controle de qualidade e aumento da competitividade da

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controle de qualidade e aumento da competitividade da
Capítulo 7
Controle de qualidade e aumento da
competitividade da indústria láctea
João Walter Dürr
Abstract
Quality control and increase in competitiveness
of the dairy industry
Investments in dairy products quality control are necessary to ensure food
safety, to optimize the use of available resources and to open and maintain
markets. Food safety has become a major issue worldwide after globalization,
not only due to health concerns but also because of non-tarifary trade barriers.
Besides, it is quite simple to demonstrate that quality improvements in the dairy
chain should lead to an increase in profitability for both milk producers and
processors. Finally, quality is not an optional attribute but a requirement of the
consumers, especially in the international market, and those companies and
countries that wish to stay in business must be able to provide safe and high
quality dairy goods. This paper has the objetive of dicussing the importance of
quality control for the dairy industry, and tries to achieve that by presenting
and integrated view of the problem, enphasizing the leading role of the industry
in this process, showing rapidly the basis of the Hazard Analysis and Critical
Control Point (HACCP) System and lastly evaluating the current situation of
milk quality in Brazil.
Introdução
As matérias primas alimentícias de origem animal apresentam naturalmente
uma maior variabilidade em suas características físico-químicas, microbiológicas
e sensoriais. Isto representa um desafio à indústria processadora, cujo objetivo
é obter o máximo rendimento na fabricação de derivados com padrão definido e
que satisfaçam plenamente a demanda dos consumidores. Quanto mais
profissionalizada a cadeia produtiva, menor a tolerância com os fatores que
possam comprometer o resultado do processo industrial. O valor que estima o
sucesso combinado das atividades de produção, colheita, transporte,
processamento e comercialização é referido como qualidade do alimento. A
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Tendências e avanços do agronegócio do leite nas Américas: mais leite = mais saúde
qualidade do produto final é determinada por um processo seqüencial e
concatenado em que a qualidade em cada etapa é limitada pela qualidade na
etapa anterior. Em outras palavras, não ocorre agregação de qualidade pela
manipulação e transformação da matéria prima, sendo tanto maior a qualidade
do produto final quanto menor for o comprometimento dos atributos de
qualidade ao longo do processamento sofrido pelo alimento. Neste cenário, o
conceito de controle de qualidade reveste-se de fundamental importância para a
estratégia competitiva da indústria de alimentos de origem animal, sendo de
particular interesse no presente texto o controle de qualidade na indústria
láctea.
Razões para controlar a qualidade
Investimentos em controle de qualidade dos alimentos lácteos se justificam
basicamente por três razões: a. garantia de segurança alimentar; b. otimização
do uso de recursos; e c. conquista e manutenção de mercados. Mesmo que o
conceito de qualidade já esteja bem estabelecido no senso comum como um
valor inegociável independente da viabilidade de sua obtenção, é a percepção
de que qualidade aumenta rentabilidade e competitividade que tem permitido
avanços sistemáticos no aprimoramento dos processos envolvidos no
suprimento de produtos lácteos à população.
Segurança alimentar
HENSON AND TRAILL (1993) definem segurança alimentar como o
inverso de risco alimentar: a probabilidade de não sofrer algum dano por
consumir o alimento em questão. Já MONARDES (2004) aborda um conceito
mais amplo, afirmando que a comunidade internacional consagrou a
segurança alimentar como um dos direitos humanos fundamentais, sendo a
mesma atingida quando todas as pessoas, em todos os momentos, têm
acesso físico e econômico (seguro) à alimentação em quantidade e qualidade
suficientes para uma vida saudável e produtiva. Qualidade do alimento não é
sinônimo de segurança alimentar, mas um de seus componentes
fundamentais. A garantia de segurança alimentar na cadeia produtiva do leite
depende, portanto, do controle de qualidade realizado desde a produção
primária até a mesa do consumidor. Ou seja, a única forma de se estimar o
grau de segurança (ou risco) no consumo de um determinado alimento é a
implementação de procedimentos de controle ao longo do processo
produtivo, como é ilustrado pela Tabela 1.
Tendências e avanços do agronegócio do leite nas Américas: mais leite = mais saúde
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Tabela 1. Exemplo de medidas de controle de qualidade aplicado pela cadeia
produtiva do leite na Holanda.
Ponto de controle
Vacas leiteiras
•
•
•
•
•
Alimentos para as vacas
leiteiras
Fazendas leiteiras
•
•
•
•
•
•
•
•
•
Leite cru
Indústria de laticínios
Produtos lácteos
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
•
Medidas
Certificação compulsória do estado sanitário de cada vaca
Programas de controle de doenças baseados em monitoramento contínuo
Registro compulsório de todos os animais em um sistema oficial de
rastreabilidade
Procedimentos de qualidade padronizados
Padrões para a inspeção dos ingredientes adquiridos (detecção da presença
de substâncias prejudiciais)
Requisitos técnicos para a fabricação de equipamentos
Padrões de higiene para o processamento e armazenamento
Padrões para a inspeção final dos alimentos (composição e qualidade)
Normas regulatórias para o transporte de ingredientes e produtos finais
Critérios de acomodação e cuidado do gado leiteiro (bem-estar animal)
Controle da administração de tratamentos veterinários (atribuição exclusiva
de médicos veterinários)
Registro obrigatório de todos os tratamentos veterinários
Períodos de descarte bem definidos – leite de vacas que receberam
medicamentos não deve ser fornecido ao processador
Sistema bem estabelecido de procedimentos de ordenha e refrigeração
higiênicos
Padrões legais de manejo proteção ambiental
Contagem de células somáticas (CCS)
Crioscopia
pH da gordura
Contagem bacteriana total (CBT)
Resíduos de antibióticos
Presença de bactérias formadoras de ácido butírico
Pureza visual
Periódica pesquisa de substâncias prejudiciais: dioxina, aflatoxinas, metais
pesados, resíduos de pesticidas etc.
Procedimentos de qualidade padronizados
Exigências específicas para o transporte do leite da fazenda até a indústria
Inspeção na recepção do leite cru
Padrões de higiene para equipamentos industriais
Protocolos estabelecidos para os processos de produção dos vários produtos
finais
Composição
Aditivos
Qualidade microbiológica
Resíduos de contaminantes
Aparência, odor e sabor
Fonte: Dutch Dairy Board (2006).
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Tendências e avanços do agronegócio do leite nas Américas: mais leite = mais saúde
O papel estratégico representado pela cadeia produtiva de alimentos na
sustentabilidade das sociedades humanas faz com que a segurança alimentar
seja uma meta incontestável. A percepção pública sobre a segurança alimentar,
contudo, varia de acordo com a renda média da população. Em países ou
regiões com baixa renda per capita, segurança alimentar é mais freqüentemente
interpretada como o fornecimento de alimentos suficientes para garantir a
sobrevivência, reduzindo o risco de fome, enquanto sociedades de economia
desenvolvida associam segurança alimentar com a integridade dos alimentos e
a garantia de que os procedimentos de produção e industrialização não
agreguem riscos à saúde dos consumidores (RITSON & MAI, 1998).
Otimização do uso de recursos
O controle de qualidade do leite deve contribuir necessariamente para a
redução dos custos, a racionalização dos investimentos e o aumento da
rentabilidade do negócio leiteiro. Freqüentemente a implementação de sistemas
organizados de qualidade total como a Análise de Perigo e Pontos Críticos de
Controle (APPCC) sofre rejeição tanto por parte de produtores primários quanto
de indústrias sob a alegação de que o ônus da adoção do sistema é superior ao
bônus por ele proporcionado. Isto se deve principalmente pelo desconhecimento
tanto da metodologia em si quanto das razões pelas quais as medidas devem
ser implementadas. Sem a identificação clara dos benefícios do investimento, o
compromisso com a implementação do APPCC torna-se muito vulnerável.
Interessados em se aprofundar no assunto podem se valer de uma discussão
sobre o uso do APPCC na cadeia do leite apresentada por BRITO & BRITO
(2002).
A Tabela 2 apresenta formas de se perceber os benefícios da
implementação de um sistema de controle de qualidade na cadeia produtiva do
leite, desde que o seu objetivo maior seja alcançado: a melhoria significativa na
qualidade do leite e seus derivados. Além de garantir a segurança alimentar da
população, o controle da qualidade, quando realizado de forma integrada a um
programa de melhoria da qualidade do leite, traz retornos financeiros a toda a
cadeia produtiva.
Conquista e manutenção de mercados
Outra grande razão para se implementar o controle de qualidade na cadeia
láctea é a necessidade de atendimento das demandas crescentes dos diferentes
mercados. Como escreve MONARDES (2004),
Tendências e avanços do agronegócio do leite nas Américas: mais leite = mais saúde
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Tabela 2. Exemplos de como medidas de controle que proporcionem a melhoria
da qualidade do leite podem otimizar o uso de recursos tanto nas fazendas
leiteiras quanto nas indústrias de laticínios.
Elo
Fazenda
leiteira
Redução de custos
Racionalização de investimentos
•
• Descartes e condenações
por leite ácido e resíduos •
• Manejo ambiental
•
• Despesas com atendimentos
clínicos veterinários
• Reposição de vacas mais •
tardia
• Transporte a granel
•
•
• Descartes e condenações
por leite ácido e resíduos
Indústria de • Manejo ambiental
laticínios • Transporte a granel
• Perdas por problemas na
matéria prima
•
•
•
•
•
Prevenção de doenças vesus
Medicamentos
Balanceamento das dietas
•
Monitoramento da qualidade:
prevenção de problemas e/ou
penalidades
Maior nível de informação:
manejo racional dos recursos
Qualificação dos recursos
humanos
Pagamento do leite por qualidade:
clara sinalização ao fornecedor
sobre a matéria prima desejada
Logística de captação da matéria
•
prima orientada para o produto
•
final
•
Tecnologias mais sofisticadas
•
Planejamento a médio e longo
prazos
Maior nível de informação:
manejo racional dos recursos
Qualificação dos recursos
humanos
Aumento da
rentabilidade
Pagamento do leite por
qualidade: possibilidade
de agregar valor ao
produto
Rendimento industrial
Novos produtos
Novos mercados
Padrão superior
(exportação)
Fonte: elaboração do autor.
“...Os consumidores exigem sanidade e qualidade dos alimentos.
Conseqüentemente, a reação dos fornecedores deve ser criar sistemas de
controle de qualidade e de certificação (garantia) de qualidade...Sabe-se que
assim como é muito difícil ganhar espaço no mercado internacional, também é
muito fácil perdê-lo se o produto carece de qualidade.”
A importância do controle de qualidade como ferramenta de comercialização
cresce à medida que os atributos dos produtos passam a ser afetados a ponto
de permitir a sua diferenciação por parte do consumidor. Produtos como
queijos, iogurtes e bebidas lácteas podem ser diferenciados pelo valor
organoléptico (sabor, aparência, odor, textura), pelo valor nutricional
(composição) e pelo grau de segurança (qualidade microbiológica, presença de
resíduos). A possibilidade de agregação de valor é facilmente perceptível, o que
permite o fortalecimento das marcas.
88
Tendências e avanços do agronegócio do leite nas Américas: mais leite = mais saúde
A percepção sobre qualidade do público consumidor pode ser um
complicador da lógica de que todo avanço em qualidade traduz-se em aumento
da satisfação do consumidor. Um bom exemplo disso é o mercado informal de
queijos no Brasil, que conta com um público fiel e convicto de que o produto
“colonial” é mais “puro” que o industrializado sob inspeção oficial, mesmo que
as evidências cientificas apontem que estes consumidores estão expostos a um
risco bem maior de zoonoses e outros problemas de saúde (ABRAHÃO et al.,
2005; NERO et al., 2003; OLIVAL et al., 2003). Como regra geral, no entanto,
pode-se pressupor que a maioria dos consumidores tende a consumir alimentos
lácteos de maior valor agregado sempre que têm oportunidade.
Atualmente até mesmo as commodities tendem a ser discriminadas pelo seu
valor intrínseco. Isto é especialmente verdade para as commodities alimentícias
destinadas a mercados externos. A seleção obviamente não é realizada na
gôndola do supermercado, mas no acesso aos mercados. Barreiras não
tarifárias determinam uma série de pré-requisitos relacionados à qualidade das
matérias primas e ao controle dos procedimentos adotados durante as fases de
manipulação e processamento, os quais devem ser atendidos por aquelas
empresas e/ou países que desejarem entrar na disputa por aqueles mercados.
Cada vez mais o controle de qualidade e os processos de certificação de
alimentos são passaportes para mercados cada vez mais exigentes.
Finalmente, a melhoria da qualidade do leite, particularmente do leite cru,
abre um leque de novas possibilidades à indústria processadora, até então
limitada a trabalhar com produtos de baixo valor agregado. Inúmeros são os
efeitos deletérios da baixa qualidade da matéria prima sobre a qualidade dos
produtos lácteos (GIGANTE, 2004), não permitindo que a indústria de laticínios
usufrua dos benefícios das tecnologias de processamento mais avançadas
disponíveis. Se o leite cru a ser processado possui alta contagem de células
somáticas, as alterações na composição do leite advindas do processo
inflamatório na glândula mamária alteram as características organolépticas dos
produtos lácteos, além de afetar negativamente a sua estabilidade, a vida de
prateleira e o rendimento industrial. A fabricação de certos produtos de maior
valor agregado somente se viabiliza se houver garantia do fornecimento de
matérias primas com padrão de qualidade adequado e em quantidade suficiente.
Quem deve controlar a qualidade
Apesar da qualidade dos produtos lácteos depender de um esforço conjunto
da cadeia produtiva do leite (Tabela 1), onde falhas em qualquer dos elos
Tendências e avanços do agronegócio do leite nas Américas: mais leite = mais saúde
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1
compromete o resultado final, na maioria dos países cabe à indústria de
laticínios a condução do processo. Há várias razões que corroboram esta
convicção:
ƒ
ƒ
ƒ
ƒ
ƒ
A indústria só tem benefícios com a melhoria da qualidade do leite (aumento
da segurança alimentar, redução de custos, redução de perdas, aumento da
vida de prateleira dos lácteos, agregação de valor aos produtos, uso seletivo
da matéria prima e viabilização da exportação);
A indústria é responsável pelas decisões estratégicas da cadeia (onde,
quando, como e quanto investir);
A indústria é o único elo que depende totalmente do sucesso do negócio
leiteiro (produtores rurais, varejo e consumidores diversificam);
A indústria detém mais informação sobre a importância e as conseqüências
da melhoria da qualidade do leite; e
A indústria é o elo da cadeia que efetivamente sofre permanente vigilância
pelos órgãos de inspeção governamentais.
Contrastando com a argumentação acima, está arraigado em boa parte dos
integrantes da cadeia o conceito de que o controle de qualidade é atribuição
“exclusiva” do poder público, o qual deve estabelecer normas rígidas e exercer
poder de polícia para que as mesmas sejam cumpridas. Tal postura acaba por
reduzir a responsabilidade de cada elo e invariavelmente não traz bons
resultados, pois não há como a fiscalização acompanhar todos os pontos
críticos de controle necessários desde a propriedade rural até a mesa do
consumidor. Ainda que na seção anterior tenha ficado bem estabelecido sua
dimensão econômica, qualidade depende primeiramente de uma mudança
cultural.
Princípios básicos do controle de qualidade
Análise de Perigo e Pontos Críticos de Controle (APPCC)
O sistema APPCC é uma abordagem universalmente aceita que ataca os
perigos biológicos, químicos e físicos aos alimentos por meio de controle e
ações preventivas, ao invés de inspeção e testes dos produtos finais. Baseado
nos conceitos de qualidade total de W. E. Deming, na década de 1950, e do
próprio APPCC desenvolvido na década de 1960 pela Companhia Pillsbury para
1
Há conjunturas em que essa regra não se aplica, como no caso do Canadá, onde a
cadeia amadureceu um acordo que resultou no atual sistema de cotas de produção e
transformou as federações de produtores nos executores da política nacional de
captação, negociação e controle de qualidade do leite cru.
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Tendências e avanços do agronegócio do leite nas Américas: mais leite = mais saúde
o exército norte-americano e para a NASA (United States National Aeronautics
and Space Administration), o APPCC foi adotado pela Comissão do Codex
Alimentarius em 1993, sendo recomendada a sua adoção nas cadeias
alimentares desde então (FAO, 1998).
Os sete princípios contemporâneos do APPCC são (CULLOR, 1997):
1. identificação dos perigos, severidades e riscos (químicos, microbiológicos e
físicos);
2. estabelecimento dos pontos críticos de controle (PCCs) para os perigos
identificados;
3. estabelecimento dos critérios (limites críticos) para cada PCC;
4. adoção de procedimentos de monitoramento rotineiro para os PCCs;
5. adoção das medidas corretivas, quando o critério não for atingido;
6. estabelecimento de um sistema efetivo de registro de informações para o
programa; e
7. estabelecimento de um sistema de verificação para documentar que o
programa de APPCC está sendo seguido.
CULLOR (1997) também apresenta os doze passos para a implementação
do APPCC nas cadeias alimentares:
1. Defina uma equipe local e multidisciplinar para liderar o programa de
APPCC;
2. Descreva o(s) produto(s) final(is) e o se meio de distribuição (p. ex.,
requisitos de formulação e processamento);
3. Identifique o provável uso do alimento e a população consumidora alvo;
4. Desenvolva um fluxograma que descreva o processo de produção e
distribuição;
5. Verifique o fluxograma;
6. Implemente o princípio 1 – identifique os perigos, severidades e riscos
preparando uma lista dos pontos no processo de produção em que
ocorrem perigos químicos, físico e microbiológicos e comece a descrever
medidas preventivas;
7. Aplique o princípio 2 – identifique os PCCs no processo produtivo;
8. Adote o princípio 3 – estabeleça limites críticos que disparem a
implementação de medidas preventivas associadas a cada PCC
identificado;
9. Implemente o princípio 4 – estabeleça as exigências de monitoramento e
organize os procedimentos para o uso dos resultados do programa de
monitoramento (Meta: usar os resultados do programa de monitoramento
para ajustar procedimentos e manter controle sobre o processo de
produção);
10. Organize o princípio 5 – crie ações corretivas a serem iniciadas quando o
programa de monitoramento indicar desvios em relação aos critérios ou
limites críticos estabelecidos;
Tendências e avanços do agronegócio do leite nas Américas: mais leite = mais saúde
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11. Mantenha o princípio 6 – estabeleça procedimentos efetivos de registro de
informações que atestem a implementação do sistema de APPCC (p. ex., o
plano de APPCC, os dados gerados durante o processo de produção etc.); e
12. Institua o princípio 7 – estabeleça procedimentos de verificação de que o
sistema de APPCC está trabalhando corretamente (p. ex., auditorias
internas e externas, revalidações periódicas do sistema etc.).
Apesar do sistema APPCC ser a metodologia recomendada e mais
abrangente a ser adotada nos diversos elos da cadeia produtiva, o presente
trabalho propõe-se a discutir com mais detalhe a questão da qualidade do leite
cru e seu impacto na competitividade da indústria láctea, usando como
ilustração o caso brasileiro.
Controle de qualidade do leite cru: o caso brasileiro
O agronegócio do leite tem experimentado uma grande transformação no
Brasil a partir da década de 1990, podendo ser apontados como os principais
indicadores dessa transformação: expansão na produção de leite de quase 70%
em pouco mais de uma década (de 15,7 para 25 bilhões de litros entre 1994 e
2005), rápido desenvolvimento da produção primária em novas regiões do país,
aumento da concentração nos setores industrial e varejista, redução da
participação do setor cooperativista na industrialização de leite, crescimento do
mercado de commodities (principalmente leite UHT) e ingresso do Brasil no
mercado intenacional de lácteos na condição de exportador (DÜRR et al.,
2005).
Diante dessa verdadeira “revolução”, o setor leiteiro no Brasil está
constatando que precisa urgentemente buscar eficiência em todas as suas
atividades, tendo que compensar décadas de atraso tecnológico em poucos
anos de modernização para que a pressão competitiva do mundo globalizado
não comprometa a viabilidade do negócio em expansão. Um dos “pontos
críticos” rapidamente identificados foi a qualidade da matéria prima produzida
no país. Tal percepção motivou um grande debate nacional em torno do
impacto social de se impor exigências tecnológicas mais rígidas para a
produção primária de leite uma vez que a mesma ocorre majoritariamente em
empresas familiares de pequena escala, causando supostamente a aceleração
da exclusão no meio rural. Prevaleceu, contudo, o senso comum de que não se
pode abrir mão da segurança alimentar da população consumidora e nem
comprometer a competitividade da indústria nacional, e o Ministério da
Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) publicou a Instrução Normativa
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Tendências e avanços do agronegócio do leite nas Américas: mais leite = mais saúde
No 51/2002 (IN51/2002), constituída pelos regulamentos técnicos sobre
produção, identidade e qualidade dos diversos tipos de leite no país, bem como
a coleta e o transporte a granel de leite cru refrigerado, a qual passou a vigorar
em julho de 2005 (DÜRR, 2004).
No tocante à matéria prima, os fundamentos da IN51/2002 são a sanidade
animal, a higiene, a refrigeração e a nutrição animal. Ou seja, a qualidade do
leite cru que chega à indústria deve ser garantida pela ordenha higiênica de
vacas sadias e bem alimentadas, seguida de imediata refrigeração do leite na
propriedade rural e de seu transporte a granel em tanques isotérmicos até a
indústria. Nenhum conceito novo, portanto, foi estabelecido. O que as normas
trouxeram de avanço real foi o estabelecimento de um programa de controle da
qualidade do leite produzido através do monitoramento laboratorial mensal do
leite de cada fazenda leiteira. Para viabilizar o programa foi criada pelo Mapa a
Rede Brasileira de Laboratórios de Controle de Qualidade do Leite (RBQL)
formada por laboratórios de instituições de ensino e pesquisa nas principais
regiões produtoras do país credenciados para executar as análises laboratoriais
previstas na IN51/2002. Além dos serviços laboratoriais prestados, as
entidades credenciadas à RBQL emprestam ainda os talentos de seus recursos
humanos para formar uma massa crítica que assessora a cadeia na
implementação do Programa Nacional de Melhoria da Qualidade do Leite
(PNQL).
Apesar de estarem em vigor os regulamentos técnicos previstos na
IN51/2002, o controle efetivo da qualidade do leite cru produzido no país ainda
está em plena fase de implantação. A Tabela 3 apresenta algumas das maiores
dificuldades a serem superadas para que o PNQL seja implementado de forma
plena.
Cabe aqui retomar o aspecto anteriormente enfatizado sobre o papel de
liderança que o setor industrial deve assumir no processo de implantação do
PNQL. Percebe-se ainda no Brasil a noção de que a iniciativa das
transformações deve ser do Governo Federal, havendo inclusive reivindicações
de que o poder público arque com o ônus dos investimentos nas propriedades
rurais (refrigeradores) e nos programas de controle de qualidade. Parte-se de
um conceito distorcido de que o Mapa está “favorecendo grandes empresas”
com as normas propostas, quando está simplesmente cumprindo com seu
dever de manter uma legislação sanitária moderna e de acordo com as
necessidades contemporâneas de segurança alimentar.
Tendências e avanços do agronegócio do leite nas Américas: mais leite = mais saúde
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Tabela 3. Dificuldades encontradas no momento atual de implementação do
Programa Nacional de Melhoria da Qualidade do Leite (PNQL).
Medidas a serem adotadasa
Programas sistemáticos e
compulsórios de treinamento, sob
responsabilidade da indústria de
laticínios
Estabelecer um plano de
Algumas regiões do país ainda têm dificuldades na acompanhamento mais tolerante
logística de escoamento e no fornecimento de energia para as regiões atingidas até que
Infra-estrutura nas
elétrica, e boa parte dos produtores da agricultura as condições de infra-estrutura
propriedades rurais
sejam saneadas e linhas de crédito
familiar ainda não dispõe de equipamentos de
mais acessível para investimentos
refrigeração adequados
na agricultura familiar
Indústrias realizarem o
Cadastro Nacional
cadastramento de seus
de Produtores de Em fase final de testes pelo Mapa
fornecedores assim que o sistema
Leite
estiver operando
Tendo em vista as estimativas de que haja no país
entre 500 mil e 1,6 milhões de produtores de leite, a Ampliar a capacidade instalada dos
Infra-estrutura da
RBQL não possui capacidade instalada para atender laboratórios já credenciados à
RBQL
RBQLb
toda a demanda prevista pela IN51/2002,
especialmente para a determinação da CBT
Publicação, em caráter de
Ainda não se estabeleceu em definitivo quais as
Definição dos
penalidades que serão aplicadas nem o destino a ser urgência, dos critérios de
critérios de
julgamento a serem adotados pelos
dado ao leite que se apresentar fora dos limites
julgamento
estabelecidos na IN51/2002
fiscais de inspeção
“Ponto crítico”
Situação em maio de 2006
Ainda há um grande desconhecimento sobre os
Capacitação dos fatores de comprometem a qualidade do leite e sobre
recursos humanos as tecnologias disponíveis para a resolução de
problemas entre produtores e transportadores
a
Propostas pelo autor.
Já há um projeto tramitando com essa finalidade.
b
Mesmo tendo avançado muito nos últimos anos, a cadeia precisa acelerar
seu processo de modernização caso queira aproveitar as grandes oportunidades
de inserção no mercado internacional de lácteos que se vislumbram. O Brasil
tem uma grande vantagem competitiva que o diferencia, que é a capacidade de
ampliar sua produção mantendo os custos abaixo dos competidores. Porém o
padrão dos produtos exportados não vai satisfazer os mercados mais exigentes
se não houver uma significativa melhoria na qualidade da matéria prima. Nos
primeiros dez meses de monitoramento oficial realizado pela RBQL, mais de
50% das amostras de leite cru analisadas apresentam CBT acima de 1 x 106
UFC/mL, atestando as precárias condições de higiene e conservação na maioria
das fazendas leiteiras do país. O diagnóstico indica a necessidade de
implementação urgente de medidas corretivas, e cabe à indústria a iniciativa. A
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Tendências e avanços do agronegócio do leite nas Américas: mais leite = mais saúde
Tabela 4 apresenta sugestões de como a indústria pode exercer sua liderança e
mover a cadeia como um todo para a melhoria da qualidade do leite.
Tabela 4. Exemplos de ações catalizadoras que a indústria pode adotar para
acelerar a melhoria da qualidade do leite no Brasil.
Gargalo
Ações da indústria
• Rígido controle da temperatura do leite na coleta
• Orientação técnica sobre higiene na ordenha, refrigeração, limpeza e
Elevada CBT no leite cru
manutenção de equipamentos
refrigerado
• Treinamento e comprometimento dos transportadores
• Adoção de sistema de advertências e penalidades no preço do leite
• Orientação técnica sobre prevenção da mastite
Elevada CCS no leite cru
refrigerado
• Adoção de sistema de advertências e penalidades no preço do leite
• Orientação técnica sobre prevenção da mastite e controle de resíduos
• Uso de métodos de detecção de resíduos antimicrobianos sensíveis a
Presença de resíduos de
diferentes tipos de antibióticos, uma vez que no Brasil se permite a
antimicrobianos
administração de diferentes grupos de drogas
• Adoção de sistema de penalidades envolvendo preço do leite e descarte de
cargas condenadas
• Orientação técnica sobre nutrição animal
Baixos teores de sólidos no
• Rígido controle de fraudes (água, soro, desnate)
leite cru refrigerado
• Adoção de sistema de bonificações pelos sólidos no preço do leite
• Adoção de um programa de roteirização da coleta do leite que impeça o
transportador de atuar como intermediário
• Terceirização da coleta de amostras nas propriedades para profissionais
desvinculados dos tranportadores
Ausência de um programa
integrado de melhoria da
• Classificação dos produtores em função da qualidade do leite para a
qualidade do leite
destinação da matéria prima de acordo com as necessidades industriais
• Criação de um sistema de divulgação rápida dos dados de qualidade para que
ações corretivas sejam adotadas no tempo certo
• Implantação do sistema APPCC em todas as etapas do processo produtivo
Comentários finais
Controle de qualidade envolve uma mudança cultural em toda a cadeia
produtiva, pois além de depender da conscientização dos agentes envolvidos,
implica repensar todos os processos, práticas e hábitos já estabelecidos. As
resistências, portanto, são naturais. Contudo, a opção pela qualidade é hoje a
opção pela sobrevivência da atividade. A explosão demográfica e a globalização
dos mercados transformaram irreversivelmente a maneira de se produzir
alimentos no mundo, e hoje temos que conviver com preocupações antes
irrelevantes sobre a segurança dos alimentos. A cadeia produtiva do leite no
Tendências e avanços do agronegócio do leite nas Américas: mais leite = mais saúde
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Brasil acordou tarde para o seu potencial competitivo, mas hoje tem na
melhoria da qualidade do leite o seu grande teste para conquistar espaços
importantes no cenário mundial e inibir a concorrência no mercado interno.
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