A EDUCAÇÃO PARA A PAZ EM MICHEL SERRES E A

Transcrição

A EDUCAÇÃO PARA A PAZ EM MICHEL SERRES E A
A EDUCAÇÃO PARA A PAZ
EM MICHEL SERRES E A
COMPREENSÃO COMPLEXA DA
VIOLÊNCIA EM EDGAR MORIN
Humberto Calloni*
Resumo: Este ensaio enfatiza o desejo de Michel Serres pela paz entre os
seres humanos e destes com a natureza, o planeta Terra. Grosso modo, a
paz, para Serres, é a possibilidade do encontro das duas razões (ciências
e humanidades), do equilíbrio e da justiça. É nessa medida que procuraremos destacar o entendimento do filósofo acerca da violência, a fim de
pensar a possibilidade da paz, onde a Educação tem papel fundamental.
Por outro lado, acreditamos ser significativo convidarmos para o debate
o filósofo Edgar Morin para melhor compreendermos a complexidade da
alma humana, seus rizomas e suas emergências para a vida e para a existência. Abordaremos, neste ensaio, o entendimento de violência presente
em O Contrato Natural, de Michel Serres. Após, faremos uma incursão
ao pensamento complexo moriniano, pontuando a noção de “triunidade
humana”, isto é, a nossa identidade terrena enquanto ser individual, social
e natural.
Palavras-chave: Violência. Educação. Complexidade. Serres. Morin.
De que me adianta ser filho da santa?
Melhor seria ser filho da outra
Outra realidade menos morta
Tanta mentira, tanta força bruta.
Milton Nascimento
* Mestre e doutor em Educação (UFRGS), licenciado em Pedagogia e Filosofia
(UFRGS), professor associado de filosofia (FURG). Líder do GE da Complexidade (GEC/CNPq).
Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 43, jul./dez. 2013
85
As obras publicadas pelo filósofo francês Michel Serres (1930-) encerram as grandes temáticas do mundo contemporâneo, com especial
ênfase aos estudos da ciência, do direito, da história das religiões, do
cuidado com o planeta Terra, da educação, das matemáticas, enfim, da
Filosofia.
Talvez tenha sido esse domínio de conhecimentos em esferas distintas e complementares que motivou o nosso interesse por estudar o
autor de O Terceiro Instruído. Ou seja, essa qualidade inter/transdisciplinar presente em suas obras aliada a um enfoque teórico mestiço, queremos dizer, interdisciplinar, chamou-nos a atenção e motivou o desejo
de tentarmos melhor compreendê-lo a partir do seu patamar teórico,
tomando de empréstimo, com reservada cautela, as suas lentes de leitura
do mundo em que vivemos, notadamente sobre a sua noção de violência
e o entendimento da paz.
Embora o filósofo tenha um estilo peculiar, genuíno, para refletir
sobre as questões do mundo atual, seja como epistemólogo, seja como
ardente defensor da paz entre os humanos e estes com a natureza, é possível, e talvez desejável, sob o ponto de vista do nosso empreendimento,
trazer à discussão outras autorias, outras vozes que, direta ou indiretamente, traduzem a grave questão da violência ao longo da história da
humanidade, como é o caso de Edgar Morin (1921-) que, juntamente
com Michel Serres, pertenceu ao Grupo dos Dez.1 De qualquer maneira, o pano de fundo de todos os escritos de Michel Serres é tecido pelo
desejo de harmonia, pelo reclamo da paz enquanto justiça e equilíbrio
entre as “forças do bem e do mal” (s/d); pela denúncia contra a violência em todas as suas formas e manifestações; pelo apelo a um mundo
melhor, justo, equilibrado pela razão (científica) e pelo juízo (direito).
Por outro lado, é interessante constatar que a abordagem teórico-metodológica do pensador originário de uma ambientação familiar
cátara (seita originária do sul da França que acreditava radicalmente
1 O “Grupo dos Dez” era liderado por Jacques Robin (MORIN, 2000, p.38). Era um
grupo interdisciplinar que reunia, além de Michel Serres, “Henri Laborit, o cibernético Jacques Sauvan, Joel de Rosnay, Henri Atlan e outros” (Morin, 2010,
p.197). Morin registra que o “Grupo dos Dez” “é para mim, um verdadeiro e extraordinário caldo de cultura que me prepara para o inesperado mergulho que irei
encontrar no Instituto Salk, em La Jolla, California. Um caldo de cultura indissolúvel do pensamento complexo, da antropologia complexa e de um novo ela vital”
(MORIN, 2000, p. 197).
86
Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 43, jul./dez. 2013
na existência do bem e do mal), jamais parte de um fundamento últi
mo no qual se possa verificar uma justificação enraizada em qualquer
metanarrativa que privilegie um fenômeno, seja este físico ou metafísico como determinante/fundante/explicativo para todos os fenômenos
complexos da realidade. Esta providência, como ele próprio irá registrar
em suas obras, foi influenciada, em grande parte, como forma de resistir
e se contrapor às disputas teóricas polarizadas entre grupos de estudantes e professores de Filosofia que defendiam, cada qual a sua maneira,
correntes de pensamentos opostos: de um lado o marxismo e de outro
a fenomenologia. Assim que, em seu período de estudos acadêmicos na
Ecole Normale Supérieure, nos anos de 1950 e 1960, percebeu que a polarização espírito/matéria, sujeito/objeto, por exemplo, não conseguia,
a seu ver, elucidar as verdadeiras causas da violência, das guerras, dos
conflitos; ao contrário, alimentava, em seus debatedores, espíritos rivais
entre si por defenderem pontos de vista diferentes, chegando mesmo a
constituírem “guetos teóricos” cuja intransigência lembrava verdadeiros “guetos rivais das penitenciárias”, radicaliza o filósofo.
Na Ecole Normale Supérieure [...] reinava o terror; poderosos
grupos mantinham mesmo por vezes alguns tribunais, com
júris constituídos, para neles se acusar este ou aquele delito de
opinião, apelidado crime intelectual: um “comando” ia buscar
os alunos às suas camaratas para submetê-los a julgamento.
Stalinistas também, muitas vezes, os professores de Filosofia
[...] (SERRES, 1997, p. 14).
Decepcionado com a Academia, insurge-se contra ela, ou melhor,
contra as performances com que os debates eram conduzidos, sua ambientação. Torna-se autodidata. É sintomático que, em seus livros, o filósofo se vale de termos ou palavras coloquiais, do nosso dia-a-dia, num
vertiginoso contraste com sua extensa erudição. Frequentemente, reabilita termos ou conceitos rebaixados pelos intelectuais da escola tidos como
preconceitos pelo homem da rua, ressignificando-os e migrando-os a um
patamar recodificado em seu conteúdo semântico original, como é o caso
do termo mestiço. Ainda assim, ou seja, apesar de seu investimento em
palavras coloquiais, a sua lexicografia não nos autoriza, paradoxalmente,
a dispensa do dicionário, pois o estilo de sua narrativa é, provavelmente,
algo hermético para seus leitores iniciantes.
Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 43, jul./dez. 2013
87
O traçado metodológico de Serres pode surpreender o seu leitor
desavisado. É que com o abandono das “vias de mão dupla” ou “autoestrada” – como o filósofo prefere se referir à polarização matéria/espírito
ou, ainda, materialismo e idealismo – o autor de O Contrato Natural
pensa sempre a partir da ideia de relações (relações vetoriais) e, como
pensa “vetorialmente”, como ele mesmo se refere, faz conexões temáticas inesperadas, surpreendentes, talvez não pensadas pelo seu interlocutor-leitor, remetendo este último do tempo presente ao universo mitológico ou pré-histórico e, novamente, do fantástico à realidade do mundo
atual. O filósofo inaugura conceitos, noções, sentidos e significados próprios e desdenha de citações e até mesmo de bibliografias, embora não
deixe de registrar aqui e ali, direta ou indiretamente determinados pensadores que o instigaram a pensar ou por quem nutre afeto intelectual.
Decididamente não acadêmico e autodidata, nem por isso Michel Serres
constrói seus textos aleatoriamente, uma vez que existe uma estrutura
interdependente/interdisciplinar no conjunto da obra, sem jamais deixar de mencionar o problema da violência e urgência da paz.
Michel Serres tem uma ideia particularmente arredia quanto à eficácia de certa noção de crítica, quando esta se petrifica em si mesma
e perde-se ante a sua vaidade ilocutória (i.e., como promessa de ação
anunciada por um predicado ou verbo em um enunciado), enquanto o
mundo desaba sem a ação derradeira para a sua restauração. Defensor
da liberdade de pensamento e da criatividade, do inédito, da invenção de
soluções aos problemas que o ser humano coloca a si mesmo ou que causa em relação à vida e à existência do planeta, Serres é acima de tudo um
Iluminista que percebeu que a Razão é um “sol” desdobrado em “dois
sóis”, sendo o segundo sol os elementos dos sentidos, dos sentimentos,
do mito, da fantasia, do imaginário, da magia, da poesia e do (re)encantamento do porvir, num claro anúncio da possibilidade da paz.
Eis o que pede o filósofo à filosofia: que de agora em diante se preocupe com as questões reais da existência humana e do planeta Terra como
uma unidade. Neste sentido, Serres nos adverte, com a sua literatura/filosofia sobre a necessidade urgente de educarmos os cientistas como filósofos e os filósofos como cientistas, se desejarmos a paz em lugar da guerra;
do amor e da poesia em lugar da violência; do saber e da magnanimidade
em lugar da indiferença; da justiça e solidariedade em lugar da opressão
e do egoísmo.
88
Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 43, jul./dez. 2013
Finalmente, acreditamos significativa a contribuição de Michel Serres para o prosseguimento da reflexão acerca da violência. O motivo de
trazer o autor de Filosofia Mestiça nos parece óbvio, na medida em que
Serres tem dedicado a sua vida a denunciar toda forma de violência e defender a paz de forma intransigente. Daí que a continuidade deste ensaio
não poderia ser melhor representada senão pela participação de Edgar
Morin que, com Serres e tantos outros, tem contribuído de maneira sistemática para nos ensinar a escutar a natureza e deixá-la vir à fala, como
diz o filósofo Mauro Grün (2007) em uma de suas brilhantes reflexões.
1. Noções sobre violências e guerras em Michel Serres
1.1. Violência Subjetiva e Objetiva
No início do seu livro O Contrato Natural, Serres ilustra didaticamente o que passará a dissertar por violência subjetiva e objetiva. Para
tanto, lembra um famoso quadro de Goya em que dois indivíduos lutam
com seus varapaus em meio a um terreno lamacento, na verdade constituído de areia movediça.2 Michel Serres relata dois sujeitos brigando entre
si, cada qual se esforçando ao máximo para uma saída vitoriosa. Nós, de
fora e simples observadores, podemos torcer por um ou para outro; podemos fazer apostas, se quisermos. Quem ganhará? Quem sairá derrotado?
Mas a cada movimento executado com a força de seus braços, o terreno
movediço vai cedendo. Apesar disso, cada um pensa em si e não percebe
que seu corpo está sendo sugado, paulatinamente, pela lama. Um pouco
mais de luta e eis que a areia movediça encobre seus joelhos; nós, que os
observamos de longe, já conseguimos ver seus peitos desaparecerem enquanto ainda bradem seus varapaus sem cessar até serem engolidos pelo
pântano.
Nós, que estamos assistindo a cena, não observamos apenas dois
contendores a se debaterem até a morte. Conseguimos observar um terceiro elemento que eles parecem ignorar: o pântano ou areia movediça ou
terreno, onde se digladiam. É, na verdade, uma luta a três, ou seja, os dois
inimigos e mais o meio, o terreno que os afunda e que de fato vence a luta.
2 Trata-se de Hommes se battant avec des bâtons. Quadro exposto no Museu do Prado, em Madri (N.A.)
Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 43, jul./dez. 2013
89
Esta alegoria quer nos mostrar a natureza frágil do ser humano num
período em que a Natureza era ameaçadora e mostrava-se fortalecida pelos
seus próprios processos de vitais. E tanto os contendores quanto nós, observadores externos, nada podíamos fazer diante da força da natureza (a não ser
brigarmos entre nós como se o mundo não existisse ou não fizesse parte do
conceito de realidade).
Até aqui podemos verificar a existência da violência pura e simples
entre dois combatentes. Mas há um elemento terceiro, a areia movediça ou
pântano, enfim, a natureza, o mundo físico, o planeta Terra. Imaginemos,
agora, não apenas dois contendores, mas grupos de indivíduos humanos que
se enfrentam mutuamente. Ou melhor: imaginemos dois grandes exércitos
de homens a se digladiarem, não necessariamente num terreno pantanoso,
mas em terra firme ou no próprio mar. Ampliemos agora a representação
dos dois inimigos da tela de Goya para um universo povoado de seres humanos a se ferirem mortalmente, a ponto de todos serem mutuamente destruídos. Eis a violência pura e simples, promotora da extinção da própria espécie,
adverte o filósofo. Ora, para que tal não ocorresse, foi necessária a existência
de um determinado contrato de direito entre os homens, o Contrato Social,
que pudesse assegurar o mínimo de convivência pacífica entre os homens.
Para efeitos da violência pura e simples, parece que o Contrato Social
teve êxito... Mas as lutas entre os homens, estados ou países rivais continuaram, as quais, desde os mais remotos tempos, têm pontuado a história da
humanidade. Sempre e cada vez mais novas tecnologias são desenvolvidas à
guisa de destruição, onde se evidenciam os conhecimentos científicos aliados às técnicas de guerra.3
Como seria possível mapearmos friamente todos os horrores da violência subjetiva, ou seja, àquelas guerras subjetivas, “nucleares ou clássicas”,
que “as nações ou estados travaram e travam entre si com vistas a uma dominação ‘temporária’ ?” E de que forma as consequências das guerras objetivas, como consequência das primeiras, nos afetaram e continuarão nos
afetando?
3 A Primeira Guerra Mundial deixou um saldo de 9 milhões de mortos e, segundo
estimativas, a Segunda Guerra Mundial destruiu entre 40 a 52 milhões de seres
humanos (Larousse Cultural, V. 12, p. 2863). É interessante constatar, também,
que a tela cubista de Picasso (1881-1973) retrata em preto e branco o que o pintor
sentiu acerca da guerra civil espanhola, quando do bombardeio alemão à cidade
de Guernica y Luno, em abril de 1937, pela aviação alemã a serviço dos nacionalistas espanhóis. O touro, na tela, observa estupefato a tragédia humana.
90
Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 43, jul./dez. 2013
Por guerras subjetivas Michel Serres entende toda a violência regulamentada por um saber jurídico; portanto, define-se por um direito.4 São as guerras entre povos ou nações passíveis de um controle jurídico. Quando Hobbes (1588-1679) denuncia a “guerra de todos contra
todos5”, na verdade não se trataria, segundo Serres, de guerra, mas de
violência pura e simples: algo incontrolável. Nas guerras subjetivas, porém, existe o arbítrio, que pode legislar em favor da preservação dos
seres humanos, resguardando-os da extinção sem mais. Para Serres, a
história humana começa com as guerras subjetivas e as guerras subjetivas começam com a história.
Por outro lado, guerras ou violências objetivas são aquelas travadas contra o mundo existente, o meio ambiente em que vive o ser humano, o planeta Terra. Porque as lutas são travadas sempre a três, segundo
o filósofo: sejam dois inimigos ou grandes exércitos que se digladiam,
o “teatro da guerra” é sempre o ambiente próximo ou distante – mas o
mundo cósmico/físico – o planeta Terra. Ademais, a violência objetiva
não se define apenas pelos resultados destrutivos das guerras subjetivas,
mas de toda e qualquer violência praticada contra a natureza do mundo
e o mundo da natureza. E nisto se inclui, por certo, não só a sucata de
materiais bélicos da violência subjetiva, mas os poluentes químicos (no
mar, na terra e no ar), o lixo tóxico ou não, etc.
As guerras objetivas, assim, são travadas pelo conjunto de inimigos que se associam e dirigem seus artefatos contra um “inimigo” comum: o Planeta Terra. Trata-se, pois, de uma violência pura e simples
contra o nosso planeta, pois até aqui não houve um contrato de direito.
Se as guerras subjetivas são evidentemente de fato, mas, principalmente,
de direito, as guerras objetivas padecem, ainda, de um direito que pres4 “Devemos definir a guerra como uma das relações de direito entre os grupos ou as
nações: estado de fato, claro, mas sobretudo de direito”. Ou, ainda: “A guerra não
se caracteriza pela explosão bruta de violência, mas pela sua organização e o seu
estatuto de direito” (SERRES, 1990, p.28-29).
5 “De modo que na natureza do homem encontramos três causas principais de discórdia. Primeiro, a competição; segundo, a desconfiança; e terceiro, a glória [...].
Com isso se torna manifesto que, durante o tempo em que os homens vivem sem
um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama de guerra; e uma guerra que é de todos os homens
contra todos os homens” [Ver Cap. XIII Da condição natural da humanidade relativamente à sua felicidade e miséria] (HOBBES, 1983, p. 75).
Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 43, jul./dez. 2013
91
suponha um acordo jurídico para pôr fim à violência dirigida contra o
mundo da natureza, o mundo tal e qual o conhecemos. Não havendo
limite nem regra contra a violência objetiva, isto é, contra o planeta Terra, Serres insiste na necessidade de um Contrato Natural com o mesmo;
um pacto semelhante aos acordos jurídicos que definem as guerras subjetivas pois, por paradoxal que possa parecer, as guerras protegem-nos
contra a reprodução indefinida da violência pura e simples. Assim também em relação ao meio ambiente, à Terra, devemos considerá-la um
“inimigo” comum para, assim, inventarmos um Contrato. Cruzam-se,
pois, dois contratos, o Contrato Social e o Contrato Natural, aquele destinado a regular as relações dos homens entre si e entre os estados e,
este último, as relações dos homens com a natureza.
1.2. A violência nos debates
Para Serres, o diálogo entre dois sujeitos pressupõe sempre uma linguagem comum, ou seja, que ambos entendam a língua falada, com palavras num sentido próximo, de preferência semelhante.6 Existe, pois, um
acordo prévio ao diálogo, seja esse acordo explicitado ou não. Sem esse
acordo prévio, não haveria, segundo o filósofo, sequer possibilidade de
contradição entre os interlocutores, pois quando alguém fala uma língua
estranha ou sem um sentido comum ao interlocutor, este se entrega ao
mutismo; portanto, ao não diálogo.
Podemos dizer que a condição para que o diálogo se estabeleça entre dois sujeitos é um acordo tácito acerca de uma linguagem compreensível entre ambos. Ou seja, um acordo tácito que precede o debate ou
combate que, por sua vez, pressupõe um acordo.
Parece que Michel Serres quer mais uma vez chamar a nossa atenção para a ideia de que nós nos demovemos muito mais em relação aos
nossos debates e com os quais nos combatemos e quase sempre nos esquecemos do meio no qual nos movemos. Isto é, esquecemos o mundo
tal e qual (físico) sobre o qual debatemos.
Lembremo-nos dos dois indivíduos que lutavam com seus varapaus
e onde a natureza se mostrava hostil. Naquele cenário os dois sujeitos
6 “Mais ainda do que uma língua comum, o debate exige que os interlocutores
utilizem as mesmas palavras num sentido próximo, de preferência semelhante” (SERRES, 1990, p. 21).
92
Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 43, jul./dez. 2013
estavam preocupados em vitórias pessoais, num confronto cujas causas
podiam ser várias. Naquele cenário, a natureza subjugava: os homens
eram frágeis diante das forças naturais e ainda não haviam desenvolvido
o domínio sobre elas. O ser humano precisava criar um Contrato Social
não somente para bem viver em sociedade, mas para dominar seus instintos naturais e com isso se contrapor ao domínio natural. Em suma,
naquela ambientação a natureza mostrava-se forte e os humanos frágeis.
E, ainda assim, a natureza era considerada apenas um palco de disputas,
sem voz, tudo provendo, mas não incluída no reino da dignidade da razão. O homem estava acima dela.
Mais uma vez Serres se utiliza de uma metáfora para destacar a
nossa teimosa indiferença ao mundo das coisas, ao planeta Terra. Agora, porém, e ao contrário dos inimigos munidos de varapaus, contendores silenciosos, Serres nos induz a imaginar dois sujeitos que dialogam
entre si. Como dialogam, há entre ambos uma linguagem comum e de
preferência um significado comum no que falam. A discussão, com o
tempo, fica acalorada, enquanto um ruído de fundo surge entre ambos
e os obriga a aumentar o tom de voz cada vez mais elevada para contrapor o volume do ruído externo. Os contendores das falas não percebem
que surgiu um terceiro elemento na disputa argumentativa, isto é, o ruído que, de fato, torna-se o verdadeiro inimigo a ser combatido, a fim
de que o diálogo possa ter seguimento. Porém, inconscientes a isso, ou
seja, obstinados unicamente em defender cada qual seu ponto de vista,
já não apenas elevam ao máximo suas vozes, como também se utilizam
de outros instrumentos para fazerem vingar cada qual o seu argumento: desde o início da nossa (humana) história até os dias atuais, os artefatos de guerra sofisticaram-se sobremaneira, enfatiza o filósofo.
Serres entende que os nossos argumentos, nossas disputas verbais
esquecem a consideração em relação ao verdadeiro problema que está
gritando ao nosso redor. Esquecem o mundo das coisas, onde se trava
a guerra objetiva. Novamente, por mais paradoxal que nos possa parecer, é preciso tornar o planeta Terra nosso “inimigo” a fim de que ele
seja efetivamente escutado. Como “inimigo”, segundo a lógica do autor,
haveria um contrato de direito que regularia a guerra objetiva, causadora de danos irreparáveis ao nosso planeta. Sem um contrato (um texto sem ambiguidades) com o qual possamos fazer uma declaração de
guerra com o planeta, continuará havendo apenas a violência objetiva,
Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 43, jul./dez. 2013
93
isto é, uma violência sem limites e sem regras do ser humano contra a
natureza, até esta cair sem combater. Ora, se as guerras são travadas entre inimigos e são também, por definição, um estado de direito7 (além
do estado de fato) é mister que a Terra seja considerada “inimiga” para
que a sua destruição não ocorra, pois somente um contrato jurídico
pode prever o armistício, portanto a paz, ou seja, a preservação do planeta e da própria vida.8
Assim, o contrato de direito revela-se um mediador entre a violência pura e simples e a guerra definida como estado de direito. Para que
esse contrato se efetive, não há dúvida de que deve existir um diálogo que
torne possível o entendimento das partes: que ambos falem uma linguagem comum e de preferência em sentido semelhante.
Diante das dinâmicas globais, afirma Serres, o exército humano é
incomparavelmente mais forte e nefasto quando aponta seus dardos para
a Terra. O planeta, outrora hostil e insondável, é hoje um mundo frágil
e anêmico. Quem parasitou suas entranhas? – pergunta o filósofo. Ora,
os dois sujeitos de varapaus de Goya rir-se-iam hoje da fragilidade da
Terra, mas, estupidamente, continuariam lutando indiferentemente ao
mundo, assim como os dois sujeitos que se deleitam com suas oratórias
inflamadas de vigor e contradições, enquanto o planeta geme de dor em
suas chagas, mas é ignorado por não ser considerado um ser vivo com o
qual devemos realizar um Contrato de Direito e desde já um pacto de não
agressão entre sujeitos juridicamente legítimos.
1.3. O Inédito na Filosofia
Serres parece dizer com raiva a seguinte afirmação: “A nossa cultura tem horror ao mundo”.9 Nesta frase concentra-se, sob um ponto
7 “Por definição, a guerra é um estado de direito” (SERRES, 1990, p. 21).
8 “Ora, se existe um direito e, portanto, uma história para as guerras subjetivas, não
existe nenhum para a violência objetiva, sem limite nem regra, por conseguinte,
sem história. O crescimento dos nossos meios racionais conduz-nos a uma velocidade difícil de calcular, na direção da destruição do mundo que, por um efeito de
retorno muito recente, pode condenar-nos a todos, e não já por localidades, à extinção automática. [...] precisamos novamente de inventar, sob a ameaça de morte
coletiva, um direito para a violência objetiva” (SERRES, 1990, p. 31).
9 Serres comumente faz uso de conceitos genéricos e parece presumir que o seu provável leitor domine algum conhecimento da história da filosofia e das artes, seus
94
Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 43, jul./dez. 2013
de vista genérico, o desprezo que o ser humano tem cultivado ao longo
de sua história em relação ao mundo em que habita e do qual depende
para sobreviver. Esse desprezo ou indiferença está simbolicamente representado por Serres em várias passagens de seus textos. Procuramos
nos limitar, neste sentido, aos dois exemplos trazidos: os dois sujeitos
de varapaus e os dois sujeitos que dialogam em voz alta pela disputa em
serem mutuamente ouvidos e sem que percebam que um ruído de fundo
os provoca a ouvir algo a mais que suas vozes elevadas. Esses exemplos,
alegorias ou metáforas são ilustrativos para a reflexão que Michel Serres
deseja perseguir ao longo de sua obra O Contrato Natural.
Mas existe um terceiro exemplo de que Serres se utiliza para refletir sobre a nossa indiferença ao “mundo das coisas”. Ao narrar brevemente as conquistas e mortes de Aquiles, o herói de Homero, em
sua Ilíada, Serres potencializa as destruições causadas pela Guerra de
Tróia. O autor recorre à imagem dos corpos dos soldados inimigos
mortos invadindo e transbordando o rio onde as batalhas são travadas
(guerras subjetivas), ameaçando o próprio Aquiles nele se afogar. Será
que a enchente do rio deve-se à Primavera ou a uma agressão? Eis a
pergunta que Serres nos deixa.
O aquecimento da Terra, devido ao aumento contínuo da destruição da camada de proteção dos raios solares, ameaça um novo dilúvio.
O derretimento das calotas polares já é um fato que a climatologia vem
constatando e seus efeitos são devastadores, como são devastadores os
efeitos das estiagens. “A história global entra na natureza e a natureza
global entra na história: eis o que há de inédito na filosofia” (SERRES,
1997, p. 76).
Se outrora a natureza era um mero palco de representações, agora
ela irrompe na cultura global do ser humano.
Serres alerta para assinarmos em conjunto o Contrato Natural sob
pena de abreviarmos desnecessariamente a vida em todas as suas maniclássicos e mesmo da mitologia grega. Quando o autor se utiliza do conceito de
cultura como sendo “a nossa cultura”, quer-nos parecer que ele não se restringe somente à cultura ocidental (racional, industrial, etc.), mas à cultura “global”,
caracterizada pela mundialização dos processos de produção, distribuição e consumo propiciada pelas tecnologias, seja de informação ou de flexibilização de capitais. Esta interpretação é plausível se bem apreciarmos o sentido de sua sentença
que diz: “Outrora local – este rio, aquele pântano –, global agora – o Planeta Terra” (SERRES, 1990, p. 14).
Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 43, jul./dez. 2013
95
festações. Segundo o autor, na fragilidade do mundo “das coisas” oculta-se
o vigor de uma força implacável que se orienta mesmo contra sua própria constituição.
Num vale-tudo, certamente, acreditaríamos sermos os únicos com
direito ao palco sobre o qual digladiamos e contra o qual ferimos de
morte suas entranhas. Mas o palco é tudo: sem o mundo não somos
nem temos cultura nem história.
O alerta serresiano não é menor em Edgar Morin, a quem devemos a paternidade do conceito de complexidade elevado em nível de
paradigma.
2. Por uma compreensão complexa da violência
- Os homens? Eu creio que existem seis ou sete. Vi-os faz muito tempo.
Mas não se pode nunca saber onde se encontram. O vento os leva.
Eles não tem raízes. Eles não gostam das raízes.
O Pequeno Príncipe, Saint-Exupéry
A noção de violência ganha contornos insofismáveis ao longo da
história da humanidade. Ela esteve e está presente em todas as manifestações culturais com que o ser humano tece as suas relações entre
si, independentemente das condições objetivas de materialização dos
processos de produção, ainda que as condições materiais de existência
possam agudizar ou amenizar as causas e os efeitos desse fenômeno
eminentemente humano, em contextos históricos específicos. Difícil
decidir uma causa específica para a violência humana, bem como as
suas formas objetivas e subjetivas de suas manifestações. Não se trata,
contudo, de nos arrogarmos, ainda que minimamente, de irmos em
busca das causas promotoras da violência humana. Sabemos que tanto
a História, quanto a Filosofia, a Sociologia, a Psicologia e a Literatura,
para citarmos alguns exemplos, têm procurado registrar e compreender o fenômeno da violência presente em nossa espécie. Mas parece que
não têm bastado o registro e a compreensão adrede a cada disciplina do
conhecimento (científico ou não) para, no mínimo, mitigar essa manifestação de caráter antropológico.
Inútil descrevermos, neste espaço, as incontáveis formas com que
a violência se manifesta. Não há quem não a reconheça e não a sofra, de
96
Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 43, jul./dez. 2013
uma maneira ou de outra. Importa para o nosso propósito refletirmos
não as suas causas e efeitos, mas ainda e sempre tentarmos concebê-la
como um fenômeno complexo, portanto, não redutível a único denominador.
O pensamento reducionista continua a procurar de maneira pouco perspicaz a causa e o efeito, a determinar o Bem e o Mal, a nomear o culpado e o salvador. Continua a eliminar qualquer tipo de
ambigüidade e incerteza. Continua a crer que a solução econômica resolverá todos os problemas (MORIN, 2011, p. 46).
Por fenômeno complexo entendemos exatamente o que Edgar Morin nos ensina, quando nos demonstra que a condição humana comporta
o que ele denomina de triunidade, ou seja, somos constituídos ao mesmo
tempo por nossas origens milenares, a espécie (homo sapiens/demens), a
sociedade e a nossa individualidade. Assim, a relação indivíduo/sujeito
– espécie – sociedade, revela-se uma dialógica, ou seja, a compreensão
de que, doravante, não podemos entender o ser humano sem que, a par
de sua irredutível individualidade, também é constituído pela sociedade
que o produz e a espécie a que pertence no âmbito da natureza. Lembremo-nos de que indivíduo/sujeito – espécie – sociedade, são termos
antagônicos entre si, mas também concorrentes e complementares. Concorrentes entre si, porque o indivíduo/sujeito pode disputar preferências
e referências para si, seu universo interior (egocentrismo); antagônicos,
porque o indivíduo/sujeito é ao mesmo tempo produto e produtor da
sociedade/cultura em que vive; complementares, porque não podemos
isolar ou desconhecer que somente as três noções (indivíduo/sujeito-espécie-sociedade) interagem entre si (dialógica) condicionando o nosso
modo de ser (ethos). Ou seja,
as três instâncias indivíduo-sociedade-espécie formam uma tríade inseparável. O indivíduo humano, mesmo na sua autonomia,
é 100% biológico e 100% cultural. Apresenta-se como o ponto de
um holograma que contém o todo (da espécie, da sociedade) mesmo sendo irredutivelmente singular. Carrega a herança genética
e, ao mesmo tempo, o imprinting e a norma de uma cultura. Podemos distinguir, mas não isolar umas das outras as fontes biológica, individual e social (MORIN, 2005, p. 19).
Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 43, jul./dez. 2013
97
Não é necessário muito esforço para entendermos a dificuldade –
presumimos – que os grandes pensadores, de todas as épocas, tiveram
para registrar e tentar explicar não somente a violência humana, mas
tudo o que concerne ao conhecimento e ao modo de ser do humano em
suas instâncias individual e social, formas e concepções de governos.
Parece que, para os antigos, não era imaginável o ser humano pertencer ao mesmo mundo da natureza, ser uma espécie animal. Mas não
somente aos antigos seria um vexame sermos seres de natureza, ainda
que de uma “natureza segunda”, ou seja, plenamente a mesma e plenamente distinta. Ainda hoje somos condicionados ao resgate do entendimento humano a partir da Tradição ou mesmo pelo ideal Iluminista,
cujo caráter epistêmico simplificador/redutor não admitem sequer a hipótese da nossa origem comum, do nosso anelo natural e cósmico. Daí
muitos debates sobre a violência se sustentarem apenas na autoestrada
(Serres) materialismo verso idealismo e suas derivações. De qualquer
maneira, jamais reconhecendo, a fortiori, a natureza, a pátria terrestre,
da qual somos parte e com a qual se explicita a diversidade na unidade
e vice-versa. Morin sublinha com ênfase o fato de que o próprio de tudo
o que é humano é a unitas multiplex – unidade genética, cerebral, intelectual, afetiva do homo sapiens demens que expressa suas inumeráveis
virtualidades por meio da diversidade das culturas (2011), demonstrando que a diversidade humana é o tesouro da unidade humana que, por
sua vez, é o tesouro da diversidade humana (2011, p. 56-57).
O pensamento redutor tem procurado as causas da violência humana em vias de mão única entre indivíduo e sociedade, passando por
alfândegas ideológicas fortalecidas por ideais determinísticos que desdenhavam do acaso, da incerteza, da aposta, da estratégia e do desconhecido.10 A paz tem sido procurada no entendimento de que esta seria
o esteio natural do ser humano e que o egoísmo imanente ao indivíduo
seria a causa maior de sua irrealização. Ao não complexificar a condição
humana, o pensamento simplificador tem alijado do seu entendimento
exatamente aquilo que confere à nossa experiência humana a sua orga10 Edgar Morin enfatiza o fato de que o “paradigma da simplificação, que guiou a
ciência clássica, é o primado da disjunção e da redução: Ele determina um tipo de
pensamento que separa o objeto do seu meio, separa o físico do biológico, separa
o biológico do humano, separa as categorias em disciplinas, etc.” (MORIN, 1996,
p. 31).
98
Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 43, jul./dez. 2013
nização enquanto ser bio-lógico, ou seja, enquanto ser auto-eco-organizado. Daí que não podemos mutilar nenhum termo da interação anelar
indivíduo/sujeito – sociedade – espécie, esta dialógica triúnica que confere à humanidade as suas virtudes e os seus vícios.
Complexus, para Edgar Morin, é justamente isto: um tecer junto.
Isto significa que nada existe em si e por si, como uma mônada, ainda que a vida se organize a partir da auto-eco-organização, queremos
dizer, nas palavras do filósofo, a partir de sua autônoma/dependência.
Complexificar é problematizar o que acreditamos pelo simples fato de
acreditar. É procurar perceber as conexões, as interfaces, os liames, os
coadjuvantes que interagem em todos os processos vitais, na gênese e
destruição do ser, nas forças construtivas e destrutivas adrede à própria natureza (arriscamo-nos exemplificar essas forças como constituintes da condição humana e presentes na literatura freudiana (eros e
thanatos) e nietzscheana (vontade de potência), dentre outros); enfim,
no anel recursivo ou tetraedro da complexidade da ordem-desordem-interação-(re)organização concebido por Morin a fim de assinalar o
incessante processo de gênese e destruição dos processos vitais, cósmicos e existenciais.
Complexificar a noção de violência é problematizá-la nos limites
da condição humana. Tentar uma justificativa metafísica ou extramundana para o que é eminentemente humano embota-nos a capacidade de
percebê-la em suas origens e seus avatares.
No Método 6. Ética, Edgar Morin dedica sua reflexão sobre ética/
moral a fim de nos ajudar a compreender que o nosso modo de ser tem
um encontro marcado com a nossa finitude e incompletude. Estranho
paradoxo este, o de sermos finitos num universo infinito! E isto, quem
sabe, porque a vida, este insondável acontecimento; esta emergência no
âmbito da physis11 produziu consciência de si e para si, ou seja, emergência de emergências, que fazem com que sejamos a um tempo sábios
e ignorantes às nossas origens e destinos; íntimos e estranhos à natureza; sitiados e estrangeiros em nosso planeta Terra. Assim que o nosso
11 O conceito de physis é o núcleo do primeiro volume de O Método, “A Natureza da
natureza”, livro concluído no final do ano de 1976. Physis é o universo material, cujo
conhecimento libera os conhecimentos sobre a vida e sobre a humanidade. Nesse
caso, enfatiza Morin, physis “se confunde com a ideia de Natureza de Spinoza, que a
considera como a própria fonte da criação e da organização” (MORIN, 2010, p. 222).
Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 43, jul./dez. 2013
99
modo de ser (ethos); a pluralidade das nossas manifestações humanas,
comportam, para o pensamento ético complexo, o que Morin discrimina como “dimensão epistemológica”, “dimensão antropológica”, num
anel interativo: epistemologia – antropologia – ética, onde um mesmo
imperativo liga epistemologia complexa, antropologia complexa e ética
complexa para enfrentar a barbárie do espírito (MORIN, 2005, p. 66).
Complexificar a violência nos ajuda a evitar a moralina (o conceito
é de Nietzsche e apropriado por Morin), uma das dimensões da violência subjetiva, pois
A moralina julga e condena com base em critérios exteriores ou
superficiais de moralidade, apropriando-se do Bem e transforma em oposição entre bem e mal aquilo que, na realidade, não
passa de conflito de valores. A moralina substitui a purificação
ética pela polêmica e evita o debate pela exclusão dos adversários julgados indignos de refutação (2005, p. 98).
Para o pensador francês, necessitamos refletir e agir consoante um
pensamento ético capaz de dar conta da violência/barbárie que sobrevive em nossas vidas. Na obra Minha Esquerda, Edgar Morin volta a
nos instigar a pensar ante o desafio e a complexidade da nossa condição
humana. Para o filósofo, estamos simultaneamente:
• na aventura desconhecida;
• na pré-história do espírito humano;
• na Idade de Ferro planetária;
• na agonia planetária.
Sendo a Terra a nossa realidade objetiva e nossa pátria subjetiva
(2011), importa saber que
Reintroduzir o humano no planeta é reintroduzi-lo também
na vida da qual ele se originou, da qual faz parte, que o nutre, e reintroduzi-lo em seu destino concreto, inseparável da
biosfera – dada a relação de autonomia/dependência ecológica
entre homem e natureza. É integrar a consciência ecológica na
política e isto de maneira cada vez mais vital, uma vez que o
ecocídio seria suicídio [...] (MORIN, 2011, p. 52).
Quando Morin afirma que estamos ainda na pré-história do espírito humano, isso significa que ainda não conseguimos compreender as
100
Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 43, jul./dez. 2013
estruturas de pensamentos que diferem do nosso modo de pensar, não
somente de cultura para cultura, mas no âmbito de uma mesma civilização. Para o pensador, devemos perceber que as ideias (idealismo) são
mediadoras e tradutoras do real e não o próprio real; que a racionalização, pretendendo encerrar o real num sistema lógico coerente ao preço
de sua mutilação, sacrifica o real em benefício de um sistema de ideias
doutrinadoras, cuja característica ideológica fecha o diálogo com outros
sistemas de ideias, outras traduções do real. Reintroduzir o humano e
sua característica complexa (triunica) no universo do qual se originou é
rever os limites do nosso conhecimento e ao mesmo tempo acenar para
as possibilidades de civilizar nossas ideias em benefício da esperança da
coexistência terrena.
Ainda que Michel Serres desenvolva a sua reflexão sobre a violência objetiva (travadas contra o planeta Terra, a natureza), guerras subjetivas e conflitos objetivos de maneira inusitada para o pensamento
sociológico e mesmo filosófico, ainda assim, o conteúdo do seu teor de
denuncia e o sentido narrativo evocado pelo estilo peculiar de um determinado positivismo, não nos permite vislumbrar o caráter ontogenético da violência humana. A noção de violência em Serres é marcada
por associações de fatos vivenciados e/ou presenciados objetivamente
e subjetivamente rejeitados como afronta à dignidade humana e não
humana. Além disso, a crença de que metáforas e metonímias operam
o movimento da realidade e incorporam noções míticas como efetividades ou eventos reais, reforçam em Serres o caráter positivista de que
o conhecimento/formação científica tem um encontro marcado com a
possibilidade da paz, desde que, a esta formação segue-se a educação
terceira, ou seja, a cultua humanística através do Direito, da Filosofia,
da Literatura e da própria Arte.
Concluindo
Com este ensaio, procurou-se demonstrar, a partir da forma como
lemos uma das obras mais conhecidas de Michel Serres no Brasil, que,
por mais paradoxal que possa parecer, a paz entre os humanos e estes
com a natureza, só será possível a partir de contratos de direito e de
fato em que ambas as partes comprometam-se com a preservação de
Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 43, jul./dez. 2013
101
suas vidas. No que diz respeito ao planeta Terra, o mundo físico tal e
qual, é preciso considerá-lo um inimigo a fim de declarar a guerra após
o devido contrato jurídico, com o qual se preserva o armistício, o fim
do combate, a derradeira paz. Assim como foi assinado o Contrato Social (Rousseau) para preservar a paz entre os homens, há necessidade,
segundo o filósofo, de que se assine um Contrato Natural com o planeta
Terra. A partir desse acordo entre iguais juridicamente, as partes inimigas poderão, enfim, assinar o acordo de paz, o armistício.
Para que o contrato natural tenha legitimidade, é necessário que
o planeta Terra seja considerado sujeito de fato e de direito. Por esse
acordo, a Terra não poderá mais ser considerada mero objeto de espoliação, violência pura e simples, sem limites e sem leis, mas sim sujeito
de direito. Como sujeito de direito, o mundo natural deverá ser preservado da destruição que se lhe avizinha e nós, humanos, a nossa e
demais espécies.
O meio ambiente é tudo, enfatiza Michel Serres. O planeta Terra
somos nós enquanto conscientes dos vínculos matriciais que nos conectam com o misterioso acontecimento da vida. É também nessa medida
que o filósofo Serres compreende o amor como a outra face, o segundo
sol, a segunda razão (sentimentos) para o propósito da paz.
Por outro lado, Edgar Morin nos faz pensar e refletir sobre a nossa
constituição complexa, que não deve/não pode ser simplificada e reduzida por noções e saberes científicos e filosóficos que não dialogam entre si
na busca de um entendimento razoável sobre a nossa condição de homo
sapiens-sapiens-demens. Para o autor de O Método, é muito importante
compreendermos o nosso legado histórico e os determinismos culturais
que nos enraízam a uma determinada forma de traduzir o mundo, a realidade. Diante da infinita capacidade do humano em conhecer o universo
que habita, sua organização micro e macrocósmicas, Morin nos remete
ao entendimento de que tudo está ligado a tudo; que somos a um tempo
indivíduos/sujeitos inseridos em sociedades/culturas e seres de natureza.
Essa triunidade complexa nos faculta à compreensão dos nossos limites
e possibilidades de ser e de existir como parte de uma grande sinfonia
cósmica e terrena, na mira de uma civilização do nosso modo de agir e
pensar em vista do bem comum, ou seja, numa confederação em que todos os seres vivos tenham a garantia de sua inegociável dignidade, direito
à vida e fraternidade universal.
102
Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 43, jul./dez. 2013
Referências bibliográficas
ENCICLOPÉDIA Larousse Cultural. São Paulo: Nova Cultural; Fundação Victor Civita, 1999. v. 12, p. 2863.
GRÜN, Mauro. Em busca da dimensão ética da educação ambiental.
Campinas: Papirus, 2007.
HOBBES, Thomas. Leviatã ou Matéria, forma e poder de um estado
eclesiástico e civil. Trad. João Paulo Monteiro e Maria B.N.da Silva. 3.
ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. Os Pensadores.
MORIN, Edgar. A minha esquerda. Trad. Edgar de Assis Carvalho;
Mariza Perassi Bosco. Porto Alegre: Sulina, 2011.
MORIN, Edgar. Meu caminho: entrevistas com Djénane Kareh Tager.
Trad. Edgar de Assis Carvalho; Mariza Perassi Bosco. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 2010.
MORIN, Edgar. Meus demônios. Trad. Leneide Duarte; Clarisse Meireles. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000.
MORIN, Edgar. O método 6. Ética. Trad. Juremir Machado da Silva.
Porto Alegre: Sulina, 2005.
MORIN, Edgar. O problema epistemológico da complexidade. 2. ed.
Lisboa: Europa-América, 1996.
SAINT-EXUPÉRY. Antoine de. O pequeno príncipe. 48. ed. Trad. Dom
Marcos Barbosa. Rio de Janeiro: Agir, 2009.
SERRES, Michel. Diálogos sobre a ciência, a cultura e o tempo: conversas com Bruno Latour. Lisboa: Instituto Piaget, 1997.
SERRES, Michel. O contrato natural. Trad. Serafim Ferreira. Lisboa:
Instituto Piaget, 1990. Epistemologia e Sociedade.
Revista Filosofazer. Passo Fundo, n. 43, jul./dez. 2013
103

Documentos relacionados