levando-se em consideração o contexto histórico
do período pós-colonial, é possível verificar que
para Mia Couto, em seu ensaio, a colonização
portuguesa é vista como:
(F)autoritária e impositiva, oposta à autonomia
das nações dominadas.
(G)vantajosa para a economia e para a
comunicação entre os povos.
(H)importante para as tradições locais e para a
língua das colônias.
(I) repressora dos direitos à liberdade de
pensamento e expressão.
gABARITO
1.E 2.D 3.C 4.A 5.B 6.C 7.E
33
Anotações
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Uma menina está perdida no seu século à procura do pai
de Gonçalo M. Tavares
Gonçalo M. Tavares (1970) nasceu em Luanda,
Angola; apesar disso, Tavares pode ser considerado
um escritor português uma vez que vive em Portugal
desde os dois anos de idade.
Publicou seu primeiro livro em 2001, Livro da
dança. Em quinze anos de carreira, publicou 25 livros
dos mais diversos gêneros literários: poesia, contos,
romances e crônicas.
Uma menina está perdida no seu século à
procura do pai foi publicado originalmente em 2014.
O enredo se passa algumas décadas após a Segunda
Guerra Mundial, em uma Europa ainda devastada
psicologicamente, sobretudo em Berlim, para onde
viajam Marius e Hanna, personagens principais do
livro.
O livro é dividido em quinze partes, em que se
verifica uma progressão narrativa tradicional, ou seja,
o livro é narrado ab initio. Mas o que significaria
estar perdida no século, conforme indica o título?
A resposta não é dada prontamente pelo enredo.
Uma das explicações é que o livro tem um tanto de
esquizofrênico, no sentido de que o todo não se
completa, embora ele esteja presente. Assim, estar
perdida no século é sugestivo da condição de Hanna,
uma jovem de 14 anos com síndrome de Down.
A esquizofrenia está presente na construção
da narrativa, pois ora o livro é narrado em terceira
pessoa, ora, em primeira pessoa, tendo como narrador
o próprio Marius. Não se trata de uma novidade, mas
sem dúvida que causa uma estranheza no leitor; ao que
parece, porém, o objetivo é fazer o leitor construir uma
outra visão daquilo que parecia solidificado. Trata-se
de uma estratégia, o de quebrar expectativas, presente
nas atitudes de diversos personagens do livro.
A história tem início quando Marius identifica na
rua essa jovem com expressão diferenciada e atitudes
incomuns também. Percebe logo de início que é uma
menina com alguma deficiência. Conversando com
ela, observa as atitudes incomuns, mas, mesmo assim,
fica sabendo que ela está sozinha e em busca do pai,
sem que tenha maiores informações. Marius decide
então ajudá-la. Não fica claro o porquê dessa decisão
de Marius; supõe-se que seja pelo fato de ele ser um
perdido também, no sentido de não ter uma vida bem
definida, não ter objetivos específicos. Apenas vive o dia
a dia. Ao que parece, ajudando-a, ela o ajuda também
a se encontrar. Ao que parece não tinha uma forte
razão para viver, não tinha pessoas que dependessem
dele. Desse modo, sua vida também não tinha grande
significado e viu em Hanna a possibilidade de fazer
algo, de preencher o vazio, o que lhe permitiu também
entrar em contato com diferentes pessoas em situação
semelhante à da dele.
Hanna carregava uma série de fichas para poder
se comunicar com maior facilidade. Tais fichas, de
certa forma, mimetiza a divisão do livro, em que cada
uma das quinze partes ou capítulos conta sobre um
personagem em particular. Não há grande interseção
entre os personagens salvo em momentos raros. São
episódios em torno de personagens secundárias que
elevam a um patamar superior uma trama um tanto
banal, comum. Os encontros que Marius e Hanna têm
com essas personagens (Hanna como espectadora)
se constituem no verdadeiro enredo do livro, já que a
busca pelo pai da menina é apenas a desculpa que os
faz viajar de Portugal até Berlim.
As poucas referências indicariam que o pai da
menina estaria em Berlim. Empreendem então uma
viagem de trem até a Alemanha. Berlim, cidade que
ainda tinha vários resquícios oriundos da Guerra,
além dos traumas que certamente os indivíduos
ainda carregavam. Conhecemos, pois, vários nuances
desses traumas pelo contato que têm os dois com os
mais diversos personagens. Essa viagem, mais do
que servir para encontrar o possível pai de Hanna,
se presta a outros dois pontos: uma compreensão
mais ampla da trissomia 21 (síndrome de Down) e
uma compreensão sobre como pessoas afetadas pela
Guerra, especialmente judeus, procuraram reconstruir
a vida e dar novo sentido a ela.
De início, ainda em Lisboa, conhecem um
fotógrafo de animais, que ao final da narrativa
retornará. Trata-se de Josef Berman. Seu projeto era
fotografar animais como se fossem pessoas. Sempre
tirava três fotos: de frente, do perfil direito e do perfil
esquerdo. “Sabe quantos animais fotografei? Não vai
acreditar... mais de sete mil”. Berman conta então que
os animais tinham uma sensibilidade diferente, eram
capazes de prever situações de perigo mais rápido que
o ser humano e cita uma série de episódios que servem
de exemplo dessa maior sensibilidade que teriam
os animais para os perigos, como os ratos que, em
Londres, sentiram antes que haveria um bombardeio
na capital da Inglaterra. Evidente, não que os ratos
pudessem nomear algo assim, mas perceberam que
algo ameaçava a vida deles.
O segundo maior interesse do fotógrafo era
fotografar pessoas com trissomia 21. Por isso,
demonstrou interesse por Hanna. Marius, por sua vez,
imaginou que o fotógrafo poderia lhe fazer mal e não
permitiu que a fotografasse. O fato serviu para Marius,
observando as fotos que Josef lhe mostrou, comparar os
rostos de diversas pessoas com essa condição genética.
Rostos e mais rostos sorridentes, aceitando o
que a vida lhes havia dado, aceitando tudo,
aceitando certamente o que aquele fotógrafo
lhes havia pedido, aceitando, sem perceber [...],
manifestando-se incapazes de distinguir os dois
lados do mundo. (p. 25)
No trem para Berlim, conhecem Fried Stamm,
que decidira, em conjunto com outros quatro irmãos,
espalhar cartazes por toda a Europa, com mensagens
variadas. Era sua contribuição para ajudar aos outros
a se reconstruir. Era seu meio de dar sentido à própria
vida.
35
Uma menina está perdida no seu século à procura do pai, de Gonçalo M. Tavares
Era, pois, uma forma de resistência. Não pelo
esquecimento de práticas, e sim pela confirmação de
que aconteceu para que não ocorra mais. Um meio de
afirmar um fato e evitar que ocorra novamente pela
ocultamento da verdade.
No outro dia ao episódio da música, Marius e
Hanna conhecem o músico do quarto. Era Terezin, um
senhor nomeado assim pelo próprio Marius, por morar
no quarto que tinha esse nome em referência a um
campo de concentração na antiga Tchecoslováquia.
Era um dos hóspedes mais antigos do hotel. Estava ali
havia doze anos, e virara morador efetivo.
Além de tocar música, tinha uma estranha
estratégia para poder sobreviver às adversidades e à
condição de judeu perseguido. Dizia que um indivíduo
não poderia ter objetos e utensílios que pesassem mais
do que ele próprio. No caso, Terezin tinha 63 kg e seus
objetos pessoais pesavam apenas 26kg.
Terezin revela então a Marius algo que serve
igualmente para explicar o título do livro. A menina
estar perdida no seu século é indicativo de que ela
também estaria construindo a sua história, uma
história com os componentes de quem tem síndrome de
Down, e, por isso mesmo, viveria em mundo paralelo.
Evidente que existe uma ligação com os referentes de
todos, mas também é evidente que o modo de olhar, o
modo de interpretar os fatos tende a ser diferente das
pessoas sem essa deficiência.
Para se compreender melhor essa relação entre
o título e a história de Hanna, ficamos sabendo
pelo discurso de Terezin que existiam sete judeus
responsáveis por manter a história do século XX
memorizada, isso porque, segundo Terezin:
[...] os judeus não confiavam em documentos,
em papéis, em fotografias, em suma, em nenhum
registro concreto, material, palpável. (p. 185)
A explicação é que a História, entenda-se o
registro histórico, poderia ser modificada de acordo
com determinados interesses. Por isso, cada um desses
sete judeus memorizara todo o século XX e depois
passaria a técnica a outros de modo a manter viva
memória judaica.
Havia, espalhados pelo mundo, sete homens,
sete judeus, que tinham memorizado, sem
qualquer falha, toda a História do século XX.
Com factos, disse Terezin, com datas concretas,
tentando eliminar qualquer interpretação ou
julgamento. Esses sete homens – explicou Terezin
– memorizaram o mesmo texto; são homensmemória cuja única função – além de tentarem
continuar vivos – é a de não esquecer um único
dado, uma única linha. Como é evidente, o que
memorizaram tem a ver, directa ou indirectamente,
com a nossa história particular, a dos Judeus.
(p. 186)
Narra então alguns acontecimentos históricos
significativos, como o pacto de não agressão entre
Alemanha e URSS ou a invasão alemã a Polônia. Não
fica claro se ele seria ou não um dos Séculos, fato é que
ele explica bem os motivos.
Não se trata de provocar uma revolução, não
gostamos dessa palavra, trata-se em primeiro lugar
de um projecto de acumulação: transmitir uma
inquietação progressiva, mês a mês crescendo,
quase sem se dar por isso. Pela repetição, por não
deixar que se instale qualquer tipo de trégua ou
suspensão, por, enfim, não desistimos... provocar
uma circulação de mensagens insatisfeitas,
de informação indignada, repetir pequenas
pancadas para, no fim, demolir, eis em parte a
nossa estratégia. (p. 33)
Em Berlim, hospedam-se em um hotel de um casal
de judeus, Moebius e Raffaela. O sentido dado à vida
por esse casal tem suas estranhezas também. No caso,
o hotel fora construído de modo a lembrar a disposição
dos principais campos de concentração nazistas, como
Dachau, Auschwitz, entre outros. Ficaram hospedados
exatamente no quarto nomeado como Auschwitz, por
estranho que fosse.
Em dado momento, em que retornam de uma
busca pela cidade, já noite, os corredores estavam
escuros. Começaram a ouvir uma música, remetendo
o leitor ao fato de que nos campos de concentração, os
que eram enviados para as câmaras de gás ou outro
meio de extermínio eram acalmados por músicas.
Marius também sente certo alívio ouvindo a música,
depois passa a ter certo medo devido à escuridão, o
que o levou a demorar a encontrar o próprio quarto. Há
certa similitude com os campos nazistas nesse sentido.
Uma mistura de sentimentos contraditórios, entre a
calma e o desespero pela morte iminente.
Outra referência aos campos de concentração é a
avareza de comida que havia no hotel. Marius assim
descreve a situação:
Raffaela só trazia mais alimentos quando já não
havia nada: só trazia pão – três, quatro, de cada
vez, para uns sete hóspedes presentes na sala de
refeições – quando o cesto estava completamente
vazio. (p. 126)
Alguns hóspedes simplesmente saiam do
local antes de comerem o suficiente. Mesmo assim,
habituaram-se a esse regime. Certamente, nos campos
isso era até mais comum, posto que objetivo era
economizar comida e fazer os prisioneiros passarem
fome. No caso do hotel, a prática passava pela
economia, mas, talvez, poderia também sugerir um
simulacro do que teria sido a vida no passado recente.
Na Alemanha nazista, os judeus tinham que
andar com uma estrela costurada em suas roupas de
modo a serem facilmente identificados. Nos campos,
além disso, ainda era tatuada em seu braço uma
numeração. Moebius revela a Marius um segredo.
Levanta a camisa, vira-se de costas, onde se podia
ler, em letras bem pequenas e em diversas línguas,
a palavra judeu tatuada. Passou a tatuar a palavra
quando judeus começaram a ser mortos.
A princípio começara por uma espécie de orgulho
de raça, como o próprio Moebius disse. Nas
semanas em que muitos tentavam ao máximo
disfarçar a sua origem judia, Moebius, pelo
contrário, exibia-a em todos os momentos e sítios
possíveis, e foi ele próprio que, por esses dias,
pediu à mulher que lhe tatuasse pela primeira vez
a palavra JUDEU. (p. 137)
36
Uma menina está perdida no seu século à procura do pai, de Gonçalo M. Tavares
E o sentido estava exatamente no fato de
prosseguir a tradição familiar, mas também de colaborar
para fazer sentido à própria vida, já que a vida ao
redor estava em ruínas, ele trabalhava com objetos do
passado, mas a vida presente não tinha lugar. Assim,
seguir aquela tradição era manter-se ocupado, manter
algo que o ligaria a outros seres, com a finalidade de
registrar o passado, a história humana.
A estranha numeração remetia a acontecimentos
importantes, como a data do assassinato do herdeiro
do Império Austro-Húngaro, o arquiduque Franz
Ferdinand, em 28 de junho de 1914, dando origem
à Primeira Guerra Mundial, ou a chamada noite dos
cristais, quando sinagogas foram incendiadas na
Alemanha, em 9 de novembro de 1938.
– Vê, meu caro? Tudo em ordem. Não se trata de
fugir, de não querer saber. Trata-se de manter uma
direção. Uma direção individual. E só por isso
resistimos. E por isso estou aqui. (p. 110)
No dia em que os dois tiveram essa conversa,
Hanna ficara no hotel, sob os cuidados de Raffaela.
Para surpresa de Marius, a senhora disse-lhe que um
fotógrafo estivera ali para fotografar a menina, mas
não permitiram. Marius percebeu logo tratar-se de
Josef Berman. Não gostou nada da ideia novamente e
agradeceu pela iniciativa de Raffaela.
Outro personagem que surge nesse momento é
um artista chamado Agam Josh. Ele tinha um defeito
nos olhos. No caso eram vermelhos, o que o impedia
de ver bem. Porém, com o olho esquerdo era capaz de
enxergar com grande nitidez detalhes minúsculos. A
característica lhe possibilitava produzir sua arte que
consistia exatamente em escrever frases minúsculas,
que, à distância, pareciam manchas ou algum desenho
qualquer.
Passa a mostrar a Marius e Hanna uma de suas
obras. À primeira vista, era apenas um traço contínuo
___________. Mas, depois, com o auxílio de um
microscópio, Marius conseguiu ler a seguinte frase:
“Não dirigir a palavra a nosso pó” (p. 152)
Em seguida, viram um ponto .
Novamente, com o auxílio do microscópio,
percebeu tratar-se de um jardim japonês desenhado
naquele pequeno ponto.
Agam trabalhara para Josef Berman uma vez e
passa a contar uma história sobre ele, nada simpática.
Agam não tem provas sobre o que afirma e ainda faz
um alerta, dizendo que “talvez parte disto sejam já
histórias que as pessoas contam, que inventam. Não
sei”. Para Agam, Berman manteria uma espécie de
campo de concentração para animais, especialmente
cachorros, onde faria experiências as mais variadas
para poder tirar fotos variadas dos cães, expressando
emoções diversas.
A narrativa, fantasiosa ou verdadeira, leva Marius
a uma reação inesperada. Já pensavam em ir embora,
em deixar Berlim. A procura pelo pai de Hanna era
infrutífera, e, a rigor, nem ocorrera efetivamente.
E ambos estavam no café da estação, quando viram
entrar Josef Berman. Marius não pensa duas vezes.
Vai de encontro a ele, puxa-o no canto e, sem maiores
explicações, soca-o repetidas vezes, até cansar-se.
Em seguida, pergunta se Marius gostaria de
conhecer um desses homens, chamado Século XX, por
alusão a sua atividade. A ideia era ser um arquivo vivo,
mas não se expor publicamente. Terezin cita o caso de
um que moraria em Moscou. Como parece ter ficado
louco, passou a proclamar os acontecimentos do século
a todos em praça pública. Isso seria ruim para os planos
do projeto, por isso certamente seria eliminado.
Um dia após chegar a Berlim, Marius e Hanna
foram até o centro da cidade, que ainda apresentava
diversas ruínas, levar, em um antiquário, uma peça
que Hanna trazia consigo e que poderia indicar sua
origem e, em consequência, ajudar na localização de
seu pai.
Marius fica preocupado com Hanna, que poderia
se impressionar com o local, mas, a rigor é ele quem
se sente mal, pois para chegar ao Antiquário Vitrius,
tinham que subir uma alta escada, o que acabou
lhe causando vertigem. Simbolicamente, a subida
e a vertigem indicam um caminho sem volta para
ele. Agora, não poderia mais “descer”, não poderia
simplesmente abandonar Hanna à própria sorte em
Berlim. Outro ponto interessante é que Vitrius, o dono
do local, tem um porte físico, alto e com uma pequena
barba, que faz Marius lembrar-se imediatamente da
figura de Dom Quixote de la Mancha, o personagem
de Miguel de Cervantes, conhecido por viver em um
mundo à parte da realidade. Esse jogo entre ficção
e realidade é uma condição sine qua non para a
sobrevivência dos personagens do livro. Embora não
se isolem do mundo real, todos apresentam um escape
para algo que tem um tanto de fantasioso ou estranho.
É o que se pode perceber em todos os personagens.
Hanna é claramente a que vive em um mundo
particular, os demais têm de construir algo sólido para
que possam sobreviver ao tempo.
Vitrius, por exemplo, além de trabalhar
normalmente como antiquarista, na empresa que fora
do avô e passara para o pai, também tem um meio de
conferir sentido à própria vida.
Nem sempre abre a loja, e nem tem preocupações
com o sucesso do empreendimento. Também não tem
horário muito definido para abrir ou fechar a loja.
Porém, mantém uma prática por tradição familiar.
Desde o seu bisavô, passando pelo avô e depois pelo
pai, era levado a montar dossiês, tomando por base
números, relacionados a determinados momentos
históricos.
Folheei um maço enorme de folhas. Ali estava:
157668, 157670, 157672, 157674, 157676, 157678,
157680 [...]
– O que é isto? – perguntei.
– Em parte é a minha salvação – disse Vitrius
a rir-se -, mas se quiser pode considerá-lo um
passatempo.
[...]
O meu pai retomou a série no mesmo dia em que
o meu avô morreu, explicou.
Depois houve um silêncio e Vitrius continuou: eu
só retomei oito dias depois da morte do meu pai.
[...] Foi mesmo a tentativa de encontrar um sentido
para isso. (p. 103-105)
37
Uma menina está perdida no seu século à procura do pai, de Gonçalo M. Tavares
concreta. É o fim das buscas pelo pai de Hanna,
algo que efetivamente nem ocorreu. Ao saírem do
antiquário, deparam-se com uma multidão que parecia
fazer um protesto, algo assim.
A princípio, Marius sente medo, especialmente
por Hanna. Mas conforme caminham ao encontro da
passeata, Marius se sente parte integrante daquele
todo, sente-se bem, sente-se partícipe de algo, não
de um projeto individual ou particular, e sim de uma
coletividade que luta por algo maior, luta pela melhoria
das condições sociais, ainda que não fique claro quais
seriam.
[...] ele sentiu pela primeira vez que podia fazer
o que quisesse com as mãos, levantar uma ou
as duas, gritar, fechar o punho com raiva como
faziam muitos ao seu lado, podia fazer tudo, a
partir dali, mas agora o que era preciso era gritar,
e não parar, em situação, não parar. (p. 235)
Por fim, em momentos diferentes da narrativa,
Marius relata dois pesadelos que teve. No primeiro,
ele observa, como testemunha ocular, a movimentação
de um grupo de pessoas com síndrome de Down,
cavando um buraco, de onde surge uma igreja e onde,
depois, são todos enterrados, até que Marius acorde.
No segundo pesadelo, o mesmo grupo de adolescentes
com trissomia 21 estão no poço novamente, mas agora
cercados de muitos livros, escritos em diversos idiomas.
Conforme o pesadelo avança, ele se vê em meio aquele
grupo e percebe que todos são iguais, todos têm a
mesma condição genética. Ele mesmo passa a ter o
rosto arredondado: “mas eu não era como eles porque
poderia pensar nestas coisas todas em que agora estou
a pensar” (p. 182)
Os pesadelos, ao que parece, são indicativos de
um dos projetos do livro, o fazer pensar diferente, o fazer
ver a vida com outros olhos, de outro modo e aceitar
o diferente como a um igual, sem discriminações.
O pesadelo se transforma então em sonho, em algo
projetável. Num mundo de iguais, não há porque
haver discriminação, ou a submissão pela força.
Gonçalo Tavares procura, portanto, reconstruir
o passado imediato, cujas feridas ainda estão abertas,
de modo a rememorar o horror vivido, para manter
a consciencialização sobre esse período nefasto da
humanidade. Não por acaso, estão os campos de
concentração representados no hotel, ou as datas
significativas mantidas em código pelo antiquarista,
ou ainda a tatuagem no corpo de Moebius, ou ainda os
sete judeus responsáveis pela memorização de fatos,
ou o trabalho de Stamm e seus irmãos, sempre com o
objetivo último de manter a consciência alerta contra
situações semelhantes. São gestos que, em separado,
formam um rito de dignificação da comunidade judia,
um registro de modo a perpetuar pela linguagem a
dor, o sofrimento, a perseguição, a guerra. O objetivo
último é a negação do esquecimento, um trauma que
precisa ser revivido na memória para não ser vivido
novamente no plano físico.
A passeata no final é indicativa da luta, do
caminhar juntos, da integração entre projetos em
comum. Quanto ao pai de Hanna revelou-se antes uma
desculpa que um projeto real.
É um desabafo violento às investidas contra Hanna,
bem como a possibilidade de o fotógrafo ter de fato
um campo para fazer experiências com animais, e tirar
fotos.
O jogo entre realidade e ficção se estabelece
novamente. Adiante o próprio Agam dirá que inventara
as histórias nefastas sobre o fotógrafo, que a única parte
real era o projeto de Berman em fotografar animais,
mas isso o próprio Marius já sabia desde a viagem até
Berlim.
O movimento se presta a revelar de que modo a
ficção pode vir a ser mais forte que os fatos ao ponto de
levar Marius a agir.
A História também é marcada por momentos
assim, em que ocorre certo histerismo coletivo por
suposições; em outros, a verdade existe, mas é negada
em favor de uma ideologia, caso típico foi o dos alemães
comuns que acreditavam que os judeus recebiam
tratamento digno nas prisões e não acreditavam na
política de extermínio proposta por Hitler. E por isso, o
ato de escrever a palavra judeu realizado por Moebius,
ou os judeus que mantinham na memória o século
XX ou ainda Vitrius que seguia a tradição familiar
de registar a história por uma sequência lógica de
números.
Após esse episódio, Marius e Hanna fogem
para a casa de um historiador, que seria amigo de
Marius, chamado Grube. Também tinha um hábito,
um passatempo. No caso, revia corridas de 100 metros,
tanto por sua velocidade quanto por indicar uma vitória
em um momento crucial, às vezes por uma passada a
mais, pelo tronco à frente. Eram indicativas, pois, do
curso da História, ao mesmo tempo do seu registro
pelas filmagens.
Havia em sua casa muitos livros e fotografias,
especialmente referindo-se a três acontecimentos
importantes: Moscou (1917), quando houve a
revolução comunista; Jerusalém (1948), quando houve
a criação do Estado de Israel e o cerco a Jerusalém
pelos povos muçulmanos, que não queriam os judeus
na região; Berlim (1961), quando houve um conflito
envolve a parte oriental (comunista) de Berlim e a
parte ocidental. Moscou que Berlim Ocidental se
desarmasse para evitar uma guerra.
Para Grube, esses pontos identificavam os
sucessivos centros de gravidade da História.
Nessas datas e naquelas cidades estava o ponto
que concentrava todo o peso do mundo. Se alguém
quisesse derrubar, pôr a História de cabeça
para baixo, era ali que teria de aplicar o golpe,
naquele ponto preciso, no centro da gravidade.
[...] Os poucos que se apercebiam disso no próprio
momento eram os que conseguiam, por isso
mesmo manipular a História (p. 220-221)
Em outros termos, a História é um texto que se
escreve e o discurso história depende muito de quem
escreve esse texto. No caso, o objetivo é reescrever
a história judaica, bem como entender o outro, o
diferente, o que nem sempre é fácil.
Antes de irem embora de Berlim, Marius procura
Vitrius para saber se descobrira algo a respeito do
objeto de Hanna. Mas ele não tinha qualquer notícia
38
Uma menina está perdida no seu século à procura do pai, de Gonçalo M. Tavares
(C)inscrever o livro na estética surrealista, afinal
o livro está ligado a esse movimento artístico.
(D)mostrar que o sonho de Marius seria realizado
na realidade, no caso construir uma casa para
pessoas com alguma deficiência.
EXERCÍCIOS
1.
Leia o trecho do livro em seguida as afirmativas:
[...] ele sentiu pela primeira vez que podia fazer
o que quisesse com as mãos, levantar uma ou
as duas, gritar, fechar o punho com raiva como
faziam muitos ao seu lado, podia fazer tudo, a
partir dali, mas agora o que era preciso era gritar,
e não parar, em situação, não parar. (p. 235)
I. O trecho é uma referência ao momento em que
Marius encontra o pai de Hanna e fica feliz.
II. O trecho se refere ao final do livro, quando
Marius segue uma multidão e percebe que se
encontrara.
III. O trecho se refere a um momento em que
primeiro Marius sentiu certo temor, e depois
percebeu que era um movimento de que
queria fazer parte.
Está correto o que se afirma apenas em:
(A)I e II
(B)II
(C)III
(D)II e III
(E)I
2.
O livro tem como objetivo principal:
(A)revelar o sucesso de Marius em ter localizado
o pai de Hanna em Berlim.
(B)mostrar como os judeus ficaram perdidos
devido à Segunda Guerra Mundial.
(C)revelar como as pessoas buscam, por meio de
algumas atitudes, dar sentido à própria vida.
(D)buscar a cura para a Síndrome de Down.
(E)fazer um retrato no modo de agir dos nazistas.
3.
Por que Marius decide ajudar Hanna?
(A)a razão não fica muito clara no livro, mas
parece que sua vida era sem muito sentido.
(B)porque ele participava de uma ONG que
procurava ajudar crianças desaparecidas.
(C)porque ele também tinha de ir até a Alemanha
e resolveu acompanhá-la.
(D)ele queria colaborar com todas as pessoas
inocentes que tiveram prejuízo devido à
guerra.
5.
4. Qual o significado dos sonhos relatados por
Marius?
(A)nenhum, apenas o de mostrar na narrativa um
pouco de non sense.
(B)é um modo de expressar um dos objetivos do
livro, a necessidade de integrar pessoas com
deficiência à sociedade.
Leia as seguintes afirmações:
I. O livro alterna o tipo de narração, ora em
primeira pessoa ora em terceira.
II. O livro tem sequência tradicional, com meio,
meio e fim e narrativa expressa claramente.
III. Os principais personagens lidam com algum
tipo de perda.
IV. No final do livro, Hanna consegue encontrar
seu pai, graças à ajuda de Marius.
Está correto o que se afirma em:
(A)apenas I e III
(B)apenas II e III
(C)apenas II
(D)apenas I e IV
gABARITO
1.D 2.C 3.A 4.B 5.A
39
Anotações
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O Ateneu
O Ateneu, de Raul Pompeia, é um dos livros mais
singulares da literatura brasileira. Singular porque
está inserido em um período literário bem delimitado,
o realismo-naturalista, mas, apesar disso, não se
enquadra totalmente nessa escola, embora também
seja possível verificar vários aspectos dessa escola no
romance, conforme iremos demonstrar.
O livro foi publicado em 1888 e tem como objetivo
resgatar a trajetória do narrador especificamente no
período em que estudou no colégio interno homônimo
do título do livro.
A intenção do narrador parece ter sido a de
purgar uma culpa que não poderia ser atribuída de
fato a ele, mas que carregou ao longo do tempo. O
narrador já é adulto e precisa passar a limpo o processo
de formação intecto-afetiva, bem como os traumas que
sofreu o menino Sérgio. É o retorno à infância, não
como no caso do poeta romântico Casimiro de Abreu
(famoso por seu poema “Meus oito anos”), e sim como
aquele período que forja o adulto, que o capacita ou o
traumatiza. No caso do narrador de Ateneu, podemos
dizer que as duas possibilidades se fazem presentes.
Por ironia, o livro tem o subtítulo de Crônica
da saudade. O termo saudade, em princípio, parece
referir-se a um sentimento positivo. No entanto,
excluindo alguns momentos bons no colégio, algumas
amizades, ainda que superficiais, não há na narrativa
elementos que efetivamente indicariam uma saudade
salutar. Em rigor, são antes certos traumas e algumas
experiências não sempre positivas que tiveram o
menino no início de sua adolescência. Observe que é o
narrador que procura deixar a ambiguidade do termo
saudade explícita:
Saudades verdadeiramente? Puras recordações,
saudades talvez se ponderarmos que o tempo é a
ocasião passageira dos fatos, mas sobretudo – o
funeral para sempre das horas.
O livro, que fora publicado inicialmente no
formato folhetim no início de 1888, se inicia com uma
frase sintética: “Vais encontrar o mundo, disse-me meu
pai, à porta do Ateneu. Coragem para a luta.” Esse
encontro com o mundo, ainda que tenha um sentido
metafórico, também é indicativo de que o universo
narrativo do livro se restringe à vida no colégio. Além
disso, o narrador procura captar os diversos dramas
vividos por estudantes, mas que podem ocorrer na
vida extramuros, como a busca pelo poder, a luta pela
sobrevivência, os conflitos amorosos, os sentimentos
baixos, os encontros e desencontros entre indivíduos
diversos, a loucura manifestada etc.
O Ateneu é, praticamente, o único que escreveu
Raul Pompeia. Ao menos o que é lido ainda hoje. De
qualquer modo, a título de curiosidade, citemos outros
livros do autor:
 Uma Tragédia no Amazonas, 1880
 A Queda do Governo, 1880
 Canções sem Metro, 1881
de Raul Pompeia
Segundo a frase de abertura de O Ateneu e
seguindo o programa do realismo a ideia era revelar
a realidade, era compreender o mundo para além do
idealismo doméstico:
“Vais encontrar o mundo, disse-me meu pai, à
porta do Ateneu. Coragem para a luta.” Bastante
experimentei depois a verdade deste aviso, que
me despia, num gesto, das ilusões de criança
educada exoticamente na estufa de carinho que é
o regime do amor doméstico [...]
Encontrar o mundo significa aqui compreender
a luta entre os seres, discutindo, na esteira darwinista,
a proeminência dos mais fortes sobre os mais fracos, a
influência do meio social sobre as ações individuais,
o que o também colocaria no rol dos romances
naturalistas.
Outros aspectos que podem ser percebidos no
livro é a exploração das chamadas belas letras, das
belas artes. Isso porque o livro não tem uma única
classificação. No período, ainda predominava a
estética parnasiana, cujo foco era propriamente o da
defesa do ideal de beleza. Com isso, há no livro uma
mistura de estilos literárias, com leve predominância
para o impressionismo, tendo em vista que o
narrador expressa suas impressões sobre os diversos
personagens, sobre o colégio e, particularmente, sobre
o diretor, Aristarco Argolo de Ramos, que exercia o
poder supremo sobre os demais.
A frase de abertura do romance revela ainda a
estrutura de poder que o Brasil ainda conhecia em
1888, a monarquia, cujo chefe maior era o Imperador.
Apesar de certos laivos de democracia, devido à
possibilidade de se elegerem deputados e senadores,
quem detinha o poder era o imperador D. Pedro II.
No caso do colégio, quem exercia esse poder era o
diretor, o “Dr. Aristarco Argolo de Ramos, da conhecida
família do Visconde de Ramos, do Norte, [que] enchia
o império com o seu renome de pedagogo”.
Com efeito, no primeiro capítulo, o narrador
expressa suas primeiras impressões a respeito do
colégio, notadamente de Aristarco. As impressões do
menino Sérgio começam pelo próprio colégio, visto
como um personagem, não apenas como o local onde
se passa a história:
Ateneu era o grande colégio da época. Afamado
por um sistema de nutrido reclame, mantido por
um diretor que de tempos a tempos reformava
o estabelecimento, pintando-o jeitosamente de
novidade, como os negociantes que liquidam
para recomeçar com artigos de última remessa;
o Ateneu desde muito tinha consolidado crédito
na preferência dos pais, sem levar em conta a
simpatia da meninada, a cercar de aclamações o
bombo vistoso dos anúncios.
Ser aluno do Ateneu representava um status.
Assim como pode ocorrer em qualquer cidade, sempre
há um colégio que se torna referência à sociedade de
modo geral. No caso de o Ateneu, tal fama parecia
ocorrer por dois motivos: pelo método e pelos
professores afamados.
41
O Ateneu, de Raul Pompeia
Sérgio, de início, analisa o ambiente em que
vai estudar, para depois se concentrar nas aulas, especialmente as de artes ou de literatura que certamente
tornaria qualquer estudante médio um grande conhecedor do universo literário, para em seguida descrever
os professores e demais colegas.
Os companheiros de classe eram cerca de vinte;
uma variedade de tipos que me divertia. O
Gualtério, miúdo, redondo de costas, cabelos
revoltos, motilidade brusca e caretas de símio
– palhaço dos outros, como dizia o professor; o
Nascimento, o bicanca, alongado por um modelo
geral de pelicano, nariz esbelto, curvo e largo como
uma foice; o Álvares, moreno, cenho carregado,
cabeleira espessa e intonsa de vate de taverna,
violento e estúpido, que Mânlio atormentava,
designando-o para o mister das plataformas de
bonde, com a chapa numerada dos recebedores,
mais leve de carregar que a responsabilidade
dos estudos; o Almeidinha, claro, translúcido,
rosto de menina, faces de um rosa doentio, que se
levantava para ir à pedra com um vagar lânguido
de convalescente; o Maurílio, nervoso, insofrido,
fortíssimo em tabuada: cinco vezes três, vezes
dois, noves fora, vezes sete?...
Como se pode observar, alguns comentários são
um tanto irônicos, bem como revelam um olhar não
muito simpático aos colegas, destacando o que teriam
de negativo.
Quanto ao diretor, Sérgio destaca que era tido
como incorruptível, justo e grande educador. Segundo
as palavras de Venâncio, professor do colégio, por
ocasião de festa de encerramento do ano letivo, a
que Sérgio, antes de ser efetivamente matriculado,
e compareceu ao lado de seu pai, Aristarco estaria
apenas abaixo de Deus na terra, por seu papel de
mestre, cujo papel seria o de preparar a todos “para a
segurança íntima inapreciável da vontade”, por alusão
à filosofia de Friedrich W. Nietzsche.
Tal discurso alude ao fato de que Aristarco, por
estar abaixo tão somente de Deus, no colégio estaria
acima do próprio Imperador, ao menos de acordo com a
metáfora do professor Venâncio. Com efeito, no colégio
era Aristarco quem ditava as ordens, as regras. Exercia
ao mesmo tempo os poderes legislativo, judiciário
e executivo. Era quem fazia as leis e as aplicava.
Ora, importante lembrar que o sistema educacional
brasileiro do Império não era como o de hoje, em que
se verifica uma progressão, um estágio de educação
básica ao nível superior. O próprio Sérgio relata que
até os onze anos estudara com educadores que iam até
sua casa. Antes era preciso aprender o conteúdo e não
tanto estar nessa ou naquela série ou ano, além disso a
regulação não era ainda tão detalhada, como veio a se
verificar a partir da década de 30.
Tal poder conferido a Aristarco, apesar de
admiração, também despertava ódio, por nem sempre
atender a uma pedagogia mais voltada para a formação
integral do ser. O que lhe importava era repassar o
conteúdo e manter os alunos sob uma rígida disciplina.
Sérgio, ao longo da narrativa, aponta, porém, as
contradições das atitudes do diretor, que é implacável
com alguns alunos, e menos com outros, sobretudo
quando filhos de famílias mais ricas ou influentes.
Reforçando essa visão monarquista com que
Aristarco é descrito, no aludido evento de encerramento
do ano letivo, houve o beija-mão na princesa, porém,
para a tristeza de Aristarco, seu filho se revelou
republicano:
Uma coisa o entristeceu, um pequenino
escândalo. Seu filho Jorge, na distribuição dos
prêmios, recusara-se a beijar a mão da princesa,
como faziam todos ao receber a medalha. Era
republicano o pirralho! Tinha já aos quinze anos
as convicções ossificadas na espinha inflexível
do caráter! Ninguém mostrou perceber a bravura.
Aristarco, porém, chamou o menino à parte.
Encarou-o silenciosamente e – nada mais. E
ninguém mais viu o republicano! Consumira-se
naturalmente o infeliz, cremado ao fogo daquele
olhar! Nesse momento as bandas tocavam o hino
da monarquia jurada, última verba do programa.
Feitas as considerações iniciais, Sérgio passa a
tratar sobre a vida que levaria no colégio. Essa vida
deveria ser nova e diferente da que tivera até então,
longe do convívio familiar, longe da segurança do lar,
para que assim, conforme seu pai adiantou, entrasse
na luta que era a vida. Essa passagem é marcada por
um acontecimento que fica entre a ordem com tom
militar e uma lembrança do carinho materno.
– Pois, meu caro Sr. Sérgio, o amigo há de ter a
bondade de ir ao cabeleireiro deitar fora estes
cachinhos... Eu tinha ainda os cabelos compridos,
por um capricho amoroso de minha mãe. O
conselho era visivelmente salgado de censura. O
diretor, explicando a meu pai, acrescentou com
o risinho nasal que sabia fazer: “Sim, senhor,
os meninos bonitos não provam bem no meu
colégio...”
– Peço licença para defender os meninos bonitos...
objetou alguém entrando.
Surpreendendo-nos com esta frase, untuosamente
escoada por um sorriso, chegou a senhora
do diretor, D. Ema. Bela mulher em plena
prosperidade dos trinta anos de Balzac, [...]. Esta
aparição maravilhou-me. Houve as apresentações
de cerimônia, e a senhora com um nadinha de
excessivo desembaraço sentou-se no divã perto de
mim.
– Quantos anos tem? perguntou-me.
– Onze anos...
Em outros temos, Sérgio tem de abandonar a vida
doméstica, a inocência da vida infantil para assumir
novo papel naquela sociedade escolar, que, por sua
vez, seria espelho da sociedade como um todo, ainda
que com suas pertinentes particularidades. Era, pois,
um microcosmo social, cujo papel Sérgio ainda não
sabia qual assumir, ainda não sabia como deveria agir.
42
O Ateneu, de Raul Pompeia
Esse acontecimento aproximou os dois, que
passaram a estudar juntos e também a ficar mais
tempo juntos. Apesar disso, Sérgio sempre via Sanches
com certa repugnância, porque percebia nele não uma
amizade sincera.
Quando meu pai saiu, vieram-me lágrimas, que
eu tolhi a tempo de ser forte. Subi ao salão azul,
dormitório dos médios, onde estava a minha cama;
mudei de roupa, levei a farda ao número 54 do
depósito geral, meu número. Não tive coragem de
afrontar o recreio. Via de longe os colegas, poucos
àquela hora, passeando em grupos, conversando
amigavelmente, sem animação, impressionados
ainda pelas recordações de casa; hesitava em ir
ter com eles, embaraçado da estreia das calças
longas, como um exagero cômico, e da sensação
de nudez à nuca, que o corte recente dos cabelos
desabrigara em escândalo.
Se o colégio é meio para se “encontrar o mundo”,
Sérgio entende logo a necessidade de aliados, de outros
alunos que possam ajudá-lo nessa empreitada. O olhar
é sempre parcial, ainda que com distanciamento do
tempo, afinal é então o adulto Sérgio quem filtra a
percepção do menino, ainda incapaz de entender muito
do que se passava com ele, e interpreta o modo de
olhar, interpreta aquilo que ainda era incompreensível
à época.
O Professor Mânlio, a quem eu fora recomendado,
recomendou-me por sua vez ao mais sério dos
seus discípulos, o honrado Rebelo. Rebelo era o
mais velho e tinha óculos escuros como
João Numa. Fui também recomendado ao
Sanches.
Sérgio destaca três amizades em especial que
fez no colégio durante os dois anos em que estudou
no Ateneu. A primeira dessas amizades começou de
modo um tanto estranho. Foi logo nos primeiros dias
do ano letivo. Era o dia da natação, Sérgio relata
que, por essa ocasião, os meninos menores ficavam
apartados dos maiores exatamente para evitar
acidentes e brincadeiras não condizentes com a idade
de cada um. Estava temeroso, pois era a primeira vez
que teria essa aula ou recreação. Em certo momento,
sentiu que o puxavam para baixo d’água, ao mesmo
tempo que percebeu uma mão salvadora. Era a mão
de Sanches, que prontamente ofereceu amizade e
proteção a Sérgio, dizendo-lhe que o colégio tinha
uma série de “perversos”. Sérgio desde a primeira vez
que viu Sanches o achou estranho, antipático. Porém,
percebeu a necessidade mesmo de uma aproximação
com alguém maior. Mais adiante, teve fortes razões
para crer que fora ele próprio que o havia puxado para
baixo da água e depois se apresentar como o salvador.
Levei algum tempo para me inteirar do que
ocorrera. Esfreguei por fim os olhos e verifiquei
que o Sanches me tinha salvo. “Ia afogar-se!”
disse ele, amparando-me a cabeça enquanto me
desempastava os cabelos de cima dos olhos. Meio
aturdido ainda, contei-lhe efusivamente o que me
haviam feito. [...] Mas a consequência imediata
do fato foi que forcei a repugnância que o Sanches
me causava e me fiz todo gratidão para com ele
e intima amizade. Curiosa e acidentada tinha de
ser essa minha aventura de apego e confiança.
Uma característica naturalista presente no
livro é explorar desvios de conduta moral ou estados
doentios. Embora hoje tenhamos uma percepção
diferente, à época a homossexualidade era vista como
uma patologia, como algo anormal. Diversos outros
romances naturalistas vão explorar tal “anormalidade”,
como O cortiço, de Aluísio Azevedo, ou O Bom-crioulo,
de Adolfo Caminha. Sérgio parece ceder por interesse
a um carinho mais sutil do amigo, porém, quando
percebe nele uma intenção mais explícita, afasta-se.
Apesar disso, o caso não se deu por uma repugnância
ao ato em si, e sim por não considerar Sanches um
“amigo” efetivo. Essa perspectiva vai ser repetida
diversas vezes, sempre em tom comparativo com
outros rapazes com quem Sérgio teve uma amizade
mais efusiva. A homossexualidade dos meninos, em
O Ateneu, parece ser mais como meio de escapar de
uma carência afetiva ou meio de se autoprotegerem
que propriamente uma pendência deliberada. Nesse
sentido, a “anormalidade” como diriam os naturalistas
teria uma razão de ser nesse ambiente de constante
luta pela “sobrevivência”.
Sempre desconfiado e receoso dos outros, o meu
companheiro era quase exclusivamente Sanches.
Sempre juntos eu e ele. Sabia-se no Ateneu que
ele era meu explicador, supunham até que pago.
Não causavam estranheza as nossas relações.
Contudo Sanches, como os mal-intencionados,
fugia dos lugares concorridos. Gostava de vaguear
comigo, à noite, antes da ceia, cruzando cem vezes
o pátio de pouca luz, cingindo-me nervosamente,
estreitamente até levantar-me do chão.
Sérgio é um típico exemplo de que a
homossexualidade não seria inerente ao seu desejo,
ao seu modo de ser. Embora ela vá se manifestar
implicitamente nas outras duas próximas amizades
mais íntimas, com Sanches restou uma ambiguidade,
interrompida com um gesto mais ousado do outro. Com
efeito, a amizade entre os dois durou até o momento
em que Sanches tentou uma aproximação mais íntima
com Sérgio, que a repeliu imediatamente. Sanches
praticamente desaparece da narrativa, sendo lembrado
vez ou outra sempre com desprezo e repugnância.
Estimulado pelo abandono, que lhe parecia
assentimento tácito, Sanches precipitou um
desenlace. Por uma tarde de aguaceiro errávamos
pelo saguão das bacias, escuro, úmido, recendendo
ao cheiro das toalhas mofadas e dos ingredientes
dentifrícios, solidão favorável, multiplicada
pelos obstáculos à vista que ofereciam enormes
pilares quadrados em ordem a sustentar o
edifício, — quando, sem transição, o companheiro
chegou-me a boca ao rosto e falou baixinho.
43
O Ateneu, de Raul Pompeia
E mais adiante:
Li a Nova floresta, de Bernardes. O reverendíssimo
autor veio retocar a obra do Barreto, com as suas
narrativas de iluminado terrifico. Comecei a achar
a religião de insuportável melancolia. Morte certa,
hora incerta, inferno para sempre, juízo rigoroso;
nada mais negro!
A Nova Floresta (1706) é um livro do padre
Manuel Bernardes, do período barroco (século XVIII),
em que discorre sobre preceitos morais diversos, com
base em histórias variadas.
De tudo o que Barreto e Sérgio conversaram, um
assunto se sobrepunha, a influência negativa que pode
exercer uma mulher sobre as vontades masculinas.
Tais elucubrações se confirmam em um episódio
importante do Ateneu, confirmando que o colégio
interno é espaço para se ter uma compreensão ampla
da vida, da realidade.
Havia pouquíssimas mulheres no colégio. Em
particular duas. Ema, esposa de Aristarco, e Ângela,
uma empregada espanhola do colégio. Apesar do
nome, por referência a anjo, ela tinha uma sensualidade
lasciva e despertava desejo em muitos.
Ângela tinha cerca de vinte anos; parecia mais
velha pelo desenvolvimento das proporções.
Grande, carnuda, sanguínea e fogosa, era
um desses exemplares excessivos do sexo que
parecem conformados expressamente para
esposas da multidão — protestos revolucionários
contra o monopólio do tálamo.
Aqui, poderíamos citar um conhecido poema
de Gregório de Matos em que ele fala exatamente o
seguinte:
Mas vejo, que tão bela e tão galharda,
Posto que os Anjos nunca dão pesares,
Sois Anjo, Que me tenta, e não me guarda.
No caso da Ângela do colégio, no episódio em
questão, ocorre um crime. Um jardineiro ataca um
criado da casa de Aristarco com uma faca e o mata. E
isso se dá exatamente porque havia uma disputa entre
os dois para saber quem ficaria com a moça.
O homem da faca era um dos jardineiros do Ateneu.
Durante o jantar enfrentara-se de razões com um
criado da casa de Aristarco e o matara. Havia
algum tempo que disputavam os dois a primazia
no coração de Ângela uma terrível pendência. O
criado de Aristarco julgava-se na legítima posse
desse escrínio de afetos, pela convivência ao lado
da bela, consorciados maritalmente na intimidade
dos alguidares, onde as mãos se confundiam como
as louças ou na sociedade afetuosa do serviço dos
aposentos do diretor e da senhora, permutando
entre si dichotes açucarados, à flagelação dos
tapetes.
Na fuga, porém, o jardineiro é pego por Bento
Alves, bibliotecário do grêmio do colégio. Bento será a
segunda amizade íntima de Sérgio. Como da primeira
vez, trata-se de um relacionamento de amizade um
Só a voz, o simples som covarde da voz, rastejante,
colante, como se fosse cada sílaba uma lesma,
horripilou-me, feito o contato de um suplício
imundo. Fingi não ter ouvido; mas houve
intimamente a explosão de todo o meu asco por
semelhante indivíduo e muito calmo, desviando
apenas a vista, pretextei a falta de um lenço, que
me endefluxara a friagem e... fui buscá-lo.
Após a experiência, Sérgio passa a frequentar
algumas aulas de Aristarco, que tratavam a respeito
da astronomia. Sérgio destaca, a despeito do ar de
superioridade, a inteligência e a habilidade didática
do diretor, que realmente entendia sobre o que estava
falando. Talvez pela proximidade temática, por ambas
falarem sobre além do planeta, além do visível, Sérgio
passa a viver um momento mais espiritualizado,
buscando uma comunicação com o sagrado, talvez de
modo a purgar qualquer culpa que possa ter tido no
episódio envolvendo Sanches.
A astronomia, como os céus do salmo, levoume à contemplação. O mal na terra, descrito
pelo Sanches com uma perícia de conhecedor
e praticante, tomou vulto no seio das minhas
cogitações. A incredulidade primeira acabou
em meu espírito, reconhecendo o descalabro
deste vale de lágrimas em que vivemos. Ao
tempo que devia consagrar à minha reabilitação
nos estudos, pus-me a estudar, como Inácio de
Loiola, talvez na mesma idade, a reabilitação do
mundo. Encarnei o pecado na figura de Sanches
[...] No recreio, andava só e calado como um
monge. Depois do Sanches não me aproximava
de nenhum colega, senão incidentemente, por
palavras indispensáveis. Rebelo tentou atrair-me;
eu desviava. Sanches, rancoroso, perseguia-me
como um demônio. Dizia coisas imundas.
Saliente-se que não era propriamente uma
devoção fervorosa, algo que levaria Sérgio a uma
religiosidade que ele jamais tivera. Quando muito, um
surto contemplativo e de recolhimento para entenderse melhor e entender o que se passara.
Em rigor, o fim do século XIX foi marcado por
uma crise religiosa, devido às ideias positivistas, que
pregavam, entre outras coisas, a proeminência da
matéria sobre a metafísica. O ser humano deveria
antes se ocupar da matéria que do espírito, que seria
uma fantasia, não realidade perene.
Talvez por isso mesmo, Sérgio, por um breve
período, acabou por se dedicar à prédica religiosa,
que, em rigor, considerava muito mais traumática pelo
que exigia de penitências, de abnegação, além do
discurso de culpa que carregava, que algo que poderia
devolver-lhe o equilíbrio, o sentimento de harmonia
em relação aos próprios desejos e aspirações.
Iniciara-me Sanches no Mal; Barreto instruiume na Punição. Abria a boca e mostrava uma
caldeira do inferno; as palavras eram chamas; ao
calor daquelas práticas, as culpas ardiam como
sardinhas em frege.
44
O Ateneu, de Raul Pompeia
tanto ambíguo, pois há uma sexualidade latente
entre os rapazes que, mesmo não sendo efetivamente
homossexuais conforme já explicado, acabam por ter
uma intimidade para além da simples amizade. Sérgio
repelira Sanches por esse motivo, mas a proximidade
com Bento Alves sugere algo mais profundo.
Na biblioteca, Bento Alves escolhia-me as obras:
imaginava as que me podiam interessar; e
propunha a compra, ou as comprava e oferecia
ao Grêmio, para dispensar-se de mas dar
diretamente. No recreio não andávamos juntos;
mas eu via de longe o amigo, atento, seguindome o seu olhar como um cão de guarda. Soube
depois que ameaçava torcer o pescoço a quem
pensasse apenas em me ofender; seu irmão
adotivo! Confirmava.
Essa amizade intensa no início, aos poucos esfria
após certo tempo. Bento Alves, sentindo-se traído por
Sérgio, não por se envolver com outro aluno, e sim
porque este se cansara de sua amizade e abandona aos
poucos as visitas à biblioteca e, consequentemente, ao
próprio Bento Alves, briga com Sérgio com quem acaba
por se envolver em uma luta corporal. Como resultado,
Bento é forçado pelo diretor a sair do colégio. Sérgio,
imaginando que sofreria uma punição semelhante,
percebe que Aristarco, como de resto já acontecera em
outros episódios, nem sempre é tão exemplar assim. Ao
que parece, seria custoso ao Ateneu perder dois ou três
alunos de uma vez.
Esperei um dia, dois dias, três: o castigo não veio.
Soube que Bento Alves despedira-se do Ateneu na
mesma tarde do extraordinário desvario. Acreditei
algum tempo que a minha impunidade era um
caso especial do afamado sistema das punições
morais e que Aristarco delegara ao abutre da
minha consciência o encargo da sua justiça e
desafronta. Hoje penso diversamente: não valia a
pena perder de uma vez dois pagadores prontos, só
pela futilidade de uma ocorrência, desagradável,
não se duvida, mas sem testemunhas.
A terceira amizade mais íntima de Sérgio ocorre
no segundo ano de estudo. De início, parece ser uma
amizade totalmente desinteressada, a qual começara
porque passou a se sentar, na sala de aula, ao lado de
um novo aluno, no caso Egbert.
Nesse sentido, podemos dizer que a narrativa se
apresenta como uma espécie de educação sentimental
do Sérgio, algo a que qualquer um de nós pode passar,
no sentido de que, aos poucos, vamos formando nosso
círculo de amizades, estabelecemos nossas afinidades
eletivas e nos constituímos como ser.
A convivência do Sanches fora apenas como o
aperfeiçoamento aglutinante de um sinapismo,
intolerável e colado, espécie de escravidão
preguiçosa da inexperiência e do temor; a amizade
de Bento Alves fora verdadeira, mas do meu lado
havia apenas gratidão, preito à força, comodidade
da sujeição voluntária, vaidade feminina de
dominar pela fraqueza, todos os elementos de
uma forma passiva de afeto, em que o dispêndio
de energia é nulo, e o sentimento vive de descanso
e de sono. Do Egbert, fui amigo. Sem mais razões,
que a simpatia não se argumenta.
Trata-se de outra amizade que, como as outras
duas, beira à ambiguidade, reforçada pelas leituras
em comum, especialmente pelo livro intitulado Paul
et Virginie, de Bernadin de Saint-Pierre, um romance
publicado em 1788 e que relata a história de amizade e
de amor entre o casal de adolescentes.
A pastoral de Bernardin de Saint-Pierre foi
principalmente o nosso enlevo. Parecia-nos ter o
poema no coração. A baia do Túmulo, de águas
profundas e sombrias, festejada apenas algumas
horas pelo sol a prumo, em suave tristeza sempre;
ao longe, por uma bocaina, a fachada, à vista,
branca, da igreja rústica de Pamplemousses.
Porém, como as duas amizades anteriores, essa
também se esvai ante o prosaísmo da rotina. Não por
acaso, o adolescente Sérgio passa a nutrir por Ema
um amor platônico, vendo nela tanto o apelo sexual,
bem como a proteção e o carinho maternos. O próprio
nome Ema é um anagrama de mãe, sugerindo, pois,
essa leitura. Com efeito, tem-se nova ambiguidade nos
sentimentos do menino pela mulher.
Quando no dia do jantar subi para o dormitório
com o Egbert, dançava-me no espírito, reduzida
a miniatura, a imagem de Ema (era agradável
suprimir o D.), pequenina como uma abelha de
ouro, vibrante e incerta. Sonhei: ela sentada na
cama, eu no verniz do chão, de joelhos. Mostravame a mão, recortada em paro jaspe, unhas de
rosa, como pétalas incrustadas. Eu fazia esforços
para colher a mão e beijar, a mão fugia; chegavase um pouco, escapava para mais alto; baixava de
novo, fugia mais longe ainda, para o teto, para o
céu, e eu a via inatingível na altura, clara, aberta
como um astro.
Ápice dessa paixão platônica ocorreu quando
Sérgio, doente, passou a ser tratado na casa de
Aristarco, especialmente sob os cuidados de Ema.
Quando então sentiu e imaginou toda a docilidade de
Ema, bem como uma sensualidade inocente.
Outro aspecto a se destacar do livro são as
considerações em torno das diversas referências a
livros da época, aos conceitos que eram efetivamente
tratados pela Academia, pelos professores em sala de
aula. Alguns desses conceitos já foram revistos, ainda
assim sempre é digno de nota compreender como eram
pensados diversos assuntos: a biologia, a cultura como
um todo, a literatura, a ciência etc.
O Dr. Cláudio encetou uma série de preleções
aos sábados, à imitação das que fazia às quintas
Aristarco sobre lugares-comuns de moralidade.
Filosofia, ciência, literatura, economia política,
pedagogia, biografia, até mesmo política e
higiene, tudo era assunto; interessantíssimas, sem
pesadas minuciosidades. Depois da astronomia
do diretor, nenhuma curiosidade me valera tão
bons minutos de atenção.
45
O Ateneu, de Raul Pompeia
Conforme já se afirmou, O Ateneu é um livro
de difícil classificação. Já foi visto como realista,
expressionista, impressionista, simbolista e também
como naturalista. Seguindo essa última acepção, com
efeito podemos vislumbrar várias características dessa
escola no livro, especialmente os sentidos sexuais
aflorados, o ambiente coletivo, algumas patologias.
E como bom romance naturalista, ao menos em uma
das classificações possíveis, há que se punir o vilão
da história, no caso o próprio colégio. Por esse motivo,
em período de férias, o colégio sofre um incêndio
criminoso. Américo, um novo estudante, filho de um
fazendeiro e que não queria estudar ali, para evitar
que continuasse internado, resolve pôr fogo na escola.
Informaram-me de coisas extraordinárias. O
incêndio fora propositalmente lançado pelo
Américo, que para isso rompera o encanamento
do gás no saguão das bacias. Desaparecera
depois do atentado.
Por fim, lembremos que o livro fora publicado
originalmente no formato folhetim, antes de ser
publicado em livro. Por isso mesmo, o livro se
apresenta como uma coletânea de episódios. Embora
conectados, têm certa independência, pois isso era
uma característica do folhetim, publicado capítulo
a capítulo uma ou duas vezes por semana, o que
demandava do autor certo cuidado para manter o
interesse dos leitores. Algo semelhante na atualidade
são as séries televisivas, produzidas respeitando-se a
ideia de que cada episódio encerra um acontecimento
completo. Ou seja, Raul Pompeia poderia ter escrito
mais episódios conforme lhe fosse conveniente, mas
parece ter se cansado e encerra o livro com o incêndio,
provocado por, Américo. Não avança mais no assunto,
mas certamente o colégio deve ter continuado suas
atividades após o episódio. Fato é que são relatados
apenas dois anos de estudo de Sérgio.
A narrativa da saudade se encerra, pois, com
ironia e sem saudade efetiva, e ainda fazendo uma
descrição final de Aristarco, que expressava um sentido
de frustração ddo diretor, pelas perdas financeiras e de
sua obra.
Ele, como um deus caipora, triste, sobre o desastre
universal de sua obra.
Apesar do vocabulário um tanto complexo para
o jovem leitor do século XXI, O Ateneu é um livro
importante. Lido sob olhar criterioso certamente
colabora para o desenvolvimento da percepção.
Mais do que leitura obrigatória para vestibulares, o
livro, inscrito entre os principais de toda a literatura
brasileira, deve ser obrigatório para ajudar qualquer
indivíduo a compreender melhor o que significa o
processo de construção do ser.
EXERCÍCIOS
1.
2.
46
(PUC-RS) Leia o trecho a seguir, no contexto da
obra O Ateneu, de Raul Pompéia, e as afirmativas.
“Mal tinha eu entrado, senti que duas mãos, no
fundo, prendiam-me o tornozelo, o joelho. A um
impulso violento caí de costas; a água abafou-me
os gritos, cobriu-me a vista. Senti-me arrastado.
Num desespero de asfixia, pensei morrer. Sem
saber nadar, vi-me abandonado em ponto perigoso;
e bracejava, à toa, imerso a desfalecer, quando
alguém me amparou. Um grande tomou-me ao
ombro e me depôs à borda, estendido, vomitando
água. Levei algum tempo para me inteirar do que
ocorrera. Esfreguei por fim os olhos e verifiquei
que o Sanches me tinha salvo. “Ia afogar-se!”
disse ele, amparando-me a cabeça enquanto me
desempastava os cabelos de cima dos olhos. Meio
aturdido ainda, contei-lhe efusivamente o que me
haviam feito. “Perversos!” observou-me o colega
com pena, e atribuiu a brutalidade a qualquer
peste que fugira no atropelo dos nadadores,
desvelando-se em solicitudes por tranquilizar-me.
Tive depois motivo para crer que o perverso e a
peste fora-o ele próprio, na intenção de fazer valer
um bom serviço”.
I. A violência recorrente num ambiente de
confinamento mostra ao personagem principal
a lógica da dominação dos mais fracos pelos
mais fortes.
II. A expressão “fazer valer um bom serviço”
explicita o trabalho duplo de Sanches:
apresentar um suposto perigo e ao mesmo
tempo oferecer proteção ao aluno novato.
III. O incêndio que devastaria o colégio Ateneu,
provocado pelo personagem principal do
romance, é um último ato de violência, que
dá fim à obra de Raul Pompéia.
IV. Com teor memorialista, a obra O Ateneu, uma
crônica de saudades, traz um narrador em
primeira pessoa do singular, chamado Franco.
As afirmativas corretas são, apenas,
(A)I e II.
(B)I e III.
(C)III e IV.
(D)I, II e IV.
(E)II, III e IV.
(FEI) O foco narrativo de O Ateneu está:
(A)na terceira pessoa do singular.
(B)na terceira pessoa do plural.
(C)na primeira pessoa do singular.
(D)na primeira pessoa do plural.
(E)na segunda pessoa do singular.
O Ateneu, de Raul Pompeia
3.
(FEI) É possível afirmar que o protagonista:
(A)rememora os bons tempos da vida.
(B)despreza a razão dos outros companheiros de
classe.
(C)é irônico ao contar a história de seus colegas
de classe.
(D)conclui que é impossível compreender sua
vida a partir da narração da mesma.
(E)debruça-se sobre o passado com olhar crítico.
(C)Lendo esta descrição você considera que o
narrador compartilha dos mesmos sentimentos
de Aristarco? Justifique.
7. (PUC-Camp) [...] não havia família de dinheiro,
enriquecida pela setentrional borracha ou
pela charqueada do sul, que não reputasse
um compromisso de honra com a posteridade
doméstica mandar dentre seus jovens um, dois,
três representantes abeberar-se à fonte espiritual
do Ateneu. (Raul Pompéia. O Ateneu)
4. (FEI) Depreende-se do livro que o narrador, no
colégio, teve uma infância:
(A)distante do convívio familiar.
(B)feliz pela ausência da mãe.
(C)sufocada pelo ritmo de trabalho dos pais.
(D)superprotegida pela atenção dispensada pelos
pais.
(E)ameaçada pelo amor doméstico em regime
autoritário.
5.
Sugere-se, nesse trecho, que o colégio Ateneu
(A)servia diligentemente à comunidade local
e cultivava nos alunos valores de alta
espiritualidade.
(B)era bastante prestigiado e correspondia aos
planos que uma elite econômica traçava para
seus filhos.
(FUVEST) Assinalar a afirmação correta a respeito
de O Ateneu, romance de Raul Pompéia.
(A)Romance de formação que avalia a experiência
colegial, por meio de Sérgio, alter ego do autor.
(B)Romance romântico que explora as relações
pessoais de adolescentes no colégio, acenando
para o homossexualismo latente.
(C)Romance naturalista que retrata a tirania do
diretor do colégio e o maternalismo de sua
mulher para com os alunos.
(D)Romance realista que apresenta um padrão
de excelência da escola brasileira do final do
império.
(E)Romance da escola do Brasil no final do
império, cuja falência vem assinalada pelo
incêndio do prédio, no final da narrativa.
(C)tinha fama de disciplinador, e a ele recorriam
as famílias abastadas para que se punisse a
rebeldia dos jovens.
(D)primava pela firme orientação religiosa, razão
pela qual pais modestos se sacrificavam para a
ele enviar os filhos.
(E)adotava uma revolucionária pedagogia
moderna, afastando-se dos princípios de uma
educação mais tradicional.
8. (ITA) Dos comentários que se fazem de “O
ATENEU” assinale o falso:
(A)misto de ficção e memória, pendente
entre diário e romance, gira em torno das
experiências sofridas por um menino ingênuo
no internato de Aristarco Argolo de Ramos.
6. (Unicamp) No capítulo VII de O ATENEU, ao
descrever a exposição de quadros dos alunos do
colégio, o narrador assim se refere aos sentimentos
de Aristarco:
“Não obstante, Aristarco se sentia lisonjeado pela
intenção. Parecia-lhe ter na face a cocegazinha
sutil do creion passando, brincando na ruga mole
da pálpebra, dos pés-de-galinha, cortando a
concha da orelha, calcando a comissura dos lábios,
entrevista na franja pelas dobras oblíquas da pele
do nariz, varejando a pituitária, extorquindo um
espirro agradável e desopilante.”
(A)A que intenção se refere o narrador?
(B)sem haver propriamente um enredo, mas
justaposição de quadros, vão desfilando
diante de nós as personagens e situações de
um colégio em que a hipocrisia esconde toda
gama de baixeza.
(C)Diretor e senhora (Dª Ema), professores e
estudantes, todos vivem numa atmosfera
saturada e postiça forjada pela vaidade de
Aristarco.
(D)a sucessão de flagrantes impressionistas
termina com o incêndio do colégio, ateado
pelo estudante Américo.
(E)O Ateneu distingue-se na história de nossa
ficção por uma série de aspectos originais,
entre eles, o realismo exterior tal qual o de
Aluísio Azevedo em “O CORTIÇO”.
(B)Quais características de Aristarco estão
sugeridas neste comentário do narrador?
47
O Ateneu, de Raul Pompeia
9.
(UEPB)
I. O
Ateneu é uma crítica ao romantismo, na
medida em que estabelece uma crítica à
ingenuidade da infância enquanto espaço
idílico e importante para a construção
imaginária dos românticos, o que o transforma
num precursor do romance psicológico.
II. O
Ateneu é ao mesmo tempo uma crítica ao
modelo de educação posto em prática no
internato e uma crítica ao autoritarismo das
elites brasileiras sustentadas pelo modelo
político monárquico. Em certo sentido, o
internato é uma metonímia da monarquia
brasileira.
III. Raul Pompéia utiliza-se das avaliações
apaixonadas de Sérgio na infância para fazer
um romance com fortes traços impressionistas
e simbolistas, romance que também antecipa
certos aspectos da vanguarda expressionista,
sobretudo nas descrições de Aristarco e dos
personagens alinhados com ele.
(A)Apenas III é correta
(B)Apenas I é correta
(C)Apenas II é correta
(D)Todas são corretas
(E)Nenhuma é correta
10. (UFRS) Leia as afirmações abaixo sobre o romance
O Ateneu, de Raul Pompéia.
I. Sérgio, em seu relato memorialista, revela
a outra face da fachada moralista e virtuosa
que circundava o Ateneu, a face em que se
incluem a corrupção, o interesse econômico,
a bajulação, as intrigas e a homossexualidade
entre os adolescentes.
II. A narrativa, ainda que feita na primeira pessoa,
evita o comentário subjetivo e as impressões
individuais, uma vez que o narrador adota
uma postura rigorosa, condizente com o
cientificismo da época.
III. Através da figura do Dr. Aristarco, diretor do
colégio, com sua retórica pomposa e vazia,
Raul Pompéia critica o sistema educacional
da época e a hipocrisia da sociedade.
Quais estão corretas?
(A)Apenas I.
(B)Apenas II e III.
(C)Apenas II.
(D)I, II e III.
(E)Apenas I e III
gABARITO
1.A 2.C 3.E 4.A 5.A
6.a) A vaidade lisonjeira de ver grafado seu próprio
rosto.
b) A vaidade, o engodo, o orgulho e a felicidade de ser
o diretor do Ateneu.
c) Não, Sérgio, o narrador, ironiza os sentimentos de
Aristarco, pois através do diretor satiriza seu próprio
pai e a sociedade em que vive.
7.B 8.E 9.D 10.E
48
Alguma Poesia
de Carlos Drummond de Andrade
Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) é um
dos poetas mais conhecidos da literatura brasileira e
mesmo da de língua portuguesa. Pode-se dizer que,
mesmo entre aqueles que dizem não gostar de poesia,
Carlos Drummond é bem conhecido.
Drummond estreou com o livro que ora vamos
analisar, Alguma poesia. Publicado em 1930, há,
nesse livro, poemas cujos versos se tornaram célebres
e mesmo ganharam a popularidade em expressões
recorrentes pela citação literal ou pela paráfrase, como
“Mundo mundo vasto mundo,/ se eu me chamasse
Raimundo” ou “No meio do caminho tinha uma pedra”
ou ainda “João amava Tereza que amava Raimundo”,
entre outras.
O livro se insere no período modernista e é
considerado o iniciador da Poesia de 30, o que seria
a segunda fase do modernismo brasileiro. Os poemas
foram escritos nos anos 20 do século passado, quando
se promoveu uma revolução literária e, por isso, os
radicalismos de parte a parte impediam, muita vez,
uma voz mais ponderada.
A poesia de Drummond conseguiu, em meio à
agitação cultural do período, que buscava novas formas
de expressão, imprimir uma marca, conseguiu construir
algo sólido, de tal modo que sua produção tem valor
ainda hoje. O poeta deve tentar uma explicação para
as dúvidas recorrentes do ser humano. Por exemplo:
o que é o amor? Qual o sentido da vida? O que é a
política? Entre outras tantas. Embora as respostas
tendem a cair na carga da subjetividade; ainda assim,
o olhar crítico do poeta e sua capacidade de expressão
podem levar o leitor a compreender melhor aquilo que
o cerca. Para tanto, cabe ao poeta comunicar-se bem,
mas cabe ao leitor ter um domínio básico da linguagem
poética. Drummond possibilita exatamente isso tudo.
A todo instante busca comunicar-se com o leitor, ainda
que não diretamente, e, a todo instante, busca uma
compreensão do próprio trabalho como artista, como
poeta.
Em Alguma Poesia, por exemplo, há uma série de
poemas metalinguísticos, cujo objetivo maior é refletir
sobre o ato de escrever, refletir a respeito do trabalho
poético usando para isso o próprio poema.
São 49 poemas publicados no livro, os quais
tratam sobre o trabalho do poeta, exploram questões
sócio-políticas, refletem sobre a vida cotidiana,
moderna, sobre o Brasil e o sentimento nacionalista.
Aqui, vamos abordar a maior parte dos poemas, para
destacarmos essas temáticas e o tratamento poético
dado a elas. Não vamos seguir a ordem dos poemas e
sim a análise por temas.
Um desses temas é a reflexão em torno do papel
do poeta no mundo das máquinas, da pressa urbana,
da correria cotidiana. Em “Nota social”, por exemplo,
tem-se algo que se tornou comum na modernidade:
a poesia perdeu espaço para outras linguagens, mais
imediatistas, talvez que exijam menos reflexão, por
isso nem sempre se preste atenção ao que tem a dizer
um poeta. No poema em questão, ele é equiparado a
uma cigarra solitária, que canta sem que ninguém a
possa ouvi-la. Por isso, constata o eu lírico que “o poeta
está melancólico”.
Numa árvore do passeio público
(melhoramento da atual administração)
[...]
Canta uma cigarra que ninguém ouve
Um hino que ninguém aplaude.
Como a cigarra, o poeta canta e não é ouvido,
por seu trabalho se contrapõe ao imediatismo da vida
moderna. Já o poeta necessita do tempo, necessita da
meticulosidade para buscar a melhor palavra, buscar
a forma mais adequada. Ele é repleto de ideias, de
sentimentos, porém “a pena não quer escrever”. Isso
não deve ser confundido com o conceito de inspiração,
e sim, exatamente o contrário: escrever é uma
atividade que requer cuidado, requer reflexão. Porém,
a vida moderna exige o aqui e o agora, exige de todos
uma produtividade que nem sempre combina com a
atividade poética.
O poema pernambucano Manuel Bandeira,
referência do modernismo, escreveu diferentes poemas
nessa mesma linha temática, como, por exemplo, “O
Cacto”. Bandeira parece uma importante fonte para
o Drummond de Alguma poesia. “Festa no brejo”,
por exemplo, certamente alude ao famoso poema de
Bandeira, “Os sapos”, em que o poeta pernambucano
contrapõe o academicismo da poesia parnasiana à
maior liberdade, à iconoclastia da poesia moderna. A
“festa no brejo” do título ilustra a humildade da poesia,
ao papel não lucrativo que desempenha o trabalho do
poeta.
A saparia toda de Minas
Coaxa no brejo humilde.
Hoje tem festa no brejo!
Linha temática semelhante pode ser encontrada
em “O sobrevivente”. O título é indicativo de que muitos
pereceram, mas é preciso resistir, é preciso continuar
a escrever, mesmo sob os horrores das guerras,
mesmo ante ao culto da máquina que caracterizou o
processo de construção da sociedade capitalista. Ante
à constatação de que, apesar da evolução técnica,
o ser humano não evoluiu, não melhorou, nem no
plano individual, nem no plano coletivo: “Inabitável,
o mundo é cada vez mais habitado”. A partir desse
paradoxo, o poeta faz a constatação de que o que pode
garantir um quê de humanidade ao ser, um quê de
cultura mais pura, por assim dizer, é o ato de escrever:
“(Desconfio que escrevi um poema.)” Tal conceito, o
do papel consolador da escrita, fica mais claro ainda
em “Explicação”, em que o eu lírico declara ser seu
verso a sua consolação, a sua cachaça. Porém, sabe
que a poesia não pode, de fato, exercer esse papel na
vida de todos, pois o que se busca na vida moderna
são antes as comodidades, a estabilidade. A poesia, ao
49
Alguma Poesia, de Carlos Drummond de Andrade
A reflexão em torno da vida moderna é temática
própria de Alguma poesia, bem como nos livros
seguintes de Drummond. Destaquemos três poemas,
em particular, que abordam o assunto: “A rua diferente”,
“Sinal de apito” e “Cota zero”. O mais significativo
é o último. O primeiro fala sobre as mudanças por
que pode passar uma cidade pequena e como isso
tende a alterar a sociabilidade; o segundo refere-se à
linguagem nova que a vida urbana obriga o indivíduo
a conhecer. Já “Cota zero”, conhecido haicai do autor,
que reflete a respeito da desumanização que a vida
urbana pode impor ao homem. Inicia com um verbo
em inglês, “stop”, para em seguida questionar se a
constatação seria para indicar que um automóvel parou
a um sinal de trânsito ou se teria sido a própria vida
que teria parado, se o ser humano teria abandonado
uma pretensa evolução humanística em favor de uma
evolução técnica e tecnológica. Em tempo, haicai é um
típico poema de origem japonesa, escrito em três versos
e que segue uma estrutura silogística, em que de uma
premissa maior e outra menor decorre uma conclusão
lógica. A essa agitação e desenvolvimento da vida
urbana, o poeta opõe outro poema para tratar sobre
o cotidiano em uma cidade pequena. “Cidadezinha
qualquer” evoca a rotina lenta e corriqueira das
cidades menores, de modo a concluir-se que esse tipo
de vida pode também indicar a bestialidade humana,
“Eta vida besta, meu Deus” é o último verso do poema.
O próprio título revela certo desprezo pelo uso do
diminutivo bem como pelo uso do pronome indefinido,
indicando que é algo bastante comum no país. Tal
contraste, cidade grande x cidade pequena, bem como
outros, é constante em Drummond, que, por meio da
ironia, aproxima as contradições da vida e do país.
Outra constante na poesia do autor mineiro é a
religiosidade, não a confessional, a que expressa uma
crença absoluta na divindade, e sim a que caracteriza
a chamada mineiridade, isto é, o modo de ser mineiro.
O rompimento com crenças, qualquer que seja ela, é
sempre doloroso, uma vez que se perdem as certezas
construídas ao longo do tempo. Em dois poemas: “O que
fizeram do Natal” e “Casamento do céu e do inferno”,
verificamos o contraste entre a religiosidade dos mais
velhos e a iconoclastia do mais jovens. Enquanto o céu
dorme, segue uma rotina comum, o inferno, o mundo
busca novos ritmos, novos valores:
[...]
As beatas ajoelharam
e adoraram o deus nuzinho
mas as filhas das beatas
e os namorados das filhas,
mas as filhas das beatas
foram dançar black-bottom
nos clubes sem presépio.
contrário, tende a levar o leitor à constante reflexão,
levá-lo a ter uma visão não conformista em relação à
vida moderna. Nesse sentido, o eu lírico faz a seguinte
advertência em tom conclusivo: “Se meu verso não
deu certo, foi seu ouvido que entortou”. Tal afirmação
se explica também porque Drummond reconhece que
o leitor de poesia é aquele ainda da poesia tradicional,
parnasiana, com rima, com métrica perfeita e padrão
definido. Apenas para lembrar, em 1924, o parnasiano
Alberto de Oliveira foi eleito o “Príncipe dos poetas”
brasileiro. Isso já durante a efervescência modernista.
Ao contrário dessa visão tradicional, deve o poeta
moderno estar apto a aceitar os ritmos mais variados,
os temas mais disparatados, usar termos em geral,
mesmo os não poéticos. Esse foi, inclusive, o legado
deixado pelo modernismo, conforme constatação do
escritor Mário de Andrade.
“Política literária” é dedicado a Manuel Bandeira
e expressa certo hermetismo, pelo que apresenta
da dificuldade de compreensão mais nítida. O leitor
atual pode, eventualmente, não conseguir chegar ao
real significado do texto. Se considerarmos, porém, o
contexto do modernismo, isto é, os anos 20 e 30, ainda
mais no caso de Bandeira, que entrou em debates
literários contra aqueles que detinham o patamar do
que seria a poesia de alto valor literário, é possível
então compreender melhor a ironia de Drummond
ao dizer que, enquanto poetas menores discutem
quem seria capaz de tirar a primazia do que chama
“poeta federal”, este segue sentindo-se superior.
Nesse sentido, a falsa polêmica de quem seria menor
ou maior sugere uma atmosfera provinciana e pouco
afeita ao que seria, de fato, poesia com valor literário.
Na mesma linha temática, há o poema “Política”,
cujo objetivo é tratar sobre assunto que domina
as discussões acadêmicas e também as literárias:
a escolarização dos literatos. É preciso lembrar
que um valor burguês, advindo do século XIX é a
individualidade criativa. Por outro lado, não existe
criação pura, no sentido de que um escritor vai sempre
tomar por referência suas leituras, o estilo de outros
escritores. Essa ligação entre os pares pode chamar
a atenção dos leitores, o reconhecimento crítico. No
poema em questão, Drummond revela a angústia de
um poeta pelo reconhecimento, pela subserviência
às práticas, bem como a necessidade de seguir esse
ou aquele modelo de criação. Na última estrofe,
entretanto, o poeta, depois de ver-se no limite desse
estado de coisas, liberta-se das amarras, das correntes,
isto é, sente-se livre para ser ele próprio, não seguir
correntes literárias específicas: “livre livre livre que
nem uma besta/ que nem uma coisa.”.
Um dos objetivos do poeta moderna é dizer que
a poesia pode ocorrer mesmo em situações pouco
poéticas, em situações banais. Essa é a lição de
“Poema que aconteceu”, em que o eu lírico expressa a
necessidade de se escrever mesmo sobre o nada, sobre
um dia modorrento, em que nada aparentemente tenha
acontecido, afinal cabe ao poeta antes saber trabalhar
a palavra. Trata-se do mesmo conceito defendido A
rosa do povo (1945), onde está publicado o famoso “À
procura da poesia”.
(O que fizeram do Natal)
Como referência, Black-bottom era uma dança
comum à época, caracterizada pela sensualidade e
pelos movimentos bastante rápidos do corpo.
Em outro poema, “Igreja”, o contraste fica por
conta dos dois significados possíveis para o termo.
50
Alguma Poesia, de Carlos Drummond de Andrade
O diálogo irônico com o Romantismo se estabelece
em outros poemas do livro. Especialmente os que
tratam sobre o amor, como, por exemplo, “Toada do
amor”, “Cantiga de viúvo”, “Esperteza”, “Quadrilha”,
“Iniciação amorosa” e “Balada do amor através das
idades”. Neste último, tem-se uma síntese do modo
de relacionar-se a dois ao longo dos tempos, com
destaque para os tempos modernos, que reconstrói,
pelo cinema, o mito do amor romântico e seu pretenso
final feliz. A ideia de que o amor supera todas as
dificuldades e vence no final. Há em todos dois pontos
essenciais: a necessidade humana de se relacionar e
a constatação de que o amor romântico, idealizado, é
um grande mito. E qual a solução? No caso, a ironia, o
jogo, a brincadeira com o tema. Em “Toada do amor”,
a ideia é mostrar que os relacionamentos, por perfeitos
e necessários que sejam, são marcados por constantes
brigas, discussões, imposição das vontades individuais.
E o amor sempre nessa toada:
Briga perdoa perdoa briga.
[...]
Mas, se não fosse ele, também
Que graça que a vida tinha?
O mesmo conceito se faz presente em
“Esperteza”, em que se lê:
Certo me tornaria
Brinquedo nas suas mãos.
Já em “Iniciação amorosa”, o que se destaca é
a descoberta sexual, não tanto do amor e como essa
descoberta e o consequente desejo mexem com
a quietude humana, tiram a paz de espírito, pela
depois necessidade de voltar a satisfazer tais desejos.
“Sentimental”, por sua vez, revela o contraste entre
sentimentos. Enquanto o eu lírico prepara uma cena
romântica, imagina uma situação cinematográfica em
que escreve o nome da amada com macarrão de uma
sopa, ela parece ser mais prática. Percebendo que ele
não está comendo, e sim divagando, chama-o para a
realidade imediata: “- Está sonhando? Olhe que a sopa
esfria!” Seria algo como dizer a alguém “Eu te amo” e
ouvir apenas uma palavra de agradecimento.
De certo modo, “Quadrilha” resume o que se lê
nos demais poemas aludidos, pois trata dos encontros
e desencontros amorosos, bem como do fato de que
na vida não dá para se controlar o final, o tal final
feliz, como tende a ocorrer em um texto literário, cujo
enredo é dirigido por um escritor: “João amava Teresa
que amava Raimundo/ [...] Lili casou com J. Pinto
Fernandes/que não tinha entrado na história.”
Em contraposição a isso (Drummond sempre
opõe pares como campo/cidade, vida/morte etc., não
no sentido barroco, e sim de modo a revelar as ironias
da vida, as contradições da vida), em “Sweet home”, o
eu lírico percebe que o mundo pode se equiparar a um
grande romance, do qual seríamos todos personagens
a desempenhar papeis diversos. O lar doce lar seria,
pois, qualquer lugar onde podemos viver a realidade
ou a fantasia, “afinal a vida é um bruto romance”, no
sentido que é preciso aos poucos lapidá-lo, tentar tornálo melhor. Trata-se de conceito presente igualmente em
Igreja tanto se refere ao prédio onde ocorrem orações,
como a instituição em si. O eu lírico se aprofunda
mais no segundo significado, para poder destacar o
lado externo das prédicas religiosas, como uma mera
obrigação, e não a expressão de um sentimento real:
“Um sino canta a saudade de qualquer coisa sabida e
já esquecida.” O mesmo se dá em “Romaria”, em que a
ironia se revela mais no final. Após expressar motivos
diversos pelos quais um indivíduo vem a se tornar
romeiro e pagar uma promessa, o eu lírico constata que,
em rigor, Cristo, após atender tantos pedidos, também
teria um pedido: o de trocar toda a humanidade...
Retomando a discussão em torno da poesia
modernista, uma das pautas foi a questão nacionalista
não de modo tão específico como foi durante o
Romantismo, e sim procurando-se abordar o Brasil
como um todo, a questão cultural, racial. É bem
verdade que houve grupos com uma visão mais
nacionalista, de defesa dos valores patrióticos, como
é o caso do chamado Grupo verde-amarelista, de que
fizeram parte os escritores Plínio Salgado e Guilherme
de Almeida. Também houve grupos que defendiam
uma visão mais pluralista, como o Grupo da Poesia
Pau-Brasil, liderado por Oswald de Andrade. No
caso específico de Drummond, não se pode dizer
que tenha se filiado a algum grupo. Não se absteve,
porém, de pensar a questão nacionalista, ainda mais
em época de radicalismos na Europa, que levariam
à eclosão da 2ª. Grande Guerra, ou no Brasil, onde
instaurou-se a Ditadura de Getúlio Vargas, entre 1937
e 1945, que, entre outras coisas, prometia a defesa dos
valores nacionais. Drummond, como poeta, está mais
interessado no diálogo cultural entre os povos. Sabe
que o país não figura entre os principais modelos
culturais, tendo antes se servido de outras culturas
para formar seus referenciais:
O poeta vai enchendo a mala,
Põe camisas, punhos, loções,
Um exemplar da imitação
E parte para outros rumos. [...] (“Fuga”)
Em “Também já fui brasileiro”, tal reflexão
fica ainda mais explícita. No poema, lê-se que o
nacionalismo, embora possa ser uma virtude, algo
positivo, também é um meio de romper com o restante,
com outros universos culturais: “há uma hora em que
os bares se fecham/ e todas as virtudes se negam”.
Nessa mesma linha, destaca-se “Europa, França
e Bahia”, que estabelece explicitamente um diálogo
intertextual com a famosa “Canção do exílio”, de
Gonçalves Dias. No texto romântico, temos a exaltação
das qualidades do país, com especial destaque para
a natureza, até porque o Brasil era um país pouco
desenvolvido em meados do século XIX. Já no texto
de Drummond, o eu lírico, em visita à Europa, vai
da euforia à disforia, pelo que apreende da cultura
dos diversos países. Ironicamente, em um ímpeto de
patriotismo diz que basta daquele mundo que não
é o dele, e quer resgatar os valores nacionalistas,
lembrando-se da “Canção do exílio”, porém não tem
certeza dos conhecidos versos: “Como era mesmo a
‘Canção do exílio’?”
51
Alguma Poesia, de Carlos Drummond de Andrade
matar animais... Ao que parece, consoante a psicologia,
uma compensação moral para atos corriqueiramente
imorais praticados por certos líderes.
Em “Música” e “Cabaré mineiro”, tem-se poemas
menores, que revelam, de qualquer modo, o papel que
a música pode desempenhar, tanto para a expressão
dos sentimentos quanto para a expressão sensual
do corpo. Ainda no caso de “Cabaré mineiro”, temse a mistura cultural tão tipicamente exaltada pelos
modernistas.
A dançarina espanhola de Montes Claros
Dança e redança na sala mestiça.
Emílio Moura (1902-1971) foi um poeta menor
do chamado grupo mineiro que procurou levar o
modernismo a Minas, do qual fizeram parte ainda Pedro
Nava e Cyro dos Anjos, a quem Drummond dedica
poemas no livro. Moura foi um dos grandes amigos de
Drummond, que lhe escreveu “Epigrama para Emílio
Moura”. Importante lembrar que epigrama é um tipo
de poesia que se presta a expressar um sentimento
único, festivo, satírico ou comovente. No caso, o poema
destaca a tristeza que se pode sentir em três situações:
causada por algo externo, como o tempo e o clima; pela
necessidade de se comprar “amor”; e por não poder
revelar um segredo que é de conhecimento comum,
isto é, não poder comentar algo que todos sabem. No
caso, após tantas tristezas, só se pode concluir pelo
lado negativo da vida. Certamente, há no poema um
sentido específico mais direcionado à compreensão do
poeta a quem é dedicado o texto.
Outra constante na poesia de Drummond é a
recorrência à sua cidade natal, Itabira-MG, e também
por locais onde morou, como Belo Horizonte e Rio de
Janeiro. Com efeito, em “Lanterna mágica” e “Sesta”,
por exemplo, o eu lírico retoma sua mitologia pessoal,
revelando os conflitos entre o eu e o mundo, entre a
cidade pequena e a grande, entre a vida modorrenta no
interior de Minas e urbanidade do Rio de Janeiro, com
seus altos prédios e a malandragem, entre o passado
preso a uma época colonial e um presente e suas
inovações tecnológicas. Muitos poemas de Drummond
têm um caráter epifânico, isto é, revelador de verdades
escondidas. Esses em que faz a retomada de tempos
antigos tendem a expressar descobertas, como o da
comparação entre a vida do eu lírico e a de Robinson
Crusoé. “Ai tempo!/ Nem é bom pensar nessas coisas
mortas, muito mortas./ Os séculos cheiram a mofo
[...] O presente vem de mansinho/ de repente dá um
salto:/ cartaz de cinema com fita americana”. Em
“Sesta” trata da família mineira, com destaque para
uma cena comum, em que nada demais acontece, a
não ser pequenos gestos dos pais e dos filhos, que
descansam sob o sol. Outro poema nessa linha temática
é “Família”, em que, por meio de quadros, sintetiza
diversas situações, boas ou ruins, por que passa uma
família, sob a égide da felicidade: “O agiota, o leiteiro,
o turco,/ o médico uma vez por mês [...] A mulher que
trata de tudo/ e a felicidade”.
Finalizemos essa resenha com dois dos poemas
mais significativos, o da abertura, “Poema de sete
faces”, e “No meio do caminho”.
“Infância”, onde o eu lírico diz gostar de ler a história de
Robinson Crusoé, livro publicado em 1719 e escrito por
Daniel Defoe (1660-1731). Crusoé ficou conhecido por
ser um aventureiro dos mares e que acabou preso em
uma ilha. Em contraposição à vida de Crusoé, a do eu
lírico, quando criança, é rotineira, basicamente observa
os pais trabalhando e cria mundos novos. Conclui que
sua vida “era mais bonita que a de Robinson Crusoé”,
afinal a aventura de viver é particular e o que importa,
em contraposição à fantasia, é ter a vida real. Desse
modo, consegue ver, como de resto em vários outros
poemas, algum sublime na banalidade, algo poético no
mundo prosaico, comum.
Ao longo de sua carreira, Drummond revelou
preocupação com os assuntos midiáticos. Em rigor,
viveu o advento do cinema, do rádio e da TV, por isso
acompanhou de perto o desenvolvimento da mídia no
país. Em Alguma poesia, já demonstrava certo cuidado
em tratar a respeito do tema, conforme se verifica em
“Poema do jornal”, no qual revela a necessidade de o
jornalismo dar rapidamente uma notícia, mesmo sem
apuração detalhada, posto que o objetivo maior seria
tomar por um referência um fato, e criar dele uma
reportagem espetacular, ainda não seja totalmente
verdadeira: “O fato ainda não acabou de acontecer/
e já a mão nervosa do repórter/ o transforma em
notícia.” Isso em 1930, quando o jornalismo impresso
dominava a mídia. Agora, com outros recursos de
transmissão, especialmente a internet e a televisão, a
espetacularização da vida, dos fatos banais, ganham
ainda mais amplitude. Um típico exemplo são as redes
sociais, que podem transformar um fato banal em
acontecimento grandioso.
“Outubro 1930” mistura versos e prosa poética
e revela, ao modo jornalístico, os acontecimentos
em torno do Golpe de 1930, que derrubou o então
presidente da república Washington Luís, impedindo
a posse do presidente eleito Júlio Prestes, o que deu
início ao chamado Estado Novo, por oposição ao
período conhecido como República Velha.
Um novo, claro Brasil
Surge, indeciso, da pólvora.
Meu Deus, tomai conta de nós.
“Coração numeroso” e “Lagoa” retomam o
contraste entre localismo e cosmopolitismo. A lagoa
representa algo menor, mais tangível, ao passo que o
mar, pela sua amplidão, pela impossibilidade de vê-lo
por completo representa o “mundo, vasto mundo”. Para
o poeta absorver essa amplidão, esse cosmopolitismo
precisa ter um “coração numeroso”, que apreenda tudo,
que lhe possibilite apreender até o que não é tangível:
“O mar batia em meu peito, já não batia no cais./ A rua
acabou, quede as árvores? A cidade sou eu”.
Em outras ocasiões, o contraste pode vir
de algo inesperado. Em “Anedota búlgara”, por
exemplo, um czar, para demonstrar seu poder, sua
influência, perseguia os contrários a ele, mas julgava
desumano quem caçava pequenos animais ou insetos.
Interessante que Adolf Hitler, que ainda não tinha se
revelado por inteiro ao mundo, também julgava imoral
52
Alguma Poesia, de Carlos Drummond de Andrade
Sobre o poema “No meio do caminho”, já se
escreveu até uma bibliografia, pela importância
do conceito expresso nele. Trata-se de um poema
repetitivo, enfadonho até, mas que, de modo sintético,
expressa as adversidades da vida, metaforizadas no
termo pedra. Para um poeta, as adversidades são a
indiferença, a objetividade técnica, o capitalismo, a
vida sem sensibilidade, sem fantasia etc. E para piorar
é “no meio do caminho”, não no início, não no fim,
ou seja, nos extremos, e sim no meio, cujo avançar ou
retornar pode significar a mesma frustração, o mesmo
dissabor. Eis o paradoxo ou aporia do poeta, que ainda
assim tem de escrever, tem de buscar a revelação
daquilo que está oculto.
Quanto ao “Poema de sete faces”, o número
indicativo do título é significativo, indica totalidade.
No caso ainda, as sete faces estão representadas em
sete estrofes cada uma abordando um aspecto, de
modo a fragmentar o texto em sete quadros, o que
leva o leitor a pensar no estilo cubista. Todo o texto é
construído com base em imagens díspares, mas que
podemos resumir em pares antitéticos:
 eu x mundo;
 moral x desejo;
 expressão pessoal x objetividade.
Na estrofe inicial, já encontramos aspectos
significativos para se compreender a poesia de
Drummond, mas também a poesia nos tempos
modernos. Ao nascer, “um anjo torto/ desses que
vivem na sombra/ disse: Vai, Carlos! Ser gauche na
vida.” Ora, esse anjo é uma metáfora para indicar
o contraditório, indicar o conflito; reforçada pelo
conselho dado ao eu lírico, para que seja gauche, isto
é, seja de esquerda, não no sentido político, mas por
oposição ao que é direito, certo, moralmente falando.
Ser gauche também é não se prender ao satus quo, ao
que é estabelecido como correto. Em um contexto mais
amplo, devemos considerar que o poeta moderno não
está aí para corroborar o que a sociedade afirma, ser
uma espécie de sorriso da sociedade, como queria a
poesia parnasiana, e sim para contestar, chocar, ser a
voz dissidente.
Podemos ainda pensar ainda sob outros aspectos.
O poeta não deve ser mais visto como um arauto, o
mantenedor dos valores sociais, e sim o contrário; ele
é um cacto (para nos referirmos ao famoso poema de
Manuel Bandeira), que, arrancado de sua raiz, de
sua origem, tende a incomodar a todos, a atrapalhar
a rotina, quebrar os paradigmas. Por este motivo,
o coração do poeta, isto é, sua percepção do mundo
tende a ser maior que o próprio universo que o cerca,
pois vai além do óbvio.
Nesse caminho, porém, há muitas pedras, há a
retina que atrapalha a visão, há o desejo que embota
o cérebro: “Meus Deus, porque me abandonastes/
[...] se sabias que eu era fraco.” A metáfora do anjo
é retomada no último poema do livro: “Poema da
purificação”. Nele, o paradoxo, que parece se resolver,
cria outro paradoxo, pois o anjo bom mata o anjo torto,
o anjo mau. Joga então o corpo no rio, cujas águas se
avermelham com o sangue e leva, de certo modo, o
anjo mau por todos os lados, com o curso do rio. E as
sombras dão lugar à luz, que parece ser do próprio
poema, isto é, da capacidade que a linguagem poética
tem de revelar o mundo, para além de uma simples
rima com a palavra Raimundo.
Em resumo, é preciso ler os poemas de Drummond
não com um olhar romântico, passivo e conformado, e
sim seguir o voo do anjo torto, seguir não o caminho
fácil, e sim os descaminhos da vida moderna, cujo
centro é não ter um centro, cuja verdade é não ter
uma verdade. Alguma poesia é, pois, o mapa desse
descaminho. Cabe ao leitor saber ler esse mapa.
EXERCÍCIOS
1.(PUC-RS)
“Quando nasci, um anjo torto
desses que vivem na sombra
disse: Vai, Carlos! ser gauche na vida.
As casas espiam os homens
que correm atrás de mulheres.
A tarde talvez fosse azul,
não houvesse tantos desejos.”
Um dos traços da poesia de Carlos Drummond de
Andrade, como demonstram os versos acima, é a
____________ entre as estrofes, o que nos oferece
uma ideia de fragmentação da realidade.
(A)disponibilidade
(B)carência.
(C)descontinuidade.
(D)indagação.
(E)dissolução.
2. (FUVEST) Refere-se corretamente a Alguma
Poesia, de Drummond, a seguinte afirmação:
(A)A imagem do poeta como gauche revela a sua
militância na poesia engajada e participante,
de esquerda.
(B)As oposições sujeito-mundo e provínciametrópole são fundamentais em vários poemas.
(C)A filiação modernista do livro liberou o poeta
das preocupações com a elaboração formal dos
poemas.
(D)O livro não contém textos metalinguísticos, o
que caracteriza a primeira fase do autor.
(E)A ironia e o humor evitam que o eu-lírico se
distancie ou se isole, proporcionado-lhe a
comunhão com o mundo exterior.
3.
53
(Fuvest) QUERO ME CASAR
Quero me casar
na noite na rua
no mar ou no céu
quero me casar.
Procuro uma noiva
Alguma Poesia, de Carlos Drummond de Andrade
5.
loura morena
preta ou azul
uma noiva verde
uma noiva no ar
como um passarinho.
Depressa, que o amor
não pode esperar!
(A)Caracterize brevemente a concepção de amor
presente neste poema.
(FUVEST) Leia os poemas a seguir:
I.
(...)
Há máquinas terrivelmente complicadas para as
necessidades mais simples.
Se quer fumar um charuto aperte um botão.
Paletós abotoam-se por eletricidade.
Amor se faz pelo sem-fio.
Não precisa estômago para digestão.
(...)
(O sobrevivente)
(B)Compare essa concepção de amor com a que
predominava na literatura do Romantismo.
4.
(UEL) O poema que segue faz parte do primeiro
livro de Carlos Drummond de Andrade, Alguma
poesia, publicado em 1930, e tem como título
“Cidadezinha qualquer”. Leia o poema e assinale
a alternativa correta:
Casas entre bananeiras
Mulheres entre laranjeiras
Pomar amor cantar.
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.
(A)O poema denuncia de forma irônica e com uma
linguagem sintética a monotonia e o tédio que
predominam em pequenas cidades do interior.
(B)O poema mostra com sentimento piedoso o
desajuste existencial do homem diante da
vida.
(C)O poema retrata de modo triste e melancólico
a desventura amorosa do poeta na cidade de
Itabira, onde nasceu.
(D)Predomina no poema um sentimento de
nostalgia do passado, por meio de uma
linguagem muito simples e pouco elaborada
esteticamente.
(E)Há no poema uma preocupação de ordem
social e política que sintetiza o “sentimento do
mundo” do eu lírico.
II.
Cota zero
Stop.
A vida parou.
Ou foi o automóvel?
Sobre esses versos, extraídos de Alguma Poesia,
pode-se dizer que:
(A)Os dois textos podem ser aproximados
quanto ao tema (mecanização do cotidiano);
entretanto, enquanto o primeiro apresenta
uma visão crítica sobre o tema, o segundo faz
uma apologia bem-humorada do progresso
urbano.
(B)Os textos assemelham-se não apenas quanto
ao tema (automatização da vida humana),
mas também quanto à linguagem: ambos
apresentam a brevidade e a descontinuidade
sintática características de Alguma Poesia.
(C)A crítica à mecanização excessiva que
caracteriza a vida moderna evidencia-se, no
texto I, especialmente no emprego da antítese
no primeiro verso, e, no texto II, no emprego
do estrangeirismo, ou barbarismo (stop).
(D)O texto II apresenta, através de uma linguagem
marcada pela concisão telegráfica, a crítica
presente no texto I, uma vez que os termos
zero, stop e parou indicam a total dependência
da vida moderna em relação às máquinas.
(E)A máquina como assunto poético pode ser
verificada nos dois textos, o que torna evidente
a influência exercida, sobre o autor, da
vanguarda artística conhecida como futurismo.
6.(Fuvest)
Chega!
Meus olhos brasileiros se fecham saudosos.
Minha boca procura a “Canção do Exílio”.
Como era mesmo a “Canção do Exílio”?
Eu tão esquecido de minha terra...
Ai terra que tem palmeiras
onde canta o sabiá!
(Carlos Drummond de Andrade,
“Europa, França e Bahia”, ALGUMA POESIA)
54
Neste excerto, a citação e a presença de
trechos.............. constituem um caso de..............
Os espaços pontilhados da frase acima deverão
ser preenchidos, respectivamente, com o que está
em:
Alguma Poesia, de Carlos Drummond de Andrade
Costuma-se reconhecer que estes poemas,
pertencentes ao Modernismo, apresentam
aspectos característicos do “poema-piada”,
modalidade bastante praticada nesse período
literário.
(A) Identifique um recurso de estilo tipicamente
modernista que esteja presente em ambos os
poemas. Explique-o sucintamente.
(A) do famoso poema de Álvares de Azevedo /
discurso indireto.
(B) da conhecida canção de Noel Rosa / paródia.
(C) do célebre poema de Gonçalves Dias/
intertextualidade.
(D) da célebre composição de Villa-Lobos/ ironia.
(E) do famoso poema de Mário de Andrade /
metalinguagem.
SENTIMENTAL
Ponho-me a escrever teu nome
com letras de macarrão.
No prato, a sopa esfria, cheia de escamas
E debruçados na mesa todos contemplam
esse romântico trabalho.
Desgraçadamente falta uma letra,
uma letra somente
para acabar teu nome!
– Está sonhando? Olhe que a sopa esfria!
Eu estava sonhando…
E há em todas as consciências um cartaz amarelo:
Neste país é proibido sonhar.
7.
8.
9.
(PUCCAMP) Este poema é caracteristicamente
modernista, porque nele:
(A) A uniformidade dos versos reforça a
simplicidade dos sentimentos experimentados
pelo poeta.
(B) Tematiza-se o ato de sonhar, valorizando-se o
modo de composição da linguagem surrealista.
(C) Satiriza-se o estilo da poesia romântica,
defendendo os padrões da poesia clássica.
(D) A linguagem coloquial dos versos livres
apresenta com humor o lirismo encarnado na
cena cotidiana.
(E) O dia-a-dia surge como novo palco das
sensações poéticas, sem imprimir a alteração
profunda na linguagem lírica.
(UFJF) Leia, com atenção, o poema Quadrilha, de
Carlos Drummond de Andrade, publicado no livro
Alguma poesia.
Com base na leitura do poema, discuta a
concepção de amor em Drummond.
QUADRILHA
João amava Teresa que amava Raimundo que
amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém. João foi para os Estados
Unidos, Teresa para o convento Raimundo morreu
de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim
suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.
10. (UEM) Assinale o que for correto sobre o poema
abaixo e sobre seu autor, Carlos Drummond de
Andrade.
Cidadezinha qualquer
Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.
(01) Apesar de Drummond ser considerado um dos
expoentes da segunda geração modernista
no Brasil, na qual o ímpeto de novidade da
geração anterior diminui, ainda podemos
encontrar exemplos de uma dicção poética
inovadora em relação a modelos como o dos
parnasianos. O verso “pomar amor cantar.”,
sem pontuação entre as palavras e sem outros
vocábulos, é um exemplo dessa proposição
libertária da linguagem poética que havia
sido iniciada com a geração de 1922.
(Fuvest) Leia os poemas a seguir:
POLÍTICA LITERÁRIA
O poeta municipal
discute com o poeta estadual
qual deles é capaz de bater o poeta
[federal.
Enquanto isso o poeta federal
tira ouro do nariz.
ANEDOTA BÚLGARA
Era uma vez um czar naturalista
que caçava homens.
Quando lhe disseram que também se caçam
borboletas e andorinhas,
ficou muito espantado
e achou uma barbaridade.
55
Alguma Poesia, de Carlos Drummond de Andrade
(02) O último verso do poema, “Eta vida besta,
meu Deus.”, a despeito de seu tom informal
e aparentemente despretensioso, encerra
uma reflexão de cunho existencial que tem
no tempo um de seus elementos principais.
Presente em “Cidadezinha qualquer”, essa
reflexão é um elemento marcante na obra de
Drummond e pode ser encontrada em outros
poemas do autor.
(04) Fruto da consolidação da linguagem poética
em Drummond, a regularidade métrica
marca os primeiros livros do autor, sobretudo
Alguma poesia, seu livro de estreia. Nesse
sentido, é exemplar o uso de redondilhas
maiores no poema reproduzido, ilustrando
um procedimento rigoroso do autor que só
veio a ser modificado com a publicação de
Lição de coisas.
(08) Em termos de utilização de vocábulos e
de escolhas nos campos da rima, do ritmo,
da métrica e da estrofação, “Cidadezinha
qualquer” aproxima-se de outro poema de
Drummond, “No meio do caminho”, embora
esses poemas tenham sido publicados pela
primeira vez em livros diferentes (Alguma
poesia e Libertinagem, respectivamente).
No caso de “No meio do caminho”, o poema,
inclusive, foi alvo de críticas de outros
autores modernistas por sua falta de ousadia
formal.
(16) A referência ao ambiente urbano, presente
desde o título do poema reproduzido, é
ilustrativa em relação a uma das marcas
da lírica de Drummond: o elogio da cidade
em detrimento do universo do campo. A
natureza, sinal de falta de civilização para o
autor, reproduzida em seus poemas como um
elemento capaz de atravancar o progresso,
marcou uma das divergências entre
Drummond e um de seus colegas de geração
modernista, seu irmão Oswald de Andrade,
poeta da natureza e contrário à urbanização.
gABARITO
1.E 2.B
3.a) O amor é caracterizado como algo não
propriamente idealizado, afinal ele aceita qualquer
mulher.b) A concepção de amor era idealizada pelo
"eu-lírico" da poesia romântica. Para ele, o amor era
único e eterno. No caso do poema de Drummond, o
amor não parece ser único.
4.A 5.B 6.C 7.D
8.a) Ambos os poemas são compostos em versos
chamados "livres", pois não obedecem às convenções
da métrica tradicional. O registro de linguagem
é coloquial e há a presença do humor, da ironia,
tipicamente modernista.
9.Trata-se de uma visão irônica do amor, contrariando
a concepção romântica, aquela que prega o amor
único e verdadeiro, para todo o sempre.
10.(01) Apesar de Drummond ser considerado um dos
expoentes da segunda geração modernista no Brasil,
na qual o ímpeto de novidade da geração anterior
diminui, ainda podemos encontrar exemplos de uma
dicção poética inovadora em relação a modelos como
o dos parnasianos. O verso “pomar amor cantar.”, sem
pontuação entre as palavras e sem outros vocábulos, é
um exemplo dessa proposição libertária da linguagem
poética que havia sido iniciada com a geração de 1922.
(02) O último verso do poema, “Eta vida besta,
meu Deus.”, a despeito de seu tom informal e
aparentemente despretensioso, encerra uma reflexão
de cunho existencial que tem no tempo um de seus
elementos principais. Presente em “Cidadezinha
qualquer”, essa reflexão é um elemento marcante na
obra de Drummond e pode ser encontrada em outros
poemas do autor.
56
A hora da estrela
Clarice Lispector (1925-1977) era romancista,
cronista e contista. Publicou o primeiro livro, Perto do
coração selvagem, com menos de vinte anos, em 1944.
Esse período ficou conhecido na literatura como a 3ª
geração do modernismo, ou Geração de 45, da qual
fizeram parte escritores como Guimarães Rosa e João
Cabral de Melo Neto. A obra literária de Lispector
é carregada de simbologia, como meio de tentar
compreender o ser humano, compreender aquilo que
definiria sua existência e sua essência, por assim dizer.
A hora da estrela foi o último publicado em vida,
em 1977, ano também em que Clarice veio a falecer.
O título, estrela, sugere que o romance irá tratar de
alguém conhecido. De modo geral, classificamos como
estrelas pessoas que exercem determinado fascínio
sobre uma coletividade. Assim são chamados, por
exemplo, artistas do cinema ou da música, ou também
pessoas que se destacam em alguma área: fulano é
uma estrela, as estrelas da literatura, como a própria
Clarice Lispector, etc. Porém, a estrela de que o livro
fala é uma pessoa apagada, não é conhecida do grande
público e nem reconhecida por ninguém.
A pessoa de quem vou falar é tão tola que às vezes
sorri para os outros na rua. Ninguém lhe responde
ao sorriso porque nem ao menos a olham. (p. 30)
O livro parece, portanto, ter esse título por dois
motivos: primeiro, ao se selecionar determinada
personagem para um livro, para um filme, enfim
para uma história, há certa tendência de ela tornar-se
conhecida e, eventualmente, adquirir “vida própria”
por assim dizer. Como exemplos, podemos lembrar
de Sherlock Holmes, Moby Dick, Mogli entre outros
tantos dos mais diferentes autores. A segunda razão é
que Macabéa, a protagonista do livro, tem seu momento
de estrelato quando morre e é notícia no jornal. Além
disso, adiantando o final, sua morte ocorre quando é
atropelada por um veículo da marca Mercedes, cuja
logomarca é uma estrela.
O livro, em seu início, não deixa claro ao leitor
quem seria Macabéa. Ao contrário, nas dez primeiras
páginas, o leitor toma contato com quem seria o escritor
do livro sobre ela e sobre o que ele pensa a respeito
dela, que seria sua personagem. Desse modo, temse uma estranheza, pois a autora é Clarice Lispector,
que cria um escritor, que será o criador de Macabéa,
que parece ter existência própria. Isso tudo se explica
aos poucos. Escritores da chamada Geração de 45
ficaram caracterizados por não apenas produzirem
textos literários, mas também por discutirem todo o
processo criativo. A esse jogo discursivo, que mescla a
criação ao processo, dá-se o nome de metalinguagem.
É exatamente nesse tipo de linguagem que A hora da
estrela se encontra. O narrador, chamado de Rodrigo
S. M., é também o pretenso escritor do livro sobre
uma moça que teria visto nas ruas do Rio de Janeiro.
Destaca-a da multidão para narrar a história dela. E,
ao mesmo tempo em que narra essa história, reflete
sobre o processo criativo.
de Clarice Lispector
Tudo no mundo começou com um sim. Uma
molécula disse sim a outra molécula e nasceu
a vida. Mas antes da pré-história havia a préhistória da pré-história e havia o nunca e havia o
sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o
universo jamais começou. [...] Enquanto eu tiver
perguntas e não houver resposta continuarei a
escrever. Como começar pelo início, se as coisas
acontecem antes de acontecer? Se antes da prépré-história já havia os monstros apocalípticos? Se
esta história não existe passará a existir. (p. 25)
Como se pode observar, o narrador alude ao
momento da criação, quando tudo era disforme. Essa
alusão acaba por estabelecer uma comparação com o
ato de criar. Um escritor antes de produzir algo vive um
mundo disforme, há em sua mente ma espécie de caos,
que depois vai tomando forma. Ora, se “tudo no mundo
começou com um sim”, também o escritor deve dizer
para o mundo sem forma; do caos fazer surgir a ordem
por meio de um processo afirmativo. Clarice parece
indicar com seu livro que a criação literária passa a
existir por ela própria, sem dependência com o criador.
Ora, esse é o princípio do livre arbítrio, i.e., se a criação
existe, ela agora precisa ser, precisa da liberdade para
constituir-se plenamente. É o que se dá com A hora da
estrela. Macabéa, uma vez criada, parece ter um ritmo
próprio, de modo que nem o narrador-criador é capaz
de interferir. Por isso, em algumas vezes, Rodrigo se
desespera com algumas atitudes de Macabéa, mas
nada pode fazer, a não ser narrar o que ela mesma vive.
Com isso, vamos também conhecendo o narrador,
que, enquanto registra as ações da personagem
principal, faz autoconsiderações, como meio de
entender seu papel de escritor, sua essência: “ao
escrever me surpreendo um pouco pois descobri que
tenho um destino” [...] “Com esta história, eu vou me
sensibilizar” (p. 29-30)
O narrador, ao fazer diversas considerações sobre
o ato de escrever, sobre o processo criativo, bem como
sobre o poder criativo da palavra - “Disse Deus: Haja
luz; e houve luz.” Gênesis 1:3 -, reconhece que a
palavra é seu objeto, que a língua é seu instrumento de
trabalho: “Mas que ao escrever – que o nome real seja
dado às coisas. Cada coisa é uma palavra. E quando
não se a tem, inventa-se-a” (p. 32)
Por todos esses aspectos, é possível afirmar
que narrador busca aquilo que seria o grau zero da
escritura, i.e., o momento em que o que se escreve
não estaria carregado de valores culturais, de valores
ideológicos, de nada. A palavra bastaria por ela mesma.
Apesar do intento, também podemos pensar que se
trata de um processo um tanto impossível, uma vez
que teria de chegar ao que seria a “pré-pré-história”
de que falou no início. Para falarmos de outro modo,
quando se escreve qualquer coisa, há sempre a visão
de mundo de quem escreve, há os valores ideológicos,
as crenças e tudo o mais que nos torna seres humanos.
57
A hora da estrela, de Clarice Lispector
O jeito é começar de repente assim como eu me
lanço de repente na água gélida do mar [...]. Vou
agora começar pelo meio dizendo que –
– que ela era incompetente. Incompetente para a
vida. (p. 39)
Em seguida, o narrador passa a intercalar a
narrativa propriamente dita com comentários sobre
o ato de narrar e sobre sua percepção a respeito de
Macabéa. Em certo momento, o narrador afirma estar
incomodado com ela: “(Ela me incomoda tanto que
fiquei oco. Estou oco desta moça. E ela tanto mais me
incomoda quanto menos reclama. Estou com raiva.
[...])” (p. 41) ou “Eu não inventei essa moça. Ela forçou
dentro de mim a sua existência.” (p. 45)
Macabéa pouco se importa com o mundo a sua
volta. E isso desperta em Rodrigo certa revolta. Ainda
assim, ele não quer interferir sobre o narrado. Ela
parece viver um mundo apenas dela, num circuito
fechado – talvez mimetizando a própria literatura
que, embora expressa o mundo circundante, isola
esse mundo em um universo significativo, de modo
a compor um enredo com começo, meio e fim bem
definidos: “Ninguém olhava para ela na rua, ela era
café frio.” (p. 42) Ao ser ler uma história, pressupõese que haverá acontecimentos importantes na vida
de determinada personagem. No caso de Macabéa,
o próprio narrador sabe que ela não tem nada
extraordinário para oferecer; sua vida é comum,
medíocre, sem contar outros aspectos que não tornam
a história dela invejável ou exatamente edificante, não
como sugere o título, a história de uma estrela.
Conta que a nordestina sofrera muito na infância
em Alagoas, que a tia, que a criara, lhe batia, que era
xingada e privada das coisas mais simples da vida,
como eventualmente tomar sol na praça ou comer
doce ou mesmo ter um animal de estimação. Não sabia
bem o que era felicidade, mas, por outro lado, também
desconhecia a tristeza. Apenas o sentimento de existir.
Já crescida, vem com a tia ao Rio de Janeiro. Depois de
arrumar-lhe o emprego, a tia falece e ela fica sozinha
na cidade. Para diminuir despesas, passa a dividir
um apartamento com quatro moças, com quem não
tem nenhuma amizade. O apartamento ficava num
bairro frequentado por marinheiros, que vão atrás de
prostitutas.
Morava na rua do Acre, trabalhava na rua do
Lavradio e, para se distrair, frequentava o cais do porto,
na região da Ilha Fiscal. Era uma vida sem perspectiva.
Esse é o motivo que leva o narrador-autor a ficar
confuso quanto ao que sentiria por ela: talvez pena,
talvez ódio ou mesmo amor. Parece querer escapar
dela, porém fica imaginando que talvez ela possa
ainda reagir na vida, e, com isso, buscar algo além
de apenas seguir uma rotina de trabalho, descanso e
passeio sem emoção. Tal modo de narrar revela uma
característica da obra de Lispector, que mais do que
contar uma história, reflete sobre o papel da literatura e
como ela pode ou não expressar a vida real. Literatura,
em rigor, é um constructo e, como tal, pode direcionar
a vida de uma personagem para onde melhor convier
O grau zero seria a negação disso tudo, seria isentarse da História para o retorno ao caos. Chegar a esse
grau zero significaria a capacidade de escrever a partir
do nada, como um deus criando o mundo pela força
da palavra. Se digo “faça-se a luz” e a luz é feita, ora
quem criou a luz se não a palavra, o ato de dizer? Mas
o que era a luz antes dela existir? O que é um livro, um
personagem antes de existir? Nada, apenas o caos. E
para que tudo existe, há que se dizer sim: “A palavra
tem que se parecer com a palavra”. (p. 34)
Isso só pode ser entendido considerando o
conceito de que escrita é um processo criativo e, como
tal, significa dar vida a uma personagem. Essa vida,
porém, deve ser, segundo a concepção do livro, livre da
visão de mundo de quem escreve, e sim expressão do
que seria a pessoa.
Rodrigo não quer, portanto, macular Macabéa
com seu modo de pensar, sua visão de mundo,
seus valores. Quer que ela exista por ela mesma,
personagem nascida do caos que vai tomando forma,
formando corpo. Em conclusão, escrever possibilitaria
ao narrador ser, possibilitaria a ele quebrar a rotina da
vida vazia, sem significados, afinal ele está no grau
zero, está pronto para o processo criativo, pronto para
falar da personagem de modo mais livre, ou julga estar.
[...] não sei se minha história vai ser – ser o
quê? Não sei de nada, ainda não me animei a
escrevê-la. Terá acontecimentos? Terá. Mas quais?
Também não sei. (p. 36)
E quem é Macabéa? Uma nordestina, datilógrafa
(hoje o equivalente a uma digitadora). Mas observese: ela usa da palavra, não como a que cria, e sim
como a que tão somente preenche documentos,
escreve cartas prontas previamente. Nesse sentido,
essa personagem seria o avesso do escritor. Outras
características: é uma moça tímida, com vergonha
da própria nudez, sem grandes expectativas da vida,
vive com poucos pertences, em uma casa simples, sem
luxo ou ostentação. Seu nome é uma homenagem a
Nossa Senhora da Boa Morte, isso porque não se
tinha certeza se ela vingaria, sobreviveria à pobreza.
Mesmo assim, o nome foi dado apenas um ano após
seu nascimento. O mesmo conceito aparece em Vidas
Secas, de Graciliano Ramos. Os filhos dos personagens
Fabiano e Vitória não têm nome. São chamados
apenas de menino mais novo e menino mais velho.
Se sobrevivessem mais tempo, talvez passassem a ser
nomeados. Macabéa conseguiu o feito com um ano.
Apenas disso, seu nome parece uma referência ao que
é macabro, sinistro, diferente.
Rodrigo afirma não querer utilizar termos
complexos em seu texto. Prefere o simples. Fica claro,
pois, a integração plena entre o que se diz e como se
diz. Em termos críticos, seria fundir forma e conteúdo.
A criatura teria de ser uma Eva sem Paraíso, sem nada
antes, apenas o ser construindo-se aos poucos. Para ser
a estrela na hora certa. Nesse sentido, a narrativa em
si começa do nada, começa com uma oração principal,
cuja subordinada se inicia duas vezes com a conjunção
que:
58
A hora da estrela, de Clarice Lispector
ao contexto da obra. Nesse caso, estamos diante de um
laissez-faire por assim dizer. A personagem fica livre
para viver como quer, como é. Com efeito, nem sempre
nossa vida apresenta momentos dignos de uma novela,
de um romance, no sentido de serem diferentes ou
significativos. Mas, muitas vezes, a narrativa moderna,
contemporânea, a dos últimos cinquenta anos, quer
narrar exatamente o nada.
Acabo de descobrir que para ela, fora Deus,
também a realidade era muito pouco. Dava-se
melhor com um irreal cotidiano, vivia em câmera
leeeenta, lebre puuuuuulando no aaaar sobre os
ooooooouteiros, o vago era o seu mundo terrestre,
o vago era o de dentro da natureza. (p. 50)
Além de gostar de ir até o cais, Rodrigo descobre
e comunica aos poucos outros interesses de Macabéa,
entre eles ouvir rádio de madrugada. Maria da Penha,
uma das moças com quem dividia o apartamento,
emprestava a ela um rádio de pilha e ela ouvia músicas
e as mais variadas histórias, além de informações cujo
conteúdo ela não sabia quando ou como utilizar. Outra
distração era ler anúncios de jornais que ela recortava
para ler à noite sozinha. Era o mundo de fantasia que
ela se permitia. Vivia os anúncios e a histórias ouvidas
no rádio como se fora realidade. Era imaginação, que,
me sua mente, virava real.
A narrativa segue, em certo sentido, uma
vertente existencialista, para a qual antes de sermos
algo, existimos. Que antes de nos construirmos
culturalmente, existimos. Eis o ponto do livro. A
essência do livro se constrói aos poucos, ao passo que
Macabéa está ali em presença desde o início, vamos
conhecendo-a passo a passo. “Era apenas fina matéria
orgânica. Existia. Só isto. E eu? De mim só se sabe que
respiro.” (p. 55)
Entre alguns fatos de Macabéa, sabemos que
tinha enjoo para comer e que gostava de certos termos
diferentes, mesmo sem saber o significado, como
efeméride, e que tinha pouca consciência social, no
sentido de não entender que a sociedade tem um
dinamismo e a organização social não é um dado
natural, mas sim cultural e histórico. Como não tem
consciência do porquê da própria vida, também não
teria essa consciência da realidade circundante. Em
um episódio, porém, Macabéa conta ao patrão que
precisaria arrancar um dente e que teria de ficar à
tarde descansando por isso. “E a mentira pegou”. Fato
é que teve um dia todo sozinha no apartamento e pôde
ver-se como alguém que pode ter prazer em dançar,
em ouvir música, em imaginar um possível casamento.
Com frequência, o referido conceito de escritura
zero é retomado pelo narrador, que deixa claro ser
ele apenas um condutor da vida da personagem, que
é a própria quem vive como acha melhor. Em outros
termos, o narrador não quer que a personagem seja
construída com base em sua visão de mundo e sim com
base naquilo que ela quer, almeja.
Nem de longe consegui igualar a tentativa de
repetição artificial do que originalmente eu escrevi
sobre o encontro com o seu futuro namorado. É
com humildade que contarei agora a história da
história. Portanto se me perguntarem como foi
direi: não sei, perdi o encontro. (p. 59)
Macabéa conhece então seu par amoroso na
narrativa. Se ela tem apenas um nome, sem sobrenome,
o par apresenta-se como Olímpico de Jesus Moreira
Chaves. O narrador alerta tratar-se de uma mentira, pois
teria “como sobrenome apenas o de Jesus, sobrenome
dos que não têm pai”. Também é nordestino, mas da
Paraíba. Teve uma vida tão dura e difícil quanto a dela,
o que o levou a cometer alguns crimes, como roubar e
mesmo matar quando era adolescente.
Seu nome mescla a mitologia grega à religião
cristã. O sobrenome de mentira parece ser meio de se
dar maior importância e não ser alguém tão comum.
Trabalhava como metalúrgico. O livro não chega a
explorar de modo tão explícito as diferenças sociais,
talvez porque tenha sido publicado em uma época
quando a censura militar era bem ativa contra o que
se considerava subversivo, como, por exemplo, apontar
problemas sociais. Mesmo assim, vez ou outra, a
narrativa leva o leitor a refletir sobre o que significa
ser um trabalhador braçal e ao estilo de vida comum,
cujo foco é sempre o hoje, não o amanhã, não a criação
de perspectivas. A despeito de algumas ironias: “Mas
ela e Olímpico era alguém no mundo. ‘Metalúrgico
e datilógrafa’ formavam um casal de classe.” (p. 61)
Se Macabéa é pessoa sem grandes projetos, Olímpico
pretende ser deputado, não tanto por querer mudar o
mundo ou coisa que o valha, e sim por achar pomposa
a possibilidade de fazer discursos.
Passaram a se ver com maior frequência. Macabéa
já o considerava seu namorado, embora por não
acontecer nada além de conversa nesses encontros,
Olímpico não a visse do mesmo modo.
Olímpico na verdade não mostrava satisfação
nenhuma em namorar Macabéa — é o que
eu descubro agora. Olímpico talvez visse que
Macabéa não tinha força de raça, era subproduto.
Mas quando ele viu a colega da Macabéa, sentiu
logo que ela tinha classe. (p. 76)
O relacionamento não ocorre de fato porque
Macabéa não se vê como um indivíduo, não consegue
se definir por completo, ao contrário de Olímpico, que
percebe sua própria individualidade. “É, você não tem
solução. Quanto a mim, de tanto me chamarem, eu
virei eu”, diz Olímpico.
As conversas giram em torno daquilo que ela
ouve no rádio: referência a livros, a peças de teatro,
música, cinema, curiosidades inúteis. Embora não
entenda muito sobre o que fala, acha bonito esse tipo
de assunto. Olímpico, de sua parte, não consegue
entendê-la por completo, talvez ser ela incapaz de
expressar sua própria individualidade.
Pensar era tão difícil, ela não sabia de que jeito
se pensava. Mas olímpico não só pensava como
usava palavreado fino. Nunca esqueceria que no
primeiro encontro ele a chamara de “senhorinha”,
ele fizera dela um alguém. Como era um alguém,
comprou um batom cor-de-rosa. O seu diálogo
59
A hora da estrela, de Clarice Lispector
era sempre oco. Dava-se conta longinquamente
de que nunca dissera uma palavra verdadeira. E
“amor” ela não chamava de amor, chamava de
não-sei-o-quê.
– Olhe, Macabéa...
– Olhe o quê?
– Não, meu Deus, não é “olhe” de ver, é “olhe”
como quando se quer que uma pessoa escute!
Está me escutando?
– Tudinho, tudinho!
– Tudinho o quê, meu Deus, pois se eu ainda não
falei! (p. 71)
Por isso, Olímpico passa a prestar mais atenção
em Glória, uma carioca, miscigenada entre portuguesa
e um quê de africana, mas que tinha cabelos loiros
pintados. O modo que Olímpico a vê é repleta de
clichês preconceituosos sobre o corpo da mulher e
outros aspectos: por ser do sul ele a via como superior
à Macabéa, além disso, por ser um pouco mais gorda,
ter ancas grandes, imaginava que ela lhe daria muitos
filhos; por morar com família, possibilitaria a Olímpico
almoços ou jantares, até porque o pai era açougueiro.
Não demora muito e ele termina o namoro com
Macabéa e inicia outro com Glória.
A verdade é que Olímpico não parece apaixonado
por uma ou por outra, quando muito via no possível
namoro uma maneira de ocupar os momentos livres.
Glória, de qualquer modo, poderia ser sua ascensão
social e também meio de se complementar como
ser. Não era exatamente rica, ainda assim tinha
mais dinheiro que ele e também mais dinheiro que
Macabéa. Ela representa o diferente que também o
tornaria diferente daquele menino pobre e que fora
levado a cometer crimes. Ao descrever esse momento, o
narrador evoca famosa frase de Euclides da Cunha: “O
sertanejo é antes de um tudo um forte” transmudada
para “O sertanejo é antes de tudo um paciente”.
Ao ser comunicada de modo nada simpático,
“Você, Macabéa, é um cabelo na sopa. Não dá vontade
de comer”, a nordestina, ao invés de chorar, passa
a rir sem razão aparente. Como ela não tinha uma
individualidade, também não sabia bem que reações
deveria ter nesses momentos específicos. A única
certeza é que gostaria de se casar, de ter um dia de
noiva, vestir-se com tal e festar. Por isso, resolve dar
uma festa de noivado para si mesma. Sobretudo porque
era o que via nos anúncios e também ouvia no rádio.
A festa consistiu em comprar sem necessidade um
batom novo, não cor-de-rosa como o que usava,
mas vermelho vivante. (p.79)
Glória, que trabalhava com ela, se assustou com a
mudança e teve um leve despeito, dizendo que a cor era
próprio de mulheres da vida. Apesar da leve discussão,
Macabéa continuou na sua toada, sem se importar
porque o tal namorado fora “roubado’ por uma colega
de serviço. A partir desse acontecimento, por estranho
que seja, passou a ver em Glória sua ligação com o
mundo. Era com ela que passara a conversar mais, e
mesmo passara a se autoanalisar ou pelo menos se
perceber.
Macabéa, que nunca se irritava com ninguém,
arrepiava-se com o hábito que Glória tinha de
deixar a frase inacabada. Glória usava uma forte
água-de-colônia de sândalo e Macabéa, que tinha
estômago delicado, quase vomitava ao sentir o
cheiro. Nada dizia porque Glória era agora a sua
conexão com o mundo. Este mundo fora composto
pela tia, Glória, o Seu Raimundo e Olímpico — e
de muito longe as moças com as quais repartia o
quarto. (p. 81)
Glória, um tanto chateada com a situação, mas
não arrependida, decide tratar melhor Macabéa, chega
mesmo a convidá-la para um lanche em sua casa. A
atitude causa indignação em Rodrigo, o narrador:
“Soprar depois de morder?” É algo interessante, pois
vai além daqueles comentários feitos em romances
românticos ou realistas, como no caso de Machado de
Assis, em que um narrador tende a tecer comentários
moralizantes. Aqui, é como se o narrador nada pudesse
fazer, apenas seguir o narrado que ocorre por si mesmo.
Revolta-se, entretanto não toma qualquer atitude.
Deixa os acontecimentos seguirem seu curso.
Macabéa, por não ter costume de comer coisas
diferentes (pegou escondido uma pequena barra de
chocolate), no dia seguinte passa mal ao ponto de ter
de ir ao médico, que, sem muita vontade de consultar
a moça, a diagnostica com começo de tuberculose,
doença típica dos românticos do século XIX.
Nesse momento, com alguma surpresa por parte
do leitor, Rodrigo faz uma declaração:
Sim, estou apaixonado por Macabéa a minha
querida Maca, apaixonado pela sua feiura e
anonimato total pois ela não é para ninguém.
Apaixonado por seus pulmões frágeis, a magricela.
(p. 86)
A declaração se explica porque Macabéa é
despida daquilo que nos torna pertencentes a uma
classe social, a uma profissão, a um país, enfim
despida de traços culturais e ideológicos claros. Ela
não é nada, apenas é ser humano. Por isso, Rodrigo
diz ser apaixonado por ela, pelo que ela tem de nada,
e, por isso mesmo, pode ser verdadeira, plena, sem
se prender a estereótipos. “Quanto a mim, só sou
verdadeiro, quando estou sozinho.” (p. 87)
Em alguns momentos, o narrador reconhece
estar fazendo literatura, i.e., construindo uma obra
ficcional e, como tal, ele é o condutor da história. Isso
fica claro quando, após relatar conversa entre Glória e
Macabéa, em que aquela lhe recomenda consultar uma
cartomante para saber de seu futuro, Rodrigo diz estar
“absolutamente cansado de literatura” e interrompe
o narrado por três dias. A última frase grafada fora
a pergunta de Macabéa ainda sobre a cartomante:
“- É muito caro?” Três dias depois, Rodrigo retoma
a narração e repete essa mesma pergunta como se o
tempo fora congelado, enquanto ele se restabelecia do
cansaço de escrever ainda mais sobre uma personagem
sem vida, sem futuro e querendo consultar uma
cartomante a ver se teria algum.
60
A hora da estrela, de Clarice Lispector
Ainda seguindo essa perspectiva, o narrador estar
preocupado com os fatos, contra os quais nada pode
fazer a não ser narrar. Eis seu problema, porque os
fatos parecem enfadonhos e por isso ele fica cansado
da história. Considerando seu projeto inicial, não quer
fazer juízos de valor ou outras considerações variadas.
(Como é chato lidar com fatos o cotidiano
me aniquila, estou com preguiça de escrever
esta história que é um desabafo apenas. Vejo
que escrevo aquém e além de mim. Não me
responsabilizo pelo que agora escrevo.) (p. 90)
Em seguida, narra a ida de Macabéa até Olaria,
onde Madama Carlota, a cartomante, faz suas
consultas.
Conseguiu dispensa do trabalho com outra
mentira, Glória lhe emprestara dinheiro e ela foi até
Olaria de taxi. Macabéa ouviu inicialmente a história
de Carlota. Soube que ela fora prostituta quando
mais jovem, depois, já sem cliente começou a colocar
cartas, mesmo sob o olhar vigilante da polícia. Para
ela, sempre fora agraciada pela benevolência de Jesus
Cristo, a quem devotava toda sua fé. Em sua fase de
prostituta, diz que chegou a viver com um homem fixo,
mas ele a tratava muito mal, por isso teria se envolvido
com mulheres, para ao menos ter um pouco de carinho
sem brutalidade.
Conforme contava sobre a própria vida,
perguntava a Macabéa se ela já conhecera homem, se
ela se pintava, se enfeitava com frequência, entre outros
questionamentos. Ante às negativas, Carlota, com base
nas experiências que tivera além de ter aprendido a
conhecer as pessoas por pouco que lhe revelavam,
conclui que a vida de Macabéa era horrível: “Macabéa
empalideceu: nunca lhe ocorrera que sua vida fora
tão ruim.” (p. 94) A verdade é que Macabéa nunca
prestara atenção efetivamente em sua vida, se é que
tinha alguma. Para ela, bastava o momento presente.
Por isso, não projetava futuro, nada que demandasse
tempo para se realizar.
E aqui vem o momento crucial da história de
Macabéa, aproxima-se a hora da estrela. Carlota lhe
diz que sua vida mudará, que ela será mais feliz,
em todos os sentidos, no amor, no dinheiro, pois iria
se casar com um homem estrangeiro e rico. E eis o
problema para ela, pois como ficar esperando por algo
que ela nem conhecia, não fazia parte da sua realidade
imediata. De qualquer modo, Macabéa passou a se
sentir outra imediatamente. Mais uma vez pelo poder
criativo da palavra.
Macabéa ficou um pouco aturdida sem saber se
atravessaria a rua pois sua vida já estava mudada.
E mudada por palavras – desde Moisés se sabe
que a palavra é divina. Até para atravessar a rua
ela já era outra pessoa. Uma pessoa grávida de
futuro. (p. 98)
E, de fato, Macabéa tem um encontro com um
homem rico, porém, ao invés de ser um encontro
amoroso, ao decidir atravessar a rua, não vê e nem é
vista. Um carro Mercedes a atropela e ela fica jogada
ao chão, próximo ao meio fio, agonizando e tentando
entender o que acontecera. É o momento, a hora em
que a estrela surge no livro, para transformar Macabéa
em uma estrela fugaz.
Quase o final do livro, o narrador faz uma série
de considerações em torno do narrado, mais do que já
fizera, especialmente para, mais uma vez, se desculpar
por não poder fazer nada por Macabéa, pois nem ele
poderia prever o atropelamento, nem saberia dizer que
aquilo a levaria ou não à morte.
Macabéa por acaso vai morrer? Como posso
saber? E nem as pessoas ali presentes sabiam.
(p. 100)
E adiante:
Por enquanto Macabéa não passava de um vago
sentimento nos paralelepípedos sujos. Eu poderia
deixá-la na rua e simplesmente não acabar
a história. Mas não: irei até o ar terminar [...]
(p. 102)
No final, o narrador reflete outra vez sobre a
existência, sobre o que pode significar a vida. Há uma
mescla de clichês, de filosofia existencialista e visão
cristã, sem que isso interfira de fato na caracterização
da personagem, cuja existência ocorre por ela mesma,
sem interferência do narrador.
No chão, Macabéa, moribunda, parece
finalmente perceber-se como alguém, como um ser
existente, devido à quantidade de pessoas que estavam
próximas, mais olhando-a que tentando ajudá-la.
Eis então o momento em que Macabéa, a estrela do
título, é descoberta, torna-se alguém, por algum tempo
ao menos, torna-se alvo dos olhares. Ela que nunca
fora vista por ninguém. E essa multidão ouvem-na
dizer uma frase que aparentemente não tem sentido:
“Quanto ao futuro.”
Macabéa, com essa afirmação, parece fazer uma
piada, mas ao que parece também tem um tanto de
constatação teleológica que a morte pode ter. Ora, a
morte dela liberta Rodrigo de sua obrigação, e o leva
a perceber que ele também é mortal, que pode não
ser o fim. Não se trata de uma explicação cristã, da
possibilidade de ir para o Céu ou para o Inferno, e
sim tem-se a revelação catártica de que a “morte é um
encontro consigo”.
Ela estava enfim livre de si e de nós. Não vos
assusteis, morrer é um instante, passo logo, eu
sei porque de morrer com a moça. Desculpai-me
esta morte. É que não pude evitá-la, a gente aceita
tudo porque já beijou a verdade. (p. 105)
Eis o aspecto essencial desse livro em particular
e da obra de Clarice Lispector em geral, o problema
da existência. Por que existimos? O que somos? O que
queremos de fato? O que nos torna humanos? Além
disso, há ainda a problemática da mulher, do papel
do feminino em uma sociedade machista, construída
para o homem. Sempre importante lembrar que o
livro foi publicado nos anos 70, quando o discurso
feminista procurava afirmar sua validade. Macabéa é
nordestina, sem voz, sem vida externa, que aceita a
vida como ela é. Glória acredita na felicidade, ainda
61
A hora da estrela, de Clarice Lispector
que tenha de fazer algo moralmente não tão aceitável.
Madama Carlota é livre por vias tortas, para afirmar
sua feminilidade teve de servir o corpo aos homens a
fim de poder construir uma pretensa identidade.
Em conclusão, o livro pode ser lido como revelador
de que tudo se dá por um processo de construção:
o autoconstruir-se de Macabéa, o descobrir-se por
parte do narrador-autor e a construção da narrativa,
cujo elemento chave é a linguagem. A linguagem
reprodutora dos fatos, mas também construtora do real
ou de uma realidade possível, a que transforma alguém
desconhecido em uma estrela do momento, fugaz.
Mal acreditava que usufruía o espaço. E nem
uma palavra era ouvida. Então dançou num ato
de absoluta coragem, pois a tia não a entenderia.
Dançava e rodopiava porque ao estar sozinha se
tornava: l-i-v-r-e! Usufruía de tudo, da arduamente
conseguida solidão, do rádio de pilha tocando
o mais alto possível, da vastidão do quarto sem
as Marias. Arrumou, como pedido de favor, um
pouco de café solúvel com a dona dos quartos, e,
ainda como favor, pediu-lhe água fervendo, tomou
tudo se lambendo e diante do espelho para nada
perder de si mesma. Encontrar-se consigo própria
era um bem que ela até então não conhecia. Acho
que nunca fui tão contente na vida, pensou. Não
devia nada a ninguém e ninguém lhe devia nada.
Até deu-se ao luxo de ter tédio – um tédio até
muito distinto.
EXERCÍCIOS
1. (FUVEST) Em A Hora da Estrela, o narrador
apresenta a seguinte reflexão: “ Pois na hora
da morte a pessoa se torna brilhante estrela de
cinema, é o instante de glória de cada um e é
quando como no canto coral se ouvem agudos
sibilantes”.
Com base nela, explique:
(A)Por que o romance tem o título A hora da
estrela?
(B)Por que é irônica a relação entre o título e a
história de Macabéa?
2.
Considerando-se o fragmento e a obra, é correto
afirmar:
(01) A personagem apresenta-se como um ser
dissimulado, astuto e ambicioso.
(02) A liberdade proporciona a Macabéa um
momento de autoconhecimento.
(04) A felicidade, para Macabéa, reside na
superação de desafios cotidianos.
(08) A declaração “Às vezes só a mentira salva”
revela relativismo moral e ironia.
(16) Solidão e liberdade apresentam-se como
ingredientes necessários ao bem-estar da
personagem.
(32) Os motivos da felicidade vivenciada pela
personagem apontam para a complexidade
de seus projetos existenciais.
(64) A expressão “as quatro Marias cansadas”
revela, simultaneamente, a perda da
individualidade dessas personagens e o
contraste com a situação de Macabéa,
narrada no fragmento.
3.
(FUVEST) Sobre o narrador de A hora da estrela,
de Clarice Lispector, pode-se afirmar que:
(A)(é do tipo observador, pois revela não ter
conhecimento sobre o que se passa no universo
sentimental e psíquico da personagem
(Macabéa).
(UFBA) Pois não é que quis descansar as costas
por um dia? Sabia que se falasse isso ao chefe ele
não acreditaria que lhe doíam as costelas. Então
valeu-se de uma mentira que convence mais que
a verdade: disse ao chefe que no dia seguinte não
poderia trabalhar porque arrancar um dente era
muito perigoso. E a mentira pegou. Às vezes só
a mentira salva. Então, no dia seguinte, quando
as quatro Marias cansadas foram trabalhar, ela
teve pela primeira vez na vida uma coisa a mais
preciosa: a solidão. Tinha um quarto só para ela.
(B)(é onisciente, pois assume o papel de criador
de uma vida, sobre a qual detém todas as
informações; o poder da onisciência é, para
ele, fonte de satisfação, pois Rodrigo S. percebe
que os fatos dependem de seu arbítrio.
(C)é do tipo observador, pois limita-se a descrever
superficialmente as emoções de Macabéa, o
que fica evidente nas ocorrências enigmáticas
do termo “explosão“, apresentado sempre
entre parênteses.
62
A hora da estrela, de Clarice Lispector
(D)constitui-se como um personagem, pois narra
em primeira pessoa; não há, entretanto,
referências à sua história pessoal, visto que
seu objetivo é falar sobre um personagem de
ficção (Macabéa).
(E)é um dos personagens do livro; entretanto,
ao apresentar-se não só como narrador, mas
também como criador da história, problematiza
a essência da literatura de ficção, que reside
na recriação arbitrária do real.
4.
(FUVEST) Devo registrar aqui uma alegria. é que
a moça num aflitivo domingo sem farofa teve urna
inesperada felicidade que era inexplicável: no cais
do porto viu um arco-íris. Experimentando o leve
êxtase, ambicionou logo outro: queria ver, como
uma vez em Maceió, espocarem mudos fogos
de artifício. Ela quis mais porque é mesmo uma
verdade que quando se dá a mão, essa gentinha
quer todo o resto, o zé-povinho sonha com fome
de tudo. E quer mas sem direito algum, pois não
é? (Clarice Lispector, A hora da estrela )
Considerando-se no contexto da obra o trecho
sublinhado, é correto afirmar que, nele, o
narrador:
(A)assume momentaneamente as convicções
elitistas que, no entanto, procura ocultar no
restante da narrativa.
(B)reproduz, em estilo indireto livre, os
pensamentos da própria Macabéa diante dos
fogos de artifício.
(C)hesita quanto ao modo correto de interpretar a
reação de Macabéa frente ao espetáculo.
(D)adota uma atitude panfletária, criticando
diretamente as injustiças sociais e cobrando
sua superação.
(E)retoma uma frase feita, que expressa
preconceito antipopular, desenvolvendo-a na
direção da ironia.
6.
(ITA) O título do livro A hora da estrela, de Clarice
Linspector, diz respeito ao seguinte momento do
romance:
(A)o desspertar amoroso de Macabéa no namoro
com Olímpico.
(B)a descoberta de Macabéa de que Olímpico a
traia com Glória.
(C)a obtenção por Macabéa de um bom emprego
como datilógrafa.
(D)a previsão do grande futuro de Macabéa, feita
pela cartomante.
(E)a morte de Macabéa, atropelada por um carro
de luxo.
7.
(ENEM) Tudo no mundo começou com um sim.
Uma molécula disse sim a outra molécula e
nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia
a pré-história da pré-história e havia o nunca e
havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas
sei que o universo jamais começou.
[...]
Enquanto eu tiver perguntas e não houver
resposta continuarei a escrever. Como começar
pelo início, se as coisas acontecem antes de
acontecer? Se antes da pré-pré- história já havia
os monstros apocalípticos? Se esta história não
existe, passará a existir. Pensar é um ato. Sentir
é um fato. Os dois juntos – sou eu que escrevo o
que estou escrevendo. [...] Felicidade? Nunca vi
palavra mais doida, inventada pelas nordestinas
que andam por aí aos montes.
Como eu irei dizer agora, esta história será o
resultado de uma visão gradual – há dois anos e
meio venho aos poucos descobrindo os porquês.
É visão da iminência de. De quê? Quem sabe se
mais tarde saberei. Como que estou escrevendo
na hora mesma em que sou lido. Só não inicio
pelo fim que justificaria o começo – como a
morte parece dizer sobre a vida – porque preciso
registrar os fatos antecedentes.
LISPECTOR, C. A hora da estrela. Rio de Janeiro:
Rocco, 1998 (fragmento).
5. (FUVEST) “A ação desta história terá como
resultado minha transfiguração em outrem (…)”.
Neste excerto de A hora da estrela, o narrador
expressa uma de suas tendências mais marcantes,
que ele irá reiterar ao longo de todo o livro. Entre
os trechos abaixo, o único que NãO expressa
tendência correspondente é:
(A)“Vejo a nordestina se olhando ao espelho e
(…) no espelho aparece o meu rosto cansado e
barbudo. Tanto nós nos intertrocamos”.
(B)“é paixão minha ser o outro. No caso a outra”.
(C)“Enquanto isso, Macabéa no chão parecia se
tornar cada vez mais uma Macabéa, como se
chegasse a si mesma”.
(D)“Queiram os deuses que eu nunca de escreva o
lázaro porque senão eu me cobriria de lepra”.
(E)“Eu te conheço até o osso por intermédio de
uma encantação que vem de mim para ti”
63
A elaboração de uma voz narrativa peculiar
acompanha a trajetória literária de Clarice
Lispector, culminada com a obra A hora da
estrela, de 1977, ano da morte da escritora. Nesse
fragmento, nota-se essa peculiaridade porque o
narrador
(A)observa os acontecimentos que narra sob uma
ótica distante, sendo indiferente aos fatos e às
personagens.
(B)relata a história sem ter tido a preocupação de
investigar os motivos que levaram aos eventos
que a compõem.
(C)revela-se um sujeito que reflete sobre questões
existenciais e sobre a construção do discurso.
(D)admite a dificuldade de escrever uma história
em razão da complexidade para escolher as
palavras exatas.
(E)propõe-se a discutir questões de natureza
filosófica e metafísica, incomuns na narrativa
de ficção.
A hora da estrela, de Clarice Lispector
gABARITO
1.a) A hora da estrela alude, metaforicamente, à morte,
ao instante de fulguração rápida, mas reveladora de
todo um sentido de existência. É a epifania à maneira
de Clarice Lispector, dentro da ótica existencialista da
busca do sentido da experiência humana. Além disso,
é uma referência irônica à estrela do automóvel que a
atropela.
b) A ironia, trágica no caso, dá-se pela discrepância
entre a breve aspiração de glória de Macabéa,
insuflada pela cartomante (a miragem da estrela
hollywoodiana), a sua condição social (migrante
nordestina marginalizada no Rio de Janeiro) e seu
destino: atropelada por um carro de luxo, na porta
do Copacabana Palace. A hora da estrela, banal e
reveladora, é o instante maior de Macabéa, anônima,
estatelada na rua, mas objeto da atenção fugaz de
transeuntes anônimos.
2. (08) A declaração “Às vezes só a mentira salva”
revela relativismo moral e ironia.
(16) Solidão e liberdade apresentam-se como
ingredientes necessários ao bem-estar da personagem.
(64) A expressão “as quatro Marias cansadas” revela,
simultaneamente, a perda da individualidade dessas
personagens e o contraste com a situação de Macabéa,
narrada no fragmento.
3.E 4.E 5.C 6.E 7.C
64
Melhores contos de Nélida Piñon
de Nélida Piñon
são narrados em terceira pessoa e não apresentam
personagens com nomes específicos. São sempre
tratados por pronomes ou por substantivos: ela, ele,
homem, mulher etc.
“Fraternidade” é o primeiro conto, que trata
inicialmente do relacionamento entre dois irmãos.
No caso, a personagem principal, uma moça, tem de
cuidar do irmão doente, após a morte da mãe. O irmão
vive recluso em seu quarto, acamado. Ela faz tudo
por ele. Como meio de ter momentos apenas seus,
libertar-se da necessidade dos cuidados que tem para
com o irmão, ela se entrega a homens viajantes que
necessitam de algum pouso.
Quando a mãe morreu, ninguém da cidade
apareceu para as despedidas do corpo. Mas, a
filha procurou tudo esquecer. Com a ajuda de
viajantes que ali pernoitaram, nomes obscuros e
jamais identificados, pôde enterrar a mãe. (p. 21)
Um desses homens torna-se seu companheiro
fixo. No entanto, o que poderia ser meio de ela ter
suas atividades divididas, de ter uma colaboração,
transforma-se em outro peso. Ela agora, além de servir
ao irmão, deve também estar sempre disposta a seu
homem. Ou seja, deve cumprir seu papel de “esposa”,
“amante”, cuidadora da casa, provedora do lar. O
meio de tentar subverter essa ordem é pelo sexo. Sabe
que, de certo modo, acaba por prender aquele que é
servido. Trata-se de um jogo entre a visão patriarcal,
de dominação masculina, e a construção do universo
feminino. Em dado momento da narrativa, esse jogo
volta a ser mais favorável aos homens da casa.
Percebia que o homem não dependia do seu
consentimento para preservar um mundo que
se fez seu na conquista. [...] Nem perguntaram,
e você, tem fome? O idiota ameaçava falar como
se a sua recente habilidade liberasse-o para as
tentativas mais ousadas. (p. 36 e 38)
Ela tem consciência de seu papel, tem
consciência de que é a serviçal, ao mesmo tempo
que projeta reconquistar o terreno perdido. Em dado
momento, cansada desse servilismo, decide matar o
irmão. Interessante que o faz como se estivesse ainda
cuidando dele. Limpa-o, troca sua roupa, toca em seu
corpo até golpeá-lo mortalmente. Não revela qualquer
dor ou arrependimento. Ao contrário, sente-se forte,
sabe que é preciso também fazer o mesmo com o
homem que agora dominava a casa. E o faz enquanto
ele dorme.
Consciente da sua força, jamais sofrendo os
resultados de qualquer ato que viesse a praticar,
olhou as mãos, a faca no bolso da saia e
murmurou, até que será fácil se eu não tiver pena.
E caprichosa, entrou no quarto onde certamente
estendia-se o homem amado. (p. 41)
“Breve Flor” relata a história do crescimento
sentimental de uma moça, que se relaciona com o
primeiro rapaz que lhe agrada. Seria algo como para
Uma das escritoras mais estudadas dos últimos
trinta anos tem sido Nélida Piñon (1937). Jornalista
de profissão, a autora vem publicando livros desde
a década de 60, especialmente romances e contos.
Tornou-se membro da Academia Brasileira de Letras
em 1990 e a primeira mulher eleita para ocupar a
presidência da casa. Não é pouca coisa, pois a literatura,
historicamente, foi exercida mais por homens que por
mulheres. A explicação é um tanto óbvia: a mulher foi
relegada mais aos serviços domésticos que à atividade
intelectual. O século XIX até contou com ou uma
outra mulher na literatura, mas foi no século XX que
surgiram nomes como Raquel de Queiroz, Clarice
Lispector, Lygia Fagundes Telles e a própria Nélida
Piñon. No caso específico da obra literária de Piñon a
discussão em torno dos papéis femininos na sociedade
é recorrente.
Tal temática é bastante comum nos três livros
de contos de onde foram extraídas as 22 narrativas
para a coletânea Os melhores contos de Nélida Piñon,
publicada em 2014. Do primeiro livro, Tempo das frutas
(1966), são onze contos; de Sala de armas (1973), seis;
e, de O calor das coisas (1980), outros cinco.
A linguagem é um importante meio de
manipulação política. É pela linguagem que se
constroem os discursos e se cria um universo pela
literatura. Consciente desse papel, a autora quer, em
seus contos, revelar os implícitos discursivos e de
que modo o machismo se perpetuou historicamente.
Em contrapartida, por meio da ironia e de outros
mecanismos linguísticos, revela o modo de olhar o
feminino, sem cair no discurso fácil das feministas.
Seu objetivo antes é o mostrar que a opressão deve
ser combatida pela ação e também pela reconstrução
discursiva. Sabe que assim terá mais chances de revelar
e desvendar a alma das personagens, espelhos do ser
humano. Não se trata, pois, de um texto que pretende
tão somente falar da mulher, e sim compreender o ser
humano.
No caso específico de Piñon, nem sempre é possível
separar o enredo, a história, do próprio discurso, tendo
em vista que um constrói o outro. Há em seus textos
uma visão crítica da vida, com um erotismo ora velado,
ora explícito, mas nunca gratuito, como meio também
de compreender as atitudes humanas.
Para facilitar a análise, vamos tratar dos contos,
respeitando o livro onde foram originalmente
publicados. Desse modo, tem-se uma visão de conjunto
da coletânea.
De Tempo das frutas, incluindo o que dá título
ao volume, há onze contos. Publicado originalmente
em 1966, insere-se em um contexto de busca de mais
direitos às mulheres, no sentido de proporcionar que
a mulher fale, tenha liberdade para se expressar. Um
dos caminhos é explorar a sensualidade do corpo,
não a do sexo pelo sexo, e sim como meio de afirmar
sua individualidade, de constituir-se. Os contos
65
Melhores contos de Nélida Piñon, de Nélida Piñon
sair de sua rotina busca alguém que a complemente,
que a complete. Inexperiente, engravida desse primeiro
homem, que a abandona antes mesmo do nascimento
do filho. Já mãe, relaciona-se com outro homem, não
por amor, mas por necessidade um tanto financeira,
outro tanto para ter suporte, proteção. Após o menino
ter crescido, percebe que seu relacionamento não tem
mais razão de ser, além disso percebe que viver em um
sítio era pouco para ela, para o que imaginava ser a
vida que projetara, especialmente no que diz respeito
à construção de sua identidade como ser humano e
como mulher, em particular. Parte com o filho para a
cidade. Acolheram-nos uma casa de freiras, mas a vida
reclusa, de oração e trabalho também não a satisfazia.
Despediram-se no dia seguinte, abafando certa
fé que sufoca as decisões necessárias, ainda que
reconhecessem luta maior se iniciando. (p. 49)
Nesse tempo todo, o menino virara homem.
Sempre um cuidando do outro, trabalhando em
conjunto. Trata-se de uma história de amor materno
e filial, cujo título se explica após a morte da mulher.
“Quando o filho a enterrou, enfeitou-lhe a sepultura
com a brevidade das flores” (p. 50) O título sugere
algo romântico, segundo a visão tradicional da mulher,
ou seja, aquela que deve cuidar do lar, do marido. No
entanto, a mulher desse conto não fica à espera, está
sempre em busca de algo, como de resto os demais
contos de Nélida Piñon que têm como personagem
principal uma mulher.
O mesmo se dá em “Aventura de saber”, que
lembra um pouco “Missa do Galo”, de Machado de
Assis (detalhe, a autora escreveu “O ilustre Menezes”,
em que reescreve esse conto de Machado. Adiante
iremos analisá-lo). Em ambos os contos, há um jogo
sensual entre uma mulher adulta e um rapaz ou, no
caso do conto de Nélida, mais especificamente um
adolescente.
O leitor da época em que foi publicado o conto
(anos 60) pode ter se sentido mais incomodado,
sobretudo porque era mais incomum uma mulher
mais velha se relacionar com alguém mais jovem. Não
que isso não acontecesse, mas sem dúvida sugeria
um escândalo, agravado ainda mais pelo fato de essa
mulher ser a professora do menino. Modernamente, o
caso tem o seu tanto de escandaloso, ainda mais por se
tratar de um menor de idade, mas a sociedade parece
aceitar um pouco mais relacionamentos nem sempre
convencionais, por assim dizer.
Como se trata de algo não aberto, não público, o
caso se estabelece antes na mente que propriamente
na realidade. Um jogo em que misturam sensualidade
tímida e desejos contraditórios.
O conto de Piñon se inicia com o retorno de uma
professora às suas atividades após uma estranha doença.
Em seguida, o leitor, por meio de uma narrativa sutil,
singela, poética e delicada, toma contato com o que
ocorrera. No caso, a professora passa a notar entre os
alunos de uma turma (nada é nomeado explicitamente,
fica apenas no âmbito do indefinido). Em um primeiro
momento, percebendo que o menino parecia olhar para
ela de modo diferente, passa a nutrir não ainda uma
paixão, e sim o conflito entre o que ela é, o papel que
ela desempenha, bem como a diferença de idade entre
eles. Ainda assim, em dado momento, sente um pouco
de ciúmes ao perceber que uma menina se aproxima
do “seu” menino. Repreende-os ao ponto de mais tarde
haver até a necessidade de uma reunião com os pais,
uma suspensão do menino.
Após o episódio, a aproximação parece inevitável,
e passam a conversar sobre assuntos gerais.
À medida que ele falava, aquele corpo, e
definitivamente percebia-o um homem, embora
inexperiente para amar, revelou-se desajeitado,
perdendo a harmonia que ela sempre teimara
descobrir. (p. 59)
Sozinha, começa a pensar nas possíveis
consequências, positivas e negativas, de uma
aproximação efetiva. Decide, por fim, que irá se
declarar ao menino, por não suportar mais a agonia
daquele sentimento, era preciso expressar-se, revelar
o que era oculto. Porém, para sua surpresa e decepção,
viu, na sala de aula, que o menino era ainda apenas um
adolescente, imaturo e incerto em seus sentimentos.
Percebeu isso, ao ver novamente a menina próxima
a ele, conversando com mais desenvoltura, mais
cuidado, com olhares desejosos.
A se ressaltar, portanto, que o enredo contraria
aquela visão tradicional da professorinha, cuja função
seria a de ensinar tão somente. No caso, essa professora
revela uma sensualidade, vai contra o senso comum,
de qualquer época e, particularmente, do contexto
anterior às revoluções feminista e sexual dos anos 60.
Nessa mesma linha, está “Tempo das frutas”, em
que uma senhora de 70 anos revela a sua filha estar
grávida. Se no século XXI a prática do sexo por uma
mulher idosa pode ser vista como algo normal, na
década de 60 do século passado era quase uma afronta
à moral vigente. Não por acaso, a primeira frase do
conto é da perspectiva da jovem, que “teve nojo do seu
cheiro como daquela velhice que era a aparência da
morte” (p. 97). Aos poucos, porém, a jovem compreende
que uma mulher mais idosa, mais madura pode ainda
amar, ser amada, pode ainda sentir prazer. Não está
apenas à espera da morte.
Em “A força do poço” e “Miguel e seu destino”,
temos a temática da loucura. O que se observa em
ambos os contos é que a perda da sanidade, motiva a
construção do sentido para a vida em outros aspectos.
No primeiro caso, o personagem principal vê em um
poço algo que o ligaria a seu universo particular,
uma vez que qualquer outro lugar ou objeto não lhe
devolveriam o sentido.
Levado para o hospital, ali ficou em repouso. A
cabeça estourava no riso e na lágrima, expulsando
a galanteria dos momentos amáveis. Parecia o
corpo crescer esmagado contra a parede, tais os
recursos que o impulsionavam contra as extensões
brancas. Logo que o rosto tornou-se severo e
a mancha das explosões fáceis o abandonou,
os amigos suspenderam as visitas, e a família
também. (p. 61).
66
Melhores contos de Nélida Piñon, de Nélida Piñon
Por isso, a solução foi passar a viver em um
poço. O que era uma atitude desesperada, revelou-se
sua escapatória. Era ali que via sentido em sua vida,
tentando reconstruir-se como ser, como indivíduo.
Ia conquistando paciente a liberdade através da
sujeira e da fragmentação do corpo. Restava-lhe
agora desfrutá-la. Sim, o homem se aperfeiçoava,
a despeito das dificuldades. (p. 66)
No caso de “Miguel e seu destino”, o personagem
principal, um dos únicos que são nomeados em todo o
primeiro livro de contos, motivado por comiseração e
também por desvio da racionalidade, Miguel cumpre o
seu destino, no caso matar um indivíduo leproso (hoje,
diríamos portador de hanseníase). Para dar sentido
ao seu ato, estabelece uma analogia entre matar um
animal qualquer, como um porco, para que possamos
nos alimentar, e matar uma pessoa doente, como meio
de aliviá-la do sofrimento.
Depois de ter vivido aquela intimidade sufocada
por feridas, apenas os olhos libertos do horror em
que se tornar, nenhum homem podia viver em paz.
Aquele ato consumia a sua vida. (p. 73)
Outro conto em que se tem a presença de algo
aparentemente sem sentido é “A vaca bojuda”. Não
se pode afirmar categoricamente que temos outro
caso de insanidade. Ainda assim, o proprietário da
vaca deixa de a ver como um simples animal, para
considerá-la uma amiga, uma companheira. Mesmo
sendo casado e tendo família, parece que é com a vaca
que a vida tem mais sentido para ele. O título, vaca
bojuda, é por referência à descrição da vaca: gorda
ou arredondada. O ponto culminante ocorre quando a
vaca, doente, falece. O homem então, para se despedir
da amiga, faz o enterro do animal como se fosse um ser
humano, e exige a presença de toda a família. Como
nos dois contos anteriores, o objetivo é revelar que os
indivíduos buscam um sentido para a própria vida. No
caso específico desse homem, mais do que cuidar da
família, embora o fizesse, o sentido estava na amizade
com a vaca. Esse é o significado mais geral dos contos
de Nélida Piñon. Se a vida é um constructo, há que se
buscar algo significativo para dar razão à ela.
Com “Menino doente”, a autora, para além de
abordar a doença de uma criança, quer, antes, revelar
o distanciamento entre pai e filho. Segundo o que
se depreende da leitura, o pai, por trabalhar muito e
passar pouco tempo em casa, acaba vendo o filho mais
à noite, sem que entre eles houvesse maior afinidade.
Por isso mesmo, agora doente, o menino se mantém
arredio às investidas do pai, que, por sua vez, queria
uma aproximação ainda que tímida, nesse momento
de convalescença do garoto. Com efeito, não parece
querer a amizade de ninguém, mas é contra o pai que
se volta.
O menino observava-o como a um estranho,
inclinado
a
ridicularizar
aquele
hábito
desesperado e intransigente de apelar para o seu
amor a fim de que ambos esquecessem da verdade
que jamais abordariam corajosos. (p. 90)
Também fica sugerido no conto que o homem não
desejou ter se tornado pai desse menino. A paternidade
ocorreu a contragosto. Não por acaso o filho desde
sempre percebeu tal distanciamento. Agora, doente,
percebe a intenção do pai, não a vê como algo positivo,
e sim apenas como uma mera obrigação do adulto e
não um desejo real. A comunicação entre eles não se
estabelece naturalmente; fica sempre no limite de um
possível conflito. Ao mesmo tempo, parece haver um
sentimento à espera de um gesto verdadeiro de parte
a parte.
O pai aproximou-se, a respiração intensa e rara,
pousou delicado os lábios na testa febril, a mesma
intensidade severa com que uma boca trabalha
uma outra ampliando-se. [...] O menino temia a
sobrevivência após a liberdade do carinho [...]
(p. 94)
Um conto, portanto, que aborda a dificuldade de
comunicação entre pessoas que se conhecem e que
não querem a amizade mútua por tão somente uma
obrigação parentesca.
Em outra linha encontra-se “Vestígio”, conto com
certa tendência para o fantástico, ainda que não pertença
de maneira específica a esse gênero literário. Trata-se
antes de uma alegoria. Sete monstros provocavam o
terror em uma floresta, onde matavam, estupravam
e mesmo comiam pessoas que ousassem passar pelo
local. São descritos como seres inteligentes, porém
sem qualquer civilidade, a não ser a de satisfazer as
necessidades básicas: alimentar-se e praticar sexo. Até
que um desses monstros pega uma menina de 14 anos
e a leva para os demais. Seguindo sua prática habitual,
matam e barbarizam a menina, comendo sua carne e
bebendo do seu sangue. Porém, ao procurarem objetos
na bolsa da menina encontram um broche e uma foto.
Esses dois objetos despertam nos monstros um senso
de humanidade. O fetiche dos objetos os fazem se ver
como destruidores da humanidade.
Olhou-o durante muito tempo. Depois foi passando
adiante, e todos com a mesma intensidade
apreciavam. Arrumaram então nobremente o
broche, e seu retrato bonito, sobre os ossos da
menina, e, de repente, os monstros choraram.
(p. 113)
É o último conto do primeiro livro da coletânea.
Seguindo a mensagem geral, a autora quer chamar
a atenção do leitor para uma necessária mudança
do mundo machista, selvagem e que pouco daria
ouvido dá às necessidades femininas. Não podemos
dizer, contudo, que são contos feministas no sentido
estrito do termo, que seguiriam uma ideologia sexista,
mas sim que há necessidade de se compreender
melhor a humanidade da mulher. É isso que, mesmo
tardiamente, fizeram os monstros em questão.
Em um outro conto ainda do primeiro livro,
retoma-se a questão do papel da mulher na sociedade.
“Rosto universal”, por exemplo, narra a história de um
casal, que se mantém unidos não tanto por amor, que
se perdeu com o tempo, mas sim por uma necessidade
mútua. Embora a separação e o divórcio fossem
67
Melhores contos de Nélida Piñon, de Nélida Piñon
possíveis na década de 60, era sempre uma vergonha por
indicar uma falha, a falência do projeto pessoal. Razão
pela qual, o casamento poderia ser visto como meio
de construção de uma identidade mútua, ao mesmo
tempo que meio de cerceamento das individualidades,
dos projetos pessoais. A reflexão parte da mulher que,
após uma noite de sexo, fica olhando para o corpo
do homem, buscando compreender o que motivava
duas pessoas se aproximarem, ficarem juntos, terem
relações íntimas. Reflete também sobre o conceito
de um pertencer ao outro, algo como “meu marido”,
“minha mulher”, como se a individualidade devesse
se anular completamente em favor de uma união
indissolúvel.
A mulher constrangia-se em possuir um homem
constrangido em possuir uma mulher, e era uma
luta de afinação, à procura do som perfeito. (p. 88)
Do segundo livro presente na coletânea, Sala
de armas, publicado em 1973, há seis contos, entre
os quais um dos mais famosos da autora: “Colheita”.
Os contos seguem a tendência do primeiro livro,
especialmente no que diz respeito à tematização
da mulher, da condição feminina, sem ser, repita-se,
pertencente ao feminismo tacanho e radical. Além
disso, a autora apresenta uma maior maturidade
estética, o que significa um apuro maior no trato da
linguagem literária e na composição dos textos.
Outro aspecto é que os contos desse livro
remetem o leitor a alguns mitos fundadores, isto é,
exploram os arquétipos humanos, que seriam, segundo
Jung um conjunto de imagens psíquicas presentes no
inconsciente coletivo.
“Ave de paraíso”, por exemplo, lembra a famosa
história de Ulisses e Penélope na Odisseia, de Homero.
Apenas como lembrança, Ulisses ficou dez anos longe
de seu reino e de sua esposa por ocasião da Guerra de
Troia, depois levou mais 17 anos tentando retornar a
Ítaca. Todo esse tempo fez que todos imaginassem que
o rei havia morrido e por isso propunham a Penélope
casamento. Como ela nunca perdera as esperanças,
dizia que só se casaria quando o vestido estivesse
pronto. Porém, costurava durante o dia e desmanchava
à noite para evitar o casamento.
No caso do conto, uma mulher casada a contragosto
da família e mesmo de amigas vive o infortúnio de ficar
meses sem o marido em casa. Não fica claro o porquê
das ausências, apenas que toda vez que ele chega, ela
o recebe com grande alegria, fazendo de tudo o que
pode para ele. Nas ausências seguintes, ao retornar
ele usa disfarces para causar alguma desconfiança
na vizinhança (Ulisses, por exemplo, se fez de louco).
Ao que parece queria também testar a fidelidade da
esposa. No final do conto, após idas e vindas, o marido
diz à esposa que agora irão iniciar efetivamente uma
vida a dois.
– Terminou o tempo da provação. Desta vez eu vim
para ficar.
A mulher escondendo a profunda alegria olhou
o homem, em seguida correu para a cozinha.
Ninguém a superava nas tortas de chocolate.
(p. 122)
Embora se tenha uma mulher submissa, há
a busca pela felicidade efetiva, que só chega após
provações. Por isso o título: o paraíso só vem após a
“tempestade”. Na sociedade brasileira, o homem é
visto como autoridade. Nesse sentido, a mulher deve
seguir o exemplo de Penélope, eternamente à espera
de seu Ulisses. Cabe a ela ser prendada, boa dona de
casa, boa esposa sempre marcada pelo silêncio e pela
obediência. O conto se opõe a outro do mesmo livro:
“Colheita”.
Nesse conto, a personagem feminina, casada,
fica sozinha à espera do marido que tem de fazer
uma longa viagem. Antes, porém, o homem, antes de
deixar sua “Penélope” para conquistar outras terras,
desempenhar seu papel de homem, por assim dizer,
marca o próprio território, deixando com a esposa uma
foto. Algo semelhante ao que fazem os casais nas redes
sociais de modo a dizer, “ela me pertence”.
Viveram juntos todas as horas disponíveis até a
separação. Sua última frase foi simples: com você
conheci o paraíso. A delicadeza comoveu a mulher,
embora os diálogos do homem a inquietassem.
(p. 152)
Como a Penélope da Odisseia, ela também não
permitiu que nenhum homem se aproximasse dela com
a ausência do marido. Porém, não ficou simplesmente
à espera do seu homem. Passou a se reconstruir como
mulher. Esse momento de espera serviu-lhe para uma
busca da sua própria identidade. Sempre mudava o
vestido, usando cores vibrantes, também cuidou com
esmero da casa, do mesmo modo que passou a tomar
posse efetiva do que lhe pertencia. Não demorou muito
para pegar o retrato do marido e escondê-lo da vista,
não por ódio, mas para afirmar sua identidade, marcar
ela própria o território com sua personalidade, com seu
modo de ser.
[...] porque você precisou da sua rebeldia, eu vivo
só, não sei se a guerra tragou você, não sei sequer
se devo comemorar sua morte com o sacrifício da
minha vida.” (p. 153).
Desse modo, sua voz se torna altíssona em
contraste à ausência do marido, tanto física quanto
espiritual, ainda que em nenhum momento tenha
imaginado trai-lo com outro. Tempos depois, com o
retorno dele à casa, o conto tem seu ápice. Inicialmente,
o marido descobre que o retrato fora retirado do local e
o descobre escondido no armário. Apesar de estranhar,
aceita a desculpa da mulher que ele ficava livre da
sujeira. E complementa:
– Tenho tanto a lhe contar. Percorri o mundo, a
terra, sabe, e além do mais... (p. 156)
Ela, no entanto, interrompe o discurso do marido
e começa a falar, a discorrer sobre o que fizera, sobre
o que acontecera na sua ausência. Uma espécie de
Viagem ao redor do meu quarto, de Xavier de Maistre
(1763-1852). Quanto mais ela falava da aventura de
ter ficado em sua própria casa, em torno da sua própria
vida, ele se diminuía, percebia que sua viagem, o que
descobrira aqui e ali, as conquistas que tivera pouco
importavam frente à narrativa da esposa, diante da
construção e reconstrução que ela empreendera de si
mesma, do espaço que era comum aos dois.
68
Melhores contos de Nélida Piñon, de Nélida Piñon
gado, à falência da agricultura da época. Além disso,
Eleusis representa as quatro estações do ano e os
quatro pontos cardeais. Desse modo, compreender a
simbologia da personagem é compreender o espaço
circundante, é ter uma visão ampla, global do espaço.
Nesse conto, encontramos outra referência à
Penélope, agora mais explícita. Ao contrário desta que
se submetia às vontades masculinas, Eleusis não abdica
de sua liberdade, de sua própria vontade. Pertencia à
terra, mas não queria se prender a um único espaço,
a um único lugar. Era preciso espalhar-se, conquistar.
Ser. Essa é a mensagem do conto.
Em “Vida de estimação”, ainda se está no âmbito
da natureza, da religiosidade, mas no caso trata-se de
uma simbolização da figura de Cristo. Um casal adota
um bezerro. Passa a tratá-lo como a um igual, dentro
de casa, tratado a “leite, pão e vegetais. Em nenhum
momento, sua forma se modificou, para agradar ao
homem ou à mulher. Atendia ao crescimento com suas
manchas brancas na pele”. (p. 123)
Deixam a cidade em direção ao campo. O casal,
porém, não tem certeza sobre o que seria aquele animal,
quão igual ou quão diferente seria deles. Deixam-no
na cidade e três dias depois vão buscá-lo, para deixá-lo
em um estábulo. Sentem-se culpados por isso. Há uma
clara relação com o início do cristianismo. Cristo nasce
em um estábulo, seus pais, por assim dizer, tiveram de
abandonar a cidade e se esconder para gerar o Cristo.
Seu nascimento se deu como meio de apagar uma culpa
original da humanidade. Ao mesmo tempo, o bezerro
(a rigor, Cristo é mais associado a uma ovelha ou o
pastor das ovelhas) pode ser considerado igualmente
uma referência ao bezerro de ouro que os hebreus
passaram a adorar no lugar de Deus, por ocasião da
saída do Egito em busca da Terra Prometida, conforme
se lê no livro do Êxodo, capítulo 32.
Há, no conto, desde o início uma personificação
do bezerro, que, por sua vez, tenta se reconstruir como
animal:
E ainda que não falasse [...] seu rosto trazia ao
mundo expressões pungentes. [...]
Ainda tentou pastar. Pastar nutrindo-se de erva,
para libertar-se da danação do alimento dos
homens. (p. 125)
Abandonou sua terra, tentou encontrar os seus,
porém sempre com o “perigo de ser amarrado, tangido
e crucificado” (p. 126).
Com tudo isso, o casal sente-se preterido pelo
bezerro, a quem haviam criado como ser humano.
Desse modo, o que parecia uma união foi se rompendo.
O bezerro parecia pretender corrigir as falhas da
criação, tanto do lado humano, quanto animal. O final
do conto é outra clara referência à passagem de Cristo.
Cansados, o casal resolve vender o bezerro em uma
feira. Assim como Cristo fora delatado por dinheiro,
também acusara os vendedores de fazerem do Templo
um lugar de comércio, não de oração. O conto, pois,
expressa as oposições discursivas entre a construção
cristã da civilização e outra mais libertária, mais
humana, mais sujeita a falhas.
E tanto ela ia relatando os longos anos de sua
espera, um cotidiano que em sua boca alcançava
vigor, que temia ele interromper um só momento o
que ela projetava dentro como se cuspisse pérolas,
cachorros miniaturas, e uma grama viçosa, mesmo
a pretexto de viver junto com ela as coisas que ele
havia vivido sozinho. (p. 157)
Enfim percebeu que ela adquirira voz, adquirira
vontades que ele nunca imaginara que ela poderia ter.
Qualquer aventura, conquista dele se apequenavam
diante da força que adquira essa “Penélope” moderna.
“Ela não cessava de se apoderar das palavras, pela
primeira vez em tanto tempo explicava sua vida”.
(p. 158)
Desse modo, quando no momento da partida do
homem ela ficara em silêncio e apenas o observara,
sem qualquer admoestação, permitindo a ele ser o
detentor do discurso, no final da narrativa ela assume
esse papel. E ele tem de se calar ante aquela conquista.
Outro conto que retoma aspectos mitológicos,
bem como arquetípicos é “Os mistérios de Eleusis”,
referência tanto à cidade localizada no nordeste de
Atenas, bem como aos mistérios do culto a Deméter,
deusa chamada de A Grande Mãe por ter buscado
salvar a filha Perséfone do reino da morte, para onde foi
levada por Hades, deus do mundo dos mortos. O termo
Eleusis deu origem aos chamados “Campos Elísios”,
que seria uma espécie de paraíso na mitologia grega.
O culto se destinava inicialmente apenas às
mulheres. Esses ritos Eleusínios foram praticados por
quase dois milênios sem que se revelasse, aos não
iniciados, nada a respeito dos rituais ou das iniciações.
O que chegou até nós, veio com base nas referências
literárias e também na visão cristã sobre as chamadas
práticas pagãs.
Piñon traz para sua narrativa o que seriam esses
mistérios, esse mito. A narradora tenta decifrar as
atitudes de Eleusis, transformada em personagem
mítica, que, por sua vez, se metamorfoseia em animais
ou plantas, como meio de estabelecer um diálogo com
o cosmos, com o oculto e a linguagem simbólica.
Eleusis tinha o hábito de morrer. Assumia
diariamente novas formas. Um espetáculo a que
eu ia me acostumando. Sem jamais saber se ela
era o gato de plumas leves, vapor de ácido, que
me contemplava. Ou havia se transformado em
água de um rio em tormenta, para deste modo
viver um estado difícil. (p. 129)
A deusa Demeter é ligada à terra e representa a
natureza, a agricultura. Segundo a lenda, seu papel
é percorrer os campos e espalhar seus ensinamentos
oralmente. A narradora do conto tenta compreender
esses mistérios, percorrendo o labirinto para decifrar
a simbologia de Eleusis, igualmente ligada aos
elementos da natureza para também expressar, sob
olhar feminino, a travessia humana.
Exatamente por essas atribuições, quando
Demeter abandona a terra para ir em busca da filha,
há uma esterilidade da terra, o que leva à morte do
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Melhores contos de Nélida Piñon, de Nélida Piñon
quebrar paradigmas, de modo a buscar novas formas
de olhar. O objetivo último é sempre a construção
da identidade, daquilo que nos define em um dado
espaço, mas também nos define como seres humanos.
“I love my husband”, por exemplo, é narrado da
perspectiva feminina, com o objetivo de traçar um perfil
da família tradicional brasileira, em que cabe à mulher
o trabalho doméstico e ao homem o sustento. Discutese, pois, essa divisão social, sobretudo pela opressão
a que é submetida a mulher, que não tem domínio
sobre o próprio corpo, cuja função é servir o marido
de todos os modos. É uma revolução silenciosa, que se
faz primeiro no espírito, em seu processo de percepção
da realidade, para depois começar a realizar-se nas
palavras, por fim constituir-se como novo mundo.
Ele diz que sou exigente, fico em casa lavando
a louça, fazendo compras, e por cima reclamo
da vida. Enquanto ele constrói o seu mundo com
pequenos tijolos, e ainda que alguns destes muros
venham ao chão, os amigos o cumprimentam pelo
esforço de criar olarias de barro, todas sólidas e
visíveis. (p. 163)
Publicado num momento em que a ditadura
militar perdia força - era já o governo Figueiredo
(1979-1985), o último presidente militar -, o medo e
o silêncio ainda eram ardis para coibir manifestações
mais acentuadas. É o que subsiste em “I love my
husband”, no qual a mulher tem consciência de sua
subserviência, reclama por mais liberdade, no sentido
de poder fazer sua voz ser ouvida, ao mesmo tempo
em que percebe ser melhor manter a vida dentro do
padrão que aprendeu. Somente assim poderia ser uma
mulher. Chega mesmo a penitenciar-se:
Estes meus atos de pássaro são bem indignos,
feririam a honra do meu marido. Contrita, peçolhe desculpas em pensamento, prometo-lhe
esquivar-me de tais tentações. Ele parece perdoarme à distância, aplaude minha submissão ao
cotidiano feliz, que nos obriga a prosperar a cada
ano. (p. 169)
A questão expressa no conto não se refere
unicamente à ditadura militar (ainda que seja uma
chave de leitura), mas sim a que trata da subserviência
feminina, que começava a ser questionada à época.
Como referência, podemos citar a série da Rede Globo,
Malu Mulher, em que, no início dos anos 80, Regina
Duarte, no papel de Malu, encarnava a imagem da
mulher independente. Separada, tem de trabalhar
para sustentar a filha, namorava e abordava questões
bastante polêmicas para a época como aborto, pílula
anticoncepcional e virgindade. O seriado representou
a conquista social empreendida pela mulher. O conto
contextualiza a mesma situação.
Duas vozes se apresentam no conto.
Paradoxalmente, se complementam e se distanciam.
Complementam-se pela visão do marido, que acredita
ser dotado da tarefa de fazer o país progredir e
necessitar do suporte doméstico fornecido pela
esposa; distanciam-se pela visão da mulher que quer
completar-se como ser para além de simples suporte
Um dos contos mais fortes do livro é “Cortejo
do divino”. Nesse conto, um casal é julgado por se
amarem muito. Desde o início, cada um está preso em
sua cela, sendo constantemente interrogados para se
entender o que significaria o amor que teria um pelo
outro. A mulher está em um convento e o homem em
outro local.
A denúncia havia surgido quando se descobriu
aquela veemência. O fato do homem e da mulher
terem adotado hábitos amorosos que contrariavam
tudo que se inventara até então, ao menos esta era
a suspeita geral. (p. 137)
O problema é que esse amor vai além do
entendimento humano, além de ser visto como um
sortilégio e mesmo uma heresia, pois tal amor era
considerado superior a que o homem deve ter por
Deus. De fato, a mulher declara amar seu homem de
modo até a se esquecer de Deus. Trata-se, pois, da
“volúpia de vencer a divindade pelo poder da carne”.
Uma afronta ao que é conhecido, ao que é aceito; uma
afronta ao amor divinal, não carnal, portanto. E contra
isso, a população local se insurge.
Para se ter uma comprovação desse amor, o juiz
decide soltá-los para que pudessem ser observados e
vigiados. No entanto, ao contrário do que era esperado,
o casal mantém-se distante. Durante o tempo de
prisão, o homem ficara cego. Talvez por isso ou por um
acordo tácito, “a partir daquele dia, jamais se tocaram
uma única vez, ou se disseram uma palavra. Nem ela
o ajudou, pelo fato de ele agora exigir trato especial”.
(p. 139)
Pretendia-se pegá-los em relação íntima intensa
para que se tivesse uma justificativa para poder
matá-los. O casal até permanecia sempre bem
próximo, mas sem uma relação amorosa efetiva, sem
mais manifestar o amor para decepção de todos.
Ninguém mais suportava aquela altiva resistência.
Os dois rostos destilando um prazer diário, mas de
fúria tão esquiva que se abrigava, e jamais se viu
sua luxúria. (p. 141)
No último conto do segundo livro, “Oriente
próximo”, uma mulher, narradora do conto, trata
sobre a aproximação cultural que teve com quatro
turcos e como, entre diferenças e semelhanças,
descobriram-se ser todos humanos. Trata-se de uma
temática recorrente na obra de Nélida Piñon, que vê
no Oriente a confluência das três maiores religiões
monoteístas da humanidade, seus pontos de contato e
suas divergências. Entender o outro é uma forma de se
conhecer também.
[...] eu prevenira aos amigos sobre o estranho
comportamento que adotariam sem aviso. Vinham
de terras longínquas, de hábitos peculiares, que
devíamos respeitar, antes de julgá-los engraçados.
(p. 144)
Do terceiro livro da coletânea, O calor das coisas,
publicado em 1980, são destacados cinco contos. Nesse
livro, Piñon repete alguns temas, mas acrescenta
outros, sempre sob olhar contestador, de modo a
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Melhores contos de Nélida Piñon, de Nélida Piñon
O mesmo discurso está presente em “O
ilustre Menezes”, no qual a visão masculina é a
preponderante, mas para cuja compreensão há que se
ouvir a voz feminina.
Escrito originalmente para uma coletânea
intitulada Missa do galo: variações sobre o mesmo
tema, o conto obedece à ideia, proposta pelo escritor
Osman Lins, em 1977. Autores deveriam escrever
narrativas tendo como mote o conto “Missa do galo”,
escrito por Machado de Assis e publicado no livro
Páginas recolhidas, de 1899. No conto original, o
narrador é Nogueira, um jovem de dezessete anos
de idade que estava no Rio de Janeiro para estudar.
Hospeda-se na casa do escrivão Menezes, viúvo de
uma de suas primas e casado em segundas núpcias
com Conceição, uma mulher de trinta anos de idade
que parece se resignar com uma relação extraconjugal
do marido. Vivem na casa, ainda, D. Inácia, mãe de
Conceição, e duas escravas.
O título se explica porque na noite do dia 24 de
dezembro, Nogueira fica na sala lendo à espera de
um amigo com quem iria à Missa do Galo. Conceição
resolve fazer-lhe companhia e mantém com o rapaz
uma conversação ambígua, em que a sensualidade está
presente, mas não se manifesta de modo explícito. Pela
tradição, hoje não mais seguida por diversos motivos,
a Missa do Galo era rezada à meia noite.
O conto de Nélida Piñon é narrado da perspectiva
do escrivão. A autora não subverte o enredo do texto
original, ou seja, Menezes é casado com Conceição,
vive com a sogra também, e, igualmente, mantém
um caso extraconjugal, a despeito da vigilância de D.
Inácia e do silêncio incriminador da esposa.
Conceição poupou-me de maiores explicações.
Havia aprendido que entre casais baniam-se
exatamente as palavras que poderiam exaurir o
delicado tema. Desde a primeira noite decidiu
pela obediência. Se a surpreendi alguma vez
discreto pranto, garantiu-me devê-lo às aflições
tão próprias da natureza feminina. (p. 174)
O leitor tem, pois, acesso à perspectiva e à
explicação do Menezes para suas atitudes pouco
dignas em relação à esposa. Homem sério perante a
sociedade, não se excedia nos gastos e era respeitado
por todos, por isso era ilustre. Mesmo D. Inácia, que
vez ou outra, parecia querer falar-lhe algo, mantinhase em posição de defesa, até para garantir o próprio
sustento e o da filha.
Não darei a Conceição outros motivos de queixa
além do que já tem. Os direitos que lhe assegurei,
devem tranquilizá-la. Pode D. Inácia testemunha
a meu favor. (p. 175)
Para ele, a necessidade do sustento torna-se uma
garantia de que nada fariam para ir contra sua maneira
de viver. Sabendo que, fora do casamento, à mulher
pouco restava como meio de sobrevivência, manipulava
esposa, sogra e também amante, a quem dava sustento.
Sua amante era uma mulher abandonada pelo marido.
Deu-lhe o singelo nome de Pastora, o que remete o
leitor ao arcadismo, período marcado pela tematização
do marido. Tais visões estão representadas pelo
tempo: o passado, que indica, na mente da mulher,
sua individualidade, o presente, em que existe como
entidade que complementa o homem, e o futuro que
devolveria a identidade para a mulher.
O marido, com a palavra futuro a boiar-lhe nos olhos
e o jornal caído no chão, pedia-me, o que significa
este repúdio a um ninho de amor, segurança,
tranquilidade, enfim a nossa maravilhosa paz
conjugal? E acha você, marido, que a paz conjugal
se deixa amarrar com os fios tecidos pelo anzol, só
porque mencionei esta palavra que te entristece,
tanto que você começa a chorar discreto, porque
o teu orgulho não lhe permite o pranto convulso,
este sim, reservado à minha condição de mulher?
Ah, marido, se tal palavra tem a descarga de te
cegar, sacrifico-me outra vez para não vê-lo sofrer.
Será que apagando o futuro agora ainda há tempo
de salvar-te? (p. 166)
Depois dessa conversa, a mulher volta a servir seu
marido, dando o suporte necessário: comida, roupa,
conforto, carinho, sexo. Cabia a ela, manter a tradição,
manter a estrutura familiar intacta. Era preciso, pois,
anular-se para ser.
Só envelhece quem vive, disse o pai no dia do
meu casamento. E porque viverás a vida do teu
marido, nós te garantimos, através deste ato, que
serás jovem para sempre. [...] Ele é único a trazerme a vida, ainda que às vezes eu a viva com uma
semana de atraso. (p. 168)
O título do conto, em inglês, é retomado em
pelo menos quatro momentos do conto. “Eu amo meu
marido”, “Sou a sombra do homem que todos dizem
eu amar”, “Não é verdade que te amo, marido?”,
“Sou grata pelo esforço que faz em amar-me”. A
primeira frase é categórica. É a tradução do título.
Mas é a partir dela que passa a questionar se seria
amor ou apenas obrigação do casamento. A segunda
frase indica a visão de fora. Certamente aos olhos
alheios, o casamento dela é perfeito. E, se é perfeito,
o amor certamente existe. A terceira é questionadora,
pois procura entender a perspectiva do marido, para
quem ser amado é ser respeitado em sua autoridade
e ter os serviços domésticos feitos conforme deseja.
Ora, se tudo é feito como imagina, então deve ser
amado... Por fim, a perspectiva é invertida. A mulher,
ironicamente, percebe que, embora não seja amada de
verdade (chega mesmo a imaginar que o amor poderia
acontecer para ela com outro homem), ao fazer tudo o
que marido quer, pensa que o sentimento do marido
poderia, ilusoriamente, ser comparado ao verdadeiro
amor.
O conto é finalizado com a mesma frase com que
é iniciado. É, porém, introduzida por uma interjeição
afirmativa que parece indicar uma constante e
necessária obrigação de lembrar-se do seu amor: “Ah,
sim, eu amo meu marido”. A questão toda não deve
ser vista apenas como amar e ser amada, e sim como
perda e reconstrução da identidade, que caracteriza os
demais contos presentes nesse terceiro livro.
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Melhores contos de Nélida Piñon, de Nélida Piñon
total domínio sobre sua esposa, não a conhece por
inteiro. Enquanto Menezes mantém uma máscara que
não esconde quem é, Conceição, dentro do papel que
lhe cabe de mulher recatada, esconde-se para poder
construir sua real identidade.
Em “Finisterre”, uma jovem retorna as suas
origens, ao reencontrar o padrinho em uma ilha na
Galícia. Nélida Piñon, com isso, recupera suas raízes
ibéricas, particularmente a Galícia, como se sabe
origem da língua e da cultura portuguesa, que viria a
construir o Brasil. Há, pois, uma reflexão em torno da
perda ou da construção da identidade.
Finisterre é uma ilha que fica na Galícia, região
noroeste da Espanha, onde se localiza também
Santiago de Compostela, local conhecido pelas
peregrinações que muitos empreendem até lá a pé.
Finisterre, até a Idade Média, era conhecida como o
fim da Terra (em latim, finis significa final), isto porque
se acreditava que adiante haveria a beira do mundo.
Quem navegasse para além daquele local cairia no
espaço, cairia no vazio.
A narradora vai até Finisterre reencontrar seu
padrinho, já idoso, e é recebida por pescadores
e recepcionada com um banquete, uma orgia
gastronômica como meio de tomar parte cultural
daquele local que também lhe pertence, mas que, por
viver no Brasil, do outro lado do mundo, para além do
Atlântico, não tinha mais acesso. Trata-se, pois, de uma
cidade de pescadores acostumada a receber turistas
em viagem a Santiago de Compostela.
Simbolicamente, em Finisterre ia-se ao confronto
do Fim, isto é, com a Morte, representada pelo pôrdo-sol. Por outro lado, também significava um
renascimento, então representado pelo nascer do sol.
Dessa feita, o local representava o fim e o início de
jornadas. É o que se observa no conto. A narradora é
levada a ter nova vida naquele ambiente. Representada
pelo banquete, associado a um ato sexual, renovador e
criador:
Com o grafo, ele mergulhou diversas vezes
nas entranhas do crustáceo, e trouxe-me como
um caçador de esponjas o coral ambicionado.
Mastiguei a delicada porção de olhos fechados,
fazendo amor com um coral nascido de recantos
primevos, de uma carapaça mais antiga e sólida
que a minha pele. (p. 191)
Esse ato devolve-lhe suas origens, e fica dividida
entre dois mundos: o antigo, o galego, e o novo, o das
Américas, o do Brasil. É dessa simbiose antropofágica
que se irá construir uma nova identidade. (“Salve
a terra, padrinho. A que terra queres homenagear,
afilhada?”) O próprio nascimento da Galícia representa
tal simbiose de povos diferentes, que formaram ao
longo dos séculos o povo galego:
Abraçou-me e passou a falar dos celtas, dos
ibéricos, dos visigodos, que se uniram de tal modo
que seria hoje difícil isolá-los, pois um só rosto
galleto muito tem de cada um, e eles próprios
neste rosto jamais poderiam reconhecer-se ou
indicar que parte dele originou-se da força dos
seus sangues. (p. 192)
de idílios amorosos entre pastores, como no caso de
Marília de Dirceu, do poeta Tomás Antonio Gonzaga
(1744-1810).
Uma das desculpas que Menezes costumava dar
em casa era que saía à noite para ir ao teatro. Certa vez,
diz ter visto uma peça da autoria de Machado de Assis,
O protocolo, sobre a qual tece um comentário bastante
corrente sobre o teatro do autor: “uma comédia muito
mais para ser lida e não representada.
Menezes afirma gostar de Conceição, com quem
vive bem, com quem pode manter a seriedade que sua
função na sociedade exige; ela lhe é devotada, cuida
de sua roupa e da casa. O problema talvez seja o recato
em que se mantém, e também por nunca ter lhe dito
que o amava. O fato serve-lhe como justificativa para
que mantenha a amante, com a qual busca realizar
fantasias, as quais não faria com a esposa, pelo recato
que deveria manter com ela. Pastora parece ser o
oposto de Conceição, o que proporciona ao escrivão
novas “experiências”. Ela é mais bonita e tem atitudes
mais intempestivas, “implacável a qualquer atraso”,
ao contrário das atitudes submissas da esposa.
A narrativa caminha assim até a chegada do
Nogueira, primo de sua primeira esposa, Amélia, que
lhe pede o favor de dar pousada por uns tempos, uma
vez que era de Mangaratiba e estava no Rio de Janeiro
para estudar.
O conto termina exatamente onde se inicia o conto
de Machado de Assis, com Menezes, após cear com
a família, despedindo-se para ir ao teatro, e Nogueira
dizendo que ficaria na sala lendo à espera do amigo.
Já com o volume nas mãos, tratava Nogueira de
acomodar-se à mesa da sala de jantar, trazendo a
si o candeeiro de querosene.
– Se não há mal em perguntar-lhe, primo, que é
que vai ler até a sua Missa do Galo.
O primo levanta-se, acompanha-me à porta. Dáme o beneplácito, sem esquecer de acrescentar:
– Leio Os Mosqueteiros.
Ah, belo rapaz esse Nogueira! (p. 187)
No conto original de Machado, Conceição
também representa o papel da mulher submissa, mas
ao ficar sozinha, à noite, ao lado de um rapaz, indica
um desejo escondido, que Menezes não consegue
perceber, ao vê-la apenas como “santa”. Desse modo,
o leitor que confronta os dois textos percebe a ironia da
situação. E por este motivo, antes de sair de casa, diz
que Nogueira é um belo rapaz, isto é, alguém que não
irá fazer nada para atentar contra a ordem estabelecida
em sua casa. Na ótica do escrivão, a leitura de um
livro de aventuras era indício de que era um jovem
sonhador, pouco afeito à prática.
Menezes aceita a explicação e gosta dela, porque
“há leituras que nos suprem com sonhos que a realidade
mesmo não comporta. E se lá fosse Conceição ao seu
encalço, teria que abater-lhe as asas”.
Nélida não quis, com isso, contrariar o que fora
revelado no conto de Machado; antes, a passagem
serve para ilustrar como Menezes, que imagina ter
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Melhores contos de Nélida Piñon, de Nélida Piñon
de tudo, pertencente a outra classe social. Por estranho
que pareça, esse homem diferente é que lhe devolve
alegria, que contribui para a construção de si mesma,
de sua identidade por inteiro.
Ao seu lado, não sinto medo. A própria vida
fortaleceu-me desde que o vi pela primeira vez
nesta manhã. (p. 214)
Começaram a conversar e ele lhe pediu para
que fossem sócios em seu negócio de vender sorvetes
na praia. O estranho do pedido é o que garante a
percepção de um poderia completar o outro, de se
formar um todo. A narradora revela não ter vida
própria, assistia a novelas como meio de projetar na
vida alheia aquilo que não era. Assim, ao ver-se diante
de uma situação estranha, com um homem com vida
alheia a sua, distante física, social e culturalmente,
isso poderia completá-la, a despeito de ele ser casado.
(“Viver será transferir para o outro o que é nosso por
direito.”)
Deus sabe que não quero falsas aflições, mas um
homem capaz de interpretar meus sentimentos,
serei acaso a última flor do Lácio? (p. 215)
A “última flor do Lácio” é uma referência a um
poema de Olavo Bilac, intitulado “Língua portuguesa”,
em que fala ser o português o último idioma surgido
do latim, falado na região do Lácio, que deu origem
ao Império Romano. Não parece haver uma relação
imediata. A rigor, o que a narradora quis expressar
é que ela poderia ser a última mulher a encontrar
o homem perfeito e ideal para ela. Poderia ter dito
também que era seria “a última dos moicanos”, por
alusão ao famoso romance de James Fenimore.
Um momento significativo é que ele vai até a casa
dela e se senta na poltrona que pertencera ao pai e ela
na poltrona em que ficava a mãe. Por analogia, é como
se cada qual estivesse ocupando os papéis, sonhados,
de marido e mulher.
A questão a que sempre retorna é o da identidade
(“Serei eu mesma o tempo todo?”). Como construir
algo para o qual é preciso primeiro destruir? Destruir a
antiga identidade dele, seu casamento, abandonar sua
vida no outro lado da cidade?
É comum na Europa as cidades divididas em duas,
uma margem pobre, uma outra próspera. (p. 216)
Essa ideia de construção/destruição está
metaforizada no fato de o homem ser sorveteiro, de
fabricar para vender um produto que se perdia com
facilidade, que, diante do calor, desaparecia.
Eu respeitava aquele arquiteto a erguer um
mundo frágil pela força da sua vontade. A lidar
com formas que o calor desfazia. (p. 218)
Por este motivo, o sorveteiro tem sempre de
retornar à sua casa, à sua fábrica, entre idas e vindas e,
com isto, o amor entre ele e a narradora não se totaliza
nunca.
Após ouvir a história de Colombo, Rubem volta
a narrar sua história com Alice, sua ex-mulher. Aos
poucos, percebeu que Alice representava, mais do que
amor, relacionamento de um casal, apenas a aventura,
os passeios. Não se via completo efetivamente por ela.
Com efeito, galeto deriva do topônimo Gallaecia,
cujo termo procede dos celtas, que chegaram ao local
por volta de 2300 a.C. Mais tarde vieram os ibéricos,
dominados pelos romanos, destruídos, por sua vez,
pelos visigodos, conhecidos também como bárbaros.
A região ainda foi conquista no século VIII d.C. pelos
muçulmanos.
Outro ponto que ajuda a compreender a
simbologia do conto diz respeito à origem do termo
Galiza cuja raiz indo-europeia kala significava refúgio,
abrigo. Em seguida, passou a ser grafada gall, e
significar mãe, terra. O conceito expresso no conto de
um encontrar-se com as origens (a mãe terra) encontra
respaldo também quando a narradora conhece uma
senhora moribunda, cujo nome é Amparo. Esse contato
corrobora o nascimento de uma nova mulher, bem
como o rejuvenescer da moribunda:
Ela melhorou com meu ato de heroísmo. (...)
Comecei a usufruir-lhe da velha como se tivesse
ela vinte anos. (...) Eu me entregava àquela orgia
disposta a mudar a minha vida. Mas, que vida,
afinal. A vida que herdei, a vida que fabriquei, a
vida que me impuseram, a vida que não terei, ou a
vida proibida, que não está na casca da pele, mas
na pele íntima do sangue? (p. 192)
Trata-se, pois, de um conto que, como os demais,
busca compreender o próprio ser construído a partir da
aproximação de fontes culturais diversas.
“Tarzan e Beijinho”, narrado em primeira pessoa
por uma narradora-personagem, fala sobre os amigos
Tarzan e Beijinho. Caracterizado por realizar reflexões
sobre temas recorrentes: amor, paixão, religião,
solidão, amizade, entre outros. Nesse conto, os temas
da amizade e da solidão revelam complexidade das
relações interpessoais.
Conheci Tarzan e Beijinho em Malibu, antes de se
transferirem para o Leblon, uma praia que havia
tragado o coração de muitos almirantes batavos e
sereias litorâneas. (p. 203)
Há um sentimento de amizade íntima entre
eles, porém a narradora decide afastar-se um pouco
para que vivam o relacionamento a sós. Passado certo
tempo, a narradora recebe um bilhete dos amigos,
vai ao encontro deles, mas é recebida friamente. Em
conclusão, percebe que a amizade não era assim
tão forte. O afastamento parece ter quebrado aquela
harmonia, o que acabou se tornando difícil de consertar.
Tentei sorrir e eles me corrigiram. Quietos, de mãos
dadas, agora parecíamos turistas descobrindo a
cidade, a nós mesmo. (p. 211)
O último conto, “O sorvete é um palácio”, é escrito
sob a forma de depoimento uma mulher, rica, narra as
vicissitudes em torno de um caso que mantém com um
homem pobre, sorveteiro, casado e pai de três filhos.
A mulher narradora também não é nova
(“Esquecida do espelho a proclamar que a carne não é
mais um sortilégio para as mulheres de minha idade”.),
e encontra o amor onde menos esperava, na figura de
um homem simples, sem beleza física, casado e, além
73
Melhores contos de Nélida Piñon, de Nélida Piñon
me, voltei a casa. A chave quase não coube na
fechadura pela ferrugem. O regresso parecia
assinalado pela marca do abandono. Debaixo da
porta, os bilhetes de Tarzan e Beijinho: por favor,
por que a violência, quando há outros modos mais
delicados de matar; não podemos mais viver sem
você; já não somos Tarzan e Beijinho, somos você
quando está perto; o que quer que sejamos, para
lhe agradar?”
Foi um amor sem ciúmes, não fazia sofrer. Os
outros podiam desejá-la, aplaudi-la ao seu lado.
Não queria um amor solitário, ou que lhe faltassem
amigos com quem dividi-la. (p. 221)
Esse conto lembra As cartas portuguesas, escritas
por Sóror Mariana Alcoforado (1640-1723), de um
convento localizado Beja, dirigidas a um oficial francês,
chamado DeChamilly, que lhe prometera amor eterno
e que a iria tirar do convento para se casarem. No
entanto, a promessa não se cumpre.
Foram cinco curtas cartas de amor, em que se
percebe um amor incondicional e exacerbado. O tom
das cartas vai do sentimento de esperança à desilusão,
por não receber notícias e correspondência equivalente.
A título de exemplo, eis um trecho da terceira carta:
Que será de mim?....e que queres tu que eu faça?...
Vejo-me bem longe de tudo o que tinha imaginado!
Esperava que me escrevesses de todos os lugares
por onde passasses; que as tuas cartas seriam mui
extensas; que alimentarias a minha Paixão com
as esperanças de ainda ver-te; que uma inteira
confiança na tua fidelidade me daria alguma
espécie de repouso; e que ficaria assim em um
estado suportável, sem estrema dor.
Em conclusão, podemos dizer que Nélida Piñon
é uma autora pós-moderna, no sentido de tematizar
questões hodiernas, como o feminismo, o respeito
às diferenças, a construção de novas identidades, a
reconstrução de identidades perdidas.
“Durante horas evitamos qualquer olhar. Fora
uma ausência tão difícil. (...) Ainda não sabíamos
em que nos convertêramos. (...) Saímos passeando
pela praia, (...). Tentei sorrir e eles me corrigiram.
Quietos, de mãos dadas, agora parecíamos turistas
descobrindo a cidade, a nós mesmos.”
PIÑON, Nélida. O calor das coisas. 2. ed.
Rio de Janeiro: Record, 2008, p. 93-101.
(01) O conto é narrado em primeira pessoa por
uma narradora-personagem, empenhada em
contar a história que vivenciou ao lado dos
amigos, Tarzan e Beijinho. O conteúdo do
texto remete a valores, como amizade, estilo
de vida, autoconhecimento.
(02) O conto, assim como toda a coletânea à qual
ele pertence, é bem representativo da prosa
de ficção de Nélida Piñon, caracterizada
por empreender reflexões acerca dos
grandes temas da humanidade, como amor,
paixão, religião, solidão, amizade, entre
outros. Nesse conto, os temas da amizade
e da solidão concorrem para a afirmação da
complexidade das relações interpessoais.
EXERCÍCIOS
(04) O conto destoa do tom geral da coletânea a
que pertence, uma vez que, diferentemente
das demais narrativas, não se enquadra
no realismo fantástico, tendência literária
contemporânea marcada pela distância entre
a lógica da realidade objetiva e a expressão
artística, por meio de uma linguagem
simbólica.
1. (UEM) Leia os fragmentos transcritos abaixo,
retirados do conto “Tarzan e Beijinho”, integrante
da coletânea O calor das coisas, de Nélida Piñon,
e assinale o que for correto, considerando também
o conto como um todo.
“Conheci Tarzan e Beijinho em Malibu, antes de
se transferirem para o Leblon (...).”
“Certa vez, eles me confessaram, no fundo do mar
encontram-se nossos corações, é preciso ir bem
fundo para ouvir-lhes as pulsações. Teria sido um
convite para eu fugir deles, me censurariam o
modo de olhá-los? (...)”
“Vestida de mim mesma, sem precisar de espelho
a corrigir-me, eu destoava deles. Por onde Tarzan
e Beijinho seguiam, eu procurava as marcas
visíveis de sua passagem.”
“Pela primeira vez pensei, por que grudo minha
vida a Tarzan e Beijinho e nos estamos tornando
um a sombra do outro? Sempre me faltara a
coragem de propor-lhes tal questão, insinuar
uma transcendência que condenavam na vida de
praia que ambos haviam adotado. Ou dizer-lhes:
por algum tempo seguirei caminho contrário ao
de vocês. Precisava descobrir o mundo sem o
socorro deles. (...)” “Já sem roupa com que vestir-
(08) O conto é marcado por uma linguagem
hermética, muitas vezes cifrada, contrariando
a banalização da linguagem literária no
contexto da pós-modernidade. As tendências
literárias contemporâneas primam pela
simplicidade, pelo coloquialismo, evitando,
assim, o jogo metafórico, a alegoria, a ousadia
estrutural. Isso torna quase imperceptíveis
os limites entre a linguagem referencial e a
artística.
(16) O desfecho do conto remete à ideia de
desconforto entre o casal, Tarzan e Beijinho,
e a narradora. A amizade que os unia parece
comprometida após o período de separação
provocado por esta última. Trata-se de uma
espécie de quebra da harmonia, difícil de
remediar, dadas as sutilezas da alma humana
confrontadas com certos valores e padrões de
comportamento.
74
Melhores contos de Nélida Piñon, de Nélida Piñon
2.
Assinale a alternativa incorreta quanto à temática
dos contos em O calor das coisas, de Nélida Piñon.
(A)Em “I love my husband” uma mulher, embora
declare amor pelo marido, demonstra querer
ser mais livre.
(B)“As quatro penas brancas” trata de um homem
torturado durante a ditadura militar.
(C)Em “A sereia Ulisses” a narradora se revela
livre para buscar o próprio caminho.
(D)Em “O ilustre Menezes” temos a ocorrência
de intertextualidade com o conto “A missa do
galo”, de Machado de Assis.
(E)“Disse um campônio à sua amada” é escrito à
maneira de uma carta.
3.
(UEM) Leia os fragmentos a seguir.
“E não é feia, a minha Conceição. Ocorre apenas
que os mesmos encantos que em outra mulher
reluzem firmemente, nela, por mistério que não
explicou, simplesmente empalidecem. Com esta
verdade, já estou bem conformado. Se ao menos
Conceição soubesse rir!”
“Tanto assim, que mal eu a tocava, Conceição
retraía-se toda, a tremer de frio, depressa
recolhendo para dentro do corpo qualquer gesto
que pudesse eu interpretar como generoso.”
“Como prêmio, para certos infortúnios, tenho de
Conceição a sua fidelidade e completa devoção ao
lar. Assim, inimigo mesmo é o tempo a esgotar-se
sem cerimônia.”
“Nogueira tem o gosto da leitura. (...) Certa
manhã, sugeri-lhe a deixar o livro para trás,
seguindo-me até onde encontravam-se certos
prazeres viris. Pareceu não entender-me.”
(02) Lido a partir da intertextualidade estabelecida
com o conto “Missa do galo”, conforme as
informações anteriormente fornecidas, o
desconhecimento de Menezes, em “O ilustre
Menezes”, sobre certos detalhes relacionados
ao comportamento de sua mulher confere ao
texto um tom de ironia e de comicidade. A
ideologia patriarcal, condescendente com o
adultério masculino, é ridicularizada.
(04) No que se refere à construção da personagem
Conceição, o conto de Nélida Piñon prima
pela ambiguidade e pelo poder de sugestão.
Efetivamente, nada acontece em sua
trajetória capaz de desabonar sua reputação
de dona de casa exemplar e esposa fiel, mas
o marido adúltero insiste em vislumbrar
também nela o fantasma da traição.
(08) O conto “O ilustre Menezes” é narrado em
primeira pessoa pelo próprio Menezes. Esse
afirma que Conceição seria, de fato, capaz de
cometer adultério se lhe fosse apresentada
uma situação favorável. Afirma também
que o adolescente Nogueira pretendia ficar
acordado até tarde com o único propósito de
se deparar, a sós, com Conceição.
(16) Os textos de Nélida Piñon guardam estreitas
relações com os textos de Machado de
Assis, no que se refere ao estilo denso e
intimista, não raro irônico, bem como no
que diz respeito à habilidade de promover
o desnudamento dos melindres da alma
humana, suas grandezas e, sobretudo, suas
misérias.
4.
(Nélida Piñon, “O ilustre Menezes”. In: O calor das coisas)
O conto “O ilustre Menezes”, de Nélida Piñon,
consiste em uma reescrita do conto “Missa do
galo”, de Machado de Assis. Trata-se de uma
reinvenção da história machadiana, construída a
partir da transferência do ponto de vista narrativo.
A história original é narrada pelo adolescente
Nogueira, agregado da casa, e gira em torno da
“conversação” que ele manteve com Conceição
na noite de Natal, enquanto a casa dormia e
ele esperava a hora da missa do galo. Nessa
oportunidade, Conceição se transfigura, aos
olhos de Nogueira, em uma mulher “lindíssima”
e muito sensual que em nada lembra a mulher
simplesmente “simpática” que todos conhecem
no dia-a-dia familiar. Tendo em vista essas
considerações, bem como os fragmentos acima, o
conto ao qual eles pertencem e a ficção de Nélida
Piñon, assinale o que for correto.
(01) O conto “O ilustre Menezes”, de Nélida
Piñon, pode ser lido sem se considerar o
texto “Missa do galo”, de Machado de
Assis. No entanto, conhecer previamente a
narrativa machadiana implica o alargamento
das possibilidades interpretativas do conto
da escritora.
75
Uma das constantes na obra de Nélida Piñon é a
busca pela identidade. Assinale a alternativa em
que o conto não apresenta como conteúdo central
essa temática:
(A)Finisterre
(B)O calor das coisas
(C)O jardim das Oliveiras
(D)O sorvete é um Palácio
(E)O ilustre Menezes
Melhores contos de Nélida Piñon, de Nélida Piñon
gABARITO
1. (01) O conto é narrado em primeira pessoa por
uma narradora-personagem, empenhada em contar a
história que vivenciou ao lado dos amigos, Tarzan e
Beijinho. O conteúdo do texto remete a valores, como
amizade, estilo de vida, autoconhecimento.
(02) O conto, assim como toda a coletânea à qual ele
pertence, é bem representativo da prosa de ficção de
Nélida Piñon, caracterizada por empreender reflexões
acerca dos grandes temas da humanidade, como amor,
paixão, religião, solidão, amizade, entre outros. Nesse
conto, os temas da amizade e da solidão concorrem
para a afirmação da complexidade das relações
interpessoais.
(16) O desfecho do conto remete à ideia de desconforto
entre o casal, Tarzan e Beijinho, e a narradora. A amizade
que os unia parece comprometida após o período de
separação provocado por esta última. Trata-se de uma
espécie de quebra da harmonia, difícil de remediar,
dadas as sutilezas da alma humana confrontadas com
certos valores e padrões de comportamento.
2.B
3. (01) O conto “O ilustre Menezes”, de Nélida Piñon,
pode ser lido sem se considerar o texto “Missa do
galo”, de Machado de Assis. No entanto, conhecer
previamente a narrativa machadiana implica o
alargamento das possibilidades interpretativas do
conto da escritora.
(02) Lido a partir da intertextualidade estabelecida
com o conto “Missa do galo”, conforme as informações
anteriormente fornecidas, o desconhecimento de
Menezes, em “O ilustre Menezes”, sobre certos
detalhes relacionados ao comportamento de sua mulher
confere ao texto um tom de ironia e de comicidade. A
ideologia patriarcal, condescendente com o adultério
masculino, é ridicularizada.
(08) O conto “O ilustre Menezes” é narrado em
primeira pessoa pelo próprio Menezes. Esse afirma que
Conceição seria, de fato, capaz de cometer adultério se
lhe fosse apresentada uma situação favorável. Afirma
também que o adolescente Nogueira pretendia ficar
acordado até tarde com o único propósito de se deparar,
a sós, com Conceição.
4.E
76
Topless
de Marta Medeiros
modo sem ter de escolher entre ser solteiro ou casado,
entre ser da direita ou da esquerda, entre o certo e
o errado moralmente falando. Observe-se que, com
efeito, estamos na segunda década do terceiro milênio,
que tem se caracterizado propriamente por estilos de
vida alternativos e igualmente aceitos socialmente
falando, pela busca da afirmação das minorias, pela
tentativa compreensão do outro, pela valorização da
multiplicidade (ainda que ainda permaneça em pauta
o discurso do ódio, da radicalização político-ideológico
e também religiosa em diversos setores da sociedade).
Outro assunto recorrente nas crônicas de Martha
Medeiros é a moda. Ao menos, em cinco crônicas,
a autora trata do assunto. Por exemplo, em “Verão:
decadência do Império”, reflete sobre a deselegância
no modo de se vestir das pessoas no verão, justificada
pela necessidade de se usar pouca roupa no dia a
dia; com o agravante de, muitas vezes, homens, em
determinadas funções, trabalharem sem camisa.
Mesmo as mulheres ficam em situação complicada por
conta da maquiagem, que derrete com o suor.
Outro exemplo da moda citado pela autora está
no uso do vocabulário. Em “Grande África”, Medeiros
lembra que alguns termos deixam de ser utilizados com
o tempo, trata-se do envelhecimento das expressões,
das gírias e mesmo de certos objetos que deixam de ser
utilizados com o tempo.
O vocabulário da hora (lembra “da hora”?)
não resiste a mais de uma geração. Às vezes,
nem a um único verão. Fazer o quê? Continuar
tagarelando do jeito que se sabe, com as palavras
que encontrar. Só não vale fechar a matraca.
(p. 129)
Por referência a uma música de Cazuza, “Mentiras
sinceras” é uma crônica sobre o ato de falar a verdade
ou a necessidade de ocultá-la. Nem sempre falar a
verdade abertamente é algo positivo para o convívio
social. Isso porque revelar a verdade diretamente pode
ser deselegante; ao contrário, haveria formas brandas
de ser verdadeiro ou ao menos não ser tão direto.
Em outros termos, há verdades que não precisam ser
expressas, como dizer que uma pessoa está mal vestida
ou que ela é um tanto ignorante. Isso pode gerar
conflitos desnecessários.
A violência das palavras também ocorre nas
relações interpessoais. No caso de “Vestidos para
matar”, a cronista fala sobre as fardas usadas por
militares. Se é elegante, chamativo, por outro lado
sugere violência, ditadura, grosseria (lembre-se que a
Ditadura acabara há cerca de uma década em relação
ao período em que ela escreve). E, de fato, em três
crônicas se refere a esse período nefasto da história
brasileira recente. Ditaduras são sempre ruins, não
importa se de direita ou de esquerda. São formas de
governo que devem ser banidas de vez da sociedade
brasileira de modo a fazer a vida em comum fluir
melhor, com mais leveza.
Martha Medeiros (1961), nascida em Porto
Alegre, começou a escrever crônicas na década de 80
e desde então tem publicado regularmente seus textos
em revistas e jornais do país.
Reunidas as crônicas, publicou sua primeira
coletânea em 1985 com o sugestivo título de Striptease. Como cronista, seu objetivo é o de desnudar a
vida cotidiana, apresentar ao leitor seu modo de olhar
para os mais diversos fatos da vida nacional e de temas
que possam interessar as pessoas de modo geral. Com
as redes sociais, todos se sentem um tanto cronista do
cotidiano, mas, sem dúvida, nem todos têm o talento
para escrever, para se expressar com correção e estilo
por escrito.
O livro em questão, Topless, apresenta 54 crônicas
escritas entre 1995 e 1997. Passados vinte anos, há
crônicas cujo assunto podem ter envelhecido, tendo
em vista que a crônica é um gênero híbrido, entre o
literário e o jornalístico. E é exatamente o literário
que faz da crônica um texto permanente, pois, ao
comentar os fatos do dia a dia, o cronista busca revelar
o que ele teria de essencial, como fazia Rubem Braga,
por exemplo. Nesse sentido, as crônicas de Topless
apresentam essa característica. Assim, passadas duas
décadas, o leitor, além de tomar contato com algum
acontecimento dos anos 90, é levado a perceber que
qualquer acontecimento apresenta o seu tanto de
permanente, de essencial para se compreender a vida,
se compreender o ser humano.
Por se tratar de diversos textos, vamos procurar
separar as crônicas não por sequência, e sim por temas,
de modo a facilitar os comentários e a análise. Com
isso, esperamos destacar as características comuns,
incluindo tratamento estético e construção discursiva,
de modo a facilitar a leitura.
Conforme já referido, a crônica é um gênero
que trata do cotidiano. Como tal, o objetivo é tratar
dos temas mais variados e prementes. Em 1996, por
exemplo, uma preocupação comum era discutir o
fim do milênio e como seria a vida no século XXI e
no 3º milênio da Era Cristã. Muitos acreditavam que
esse tempo marcaria o fim do mundo. Por isso, eram
normais as reflexões existenciais do tipo: “quem
sou eu, de onde vim, para onde vou?” Medeiros em
“Vidas passadas para trás” discute exatamente essa
temática. Apesar de instigar muita gente, Medeiros
expressa seu desejo de viver apenas o que tem para
ser vivido, sem se preocupar tanto “para onde iremos”.
Conforme diz no final de crônica: “A mim basta um
banho quente, um pijama limpo e dormir acreditando
que amanhã tem mais”. (p. 63) Retoma a temática em
“O Terceiro lado da moeda”. O título, um tanto irônico,
revela algo que se podemos verificar na atualidade: a
busca por uma maior compreensão do diferente, não
apenas o oposto, como o lado A e o lado B, e sim o
terceiro lado, conforme indica o título. Esse terceiro
lado pode ser a homossexualidade, o viver de outro
77
Topless, de Marta Medeiros
Crônica interessante para compararmos o olhar
do passado a respeito do que vivemos agora é “Os
livros da nova era”, escrita em 1995, em que fala sobre
o advento do livro no formato digital. Passados mais
de vinte anos, trata-se de uma realidade. Porém, como
a autora já previa, há ainda relutância em ler livros
no formato digital. Com efeito, a maioria dos leitores
ainda prefere o suporte papel para ler. A explicação,
entre outras, parece ser a mesma data pela cronista.
Aqueles que têm com o livro uma relação íntima,
quase religiosa, e que não deixam para abri-lo só
quando a tevê está estragada. Eu, por exemplo,
gosto do cheiro do livro. Gosto de interromper a
leitura num trecho especialmente bonito [...].
Depois reabro e continuo a viagem. (p. 36)
Há, ao menos, seis crônicas em que Medeiros
trata sobre a temática livro/literatura/arte. Em “Aula
de literatura”, por exemplo, defende que o ensino das
letras deve prevalecer sobre a de qualquer outra arte
tendo em vista que todos fazemos uso da língua, o
que se configura como essencial para a formação do
indivíduo. Evidente que não despreza outras artes, como
a pintura, por exemplo. Em “Aquarelas universais”, por
exemplo, revela a importância de se visitar um museu,
de se conhecerem os grandes pintores, entre os quais
a brasileira Tarsila do Amaral. Em complemento está
“Gênios monoglotas”, na qual Medeiros trata sobre
gênios brasileiros das mais diferentes artes e expressões
artísticas, como Millôr Fernandes, Chico Buarque, Jô
Soares ou Sônia Braga. Se eventualmente hoje são
nomes marcados por escolhas políticas, igualmente
foram ou são representantes artísticos de grande valor.
Em “Literatura póstuma”, Medeiros se refere a
obras de escritores importantes e que são publicadas
postumamente. Sua dúvida é saber se o tal artista
gostaria mesmo que fossem publicadas. Em geral,
a publicação de um livro esquecido ou guardado na
gaveta atende mais a um interesse comercial, posto que
determinado nome venderia um livro com facilidade,
que a uma evolução estética. De fato, analisandose apenas o valor artístico do livro é provável que
um determinado escritor não o tenha publicado por
considerá-lo ruim. É o caso do poeta chileno Pablo
Neruda, ganhador de diversos prêmios, reconhecido
mundialmente, mas que não publicou tudo o que
escreveu.
Na maioria das vezes, obras póstumas são obras
menores, cujo valor é mais sentimental do que
artístico. Seu único benefício é mostrar aos
jovens autores que ninguém nasce sabendo e
que a prática é a melhor amiga do talento. Mas
nem esse argumento me comove. Já bastam as
besteiras que fazemos em vida. (p. 123)
Outro caso é o da morte de artista odiado, não
tanto por sua obra, e sim por suas escolhas políticas
ou posições a respeito de assuntos polêmicos. Era o
caso do jornalista e escritor Paulo Francis, que fez
vários inimigos especialmente porque não tinha muito
cuidado em expressar opiniões, por mais polêmicas
que fossem. Há, inclusive, uma suposição de que tenha
Em “Loteria dos espertos”, a autora inicia falando
sobre algo que veio a se tornar comum, processos
judiciais como meio não ético para ganhar dinheiro,
como processar alguém por um xingamento ou uma
empresa por não ter cumprido um acordo. Evidente
que não se deve prejudicar o outro, mas muitas ações
poderiam ser resolvidas sem a intervenção do poder
judiciário. No caso, o uso excessivo dessa mediação
judiciária sugere a tal indústria dos processos. Na
crônica, em questão, porém, seu objetivo principal é
lembrar que foi nos anos 90 que os atos da Ditadura
começaram a ser revistos e quando pessoas que
efetivamente sofreram no período apenas por terem
expressado ideias de modo contrário ao pensamento
dos militares passaram a ser recompensadas
financeiramente. Nesse caso, foi necessária a ajuda da
justiça como meio de rever o passado recente e fazer as
devidas correções.
Por outro lado, a liberdade excessiva ou sem
o devido cuidado pode gerar situações perigosas
ou, ao menos, constrangedoras. A autora relata em
“Assassinos por distração” que à época jovens na
Flórida, EUA, teriam arrancado placas de trânsito
para se divertirem. A falta de sinalização provocou
um grave acidente e esses jovens foram condenados
a quinze anos de detenção. O caso é todo complexo e
dividiu opiniões. Para Medeiros, no mínimo os jovens
agiram sem pensar e mereceriam uma punição, talvez
não tão longa. Fato é que em sociedades democráticas,
a liberdade tem de ser usada com cuidado, pois pode
prejudicar outros.
Não somos marginais, mas somos todos homicidas
em potencial. Basta uma inconsequência, uma
distorção de valores ou uma sandice como a dos
jovens americanos. (p. 166-167)
Medeiros toma uma situação qualquer do
cotidiano para fazer considerações de ordem específica
ou moral ou apenas para levar o leitor à reflexão.
Em duas crônicas, a autora se baseia em filmes para
fazer essas considerações. “Meryl Streep, chorai por
nós” trata de alguns filmes importantes da década de
90, especialmente As pontes de Madison, para dizer
que também nós podemos exercer papéis diferentes
em nossa vida ou apenas manter algo regular, sem
grandes mudanças. Para Medeiros, o mais importante
é “nos acostumarmos com a presença de nossas
outras personalidades, sem tentar mascará-las [...]
Chama-se a isso amadurecimento”. (p. 34) Já em “No
divã com Woody Allen, seu objetivo é mostrar que o
cinema pode se comparar ao cotidiano. Essa seria a
lição do diretor, para quem os fatos banais, cotidianos
apresentam histórias divertidas e dramáticas que
podem bem ser organizadas sob forma de roteiro.
Martha Medeiros, portanto, vê essa característica
no diretor norte-americano como determinante para
seu modo de produzir cinema, que não precisaria de
efeitos especiais, tiros, explosões etc. para contar uma
bela história. Mas para isso, temos que aprender com o
diretor, “aprender a se divertir com a repetição, com a
banalidade, com o previsível” (p. 66) Trata-se, pois, de
um cinema do prosaico, da vivência que qualquer um
de nós pode experimentar.
78
Topless, de Marta Medeiros
Uma das crônicas é sobre pensão alimentícia. A
autora se refere a um episódio da época em que um exmarido foi preso por não pagar corretamente a pensão.
O advento do novo Código Civil, em 2002, mudou essa
relação, mas como o texto é de 1996 seguia regras
antigas em que sempre cabia ao homem pagar a pensão.
Pós-2002, o entendimento legal passou a ser outro. De
qualquer modo, Medeiros chamava a atenção para o
fato de que se a mulher queria independência, ela teria
de ser plena, incluindo a financeira, sem depender
mais de ex-, de modo a não requerer a prisão pela falta
de pagamentos não a filho, mas à própria ex-esposa.
Pensão alimentícia, só para as crianças. Se ela
tem uma formação profissional e tem saúde, é
hipocrisia querer herdar o paternalismo que tanto
se lutou para romper. (p. 16)
Em outra crônica, “Mulher solteira procura”, a
cronista revela as contradições do sentimento feminino.
Apesar de uma maior independência, as mulheres
ainda sonham com o casamento, ao menos com o ato em
si, encontrar aquilo que os contos de fada já falavam, a
busca pelo príncipe. Isso porque se cobrava e se cobra
da mulher que cumpra com seu dever social: casarse. Em outras palavras, se pensarmos no todo, vemos
muitas mulheres que têm um pensamento diferente;
de qualquer modo, permanece no senso comum o
desejo de casar-se, até porque ser casada parece trazer
algumas vantagens, entre elas a ideia de ser livre, por
não ter de estar, em tese, à procura de algo:
[...] a mulher casada é infinitamente mais livre
do que a solteira, pois já cumpriu o papel que a
sociedade exigiu dela – casou! – e agora tem o
resto da vista para ser ela mesma. (p. 22)
“Década de 70: a adolescência do feminismo”
trata sobre a luta feminina por mais direitos e como
isso colaborou para as mudanças de sociabilidade. É
uma liberdade conquistada, mesmo que não plena;
sem dúvida, porém, que as mulheres passaram a ter
direitos que antes não se imaginava ter, isso, ao mesmo
tempo, gerou deveres também novos. Em rigor, vivemos
ainda hoje um processo de mudança de sociabilidade,
em que nem sempre se tem certeza do que se quer,
certeza sobre o papel de cada um. O fato é que alguns
estereótipos, bem como rótulos têm sido revistos.
Ser mulher nunca foi uma maravilha, assim
como nascer homem está longe de ser uma graça
dos céus. Há problemas e vantagens em ambos
os lados e, juntos, estamos fundando uma nova
sociedade, sem tanto estereótipo e com um pouco
mais de bom-senso. (p. 40-41)
A mesma ideia, com outro objetivo, está em “Vovó
é uma uva”, fazendo uma brincadeira com os antigos
métodos de alfabetização. A crônica procura mostrar
que as avós modernas, como Baby Consuelo, Danuza
Leão, entre outras, não carregam aquele conceito de
vovozinha que faz chá e bolo, sempre à espera dos
netinhos; ao contrário, têm vida própria, são descoladas
e são mulheres ainda desejáveis, que despertam
sentimentos sensuais. É a mudança no modo de olhar
para as mulheres, bem como o papel que elas próprios
começaram a construir para si desde a década de 60.
falecido em decorrência de uma declaração sua de que
haveria corrupção na Petrobrás, isso nos anos 90, o
que motivou diretores da estatal processá-lo exigindo
o pagamento de uma indenização altíssima.
Independente das opiniões fortes do jornalista,
Medeiros destaca que a morte de Francis, ocorrida
em 1997, deixou uma lacuna na arte e no jornalismo,
pelo fato de o autor ter grande capacidade de análise,
além de talento para escrever. “É por isso que todos
aqueles que adoravam Paulo Francis e também os que
o odiavam do fundo do coração devem lamentar sua
morte”. (p. 126)
Mudando um pouco o foco, relata que as viagens
de avião começaram a baratear, o que permitiu a um
maior número de pessoas viajar pelo país ou para o
exterior. Medeiros chama a atenção para isso em “A
classe econômica vai ao Paraíso”. Na crônica, seu
objetivo maior é revelar que viagens deveriam ser
meio de aumentar o conhecimento cultural, e não
apenas meio de comprar produtos variados, sem
maior utilidade, apenas para se dizer que comprou
determinado coisa no exterior.
Mas para sacoleiros natos, [...] estar em Miami
ou Nova York dá na mesma, desde que haja um
camelódromo em volta do hotel. (p. 57)
Na crônica que dá título ao volume: “Topless:
atentado ao pudor”, há uma reflexão de ordem moral
e também comportamental do brasileiro. O termo
anglicano, topless, serve para indicar um hábito muito
comum em praias europeias e em algumas localidades
dos EUA de as mulheres ficarem sem a parte de cima
do biquíni, deixando os seios à mostra. Medeiros
chama a atenção para o fato de que o brasileiro é
aparentemente liberal no assunto sexualidade, porém,
por estranho que seja, reagia mal (e ainda continua
a reagir) quando uma mulher faz topless na praia,
por exemplo. A autora descreve que em carnaval, em
situações erotizantes, como em filmes, novelas etc. não
se vê problema uma mulher ficar seminua, porém na
praia ou em ambientes públicos, o ato se torna uma
afronta aos chamados bons costumes. Contradições
que, mesmo tendo passados vinte anos da publicação
da crônica, ainda persistem.
Basta uma garota fazer topless numa praia de
Santa Catarina ou de Pernambuco para provocar
um clarão a sua volta, como se ela estivesse com
lepra. (p. 51)
O tema mais recorrente nas crônicas do livro é
relacionamento, o que inclui o casamento em si, as
separações, a maternidade, o feminismo e assuntos
correlatos. São ao menos dezoito crônicas sobre essas
temáticas. Vamos resumir e analisar as principais,
estabelecendo algumas relações entre elas.
Trata dos relacionamentos antes, durante e após
o casamento. Seu objetivo parece ser o de analisar
os novos tempos (leia-se fim de século, mas claro
que muito do que ela disse continua a fazer parte do
contexto atual).
79
Topless, de Marta Medeiros
Outra crônica a tratar da vida doméstica é “As
musas de Odair José”, por referência às empregadas
do lar. Com as mudanças na sociabilidade, ter uma
empregada em casa não significa mais apenas
uma pretensa vadiagem de uma mulher burguesa,
cuja vida era basicamente servir ao marido, mas
sim algo necessário para uma dona de casa que é
também profissional, que tem outros afazeres, outras
perspectivas de vida. O título é porque Odair José
se tornou um cantor paradigmático das empregadas
domésticas ou secretárias do lar.
Em “Crônica de um casamento anunciado”,
Medeiros revela que em fins do século XX o casamento
parecia em desuso, pelas facilidades de se buscar
apenas morar juntos, mas, em rigor, era uma prática
mais recorrente do que se poderia imaginar. Talvez
hoje essa percepção também esteja presente, embora
casar-se ainda continua algo bastante comum. O
objetivo da autora é o de mostrar que declarar-se noiva
pode não ser impeditivo para que outra pessoa tente
paquerar uma moça. Segundo Medeiros, o contrário
poderia até acontecer: um noivo, em princípio, seria
respeitado pelas mulheres solteiras. Verdade ou
não, Medeiros quer dizer que as mulheres tendem a
respeitar mais os comprometidos em comparação aos
homens, que, mesmo diante de uma noiva, tentaria
algo com ela. Além de mostrar que noivado é apenas
um rito de passagem, não uma certeza de durabilidade
no relacionamento.
Tem gente que namora duas semanas, casa e
comemora bodas de ouro. Outras ficam noivas dez
anos e casada apenas dez dias. Noivado é rito de
passagem. Uma maria-fumaça. A paixão é que é
o verdadeiro trem-bala. (p. 78)
Ainda nessa linha temática, sobre relacionamento,
outras duas crônicas tratam sobre a primeira vez e
sobre a manutenção da paixão por anos. Em ambos os
casos, a cronista tenta entender os tempos modernos,
sem se esquecer da tradição moral, por assim dizer.
“Em a primeira noite de uma mulher”, como indica o
título, ela aborda a dificuldade natural de uma mulher
se apresentar intimamente a um homem pela primeira
vez: “Não é tarefa fácil nem para balzaquianas
calejadas, o que dirá para uma garota cheia de
fantasias na cabeça” (p. 95) No caso de “O príncipe que
virou sapo”, trata sobre as traições que podem ocorrer
durante um relacionamento de muitos anos. Ela sugere
que isso pode acontecer, sem que necessariamente
o traidor queira o fim do relacionamento sério, ou o
faz por mau caratismo, a não ser, claro, que não se
queira continuar de fato o casamento: “Admitamos:
infidelidades casuais não justificam a separação de
duas pessoas que se amam” (p. 98) Com efeito, muitas
vezes a separação ocorre mais por pressão social que
propriamente por um desejo efetivo do traído.
Na crônica “Casamento, lado A e lado B”, a
temática se repete. Os pontos positivos e negativos
do casamento. A rotina que traz segurança é a mesma
rotina que torna a relação monótona. Por outro lado, na
crônica “uma aventura no supermercado”, Medeiros
Essa independência feminina, bem como o novo
homem, pode produzir consequências negativas, como
o não desejar ter filhos. Embora não seja um crime,
pode ocorrer de, ao se gerar um filho não desejado, o
casal simplesmente dar o filho para a adoção, de modo
a evitar que o filho venha a atrapalhar seu estilo de
vida. É o que se observa em “Toma que o filho é teu”.
Medeiros chama a atenção para a possibilidade de,
após a doação, ocorrer um arrependimento, porém, a
justiça deveria retirar de vez qualquer direito de um
casal reaver um filho já doado. Até porque, depois,
“os pais adotivos também se sentem legítimos. [...]
Crianças não são produtos que vêm com prazo de
validade”. (p. 53-54)
Em “Verdades e mentiras sobre as mães”,
Medeiros segue a mesma linha de reflexão ao
abordar alguns mitos a respeito da maternidade:
“Mãe é mãe”; “Mãe é uma só”; “Ser mãe é padecer
no paraíso”; “Maternidade: missão de toda mulher”.
Para a autora, são mitos, pois a mulher hoje adquiriu
outras perspectivas, apresenta outros interesses, o
que pode sugerir que nem toda mulher teria tal perfil
para a maternidade. Porém, conclui com outro clichê:
“Mamãe eu quero”, ou seja, que todos amariam a
própria mãe, o que também pode não ser exatamente
a verdade.
Fato é que a autora quer chamar a atenção para
as mudanças que vêm ocorrendo desde a década
de 60, quando a mulher passou a perceber que seu
destino poderia não ser apenas aquele a que lhe era
reservado, casar-se e ter filhos. Com efeito, observamos
hoje a mulher totalmente integrada às mais diversas
profissões, de modo a colocar em prática o princípio
democrático do Brasil atual (leia-se, os últimos trinta
anos).
Um pouco na contramão da ideia de mãe
moderna, Medeiros fala de Madonna, em “Madona
like a virgin”, que encarna, a despeito de toda
liberalidade da cantora, a típica mãe super-protetora,
que proibiria o filho de fazer coisas básicas, como ver
TV. “A mudança de Madonna reforça um mito antigo, o
de que ser mãe compensa o abandono de si mesma”. (p.
155) O mesmo se dá em “Parabéns para você”, em que
a autora chama a atenção para as festas de aniversário
mais modernas, que, além de doces, guloseimas,
devem ter brincadeiras organizadas etc., tendo como
diretora a mãe, que, mesmo querendo ser moderna,
nessa hora tem que ser mãe. “Por que suportamos tudo
caladas? Porque mãe é sinônimo de sacrifício, entrega,
benemerência”. (p. 138)
Já em “Homens, mulheres e abajures”, seu
objetivo é mostrar as diferenças persistentes entre
os sexos opostos, sobretudo no que diz respeito à
decoração da casa. Interessante que no início da
crônica afirma que assim como lojas de decoração, era
possível achar locadoras de vídeo em qualquer lugar.
As casas de decoração permanecem, mas as locadoras
foram sendo esquecidas, pouco a pouco. Pois bem, na
crônica, quer mostrar que sempre haverá diferenças
entre os sexos, pois os interesses e a sensibilidade nem
sempre são iguais.
80
Topless, de Marta Medeiros
mostra que mesmo a vida rotineira de uma dona de
casa pode ser aventureira em alguns momentos, no
sentido de que a vida moderna, com seus desafios,
correria, indecisões, pode levar uma pessoa a viver
experiências intensas mesmo em um supermercado.
Se você optou por um supermercado popular, vai
querer cortar os pulsos. Você mesma terá que
acomodar suas compras. Ovos com lustrador de
móveis, fita de vídeo com manteiga, uvas com
garrafas de refrigerante, tudo junto, como uma
grande família. Dane-se a higiene. (p. 132)
Medeiros aborda a dificuldade de se encontrar
a chamada “alma gêmea” e como as pessoas, para
isso, costumavam recorrer a agências de casamento,
exatamente na crônica “Agências de casamento”.
Escrita em 1997, se atualizada, certamente a crônica
faria menção às redes sociais ou as agências virtuais
que promovem todo tipo de encontro, do casual ao
sério. Mudando os tempos, uma verdade permanece:
a dificuldade de se encontrar a pessoa perfeita para
nosso objetivo de vida, desejos, comportamento etc.
Em outra crônica, porém, “Sargentos e soldados”,
a autora afirma que há casais que permanecem unidos
mesmo sendo diferentes, isso porque certamente cada
um aceita a diferença do outro que o complementa ou
mostra a vida de outro modo, ao menos. “As pequenas
divergências só ganham ares de drama quando atingem
o lado frágil do casal: o bolso”. (p. 163) Mesmo assim,
podem ainda assim se entenderem.
Apesar de Medeiros quase sempre escrever da
perspectiva feminina, ela não despreza a visão do
homem. Busca entender a dificuldade de ser homem
nos tempos modernos (leia-se fins do século XX e,
extrapolando, o século XXI), em que mulher tem voz,
tem sonhos, desejos, projetos pessoais etc. Por isso,
propõe o “Dia internacional do homem”. Por conta da
nova mulher, o homem deve se reinventar também. Isso
o levou a fazer serviços domésticos e a experimentar
certos julgamentos sociais, a que eram submetidas
apenas as mulheres.
Por isso, além das lides do lar, os moços trabalham
fora. E ai deles se fracassarem. [...] No amor,
a opressão é ainda maior. Os homens que não
casam são marginalizados pela sociedade. São
vistos como playboys, filhinhos de mamãe ou
bichas enrustidas. (p. 133)
Nessa linha, “Homens que têm tudo” discute
que tipo de presente um homem deveria receber. No
caso, é preciso esquecer os tradicionais, como meias,
gravatas, lenços ou camisas polo. Se a mulher mudou,
o homem também. Esse é o foco da maior parte das
crônicas de Martha Medeiros, discutir as mudanças
nas relações familiares, no modo de ver o papel de cada
sexo. Ora, para uma nova mulher há que se constituir
um novo homem. E, talvez, mais do que isso, excluindo
os estereótipos do que seja um homem, do que seja
uma mulher, Medeiros mostra que há urgências, que
antes não se pensava em ter. Claro que em qualquer
época, sempre haverá esse discurso do “no meu tempo
não era assim...” Mas eis o papel do cronista, ou um
deles, retratar a vida cotidiana, registrar por meio
de uma linguagem jornalística aquilo que tem de
permanente, ver no efêmero um padrão, um estilo de
vida, determinar o que é comum a muitos indivíduos.
Em “A felicidade no fim de século”, isso é
bastante explícito. Cita algumas personalidades da
época, ou seja, 1995, como Arnaldo Jabor, Danuza
Leão, Jô Soares, que mudaram sua vida pessoal ou
profissional, para mostrar que as pessoas comuns, as
não celebridades também têm buscado alternativas
para serem felizes, para se realizarem, para atingirem
metas antes impensáveis. Até porque há uma urgência
pela felicidade, como se ela não pudesse esperar. É
preciso viver o agora, sempre.
Para nossas bisavós, ser era fácil. Bastava casar
e ter filhos. [...] Priscas eras. [...] Por que esta
urgência de viver? Simples, porque a morte tem
chagado à bala. (p. 17)
Essa mudança de comportamento está registrada
em “O beijo de Maradona”. Escrita em 1996, a crônica
discute o novo homem, motivado por um beijo que
Maradona teria dado em Cannigia por ocasião da
marcação de um gol. Medeiros aproveita o caso
para refletir que, embora não seja comum homens se
beijarem, ao menos não em público, tem se permitido
demonstração de afeto mútuo, sem serem confundidos
como homossexuais. É bem verdade que, passados
vinte anos, isso é até mais comum, inclusive o beijo.
O ponto é que, com efeito, demonstrar sentimentos
em público não é mais ato exclusivo das mulheres.
Homens sempre tiveram dificuldade com isso, não
porque sejam incapazes de sentir, mas sim, por pressão
social, cultural, tinham de sempre manter-se firmes
nas emoções, por referência ao famoso clichê, segundo
o qual “homem não chora”.
Em “Falem bem, falem mal”, Medeiros
reflete sobre a necessidade de as celebridades, em
particular, terem seu nome e trabalho constantemente
comentados. Embora Medeiros não tenha antevisto,
hoje, com a proeminência das redes sociais, esse
desejo se estendeu a todos, sobretudo os que almejam
popularidade mesmo que sob um enforque negativo,
pejorativo. Vídeos são gravados com cenas torpes e
mesmo assim compartilhados para se obter uma fama
um tanto duvidosa. O mais importante é que se curta,
se compartilhe qualquer prática, por mais tosca ou
néscia que seja.
O papel de personalidades, heróis, líderes é o
de inspirar atitudes transformadoras, revolucionárias,
positivas. Porém, nem sempre é o que acontece. Na
crônica, “A modéstia sobre ao pódio”, Medeiros fala da
ascensão do tenista Gustavo Kuerten, o Guga. Trata-se,
pois, de uma personalidade por uma ação positiva, não
por se expor em redes sociais de modo a se transformar
em pseudocelebridade.
Por fim, vale a pena ainda destacar outra crônica
de Martha Medeiros. Nascida no Rio Grande do
Sul, a autora analisa o modo de ser gaúcho em “Rio
Grande, ame-o e deixe-o”. O título é irônico e remente
o leitor ao slogan politico dos anos 70, quando o
81
Topless, de Marta Medeiros
Fernando Sabino dizendo que faltava demônio em
Berna, onde morava na ocasião. A Suíça, de fato,
é um país de contos de fada onde tudo funciona,
onde todos são belos, onde a vida parece uma
pintura, um rótulo de chocolate. Mas falta uma
ebulição que salve do marasmo. Retornando ao
assunto: pessoas habitadas são aquelas possuídas
por si mesmas, em diversas versões. Os habitados
estão preenchidos de indagações, angústias,
incertezas, mas não são menos felizes por causa
disso. Não transformam suas “inadequações” em
doença, mas em força e curiosidade. Não recuam
diante de encruzilhadas, não se amedrontam
com transgressões, não adotam as opiniões dos
outros para facilitar o diálogo. São pessoas que
surpreendem com um gesto ou uma fala fora
do script, sem nenhuma disposição para serem
bonecos de ventríloquos. Ao contrário, encantam
pela verdade pessoal que defendem. Além disso,
mantêm com a solidão uma relação mais do que
cordial. Então são as criaturas mais incríveis
do universo? Não necessariamente. Entre os
habitados há de tudo, gente fenomenal e também
assassinos, pervertidos e demais malucos que
não merecem abrandamento de pena pelo fato de
serem, em certos aspectos, bastante interessantes.
Interessam, mas assustam. Interessam, mas
causam dano. (...)
Que tenhamos a sorte de esbarrar com seres
habitados e ao mesmo tempo inofensivos, cujo
único mal que possam fazer é nos fascinar e nos
manter acordados uma madrugada inteira. Ou a
vida inteira, o que é melhor ainda.
governo ditatorial militar usava a frase: Brasil, ame-o
ou deixe-o. Naquele contexto, a ideia de amar refletia
o discurso de que era precisa aceitar o status quo ou
abandonar o país para que não houvesse luta etc. No
caso da cronista, seu objetivo é mostrar que o bairrismo,
o regionalismo que gira em torno de certos locais no
país, em especial no Rio Grande, tende a produzir um
discurso de afirmação local, porém de consequências
ruins para a brasilidade, no sentido de que o gaúcho
mais típico vê sua cultura como superior a qualquer
outra, gerando certo preconceito em relação a outras
regiões.
O Rio Grande do Sul vive para dentro. Cultiva
suas tradições como um pai feroz cuida da filha
donzela. [...] Mais: o protecionismo gaudério
não deixa que se critique a literatura gaúcha,
os músicos gaúchos, a costela gaúcha. [...] o
confinamento é terreno fértil para preconceitos.
(p. 115-117)
O que pode ser visto de modo positivo sob certo
ângulo é algo que se revela nefasto a todos, afinal o
olhar para fora é sempre importante. Compreender
o todo é mais vantajoso que um olhar limitado,
particularista. Por isso, a literatura de modo geral e
em particular de Martha Medeiros, por ampliar nosso
modo de olhar, por partir de elementos comuns, leva
o leitor a sair de seu mundinho, daquilo que o cerca
para ganhar o mundo. É o desnudamento que provoca
as crônicas de Martha Medeiros, que quer fazer um
topless do que está em nossa mente, para apontar
as mudanças e também provocar o leitor a ver para
além do próprio mundo, para refletir além do próprio
umbigo.
Fonte: SANTOS, Joaquim Ferreira dos. (org.). As cem melhores
crônicas brasileiras. Rio de Janeiro: Objetiva. 2007. p. 324-5.
EXERCÍCIOS
Observação: as questões a seguir se referem a
crônicas publicadas em outros livros. No entanto,
estão aqui para servirem de referência ao
estudante.
(IFNMG) Pessoas habitadas - Martha Medeiros
Estava conversando com uma amiga, dia
desses. Ela comentava sobre uma terceira pessoa,
que eu não conhecia. Descreveu-a como sendo
boa gente, esforçada, ótimo caráter. “Só tem um
probleminha: não é habitada.” Rimos. É uma
expressão coloquial na França — habité — mas
nunca tinha escutado por estas paragens e com
este sentido. Lembrei-me de uma outra amiga
que, de forma parecida, também costuma dizer
“aquela ali tem gente em casa” quando se refere a
pessoas que fazem diferença. Uma pessoa pode ser
altamente confiável, gentil, carinhosa, simpática,
mas se não é habitada, rapidinho coloca os outros
pra dormir. Uma pessoa habitada é uma pessoa
possuída, não necessariamente pelo demo, ainda
que satanás esteja longe de ser má referência.
Clarice Lispector certa vez escreveu uma carta a
82
1.
Assinale a alternativa que NÃO corresponde às
ideias defendidas no texto, com relação às pessoas
habitadas:
(A)Os habitados são surpreendentes, uma vez
que não são alienados; são autênticos.
(B)A forma como as criaturas habitadas lidam
com a solidão é vista de maneira positiva.
(C)Nem sempre as pessoas habitadas são as
melhores pessoas, ainda que, em certos
aspectos, sejam interessantes.
(D)Pessoas habitadas são mais felizes porque
estão desabitadas de incertezas e angústias.
2.
Em relação às estratégias discursivas empregadas
na construção do texto, a autora faz uso de vários
recursos, EXCETO de:
(A)Uso da forma interrogativa como recurso
enfático.
(B)Inserção de discurso direto por meio da
utilização das aspas.
(C)Relato de acontecimentos em terceira pessoa,
exclusivamente no primeiro parágrafo.
(D)Uso de estrangeirismos.
Topless, de Marta Medeiros
(Fafisa) O PERMANENTE E O PROVISÓRIO
O casamento é permanente, o namoro é
provisório. O amor é permanente, a paixão é
provisória. Uma profissão é permanente, um
emprego é provisório.
Um endereço é permanente, uma estada é
provisória. A arte é permanente, a tendência é
provisória. De acordo? Nem eu.
Um casamento que dura 20 anos é provisório.
Não somos repetições de nós mesmos, a cada
instante somos surpreendidos por novos
pensamentos que nos chegam através da leitura,
do cinema, da meditação. O que eu fui ontem e
anteontem, já é memória. Escada vencida degrau
por degrau, mas o que eu sou neste momento é
o que conta, minhas decisões valem para agora,
hoje é o meu dia, nenhum outro.
Amor permanente... como a gente se agarra
nessa ilusão. Pois se nem o amor por nós mesmos
resiste tanto tempo sem umas reavaliações. Por
isso nos transformamos, temos sede de aprender,
de nos melhorar, de deixar para trás nossos
imensuráveis erros, nossos achaques, nossos
preconceitos, tudo o que fizemos achando que
era certo e hoje condenamos. O amor se infiltra
dentro de nós, mas seguem todos em movimento:
você, o amor da sua vida e o que vocês sentem.
Tudo pulsando independentemente, e passíveis
de se desgarrar um do outro.
Um endereço não é pra sempre, uma profissão
pode ser jogada pela janela, a amizade é fortíssima
até encontrar uma desilusão ainda mais forte, a
arte passa por ciclos, e se tudo isso é soberano
e tem valor supremo, é porque hoje acreditamos
nisso, hoje somos superiores ao passado e ao
futuro, agora é que nossa crença se estabiliza, a
necessidade se manifesta, a vontade se impõe –
até que o tempo vire.
Faço menos planos e cultivo menos
recordações. Não guardo muitos papéis, nem
adianto muito o serviço. Movimento-me num
espaço cujo tamanho me serve, alcanço seus
limites com as mãos, é nele que me instalo e vivo
com a integridade possível. Canso menos, me
divirto mais e não perco a fé por constatar o óbvio:
tudo é provisório, inclusive nós.
[...] Foi realizado em Madri o Primeiro
Congresso Internacional da Felicidade, e a
conclusão dos congressistas foi que a felicidade só
é alcançada depois dos 35 anos. Quem participou
desse encontro? Psicólogos, sociólogos, artistas de
circo? Não sei. Mas gostei do resultado.
A maioria das pessoas, quando são
questionadas sobre o assunto, dizem: “Não existe
felicidade, existem apenas momentos felizes”.
É o que eu pensava quando habitava a caverna
dos 17 anos, para onde não voltaria nem puxada
pelos cabelos. Era angústia, solidão, impasses e
incertezas pra tudo quanto era lado, minimizados
por um garden party de vez em quando, um
campeonato de tênis, um feriadão em Garopaba.
Os tais momentos felizes.
Adolescente é buzinado dia e noite: tem que
estudar para o vestibular, aprender inglês, [...]
não beber quando dirigir, dar satisfação aos pais,
ler livros que não quer e administrar dezenas de
paixões fulminantes e rompimentos.
Não tem grana para ter o próprio canto,
costuma deprimir-se de segunda a sexta e só se
diverte aos sábados, em locais onde sempre tem
fila. É o apocalipse. Felicidade, onde está você?
Aqui, na casa dos 30 e sua vizinhança.
Está certo que surgem umas ruguinhas, umas
mechas brancas e a barriga salienta-se, mas é um
preço justo para o que se ganha em troca. Pense
bem: depois dos 30, você paga do próprio bolso
o que come e o que veste. Vira-se no inglês, no
francês, no italiano e no iídiche, e ai de quem rir
do seu sotaque. Não tenta mais o suicídio quando
um amor não dá certo, [...] apaixonou-se por
literatura, trocou sua mochila por uma Samsonite
[...]. Talvez não tenha se tornado o bam-bam-bam
que sonhou um dia, mas reconhece o rosto que
vê no espelho, sabe de quem se trata e simpatiza
com o cara.
(MEDEIROS, Martha. Coisas da vida.
Porto Alegre: L&PM, 2005. p. 39-40).
3.
(Ulbra) As questões 4 e 5 estão baseadas na crônica
35 anos para ser feliz, de Martha Medeiros,
disponível no site: http://www.releituras.com/
mamedeiros_serfeliz.asp.
Depois que cumprimos as missões impostas
no berço — ter uma profissão, casar e procriar —
passamos a ser livres, a escrever nossa própria
história, a valorizar nossas qualidades e ter um
certo carinho por nossos defeitos.
De acordo com o texto, assinale a alternativa
cujo fragmento reforça a ideia de transitoriedade
associada ao casamento.
(E)“O casamento é permanente, o namoro é
provisório.”
(F)“[...] mas o que eu sou neste momento é o que
conta, minhas decisões valem para agora, hoje
é o meu dia, nenhum outro.”
(G)“[...] Pois se nem o amor por nós mesmos
resiste tanto tempo sem umas reavaliações.”
(H)“Faço menos planos e cultivo menos
recordações.”
(I) “[...] tudo é provisório, inclusive nós.
Somos os titulares de nossas decisões. A
juventude faz bem para a pele, mas nunca
salvou ninguém de ser careta. A maturidade,
sim, permite uma certa loucura. Depois dos 35,
conforme descobriram os participantes daquele
congresso curioso, estamos mais aptos a dizer que
infelicidade não existe, o que existe são momentos
infelizes. Sai bem mais em conta.
83
Topless, de Marta Medeiros
4. Sobre a crônica de Martha Medeiros, é correto
afirmar.
(A)No
Primeiro
Congresso
Internacional
da Felicidade, realizado em Madri, os
congressistas concluíram que a felicidade só é
alcançada antes dos 35 anos.
(B)A autora do texto afirma que a felicidade
é relativa e que na adolescência é possível
encontrar a felicidade nas pequenas coisas do
dia a dia.
(C)A maturidade não permite mais loucuras.
(D)A juventude faz bem para a pele e torna a
pessoa feliz.
(E)Depois que o indivíduo tem uma profissão,
casa e tem filhos, começa a escrever sua
própria história, começa a ser livre.
5. Assinale a única alternativa que expõe uma
informação encontrada na crônica de Martha
Medeiros.
(A)Junto com psicólogos, artistas de circo
participaram do encontro em Madri.
(B)Após os 35 anos, as pessoas podem afirmar
que não há infelicidade, existem momentos
infelizes.
(C)O adolescente é cobrado diuturnamente, não
tem condições de manter-se sozinho e sempre
tem momentos de felicidade.
(D)As rugas comprometem o visual e tornam o
indivíduo infeliz.
(E)A maioria das pessoas acredita na felicidade
total.
gABARITO
1.D 2.C 3.C 4.E 5.A
84
Referências bibliográfricas
Referências bibliográfricas
Alexandre Herculano. Eurico, o presbítero. São Paulo: Martin Claret, 2014.
Carlos Drummond de Andrade. Alguma Poesia. In: Nova reunião. 8. ed., Rio de Janeiro:
BestBolso, 2014, vol. 1.
Clarice Lispector. A hora da estrela. 21. ed., Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1993.
Dias Gomes. O pagador de promessas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011.
Gonçalo M. Tavares. Uma menina está perdida no seu século à procura do pai. São Paulo:
Cia. das Letras, 2015.
Martha Medeiros. Topless. Porto Alegre: L&PM, 2015.
Mia Couto. Vozes anoitecidas. São Paulo: Cia. das Letras, 2013.
Nélida Piñon. Melhores contos. São Paulo: Global, 2014.
Paulo Leminski. Toda Poesia. São Paulo: Cia. das Letras, 2015.
Raul Pompeia. O Ateneu. Fundação Biblioteca Nacional. Disponível em http://www.dominiopublico.gov.br/pesquisa/DetalheObraForm.do?select_action=&co_obra=2020. Acesso em 01
maio 2016.
85
Hino Nacional Brasileiro
Letra: Joaquim Osório Duque Estrada
Música: Francisco Manuel da Silva
Parte I
Parte II
OUVIRAM DO IPIRANGA AS MARGENS PLÁCIDAS
DE UM POVO HEROICO O BRADO RETUMBANTE,
E O SOL DA LIBERDADE, EM RAIOS FÚLGIDOS ,
BRILHOU NO CÉU DA PÁTRIA NESSE INSTANTE.
DEITADO ETERNAMENTE EM BERÇ O ESPLÊNDIDO,
AO SOM DO MAR E À LUZ DO CÉU PROFUNDO,
FULGURAS, Ó BR ASIL, FLORÃO DA AMÉRICA,
ILUMINADO AO SOL DO NOVO MUNDO!
S E O PENHOR DESSA IGUALDADE
CONSEGUIMOS CONQUISTAR COM BRAÇO FORTE ,
E M TEU SEIO, Ó LIBERDADE,
DESAFIA O NOSS O PEITO A PRÓPRIA MORTE !
DO QUE A TERRA MAIS GARRIDA,
TEUS RISONHOS , LINDOS CAMPOS TÊM MAIS FLORES ;
MAIS VIDA”,
“NOSS OS BOSQUES
“NOSSA VIDA” NO TEU SEIO “MAIS AMORES .”
Ó PÁTRIA AMADA,
IDOLATRADA,
S ALVE! S ALVE!
Ó PÁTRIA AMADA,
IDOLATRADA,
S ALVE! S ALVE!
BRASIL, UM SONHO INTENSO, UM RAIO VÍVIDO
DE AMOR E DE ESPERANÇA À TERRA DESCE ,
S E EM TEU FORMOSO CÉU, RISONHO E LÍMPIDO,
A IMAGEM DO CRUZEIRO RESPLANDECE .
GIGANTE PELA PRÓPRIA NATUREZA,
É S BELO, ÉS FORTE , IMPÁVIDO COLOSS O,
E O TEU FUTURO ESPELHA ESSA GRANDEZA.
TERRA ADORADA,
E NTRE OUTRAS MIL,
É S TU, BRASIL,
Ó PÁTRIA AMADA!
DOS FILHOS DESTE SOLO ÉS
PÁTRIA AMADA,
BRASIL!
VERÁS
UM FILHO TEU NÃO FOGE À LUTA,
NEM TEME, QUEM TE ADORA, A PRÓPRIA MORTE .
TERRA ADORADA,
E NTRE OUTRAS MIL,
É S TU, BRASIL,
Ó PÁTRIA AMADA!
MÃE GENTIL,
DOS FILHOS DESTE SOLO ÉS
PÁTRIA AMADA,
B
!
MÃE GENTIL,