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ISSN 1982-2685
Rio de Janeiro
2008
InterSignos
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA
FACULDADE CCAA
Diretor Geral • Hércules Pereira
Diretora Superintendente • Eliane Faial
Diretora Administrativa • Anna Maria Ernesto Ferreira Machado
Diretora Acadêmica • Marcia Moraes
Editores:
Fred Girauta • Coord. do Curso de Letras da Faculdade CCAA ([email protected])
Marcos Fernandes ([email protected])
Conselho Consultivo:
Peter McLaren • UCLA – EUA
Henry Giroux • McMaster University – Canadá
Liliana Cabral Bastos • PUC-Rio
Maria do Carmo Leite de Oliveira • PUC-Rio
Sonia Bittencourt Silveira • UFJF
Conselho Editorial da Faculdade CCAA:
Maria Paz
Ricardo Teixeira
Marcia Moraes
Luís Carlos Morais Jr.
Sérgio Carvalho
Antônio Francisco Andrade
Denise Braga
Marcelo Diniz
Roberto Bozzetti
Mariana Quadros Pinheiro
Karen Sampaio
Maria Teresa Tedesco
Lúcia Monteiro
Catalogação na fonte pela Biblioteca Brian McComish da Faculdade CCAA.
INTERSIGNOS – Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA
V. 1, N. 1, Mar/ Ago 2008, Rio de Janeiro, CCAA Editora, 2008.
pg. 116
Semestral
ISSN: 1982-2685
1. Literatura. 2. Lingüística.
CDD 800
Editoração e Impressão:
CCAA Editora
Editora Gerencial:
Andréa Lucas
Capa:
Bruno Gomes
Projeto Gráfico:
Juliana Andrade
Revisão de Língua Portuguesa e Formatação de Texto:
Rita Cyntrão
Revisão Editorial:
Denise Soares de Castro
Luís Antônio Guimarães
Redação de Língua Inglesa:
Ricardo Pinheiro
Redação de Língua Espanhola:
Francisco Sales Junior
Apoio Técnico:
Wanda Teixeira
Faculdade CCAA
Curso de Letras
INTERSIGNOS
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA
Periodicidade:
Semestral
Assinatura:
R$ 40,00
Endereço para correspondência:
Avenida Marechal Rondon 1460 • Riachuelo
Rio de Janeiro – RJ • CEP 20950-202
Tel.: (21) 2156-5000
www.faculdadeccaa.edu.br
Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução total ou parcial.
Os textos assinados são de inteira responsabilidade de seus autores/autoras.
A Revista INTERSIGNOS, publicação acadêmico-científica semestral da Faculdade CCAA,
tem como objetivo publicar trabalhos acadêmico-científicos inéditos na área de Letras e afins, com
uma abordagem inter, multi e transdisciplinar. A proposta é oferecer à comunidade acadêmica um
espaço para a troca de conhecimentos, reflexões, experiências e informações.
INTERSIGNOS procura destacar os diversos temas que fazem parte do contexto da Língua
Portuguesa e das Línguas Estrangeiras e respectivas literaturas, dos estudos multiculturais, dos
cursos de licenciaturas, e a inserção das novas tecnologias no cenário lingüístico-educacional,
trazendo reflexões que permitam oxigenar as discussões na área.
A Revista é uma publicação científica do Curso de Letras da Faculdade CCAA e publicada
pela CCAA Editora.
Editorial
Canção e Poesia, Música e Sabedoria:
Entrevista com Paulinho da Viola
Roberto Bozzetti • Faculdade CCAA
Um Breve Discurso acerca da História
da Interpretação da Bhagavad Gita
Rubens Turci • NETCCON.ECO.UFRJ
9
11
29
O Mago Artificial Rubem Fonseca
Luís Carlos de Morais Junior • Faculdade CCAA
43
Terminal: Cosmogonia e Evanescência em Ronald Polito
Marcelo Diniz • Faculdade CCAA
53
O Espaço Autobiográfico em Numeral, de Armando Freitas Filho
Mariana Quadros Pinheiro • Faculdade CCAA
61
“País Poema Homem”: Notas sobre País Possível, de Ruy Belo
Antônio Andrade • UFF, CPII, Faculdade CCAA
79
Nasalização em Português: Dois Pontos de Vista
Gabriela de Campos Barbosa • Faculdade CCAA
87
As Possibilidades de uma Avaliação Dialógica no Fórum do AVA
Susan Kratochwill • CEDERJ/UERJ, UCB, Faculdade CCAA
99
EDITORIAL
Este é o número de lançamento da Revista InterSignos, do Curso de Letras da
Faculdade CCAA. São inúmeras as razões que justificam o lançamento de uma revista
acadêmica com esse nome. A principal, talvez, seja a consciência de estarmos num
mundo cada vez mais submetido à velocidade vertiginosa das informações, pelo
intercâmbio incessante de linguagens que se superpõem e nos atravessam, fundando
intermitentemente novas cosmogonias, realidades, identidades sociais. Arte e artifício,
acaso e sentido, jogo de dados, signos que se entrecruzam e se recriam. Daí o caráter
multi, inter e transdisciplinar dessa revista acadêmica e sua abertura às várias áreas do
saber ligadas à linguagem, ao comportamento e às práticas sociais desse “homem” mais
que humano, sígnico.
Hoje, já não se pode conceber o homem como aquele ente dotado de um sujeito,
em si e para si, indivisível e, para além de sua racionalidade, natural, fruto da
natureza ou da criação divina. Tampouco se pode falar de um homem político isolado
pelas fronteiras geográficas, lingüísticas ou étnicas. Também não se pode falar de um
Homo Sapiens ou Homo faber desconectado, sem os ecos do ecossistema.
A sociedade contemporânea molda um novo homem, que se constitui na
forma de se comunicar e se relacionar com o outro. Essa nova realidade, múltipla,
configura-se como um desafio para pesquisadores e aqueles preocupados com a
constituição de uma sociedade mais justa, igualitária e voltada para a preservação e
melhoria da qualidade de vida.
Uma publicação que tenha como meta a discussão e a difusão de estudos acerca
desse personagem antigo e contemporâneo, ao mesmo tempo, e que abrigue vários
campos das ciências humanas, justifica-se nesse cenário de mundialização e
informatização. Sendo esse cenário repleto de signos, justifica-se batizar essa revista
de InterSignos.
O presente volume abre com Canção e poesia, música e sabedoria: entrevista com
Paulinho da Viola. Nessa entrevista, Paulo César Batista de Faria, o notável Paulinho
da Viola, fala sobre uma variedade de temas que vão desde suas práticas de
aprendizagem, vida pessoal e profissional, passando por comentários acerca de
Pixinguinha, Luiz Gonzaga, Ary Barroso e João Cabral de Melo Neto, desvelando um
pouco da história da MPB e do mercado musical, indo até arte e criação, teoria
musical, jazz, chorinho e, claro, samba.
Em direção à filosofia e à literatura, segue o trabalho de Rubens Turci acerca das
dificuldades que os pesquisadores ocidentais têm para interpretar a Bhagavad Gita.
Em seguida, o trabalho intitulado O mago artificial Rubem Fonseca, de Luís Carlos
de Morais Junior, que aborda questões como tempo, artificialismo, simulacro e
cinema no processo de construção literária de Rubem Fonseca, questões essas cruciais
para os processos sígnicos da contemporaneidade.
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Editorial
A seguir, três trabalhos sobre poesia. Em primeiro lugar, o de Marcelo Diniz,
Terminal: cosmogonia e evanescência em Ronald Polito, sobre a escrita poética
como uma possibilidade de desconstrução e construção da subjetividade, ou seja,
evanescência e cosmogonia da subjetividade e suas relações com o corpo e o mundo.
O segundo trabalho sobre poesia é o de Mariana Quadros Pinheiro, intitulado O
espaço autobiográfico em Numeral, de Armando Freitas Filho, em que a autora defende
um novo conceito do gênero autobiográfico, sendo esse o resultado de
procedimentos poéticos que efetuam a distensão/tensão entre os limites do corpo e
o infinito da escrita poética, independentemente da indicação da primeira pessoa da
enunciação, o “eu”. Fecha essa série sobre poesia o trabalho de Antônio Andrade,
cujo título é País poema homem: notas sobre País possível, de Ruy Belo. Nesse
trabalho, o autor aborda a relação entre poesia, paisagem e identidade nacional.
Por fim, estão trabalhos ligados aos estudos de linguagem e educação. O primeiro
deles, Nasalização em português: dois pontos de vista, de Gabriela de Campos Barbosa,
mais propriamente lingüístico, trata do processo fonológico de nasalização conforme
duas vertentes teóricas: a fonologia gerativista clássica e a fonologia auto-segmental.
O segundo se insere na área de estudos sobre educação, particularmente a educação
on-line, e busca mostrar a possibilidade de implementação de avaliação dialógica a
partir de fóruns de discussão do ambiente virtual de aprendizagem (AVA), numa
perspectiva teórica interacionista na linha de Bakhtin e Vygotsky, em interface com
as teorias pedagógicas de Luckesi e Hoffmann.
Com tal leque e amplitude de trabalhos e temas tratados, a Revista InterSignos
espera oferecer à comunidade acadêmica a sua contribuição para o enriquecimento,
a difusão e o conseqüente avanço do saber teórico e aplicado nas chamadas ciências
humanas.
Em nome de todo o corpo editorial, agradecemos, com especial destaque, a Paulinho
da Viola pela entrevista concedida. Também agradecemos a Peter McLaren, Henry
Giroux, Liliana Cabral Bastos, Maria do Carmo Leite de Oliveira e Sonia Bittencourt
Silveira pela participação em nosso Conselho Consultivo. É importante lembrar e
agradecer, ainda, a valiosa iniciativa e apoio da Direção da Faculdade CCAA, dos
Coordenadores e Professores do curso de Letras e de toda a equipe responsável pela
elaboração editorial. Enfim, agradecemos a todos que, direta ou indiretamente,
contribuíram para a realização desta InterSignos.
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
CANÇÃO E POESIA, MÚSICA
E SABEDORIA: ENTREVISTA
COM PAULINHO DA VIOLA
Roberto Bozzetti
Faculdade CCAA
Universidade Estácio de Sá
Doutor em Literatura Comparada pela UFF
contato: [email protected]
Em janeiro de 2006, defendi na UFF a tese de doutoramento em Literatura
Comparada, “Paulinho da Viola e as interfaces do moderno no Brasil”. Tive
oportunidade de entrevistar Paulinho, que generosamente me recebeu em sua casa
em duas ocasiões, agradabilíssimos encontros dos quais resultaram quatro horas de
gravação, das quais publico aqui pequena parte.
Cultuado na mídia e nos meios intelectuais e musicais por sua elegância e nobreza
– atributos sempre presentes quando se trata de descrever sua persona pública –, o
contato direto com Paulinho só faz reforçar tais impressões, que significam, ainda,
recolhimento e fineza no falar e atenção dispensada a tudo o que ele percebe como
sendo de interesse do estudioso, que dele se aproximou com respeito reverente. O
que não impediu, muito pelo contrário, momentos de bom humor e um à vontade
que incluiu cafés, canjicas, queijo-de-minas e marmelada. Paulinho da Viola é uma
pessoa que se revela encantadora a cada passo, e esse adjetivo de maneira alguma
pode ser empregado de forma corriqueira e/ou displicente.
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Roberto Bozzetti
É indispensável dizer, ainda, que a impressão de nobreza que dele emana tem,
sobretudo, fundamento musical, uma vez que Paulinho traz em si, de sua formação
familiar, o convívio desde cedo experimentado com o que de melhor a história do
choro legou ao Brasil: seu pai, César Faria, violonista que por si só é toda uma escola,
integrou durante anos o grupo de Jacob do Bandolim, possivelmente o maior solista
que este país já conheceu. Ainda menino, aos 15 anos, conta Paulinho com orgulho,
Jacob confiou-lhe a afinação de seu instrumento, dando crédito, portanto, a
seu apuro (Jacob sempre foi conhecido por seu exacerbado nível de exigência).
Familiarizou-se, assim, com a excelência musical, ao ver sua casa freqüentada por
essa linhagem, que incluía, ainda, ninguém menos do que Pixinguinha. De sua
formação no samba carioca, iniciada pra valer já na pós-adolescência, Paulinho conta
com igual orgulho que o primeiro cachê que recebeu foi “apenas” de Cartola, depois
de passar um tempo acompanhando-o ao violão. São dois momentos simbólicos
a que Paulinho presta enorme reverência.
Resta dizer, ainda, que Paulinho da Viola integra a brilhante geração de criadores
de canções que se firmou nos anos 60, dando forma definitiva ao que constitui
o cânone da MPB: seus companheiros geracionais são, nessa área, entre outros,
Caetano Veloso, Gilberto Gil, Chico Buarque e Milton Nascimento.
Em tempo: a entrevista me foi concedida nos dias 8 de abril e 9 de maio de 2005.
Roberto Bozzetti
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
Canção e poesia, música e sabedoria: entrevista com Paulinho da Viola
A ENTREVISTA
1 Roberto Bozzetti – Paulinho, há um ponto em que você já tocou várias vezes, e eu
nunca vi isso desdobrado, que eu gostaria de lhe perguntar: mais de uma vez você disse
que Pixinguinha e Luiz Gonzaga são os dois nomes basilares da música brasileira. Com a
sua formação de sambista e chorão, isso vindo de você, o nome de Pixinguinha não causa
nenhuma estranheza, mas Luiz Gonzaga sim. Você poderia falar um pouco disso?
PAULINHO – Se há uma coisa de que eu não esqueço nunca é que sempre quando ouço as
músicas dessa fase, especialmente “Qui nem Jiló”... isso foi um sucesso nacional. As músicas
de Luiz Gonzaga, por todo esse período, anos 40, 50, final dos anos 40... toda vez que
eu ouço “Qui nem Jiló”... eu tenho tanta paixão por essa música que me vejo com a
minha roupa daquela época, do primário. Foi uma coisa que marcou tanto, eu com
a minha pastinha indo pra Escola Joaquim Nabuco, na Rua Sorocaba, aquelas divisas assim
com a bolinha embaixo. Eu tinha meus cinco anos. Pra você ver como foi forte essa coisa pra
mim, entendeu? Eu costumo dizer que, pra mim, as músicas do século, com todo o respeito
que o Ary Barroso merece como compositor, isso aí é indiscutível, mas eu não acho que
“Aquarela do Brasil” seja a música do século não. Acho mesmo que o Ary tem umas 200
músicas dez vezes melhores. Eu, quando ouço “Aquarela do Brasil”, parece um samba
exaltação, daquelas coisas assim... de fora. E ele fez cada samba mais bonito que o outro. E
eu acho que as duas músicas mais bonitas não são nem samba: são um choro, “Carinhoso”,
e um baião, que é o “Asa Branca”. E essa foi, assim, um estouro nacional, e é uma coisa
comovente, uma coisa muito forte. Principalmente “Asa Branca”. E “Assum Preto”. Mas
“Qui nem Jiló”, aquilo foi um mega-sucesso, a toda hora tocava...
2 RB – E tem uma melodia absolutamente linda...
PAULINHO – [cantarola a melodia] Olha, você não imagina... e isso era, é a alma, aqui pra
nós, cariocas, do nordestino que veio aqui pra nós... quem afirmou a permanência dessa
alma neles? Isso nunca foi superado, ninguém superou o Gonzaga. E olha que tinha gente
muito boa, o próprio Jackson, Carmélia Alves, depois Dominguinhos... uma porção de gente
muito boa.
3 RB – Na sua entrevista de 1989 à revista Bric-a-Brac, você diz que, mesmo depois de ter
se apaixonado pelo jazz, de ter ouvido bastante rock, você sempre teve uma coisa de dizer
assim “desde menino que eu ouço que isso aí é coisa do pessoal do samba”, e que você
sempre formulou assim “o samba versus alguma coisa”...
PAULINHO – É: “O samba versus alguma coisa”.
4 RB – E disse também, na mesma ocasião, que o samba sempre teve que aparar arestas
pra se apresentar e tal. E eu acho, e aqui eu não tenho como deixar de falar da minha
admiração por você, é que no seu trabalho isso nunca surge nem com a vestimenta da
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Roberto Bozzetti
xenofobia nem com a do discurso ressentido, da coisa rancorosa, que muitas vezes surge
no discurso do pessoal do samba. E é muito difícil isso de você ser tão identificado com
o samba e ao mesmo tempo esse discurso nunca aparecer! E isso me faz pensar em uma
coisa que o Caetano Veloso disse. Ele disse várias vezes, daquele jeito dele: “Existem
poucas pessoas capazes de compreender a integridade da obra do Paulinho como eu”. E
a gente pesquisando as coisas da época em que vocês surgiram, anos 60, eu vejo muitas
afinidades entre vocês dois. Estou errado?
PAULINHO – Na verdade, eu não convivi tanto com o Caetano Veloso. Quando eles
chegaram, eu convivi mais com o Capinam. Capinam, ali no Teatro Jovem, em Botafogo, na
época do Rosa de Ouro... Eu estava mais próximo do Capinam, naquelas reuniões que a
gente participava lá, às vezes eu estava na mesa, às vezes na platéia. A gente ia pra lá pro
teatro na sexta-feira depois da peça, meia-noite, ia lá pra falar sobre música popular, os
rumos da música popular, era na verdade um pretexto pra gente ir ali e discutir política, a
vida de uma forma geral, o que se estava fazendo naquele momento.
5 RB – Olha só, tem um texto do Sérgio Cabral, pai, no Pasquim, ali por volta do número 40,
em que ele comenta, entre outras coisas, a onda da chegada daquele rock dos fins
dos anos 60 no Brasil, com todo o potencial contestador, ao qual vinham se somar as
agitações do Tropicalismo, uma coisa que era vista então – e de certa maneira era mesmo
– como contestação a certa acomodação, a certa tradição de mesmice, de banalização
na música brasileira que se ouvia em discos, rádios e TV. E o Cabral dizia que a música
brasileira não precisava recorrer ao rock (na época tinha também a onda da soul music
chegando) para essa transgressão à mesmice, pois os elementos pra isso já estavam nela
mesma. E aí citava a hipótese de o Preto Rico da Mangueira se apresentar num festival
daqueles em rede nacional e dizia mais ou menos o seguinte: “O choque vai ser tão
grande ou maior do que o que se causa com o rock, com o soul, porque os milhões de
espectadores pasteurizados não vão se reconhecer naquele artista anônimo, marginal e,
ao mesmo tempo, tão representativo do povo”. Pois é, e a sua maneira de ver o samba,
de se colocar essas coisas, não é muito afim a essa idéia do Sérgio Cabral?
PAULINHO – É, é um pouco assim. É... primeiro isso que você falou. Naturalmente, todo o
universo do samba, todas as histórias, tudo o que o povo do samba já passou – e quando
a gente fala o povo do samba, fala o povo negro, embora não exclua o branco do
samba, claro, mas a grande maioria é o povo negro – o que os antigos contavam
do que eles tinham que enfrentar, eu mesmo peguei, quando era garoto, se tivesse uma
batucada, em Botafogo mesmo... de repressão ao povo negro, ao povo do samba. As
associações que se fazem, sempre vendo com reserva a religião negra, os “macumbeiros” e os
sambistas, os batuqueiros... sempre houve isso, a gente sabe disso. E, de vez em quando, eu
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Canção e poesia, música e sabedoria: entrevista com Paulinho da Viola
ouço o pessoal dizer: “Ah, esse negócio já acabou, isso é do passado”, e não é. E eu ouço
tanto isso. Isso faz parte da vida da gente. E como é que essa coisa tão forte, as manifestações
culturais ligadas ao samba, como é que essa coisa não desaparece? Por que não morre?
Não morre porque o nosso povo não deixa, o povo brasileiro não deixa, é ele que fez essa
conquista. No começo dos anos 80, quando começou essa coisa de rock de garagem, Legião
Urbana, Cazuza, eu me lembro, logo no comecinho, a gente conversava com o pessoal de
produção das gravadoras, ninguém sabia o que ia acontecer, e aquela música, a música da
nossa geração, que era de contestação, ainda dentro da ditadura, da repressão, com a força
contrária da censura, se bem que já mais branda, começo daquele negócio de distensão lenta
e gradual... olha só: nesse momento, não sei se vocês perceberam isso, mas houve certo
esvaziamento da música que se vinha fazendo. E teve um negócio que deu um branco
assim... eu me lembro que eu ligava as FMs por um tempo, e não se ouvia nada de MPB, de
samba, de nada... só se ouvia... sei lá o tipo de música que se ouvia. O que era diferente de
alguns anos antes, quando se ouvia o Chico, o Gil, o Caetano. Mesmo o Gil e o Caetano,
na virada dos anos 70 pros 80, com “Refavela”, com “quanto mais purpurina melhor”, já
era outra coisa que não era mais a Tropicália. Eu me lembro que a gente ouvia isso, mas não
era aquela coisa de antes. E me lembro que tinha aquela coisa, assim, de músicas se
destacando pela novela. Era muito importante ter uma música na novela... estou falando
que nesse momento eu sentia, eu conversava com as pessoas, com os homens de gravadora,
produtores, pessoal de direção de gravadoras, e eles queriam correr atrás, e começaram a
apostar nesse pessoal jovem que começou a aparecer, o chamado rock de garagem, quando
começou a se fazer certo investimento...
6 RB – É, produção barata...
PAULINHO – E aí uma coisa estranha que aconteceu, que provocou – eu não lembro se eu
já discuti isso com alguém – espanto, foi que o Agepê apareceu, não sei se em 83, 84, ele não
tinha nem contrato com gravadora, com aquele samba “faz de conta que eu sou o primeiro”.
Isso estourou. E, ao estourar, provocou um problema sério... foi inesperado. Ainda não se
tinha o domínio, como se tem hoje, do controle da mídia, hoje é tudo muito mais controlado.
Naquela época, ainda podia acontecer isso, hoje... um pouco antes, tinha o programa do
Adelzon Alves, de madrugada, na Rádio Globo, aonde você ia com o disco lá, como foi feito
com o Foi um Rio que Passou em minha Vida, que foi ele que começou a tocar. Ele começou
a tocar a música e aí... era um negócio que ninguém controlava. Esse processo, hoje, é
impossível, não existe essa possibilidade, não tem mais hoje os caras que têm o seu programa
e botam o disco porque eles gostam. Isso não existe mais. Mas, nesse período, ainda
era possível acontecer isso. E também o outro fenômeno, que eu já falei nisso várias vezes,
mas ainda não vi ninguém fazer uma análise, que é o seguinte: o Zeca Pagodinho, o
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Roberto Bozzetti
Almir Guineto, a Jovelina Pérola Negra já enchendo os lugares, já lotando os ginásios, e a
mídia tocando outra coisa lá no rádio, na novela. E a mídia foi obrigada a reconhecer isso.
O Zeca Pagodinho tem essa fase dele agora, mas as pessoas estão esquecendo aquela outra,
faz vinte anos, que foi um sucesso estrondoso no Rio de Janeiro, e não se ouviam eles em rádio
nenhum, em televisão nenhuma, quando eles começaram... e a gente até via na beira da
praia, eles vinham, a gente via, o pessoal do pagode... e isso começou num crescendo tal que
a mídia não conseguiu esconder mais e foi obrigada, os caras foram obrigados a colocar
como tema de novela...
7 RB – Mas, nessa época, esse pessoal já tinha seus discos, né? Não tinha era os canais de
divulgação...
PAULINHO – Já tinha os seus discos. Mas, antes dos discos, eles já estavam fazendo sucesso.
No Cacique de Ramos, onde isso apareceu, e daí começaram a tocar em ginásios e tal.
E a mídia foi obrigada a reconhecer. Quando veio a Jovelina com a “Feirinha da Pavuna”,
o Almir Guineto com o sucesso, eles já tinham deixado o rastro há muito... E essa coisa não
deixa de ser de novo o fenômeno do samba. O povo do samba incomodando, porque não foi
logo uma coisa de reconhecimento desses canais...
8 RB – O que acontece um pouco com o rap hoje.
PAULINHO – Também. Exatamente, é a mesma coisa, é isso aí. O que provoca certo temor,
ainda mais agora, nessa situação que a gente tá vivendo...
9 RB – Paulinho, tem uma questão especificamente musical sobre o samba, que eu vou
pedir licença a você para ler um trecho bastante longo do maestro Carlos Almada, que é
um texto de um estudo sobre harmonia, que vai sair ainda talvez este ano pela Unicamp,
mas é que acho que ele aborda questões de uma forma que eu não seria competente
para tanto (sou praticamente um analfabeto em teoria musical), e eu gostaria que você
também desse o seu depoimento sobre alguns aspectos do que está aqui, que é de
um interesse enorme para todos os que, de alguma forma, se aproximam de questões
musicais, musicológicas. Pode ser?
PAULINHO – Vamos lá.
10 RB – Bom, então lá vai.
“Uma das maiores dificuldades para um estudante de Harmonia Funcional certamente
vem a ser como passar da teoria à prática. Este problema intensifica-se ainda mais quando
seu métier não é o jazz, do qual é deduzida – ao final das contas (embora este fato não
seja abertamente admitido) – toda a teoria apresentada na segunda parte deste livro.
E é exatamente o fato de a Harmonia Funcional não se assumir inteiramente como
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Canção e poesia, música e sabedoria: entrevista com Paulinho da Viola
um estudo da harmonia do jazz que causa vários equívocos e problemas. Afinal, a
sistematização da teoria da Harmonia Funcional nasceu da adaptação dos fundamentos
da Harmonia Tradicional à prática jazzística. Sendo o jazz, em comparação aos demais
estilos existentes, harmonicamente mais ‘sofisticado’ (entendendo-se o termo não
esteticamente, como algo ‘melhor’, mas em sua acepção técnica: sua sofisticação
harmônica deve-se ao maior leque de opções de categorias de acordes, quase sempre
bem densos, com sextas, sétimas, nonas, décimas primeiras e/ou décimas terceiras). A
harmonia da bossa nova, influenciada fortemente pela jazzística, também possui tais
características (o que corresponde à principal diferença entre ela e o estilo que a gerou, o
samba). Tanto em relação ao jazz quanto à bossa, poderíamos considerar que o repertório
de suas possibilidades de harmonizações conteria – ao menos em tese – todas aquelas
referentes aos demais estilos (excetuando-se, é claro, aqueles caracteristicamente modais,
como o rock, por exemplo). Alguns músicos, ao concluírem o curso, conseguem, graças,
principalmente, aos seus próprios méritos, adaptar os conhecimentos adquiridos aos
estilos musicais com os quais irão trabalhar. Mas, mesmo assim, por mais talentosos
que sejam tais músicos, por certo ainda irão se deparar com desvios de rota,
incompatibilidades, incongruências – enfim, com obstáculos de toda ordem na busca da
mais adequada linguagem harmônica para um choro ou um tango, por exemplo. No caso
do músico mediano, a situação pode tornar-se ainda pior, já que o seu menos apurado
senso formal (em relação ao profissional melhor dotado) pode não alertá-lo sobre a
inadequação de certos procedimentos de harmonização: ou seja, ele simplesmente não
percebe que os acordes cuidadosamente escolhidos para uma peça contrariam suas
(da peça) características estilísticas. Mas, certamente mais graves são os casos em que a
pessoa procura intencionalmente ‘aperfeiçoar’ harmonizações julgadas – equivocadamente,
que fique bem claro – como ‘simples demais’. Não são raros os que acham que
tríades devam ser sempre rearmonizadas por tétrades (com tensões, de preferência),
acrescentando-se uma boa quantidade de empréstimos, acordes SubV e outras alterações
a gosto. O maior problema que resulta de tal filosofia é a pasteurização, a descaracterização
estilística no que se refere ao quesito harmonia.”
A questão aqui é que, segundo o Almada, a harmonia é, mais do que o ritmo, o fator
caracterizante do samba como gênero. Penso que, nesse sentido, a idéia de preservação
– idéia a que você não é muito simpático – seria válida, nesse único sentido, que seria o
de se institucionalizar uma escola de samba e de choro, não no sentido de um estudo
formal para enrijecer essas características, não para enrijecê-las, mas para se trabalhar
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Roberto Bozzetti
uma linha de tradição. Você teve isso né, o Jacob olhando no seu olho, crescer ouvindo
seu César tocar, já foi toda uma escola. Você acha que, nesse sentido, numa sistematização
desse tipo de estudos, as bases seriam essas?
PAULINHO – Pelo que eu entendi, tem umas coisas que eu acho que se aproximam do que a
gente talvez esteja assistindo com esse tipo de discussão se dando no nível acadêmico agora.
Antes não existia. Vocês imaginam que em toda arte, a arte musical incluída... vocês
imaginam que há um processo em que as pessoas, os artistas, os músicos vão descobrindo
novas possibilidades, novas combinações, outra forma de escrita, certas leis num
determinado nível médio para aquela linguagem que está se formando, para que as pessoas
possam apreender de certa maneira aquilo, para poder reproduzir, e também aprender
para poder criar. Tem uma historinha, que é longa, complexa, e esse processo, não
necessariamente, tem uma dinâmica, e em determinados momentos ele precisa “ser
desconstruído”. Aparecem uns caras que o viram de cabeça pra baixo. Por exemplo, o
sistema tonal: aparece um cara que diz: “Não, pode haver um sistema que vai colocar esse
em xeque”... então, a história é isso, né? Tem sempre alguém que quer reinventar a música,
trazer uma idéia nova, inventar a pintura, o que, se é uma aspiração legítima sob um
aspecto, não necessariamente acontece. Às vezes, uma idéia nova, mesmo sendo nova, nem
sempre vai provocar uma revolução na linguagem. Na música, por exemplo, quando o
Almada aí fala na harmonia tradicional, existe uma harmonia, que foi construída a partir
de determinados elementos identificáveis na música se formando assim... talvez desde o
barroco... e depois disso. Aí existem umas regras que você não pode romper. Eu vejo assim:
em alguns momentos, na própria música, existem outras harmonias, outras escolas
harmônicas que também têm suas regras, e existe até o total esfacelamento dessas regras.
Você tem, na música contemporânea, certas peças em que certos sons, certas combinações
rebentam com esse código... e, em determinado momento, criam um código, e às vezes não
é nem isso, e também não é uma linguagem, porque isso pode ficar tão... não é esfacelado,
mas o trabalho de destruir, de esfacelar o que vem já de décadas e que você está vendo muita
gente trabalhando naquilo, e você coloca aquilo no chão... Pra reerguer novamente outro
prédio, não é? Janelas e portas pra se entrar... Às vezes não tem porta, pô. A questão é essa.
Eu acho, e principalmente na música contemporânea essa é uma das coisas mais discutidas,
é que a abordagem da linguagem na música contemporânea é totalmente diferente da
música que se conhece, tradicional, de todas as correntes que vêm até Wagner, Stravinsky,
Escola de Viena, Schönberg... Até aí as pessoas estavam trabalhando com uma coisa que de
vez em quando se fechava em determinadas regras, a questão de estilo ficava mais ou menos
definida. Mas chega a um ponto em que isso também cansa. Eu conheci um rapaz, uma vez,
que era estudioso de música na Itália e a especialidade dele era essa música... e ele se
apaixonou por música popular brasileira, e se apaixonou ouvindo bossa nova, Jobim, e ficou
tão apaixonado, que ele foi pra embaixada brasileira na Itália e disse: “Quero aprender
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Canção e poesia, música e sabedoria: entrevista com Paulinho da Viola
português, vocês me ensinem isso aí que eu preciso”. Ele veio algumas vezes aqui e me
contava que todo esse trabalho, que é uma coisa riquíssima que a gente não conhece, exceto
alguns caras que trabalham com isso, mas que isso já está num processo em que a
quantidade de informações já é muito grande, e nem sempre a grande maioria das pessoas
pode estar acompanhando isso. Hoje, por exemplo, você tem computador, tem internet, tem
uma quantidade absurda de informações e ninguém tem condições de apreender aquilo e de
lidar com isso. Nem que você ficasse 24 horas num computador. Essa é uma questão bem
nova, porque até determinado momento a gente tinha a ilusão de que conseguiria ler todos
os livros que a gente quer ler, estudar todas as questões relacionadas ao que a gente faz, e
não é possível isso. Eu vejo muita confusão por causa disso porque, dentro da música, não
sei nas outras artes, mas na música eu vi muita gente muito preconceituosa, principalmente
quando surgia alguma coisa nova pela frente. Mas aí há, também, outra questão: uma coisa
não necessariamente nova é uma coisa legal. Quando se começa a perder certas referências,
você começa a perder a capacidade de apreensão, vai pelo sentido só... pelo que você sente,
é como uma abstração. Existem toneladas de propostas relacionadas à linguagem abstrata,
mas... você olha esse quadro aqui, faz uma série de considerações técnicas, é diferente de
olhar isso aqui [aponta outro quadro também abstrato]... um especialista, um apaixonado
por essas coisas também faz uma série de considerações técnicas, vai ver coisas que eu posso
ver ou não ver. Quando você tem uma obra, você gosta ou não gosta, mas não é só isso. Por
trás daquilo tem uma quantidade absurda de elementos que um cara que acompanha vê,
relacionando todas as questões ligadas à pintura. Tem até o pessoal que diz que a pintura
já era, tem uns caras que dizem assim, hoje: “Esse cara tá louco, como a pintura já era?
Acabei de vir da Alemanha, está tudo lá, está todo mundo pintando, só aqui no Brasil é que
está se falando isso”, e tem gente que realmente diz: “Ah, isso aí já era”, e os caras estão
fazendo outro tipo de trabalho e não querem saber... quando a gente sabe que não é assim,
a vida não é assim. Quantas vezes a gente ouviu sobre o samba: “Ah, essa coisa já acabou,
é sempre o mesmo acorde, aquela coisa quadrada” ... O que não era quadrado? Que cerveja
era essa que não era quadrada? Ora, era a bossa nova, sabe, o uso de acordes com sextas,
com nonas e tal, que já era de muito uso há muito... e as pessoas esquecem que já em 38,
40 e poucos, tinha um cara chamado Valzinho, violonista da Rádio Nacional, que fazia
umas composições e diziam “esse cara é maluco”, porque ele usava na harmonia dele
determinadas seqüências que não eram usadas por todos aqueles outros artistas. São
constantes na linguagem popular, que é isso que faz com que determinada música seja
popular, é isso que faz com que as pessoas se aproximem, se sensibilizem. São estas
constantes. Não quer dizer, também, que algo inesperado – não precisa ser revolucionário –
que está naquela linguagem, colocada como idéia por alguém, naquela forma, naquele
estilo, não possa também surpreender a pessoa, dependendo da sensibilidade dela, fazendo
com que ela, diante de algo novo pra ela, ela se toque, se sensibilize. Porque, senão, tudo
ficava parado. Alguns mais sensíveis percebem certas coisas e vão puxando outras pessoas
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Roberto Bozzetti
com suas idéias. Mas, muitas vezes, também não dá certo. A história mostra quanta gente
que chegou... e não aconteceu nada. Em última análise, o que eu acho que faz mesmo uma
coisa se tornar perene são certas construções que tocam as pessoas de uma maneira que eu
não posso julgar. O Paolo Scanelli, esse italiano que eu falei há pouco, falava assim que no
começo, na música contemporânea, as pessoas se interessaram, mas depois elas queriam
ouvir Bach de novo, queriam ouvir Mozart, queriam ouvir os caras lá de trás, que são coisas
que você não pode derrogar, dizer que já era. Você não pode chegar diante de uma obra de
Bach e dizer que já era. É um negócio de tal magnitude, que toca de tal maneira as pessoas,
toca gerações diferentes. Você pode dizer “isso aí a gente não usa” e tal, mas não apagar
aquilo, isso não existe. É como um samba de Noel, foi feito em 1930 e poucos, e você diz:
“Não vamos ouvir mais”... Como não vai ouvir?! Vai ouvir, cantar, tocar, gravar, porque é
maravilhoso, te sensibiliza, te diz coisas, e não só por palavras, que ele era um letrista
fantástico, mas não é só isso não, é um conjunto de coisas que está ali, que ainda faz parte
da vida de todo mundo. Eu, então, fico muito assim porque eu via... eu conversava com o
Xixa, que era o cavaquinista lá do pessoal de São Paulo, do Caçulinha. Um dia ele chegou
pra mim com o cavaquinho, que o cavaquinho é um instrumento limitado, né? No violão,
você faz um acorde com seis notas, no cavaquinho você faz com quatro, mas às vezes você
tem notas dobradas, o ré e ré, na afinação tradicional, lá-sol-si-ré. Quando você vai fazer um
acorde que tem uma sexta, uma nona, fica mais complicado, você tem que fazer uma
inversão, entendeu, e ele é complementado por outros instrumentos pra dar uma idéia
daquela nona dentro de um acorde, já que você só tem quatro notas. Aí ele aprendeu a fazer
uma inversão com uma sexta no cavaquinho. Você tem o dó maior no cavaquinho, que é
uma coisa bem simples. Tem o dó aqui [mostra no próprio braço], o mi aqui, tem o sol solto,
tem o dó aqui e tem outro mi aqui embaixo. Aí você faz o dó: [imita o som] “pró”... Mas aí
ele fez uma inversão e conseguiu colocar uma sexta e aí soou. Aí ele chegou: “Paulinho, olha
só que legal” e... [imita] primm...e deu aquele som, sabe, moderninho... e aí [ri] qualquer
acorde, lá vinha ele com o dó dele, não queria saber, tinha o dó dele, não queria saber se no
acorde o dó tinha uma sexta, uma nona, ou o dó mesmo, tradicional, normal. Não, ele
tacava aquele dó, e aí eu fiquei rindo, mas entendi a cabeça dele: “Puxa, descobri uma coisa
nova”. E eu dizia: “Não, peraí, agora você não pode usar esse dó, tem que usar o outro
porque a harmonia tá pedindo isso”. Ou não, porque, a essa altura do campeonato, a gente,
às vezes, se depara com coisas que chocam harmonicamente e a gente não liga muito, mas
o pessoal mesmo, safo, mais moderninho, quer tudo certinho, você não pode fazer um acorde
qualquer, com a desculpa de que desmoronou tudo, então “eu faço um acorde qualquer”.
Não é assim. Eu não sei se mais ou menos eu te respondi, peguei um assunto e fui embora...
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Canção e poesia, música e sabedoria: entrevista com Paulinho da Viola
É a tal coisa... ouvir a Clementina de Jesus cantar... como eu ouvi muito novo... ô... aquele
encanto de voz... eu não estou preocupado se aquilo que ela canta tem um acorde ou se tem
dois acordes... isso são preocupações que revelam uma sensibilidade mais limitada. Porque,
pra você apreciar, achar uma obra na sua grandeza... você precisa saber música? Você
precisa saber que acorde é aquele? Você ouve um choro de Pixinguinha ou uma
cantata de Bach, ou um samba do Chico... você precisa saber música pra saber que é
uma maravilha, aquilo? Não, mas tem algumas pessoas, eu me lembro de músicos
preconceituosos quanto ao pessoal que não sabia ler música, “esse aí é orelhudo”. E é uma
coisa limitada, porque, pra esses caras, como eles sabiam ler música, que é apenas um
aspecto da música, de técnica, identificar tríades e tal...
11 RB – Entra aí o prestígio da coisa escrita, né?
PAULINHO – É. É isso mesmo, né, o prestígio que dá o conhecimento da escrita, né? Mas
isso é uma questão também delicada, porque ... tem pessoas assim como o Tinhorão,
que acabam achando que o cara que sabe música, que conhece música, acaba sendo
privilegiado, e provavelmente ele deve achar que é um burguês, que estuda, mas que
provavelmente é um cara que não faz nada, e quem faz é o Zé, ali da esquina, que pega o
pandeiro, e... “aquele é que é o verdadeiro”...
12 RB – Acaba-se num beco sem saída.
PAULINHO – Claro. E não é isso, não é isso. Pode haver uma pessoa que tem talento, que
estuda, como outro que não estuda e é capaz de uma obra que sensibilize, toque todo
mundo... quer dizer, essa coisa eu vejo assim.
13 RB – Paulinho, eu gostaria de dar um rumo a esse nosso papo que trate mais de poética,
não no sentido exatamente de poesia, letra, mas poética como uma concepção de
trabalho. A questão inicial é a seguinte: há um lance muito interessante no mundo do LP,
que em visão comparatista com a literatura dá o que pensar, que é o fato de que o
LP, consagrando-se no mercado a partir da década de 60, com a geração de vocês (você,
Chico, Caetano, Gil, Milton, Edu), passou a ser algo assim como já era há muito tempo
na cultura letrada o livro, já que ficou possível que num único LP se tivesse uma visão
autoral (como a autoria de um livro) e não mais de canções avulsas como antes, quando
os discos de 78 RPM traziam só duas músicas. Entre outras coisas, essa é uma das razões
da geração a que você pertence ter se firmado quase imediatamente como uma geração
autoral. Assim, em paralelo, um LP de Paulinho da Viola era o que trinta anos antes era
um livro de poemas do Manuel Bandeira. Mas, diferentemente do livro, num LP a assinatura
Paulinho da Viola incorpora outras assinaturas autorais. Você não tem nenhum LP
exclusivamente autoral, só de canções suas – alguns são mais autorais, outros são
menos. Você vê uma relação que se estabeleça – se é que você já pensou nisso – entre
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seus sambas num disco e os sambas de outros autores que você canta nesse mesmo
disco? Você procura estabelecer uma unidade nessa conjunção da sua assinatura com
outras? Porque, no Memórias, de 1976, essa relação é muito evidente, no Nervos de Aço,
de 73, também, mas seria uma coisa que te comanda a produzir um disco nesse sentido?
PAULINHO – Não necessariamente. No começo, isto é, bem no começo, ainda nos
anos 60, eu tocava, era uma coisa, como eu falei, bem intuitiva, eu não tinha essa
preocupação, e mais tarde eu mesmo é que produzia os meus discos, quase todos, era uma
decisão minha mesmo. Mas eu me lembro que, quando comecei a gravar, eu quase não
compunha, a composição não era uma coisa que me atraía.
14 RB – Nessa questão de aprendizado, essa tua convivência com a assinatura desses outros
compositores sempre te estimulou a compor?
PAULINHO – Ah, sim, a compor, sim. Inclusive com os festivais, havia uma questão de
desafio.
15 RB – E nisso havia também esse tipo de relação com a sua geração, não? Ou pra você isso
se colocava mais com relação ao samba? Do tipo: “Vou fazer uma música melhor do que
a do Caetano”. Melhor, que eu digo, é naquele sentido de emulação.
PAULINHO – Não. Quanto a isso não. Era em relação ao samba. Engraçado é que agora eu
precisava achar uma coisa, que eu acho que tá aí na obra completa do Torquato Neto, agora
saiu em dois volumes, eu já andei procurando e não achei. É uma crônica, uma matéria que
ele fez comigo pra Última Hora e a tônica era exatamente essa, ele mostrando que aquele
universo do qual eu procurava falar, mesmo não sendo um representante legítimo, já continha
uma carga, não digo revolucionária, mas contestatória, porque fazia parte de uma realidade
na qual as pessoas não se envolviam muito, os morros, os redutos do samba, e eu percebia
isso porque eu transitava nisso, com clareza, esses dois universos com valores diferentes. Eu
falava isso com o Leon Hirszman, a gente convivia, eu falava isso e quando eu via os filmes
sobre esse universo, inclusive ele fez um, “Partido Alto”, do qual eu era o assistente que... eu
percebia que ele via a coisa de uma maneira diferente de como eu via. Eu sentia as coisas de
uma maneira diferente. Por ele ser um cineasta, de esquerda, cuja família era de subúrbio ou
da Tijuca, mas era diferente... eu falava isso: por exemplo, nós não temos filmes do
sapateado, da dança, ninguém fez um filme sobre a dança, e não é a dança em si, é o gesto,
o gestual, que é uma coisa que eu percebo que tem uma beleza, tem uma força que você vê,
que você percebe num Heitor dos Prazeres [aponta um quadro de Heitor que há na sala,
aproxima-se e começa a exemplificar]. Aquilo tá ali, claro, esse movimento de cabeça, esse
gesto, que é uma coisa do samba, apesar das figuras estarem sempre de perfil, mas você
percebe que há uma preocupação não só com a coisa plástica, mas com a vida em
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Canção e poesia, música e sabedoria: entrevista com Paulinho da Viola
movimento, com o significado, com os gestos que têm por exemplo na comunidade negra.
Como tem em todas. Mas na comunidade negra isso tem um significado muito grande porque
se você levar em conta que é uma comunidade que enfrenta a repressão, a discriminação...
Isso ao longo da história foi-se tentando resolver, não acho que foi uma coisa assim de
“tornar-se branco, embranquecer”, isso pode ter ocorrido num processo inconsciente, mas é
uma forma de você tentar assimilar determinadas coisas e transformar essas coisas. Que é o
que todo mundo faz, não é? Essa coisa antropofágica, que tá no Oswald e no personagem
síntese disso no Mário, com Macunaíma, é uma primeira aproximação dessa coisa, mas essa
coisa no fundo até hoje eu sinto que ela não é compreendida. O gestual negro quando se
manifesta através da sensualidade da dança, do movimento, é aceito... mas no cotidiano
ele não é compreendido. E a própria comunidade negra não tem muita consciência disso,
manifesta isso naturalmente porque faz parte do seu universo, do seu tempo, da sua história.
Isso se perde um pouco, claro, porque faz parte da dinâmica essa mistura, esta coisa de andar,
do andar como uma afirmação de poder muitas vezes, porque tem a ver com seus ancestrais,
tem a ver com os capoeiras antigos, com a malandragem, que em última análise é uma forma
de defesa. E essa coisa não é bem compreendida. Mesmo essas coisas as pessoas não
assimilam, não compreendem. Eu fui ver, por exemplo, Bucy Moreira cantando, tocando prato
e faca, dançando, lá na Sala Sidney Miller, e eu dizia: “Alguém tem que filmar isso”, Bucy
morreu e não teve nada. Os grandes dançarinos do samba... o Donga parece que tem assim
uma filmagem, acho que na TV Excelsior, ele entrou dançando, uma coisa curtinha...
16 RB – Num trabalho analítico, interpretativo da obra alheia (que é afinal de contas o que
eu estou fazendo com a sua obra), a gente pensa sempre em formalizar o conhecimento
do objeto que estamos estudando, com o cuidado de não cair em esquematismos que
falseiem a obra estudada em benefício da nossa própria formalização. De qualquer
maneira, é um risco inerente ao próprio ofício. Uma tentação grande de formalizar o
conjunto da sua obra, é de vê-la um pouco da seguinte forma: um primeiro momento, de
aprendizado, de familiarização com a linguagem do samba que você recebeu da sua
formação e dentro da qual você se exercita: seria o que Mário de Andrade chamaria, na sua
própria obra, de “obra imatura”, sem desqualificar o valor; a seguir, um segundo momento,
a partir de Coisas do Mundo, minha Nega, você se abre se não para uma experimentação,
para uma inquietação maior, onde muitas vezes aquele momento anterior é submetido a
uma espécie de tensão crítica – isso iria até Nervos de Aço de maneira bem realçada.
A seguir, um terceiro, em Amor à Natureza, de 75, e Memórias, você meio que
empreenderia um movimento de retorno, enriquecido daquela própria inquietação, mas
convencido de que o samba (e o choro, que você passa a executar cada vez com mais
freqüência) é de fato o seu universo. E, então, a partir daí parece que aquela tensão, aquela
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visão crítico-amorosa do samba, aquele distanciamento diminui um pouco e você não é
mais o aprendiz, mas assume o papel de mestre, exerce o seu domínio...
PAULINHO – Meio-oficial, né... [começa a rir]
17 RB – Como é?
PAULINHO – [rindo] Meio-oficial. É. Na qualificação dos artesãos historicamente era assim.
Primeiro você era aprendiz e, depois, meio-oficial, até chegar a oficial, marceneiro-oficial,
pedreiro-oficial, porque parece que o sujeito tinha que deixar o ofício, correr as várias oficinas
e aí, depois de certo tempo, ele se tornava oficial. O mestre já era uma coisa bem mais
avançada mesmo.
18 RB – E você se vê como meio-oficial?
PAULINHO – Eu me vejo como meio-oficial. É, o mestre já é alguma coisa bem superior...
19 RB – Essa sua ligação aí, com essa coisa das corporações de artesãos, já tem todo um
significado...
PAULINHO – De aprendizado, de disciplina. É engraçado, isso é uma coisa mais pessoal,
mas eu procurei a minha vida toda pelo mestre. Porque eu sempre acreditei que você tem que
aprender com o outro. E eu sempre procurei saber. Desde muito tempo eu não gostava que
ninguém fizesse nada pra mim. Igual em casa. Eu sempre aprendi tudo dentro de casa, sei
passar, por exemplo, uma roupa muito bem, sempre foi uma coisa que eu dei muito valor,
minha avó, minha madrinha era costureira. Eu dou valor a uma pessoa que usa a roupa que
faz, que sabe dar valor a uma roupa. Eu sei apreciar, eu vejo desfile de moda. Uma vez
descobriram isso, e a Marília Gabriela, muito irreverente, fez uma entrevista comigo,
preparou uma surpresa pra mim lá em São Paulo e fez lá um desfile de moda pra mim, bicho,
eu fiquei tão envergonhado... Por isso que às vezes eu não gosto de falar certas coisas. Mas
eu sempre fui uma pessoa muito curiosa, não aprendi a cozinhar, porque pra isso eu acho
que é preciso um dom, e a pessoa tem que ter prazer para saber e tem que ter talento pra
aquilo. Mas as coisas de casa, a mão-de-obra aqui é minha... eu sei, 110, 220, trifásico e tal.
E de certa forma isso, pra mim, desde menino, sempre foi uma necessidade. De pegar uma
coisa pesada, de sentir com a mão, eu toco violão. Eu gosto de pegar a mão e dar trabalho.
20 RB – Essa curiosidade tem a ver com o seu percurso. Você deixa um pouco o universo do
samba, vai percorrer, vai se exercitar em outros “ofícios” musicais, não é... outras oficinas.
Isso teria a ver de alguma forma com aquele certo distanciamento crítico de que falei,
a que você submeteu um pouco a linguagem do samba?
PAULINHO – Eu aprendi, sim, pela convivência com outro pessoal nos festivais, outro
universo...
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Canção e poesia, música e sabedoria: entrevista com Paulinho da Viola
21 RB – A sua curiosidade o levou também, não é?
PAULINHO – É, também. O festival tinha uma aura e aparecia – nem sempre – muita idéia
nova. De certa maneira eu procurava fazer uma coisa influenciado pela própria discussão
dos festivais e daquele contexto todo.
22 RB – A gente conversou uma vez por telefone sobre João Cabral. O contato com a sua
poesia é bem recente, segundo você me disse. E a poética do Cabral tem o lance da secura,
de tensionar a linguagem pelo questionamento da poesia sentimental, dessa linha da
tradição bem luso-brasileira, que ele busca transgredir. A sua poesia, de certa maneira,
nessa fase que eu chamei de distanciamento, de busca de uma contundência, se afasta da
linhagem mais sentimental, mais “poética” do samba. Você procura dentro do próprio
samba obras com maior contundência, caso de “Depois da Vida”, do próprio “Meu Mundo
é Hoje”, pela própria secura extraordinária do “Acontece”, cortante. Penso que se pode
pensar um paralelo cabralino aí em termos de postura. A poesia do Cabral lhe impressionou?
PAULINHO – Muito. Ela me surpreendeu porque quando o José Castello fez o trabalho dele,
de entrevista, ele desmistificava um pouco a impressão que o próprio Cabral tentava criar.
Pra ele, essa imagem que você falou aí, do seco, da transgressão da tradição sonora, musical.
E o Castello tentava de certa maneira mostrar que não era bem assim, que o João Cabral
tinha ainda essa musicalidade. Cabral me impressionou porque com aquela visão que ele
mesmo construía, eu fui esperando encontrar um poeta diferente do que eu imaginava, muito
mais árido... e não é. Mesmo a tradição da poesia, que é diferente da poética musical, da
letra... isso pra mim sempre foi bem claro...
23 RB – Até porque poesia é um fenômeno bem mais amplo do que literatura. Poesia é algo
bem mais antigo, existem povos que não têm literatura, mas têm poesia. Vincular poesia
à letra, littera, ao livro, é uma coisa que tem uma existência recente na história...
PAULINHO – Pois é, e aí eu li a poesia completa da Editora Nova Aguilar e a começar pelo
texto de apresentação, que eu achei tão... insuficiente. E me pegou que a poética dele não era
aquilo que eu esperava, não tinha a agressividade que está no olhar dele, no próprio
comportamento... na imagem do mal-humorado. É uma poética muito forte, tem uma coisa
de um discurso que ele encontrou... que é único, né?
24 RB – Você lembra do poema “O Ferrageiro de Carmona”?
PAULINHO – Não. Mas eu vou lá depois conferir.
25 RB – Pois é, ele diz que o trabalho bom é aquele com o ferro mais duro, que exige o
trabalho mais árduo, porque ali fica a marca do ferrageiro...
PAULINHO – O que é uma metáfora do que ele vem fazendo. A poética dele é a de reafirmar
o caminho dele. Mas tem uma doçura, de que talvez ele não se conformasse, né? Como é
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
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Roberto Bozzetti
que ele via essa doçura, essas coisas assim que meio que escapam? Estou falando isso porque
você sabe que eu fiz uma prova no Villa-Lobos, de composição, sobre o sistema serial e tirei
10. Eu fiz uma composição exatamente com os intervalos, respeitando o sistema, porque
aquilo é terrível, né? E não pode lembrar tonalidade no encadeamento, é outra coisa, uma
coisa mais árida. Você sabe que eu fiz, a professora não gostou da minha composição. Sabe
por quê? Do ponto de vista técnico estava correta, mas ela não gostou porque achou que
estava assim um pouco... brejeiro. Anos depois, falando com Arrigo Barnabé...
26 RB – Eu ia te perguntar se você mostrou pro Arrigo.
PAULINHO – Não, nem comentei isso com ele. Mas da primeira vez que eu fui ver o Arrigo
Barnabé, num negócio chamado... Circo Azul, no Planetário da Gávea... ele se apresentou lá,
entrava com uma capa, tocou Pixinguinha, as pessoas se olhavam assim... eu achei ele
surpreendente e me lembrei logo da Esther Scliar. Se ela ouvisse isso não ia entender nada,
porque esse cara consegue de um troço tão árido, inclusive abandonado pelos próprios cultores,
é uma coisa meio fracassada, e ele consegue dar uma brejeirice a isso, ele consegue uma espécie
de serialismo caboclo. E a minha professora não gostou porque disse que estava brejeiro.
27 RB – O termo que ela usou foi esse?
PAULINHO – Foi esse [rindo]: “Ah, essa música tá muito brejeira”... ela queria que eu fizesse
um serialismo como... o dos caras lá da Escola de Viena.
28 RB – Paulinho, quando as pessoas dizem que o choro é o jazz brasileiro, é uma coisa que
não se sustenta, né? São muito diferentes, não? O sentido do improviso num e noutro são
coisas diversas, né?
PAULINHO – São diferentes. O jazz tem uma coisa por princípio que é o seguinte:
formalmente ele é baseado em temas, sobretudo em temas em que os músicos revezam a sua
capacidade de variar, fazer variações. Isso exige muito conhecimento do instrumento, de
música... e de talento. Porque não basta só ter aquele conhecimento. E esse talento e essa
capacidade você tem em músicos do nível de um Miles Davis, Gillespie, Thelonious Monk,
o próprio Chet Baker... mas muitos que são ótimos tecnicamente, têm um conhecimento
enorme, são limitados porque não têm a criatividade desses caras, essa capacidade de
riqueza no sentido de improviso... eles falam “idéias”. Eles falam em “idéia”, “olha que idéia
legal”. Então, o fraseado que sai é uma coisa de momento, que nunca é a mesma coisa.
A capacidade de realização dessas “idéias” é variada e se dá em níveis diferentes, tem
idéias que permitem uma coisa mais sofisticada... Agora, isso foi num crescendo, de vários
momentos, do bebop ao free jazz. Então em vários momentos nessa coisa jazzística os caras
ficam procurando alguma coisa que ainda não... você ouve o Bitches Brew, do Miles Davis,
e é uma loucura... que chega a um ponto em que ele chega a quase ter só uma célula... seria
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Canção e poesia, música e sabedoria: entrevista com Paulinho da Viola
um João Cabral. Não tem mais a busca de uma melodia, como foi até uma determinada
época, antes do bebop. Os jazzistas mais tradicionais primavam pela melodia, por uma
coisa mais lírica, no bebop a coisa vem mais frenética, mostrando mais a técnica, só cara
muito bom é que pode. E as “idéias” vêm a partir daí, dessa postura. E aí tudo começa, tudo
tem importância, tudo tem importância nessa estrutura harmônico-melódico-rítmica, que é
a “idéia”. E aí os caras improvisam em cima daquilo. O improviso são variações que o
músico que conhece bastante harmonia faz no encadeamento harmônico. Só que a
harmonia, que é uma coisa baseada numa tríade, já que você pra ter um acorde precisa de
no mínimo três notas... se, nessas três, duas forem repetidas já não é um acorde. Agora, você
pode ter mais de três e tal. Mas a tríade define um acorde. Só que nesse acorde você pode ter
também outras notas. Por exemplo: o tom de dó maior, que não tem acidente. Você tem o dó,
o mi, que é a terceira, o sol, que é a quinta, e o outro dó. Isso é o tom de dó maior. Mas
acontece que não é só isso. Desde que a música foi temperada, que essa coisa ficou toda
sofisticada, vamos dizer assim, você tinha as regras, que na harmonia tradicional você não
podia romper. E era isso que tradicionalmente dava a dimensão do músico que tinha
conhecimento harmônico, era o mestre e tal. Certas dissonâncias não eram permitidas. No
avanço disso tudo, neguinho foi transgredindo essas regras, a ponto de de repente... não tem
mais acorde. A música passa a atonal, entra o sistema serial... antes tem o Wagner, tem
Debussy que usava muito a sexta, e cria uma coisa completamente nova que influencia até
os jazzistas. Eu particularmente nunca fiz uma análise propriamente musical disso, mas a
própria dona Esther falava isso, e a área dela era a de análise. Então, observe que são essas
regrinhas que vão sendo transgredidas. Então você pode ter um dó com a quarta, não só a
primeira, a terceira e a quinta. Se você bota uma quarta, você tem um fá, que é um meio
tom, logo pode ser aumentada, a quarta com sustenido até chegar ao sol. Isso no sistema
temperado. Você pode ter a quinta também aumentada, um acorde de dó com a quinta
aumentada. Se for a terceira menor, o acorde fica menor. Você pode ter a quinta diminuta, o
que já é uma outra formação. São essas mesmas notas, mas com acidentes. Pode ter a sexta,
que seria o lá, ou a quinta aumentada. Tem a sétima, bemol... E aí foi-se descobrindo que
neguinho podia fazer isso, e isso sustenta todas as tonalidades, todos os outros acordes. Se
você fizer isso de forma simultânea é acorde, mas se você fizer isso em seqüência, se, em vez
de escrever verticalmente, você dispuser essa frase, com divisão ou não, você já tem uma
melodia. E essa melodia, se você juntar ela toda verticalmente, ela pressupõe esse acorde.
Logo, o acorde que vai sustentar essa melodia está baseado nessas notas. Compreende? Só
que neguinho também transgride isso. De repente, entra com um acorde superposto, que não
tem nada a ver. Essa abertura, esse desregramento é que permitiu uma porrada de coisas que
leva ao esfacelamento do sistema. Então não se quer obedecer ao acorde pra inventar uma
música nova. No choro não tem isso. Agora, o choro mais novo se aproxima muito do jazz,
porque se começa a utilizar acordes que não são do choro tradicional.
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Roberto Bozzetti
29 RB – E como é que você vê isso?
PAULINHO – Ah, eu vejo com a maior naturalidade, até porque isso já é feito há muito
tempo. No próprio Pixinguinha. Dentro de outro universo, mas ele também faz isso. Já vi até
composição do mestre dele, o Irineu Batina, que morreu cedo, e já tava lá. Daí você imagina
o que é que não tinha mais pra trás. Porque o legal é que o músico quer conhecer cada vez
mais, ele quer o universo todo da música. Então é isso que faz com que neguinho fique
experimentando coisas. Por exemplo, tinha músicos que faziam isso pra testar a capacidade
de quem tá tocando com eles, como também pra mostrar que tá acima do comum. Tinha
por exemplo o trombonista Candinho, que fazia o “nó de Candinho” – olha o nome, nó – que
ele dava um nó em quem ia acompanhar. Então, pode ser impossível mesmo pro sujeito que
conhece muito, muita música, pegar. Lembro que o Jacob dizia: “Ninguém pode adivinhar”.
Eu não posso adivinhar o que o cara vai tocar depois. As coisas que eu conheço eu posso
acompanhar. Mesmo um choro que eu não conheça, ele pode ter um encadeamento
harmônico com uma estrutura já tradicional. Mas, de repente, ele pode ter uma pequena
modulação que derruba, que era “música pra derrubar” que os caras faziam de sacanagem.
E aí todo mundo ria, quá quá quá. Lembro que eu e o Rafael, eu no cavaquinho, ele no violão
e o Canhoto da Paraíba... e o Canhoto: “Agora eu vou tocar o ‘Salve-se quem puder’”... Pelo
nome, você já viu o que era. A primeira parte era uma delícia de tocar, mas quando entrava
a segunda tinha uma cadência toda em sétimas, previsível, só que pra acertar as casas era
uma dificuldade terrível... Aí Rafael: “Pára, pára, pára!”, e aí o Canhoto ria, se divertia,
ficava olhando, curtindo com a cara da gente. E a gente ia de novo, e pegava e tal, só que
na velocidade que o Canhoto tocava não dava pra gente pegar. E ele se divertia com isso,
de gozar a gente. Isso acontecia muito em roda de choro. Aí uma vez eu falei: “Olha, eu andei
fazendo choro que o pessoal andou gravando, o Nó em Pingo d’Água gravou, o Cristóvão,
eu vou fazer um choro pra todo mundo tocar, pô”, senão... não tem roda de choro. Se cada
choro que eu for tocar é tão difícil que ou você já vem treinado de casa ou... se não faz aqui,
qual é a graça, qual é a graça que tem no choro?
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
UM BREVE DISCURSO ACERCA DA
HISTÓRIA DA INTERPRETAÇÃO
DA BHAGAVAD GITA
Rubens Turci
Universidade Federal do Rio de Janeiro / UFRJ
Pesquisador Associado do Núcleo de Estudos Transdisciplinares
de Comunicação e Consciência – NETCCON.ECO.UFRJ
contato: [email protected]
Resumo: Este artigo discute a razão pela qual os pesquisadores ocidentais têm
dificuldades para identificar a teologia da Bhagavad Gita e que problemas de
interpretação surgiram da insistência em ignorar as características transcendentais do
texto, ressaltadas nos comentários clássicos, bem como nos artigos orientais
contemporâneos.
Palavras-chave: Gita; estilos acadêmicos; interpretação.
Abstract: This essay discusses the reason why Western scholars face difficulties in
identifying the theology of Bhagavad Gita, and what sort of problems in interpretation have
arisen from the insistence on ignoring the text’s transcendental characteristics, which were
pointed out both the classical comments, and in contemporary Eastern texts as well.
Keywords: Gita; styles of scholarship; interpretation.
Resumen: Este artículo discute la razón por la que los investigadores occidentales
tienen dificultades para identificar la teología de Bhagavad Gita y que problemas de
interpretación surgieron de la insistencia en ignorar las características trascendentales de
texto, resaltadas en los comentarios clásicos, así como en textos orientales contemporáneos.
Palabras clave: Gita; estilos académicos; interpretación.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
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Rubens Turci
INTRODUÇÃO
O tópico que me proponho investigar pode ser colocado na forma da seguinte
questão: por que os pesquisadores ocidentais têm dificuldades em identificar a
teologia da Bhagavad Gita1, e quais os problemas de interpretação que decorrem em
função da insistência desses pesquisadores em ignorar as características
transcendentais2 do texto, exaustivamente discutidas em diversos comentários
clássicos, bem como em artigos orientais contemporâneos?
A primeira parte desta investigação, portanto, reflete sobre a forma como as diferentes
traduções em língua inglesa aprimoraram o nosso entendimento sobre o texto. A
segunda parte discute alguns estudos orientais sobre a Gita, considerando, por exemplo,
os comentários de Tilak (1971)3, Gandhi (1930) e Aurobindo (1950). A terceira parte
compara o método exegético usado no Ocidente com aquele do Oriente e discute as suas
vantagens e desvantagens. A parte final reúne os principais resultados deste estudo e
informa sobre o estado atual das pesquisas acadêmicas em torno da teologia da Gita.
UM HISTÓRICO DOS ESTUDOS ACADÊMICOS E TRADUÇÕES DA GITA
Conforme Kapoor (1983), há no mundo mais de 3.000 traduções da Gita, em mais
de 50 diferentes idiomas. A primeira tradução para uma língua ocidental, publicada em
Londres, em 17854, deve-se a Charles Wilkins. Hoje, só em inglês temos cerca de
1.000. Algumas se tornaram clássicas e contribuíram significativamente para o
aprimoramento da compreensão da teologia subjacente ao texto. Por exemplo, há
aquela de Zaehner (1969), considerada a mais “filosófica”, que foi muito discutida no
passado. Anteriormente, Edgerton (1944) e A. Besant (1905), dentre outros, já
haviam oferecido traduções, hoje consideradas clássicas. Mais recentemente, pode-se
citar as traduções de W. Sargeant (1979), van Buitenen’s (1981) e Nicolás (1990).
1 Apesar do termo sânscrito Gita ser feminino e traduzir-se por “a canção”, em Português é comum referir-se à Gita no masculino,
que se traduziria, então, como “o canto”. Ou seja, em Português, encontra-se tanto a expressão “o Gita”, conforme preferem os
seguidores do movimento Hare Krishna, quanto “a Gita”, conforme a tradução do tropicalista Rogério Duarte (Bhagavad Gita –
canção do divino mestre. São Paulo: Companhia das Letras, 1998). Considerada por muitos uma Escritura Sagrada, a Bhagavad Gita
(Canção sublime) consiste de 700 versos e representa o momento do épico Mahabharata (constituído de aproximadamente
100.000 versos) em que a batalha decisiva está para se iniciar. Na Gita, Arjuna surge como o principal herói do exército dos
Pândavas, o lado mais virtuoso da família real. A visão do exército dos Kauravas, composto por inúmeros parentes e ex-aliados,
deprime Arjuna e o faz considerar a possibilidade de desertar da guerra. Por fim, em função do seu diálogo com Krishna, composto
por uma série de argumentos teológicos cordialmente tecidos, Arjuna consegue renunciar ao seu apego àquele conveniente estado
de apatia e inação, decidindo-se pelo cumprimento de sua missão no campo de batalha.
2 Em função das críticas ácidas dos missionários cristãos aos teosofistas presentes na Índia e ao seu método transcendental, o
“transcendentalismo” passou a representar evidência de falta de rigor e critério acadêmico.
3 O comentário Srimad-Bhagavadgitaä-Rahasya de Tilak apareceu em muitas línguas e em diferentes edições. Foi publicado em
marathi em 1915, em híndi em 1917 e em inglês em 1936. A edição inglesa mais acessível e referida, entretanto, é a de 1971.
4 Em 1787, o texto é traduzido para o francês e, em 1801, para o alemão.
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
Um breve discurso acerca da história da interpretação da Bhagavad Gita
Para se compreender as diferentes motivações desses scholars pode-se recorrer, por
exemplo, ao estudo realizado por Sharpe (1991). De acordo com a sua análise, haveria
três grandes padrões de interpretação da Gita, que poderiam ser classificados, em ordem
crescente de importância, como (1) sociopolítico, (2) transcendental e (3) orientalista.
Sharpe sugere que na esfera sociopolítica a Gita obteve mais atenção do que, de fato,
mereceria. O padrão transcendental, ele argumenta, viria exemplificado por intelectuais
influenciados pela geração de Emerson e Thoreau, pela Sociedade Teosófica, bem como
pelos autores ligados à contracultura dos anos 60. O padrão orientalista, de acordo com
a análise de Sharpe, estaria representado por aqueles acadêmicos que se basearam,
principalmente, nos comentários medievais de Sankara e Ramanuja para produzir
traduções “acadêmicas”. Hill, Edgerton e Zaehner representariam essa corrente,
enquanto os transcendentalistas estariam representados por intérpretes populares, em
geral, indianos – por exemplo, Gandhi (1930), Tilak (1971) e Aurobindo (1950).
Sharpe exemplifica o modo como os primeiros orientalistas costumavam resumir a
Gita: “Havia um Ksatriya [casta militar e política] chamado Krishna. Ele chamava seu deus
Bhagavad e seus seguidores auto-intitulavam-se Bhagavatas. Gradualmente, Krishna
passou a ser compreendido como o deus Bhagavad, e sua ‘religião’, bhakti [devoção, fé]”
(SHARPE, 1991, p. 50). Conclusões precipitadas como esta, citada por Sharpe, são
bastante comuns entre os orientalistas, que, via de regra, entretanto, costumam ser
muito cuidadosos ao evitarem quaisquer considerações transcendentais. Em geral, tais
conclusões resultam do emprego, no campo de estudos da Índia, da mesma metodologia
empregada para os estudos Bíblicos. Vale dizer, os orientalistas buscam distinguir, no
texto atual da Gita, um núcleo “original” de outras partes, que eles identificam como
acréscimos posteriores, devido à influência de diferentes correntes teológicas. Um
exemplo dessa estratégia etnocêntrica de desconstrução da idéia de unidade dos textos
sagrados de outras tradições, ainda muito em voga entre os missionários cristãos, pode
ser visto, em especial, no trabalho de Hauer (1934). Diametralmente oposta é a
perspectiva da corrente dos transcendentalistas ocidentais, que procuraram, bem à moda
de pensadores indianos modernos como Gandhi e Aurobindo, compreender a forma atual
da Gita como constituindo um texto teologicamente coerente e consistente.
Uma classificação um pouco distinta da apresentada por Sharpe, para se compreender
as diferentes motivações dos diferentes intérpretes da Gita, pode ser encontrada no
gigantesco estudo realizado por Malinar (1996). Ela classifica as escolas ocidentais de
investigação sobre a Gita em dois grandes grupos: o primeiro, denominado historicista;
o segundo, romântico. Em termos da teologia a que os membros de ambos os grupos
subscreve, pode-se argumentar que os historicistas, oriundos, em geral, da tradição
judaico-cristã, fazem uma leitura dualista da epistemologia da Gita. Eles apresentam a
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
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Rubens Turci
Gita como um texto que se aproxima, embora apenas de forma caricata, dos Evangelhos.
Krishna seria uma manifestação primitiva e rudimentar do divino, representando assim
uma espécie de “teísmo” ingênuo e caricato do “mono-teísmo” fundado em Cristo.
De acordo com os historicistas, o “teísmo” sugerido na Gita em torno da pessoa de
Krishna, embora simplório e rudimentar, estaria já sugerindo, de forma embrionária, o
gérmen do monoteísmo, que iria encontrar no seio da tradição judaico-cristã a sua
expressão mais perfeita e bem acabada. Muitos missionários cristãos, valendo-se dessa
hermenêutica, consideram que os devotos da Gita, por estarem mais próximos da verdade
do monoteísmo, são os que estão mais propensos a se converterem ao Cristianismo.
Curiosamente, entretanto, são os românticos que, decepcionados com a teologia
monoteísta e a sua conseqüente separação, em termos absolutos, de criador e criatura,
irão se fascinar com o texto da Gita. Os românticos rompem com a visão de mundo
dualista do ocidente judaico-cristão e se identificam fortemente com a epistemologia
não-dualista, monista, sugerida na Gita. Desse modo, rechaçam as críticas dos
historicistas de que o texto da Gita não apresentaria consistência semântica.
Nota-se do apanhado histórico de Malinar (1996) que as divergências entre essas
duas correntes de interpretação remontam ao tempo da primeira tradução da Gita
para o inglês, uma vez que ela fora realizada por Charles Wilkins a pedido do
governador-geral e representante do Império Britânico na Índia, Warren Hastings,
para quem a Gita apresentava uma “moralidade pervertida” (MALINAR, 1996, p. 24).
Daí que, pouco depois, em 1823, Schlegel traduziu o texto para o latim. Conforme
Malinar (1996), sua motivação maior resulta da sua percepção de que, de acordo com
a agenda dos missionários que financiaram a primeira tradução, o único interesse por
detrás daquela edição era conseguir uma formulação que permitisse aos críticos
refutar a Gita (MALINAR, 1996, n.10, p. 24). A perspectiva romântica e não-teísta de
Schlegel agrada a muitos intelectuais, inclusive W. von Humboldt. Entretanto, essa
tradução despertou também a ira de G. W. F. Hegel (1826)5 e Langlois, dentre outros.
5 G. W. F. Hegel (1826) escreve uma crítica à Gita, que já se encontra traduzida para o inglês, sob o título: On the Episode of the
Mahàbhàrata known by the name Bhagavad-Gità by Wilhelm von Humboldt – Berlin 1826 (New Delhi: Indian Council of
Philosophical Research, 1995). O tradutor, Herbert Herring, em sua introdução ao texto, denuncia o preconceito e etnocentrismo
de Hegel, que se mostra incompetente para apreender o pensamento da Índia como filosófico. Hegel já lecionava contra o
Hinduísmo na universidade desde 1805. Curiosamente, ele escreve em 1807 a sua famosa Fenomenologia do espírito, texto onde
muitos sanskritistas contemporâneos identificam os elementos essenciais do monismo indiano, conforme explicitado, por exemplo,
em Sankara. Mais curioso ainda que a Gita que Hegel procura desqualificar funda-se, exatamente, na idéia de “síntese” [yoga] de
distintas teses contrárias, obtidas do diálogo. O diálogo da Gita pretende ser a síntese dialética da tese védica fundada na
importância da ação, dos negócios e da vida em sociedade e a antítese upanishádica, fundada na não-ação, no ócio, na renúncia
aos valores do mundo e à busca da realização final. Daí que cada capítulo da Gita seja denominado a partir do termo yoga, como
uma síntese dialética particular. Para mais detalhes, sugiro a leitura de Wilhelm Halbfass em “Hegel on the Philosophy of the
Hindus”, (in German scholars on India. Embassy of FRG, vol. I, Varanasi, 1973, p. 116), e de Hegel’s Lectures on the History of
Philosophy vol. XV (ed. Lasson/Hoffmeister).
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Um breve discurso acerca da história da interpretação da Bhagavad Gita
Estabelece-se, desse modo, desde o início dos estudos sobre a Gita no Ocidente,
essa divisão radical entre os historicistas representantes da tradição judaico-cristã e
seus ferrenhos adversários românticos6. Se os românticos estavam dispostos a
defender o modo conforme eles sentiam as verdades da Gita, os historicistas se
mostravam igualmente dispostos a perseguir os mesmos ideais financiados pelo
Império Britânico e seu representante na Índia, Warren Hastings.
Fica claro que o financiamento massivo da perspectiva dos historicistas, hoje
também conhecida como a “tradição analítica”, fez com que o ponto de vista que
defendiam se tornasse hegemônico. Conforme discutido por Turci (2007), Holtzmann
dá início a essa trajetória vitoriosa em 1891 ao propor uma teoria segundo a qual os
Pândavas (ou seja, Krishna, Arjuna e seus aliados) representavam não o bem, mas o
mal. Daí, argumento, vários estudiosos privilegiaram abordagens que procuravam
desqualificar o texto. E. W. Hopkins defende, por volta de 1895, que a Gita não passa
de uma paráfrase upanishádica, produzida no seio de uma seita formada por
seguidores de Krishna. Por volta de 1905, Richard Garbe afirma que a Gita é
essencialmente teísta e que o texto teria sofrido modificações posteriores para
expressar algumas formas de panteísmo. Paul Deussen, o velho amigo de Nietzsche,
defende, por volta de 1906, que a Gita não apresenta nenhum valor filosófico e seria
apenas o registro da doutrina panteísta do atman, mas já com as sementes do teísmo
embutidas. Um pouco mais tarde, por volta de 1918, H. Jacobi afirma que a Gita seria
apenas o manual dos Bhagavatas e que somente bem mais recentemente o texto
teria sido “enxertado” no Mahabharata (TURCI, 2007, p. 185-195).
Conforme Turci (2007) descreve, apenas por volta de 1920, com Hermann
Oldenberg, tem início nas universidades a tentativa de se revalorizar a importância
dos aspectos transcendentais do texto. Oldenberg procura refutar a tese de Garbe de
que a Gita é teísta e enfatiza a importância das visões e experiências místicas que o
texto descreve. Por volta de 1925, Franklin Edgerton insere-se dentro desse mesmo
movimento e valoriza a Gita como um poema devocional e místico, cujo valor está
nos estados de exaltação e inspiração que consegue promover. Ou seja, a Gita não
deveria ser vista como um manual normativo, com instruções precisas e detalhadas
sobre como instruir e treinar o intelecto. Pelo contrário, a Gita falaria, antes, ao
coração7. Desse modo, defende Turci (2007), Hill, em 1928, e Lamotte, em 1929,
6 Schelling, por exemplo, afirma que a Gita representa uma das maiores realizações da mente humana. Hegel, por outro lado,
encontra na Gita a oportunidade ideal para atacar o que ele mais temia – os românticos, juntamente com o seu entusiasmo
espiritualista e simpatia pelo Oriente (MALINAR, 1996, p. 26-27).
7 Edgerton é considerado ainda um historicista, mas, há que se ressaltar, ele reconhece, à moda dos românticos, que a Gita possui
unidade de sentido: “We must think of the Gita primarily as a unit, complete in itself, without reference to its surroundings”
(EDGERTON, 1925, p. 2 apud MALINAR, 1996, p. 35).
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Rubens Turci
terminam por reconhecer a tese de Edgerton de que a Gita possui uma unidade de
pensamento. Entretanto, ambos procuram minimizar esse fato, argumentando que a
Gita representa um esforço dos Bhagavatas para dar certa unidade às diferentes
escolas que já identificavam Krishna com Vishnu.
Com especialistas como Charpentier, o historicismo, com a sua tese central de
que a Gita seria uma colagem de proposições contraditórias, ganham, a partir de
1930, novo impulso. A confusão aumenta quando Schrader (1930), com base na
referência existente em algumas das recensões do Mahabharata de que a Gita teria
745 versos8 (não apenas 700), lança a tese de que a Gita teria sido transmitida ao
longo dos séculos em mais de uma versão. Desse modo, nos anos seguintes,
com a ascensão do nazismo, a Gita seria associada à agenda política nazista.
Hauer (1934) e Otto (1939) afirmam que a Gita representa a herança da religiosidade
indo-germânica.
Belvalkar (1937), entretanto, refuta as teses nazistas e defende a Gita como um
texto consistente e como parte integrante do épico Mahabharata. Desse modo, a
visão romântica ganha ainda mais força a partir de 1941, com a ênfase na
centralidade das discussões de natureza ética da Gita. Conforme Turci (2007)
descreve, Roy, Zimmer, das Gupta e outros passam a criticar os scholars “teístas”
que, em função de seus compromissos ideológicos, mostravam-se sempre ávidos em:
(1) encontrar contradições no texto e (2) apresentar a Gita como um texto sectário
de teísmo.
Mais recentemente, uma gama bastante variada de estratégias tem sido utilizada
para elucidar aqueles problemas do texto que parecem resistir aos esforços dos
especialistas. As traduções mais recentes da Gita para o inglês, desde Zaehner, em
1969, até Nicolas, em 1990, são apenas alguns desses esforços mais contemporâneos
de compreensão da Gita.
8 Sem entrar nos detalhes da desconfiança de Schrader com relação à origem dos manuscritos dessa Gita de 745 versos publicada
pela Suddha Dharma Mandalam Series, só tenho a dizer que considero essa Gita, bem como o comentário de Hamsa Yogue bastante
interessante e fonte de inspiração para o estudo da Gita tradicional. Como esse texto está arranjado em 26 capítulos e com os
versos aparecendo numa ordem completamente distinta, a comparação entre as duas recensões não é de todo simples. Entretanto,
os sete versos, que considero a espinha dorsal do texto, são idênticos na Gita tradicional (BhG 2.2, 2.3, 2.11, 18.61, 18.62, 18.64
e 18.66) e na Gita recém-descoberta (BhG 2.3, 2.4, 2.2, 25.23, 25.24, 24.1 e 25.25), embora, de acordo com metodologias
distintas, o texto em sânscrito de ambas apresente, essencialmente, a mesma mensagem.
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Um breve discurso acerca da história da interpretação da Bhagavad Gita
A GITA NA VISÃO DE TRÊS INDIANOS DO SÉCULO XX
Uma vez que os debates sobre a Gita que ocorriam na Índia até o início do século
XX costumam ser ignorados pelos acadêmicos ocidentais, costuma-se acreditar que
a Gita foi “redescoberta” pela Grã-Bretanha e “reintroduzida” pelos ingleses na Índia.
A verdade é que os pesquisadores indianos têm um lugar e importância próprios.
Segundo Sharma (1987), eles deixam claro que a Gita não representa o pensamento
de um grupo religioso, mas, pelo contrário, a Gita procura validar e reconhecer a
importância das diferentes manifestações religiosas. Isso porque a Gita é, antes que
normativa, um tratado especulativo, envolvendo tanto elementos de filosofia quanto
de religião. Esse entendimento “romântico” da Gita aparece, por exemplo, nos
trabalhos de Tilak (1971), Gandhi (1930) e Aurobindo (1950), considerados os
principais representantes do pensamento da Índia do século XX9.
Em comum, esses três estudiosos defendem a tese de que o altruísmo, definido,
em termos éticos, em torno do conceito de lokasangraha (bem-estar social),
desempenha uma função central no texto. Com Tilak, essa tese privilegia o
entendimento sociopolítico do texto10; com Aurobindo, a discussão centra-se na
natureza mesma da ação altruísta, capaz de conduzir à salvação; e, com Gandhi,
talvez representando um ponto médio entre Tilak e Aurobindo, reforça-se a idéia de
lokasangraha como conseqüência do caminho de salvação.
O comentário de Tilak (1971) aparece pela primeira vez em inglês apenas por volta
de 1930. O texto procura avaliar as razões que se tem para se decidir por uma dada
linha de ação, ou seja, discute a Gita como um manual para a tomada de decisão
sobre como melhor agir. Em outras palavras, a Gita seria um manual sobre a teoria
da ação (karmayoga). Na Gita, Arjuna busca compreender o processo que o levaria a
executar todas as ações, não como simples deveres de ordem material, mas como
rituais sagrados, em nome do bem-estar social. O movimento que nos entusiasma e
nos retira da omissão, fazendo-nos entender que toda ação é política, representaria,
portanto, a essência mesma da disciplina verdadeiramente espiritual. Esse
movimento ritualístico, do ser e para o ser, seria experimentado como niskamakarmayoga (ou a ação altruísta, desinteressada e fundada no ideal da orthopraxis).
Karmayoga seria, portanto, a filosofia social e prática política que nasce da
9 Obviamente, há muitos pensadores indianos que representam esta visão, mas não precisamos recorrer ou nos referirmos a todos.
Apenas a título de exemplo, destacamos alguns desses expoentes: D. D. Vadekar, S. K. Belvalkar, C. Rajagopalachari, Vinoba Bhave,
Swami Chidbhavananda, K. Kalelkar, V. R. Kalyanasundara Sastri, K. M. Munshi, Swami Sivananda, G. V. Ketkar, D. S. Sarma, K. M.
Panikkar, Mahadev Desai, Jitendriya Bonnerjee, M. Rangacharya, K. Damodaran, G. W. Kaveeshwar, P. N. Srinivasachari, Rohit
Mehta, P. Nagaraja Rao, P. M. Modi, S. H. Jhabwala, T. M. P. Mahadevan, R. D. Ranade, Swami Vivekananda, Haridas Chauduri,
Paramahansa Yogananda, Bhagavan Das e M. N. Roy.
10 Tilak afirma que a Gita sintetiza o ativismo védico com o quietismo upanishádico.
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Rubens Turci
capacidade individual de se entusiasmar e aprender com cada ação, que deveria
sempre ser orientada para o ideal social de lokasangraha. Os adversários de Tilak o
acusam de ter feito da Gita um mero manual de ativismo político, destinado a
legitimar o poder da religião instituída. Entretanto, Tilak apenas deixa claro que
qualquer ação política expressa um certo conteúdo ético, desnudando o modo
conforme cada um vive a sua própria religiosidade.
Embora de forma um pouco distinta, também em Gandhi (1930, 1959, 1962 e
1971) a ação altruísta e desinteressada é sagrada e religiosa, independentemente de
ser, ou não, de natureza “política”. O entendimento de Gandhi sobre o conceito de
religiosidade presente na Gita permite que ele se utilize de termos religiosos num
sentido mais abrangente que Tilak. Em seu comentário à tradução da Gita, intitulado
Anasaktiyoga (tratado sobre a ação altruísta), ele apresenta a Gita a partir da sua
experiência social e se vale de termos tais como satyagraha (a força do espírito, o
poder da verdade), sarvodaya (o bem de todos) e ahimsa (não-violência) em sentido
quase que estritamente político.
A leitura da Gita como uma alegoria permite a Gandhi ir além da historicidade do
texto, trazendo metáforas e símbolos para o centro da discussão filosófica: a Gita
teria por objeto a descrição de uma via de realização através de ações altruístas, onde
o sujeito se faria de canal e instrumento para a manifestação de uma vontade
superior e holística. Gandhi encontra legitimidade para esta interpretação
transcendental ou romântica a partir da sua própria experiência pessoal com o texto,
que ele não entende como um tratado dogmático, conforme pretendem os
orientalistas ocidentais. De acordo com Gandhi, o poema da Gita pretende falar ao
coração, de modo a despertar em nós aquela intuição capaz de nos levar, na medida
do possível, a tomar, em cada situação que a vida nos apresenta, as decisões mais
apropriadas e justas.
Conforme entendo, Gandhi estaria justificado em sua interpretação do poema da
Gita em função de dois fatos principais: (1) o poder evocativo de um poema extrapola
até mesmo os limites imaginados pelo autor, e (2) a confirmação das suas ilações se
dava na prática, tanto em termos da sua capacitação individual, como das eventuais
transformações sociais, conforme testemunharia a própria Inglaterra. De fato, a Índia,
como um todo, sente a energia renovada de Gandhi, em função da sua disciplina
baseada na Gita. Ao representar para a Índia aquilo que Arjuna representava na Gita,
Gandhi desnudou o modo como os ingleses e seus missionários representavam os
mesmos interesses mesquinhos vistos nos pervertidos Kauravas – sempre dispostos
a conquistar, converter e impor seus valores e visão religiosa a qualquer preço. Ao ser
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Um breve discurso acerca da história da interpretação da Bhagavad Gita
forçado a olhar para Gandhi, o Império Britânico desperta para a ética multicultural
que aquele vive e se descobre selvagem, preso a imagens dogmáticas e belicosas.
Aurobindo (1950) também se deixa inspirar pela Gita, onde o termo sânscrito
shraddhá funcionaria, conforme entendido por Turci (2007), como uma espécie de
bússola a indicar o norte para o navegante dos mares da vida. As traduções ocidentais da
Gita, geralmente, traduzem shraddhá como “fé”, mas “fé”, diferentemente de shraddhá,
é sempre fé em algo que é exterior ao sujeito. Shraddhá, de acordo com definição da Gita,
representaria aquilo que Gandhi designa por satyagraha, ou aquela convicção e força do
espírito que se manifesta como entusiasmo para agir de forma altruísta. Shraddhá
resultaria, portanto, de um sentimento da verdade e se expressaria, politicamente, como
a capacidade humana de criar seu próprio destino e ideal de justiça social.
Aurobindo critica Tilak de forma velada, por este colocar a devoção religiosa como
mera subsidiária do ativismo político. Critica também Gandhi, pois este entende a
Gita como mera alegoria. Para Aurobindo, até mesmo a situação de guerra descrita na
Gita deve ser entendida como oportunidade para o exercício da devoção e
aproximação da esfera verdadeiramente religiosa. Apesar dessas pequenas
divergências, entretanto, os três concordam que a Gita apresenta consistência
semântica e discute um método holístico, pragmático e não-sectário de se aproximar
do divino. O fato é que a Gita funciona para esses três interlocutores como o elemento
catalisador de ações quase universalmente reconhecidas como legítimas. Em comum,
une-os a visão de que o texto trata do mundo como um teatro, onde os atores do
mundo interior ganham papéis e se tornam personagens do mundo exterior.
A QUESTÃO DO MÉTODO: O ORIENTE E O OCIDENTE
Para se poder avaliar os problemas de interpretação enfrentados nesses duzentos
anos de estudos acadêmicos sobre a Gita, é preciso, antes, compreender as
diferenças de metodologia que orientam os estudos sobre a Gita na Índia e no
Ocidente. Essas diferenças ficam evidentes quando se observa o modo como os
especialistas consideram o método alegórico, cuja utilização depende de uma certa
compreensão sobre a forma de relação entre a esfera da filosofia e a esfera da religião.
De acordo com Sharma (1987), entretanto, a incapacidade de estudiosos como
Otto11 para perceber aquilo que, para Huxley, parece óbvio, estaria relacionada com
11 Apenas para lembrar o modo como os críticos mais ferrenhos do método alegórico trabalham, basta citar The original Gita, de
Otto (1939), que defende a idéia de que a Gita “original” deveria constituir-se de pouco mais de cem versos.
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Rubens Turci
dois princípios que o Ocidente costuma aceitar quase como dogmas: (1) a crença
numa radical separação entre o domínio religioso e o filosófico e (2) a associação do
monoteísmo como a idéia de uma experiência religiosa superior e mais civilizada.
Esses dois princípios operariam em conjunto para impedir que a Gita pudesse ser
avaliada pelos especialistas ocidentais também em termos da sua alegoria.
Entende-se daí, por um lado, que o Ocidente tivesse se curvado à personalidade
altruísta e desapegada de Gandhi – prova viva de que uma vida baseada na ética da Gita
é possível. Por outro lado, compreende-se também que a interpretação da Gita feita por
Gandhi nunca tivesse sido levada a sério na academia ocidental, pois Gandhi argumenta
fazendo uso do método “alegórico”, não reconhecido como válido pelos estudiosos
ocidentais12. Entretanto, considerando-se que Krishna simboliza o divino e Arjuna o
humano, reconhece-se já na Gita um sentido alegórico. A Gita faz uso de alegorias e
metáforas no capítulo 11, por exemplo, para relacionar o domínio do absoluto com as
formas concretas do divino. A experiência de Arjuna do “Um” no “Muitos”
(BhG 11.13) parece ser uma metáfora para a relação do humano com o divino.
Então, a pergunta que se deve legitimamente fazer, antes de se desconsiderar os
resultados de Gandhi, seria: em que sentido faria Gandhi uso do sensus allegoricus?13
E a resposta, talvez, esteja com os românticos alemães e transcendentalistas
americanos14, pois, assim como Gandhi, eles também aceitam a Gita como um
tratado coerente de metafísica, onde elementos de religião e filosofia aparecem
unificados e harmonizados de tal forma que conseguem evocar os mais elevados
sentimentos do espírito. Em geral, quem faz uso de interpretações alegóricas não
está preocupado com “verdades históricas”, nem com o modo segundo o qual o
texto pretenderia manipular os demais. No caso da Gita, a alegoria permite ao leitor
compartilhar do simbolismo do sagrado e do anseio ardoroso de Arjuna de alcançar
a transcendência.
O fato de se acessar o texto como alegoria, entretanto, não significa que se esteja
caindo nas armadilhas da “retórica romântica”, pois a maneira como “sentimos” o
12 Conforme mencionamos, o método alegórico de interpretação foi especialmente atacado pelos missionários protestantes ingleses
na Índia, uma vez que esse método constituía a espinha dorsal da metodologia empregada na Sociedade Teosófica, abominada
pelos missionários. Para os membros da Sociedade Teosófica, a Gita seria a alegoria mais bem acabada da luta interior que se passa
em todo o ser humano. Besant (1905), por exemplo, trabalha com dois níveis distintos de interpretação: um exterior e outro
interior – o primeiro, histórico; o segundo, alegórico.
13 Ao longo de sua obra, Gandhi evita aquilo que possa justificar a violência, daí a sua insistência em se referir ao nível alegórico da
Gita, mais interessante que a representação de um estado de guerra.
14 Na Introdução a Kapoor (1983), Hendrick aponta que a Gita tem especial apelo para Thoreau e Emerson. Para Thoreau, até a obra
de Shakespeare parece juvenil, quando comparada ao Mahabharata – texto que estudou, chegando mesmo a publicar a sua própria
tradução do apêndice do Mahabharata, denominado Harivamsa. Emerson descobriu a Gita quando atendia às aulas de Filosofia
de Victor Cousin. Em carta, apresenta a Gita para Emma Lazarus, afirmando que, após ler a Gita, esta deveria refletir por uns
momentos, para então escrever um poema.
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
Um breve discurso acerca da história da interpretação da Bhagavad Gita
texto continua dentro de uma certa regulação lógica. É inegável que a alegoria aponta
para a importância que o sentimento e a intuição têm na Gita, mas a medida em que
isso se dá não é diferente daquela que ocorre quando ouvimos uma canção qualquer
que nos fala ao coração, por exemplo. Quando ouvimos uma canção, não nos
importamos tanto com as proposições lógicas verdadeiras que a letra possa conter,
pois o que conta realmente é como sentimos a canção – como ela nos fala ao coração.
E, quando escutamos com o coração, os sentimentos que a música e a poesia
provocam têm mais valor que as “verdades racionais” que se queira defender. No
caso da Gita, esses sentimentos parecem nos ensinar como, quando e porque
podemos, progressivamente, confiar mais em nossas próprias reflexões e insights.
Aldous Huxley (1944), por exemplo, considera a Gita um tratado sofisticado,
consistente e muito atual sobre a práxis. Huxley lê a Gita como um tratado
especulativo, centrado nas idéias de altruísmo e da socialização da espiritualidade.
Chega mesmo a afirmar em sua introdução à tradução da Gita feita por Isherwood
(1954) que a Gita representa uma das mais claras e compreensivas descrições disso
que ele chama de “filosofia perene”. Eliade (1987) também é de opinião que Huxley
opõe-se fortemente à interpretação, corrente entre os scholars ocidentais, de que a
Gita nada mais seria que uma colagem de muitos textos contraditórios, escritos em
diferentes períodos.
Os comentários orientais sobre a Gita sempre fizeram uso da alegoria como forma
de lidar com questões metafísicas, onde a esfera da filosofia não se distingue
completamente da esfera religiosa. Assim como os transcendentalistas americanos, os
especialistas orientais também perceberam claramente que o texto lida com
especulações filosóficas, ao mesmo tempo em que coloca a experiência e a atividade
humana para além dos limites da experiência ordinária. Daí Gandhi, por exemplo,
admitir fazer uso do método alegórico. Cabe ressaltar, Gandhi é fiel às condições
exegéticas definidas pelo próprio texto, em BhG 18.71 – a Gita, enquanto dialética do
ser, para se deixar revelar, deve ser considerada a partir do coração. Aliás, conforme
recomenda a própria Gita, assim deve ser com toda ação que se queira perfeita.
Em outras palavras, o entusiasmo, conforme presente em Gandhi, Tilak, ou
Aurobindo, bem como a quase obsessão com que procuravam a aproximação da verdade
(satyam), estão de acordo com uma longa tradição indiana de interpretação – tradição
esta que a academia ocidental sempre procurou ridicularizar. Entretanto, aqueles, como
Huxley, que não seguem a orientação hegemônica das universidades ocidentais de
desqualificar qualquer iniciativa fundada no método alegórico, conseguiram superar as
aparentes contradições do texto e retratar mais fielmente as suas verdades.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
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Rubens Turci
CONCLUSÃO
Não se pode desconsiderar o fato de que a Gita representa um tratado de
metafísica, contendo elementos de filosofia, ética e práticas espirituais. As
implicações da Gita não podem ser reduzidas, exclusivamente, à esfera da filosofia ou
da teologia. Por ser parte integrante do épico Mahabharata, a Gita precisa ser
entendida nesse contexto, conforme demonstrado por vários especialistas orientais,
bem como por românticos e transcendentalistas ocidentais. Os estudiosos
ocidentais filiados à tradição historicista, ou orientalista, ao insistirem em trabalhar
com a idéia etnocêntrica de que a Gita seja uma colagem de textos contraditórios,
não conseguem reconhecer o valor, nem a consistência semântica revelada pelo texto
quando se abandona a idéia dogmática de que a Gita não pode representar mais que
uma caricatura primitiva das Escrituras ocidentais.
Se os especialistas ocidentais sequer conseguiram consenso em torno de como
interpretar a Gita, isso se deve, principalmente, à rejeição ao método alegórico,
conforme utilizado por Gandhi, que reconheceu como o tópico central da Gita o
próprio método prático que ele estava começando a formular e aplicar. De igual
modo, no Ocidente, foram os românticos e os transcendentalistas que perceberam
que as alegorias atualizam a questão central da Gita – “como devo agir nesta dada
situação concreta?” – uma vez que essa questão não parece ter um a priori como
resposta, como crêem os seguidores da moral ocidental, fundada nos imperativos da
tradição judaico-cristã em dez mandamentos.
Surge daí a percepção da Gita como um tratado consistente sobre a ação. A
questão “como devo agir?” aparece na Gita vinculada às motivações que se tem para
agir desse ou daquele modo. Daí Gandhi (1957) referir-se, em sua autobiografia, aos
seus experimentos com as verdades relativas que já dominava e que funcionavam
como uma bússola a sinalizar em direção às verdades supremas, absolutas, às quais
não temos pleno acesso.
Em suma, aquilo que os indianos, românticos e transcendentalistas ocidentais
compartilham é essa compreensão de que a experiência de Arjuna não é
essencialmente diferente daquela a que é submetido, por exemplo, o Jó da Escritura
ocidental. Em ambos os textos, a questão “como devo agir face ao mal e ao
sofrimento?” aparece em contraposição com a existência de um princípio
transcendente, para além do bem e do mal – princípio este que os seguidores da
tradição historicista de estudos sobre a Gita, infelizmente, ainda insistem em
desconsiderar.
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
Um breve discurso acerca da história da interpretação da Bhagavad Gita
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
O MAGO ARTIFICIAL
RUBEM FONSECA
Luís Carlos de Morais Junior
Faculdade CCAA
Doutor em Ciência da Literatura pela UFRJ
contato: [email protected]
Resumo: Breve análise do romance Vastas emoções e pensamentos imperfeitos,
como uma amostra do procedimento literário artificialista pós-moderno de Rubem
Fonseca.
Palavras-chave: Rubem Fonseca; literatura brasileira; simulacro.
Abstract: Brief analysis of the novel Vastas emoções e pensamentos imperfeitos,
as an example of Rubem Fonseca’s artificialist postmodern literary process.
Keywords: Rubem Fonseca; Brazilian literature; simulacrum.
Resumen: Breve análisis de la novela Vastas emoções e pensamentos imperfeitos,
como un ejemplo del procedimiento literario artificialista posmoderno de Rubem Fonseca.
Palabras clave: Rubem Fonseca; literatura brasileña; simulacro.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
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Luís Carlos de Morais Junior
Rubem Fonseca produz contos, romances e roteiros violentos, que tratam de
temas caros aos romances negros, do tipo best-seller, livros que alguns chamam
de paraliteratura1, e que às vezes se vendem em bancas de jornal. Aparentemente, a
um leitor menos avisado, suas obras poderiam também apelar para as fórmulas fáceis
dos “mais vendidos”: sexo, mistério, violência, armas, suspense, finais inesperados,
frases rápidas, parágrafos ágeis, ação quase sem descrição, uma dicção atlética, sem
adiposidades, impecável.
À parte serem seus livros best-sellers efetivos, pois vendem bem, não podemos
pensar que sejam apenas isto. São romances e contos que trabalham o tempo, e
o tempo todo, com simulacros, inovando ainda, pelo que apresentam algo como
simulacros de simulacros (DELEUZE, 1974)2.
Neste artigo enfatizo o tema dos simulacros, por sua conexão com o que considero
essencial na obra de Rubem Fonseca, o seu artificialismo. Recusando totalmente
qualquer naturalismo filosófico ou literário, apesar de não partir para radicalismos de
linguagem literária, a obra de Rubem Fonseca se desenvolve na ambiência de um
artificialismo radical, algo que poderia ser conceituado, por exemplo, a partir da leitura
de A anti-natureza, de Clément Rosset (1989)3.
Há uma espécie de ilusionismo, de magia de circo, nas histórias do mago artificial,
tão aparentemente naturais e, no entanto, realçando justamente a sua impossível
naturalidade, tão agradáveis/desagradáveis, que irritam, ou fazem rir, e às vezes fazem
rir e irritam ao mesmo tempo.
Desde os primeiros contos até os romances mais recentes, Fonseca manifesta uma
escritura com estrutura cinematográfica. A mistura de gêneros no interior de uma
mesma obra é também uma característica bem contemporânea de sua produção
literária. Por exemplo, seus poemas-contos, e o fato de que, a par de escrever reais
roteiros para o cinema, O selvagem da ópera é um romance-roteiro, um texto híbrido
que já vale ao mesmo tempo pelos dois. Fonseca se exercita ainda em metalinguagem,
produzindo teoria da arte, idéias sobre artes plásticas ou teatro. Sua produção mostra
uma multiplicidade surpreendente de meios e recursos.
Mas, o que mais “irrita” em Rubem Fonseca – “irritar” sendo aqui uma palavra
esotérica (a palavra-valise que cruza duas séries de significado, como nos mostra
Deleuze em Lógica do sentido), misto de provocar, fascinar e fazer rir com um certo
1 Não concordo com tal classificação, ou ainda a de subliteratura, pois obras de arte podem ter qualidades variáveis, sem que com
isso sejam geralmente consideradas subobras; por exemplo, um filme ruim é um filme ruim, e não paracinema ou subcinema.
2 Deleuze utiliza o conceito de “simulacro”, e depois o abandona, nas suas obras posteriores, em favor do “virtual”; para estudar
Rubem Fonseca, porém, aquele nos parece indispensável.
3 Ver também, do mesmo autor: Lógica do pior. Trad. Fernando J. F. Ribeiro e Ivana Bentes. Rio de Janeiro: Espaço e Tempo, 1989.
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O mago artificial Rubem Fonseca
terror – é o que relança o nosso tema. Não podemos mais antever, ali, naturalismo
ou ficção artificiosa, que se caracteriza apenas por se furtar à percepção comum. Há
apenas um duro e cristalino artificialismo, que produz romances que se poderiam
apresentar como um decalque da “vida” e do cotidiano, onde quer que ocorram, mas
de certo modo paradoxal, sem que, por isso, possam ser considerados mais naturais
ou menos artificiais.
O livro de estréia de José Rubem, como o chamam seus amigos, foi
Os prisioneiros4, um volume de contos, gênero no qual se firmou, tornando-se, a
partir daí, um dos grandes contistas pós-modernos, que ombreia, no gênero, com o
Machado realista e o modernista Mário de Andrade.
Em 2004, foi publicada, pela Companhia das Letras, a reunião 64 contos de
Rubem Fonseca5. Algo a se destacar quanto a essa antologia é a alteração na disposição
do texto, pois os contos haviam sido publicados, originalmente, em coletâneas
independentes, que os reuniam parcialmente, de modo variado, a cada vez. Assim,
cada forma de reunião, cada “montagem” dos contos, lhes comunicou um outro
aspecto, agenciando relações inéditas entre eles. A leitura dessas publicações sucessivas
torna-se interessante, pois fornece novos recursos de recuperação semântica.
Ao mesmo tempo em que cada obra se afirma na sua autonomia, como estrutura
independente, um sistema gerador do seu próprio sentido, a projeção dos contos
em séries de publicações renovadas manifesta uma tendência característica da arte
contemporânea, como a serialização de imagens em Volpi e Andy Warholl.
4 Os prisioneiros (GRD, 1963; Cia. das Letras, 4. ed., 3. reimpressão, 2001), ao qual se seguiram: A coleira do cão (GRD, 1965; Cia.
das Letras, 4. ed., 1. reimpressão, 2001); Lúcia McCartney (Olivé, 1967; Cia. das Letras, 6. ed., 4. reimpressão, 2001); O caso Morel
(Artenova, 1973; Cia. das Letras, 3. reimpressão, 1999; Record/Altaya, coleção Mestres da Literatura Contemporânea, 1998); Feliz
ano novo (Artenova, 1975; Cia. das Letras, 2. ed., 15. reimpressão, 2001); O cobrador (Nova Fronteira, 1979; Cia. das Letras,
3. ed., 6. reimpressão, 2001); A grande arte (Francisco Alves, 1983; Cia. das Letras, 12. ed., 17. reimpressão, 2001; Record/Altaya,
coleção Mestres da Literatura Contemporânea, 1998); Bufo & Spallanzani (Francisco Alves, 1986; Cia. das Letras, 24. ed.,
12. reimpressão, 2002); Vastas emoções e pensamentos imperfeitos (Cia. das Letras, 1988; 15. reimpressão, 2001. Planeta/De
Agostini, coleção Grandes Escritores da Atualidade, 2003); Agosto (Cia. das Letras, 1990; 2. ed., 23. reimpressão; Record/Altaya,
coleção Mestres da Literatura Contemporânea, 1995); Romance negro e outras histórias (Cia. das Letras, 1992; 2. ed.,
6. reimpressão, 2001); O selvagem da ópera (Cia. das Letras, 1994; 4. reimpressão, 1999); O buraco na parede (Cia. das Letras,
1995; 4. reimpressão, 2001); Histórias de amor (Cia. das Letras, 1997; 2. reimpressão, 2001); E do meio do mundo prostituto só
amores guardei ao meu charuto (Cia. das Letras, 1997; 1. reimpressão, 1997); Confraria dos espadas (Cia. das Letras, 1998;
4. reimpressão, 2002); O doente Molière (Cia. das Letras, 2000; 1. reimpressão, 2000); Secreções, excreções e desatinos (Cia. das
Letras, 2001; 4. reimpressão, 2002); Pequenas criaturas (Cia. das Letras, 2002; 2. reimpressão, 2002); Diário de um fescenino (Cia.
das Letras, 2003); Mandrake: a Bíblia e a bengala (Cia. das Letras, 2005); Ela e outras mulheres (Cia. das Letras, 2006).
5 Antologias: O homem de fevereiro ou março (Artenova, 1973); Romance negro, Feliz ano novo e outros contos (Ediouro, 1996); Contos
reunidos (Cia. das Letras, 1994; 6. reimpressão, 2000); 64 contos de Rubem Fonseca (Cia. das Letras, 2004). Participações em
coletâneas: “Abril no Rio, em 1970”, in Onze em campo e um banco de primeira (Relume-Dumará, 1998); “O agente”, in
Trabalhadores do Brasil (Geração Editorial, 1998); “A força humana”, “Passeio noturno I”, “Passeio noturno II”, “Feliz ano novo” e
“A confraria dos espadas”, in Os cem melhores contos brasileiros do século, org. de Ítalo Moriconi (Objetiva, 2000); “O caso de F.A.”
e “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”, in Lapa do desterro e do desvario (Casa da Palavra, 2001); “Família é uma merda”, in
Vinte ficções breves, (Unesco, 2002); “O cobrador” e “O exterminador”, in Os 100 melhores contos de crime e mistério (Ediouro, 2002).
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
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Luís Carlos de Morais Junior
Significados saltam à vista. O volume que reúne os 64 contos parece apresentá-los
como se fossem novos, mesmo quando já havíamos lido as coletâneas anteriormente
publicadas. Podemos reparar que eles se ligam de muitas maneiras, os personagens
retornam, mas com marcas individuais e/ou narrativas que os identificam. A cada
vez que os personagens reaparecem, ao longo das obras, apresentam diferentes
características físicas e psicológicas.
A teoria do pós-modernismo é muito controvertida; no entanto, penso que não
podemos considerar as produções sociais e culturais do Ocidente posteriores à
Segunda Grande Guerra, à bomba, à robótica, à cibernética, à informática, ao início
da conquista espacial, à contracultura e à queda do Muro de Berlim como ainda
consistentes com o mesmo solo epistemológico modernista da primeira metade do
século XX.
Leitores de As palavras e as coisas, de Michel Foucault (1987), entendem, às
vezes, com rigidez acadêmica, que sempre será modernidade enquanto ainda houver
Ciências Humanas e a forma homem. Mas podemos observar que, dentro das
próprias Ciências Humanas, a forma homem está sendo ultrapassada. Foucault
mesmo manifestou, em algumas de suas entrevistas, ter registrado a transição de
uma longa era, a que teria pertencido a sociedade disciplinar do século XIX, à era
atual. Iniciando-se na segunda metade do século XX, nela se desenvolve já outro tipo
de formação social, designada também por Deleuze como sociedade de controle.
Isso, no contexto foucaultiano, que lida com o conceito de a priori histórico
enquanto estrutura da episteme de uma época, irredutível a qualquer outra, significa
a necessidade de repensar as formas culturais da atualidade, pois elas não são
mais adequadamente conceituadas pelos parâmetros de definição daquilo que vinha
se apresentando até aqui. As noções do fazer artístico, científico e político se
transformaram, de modo que uma metalinguagem precisa ser configurada para que
se recupere conceitualmente aquilo que já está em marcha na efetividade histórica.
As teorias que se preocupam com os fenômenos enfeixados no rótulo
pós-modernismo se engajam na via dessa tarefa. Nesse sentido, a compreensão da
obra de Fonseca no Brasil pode fornecer importantes aportes na abrangência do que
se revela efetivamente atual no campo da literatura.
Rubem Fonseca é o escritor que mais faz a comunicação das mídias entre nós, não
só entre cinema e literatura, mas entre todas as artes, como realizador e pensador.
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
O mago artificial Rubem Fonseca
Rubem Fonseca é transdutor, o que significa que faz a transdução, a “tradução” de
uma mensagem constituída em certo código para outro código.
A relação entre cinema e literatura é importante, talvez um dos traços mais
característicos de sua obra; o que também é um tópico da produção pós-moderna,
como nos exemplos de Robbes-Grillet e Almodóvar.
Na infância, Rubem Fonseca foi muito influenciado por sua babá, que namorava
um bilheteiro, e levava o futuro escritor, desde os dois anos de idade, diariamente, ao
cinema, onde ele assistia às sessões.
Conforme observa Sérgio Augusto:
[...] Em seus contos, a influência do cinema quase que só transparece
na linguagem ágil e elíptica do autor. Há um médico que se parece
com Carlitos em “Os Prisioneiros”, uma frustrada ida ao cinema em
“Madona”, um cartaz do filme “Bom-Dia Tristeza” em “Relatório de
Carlos”, e uma acusação ao escritor de “Corações Solitários” de que
teria plagiado um filme italiano – o que é pouco se comparado com as
referências acumuladas em seus romances. Em “O Caso Morel”, um
personagem roda filmes em super-8 e uma mulher sonha com a carreira
cinematográfica. Wexler, o sócio de Mandrake em “A Grande Arte”,
herdou seu nome do diretor de fotografia Haskell Wexler. Fala-se, em
“Bufo & Spallanzani”, de Clara Bow e Jean Harlow, de filmes dublados,
e um encontro é marcado na porta do cine Art-Palácio, em Copacabana.
(AUGUSTO, 1988)
Mas é somente no livro Vastas emoções e pensamentos imperfeitos que se apresenta
o cinema como assunto principal. Há uma verdadeira obsessão do narrador: comparar
os fatos que vão acontecendo a cenas de filmes, utilizando-os como fonte de
informação sobre a realidade e fonte de inspiração para suas ações.
O romance mistura gêneros, pois encena relatórios de pesquisa sobre assuntos
disparatados, como pedras preciosas e a política soviética, da revolução à Perestroika.
Já o tema de uma possível esquerda brasileira está entrelaçado com a culpa do
personagem, estabelecida por outros, por não ser de esquerda, o que repõe o que há
de problemático e contraditório no papel do intelectual.
Outro motivo de culpa, constante nos seus contos e romances: o narrador se
sente responsável pelo suicídio da mulher que amava, pois dirigia o automóvel no
momento do acidente que a tornou paraplégica. Sendo bailarina, ela se suicidou.
Desde O caso Morel, o personagem traz a dubiedade de ser violento e cruel com a
mulher, e no entanto se dizer inocente, como se sempre fosse obrigado a agir assim,
ou tudo fosse um mal-entendido.
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Luís Carlos de Morais Junior
A ambigüidade da situação do intelectual se comunica àquela do homem numa
sociedade machista e instável, ao mesmo tempo em que a pessoa não pode se desfazer
de seus próprios sentimentos, ainda que se descubra impotente para transformá-los
em ação num espaço social que torna impessoais e burocratizadas as relações e as
instituições, banalizando o que pudesse haver de mais estranho ou inquietante.
“Agarrei-a pelo cabelo, delicadamente, e levei-a para o quarto. ‘Se você quiser, pode
me bater’, disse Liliana.” (FONSECA, 1988, p. 83)
E, ainda, o romance é sobre o grande pequeno contista judeu soviético, Isaak
Bábel. O narrador é um personagem sem nome, cineasta que não sonha imagens,
só palavras. Revela-se a graça da situação, pois o personagem, que é um cineasta, e
que devia lidar com imagens, é agora personagem de livro, onde não há imagens
reais, e o cinema que a prosa fabrica para o leitor é todo imaginário. Ou, ainda, a
brincadeira meio escondida ou com pessoas de seu conhecimento, pois, invertendo o
procedimento, o autor declara que sua inspiração é sempre de imagens, nunca de
idéias ou palavras. E o humor de parecer que o personagem está fazendo uma crítica
implícita ao próprio livro onde ele vive, ao mundo que o torna possível: “Vou resumir:
meu sonho é como se estivesse lendo um livro mal escrito” (FONSECA, 1988, p. 153).
Referindo-se a esse personagem, Sérgio Augusto observa muito bem: como “a
maioria dos narradores e protagonistas de Rubem Fonseca, ele é um retrato sublimado
de Zé Rubem”. Augusto fornece, também, um informado inventário de algumas das
muitas citações e situações cinematográficas do romance e do:
[...] herói que parece uma bricolagem dos que Hitchcock manipulou em
“Janela Indiscreta”, “Intriga Internacional” e “Cortina Rasgada”, o novo e
excitante thriller de Rubem Fonseca resolve algumas de suas passagens à
maneira do mestre. Nenhuma de forma tão explícita como a tumultuada
fuga do narrador e sua namorada de um restaurante da Zona Sul do Rio,
no final do oitavo capítulo. Encurralado por um bandido, o casal provoca
uma confusão no restaurante para atrair – e ser salvo – pela polícia. Não
foi assim que Cary Grant livrou-se de dois bandidos durante um leilão em
“Intriga Internacional”? [...] Curiosamente, não há qualquer referência
direta a Hitchcock em todo o livro. O autor compara alguns de seus
personagens aos atores Sidney Greenstreet, Alexander Knox, Burt
Lancaster, Richard Widmark e Charles Laughton, tira o chapéu para uma
dúzia de cineastas (John Huston, Orson Welles, Max Ophuls, Stanley
Kubrick, Henry Hathaway, Ingmar Bergman, Istvan Szabo, Abel Gance,
Eric Rohmer, Wim Wenders, Allan Dwan, Roberto Rosselini, Rainer
Fassbinder), deixando Hitchcock oculto por elipse. A homenagem a Akira
Kurosawa (p. 115) vale apenas pela intenção, pois quem dirigiu o filme
(“Harakiri”) em que o ator Tatsuya Nakadai “abre a barriga com um pedaço
de bambu” não foi Kurosawa, mas Masaki Kobayashi. (AUGUSTO, 1988)
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
O mago artificial Rubem Fonseca
Pela reversão da piada, pelo sonho sem imagens e só com palavras, por ser um
escritor que parece tanto com o autor, pelo autor ter declarado que sua biografia está
nas suas obras, e por outras coisas mais, o romance parece um jogo de espelhos. Os
personagens querem ganhar vida e invadir o real, conscientizar-se da sua presença
no mundo, como se o artifício fosse ou lutasse para ser a realidade mais efetiva.
Assim, eles não são cópias do que deveriam ser pessoas reais, mas simulacros que
desejam reverter seus modelos, roubar a realidade que se esvaziou, ela própria, de
seus caracteres modelares. Simulacros de simulacros, pois tampouco se relacionam
a si mesmos, mas evocam outros personagens em outras obras, destacados de seus
contextos.
Ocorre o mesmo na cena em que o personagem cineasta vê no restaurante um
sujeito que parecia seu pai doente, com face esquálida e envelhecida. Ele quase lhe
dirige palavras ríspidas, pois o homem o encara, mas então percebe que era a sua
própria face que via, no espelho. Como Boris Schnaiderman (SCHNAIDERMAN, 1980)
observa sobre os contos de O cobrador, temos aí mais uma referência importante a
Machado, neste caso, ao conto “O espelho”.
Quase ao final do romance, quando ele precisa desesperadamente entrar no
hospital para conversar com Gurian − e justamente aí seus blefes não funcionam
como costumam −, ele se vê de novo no espelho, porém não se reconhece.
Havia um espelho no vestíbulo do hospital. Olhei minha imagem e a
imagem de Paulino. Paulino parecia um médico de filme americano,
limpo, bonito, confiável. Eu parecia mesmo um maluco, de filme francês,
em que o limite entre excentricidade e loucura não está bem definido.
(FONSECA, 1988, p. 28)
Essa autoconsciência atravessando vida e obra pode bem ser a causa dessa
espécie de defesa expressa pelo personagem Boris Gurian (FONSECA, 1988, p. 76).
Pois o livro é uma declaração de amor a um escritor de várias formas injustiçado: o
homem fraco diante da gigantesca estrutura estatal que o engoliu e que se revela para
o narrador como o maior contista de todos os tempos. É também um pensamento
sobre a revolução soviética, dos primórdios até o fim, com a perestroika.
Os personagens discutem a política russa e soviética, desde Lênin, passando por
Stalin, Kruschev e Brejniev, até chegar a Gorbachev. Há mesmo o carismático ex-padre
curandeiro Corcunda, que nos faz lembrar Rasputin, assim como o frágil Alcobaça
traz algo do filho doentio do último czar, Alexandre.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
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Luís Carlos de Morais Junior
Outra referência é uma verdadeira homenagem a Guimarães Rosa, nascido na
cidade pela qual passa o ônibus do personagem, “[...] um lugar onde nascem pessoas
importantes [...] Cordisburgo só poderia me alegrar” (FONSECA, 1988, p. 276).
A recepção dessa literatura pós-moderna, pois feita de referências e reminiscências
do já lido, equivale à experiência virtual de assimilar vários livros muito compactados
e rápidos, aglomerados num só.
Um deles é sobre a literatura. Fonseca não fala de cinema, fala sobre a escrita e a
ficção, a qual, para ser bem compreendida hoje em dia, precisa ser comparada com,
iluminada por e diferenciada do cinema. Ver sobre isso, por exemplo, as discussões
com Gurian, em que este representa a literatura, enquanto o narrador fala pelo cinema:
Puchkin dizia que precisão e brevidade são as principais qualidades
da prosa. [...] O cinema não tem os mesmos recursos metafóricos e
polissêmicos da literatura. O cinema é reducionista, simplificador, raso.
O cinema não é nada.
[...]
Gurian achava impossível o cinema criar na mente do espectador uma
interação complexa, profunda e permanente de signos e símbolos,
conceitos e emoções como a que a literatura estabelecia com o leitor.
(FONSECA, 1988, p. 56 e 77)
Há a inquietante questão dos religiosos que exploram a fé do povo, mostrada por
José, o irmão do protagonista, que vai ficando cada vez mais rico com sua
pregação. José compra um canal de TV e quer ser político, talvez até presidente
(FONSECA, 1988, p. 17). O próprio narrador vai relativizar o conceito que tem do
irmão (FONSECA, 1988, p. 22).
Todos são cruéis, como se sob a camada falsa da aparência se ocultasse o brilho
do diamante verdadeiro; como o médico, que quer obrigar o personagem a urinar
na frente da enfermeira, e mostra sua impaciência e brutalidade, com seu olhar
rancoroso, ameaçando colocar uma sonda (FONSECA, 1988, p. 229).
O “irmão” José traz a dupla ironia de seu nome (o mesmo do autor), pois é
realmente irmão do narrador (todos o chamam “irmão”, pela convenção religiosa).
O nome remete ainda ao personagem bíblico, que foi traído pelos irmãos e se salvou
por saber interpretar sonhos. Ora, sabemos que o problema do protagonista está
todo entremeado com seus sonhos surrealistas, e o segredo do roubo do diamante é
revelado pelo sonho do amigo, que ele não perdoa por roubar, assim como não
perdoa ao irmão; no entanto, com a maior facilidade do mundo, justifica o seu
próprio roubo das pedras preciosas e do suposto manuscrito de Isaak Bábel.
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
O mago artificial Rubem Fonseca
Os dólares jorram na vida dos dois personagens, sem que eles dêem muita
importância para isso, tal é a sua fartura. O narrador chega a rasgar dólares num
restaurante, para convencer a namorada a viajar – e Rubem Fonseca mostra que
ele mesmo o fez, quando nos conta que as cédulas estadunidenses são muito
resistentes e difíceis de rasgar, o que ele só pode ter averiguado tendo-o feito ele
mesmo, brincando de mesclar ficção e realidade, razão e loucura, glosando o mote
que diz que só um louco é que rasga dinheiro.
O único valor do personagem, que é aceito, ou pelo menos noticiado, por todos,
é ter filmado A guerra santa, baseado em Os sertões, de Euclides da Cunha. E aí, mais
uma vez, o personagem aparece como um ladrão, um aproveitador. Sua quase-namorada
Liliana acusa-o de “ter sido salvo pela própria ignorância” (FONSECA, 1988, p. 32),
quer dizer, por não conhecer as convenções técnicas e de linguagem que todo
cineasta conhece, ele pareceu inovar, quando o que na verdade ocorria, segundo ela,
é que ele errava, e brabo; como se não pudesse ver, ou visse tudo de uma forma
caótica, confundindo narrativa e documentário, realidade e ficção. “[...] Mas a rigor
não existe essa coisa chamada documentário, tudo é montagem, tudo, no cinema, é
fictício, de uma forma ou de outra.” (FONSECA, 1988, p. 208)
O balé dos mendigos, que vai ser o filme que o leva a conhecer Ruth, a bailarina e
coreógrafa por quem se apaixona, é outra idéia de transdução, da arte intersemiótica
de Rubem Fonseca, uma sugestão que pode ser balé, filme, happening etc., além de ser
engraçada, de participar desse humor fino que permeia sua obra.
O nome de seu contista preferido, pelo qual vive tantas aventuras, é também um
signo da contemporaneidade, pois nos faz lembrar a torre de Babel, quando a diversidade
das línguas foi criada e os homens passaram a não conseguir mais se entender uns aos
outros. Os personagens de Rubem Fonseca vivem o tempo todo num mundo babélico,
no qual a impossibilidade de autêntica comunicação intersubjetiva se torna patente pelo
próprio fato de haver uma saturação de fontes, de mídias, de linguagens.
Em 1989, quando da queda do muro de Berlim, a rede Manchete de televisão, do
Rio de Janeiro, mandou um repórter entrevistar transeuntes que comemoravam nas
ruas da capital alemã, para o programa “Documento Especial”. Entre eles havia um
brasileiro, que deu ao repórter o nome de Zé Rubem, ao lado de uma linda loura, que
falava português com perfeição e mentiu ser brasileira também. Os dois comentaram
alguma coisa sobre o acontecimento histórico, e o repórter foi adiante, sem perceber
que entrevistara Rubem Fonseca. Quem seria aquela mulher ao seu lado? O modelo
real da personagem Veronika? Artificialista, cruza vida e obra, sem representações,
tudo apresentações.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
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Luís Carlos de Morais Junior
Outra camada desse livro, além dos saberes que agencia sobre Bábel, a política,
as pedras preciosas e o cinema, é aquela que fala da artificialidade das coisas na
realidade e sociedade atuais. O livro começa assim, com tudo girando, se desfazendo,
o protagonista caindo num abismo por causa da pseudo-síndrome de Menière, mais
uma aula que nos dá. Note-se que nem a sua doença é verdadeira, é uma síndrome
falsa, como o pseudônimo de Bábel.
O livro fecha com o personagem confundindo e misturando as jóias verdadeiras,
causa de tantas atrocidades, com os vidros coloridos do costureiro que se fantasiava
com temas megalomaníacos, como sói acontecer, e que nesse ano teria uma fortuna
oculta em sua pretensamente falsa fantasia de luxo.
Depois, o personagem se agarra a um poste de ferro como se fosse uma árvore.
Reitera a frase título, que citara no início, atribuída por Shakespeare ao sonho e pelo
herói do livro a tudo: ao mundo dos sonhos, ao mundo do livro, e ao livro do mundo.
Referências
• AUGUSTO, Sérgio. Novo livro de Rubem Fonseca traz as ‘vastas emoções’
cinematográficas. Folha de S. Paulo, São Paulo, 19 nov. 1988.
• DELEUZE,
Gilles. Lógica do sentido. Trad. Luiz Roberto Salinas Fortes. São
Paulo: Perspectiva, 1974.
• FONSECA,
Rubem. Vastas emoções e pensamentos imperfeitos. São Paulo: Cia.
das Letras, 1988; 2001. Reimpressão.
• ________.
Os prisioneiros. São Paulo: GRD; 4. ed., Cia. das Letras, 2001.
Reimpressão.
• ________.
64 contos de Rubem Fonseca. São Paulo: Cia. das Letras, 2004.
• FOUCAULT,
Michel. As palavras e as coisas. Trad. Salma Tannus Muchail.
4. ed. São Paulo: Martins Fontes, 1987.
• ROSSET,
Clément. A anti-natureza. Trad. Getulio Puell. Rio de Janeiro:
Espaço e Tempo, 1989.
• SCHNAIDERMAN,
Boris. Rubem Fonseca, precioso. Num pequeno livro
(O Cobrador). Jornal da Tarde, São Paulo, 27 set. 1980.
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
TERMINAL: COSMOGONIA E
EVANESCÊNCIA EM
RONALD POLITO
Marcelo Diniz
Faculdade CCAA
Doutor em Ciências da Literatura-Semiologia pela UFRJ
contato: [email protected]
Resumo: O livro Terminal, de Ronald Polito, lançado em 2006 pela Editora
7 Letras, apresenta uma poética que compreende a poesia como cosmogonia e
evanescência, configurando uma estética em que a subjetividade permanece na tensão
entre o desejo de integração e a desintegração no mundo.
Palavras-chave: poesia brasileira; êxtase; subjetividade; estética.
Abstract: Terminal, a book by Ronald Polito, published in 2006 by Editora 7 Letras,
presents a poetry which understands poetry as cosmogony and evanescence, representing an
aesthetic judgement in which subjectivity is found in the tension between the desire for
integration and the actual disintegration that exists in the world.
Keywords: Brazilian poetry; ecstasy; subjectivity; aesthetic.
Resumen: El libro Terminal, de Ronald Polito, que fue lanzado en 2006 por la
editorial “7 Letras”, presenta una poética que comprende la poesía como cosmogonía
y evanescencia, constituyendo una estética en que la subjetividad sigue en la tensión entre
el deseo de integración y la desintegración en el mundo.
Palabras clave: poesía brasileña; ecstasy; subjetividad; estética.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
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Marcelo Diniz
Lançado pela 7 Letras, na Coleção Guizos, em 2006, Terminal poderia ser o título
não só do livro mais recente de Ronald Polito1, bem como uma chave de leitura
de sua poética2. O livro atualiza um dos sentidos de seu título com o termo
“Encruzilhada”, título da série ou poema de abertura, em paralelo com “Muralha”,
título da série ou poema de fechamento. O termo “Encruzilhada” renova a polissemia:
cruzamento, junção de várias vias. A seção ou poema “Muralha”, idem: limite
intransponível ou demarcação de domínio. Esse paralelismo entre a primeira seção e
a última sugere certo roteiro de leitura em meio à relativa autonomia das seções de
que é composto o livro. Os primeiro e último poemas demarcam, em seus primeiros
versos, esse paralelismo segundo uma poética cosmogônica (“Pode haver/ um ponto
de partida” – do primeiro poema) em que o cosmo poético se descreve pela sua
própria evanescência (“quando tudo desapareceu” – do último poema).
O primeiro poema-seção, “Encruzilhada”, apresenta-se com uma abertura introdutória
dos mais freqüentes procedimentos poéticos presentes em todo o livro: a economia
sintática, o enjambement como decupagem brusca não só da sintaxe, bem como da
própria figura insinuada pelos textos, a tensão entre o metafísico e o prosaico, bem
como entre o figurativo e o abstrato. Sua matéria é a própria possibilidade da escrita:
descrita pela primeira estrofe segundo a topologia aguda do mot juste (“Um epicentro
de onde / soe / alguma palavra exata.”); desdobrada pela segunda estrofe como via
de passagem, descrevendo mais uma das polissemias do título do livro (“Se via de
passagem / ou gozo de fuga / por derrocadas, desertos, que / acolha e multiplique /
saídas, estiagens / emergências.”), e pela terceira e última, como o aqui e agora da
própria escrita e sua implicação com o corpo (“um corpo / que empurra o vento, /
que ilumina a luz, / amarrota o mar, coberto de / pó. Que / possa dobrar, / passo a
passo, / o risco do caminho.”).
Da referência a “Um corpo / que empurra o vento, / que ilumina a luz, / amarrota
o mar, coberto de / pó”, pode-se deduzir certo teor de um lirismo reduzido ao
material e ao elementar, predominante em todos os poemas do livro. Este corpo
1 Para o leitor que, porventura, desconheça Ronald Polito, recomendo a visita à Wikipédia: http://pt.wikipedia.org/wiki/Ronald_Polito.
Reproduzo, aqui, a apresentação do autor, feita pela própria editora na orelha do livro: “Ronald Polito nasceu em Juiz de Fora, em
1961. Mestre em História, poeta e tradutor, dedica-se à edição de autores de literatura brasileira (Gonzaga, Durão, Silva Alvarenga,
Joaquim Manuel de Macedo) e à tradução de escritores de língua catalã (como Salvador Esporiu, Narcís Comadira, Quim Monzó,
Maria-Mercè Marçal e Charles Camps Mundo) e castelhana (como José Juan Tablada e Jaime Gil de Biedma). Entre seus trabalhos
poéticos publicados, destacam-se Solo (7 Letras, 1996), Vaga (edição do autor, 1997), Intervalos (7 Letras, 1998) e De passagem
(Nanquim Editorial, 2001)”.
2 Fábio Weintraub, em texto de apresentação deste livro, lançado em 2006, propõe a interessante leitura de um duplo aspecto
segundo a ambigüidade entre “as idéias de morte (paciente terminal) e movimento (terminal de linhas, ponto de conexão,
transmissão)”. O texto de F.W. encontra-se no endereço:
http://www.weblivros.com.br/k-jornal-de-cr-tica/k7-dezembro-2006-2.html#tentacao
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Terminal: cosmogonia e evanescência em Ronald Polito
ambíguo (o corpo do indivíduo ou o corpo do próprio poema) cultiva com o seu meio
uma relação oscilante entre a resistência e a redundância, entre a diferenciação e a
indiferenciação, ilustram certo jogo entre a individuação e a integração, entre
obstáculo e desejo de fusão, como descrevem as palavras de Fábio Weintraub. Um
passeio no centro urbano, animais, o próprio mundo oscilante entre o conceito
filosófico e a criação da escrita. Observa-se a predominância da descrição metonímica
como modo de fragmentação da figura. Esse modo de construção metonímica e
fragmentária faz do desejo de integração e dessubjetivação um desejo de
desintegração extática que parece desdobrar o aspecto patológico do título do livro:
Terminal.
O livro é composto por seis seções: além da primeira, “Encruzilhada”, e da última,
“Muralha”, encontram-se, em seqüência, “City lights”, “Gabinete”, “Respirações
artificiais”, “Minizôo” e “No desterro”. Destaque-se o poema “Centro de um feixe
qualquer”, da segunda seção (“City lights”) do livro, que encontra a experiência
extática na composição descritiva de uma impressão de suspensão derivada das voltas
da fumaça de um cigarro. Suspensão em que o tempo é abolido e os objetos da
cena, sob um flagrante em que o extático se manifesta como estático, dão-se a uma
descrição poética que extrai do enjambement e das aliterações uma carga expressiva
de desaceleração da sintaxe e da figura descrita. Da fumaça, passando pelos móveis,
à janela, aos elementos da paisagem, até a imagem da terra sob certa hipnose lunar,
o extático representa a apercepção do macro e do micro coordenados, justamente
no instante fora do tempo em que os elos sintáticos da história se interrompem.
Pela forma e pelo conteúdo entre o metafísico e o prosaico, o poema é marcado pela
possibilidade cosmogônica da escrita, apresentada na abertura do livro. No entanto,
este poema também é marcado pelo teor evanescente do poema “Muralha”. Afinal,
toda a percepção estética/extática que o poema constrói possui a duração de uma
volta de fumaça, retornando todos os objetos à alienação de autômatos movimentos
integrais. De novo, a dupla face integração/desintegração assume a configuração
extática da duração de um instante, o que quer dizer, de um poema.
A seção “Gabinete” é a que mais concentra a reflexão cosmológica no livro.
Composta por 12 poemas, oito deles reiteram esse tema de modo explicitamente
anafórico através da repetição do termo mundo (“Um mundo”, “Outro mundo”,
“Ainda mais um mundo”, “O último mundo”: expressões que iniciam esses oito
poemas). Essa repetição remete à reflexão do mundo segundo uma perspectiva
parodicamente filosófica, desdobrando o tema dos mundos possíveis, sendo o
próprio poema o exercício dessas possibilidades. A redução elementar das descrições
de mundo nesses poemas não só atende à impessoalidade quase utópica da própria
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
55
Marcelo Diniz
poesia, bem como sua própria ironia, a consciência de sua impossibilidade, que faz
do desejo de dissolução extático uma “idéia obsedante/ de um inalcançável/ zero/
qualquer” ou “Um atrativo zero absoluto”. De novo, o binômio entre a possibilidade
da escrita e a sua evanescência elabora a ambigüidade dramática da integração e
desintegração, e o poema se resolve como experiência epifânica de um movimento
que parte da cosmogonia em direção à sua evanescência. É como se a poesia de
Ronald Polito se revelasse como terminal no sentido de evidenciar a impossibilidade
extática existencial, sendo, no entanto, um registro epifânico de sua possibilidade
poemática ou estética.
Se a seção “Gabinete” é a mais impessoal, a seção “No desterro”, a última antes
do poema-seção “Muralha”, é o seu oposto. Talvez seja a seção cujos poemas mais
evidenciem a enunciação lírica que perpassa todo o livro e que mais expressam a
tensão subjetiva implicada em sua poética. Encontra-se nessa seção uma chave
muito sutil que parece remeter a um momento anterior à primeira seção do livro: a
dedicatória “À memória de minha mãe”. Fábio Weintraub aponta ser essa seção
aquela em que se reconhece certo abrandamento das tensões que constituem todo
o livro. Pode-se dizer que tudo o que nas demais seções é lido como desejo de
integração/desintegração, percepção estética/extática do mundo como linguagem,
aqui se resolve como nostalgia, quimera e, a tirar pelo último poema da seção,
aceitação mórbida, que enfatiza mais uma vez o título Terminal.
Há de se destacar a seção “Minizôo”. O humor e a brusca referencialidade dos
poemas dessa seção dão-lhe o aspecto singular de uma pausa para distensão ou
distração de todo o livro. Pode-se dizer que essa seção encerra o momento de
maravilhamento descritivo da poesia de Ronald Polito. Poemas estanques, como se
emoldurados, sem metalinguagem, exceto pelo último, inspiram-se na imagem de
animais: “Um texugo autodidata”, “Urso polar”, “Um papagaio”, “Gorila”, “O gnu
acidental” e “O tigre branco”. Conforme a leitura de Fábio Weiuntraub, representa-se
certa apropriação simbólica dos animais. Pode-se acrescentar que esse simbolismo
também se expressa, não raro, através do tema de certa nostalgia do animal. Uma
nostalgia que recorre à idéia da evocação ancestral, como em “Gorila”, ou mesmo
a que recorre à metalinguagem presente no discurso de “O tigre branco”. Em
um, a inveja do eu em relação ao pré-humano visto como um super-humano; em outro,
a fala do tigre como o domínio da própria poesia. “O gorila” e “O tigre” emprestam à
cosmogonia de Terminal o teor da enunciação fabulesca.
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
Terminal: cosmogonia e evanescência em Ronald Polito
E, no último terminal de seções, chegamos ao poema-seção “Muralha”, limite
da narrativa poética que se esboça no livro. Se no primeiro poema-seção,
“Encruzilhada”, encontra-se a possibilidade da escrita como cosmogonia da relação
entre o corpo e o mundo em seu jogo de pertencimento e não pertencimento,
integração e fragmentação, com o poema-seção “Muralha” a idéia de equivalência
entre opostos (sim e não, exterior/interior) lamenta, ainda, a impossibilidade do
esquecimento, o zero total. Certo lamento que se intensifica com os versos finais,
que fazem com que o apocalipse equivalha à amnésia absoluta. O que ficou faltando,
o resto, os riscos metonímicos, epifânicos, extáticos e estéticos de um corpo de
escrita parece a evidência do inviável, o registro possível do volátil, a impossibilidade
de “nunca mais nem se lembrar/ que esqueceu.” A muralha seria o limite desse
esquecimento impossível, irregistrável. De certo modo, parece restar o sabor da
ironia, um tanto melancólica, não sem um clin d’oeil de um humor ácido e sutil
destinado à inteligência do leitor do livro Terminal. Algo que pareça dizer que o
mundo e toda a experiência intelectual e afetiva nele implicados destinam-se a um
esquecimento aniquilador fora desse domínio paradoxal e poético que é a linguagem,
ao mesmo tempo possibilidade e evanescência.
Como ilustração dessa interpretação, selecionei os seguintes poemas a que esse
artigo faz referência:
ENCRUZILHADA
Pode haver
um ponto de partida.
Um epicentro de onde
soe
alguma palavra exata.
Como o encaixe de
duas bocas.
Se via de passagem
ou gozo de fuga
por derrocadas, desertos, que
acolha e multiplique
saídas, estiagens,
emergências.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
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Marcelo Diniz
Hora de partir. Pura
fantasia. Um corpo
que empurra o vento,
que ilumina a luz,
amarrota o mar, coberto de
pó. Que
possa dobrar,
passo a passo,
o risco do caminho.
CENTRO DE UM FEIXE QUALQUER
Por um instante a fumaça do
cigarro parece que se
detém no ar. E os quadros,
a mesa, ficam ainda mais
fixos. A moldura da
janela figura um
retângulo azul fora do
tempo. E nenhum
vento vem violar
o fugaz antedesejo de
cada coisa, pedra ou planta
permanecer em seu
lugar. Pássaros
pousam, pontes
pênseis, o mar
susta o arremesso
de sua massa
total, e a terra jaz
momentaneamente
hipnotizada pela luz azul
da lua. Então, no coração de
qualquer Chinatown, uma
mosca pára de
esfregar suas patas, e as
cascatas numéricas
da seqüência digital de
cada bolsa, cada
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
Terminal: cosmogonia e evanescência em Ronald Polito
bolso, se
interrompem. Mas
logo a fumaça revoluta
no ar e todos os
autômatos movimentos
integrais.
GORILA
Nunca terei teu pulso, a
exatidão do instante do
soco, da força dos
dedos quando premem,
estrangulam, teus
braços, tua
cintura.
Quando esmurro os músculos dos próprios
peitos, o que faço só
se vencer, é
a ti que vivifico
palidamente,
é tua glória ainda
a causa única pelo
peso de tudo.
Mesmo treinando muito
não posso alcançar
a solenidade
que você transpira
sentado.
O TIGRE BRANCO
Uma clareira
sempre
se abre à
minha passagem.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
59
Marcelo Diniz
Um grande ectoplasma.
Os meus estojos carrego comigo,
para quando me pinto
de vermelho
e tudo em torno
desfalece.
Sou feliz.
Nada (esqueçamos
o invejoso tempo) me devora.
Repetir-me é
meu único elo
com a necessidade
da eloqüência.
Mas rápido retorno à
minha solidão extática e inexpugnável.
O verdadeiro rei sou eu.
MURALHA
Quando tudo desapareceu,
a luz e sua ausência se
equivaleram, sim e não
fundidos ao silêncio
interior, exterior,
definitivos, maiores,
ainda assim ficou
faltando esquecer
tudo. Mas,
sobretudo,
nunca mais nem se lembrar
que esqueceu.
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
O ESPAÇO AUTOBIOGRÁFICO
EM NUMERAL,
1
DE ARMANDO FREITAS FILHO
Mariana Quadros Pinheiro
Faculdade CCAA
Bolsista do CNPq
contato: [email protected]
Resumo: Este ensaio analisa a série de poemas Numeral, escrita por Armando
Freitas Filho até o momento de sua morte. Nesse trabalho de Freitas Filho, observam-se
como autobiográficos os procedimentos que iluminam a tensão entre a finitude do
corpo e o infinito da escrita. Desse modo, este trabalho pretende defender uma
concepção de autobiografia que supera os limites do gênero textual.
Palavras-chave: autobiografia; poesia; série.
Abstract: This essay analyzes Numeral, a series of poems written by Armando
Freitas Filho until the moment of his death. On this Freitas Filho’s work, the procedures that
highlight the tension between the finitude of the body and the infinitude of the writing are
deemed as autobiographical. This essay defends a conception of autobiography that
surpasses the limits of the genre.
Keywords: autobiography; poetry; series.
Resumen: Este ensayo analiza Numeral, una serie de poemas escritos por Armando
Freitas Filho hasta el momento de su muerte. En esta obra de Freitas Filho, se observan como
autobiográficos los procedimientos que destacan la tensión entre la finitud del cuerpo y el
infinito de la escritura. Así, este trabajo pretende defender un concepto de autobiografía
que sobrepasa los límites del género textual.
Palabras clave: autobiografía; poesía; serie.
1 Este trabalho foi realizado com o apoio do CNPq.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
61
Mariana Quadros Pinheiro
INTRODUÇÃO
O verso “Numerando até a morte”, do poema 20 de Numeral, parece resumir o
projeto lançado por Armando Freitas Filho com a série inaugurada em Máquina de
escrever, obra reunida do poeta. Nesse volume, em espécie de anexo ou suplemento
ao inédito Nominal, foram publicados os primeiros poemas numerados. A cada novo
livro escrito pelo poeta a partir de então, a série se expandirá, em suplementos como
aquele encontrado na edição da obra reunida. A deriva da numeração é potencialmente
infinita, salvo pela interrupção sempre iminente da escrita devido à morte do poeta.
Seriam os primeiros números, publicados na obra de 2003, também os últimos?
A ameaça do fim não se confirma, porém, e na coletânea Raro mar surgem novos
numerais.
Uma vez que o limite da série é a finitude do corpo, escrita e vida se imbricam.
O procedimento de numeração aponta justamente para a criação de novos poemas
enquanto a vida durar. De tal fusão, decorre a instabilidade do espaço poético:
“ainda” e “enquanto” são as expressões que, indissociáveis, desenham os contornos
sempre móveis da criação poética dos numerais. Porque é singular, o corpo convive
com sua condição finita (ainda não morto) sem que se possa definir sua potência de
antemão. De fato, é impossível determinar quando ou como o corpo esbarrará com
o evento que o fará interromper sua produção. Porque indeterminado, o corpo pode
reverter suas múltiplas (e talvez infinitas) potencialidades em novos atos (enquanto
vivo, o corpo pode ampliar sempre mais um pouco suas possibilidades).
Se a escrita se desdobra em íntima relação com a finitude do corpo, poder-se-ia
pensar em um vínculo entre vida e linguagem baseado exclusivamente na limitação.
A morte como termo inevitável da atividade do eu, escrever e numerar a duração
da vida seria uma forma de marcar a insuficiência de nossa condição. O término da
dispersão da linguagem, porém, se dará sempre no futuro: a escrita esbarrará com a
finitude do corpo. Esse fim anunciado, enquanto não chega, faz o corpo produzir,
inscrever-se na escrita. O limite, reafirmado a cada novo número, não é apenas
limitação, mas forma de fazer avançar a série, seu corpo não delimitável, em face
dessa linha que se move mais um pouco a cada número – vida se inscrevendo
na escrita a partir dessa fronteira inapreensível, a morte. A singularidade e a
indeterminação do corpo deixam, assim, marcas na linguagem, ao mesmo tempo
adensando seu potencial infinito e anunciando seu silenciamento.
A partir desse desequilíbrio entre o infinito da linguagem e a finitude da vida,
o corpo grafa-se. Constrói-se, desse modo, um espaço autobiográfico em Numeral.
Não que se defenda a leitura dessa série como parte do que se convencionou chamar
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O espaço autobiográfico em Numeral, de Armando Freitas Filho
de autobiografia como um gênero com espaço reservado nas prateleiras de livrarias.
Não que surja daquele espaço autobiográfico um teor expressional, de revelação
transparente de acontecimentos determinados da vida e dos sentimentos do sujeito.
Ao contrário, o espaço autobiográfico que se quer analisar aqui é aquele marcado
pela tensão, pelos contornos ainda não definidos, uma vez que redesenhados a cada
nova numeração.
Entendido como grafia do corpo na linguagem, o autobiográfico se torna esse
espaço de modulações em que os índices do eu na escrita tornam-na um lugar de
abertura e indeterminação próprias do “por enquanto” do corpo. A partir dos
poemas já publicados da série Numeral, em Máquina de escrever e Raro mar,
procuraremos seguir esses índices do corpo que nos fazem observar a série como
autobiográfica.
ALÉM DO PACTO
Buscamos em Numeral o caráter autobiográfico presente na serialidade dos
poemas numerados até a morte. Pode parecer inapropriado o termo “autobiográfico”
para referir-se a poemas que tematizam freqüentemente a incapacidade do sujeito de
expressar-se por meio da linguagem. Certamente, essa expressão se torna apropriada
ou imprópria de acordo com a definição apresentada de autobiografia.
A autobiografia tem sido observada como um gênero textual com características
próprias. Assim, são freqüentes as prateleiras reservadas aos livros que responderiam
à caracterização desse suposto gênero. Aqueles que buscam volumes entre essas
prateleiras esperam encontrar, em especial, um discurso feito por alguém que narra
e interpreta sua própria vida. Recontar fatos corriqueiros e extraordinários que
importaram para a construção de uma história individual é, pois, parte fundamental
das características associadas, comumente, à autobiografia. Apesar de pouco
refinada em muitos aspectos, essa caracterização parece embasar o senso comum
sobre esse tipo de texto e atua no sentido de apaziguar as gradações e as tensões
que permeiam os escritos autobiográficos.
Não muito distante dessas características pouco precisas que o pensamento
não-especializado tributa à autobiografia, estão as reflexões de Philippe Lejeune em
Le pacte autobiographique. A partir da consideração da autobiografia como um
texto literário com características próprias, esse pesquisador propõe esclarecer o
funcionamento do gênero. Sua definição aproxima-se daquela que faz figurarem entre
as prateleiras dedicadas à autobiografia os discursos que contam, retrospectivamente,
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
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Mariana Quadros Pinheiro
uma história pessoal. Em seu esforço de precisão, Lejeune restringe ainda mais o
gênero (e também as possibilidades de pensar a autobiografia para além do gênero)1.
A definição proposta por esse autor servirá como importante contraponto à concepção
de escrita autobiográfica que ensaiamos nesse texto: “Récit retrospéctif en prose
qu’une personne réelle fait de sa propre existence, lorsqu’elle met l’accent sur sa vie
individuelle, en particulier sur l’histoire de sa personnalité” (LEJEUNE, 1996, p. 14).
Uma vez restrita a autobiografia à narrativa em prosa, as considerações de Lejeune
parecem excluir a possibilidade de pensar Numeral como uma série autobiográfica. De
fato, não se trata de um texto em prosa, tampouco de poemas que narram a história
da construção da personalidade de um personagem2. Esses elementos da definição
são, porém, segundo o mesmo autor, uma questão de proporção ou de hierarquia.
Poderíamos ainda pensar, portanto, a série Numeral de acordo com o pensamento
desenvolvido em Le pacte autobiographique.
Em especial, a delimitação do objeto dos textos autobiográficos à história da
personalidade do autor afasta nossas reflexões sobre Numeral do espaço aberto pelo
pensamento de Lejeune. Com efeito, para garantir que a narrativa desenvolvida em
um texto seja a da vida de quem escreve, é preciso que haja identidade entre autor e
narrador e entre este e a personagem principal. Tal identidade é, porém, problemática,
visto que se apóia quase sempre nos elementos lingüísticos que denotam as pessoas
discursivas. Dêiticos e pronomes pessoais, termos que não podem ter seu significado
definido senão em discurso, vêm justamente contrariar o caráter peremptório observado
por Lejeune no gênero textual que tenta definir.
Para se manter coerente com sua hipótese, o autor precisa buscar um termo que
possa definir a referência dos pronomes pessoais, em especial do “eu”, e dos dêiticos a
ele relacionados. Para tanto, tenta se contrapor a algumas reflexões feitas por Benveniste
em Da subjetividade na linguagem, especialmente à consideração do lingüista de que os
pronomes pessoais não remetem a um indivíduo. Nas palavras de Benveniste: “Ora,
esses pronomes [pessoais] se distinguem de todas as designações que a língua
articula, no seguinte: não remetem nem a um conceito nem a um indivíduo”
(BENVENISTE, 2005, p. 288).
1 Lejeune, com efeito, não admite gradações entre escritas marcadamente autobiográficas e aquelas em que, embora de forma menos
evidente, corpo e escrita se relacionam de forma tensa. Em suas palavras: “L’autobiographie, elle, ne comporte pas degrés: c’est
tout ou rien” (LEJEUNE, 1996, p. 25).
2 Embora a série possa ser pensada como narrativa (os números narrando a história de um corpo desde 1999 até o momento futuro
de sua morte), preferimos entender os numerais como dramatização da finitude do corpo em tensão com o poder expansivo da
linguagem.
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O espaço autobiográfico em Numeral, de Armando Freitas Filho
Com efeito, “eu” não remete a um conceito, visto que não há um significado que
englobe todos os usos individuais de “eu” (ao contrário do que acontece em outros
signos, como “árvore”, “casa”, etc.); tampouco remete a um ser específico: se “eu”
identificasse um indivíduo em sua particularidade, ele não poderia remeter a todo e
qualquer enunciador, como faz.
Para Lejeune, no registro oral da linguagem, a referência do pronome é facilmente
observada devido à presença física de que enuncia: “eu” remeteria, assim, ao indivíduo
que fala3. No caso dos textos autobiográficos, escritos, é preciso buscar outro
elemento que possa garantir o fundamento da concepção da autobiografia como
gênero: a identidade entre autor, narrador e personagem, baseada quase sempre na
primeira pessoa do discurso.
É no nome próprio que Lejeune encontra o termo que fixaria essa identidade: o eu
envia ao enunciador e este envia ao nome próprio. O nome estampado na capa de
um volume atuaria, assim, de modo a fechar o sentido do pronome e aprisioná-lo
na referência a um indivíduo cuja existência é comprovada pelos documentos que
atestam o caráter verídico de sua identidade. O nome próprio, assim como a explicitação
por editores de que o texto publicado é uma autobiografia, garante, pois, um pacto
que fará com que o leitor situe os termos de primeira pessoa como formas cambiáveis
pelo nome, e este como confirmação da identidade entre uma “pessoa real” e os
pronomes pessoais e dêiticos usados.
O pacto autobiográfico, que dá título ao livro de Lejeune, relaciona, dessa forma, as
reflexões sobre a autobiografia a um contrato de leitura firmado pelo nome próprio e
pelas informações estampadas na capa do volume impresso 4. A autobiografia seria
definida, desse modo, mais pelo pacto de leitura do que pelos elementos formais que o
definem. Esse pacto é o que levaria à separação freqüentemente simples (ou simplista)
entre os textos que podem participar do gênero da autobiografia e os que não podem.
Numeral certamente figuraria entre os últimos. Não só os números em ordem
crescente não retomam a sucessão cronológica de fatos que explicariam a existência
do autor, como o nome próprio a figurar na capa não parece apaziguar o problema
criado pelos termos que remetem à enunciação. Ao contrário, a referência desses
termos é sempre tensionada, de tal modo que o espaço autobiográfico em Numeral
não admite que se procure a identidade postulada por Lejeune entre autor e eu lírico.
3 Parece-nos que, mesmo no registro oral, a referência dos pronomes pessoais não se define facilmente devido à presença física de
quem fala. Em um enunciado como: “Eu insistia para que parasse de gritar: eu quero”, mesmo no discurso oral, a referência do “eu”
na segunda ocorrência não se identifica àquele que, em presença dos interlocutores, enuncia a frase.
4 Assim Lejeune define esse pacto: “Le pacte autobiographique, c’est l’affirmation dans le texte de cette identité, renvoyant en
dernier ressort au nom de l’auteur sur la couverture” (LEJEUNE, 1996, p. 26).
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Mariana Quadros Pinheiro
De fato, em Numeral, há poemas em que não há qualquer referência às pessoas
do discurso: há o uso quase exclusivo de verbos no infinitivo, como no numeral 325,
ou da não-pessoa, como no numeral 356. Além disso, o uso da primeira pessoa não
remete de forma simples a um enunciador cuja existência se identifique ao indivíduo
portador do nome estampado na capa.
Já no primeiro numeral, dois versos indicam que o eu não pode ter seu significado
atestado facilmente: “Pulo de dois pés juntos/ para dentro de mim, de você” (FREITAS
FILHO, 2003, p. 35). Além de não podermos garantir que a primeira pessoa implícita
no verbo “pular” identifique-se com Armando Freitas Filho, a ambigüidade sintática
no segundo verso intensifica o problema lançado pelos pronomes pessoais. Com
efeito, “de você” e “de mim” podem ser observados como termos coordenados de
valor aditivo. Nessa leitura, há ainda as dificuldades para definir a referência dos
pronomes. Essa dificuldade se adensa ainda mais se entendemos que “de você”
funciona como espécie de retificação do termo anterior, ou mesmo como aposto de
“de mim”. Nesse caso, os pronomes pessoais têm o mesmo referente e marcam a
cisão do sujeito enunciativo.
O pacto autobiográfico, proposto por Lejeune principalmente a partir do recurso
ao nome próprio explicitado na capa, pouco ajuda a entender a complexidade
da questão em Numeral. Precisamos, portanto, analisar o problema nessa série a
partir de outro registro, que não restrinja a autobiografia a um gênero. O espaço
autobiográfico que gostaríamos de pensar afasta-se, assim, daquele surgido a partir
de um suposto pacto de leitura e se dirige à reflexão das formas com que o corpo
tenta se inscrever na linguagem.
UM OUTRO REGISTRO
Não raro um caráter autobiográfico é buscado mesmo em livros que não têm o
objetivo explícito de narrar a história pessoal de seus autores. É comum que se
observe o teor autobiográfico nesses textos a partir de índices de uma possível
semelhança entre o autor e um personagem (ou entre aquele e o eu lírico). O leitor
5 “Ginasticar-se/ no centro da casa estéril./ Criar corpo fora da linha da família/ ferir-se de dentro das paredes da cabeça/ onde o
pensamento é peso, sangue parado./ Vazar, sair da fila/ e entrar no perfil fugitivo e fluido/ do desequilíbrio, do exercício contínuo/
e fazer um puxado, a partir da planta/ da árvore insuportável, com o vento ausente.” (FREITAS FILHO, 2006, p. 65)
6 “Na entrelinha, o silêncio de estátua/ da sereia pesa e prende mais que o canto./ É a ameaça, a iminência da sirene/ o revólver na
têmpora, um segundo/ atrás do tiro, a janela aberta/ para o salto ainda não articulado/ o ser incerto se formando, a invisível/ leoa
de pedra, um instante antes do cervo.” (FREITAS FILHO, 2006, p. 66)
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O espaço autobiográfico em Numeral, de Armando Freitas Filho
se torna, então, uma espécie de detetive, à procura de semelhanças e de pistas para
saciar sua visada própria de um voyeur. Nessa tentativa, a autobiografia é pensada
fora do pacto autobiográfico, definido por Lejeune como explicitação da identidade
entre autor, narrador e personagem principal. Porém, continua-se a entender esse
tipo de escrita como a narrativa dos fatos que marcaram a existência de um sujeito
para além da linguagem. Não é esse, pois, o outro registro a partir do qual analisaremos
a escrita autobiográfica.
Se não lemos Numeral como membro de um suposto gênero chamado
“autobiografia”, tampouco acreditamos encontrar o espaço autobiográfico nessa
série a partir da investigação de dados do dia-a-dia de Armando Freitas Filho que
porventura surjam nos poemas. De fato, fazê-lo seria corroborar a crença de que
a autobiografia se restringe à revelação de dados ocorridos durante a sucessão
cronológica da vida do escritor. Seria, portanto, conceber que é possível a existência
de um espaço autobiográfico sem a inscrição do corpo de quem fala na escrita. É essa
inscrição, independente mesmo do uso da primeira pessoa discursiva, que gostaríamos
de observar em Numeral.
Todo texto seria então autobiográfico? Não, em especial se a autobiografia for
entendida como gênero ou como revelação de dados pessoais nos textos. No
entanto, podemos refletir sobre a forma como se estabelecem, nos diversos gestos
enunciativos, relações complexas entre o corpo e a linguagem. Precisamos, então,
avançar um pouco mais na compreensão das relações entre aquele e esta.
Está claro que não buscamos esse vínculo na representação do corpo por meio
da língua. Tal busca é possível e fértil em especial nos textos em que se tenta
desenhar a história de um sujeito (naqueles que se enquadrariam, portanto, no
pacto autobiográfico proposto por Philippe Lejeune). Ainda nesses, fica patente,
no entanto, que o corpo escapa à representação: um autor que tente escrever sua
vida terá de lidar com o fato de que seu próprio corpo não pode ser totalmente
representado porque só terá sua história completada no momento de sua morte 7.
7 Tal defasagem da representação em relação ao corpo indica a importância de pensarmos as aporias da figurativização do corpo.
Embora tal discussão não seja o centro de nossas reflexões, é cara ao nosso ponto de vista. Resumimos, então, dois importantes
argumentos sobre essa questão, desenvolvidos por Marcelo Diniz (2006) em Elogio da Instabilidade. Esses argumentos
acompanham nossas considerações sobre a autobiografia entendida como força não representativa – ou não apenas.
Diniz aponta a defasagem existente entre o acabamento que a figura do corpo parece prometer e o corpo, que transborda sempre
os limites da representação. A precariedade de qualquer figura do corpo se deve ao inacabamento deste. Um primeiro aspecto
envolvido em tal inacabamento diz respeito ao caráter temporal do corpo que o torna sempre parcial em relação à sua duração
total. Um outro aspecto diz respeito às relações entre o corpo individual e o corpo social: ao mesmo tempo em que a cultura
individualiza o corpo individual, dá a consciência de que ele é parcial, pois é uma peça substituível e anônima na sociedade. A partir
dessa dupla finitude, poder-se-ia pensar o drama do corpo como fundado exclusivamente na limitação. O autor propõe, ao invés,
que pensemos para além da limitação de nossa condição e observemos o corpo como processo e como potência.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
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Mariana Quadros Pinheiro
Mesmo nos textos que tentam retratar as transformações de um indivíduo,
podemos, pois, pensar a autobiografia para além da representação do corpo. Também
nos livros entendidos como parte de um gênero autobiográfico (como quer Lejeune
e, talvez, o senso comum), as relações de corpo e escrita podem se estabelecer
por meio das modulações impressas por aquele na linguagem. Essas marcas são
observadas quando o corpo deixa de ter seu espaço restrito ao processo final da
produção do sentido. O corpo já não é mais figura entre as outras, que se diferenciaria
das demais apenas por ter um papel principal nas narrativas autobiográficas.
Ao invés, se entendemos a autobiografia como a relação complexa entre o corpo
e a escrita, é preciso fazer ver o corpo atravessar todo o percurso de produção do
sentido.
A enunciação é a primeira instância a partir da qual podemos restabelecer o
papel do corpo na produção da linguagem. Com efeito, é impossível pensar gesto
enunciativo de que não participe um corpo: as cordas vocais, o ar que arranha a boca
(no texto oral) e as mãos, os olhos (no texto escrito) concorrem inevitavelmente em
toda criação lingüística. A mão de quem escreve e o suor do corpo durante o esforço
enunciativo podem ser, porém, facilmente abandonados uma vez esteja a obra pronta.
Novamente, o corpo parece ter seu papel restrito à periferia dos textos: instância
anterior a todo discurso e que poderia a ele retornar como figura nas obras que
tentam retratar o sujeito que fala.
Tal marginalização não se confirma, contudo, se começamos a atentar para os
textos poéticos. Nos usos cotidianos da linguagem8, apaga-se não só a presença do
corpo de quem enuncia. Até mesmo a materialidade dos sons e das letras é preterida
em prol do significado abstrato do que se diz: cada palavra particular utilizada para
que fosse escrito este texto deve ter sua singularidade e o modo como se combina
com as demais esquecidos, de forma que prevaleça o conteúdo transmitido. Desde
que se tenha cumprido esse objetivo, pode-se ignorar o caráter particular de cada ato
de enunciar: não importam o eu que fala ou escreve em um tempo presente (agora)
e em um espaço específico (aqui). Em especial, não interessa a forma como a
singularidade desse eu, aqui e agora se inscreve por meio de uma arquitetura singular
do discurso.
8 Guiamo-nos, em grande medida, pela oposição entre prosa e poesia proposta por Paul Valéry em Poesia e Pensamento Abstrato
(VALÉRY, 1999, p. 193-210). Para o autor, a prosa é caracterizada pelo teor dissolutivo. Tal tendência se deve ao fato de que uma
vez se tenha transmitido o conteúdo, “a linguagem desvanece-se”. Terminada a enunciação, a linguagem perece e é substituída
por seu sentido (p. 204-205). A poesia, ao contrário, tem a força de recomposição dos significantes. O poético não se restringe,
dessa forma, à escrita em versos. Poesia é entendida como todo texto em que o jogo dos significantes supere a veiculação dos
significados.
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
O espaço autobiográfico em Numeral, de Armando Freitas Filho
Na poesia, tampouco importam as idiossincrasias daquele que criou um texto
e quando e onde construiu a mensagem. Aqui, porém, diferentemente da prosa,
a singularidade da enunciação é grafada na língua por meio de uma construção
particular do plano da expressão. Há uma força de recomposição dos significantes,
cujo esquecimento compromete radicalmente os jogos realizados9.
Assim, diferentemente da prosa, cada som, cada morfema e cada subversão das
combinações sintáticas devem ecoar e renascer em toda nova leitura. Na poesia,
não há espaço para a generalidade e a abstração da prosa, mas para a singularidade
de um jogo único reconstruído toda vez que o texto é (re)enunciado. Não por acaso,
decoramos poemas ou trechos de textos literários: recontá-los sem que se respeitem
os jogos de linguagem seria destituí-los de seu caráter poético. Atualizar a
particularidade desses jogos a cada leitura é fazer o eu, aqui e agora da enunciação
tender ao sempre, em todo lugar e por não importa quem, próprios da obra. Supera-se,
assim, o caráter efêmero e pontual que caracteriza a enunciação10.
Sob essa perspectiva, os poemas de Numeral, por sua força poética, adensam o
caráter biográfico presente talvez em maior ou menor medida em todo texto11. Tal
caráter não é vislumbrado com maior intensidade quando se representa o corpo do
poeta, mas quando o escritor torna o esforço enunciativo de seu corpo um produto
que se deve repetir, tal qual, devido às qualidades materiais do discurso. Um poema
em que nem mesmo aparece a primeira pessoa não é menos autobiográfico, nesse
sentido, do que um trecho confessional em que facilmente possamos ignorar os
jogos dos significantes. Podemos observar, assim, um espaço autobiográfico em um
numeral como o 16: “Escrever é arriscar tigres/ ou algo que arranhe, ralando/ o peito
na borda do limite/ com a mão estendida/ até a cerca impossível e farpada/ até o erro
– é rezar com raiva” (FREITAS FILHO, 2003, p. 42).
9 Não à toa, Valéry (1999, p. 205) tributa ao texto poético a característica de se reconstituir infinitamente a cada nova leitura: “O
poema, ao contrário, não morre por ter vivido: ele é feito expressamente para renascer de suas cinzas e vir a ser indefinidamente
o que acabou de ser. A poesia reconhece-se por esta propriedade: ela tende a se fazer reproduzir em sua forma, ela nos excita a
reconstituí-la identicamente”.
10 Tatit, em Musicando a Semiótica (1997, p. 50), reforça a espessura enunciativa na linguagem poética: “A apreensão estética
depende dessa espessura enunciativa ocasionada pela extensão do sujeito artístico, e de seu presente, no significante da obra,
pois que isso representa uma interrupção das trocas instantâneas que caracterizam nosso cotidiano intelectivo e pragmático e,
simultaneamente, a criação de um tempo de convivência tanto com o objeto criado como com o ato criador (a enunciação que
dura o tempo da obra)”.
11 Não podemos esquecer que, mesmo naqueles textos em que se minimiza a participação do corpo, essa ausência é ainda dosada
por um corpo que enuncia. Represente ou não o enunciador, todo enunciado é testemunha, assim, da onipresença do corpo. Tatit
(1997, p. 43) confirma tal presença incontornável: “Dentro dessa concepção, corpo é um tempo presente extenso que acompanha
o enunciado como que lembrando que este jamais se liberta da enunciação. Por trás da produção está sempre o agente sensível
que o produziu”.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
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Mariana Quadros Pinheiro
O poema não nos parece autorizar uma leitura representativa do corpo. Para além
da representação, a inscrição do corpo da linguagem na escrita tem como eco
a inscrição do corpo de quem escreve na linguagem. A homologia dos planos da
expressão e do conteúdo adensa o caráter único do texto – e, conseqüentemente, da
enunciação. É impossível a paráfrase do conteúdo do poema, visto que o significado
da violência da escrita se constrói, indissociavelmente, por meio da repetição dos
sons velares nos dois primeiros versos (em um eco dos arranhões figurativizados), do
enjambement entre o quarto e o quinto versos (o transbordamento sintático de um
verso em outro a reforçar a distância entre o que se quer alcançar e a impossibilidade
de atingir o alvo). Além disso, o tema do limite é mais bem observado quando em
relação com o procedimento poético de escrita até a morte – a “cerca impossível” do
penúltimo verso como espécie de metáfora da interrupção abrupta da série graças
a uma morte inapreensível. Nesse, como em outros poemas de Numeral, é o uso
poético da língua que nos faz observar as modulações do corpo por meio da
linguagem.
A poesia é, assim, o lugar privilegiado para pensarmos o espaço autobiográfico,
ao menos quando entendido como grafia do corpo. Na linguagem cotidiana ou
prosaica, em que Lejeune quer ver o registro privilegiado da autobiografia, apaga-se
o significante em prol do significado. Nesse apagamento, o esquecimento da voz de
quem pronuncia um texto, dos dedos que digitaram um trecho e, em especial, das
letras, dos sons, das palavras e da sintaxe ajuda a minimizar a inscrição do corpo
na linguagem. No texto poético, ao contrário, o corpo se grafa na escrita de forma
indireta: ainda que, de fato, a mão que escreveu seja alijada da obra, o instante da
enunciação prolonga-se, tornando-se duração (linguagem presente e reatualizada
nas diversas leituras que recompõem o texto). A singularidade e a finitude do
momento em que se fala ou se escreve se pereniza dessa forma – linguagem marcada
pela particularidade dessa mão, que, se não pode se eternizar, logra tornar a escrita
um índice permanente de sua existência única.
“NUMERANDO ATÉ A MORTE”
Desde a epígrafe, Numeral anuncia o procedimento da escrita a partir da finitude
do corpo: “Enumero. A convidada enumera como num matadouro”. O trecho, de
Ana Cristina César, funciona como espécie de resumo da ordem serial dos poemas,
multiplicados até que a morte chegue. Diante desse limite inapreensível – nunca
se sabe qual número será o último –, poder-se-ia esperar um texto confessional, à
maneira dos tantos volumes de memórias redigidos por aqueles que sentem a iminência
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O espaço autobiográfico em Numeral, de Armando Freitas Filho
da própria morte. Não é esse o tom em Numeral, porém. A enumeração, como num
matadouro, é gesto de violência. Menos que forma de organizar e categorizar fatos
exteriores à linguagem, os números são meios de intensificar a indeterminação
própria a uma escrita dirigida pela temporalidade do corpo – o infinito é o limite
utópico da numeração iniciada em 1999.
A epígrafe explicita, assim, a confusão entre a finitude de quem escreve e o
potencial infinito da escrita. A finitude anunciada é reafirmada ao longo dos poemas:
não só o corpo é finito como a própria escrita é flagrada na impossibilidade de retratar
o sujeito. Já no primeiro número, caracteriza-se a falência da representação: “O
pensamento à mão/ mas não engrena”. A escrita é figurativizada como espécie de
máquina falha. Paralisada, lenta, grosseira, desistente, a escrita maquínica reaparece
em tantos outros números. Em sua incapacidade de dizer, esse mecanismo é captado
no momento da busca do real, porém sempre em defasagem em relação a este. O
poema 26 é esclarecedor desse desejo abortado pelo equívoco e pela finitude:
[...] O que faltou foi velocidade/ na datilografia, acurácia, para/ captar o
que sub-reptício se afastava/ e mesmo se gritante, os dedos gagos/ não
conseguiam, nas teclas, articular/ as palavras, o que se exprimia, próximo/
mas sempre além de todo mecanismo/ que embora igual aos outros,
desistia. (FREITAS FILHO, 2003, p. 47)
A máquina de escrever, gaga, falha em representar o que está sempre além de todo
mecanismo – o que, veloz, pode ser vislumbrado apenas em fuga. Tal mobilidade, do
real e do sujeito, aparece como tema em Numeral: tematizam-se a incompletude
do retrato possível – “não há espelho/ que me fixe por inteiro”, lemos em 34 – e a
falta de nitidez devido ao excesso de velocidade, como no numeral 13: “[...] O que
esvoaça, talvez, não tem cor, mas lugar:/ está atrás. Camuflado pela intrínseca/
velocidade – feito por ela – não deixa que uma/ definição, mesmo que sumária, se
estabeleça” (FREITAS FILHO, 2003, p. 41).
A indefinição aparece não apenas como tema. Diante da mobilidade do real e
do sentido, a serialidade dos poemas torna a escrita uma engrenagem movida pela
urgência ante a transformação. A fluidez e a indeterminação se desdobram no próprio
mecanismo de numeração até a morte – os poemas acrescentados até um fim
desconhecido atestando a constante mudança do corpo. Se este é flagrado em
processo – enquanto vivo –, a escrita, em íntima relação com a finitude do escritor,
se dispersa na tentativa de lidar com a duração própria ao movente.
Essa dispersão faz com que observemos a escrita não mais em sua impossibilidade
(tema constante), mas em seu poder. Não se pode ignorar a presença marcante
da temática da incapacidade: aquele que escreve retrata sua sensação de que a
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
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Mariana Quadros Pinheiro
linguagem não pode dar conta de representar seu corpo e o real, ambos em constante
transformação. Quando, porém, chamamos atenção para a serialidade de Numeral,
fazemos ver como motor da expansão da série justamente aquilo que era observado,
do ponto de vista do sujeito enunciativo, como falência. Em relação à linguagem,
não há, com efeito, falência, há potência dispersiva e produtora – escrita construída
à maneira dos puxados acrescidos às casas expandidas12.
O efeito de sentido de falha e falta, associado à temática constante da falência da
representação, é tensionado, assim, pelo procedimento de enumeração. A linguagem
se dispersa para além da limitação ou justamente devido à sua defasagem em relação
à fluidez do real que quer captar. Em um exercício contínuo, a escrita se expande
graças ao desequilíbrio, como vemos em um trecho do poema 32: “[...] Vazar, sair
da fila/ e entrar no perfil fugitivo e fluido/ do desequilíbrio, do exercício contínuo/ e
fazer um puxado, a partir da planta/ da árvore insuportável, com o vento ausente”
(FREITAS FILHO, 2006, p. 65).
Além disso, a própria caracterização do sujeito por meio da angústia ante a
incapacidade de dizer tem como revés o desejo de escrever, surgido talvez daquela
incapacidade. A limitação move, assim, sua própria transgressão: “[...] Coisa alguma.
Nunca será possível/ dizer alguma coisa. Mas existe o ensaio/ o anseio de dizê-la,
mesmo assim. [...]” (FREITAS FILHO, 2006, p. 80).
Nessa tensão entre o tema da falência e o procedimento de dispersão, o percurso
temático do erro se imbrica ao percurso da expansão. Corrigir, emendar, errar. O erro
é tomado em suas duas acepções: ao mesmo tempo, engano e dispersão. Equívoca,
a escrita se torna uma máquina falha que deve continuar seu trabalho compulsivo,
uma vez que o sentido exato foge sempre. Mais profundamente, o sentido apenas se
constrói quando equívoco, cabendo à escrita adensar o erro, multiplicá-lo. A série se
expande, dessa maneira, como sucessão de erratas, tal qual explicitado no numeral 13:
[...] Admite, apenas, sucessivas erratas/ que superpondo-se assim, não
chegam/ a corrigir, a acrescentar fôlego/ no comprimento e sentido das
linhas/ e nada sopra o espaço entrelinhado/ não dando tempo e teto
para que o vôo levante. (FREITAS FILHO, 2003, p. 41)
O tema do erro intensifica, desse modo, as temáticas da fluidez, da incompletude
e da falta de nitidez: uma vez que a escrita é uma sucessão de erros e de correções,
nunca nos é dado a ver um retrato nítido e completo do sujeito. Já que esse tema
12 Blanchot, em O Espaço Literário, enfatiza o afeto do escritor diante do que escreve: apartado da obra, o autor sente o livro como
vazio. Acreditando não ter realizado ainda a obra que deve redigir, o escritor recomeça seu trabalho e escrever torna-se, dessa
forma, o interminável (cada novo texto só fará renovar a certeza de que a obra não está terminada). Do ponto de vista da obra,
ao invés, não há falência: seu poder reside em ser, em afirmar seu poder como linguagem. Nas palavras de Blanchot (1987, p. 12),
“a obra – a obra de arte, a obra literária – não é acabada nem inacabada: ela é. O que ela nos diz é exclusivamente isso: que é –
e nada mais”.
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
O espaço autobiográfico em Numeral, de Armando Freitas Filho
ecoa na dispersão da série, a escrita errática de Numeral flagra o corpo em processo,
inacabado – não representável. Que a série não constrói uma figura acabada e orgânica
do corpo é explicitado no poema 52:
[...] Esses filtros não dão cabo/ das mil fontes em que/ a imaginação se
irriga –/ ri, se irrita da canhestra/ captação que não define/ de onde veio,
por que veia/ a figura que ainda/ não se firmou aqui:/ flor, fagulha, cisne,
clarim? (FREITAS FILHO, 2006, p. 75)
Entendida como erro, a escrita problematiza a possibilidade de representação de
um corpo em transformação ininterrupta. Vemos, assim, o quão distante estamos da
concepção de autobiografia como a construção das sucessivas figuras do sujeito ao
longo de sua história. Vemos também como, mesmo que infigurável, o corpo se
inscreve na escrita: seu inacabamento homologa-se ao inacabamento da linguagem
e o corpo se deixa impregnar pela caracterização da escrita como errante13. O poema
37 é esclarecedor do cruzamento das qualidades atribuídas à linguagem e ao corpo,
ambos entendidos como rascunho a ser alterado, em processo constante:
Dia adverso, desde o dado mais íntimo/ do corpo, que se corrige, e cada
vez mais/ é rascunho, sob os riscos de tantas emendas/ até o que passa
longínquo, público e impresso/ também sujeito a alterações, a erratas/
iguais a esses superpostos pensamentos. (FREITAS FILHO, 2006, p. 67)
Afirma-se, dessa forma, a potencialidade indefinível do corpo por meio dos poemas
em série aberta. Não só a linguagem pode indefinidamente se expandir, como o corpo
tem seu poder de transformação enfatizado pela escrita. Se a escrita se impregna da
finitude do escritor (por meio do tema da incapacidade de representar um corpo ainda
em processo), este também se contagia pelo poder dispersivo da linguagem por meio
da serialidade de Numeral.
Há, assim, uma grafia do corpo em Numeral estabelecida a partir do contágio pela
escrita das características do corpo e vice-versa. A própria caracterização da escrita
e do corpo como gestos de correção e errata é um interessante modo de observarmos
as marcas deixadas pelo corpo na escrita. Entre o retorno próprio ao ato de corrigir
e o avanço oriundo da errata, estabelece-se uma oposição temática que reproduz o
ritmo do corpo, movido pela contenção e pela expansão quando respiramos.
13 No ensaio Descrever a Máquina, Marcelo Diniz (2006) chama atenção para o poder do erro na escrita de Armando Freitas Filho:
“Longe da eliminação do corpóreo, passar a limpo é sujar o inorgânico maquínico com o que o corpo secreta como uma espécie
de emanação, fantasma, figura que é convocada menos pelo seu aspecto icônico que pelo indicial, contíguo, sudorese, mancha,
corpo extensivo impresso na máquina e através dela” (p. 133). Ou: “Passar a limpo é transferir, imprimir o corpo, desdobramento
de extensão. É sob essa perspectiva que se nos oferece a figura do corpo menos como fisiologia, organicidade definida pelas
funções constitutivas, que como potência, experiência de seus extremos, monstro” (p. 114).
Essas citações são preciosas ao situar a relação do corpo e da escrita no espaço de tensão entre a figura e o infigurável. Confirmam,
assim, nossa hipótese de que podemos pensar a autobiografia em Numeral menos pela construção de ícones do sujeito, mas
principalmente pelos índices do seu corpo único presente na série de poemas.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
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Mariana Quadros Pinheiro
Essa oposição de temas se desdobra em um procedimento de repetição e avanço
que também recoloca o ritmo respiratório como mecanismo de escrita em Numeral.
De um lado, o acréscimo de novos poemas leva à expansão e ao desenvolvimento do
discurso. De outro, a repetição, o retorno constante (freqüentemente tematizados
nos poemas) fazem-no concentrar-se sobre si mesmo:
Escrever o pensamento à mão./ Reescrever passando a limpo/
passando o pente grosso, riscar/ rabiscar na entrelinha, copiar/
segurando a cabeça, pelos cabelos/ batendo à máquina, passando
o pente/ fino furioso, corrigindo, suando/ e ouvindo o tempo da
respiração./ Depois, digitar sem dor, apagando/ absolutamente o erro,
errar. (FREITAS FILHO, 2003, p. 43)
O poema 19 evidencia tal homologia entre o ritmo da escrita e o ritmo
respiratório. Próxima ao tempo da respiração, a escrita é caracterizada como retorno,
correção furiosa. Tal qual no corpo, o movimento não se faz apenas de contenção –
as sucessivas retomadas fazendo surgir novas versões, em um movimento expansivo,
errante. No poema, a própria repetição de “passar o pente” ilumina as relações
complexas entre o procedimento de conter e o de expandir o discurso: o avanço se
estabelece a partir do retorno e da sutil transformação advinda dessa retomada, tal
qual na respiração, em que o movimento expansivo do corpo só se pode estabelecer
a partir da retenção.
A extensão da escrita e a dobra da linguagem sobre si mesma configuram-se como
índices, portanto, do contágio do corpo e da escrita. A partir das marcas deixadas
pelo corpo por meio do ritmo, a autobiografia em Numeral pode ter seu movimento
precisado. Anunciado como tensão entre a finitude do corpo e a dispersão da escrita,
o espaço autobiográfico nessa série se desenha como luta contra a contenção e a
paralisia (retenção em um texto final que não mais se corrige) por meio do poder
expansivo da série:
Em vez de ver, vencer a paisagem/ articulando a mão com o esforço/ de
torquês, para abrir os registros/ agarrados pela ferrugem, os nexos/
os canos que já perderam a luz/ para recuperar, além ou aquém/ da
superfície, a circulação/ de todo o sistema de ramais/ esquecidos por
medo, corrosão/ e amparado em imagem mais branda/ abrir, então, o
leque, inteiro e devagar. (FREITAS FILHO, 2006, p. 73)
O poema 48 estabelece uma interessante oposição entre paralisia e circulação. O
movimento do poema, de um máximo de contenção (paralisia caracterizada como
escuridão e ferrugem) até um máximo de circulação (todos os ramais livres), ajuda-nos
a compreender o sobrepujar da força dispersiva da série sobre o poder retensivo das
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
O espaço autobiográfico em Numeral, de Armando Freitas Filho
retomadas. Após a luta, nos diz o poema, a abertura branda do leque. A grafia da
finitude do corpo não se apresenta, portanto, como narrativa da perda, disforia.
Ao contrário, contra a finitude, dramatiza-se um confronto vitorioso que permite
a expansão.
Uma vez que se enumera até a morte, a vitória dispersiva da série é sempre
provisória. Por isso, o limite da morte faz o corpo e a escrita se empenharem em um
esforço constante:
[...] Agora, a corda encurta na mão/ de quem a segura, no pulso do
corpo/ sem o calço do desejo expresso/ na contagem da estrofe inicial./
Mas que continua, puro impulso/ cabo-de-guerra, vida e morte/ que
vai puxar até partir, em cima/ do que pode ser mina ou fonte. (FREITAS
FILHO, 2006, p. 81)
A enumeração, retroativa, parece indicar uma escrita pautada pela falta. De fato,
a primeira estrofe do trecho do poema 62 reproduzido acima enfatiza a ausência –
“sem” o calço do desejo, “a corda encurta”: há menos um dia de vida. Em oposição
à falta antes caracterizada, a conjunção adversativa na estrofe seguinte instaura
um efeito de sentido afirmativo. Ante a iminência da morte, o corpo se empenha
violentamente (em “cabo-de-guerra”) por perseverar. A dispersão das marcas do
corpo pela série se caracterizam, assim, como dispersão explosiva, violência produtora.
Enquanto não houver vencedores na disputa entre vida e morte, o impulso da escrita
continua a se fazer.
Fluxo contínuo, inacabados, escrita e corpo são flagrados no intervalo do confronto
entre a manutenção da vida (e da escrita) e a finitude do corpo (e da série). Como
esse intervalo não tem um termo definido, o por enquanto do corpo lança a escrita
no esforço infindável de manter a linguagem se produzindo. Dessa forma, a iminência
da morte impõe ao escritor um esforço que tende ao infinito:
Escrever é riscar o fósforo/ e sob seu pequeno clarão/ dar asas ao ar –
distância, destino/ segurando a chama contra/ a desatenção do vento,
mantendo/ a luz acesa, mesmo que o pensamento/ pisque, até que os
dedos se queimem. (FREITAS FILHO, 2006, p. 45)
O procedimento da série explicita-se como tema no numeral 23. O método da
expansão reverte-se em figura: clarão que dá asas ao ar. Essa dispersão é, além disso,
observada sob o prisma do desejo de prolongar a chama. Escrever tem como metáfora,
portanto, a manutenção da distância e da duração sob o afeto do cuidado. Inacabada,
a escrita sem um fim definível tem como correlato um corpo que se grafa no limite e
cuja duração se tenta também prolongar por meio da escrita: “parar de escrever pode
ser morrer”, afirma o poema 44.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
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Mariana Quadros Pinheiro
A autobiografia não é, pois, espaço estável. Ao contrário do apaziguamento que
se poderia esperar de um texto autobiográfico que tente mascarar o inacabamento
de quem escreve, Numeral deixa índices de um corpo e de uma escrita em construção
permanente. Flagrados em processo, corpo e escrita não são representáveis.
A problematização das representações do sujeito não torna a autobiografia em
Numeral menor, tampouco a levam a ser caracterizada pela melancolia. Para além
da negatividade subjacente à temática da falência da representação, vemos como o
desequilíbrio entre poesia e vida pode mover um mecanismo sem freios – corpo e
escrita resvalando para o infinito.
ENTRE A FINITUDE DO CORPO E O INFINITO DA LINGUAGEM –
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Um texto, quando caracterizado como autobiográfico, instaura comumente a
expectativa de uma narrativa das transformações de uma vida. Tanto mais interessantes
seriam as autobiografias quanto mais marcantes fossem essas transformações e mais
eminente a personalidade narrada. O que dizer de uma série que tem como tema
insistente a incompletude do retrato do sujeito? Como pensar a autobiografia em
poemas que, mais que narrar uma história pessoal, dramatizam a finitude do corpo
em relação com o infinito da linguagem?
É provável que a observação de um espaço autobiográfico em Numeral causasse
espanto entre aqueles que entendem a autobiografia como gênero fundado na
identidade entre o autor, o narrador e o eu. Também aqueles que buscam um teor
expressional mesmo nos textos não classificados como parte do gênero poderiam
ter sua expectativa frustrada. Diferentemente, quando compreendemos o espaço
autobiográfico como as marcas das qualidades do corpo na escrita, começa-se a
compreender a autobiografia para além da representação dos fatos da vida do sujeito.
Em Numeral, o corpo grafa sua singularidade e sua indeterminação. A singularidade
do corpo é inscrita por meio do gesto poético que recoloca na linguagem o caráter
único da enunciação. Ao tornar o enunciado aquilo que não se pode parafrasear,
a escrita faz ecoar na linguagem o gesto singular da mão que escreve. Também a
indeterminação do corpo se inscreve na linguagem: a escrita, produzida até a morte,
se deixa marcar pelo caráter inacabado do corpo e se torna fluxo, processo.
A escrita se impregna, além disso, do ritmo do corpo. O corpo, com efeito, é
flagrado na luta entre a paralisia a ser trazida pela morte (contenção) e a produção
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O espaço autobiográfico em Numeral, de Armando Freitas Filho
ininterrupta (expansão). Também a linguagem é movida pela tensão entre os
movimentos retensivos, decorrentes das repetições que ameaçam interromper o
discurso, e os gestos expansivos, oriundos dos sucessivos acréscimos.
O espaço autobiográfico se abre, dessa forma, menos pela revelação da identidade
do sujeito do que pela relação de contágio entre a escrita e o corpo. Um e outro são
fluidos, em processo. A proximidade de qualidades não funciona, porém, no sentido
de minimizar a tensão do espaço autobiográfico. A escrita, embora móvel, não dá
conta de retratar o corpo e suas transformações.
Esse desequilíbrio poderia ser observado como perda, se pensássemos a
autobiografia como um texto que teria por fim representar o sujeito. Tentamos
defender, ao contrário, que o caráter infigurável do corpo é um tema que se desdobra
na serialidade dos poemas – escrita tornada mecanismo compulsivo a partir da
impossibilidade de observar um corpo acabado. É o caráter não representativo –
ou não apenas – que favorece, portanto, a grafia da abertura e do inacabamento do
corpo em Numeral.
Enumerar até a morte se torna, dessa maneira, uma forma de transformar o limite
da vida em possibilidade de produção. Instável, o espaço autobiográfico faz ver,
assim, a impossibilidade de superar definitivamente a morte como o motor de
novos poemas – o “por enquanto” do corpo adiando o “até” da escrita e a fazendo
expandir-se.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
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Mariana Quadros Pinheiro
Referências
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Paul. Variedades. São Paulo: Iluminuras, 1999.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
“PAÍS
POEMA HOMEM”:
NOTAS SOBRE PAÍS POSSÍVEL,
1
DE RUY BELO
Antônio Andrade
Faculdade CCAA
Universidade Federal Fluminense
Colégio Pedro II
contato: [email protected]
Resumo: Este trabalho é uma leitura do livro País possível, do poeta português
Ruy Belo. Nele, tentamos demonstrar a produtividade de se pensar a relação entre
poesia, paisagem e identidade nacional à luz dos estudos de fenomenologia hermenêutica,
desenvolvidos pelo crítico francês Michel Collot.
Palavras-chave: poesia; paisagem; identidade.
Abstract: This essay is a reading of the Portuguese poet Ruy Belo’s book, País
possível, and it highlights the advantage of regarding the relationship between poetry,
landscape and national identity to the light of the hermeneutic phenomenological studies
developed by the French critic Michel Collot.
Keywords: poetry; landscape; identity.
Resumen: Este trabajo es una lectura del libro País possível, del poeta portugués
Ruy Belo. En él, tratamos de señalar la productividad de pensarse la relación entre poesía,
paisaje e identidad nacional bajo la óptica de los estudios de fenomenología hermenéutica,
desarrollados por el crítico francés Michel Collot.
Palabras clave: poesía; paisaje; identidad.
1 Este trabalho contou com o apoio do CNPq.
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Antônio Andrade
En poésie comme ailleurs, le paysage est à la fois un lieu commun qui
nous concerne tous et un espace de liberté offert à la sensibilité et à
la créativité de chacun. (Michel Collot)
Nas décadas de 1980 e 1990, o debate em torno das questões ecológicas,
da necessidade de preservação do meio ambiente, do crescimento caótico e
insustentável da urbanização, sobretudo em países periféricos, trouxe para o cenário
de diversas ciências humanas e da natureza a questão da paisagem, mais
especificamente a de sua modificação acelerada e agravante, como um tema de
estudos fundamental. Mas, para alguns autores, esse modo de perspectivar a
paisagem parece, muitas vezes, reduzi-la a uma preocupação ambientalista, de
inegável importância, é claro, sem considerar a sua abrangência não apenas como
meio natural, mas como um bem cultural, com múltiplos valores e significações. Para
Augustin Berque, geógrafo francês que iniciou os estudos da paisagem sob um ponto
de vista cultural, tais valores e significações articulam a relação entre sujeitos e
espaço de um modo dúplice: a paisagem é ao mesmo tempo entendida por ele como
marca, “pois expressa uma civilização”, e matriz, “porque participa dos esquemas de
percepção, de concepção e de ação – ou seja, da cultura” (BERQUE, 2004, p. 84-85).
A relação inextricável entre a configuração paisagística e o processo de subjetivação
– individual e coletivo – é a razão que nos impede de separar qualquer reflexão sobre
a paisagem da dialética entre natureza e cultura, a qual se complexifica ainda mais
através da tensão entre marca e matriz.
Na poesia, a questão da paisagem como bem cultural também pode ser percebida
e perseguida simultaneamente como tema e forma estrutural num viés de reflexão ou
num eixo de relações que se desenvolve em múltiplos aspectos desde o Romantismo,
atravessando o Modernismo, as vanguardas, até chegar à contemporaneidade. Esse é
o trabalho que o crítico Michel Collot empreende, em seu livro Paysage et poésie (2005),
em relação à poesia francesa. Neste estudo, meramente inicial, tentamos solicitar
e/ou incorporar, então, algumas questões levantadas por este crítico para fazermos,
assim, uma leitura do modo de configuração da paisagem no livro País possível
(1. ed., 1973), do poeta português Ruy Belo.
Em País possível, há uma nítida problematização da idéia de paisagem como lugar
de convívio e como identificação imediata à noção de nacionalidade. E já da “Nota
do autor” que abre o livro, poderíamos tomar de empréstimo uma questão de ordem
metalingüística apresentada pelo poeta para justificar nossa afirmação. Nela, Ruy
Belo diz que “a poesia é, afinal, um lugar de convívio, um local onde os poemas
reagem uns aos outros, se criticam mutuamente, se transformam uns nos outros”.
Ou seja, parece, aí, que a sua reflexão sobre a própria poesia, assim como a paisagem,
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“País Poema Homem”: Notas sobre País possível, de Ruy Belo
é perpassada pelo questionamento das idéias de harmonia e imutabilidade, pois,
através do conflito e da desterritorialização, os sujeitos/poemas das paisagens/livros
se re-significam num processo de questionamento perene da própria noção de
identidade poética/nacional. Nesse sentido, ainda que se trate de um livro atento ao
engajamento social que caracterizava as letras portuguesas do período neo-realista,
podemos dizer que País possível ultrapassa qualquer ranço de militância afirmativa e
patriótica. Pelo contrário, nele, o que há é uma profunda desestabilização do sujeito
e da imagem arquetípica de país imposta pelo regime salazarista.
Note-se, por exemplo, que o poeta considera como unidade temática desse livro
o “mal-estar de um homem que, ao longo da vida, tem pagado caro o preço de haver
nascido em Portugal”. Esse mal-estar que o afeta e que faz do “ser português” um
problema – questão latente na obra de vários outros escritores portugueses do
século XX – surge relacionado à censura ditatorial do governo que não só impede
a produção, mas se incorpora como um trauma que a experiência poética traz à
tona: “a censura se instala na sua própria consciência”. E se aqui falamos em
problematização e profunda desestabilização da idéia de sujeito é porque, a reboque
dessa internalização do silenciamento da censura como experiência que liga a
realidade subjetiva à realidade social, vêm as idéias de morte e de autodestruição,
muitas vezes encenadas nos poemas de Ruy Belo: “um homem que [...] intensamente
se autodestrói; que vai se suicidando lentamente porque essa sociedade o destrói e
assassina”.
Não à toa, o poema que abre o livro chama-se “Morte ao meio-dia”, no qual fica
nítida a relação entre as noções de temporalidade, morte e abandono, que permeiam
a ambientação de uma vida decrépita num país em que “não acontece nada” (frisa o
sujeito), em que o tempo é também uma paralisia das instituições sociais. De modo
que a imagem de Portugal, nele, fica restrita àquilo que é rechaçado pelo “mar”,
símbolo de crescimento e expansão para o imaginário lusitano: “O meu país é o
que o mar não quer”. Já em outros poemas, como “Odeio este tempo detergente”,
aparece, ainda, a questão da fixação ideológica do tempo que forjou uma idéia de
nação purificada, e portanto falsa, provocando a repulsa do sujeito: “Odeio este
tempo detergente/ [...] / um tempo que parou e só mudou/ o nome que puseram num
mundo que muda”. Nesse poema, a interrogação do sujeito quanto à sua própria
passividade diante de um tempo paralisado desliza em direção à retomada de um
tema fundamental para toda a poesia em língua portuguesa, o da “saudade”, como
meio de convulsão temporal da própria lírica: “E eu que faço eu aqui em todo este
tempo detergente quando/ sinto subitamente cem saudades tuas”.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
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Antônio Andrade
Retomando a própria etimologia do termo “paysage” em francês, vemos que ele
surgiu no séc. XVI e foi, inicialmente, usado pelos pintores. Mas logo passou a ter o
sentido que hoje tem: “Extensão de país que o olho consegue abarcar” (Larousse).
Desse modo, a noção de paisagem está associada a certa “configuração de país”. Para
Michel Collot,
Le paysage n’est pas le pays, mais une certaine façon de le voir ou de le
peindre comme ‘ensemble’ perceptivement et/ou esthétiquement organisé:
il ne réside jamais seulement in situ mais toujours déjà aussi in visu
et/ou in arte. (COLLOT, 2005, p. 12)
Tal configuração, pois, implica para ele não apenas uma percepção visual, mas
também estética, de um sujeito que, ao mesmo tempo, se define e define a paisagem
a partir de um ponto de vista.
Em País possível, contudo, o ponto de vista nunca se detém, tampouco se enraíza
numa relação de correspondência com a pátria portuguesa. Por isso, nele, ora a
representação poética da paisagem opta pelo descentramento, deslocando-se para
países estrangeiros, tal como nos poemas “Primeiro poema em Madrid”, “Do sono da
desperta Grécia”, “No aniversário da libertação de Paris”, “No aeroporto de Barajas”
etc., ora, em lugar de apresentar uma imagem de país como um todo, prefere
fragmentar-se através de um olhar que percorre campos e cidades, formando, assim,
um mosaico. No poema “Lugar onde”, por exemplo, tais idéias de movimento e
fragmentação aparecem associadas à imagem do “comboio”: “Os comboios são mansos
têm dorsos alvos/ engolem povoados limpamente/ tiram gente de aqui e põem-na ali/
retalham os campos congregam-se”. Seguindo a mesma lógica desta fragmentação,
ocorre ainda aí uma inversão do estatuto natural da paisagem como lugar de
convivência (“Neste país sem olhos e sem boca”), corroborando assim a tensa
configuração do ponto de vista de um eu solitário, embora in visu, silenciado pela
impossibilidade de um dizer coletivo (“Neste país do espaço raso do silêncio e
solidão/ solidão da vidraça solidão da chuva”).
Desvela-se, com isso, uma intrincada relação entre poesia e experiência, qual
seja, a tensão entre a necessidade latente de ver e dizer para a constituição do poema
por um lado e a imposição do silêncio que cega e cala por outro. Tudo isso aparece
imbricado, ainda, à consciência de que tanto o espaço quanto a subjetividade são
perpassados por uma linguagem poética potencialmente ambivalente. Tal
ambivalência se reflete logo na duplicidade que, segundo o poeta, é inerente à palavra
“país”: “Neste país [...]/ hábito de rios castanheiros costumados/ país palavra húmida
e translúcida/ palavra tensa e densa com certa espessura”. É importante perceber
nestes versos a passagem sub-reptícia que se processa entre a figuração da paisagem
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“País Poema Homem”: Notas sobre País possível, de Ruy Belo
portuguesa dominada por rios, a palavra “país” – que, por sua vez, adquire o caráter
úmido e translúcido das águas – e o seu desdobramento numa imagem antitética
de solidez e espessura. Essas três etapas, digamos, de um processo na verdade
simultâneo, que reúne paisagem, linguagem e subjetividade (“País poema homem” –
como na fórmula poética ruybeliana), constituem as bases do pensamento que
Collot desenvolve em diversos de seus textos, tais como La poésie moderne et la
structure d’horizon (1989) e “L’espacement du sujet” (capítulo 2 do livro Paysage
et poésie). Neste último, como em outros, onde o desenvolvimento de tal relação
é perceptivelmente tributário do estudo da fenomenologia, Collot argumenta que
a consciência se constitui como “ser-no-mundo” e o mundo não existe senão por
meio de um sujeito que “s’espace”, enquanto o mundo se interioriza como paisagem
(COLLOT, op. cit., p. 44).
Entretanto, essa correlação entre sujeito e mundo jamais se reduz a uma
identidade absoluta. Pelo contrário, sempre mantém vivo o paradoxo entre
intimidade e alteridade, ou seja, o espaçamento do sujeito no mundo – topos
romântico re-atualizado na poesia moderna e contemporânea –, nunca deixa de
manifestar a irredutível exterioridade da paisagem. Segundo Collot, “le paysage
exprime le sujet, mais il le déborde, et l’ouvre ainsi à une dimension inconnue de luimême et du monde” (COLLOT, op. cit., p. 45, grifos nossos). Tendo em vista
essa exterioridade irredutível e ininteligível – vínculo tenso e problemático entre
visível/invisível (também desenvolvido por Merleau-Ponty), dentro/ fora,
concreto/abstrato – em “Peregrino e hóspede sobre terra”, Ruy Belo reflete sobre a
impossibilidade de a poesia dar conta da paisagem e/ou representar plenamente o
que se impõe como externo ao sujeito e à língua: “A vida começa e o sol brilha/ a
tudo isto chamam primavera/ mas nada disto cabe numa só palavra/ abstracta
quando tudo é tão concreto e vário”. Por isso, podemos dizer que a experiência
paisagística requerida aí por Ruy Belo não se contém na paralisia que a atmosfera
portuguesa tenta imprimir à dinâmica espaço-temporal, como já vimos
anteriormente, visto que o eu lírico entroniza simultaneamente uma forte
necessidade de locomover-se pela paisagem (“reextravagare”) – presente na lírica
desde o Romantismo –, além da sensação de não-pertencimento a qualquer terra
(seja ela estrangeira ou nativa), nem mesmo à sua própria instância de sujeito (ao
seus locus de enunciação): “tenho de abandonar porque me vou embora/ pois eu
nunca estou bem aonde estou/ nem mesmo estou sequer aonde estou/ [...]/ Sou
donde estou e só sou português/ por ter em Portugal olhado a luz pela primeira vez”.
Ser, ao mesmo tempo, hóspede e peregrino – esta condição do sujeito, em Ruy
Belo, enceta duas formas associadas de aproximação com o mundo: indivisibilidade
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Antônio Andrade
e perda. Em “Oh as casas as casas as casas”, por exemplo, o poeta retoma a imagem
tradicional da “casa portuguesa”, a partir da qual se revela uma relação profunda
e indivisível entre homens, casas e ruas. E, em lugar de apenas promover o
desdobramento metonímico do espaço como reflexo da subjetividade, institui aí
o atravessamento e/ou a imbricação entre o mesmo e o outro, entre o externo e o
interno: “Sem casas não haveria ruas/ as ruas onde passamos pelos outros/ mas
passamos principalmente por nós”. Na esteira desta colocação, dadas as várias
fusões que tornam os liames entre sujeitos, paisagens e linguagem muito mais
intrínsecos e imperceptíveis, diríamos que a aproximação extrema com o mundo – o
grau máximo de intimidade – resulta na dissolução das fronteiras, o que significa
conseqüentemente uma perda. De outro modo, poderíamos assinalar que esta perda
não se produz pela ótica positiva de uma comunhão entre o ser e as coisas, mas
justamente por uma ligação tão íntima quanto confusa, que faz o sujeito perder-se
(“sair de si”), ao passo que desfaz a representação paisagística.
Collot também ratifica essa noção de perda em seu texto “O sujeito lírico fora
de si”, em que afirma: “Fazendo a experiência de seu pertencimento ao outro – ao
tempo, ao mundo ou à linguagem –, o sujeito lírico cessa de pertencer a si” (COLLOT,
s/d., p. 1). É interessante perceber como essa perda de si, em Ruy Belo, passa
de maneira complexa pela perda equivalente de duas grandes potencialidades
discursivas da cultura portuguesa, a saber, a fé católica e o orgulho da pátria. Em
relação à religiosidade, notemos no poema “Nós, os vencidos do catolicismo”, por
exemplo, o questionamento da fé como lugar de saber e fonte de esperança em meio
a uma sociedade empobrecida e abandonada: “Nós os vencidos do catolicismo/ que
não sabemos já donde a luz mana/ haurimos o perdido misticismo/ nos acordes dos
carmina burana”. Bem como no poema “Corpo de Deus”, a clara associação entre a
perda da religião e a descrença na poesia como lugar de acolhimento ou de afirmação
subjetiva: “A minha poesia é por vezes mínima e mesquinha/ Aqui estou eu perdido
na contemplação da unha/ a unha pequenina a que regresso sempre”.
Já quanto à questão do patriotismo, Collot também demonstra no capítulo
“Défigurations”, do seu Paysage et poésie, a associação histórica entre o
enfraquecimento das ideologias, decorrente de um contexto de guerras mundiais,
coloniais e queda das utopias, e a dissolução de certa identidade essencial entre terra
e pátria, país e paisagem. Ou seja, em outras palavras, a fragilidade das ideologias
encena-se, fundamentalmente, na poesia através da desfiguração da paisagem. E
em País possível, já desde o título, há ainda um esforço de se pôr em questão o
deslizamento semântico-ideológico da palavra país à palavra pátria – vejamos mais
um verso de “Lugar onde”: “Pátria, de palavra apenas tem a superfície”. De forma
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
“País Poema Homem”: Notas sobre País possível, de Ruy Belo
até mais radical, em “Aos homens do cais”, o poeta chega a desvincular ambas as
noções, negando a Portugal o estatuto de pátria: “– Portugal não é pátria mas país”.
Tal negação institui, por vezes, a desorientação do olhar, fruto da falta de identificação
desse sujeito com o lugar-comum que define a sua noção de pátria (vide o poema
“Sexta-feira sol dourado”: “Que alegria ser poeta português/ Portugal fica em frente”).
Em outros textos, como “Pequena história trágico-terrestre”, esse sentimento de
proscrição desdobra-se numa busca sem fim da origem dentro do próprio poema,
forma capaz, como vimos, de conectar arte e vida, emoção e metalinguagem: “À arte
dou o que devia à vida/ Vida que vai por mim contaminada/ vida do largo da areia e
do vento/ que as minhas palavras firam fundo/ A emoção seca tudo quanto a cerca e/
procuro como Livingstone as origens de um rio”. Decerto aí, bem como em todo o
livro de Ruy Belo, a bela e difícil mistura entre lirismo, narratividade e composição
paisagística, que encontra ecos nas obras de Fernando Pessoa e Cesário Verde,
desestabiliza qualquer noção de identidade, provocando a diluição simultânea tanto
da idéia de país quanto de sujeito, um e outro perdidos em meio à memória nebulosa
que envolve toda a representação do espaço lírico: “Ergo nas mãos inconsistentes
casas como/ quando nos bailes do taborda aos doze anos/ dançava ao som da
melodia das Ilhas Canárias”; “[...] Portugal/ país que só existe em pensamento/ país
morto no mar ou na memória”.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
85
Antônio Andrade
Referências
• BELO,
Ruy. País possível. 2. ed. Lisboa: Presença, 1998.
• BERQUE,
Augustin. Paisagem-marca, paisagem-matriz: elementos da
problemática para uma geografia cultural. In: CORRÊA, Roberto L.;
ROSENDHAL, Zeny (Org.). Paisagem, tempo e cultura. 2. ed. Rio de Janeiro:
EdUERJ, 2004.
• COLLOT,
Michel. Paysage et poésie: du romantisme à nos jours. Paris: José
Corti, 2005.
• ________.
O sujeito lírico fora de si. Trad. Alberto Pucheu. Revista Terceira
Margem, Rio de Janeiro, 7 Letras, ano VIII, n. 11, p. 165-177, 2004.
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
NASALIZAÇÃO EM PORTUGUÊS:
DOIS PONTOS DE VISTA
Gabriela de Campos Barbosa
Faculdade CCAA
Mestre em Lingüística pela UFRJ
contato: [email protected]
Resumo: Este trabalho demonstra como o processo fonológico de nasalização
é concebido por duas correntes teóricas: a fonologia gerativa clássica e a fonologia
auto-segmental. Definem-se e comparam-se essas duas vertentes de estudo e seus
princípios básicos.
Palavras-chave: nasalização; fonologia clássica; fonologia auto-segmental.
Abstract: This paper demonstrates how the nasal phonological process is conceived
by two current theoretical trends in Phonology: the classic generative Phonology and the
autosegmental phonology. The two trends and their main principles are defined and
compared.
Keywords: nasal phonological process; classic generative phonology; autosegmental
phonology.
Resumen: Este trabajo demuestra como se concibe el proceso fonológico de la
nasalización por dos corrientes teóricas: la fonología generativa clásica y la fonología
autosegmental. Se definen y se comparan las dos vertientes de estudio y sus principios
básicos.
Palabras clave: nasalización; fonología generativa clásica; fonología autosegmental.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
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Gabriela de Campos Barbosa
INTRODUÇÃO
A fonética interessa-se pelos sons da fala partindo de um ângulo
fisiológico-acústico, e a fonologia estuda os sons do ponto de vista funcional, como
elementos que integram um sistema lingüístico (LEITE; CALLOU, 2000).
A primeira é mais antiga, já a segunda surge a partir dos ensinamentos de Ferdinand
de Saussure (NETTO, 2001). Para ele, a distinção entre as duas disciplinas
deu-se em função da diferença entre as noções de língua (langue) e fala (parole), dois
aspectos fundamentais da língua humana.
Embora sejam interdependentes, a fonologia dedica-se ao estudo dos sons dentro
de um sistema lingüístico, e a fonética, à sua emissão concreta. Enquanto esta é
basicamente descritiva, a fonologia é “uma ciência que explica, interpreta o valor dos
sons numa língua” (BENTES; MUSSALIM, 2000, p. 106).
Com a evolução dos estudos fonológicos, os fonemas começaram a ser encarados
conforme os princípios básicos das correntes que surgiam. Basicamente, os modelos
teóricos se dividem em lineares e não-lineares. Segundo Bisol (1999), os primeiros,
também chamados segmentais, compreendem que a fala está organizada em uma
combinação linear de segmentos ou conjuntos de traços distintivos. Já os modelos
não-lineares entendem que a língua é uma organização de traços dispostos
hierarquicamente em camadas, podendo estender-se aquém ou além do segmento
ou funcionar isoladamente em conjuntos solidários. Segundo essas correntes, há
um espaço maior para entender que a análise fonológica está vinculada aos campos
fonológico, morfológico e sintático de uma língua.
Os processos fonológicos também são compreendidos de maneira particular
por cada modelo teórico. Para o entendimento da nasalização, neste trabalho,
comparamos as contribuições de duas correntes, uma de cunho linear e outra de
caráter não-linear. No primeiro caso, escolheu-se a fonologia gerativa clássica, e, no
segundo, a fonologia auto-segmental.
I. FONOLOGIA GERATIVA CLÁSSICA
Firmados os estudos fonológicos a partir do século XX, mais precisamente na
década de 1930, tem-se o fonema como unidade mínima indivisível, linear e
opositiva, capaz de, assim, distinguir significados em unidades lingüísticas mais
complexas, como as palavras.
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
Nasalização em português: dois pontos de vista
A partir do pensamento lingüístico dominante, surgem duas vertentes
estruturalistas, uma norte-americana e outra européia. A primeira baseava-se na
psicologia comportamental, behaviorista, e considerava o fonema como a soma de
todas as suas realizações concretas, ou seja, o conjunto de seus alofones. Além da
primazia do fonema, essa corrente tinha como princípios a biunivocidade entre fone
e fonema, a determinância local (que evitava a quebra da linearidade) e a separação
estrita de níveis. Suas técnicas de análise eram mecanicistas, pois se moldavam na
segmentação da fala, na distribuição dos alofones e na comutação de fonemas com
base nas cadeias sintagmática e paradigmática.
A corrente européia, representada, sobretudo, pela Escola de Praga, via o fonema
a partir de uma base abstrata, mentalista. De uma maneira geral, os autores
compreendiam a importância dessa unidade não exatamente na realização dos sons,
porém na contribuição que davam ao funcionamento lingüístico.
Deve-se acrescentar, entretanto, que alguns autores da época já davam indícios
de que a unidade mínima da fonologia não era tão indivisível assim. Começa a
aparecer, então, uma nova concepção do elemento fonológico. Este pode ser divisível
em partes menores, que refletem características fonológicas importantes. É o
primeiro indício de que a indivisibilidade e a linearidade do fonema eram premissas
que não davam conta do que se passava na realidade fonológica das línguas.
Na segunda metade do século XX, o pensamento lingüístico gerativista ganha
terreno e desenvolve a idéia de fonema como unidade fonológica divisível em traços
distintivos. A base dessa concepção é mentalista e abstrata. A linguagem passa a
ser vista como capacidade humana e a língua como um sistema de regras, ou seja, já
não é um sistema de representação ou conjunto de segmentos. O falante internaliza
essas regras e os traços que configuram um fonema.
Em 1968, Chomsky e Halle publicam The sound pattern of English (SPE), no qual
registram as características básicas sobre o modelo gerativista padrão, aplicado ao
campo fonológico. Segundo os autores,
Todo falante possui uma informação fonológica que congrega duas
formas diferentes das unidades lexicais de sua língua: uma representação
fonológica, mais abstrata e subjacente ao nível fonético [...] e uma
representação fonética, que indica como a palavra é realizada [...]
(CHOMSKY; HALLE, 1968 apud BISOL, 1999, p. 17)
No SPE, Chomsky e Halle definem os traços distintivos com base nos dois
níveis citados acima. No caso do nível fonético, os traços “são escalas físicas que
descrevem aspectos do evento de fala e podem ser tomados independentemente”
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
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Gabriela de Campos Barbosa
(CHOMSKY; HALLE, 1968 apud BISOL, 1999, p. 17). Do ponto de vista fonológico,
os traços “são marcadores classificatórios abstratos, que identificam os itens lexicais
da língua” (CHOMSKY; HALLE, 1968 apud BISOL, 1999, p. 17). Esses marcadores
têm caráter binário, ou seja, são definidos por dois pontos na escala física. Cada
ponto indica a presença ou a ausência da propriedade.
Tais traços se dividem, segundo o modelo em questão, em traços de classes
principais (silábico, consonântico e soante), de cavidade (coronal, anterior), de
corpo de língua (alto, baixo, posterior, arredondado), de aberturas secundárias (nasal,
lateral), de modo de articulação (contínuo, tenso, metástase retardada), de fonte
(sonoro, estridente) e prosódicos (duração, acento, tom). Esses traços, segundo
Chomsky, são de base profundamente articulatória, controláveis independentemente,
e não se restringem às variáveis funcionalmente distintivas.
A divisão dos segmentos em traços distintivos foi um avanço na teoria
fonológica, pois, pela sua delimitação, podem-se perceber melhor as motivações
fonéticas ou a naturalidade dos processos fonológicos. Além disso, a fonologia
gerativa conseguiu reunir, em classes, segmentos relacionados. Os traços distintivos
servem como instrumento que caracteriza esses elementos, aos quais se aplicam
regras fonológicas. Chama-se “classe natural” ao grupo de fonemas que, em sua
representação, “requer menos especificações do que aquelas que necessitam cada um
dos fonemas do grupo” (LINARES; VARÓ, 1997, p. 112). Essas classes são relevantes
para a fonologia gerativa, pois proporcionam mais economia à descrição dos segmentos
e podem, mais facilmente, explicar determinados processos fonológicos.
Os elementos de uma classe natural podem sofrer em conjunto as mesmas regras
fonológicas, o que pode prever e explicar que os processos fonológicos que ocorrem
com um, ocorrem também com outro. Por exemplo, os elementos [s, z, , 3] que
possuem os traços semelhantes – [-soante], [+contínuo], [+coronais] – neutralizam-se
em determinados contextos.
A fonologia gerativa clássica defende os seguintes critérios de análise:
a) Exaustividade: prevê um maior grau de generalização, para dar conta do maior
número possível de casos. As exceções seriam “cristalizações do léxico”.
b) Economia: diz que, quanto mais econômica a descrição, mais simples, e, portanto,
se refletiria nela a gramática internalizada.
c) Simplicidade: indica que a escolha mais simples seria a melhor.
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
Nasalização em português: dois pontos de vista
I. I. A NASALIZAÇÃO: MUDANÇA ESTRUTURAL APLICADA À
ESTRUTURA SUBJACENTE EM DETERMINADO CONTEXTO
SINTAGMÁTICO
Segundo Azeredo (2000, p. 65), os processos fonológicos são o resultado de
alterações fonéticas que sofrem os fonemas por aparecerem combinados nas línguas.
Com a nasalização na língua portuguesa não é diferente.
A partir dos pares opositivos ‘minto X mito’ ou ‘junta X juta’, Mattoso Câmara diz
que, para considerar-se a vogal nasal em português, deve-se tomá-la como “vogal e
elemento nasal” (CÂMARA, 1984, p. 47). A interpretação a que chega o autor é
baseada na organização silábica do português e reflete o caráter estruturalista de sua
leitura. Considerando que os segmentos fonológicos se agrupam linearmente na
cadeia sintagmática, Mattoso diz que esse tipo de vogal é travado por um arquifonema
|N|, que constitui uma forma de base de onde se originam as regras morfofonológicas. “|N| pode realizar-se como |m| diante de consoante labial na sílaba
seguinte; como |n|, diante de consoante anterior nas mesmas condições, e como um
alofone [ñ] posterior, diante da vogal posterior.” (CÂMARA, 1984, p. 58). Mattoso
ainda justifica a existência de uma vogal nasal em português, uma vez que, partindo
do arquifonema |N| como fato estrutural básico, uma sílaba que possua vogal nasal
não permite crase desta com vogal oral em sílaba seguinte, depois de pausa.
As explicações dadas por Mattoso para a vogal nasal se referem à combinação de
segmentos e à influência de um elemento sobre o outro na cadeia sintagmática. A
nasalização seria, então, um processo pelo qual um fonema como unidade indivisível
influencia outro.
Mattoso distingue, ainda, a nasalização opositiva da não-opositiva. A primeira,
resultado da combinação desta com o arquifonema |N|, tem resultados fonológicos
distintivos. A segunda acontece quando uma vogal sofre influência de um segmento
nasal presente em sílaba seguinte. É o caso de “cama”, onde o primeiro |a| pode
realizar-se como [a] ou [ã]. A interpretação é estrutural e linear.
Na fonologia gerativa clássica linear, os processos fonológicos são modificações
que acontecem com os segmentos da representação subjacente, quando se
convertem na cadeia de fala. A formalização desses processos exige uma
representação que inclua os segmentos alterados, a forma de alteração e os
contextos de ocorrência. Diferentemente da visão estruturalista, a fonologia gerativa
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
91
Gabriela de Campos Barbosa
clássica compreende que há uma influência não de um segmento como um todo
sobre outro, mas de traços ou traço de um fonema sobre outros da seqüência.
Aqui, as regras fonológicas são representadas por símbolos, o que caracteriza a
formalização, abstração e generalização presentes nessa corrente teórica. No caso
deste artigo, interessa-nos a regra de nasalização, que pode ser expressa assim:
|’kaNta| – [‘kãnta]
C
V [+nasal] / [ _ ] [+nasal]
(MIRA MATEUS, 1975, p. 47 apud BISOL, 1999, p. 36)
A vogal (DE – descrição estrutural) se transforma em nasal (ME – mudança
estrutural) em contexto onde seja seguida de consoante nasal. Essa regra de
transformação dá-se na estrutura subjacente e aparece derivada na representação
fonética. Acontece da direita para a esquerda em português (direcionalidade), ao
contrário de línguas como o Malay (DURAND, 1987 apud DURAND, 1990), em que
o processo é dito progressivo e ocorre da esquerda para a direita. Neste caso, uma
ou mais vogais à direita da consoante nasal são nasalizadas.
2. A FONOLOGIA AUTO-SEGMENTAL
A fonologia de base estruturalista e a fonologia gerativa clássica têm como
semelhança o fato de que ambas consideram a combinação linear de elementos
sonoros para a formação de unidades lingüísticas mais complexas. No caso da
primeira teoria, os elementos considerados são os fonemas, unidades indivisíveis
distintivas de significado. A fonologia de Praga, também estruturalista, abre portas
para a compreensão do fonema como elemento que possui determinadas características
internas, ou seja, traços que fornecem pistas para a diferenciação de significados.
A fonologia gerativa clássica, aproveitando essa concepção, entende que o que
diferencia sentidos não é o fonema em si, mas seus traços, ou “unidades mínimas
não-segmentáveis” (BISOL, 1999, p. 43). Nesse caso, são essas propriedades que
serão combinadas para formar os sons das línguas humanas. Cada fonema é
“o resultado da co-ocorrência, sem ordem definida, dos traços que o compõem”
(BISOL, 1999, p. 44). Desaparecendo um fonema, toda a matriz de traços binários
que o forma poderá apagar-se.
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
Nasalização em português: dois pontos de vista
A vertente gerativa padrão propôs avanços em relação ao pensamento fonológico
estruturalista, pois foi capaz de tecer generalizações sobre classes de sons. Processos
fonológicos que ocorrem com determinado tipo de fonema poderão acontecer com
outro semelhante. De qualquer maneira, estruturalismo e gerativismo, em fonologia,
trabalham com a combinação de suas unidades mínimas (estas sem hierarquia
definida), como se os fonemas estivessem alinhados sucessivamente. As duas linhas
enquadram-se nos chamados modelos fonológicos lineares.
A interpretação do fonema como unidade composta por traços deu margem
ao surgimento de uma série de correntes chamadas “não-lineares”. A fonologia
auto-segmental está entre elas. Aqui, os segmentos não estão mais dispostos
em sucessão, mas em camadas, por isso, esta vertente também é conhecida como
“multilinear”. Os traços que compõem o fonema também formam uma matriz, mas
ganham autonomia (auto-segmentos).
Não há mais uma relação de um-para-um (bijetiva) entre um fonema e sua matriz.
Por isso se entende que um segmento pode desaparecer durante um processo
fonológico e algum de seus traços pode permanecer em outro segmento da cadeia.
Isso significa que é comum o espraiamento de traços de um fonema a seus vizinhos.
Outro ponto importante definido na fonologia auto-segmental é que, ao contrário
da vertente gerativa clássica, que não considerava hierarquia entre os traços
constituintes de um segmento, as características fonológicas de um elemento
estão organizadas hierarquicamente. Existe uma estrutura interna entre os traços
componentes de um som. Estes podem funcionar isoladamente ou em conjunto.
Outra diferença em relação aos traços é que, neste caso, podem ser expressos
em termos de presença ou ausência (traços binários) de propriedades ou apenas de
presença (monovalência) das mesmas.
A análise dos segmentos dá-se em camadas ou tiers, capazes de dividir os
sons em partes e considerá-las de maneira independente. Uma regra fonológica pode
ocorrer em uma das camadas, isoladamente. Conforme esse modelo, “os segmentos
são representados com uma organização interna, a qual se mostra através de
configuração de nós hierarquicamente ordenados, em que os nós terminais são
traços fonológicos e os nós intermediários, classes de traços” (CLEMENTS; HUME,
1995 apud BISOL, 1999, p. 47). Essa geometria pode ser expressa em formalizações
arbóreas, tipicamente não-lineares e capazes de demonstrar a hierarquia entre
os traços fonológicos, bem como explicar as características que têm em comum.
A estrutura não é, então, aleatória:
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
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Gabriela de Campos Barbosa
X
X: unidade abstrata de tempo
p (r)
p: segmento, nó de raiz
A, B, C, D: nós de classe
B
A
a
b
c
a, b, c, d, e, f, g: traços fonológicos
C
D
d
efg
As regras fonológicas são constituídas por uma única operação (de desligamento
de uma linha de associação ou de espraiamento de um traço), ao contrário da
corrente gerativa clássica, onde podia haver um conjunto de regras aplicadas
às formas subjacentes e as operações apareciam ordenadas. No caso da corrente
auto-segmental, uma regra pode afetar um nó de classe ou traços individuais
(regra natural). Se influenciar um traço não individual, a regra é considerada não
natural.
No caso das regras naturais que envolvem um nó de classe, fica caracterizada a
economia de operações, já que não é necessária mais de uma operação para cada
característica interna ao nó. O funcionamento dos traços é solidário.
A teoria estabelece, por um lado, os seguintes tipos de nó: de raiz, laríngeo,
cavidade oral, pontos de consoante, vocálico, abertura e, por outro lado, tipos de
segmentos: simples (um nó de raiz e, no máximo, um traço de articulação oral),
complexo (um nó de raiz e, no mínimo, dois traços diferentes de articulação oral) e
de contorno (com efeito de borda, opondo-se uma a outra em termos de +-).
Vale dizer, ainda, que o modelo auto-segmental resgata a sílaba e reserva a ela
uma camada chamada silábica ou tier silábico. Aí se forma um esqueleto constituído
de posições na escala de tempo. Esta estrutura representa uma interface entre as
demais camadas representativas. No tier silábico há posições vazias que podem ser
preenchidas, dependendo do processo fonológico que ocorra na palavra. Sempre que
haja um ‘V’, este será associado a uma sílaba. O modelo admite que determinada
consoante possa pertencer a mais de uma posição silábica (ambi-silabidade). As
posições não preenchidas nesse tier são chamadas “extra-silábicas”.
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
Nasalização em português: dois pontos de vista
Pode-se resumir os princípios básicos da fonologia auto-segmental da seguinte
maneira:
1. Princípio de Não-Cruzamento de Linhas de Associação.
Como Princípio de Boa-Formação, bloqueia qualquer regra que o viole. O
espraiamento torna-se impossível se há elementos que interferem na relação de
outros dois, ao fazer com que se cruzem as linhas de relação.
2. Princípio do Contorno Obrigatório.
Elementos adjacentes idênticos são proibidos, bem como traços ou nós adjacentes
idênticos em determinada camada. Em muitas línguas, para que isto não aconteça,
ocorre a chamada dissimilação.
3. Restrição de Ligação.
As linhas de associação em descrições estruturais são interpretadas
exaustivamente. “Toda regra se aplicará somente a configurações que contenham o
número de linhas de associação que a sua descrição estrutural especifica.” (BISOL,
1999, p. 66)
3. NASALIZAÇÃO EM PORTUGUÊS: ESPRAIAMENTO DA NASALIDADE
A fonologia auto-segmental inova em relação à gerativa padrão, pois, como já
foi dito, os traços distintivos ganham independência para organizar-se em camadas
e podem funcionar isoladamente ou em conjunto. Os elementos de cada camada
ligam-se à camada superior por linhas de associação e podem espraiar-se para
posições vizinhas. O mecanismo básico desse funcionamento é representado pelas
próprias linhas de associação, que irão refletir as relações estabelecidas entre os
traços individuais ou entre os nós a que pertencem. Se há espraiamento de um traço
a outra posição, ele pode transferir-se isoladamente ou levar com ele todas as
propriedades vinculadas ao nó a que pertence.
Paralelamente ao espraiamento do traço, há que considerar a arrumação do
tier silábico ou linha esqueletal antes e depois do processo fonológico observado.
Tomemos, então, a nasalização opositiva em português como exemplo. No tier
silábico da palavra campo – |’kaNpu| – há cinco posições de tempo reservadas. A
cada uma estaria vinculado um nó de raiz, ou segmento sonoro antes da nasalização
da vogal |a|.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
95
Gabriela de Campos Barbosa
Observemos somente a sílaba cujos segmentos estão envolvidos no processo.
Originalmente são três elementos vinculados, cada um, a uma unidade de tempo.
α
X
X
X
r
r
r
C
V
C
k
ã
N
A sílaba é travada. O traço de nasalidade de |N| se espraia para a vogal anterior
de maneira independente, já que não está vinculado a outro nó de classe a não ser o
próprio nó de raiz, ou seja, o segmento em si (BISOL, 1999, p. 49). O espraiamento
da nasalidade é recebido pela vogal |a| que o assimila em sua estrutura,
transformando-se em vogal nasal. A nasalização resume-se a um processo de
assimilação. O elemento |N| não tem ponto de articulação marcado, entretanto
ocupa uma posição no tier silábico e trava a sílaba.
O modelo auto-segmental dá conta melhor do fato de que existem vogais nasais
em português, já que demonstra como um traço independente pode ser transferido
a outro adjacente, sem que se apague toda a matriz do elemento doador. A posição
silábica deste último continua preenchida, o que faz da sílaba uma unidade travada.
A fonologia auto-segmental abre campo para a compreensão dos processos
fonológicos em termos de assimilação e dissimilação. Em vez de considerar tais
alterações como uma série de processos específicos relacionados à operação que ocorre
na palavra, como fazia a fonologia clássica padrão, o pensamento auto-segmental
entende que as relações entre os elementos sonoros da língua podem ocasionar a
assimilação ou dissimilação. No primeiro caso, o espraiamento de um segmento
recebe a(s) propriedade(s) de outro. Já no segundo, há o apagamento da matriz do
segmento, pois se obedece ao Princípio do Contorno Obrigatório, segundo o qual
estão proibidos elementos e traços adjacentes idênticos. Resumindo os processos
fonológicos em dois tipos, a abordagem analítica torna-se mais econômica que no
modelo gerativo clássico, que concebia a possibilidade para mais de uma regra a ser
aplicada às camadas subjacentes e a ordenação das mesmas.
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
Nasalização em português: dois pontos de vista
CONCLUSÃO
Observando o processo de nasalização em português, segundo a fonologia
gerativa clássica e a fonologia auto-segmental, foi possível constatar diferenças e
semelhanças entre essas duas vertentes do pensamento fonológico.
Há algumas semelhanças. Ambas entendem que os fonemas são unidades divisíveis
em elementos menores e que se relacionam com outros segmentos para formar unidades
mais complexas. Acreditam que, se aplicadas determinadas regras às estruturas
fonológicas subjacentes, têm-se as representações fonéticas de determinado enunciado.
As duas também consideram que os elementos, por terem determinados traços
em comum, podem ser agrupados em classes, e isso facilita a descrição dos mesmos
e a interpretação dos processos fonológicos. Uma alteração que acontece com um
fonema de determinada classe é passível de ocorrer com outro do mesmo conjunto.
As diferenças entre as duas correntes aparecem em maior número. A fonologia
gerativa clássica compreende que os segmentos sonoros estão organizados
sucessivamente na cadeia lingüística, entretanto, não prevê ordem específica para a
distribuição dos traços distintivos em uma matriz fonológica. Se um traço se apaga, toda
matriz pode desaparecer. Esta corrente é dita não-linear. A fonologia auto-segmental,
por sua vez, acredita que as propriedades dos sons estão organizadas em camadas ou
tiers e que existe uma hierarquia entre os traços. Por isso, a representação de uma matriz
fonológica estabelece uma estrutura arbórea que especifica a relação e a dependência
entre seus elementos. Visualizam-se nós e classes de elementos. As linhas que
constituem tal ‘geometria’ especificam a relação entre os traços fonológicos e
suas classes. Se há o apagamento de um traço da matriz, esta pode não desaparecer
totalmente. Este modelo pertence aos chamados multilineares ou não-lineares.
Também quanto aos traços distintivos, a primeira corrente propõe uma representação
binária (presença X ausência) de propriedades. A segunda pode expressá-los dessa
maneira ou em termos de monovalência (presença ou ausência) de determinada
característica.
Os processos fonológicos, segundo a fonologia gerativa clássica, são compreendidos
como alterações estruturais que acontecem com os elementos sonoros quando, às
camadas fonológicas subjacentes, são impostas regras próprias de uma língua. Um
processo fonológico pode incluir mais de uma regra e, neste caso, deve haver um
ordenamento e direcionalidade (esquerda-direita X direita-esquerda) entre elas. Há
vários tipos de mudanças segundo o caráter da operação e dos elementos envolvidos.
Cada alteração recebe um título apropriado. No caso da vertente auto-segmental,
os processos fonológicos se resumem em uma única operação, que pode ser de
assimilação ou dissimilação.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
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Gabriela de Campos Barbosa
A fonologia gerativa clássica entende que a nasalização na língua portuguesa é
um processo fonológico resultado da influência de segmento nasal em outro oral,
precedente. Este se torna nasal, pois sofre mudança em sua estrutura subjacente,
desde que em determinado contexto. Este ambiente nada mais é do que a
organização específica da cadeia sintagmática. Ocorrendo organização de elementos
(sucessivamente) na cadeia, o processo acontecerá.
O modelo auto-segmental crê que a nasalização em português é um processo
assimilatório. A vogal recebe o traço de nasalidade que se espraiou do elemento nasal
posterior, tornando-se nasal. A matriz fonológica deste último não se apaga por
completo, o que reserva a ele uma posição em final de sílaba.
Referências
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98
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
AS POSSIBILIDADES DE
UMA AVALIAÇÃO DIALÓGICA
NO FÓRUM DO AVA
Susan Kratochwill
Faculdade CCAA
Universidade Castelo Branco
Consórcio CEDERJ/UERJ
Mestre em Educação
contato: [email protected]
Resumo: O objetivo deste trabalho é mostrar que uma interface digital, o fórum
de discussão do ambiente virtual de aprendizagem (AVA), pode possibilitar a
implementação da avaliação na perspectiva dialógica. O referencial teórico consistiu na
concepção dialógica da teoria enunciativa de Bakhtin, da perspectiva do desenvolvimento
de Vygotsky e dos conceitos da avaliação da aprendizagem de Luckesi e de Hoffmann.
Palavras-chave: avaliação da aprendizagem; dialógica; fórum de discussão.
Abstract: The objective of this paper is to show that a digital interface – the discussion
forum on the virtual learning environment (VLE) – can make it possible the implementation
of the evaluation in the dialogical perspective. The theoretical approach consisted in the
dialogical conception of Bakhtin’s enunciatively theory, Vygotsky’s development perspective,
and Luckesi’s and Hoffman’s learning evaluation concepts.
Keywords: learning evaluation; dialogical; discussion forum.
Resumen: El objetivo de este trabajo es revelar que una interfaz digital, el forum de
discusión del ambiente virtual de aprendizaje (A.V.A.), puede posibilitar la
implementación de la evaluación en la perspectiva dialógica. El referencial teórico consistió
en la concepción dialógica de la teoría enunciativa de Bakhtin, en la perspectiva del desarrollo
de Vygosky y en los conceptos de la evaluación del aprendizaje de Luckesi y de Hoffmann.
Palabras clave: evolución del aprendizaje; dialógica; forum de discusión.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
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Susan Kratochwill
INTRODUÇÃO
Desde o final do século XX o avanço das tecnologias digitais tem invadido as mais
variadas áreas, provocando inegáveis e irreversíveis mudanças no comportamento
social, político e econômico daqueles que, hoje, participam da nova onda de
“reconexão da humanidade consigo mesma” (LÉVY, 2000, p. 198-9). Tais mudanças
alteram cenários e vêm colocando cada vez mais em evidência a educação on-line
enquanto modalidade de ensino conectada à rede mundial de computadores.
Assim, a educação, tanto presencial quanto a distância e on-line, precisa
acompanhar essa re-evolução social e tecnológica. Entendemos a integração da
educação com o avanço das tecnologias digitais não como uma imposição que vem
atender às urgências mercadológicas, mas como resultado das mudanças que se
apresentam ao homem. Como lembra Moraes (2004, p. 8), “devemos ter em mente
que as imposições ou as resistências ou a vontade de alterar as formas de ensino
frente às tecnologias da informação e da comunicação são resultados, exclusivamente,
da grande capacidade humana de criar”. É a criatividade humana que tem
proporcionado cada vez mais avanços tecnológicos e, concomitantemente, novas
necessidades sociais e educacionais.
Ao cidadão do século XXI não cabe mais um modelo de reprodução/repetição.
Esse novo sujeito busca posicionar-se como co-autor e transformador do contexto
histórico-social no qual se insere. Para atender a esse novo personagem, a educação
bancária e o modelo analógico de emissão-recepção, que àquela servia, não bastam
mais. O sistema digital proporciona um modelo bidirecional, híbrido, polifônico, aberto
e co-participativo entre emissão e recepção, diminuindo a polaridade e aumentando
a interação e a interatividade. “A EAD, em especial pela internet, propõe o currículo
sem limites. Saberes até então excluídos do ensino invadem a cabeça dos estudantes
e de forma transgressora convidam os mesmos a fazer links e a ousar abrir janelas.”
(RAMAL, 2001, p. 13)
Neste cenário de mudanças, assumem relevância muitas das contribuições de
Paulo Freire (2005, p. 79), por trazerem em si a base epistemológica da sociedade
da informação, onde “ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa
a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo”. As
mudanças que estão atingindo a educação anunciam que os contextos de aprendizagem
não comportam mais a figura do professor-transmissor e do estudante-receptor.
100
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
As possibilidades de uma avaliação dialógica no fórum do AVA
A informação se transmite, mas a aprendizagem se constrói a partir das interações
dialógicas que (re)significam o conteúdo e sugerem a participação interativa.
O objetivo deste texto é mostrar as possibilidades de implementação da avaliação
interativa-dialógica a partir da interface fórum de discussão na educação on-line.
INTERATIVIDADE
O termo “interatividade” apareceu na década de 1970 entre críticos da mídia
unidirecional de massa, e ganhou destaque quando adotado na informática, na
busca de um termo específico para exprimir a novidade do computador que substitui
as herméticas linguagens alfanuméricas pelos ícones e janelas conversacionais,
que permitem interferências e modificações na tela. Portanto, interatividade não é
meramente um produto da tecnicidade informática. O conceito tem raízes na arte
participacionista da década de 1960 e no século XXI se apresenta como tendência
geral, como novo ambiente comunicacional que se expande pela mídia de massa,
baseada na transmissão caracterizada pela separação entre emissão e recepção.
Partimos de uma formulação mais ampla do conceito de interatividade, que diz:
Interatividade é a disponibilização consciente de um mais
comunicacional de modo expressivamente complexo, ao mesmo tempo
atentando para as interações existentes e promovendo mais e melhores
interações – seja entre usuário e tecnologias, digitais ou analógicas, seja
nas relações “presenciais” ou “virtuais” entre os seres humanos. (SILVA,
2002, p. 20)
Mais especificamente, o conceito de interatividade pressupõe um tripé
fundamental (SILVA, 2002): participação-intervenção, bidirecionalidade-hibridação,
permutabilidade-potencialidade.
No equilíbrio desse tripé fundamental do conceito está a dinâmica
comunicacional que conta com o sujeito ativo, não mais como espectador silenciado
que reproduz o conhecimento. Ele participa, compartilha e co-cria de forma
incessante, num continuum que possibilita uma teia relacional um-todos e
todos-todos, proporcionando indefinidas possibilidades de comunicação aberta.
Em situação de interatividade, emissor, mensagem e receptor mudam
respectivamente de papel, de natureza e de status. De acordo com Marchand (1987),
o emissor não emite mais no sentido que se entende habitualmente. Ele não propõe
mais uma mensagem fechada, ao contrário, oferece um leque de possibilidades que,
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
101
Susan Kratochwill
colocadas no mesmo nível, confere a elas um mesmo valor e um mesmo estatuto.
O receptor não está mais em posição de recepção clássica. A mensagem só toma
todo o seu significado sob a sua intervenção. Ele se torna, de certa maneira, criador.
Enfim, a mensagem que agora pode ser recomposta, reorganizada, modificada
permanentemente sob o impacto cruzado das intervenções do receptor e dos
ditames do sistema, perde seu estatuto de mensagem “emitida”. Assim, parece
claramente que o esquema clássico da informação que se baseava numa ligação
unilateral emissor-mensagem-receptor se acha mal colocado em situação de
interatividade.
DIALÓGICA
Segundo Bakhtin (2004), a compreensão é uma forma de diálogo. Compreender é
opor à palavra do locutor uma “contrapalavra” como forma de significação. Isto é:
A significação não está na palavra nem na alma do falante, assim como
também não está na alma do interlocutor. Ela é o efeito da interação do
locutor e do receptor produzido através do material de um determinado
complexo sonoro. É como uma faísca elétrica que só se produz quando
há contato dos dois pólos opostos. (BAKHTIN, 2004, p. 132)
Bakhtin não faz restrições ao diálogo, não impõe condições às partes nem ao
resultado. Sua crença está no fato de que tudo que o indivíduo produz está
impregnado de outras vozes, que toda produção oral ou escrita é resultado de um
diálogo, ou seja, a consciência individual forma-se coletivamente. O autônomo, o
individual, seria na verdade o social, o coletivo. Como ele mesmo diz (2004, p. 123),
“o discurso escrito é de certa maneira parte integrante de uma discussão ideológica
em grande escala: ele responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas e
objeções potenciais, procura apoio etc.”. Depara-se, então, com o pressuposto de que,
se a humanidade existe, se os sujeitos relacionam-se socialmente, conseqüentemente
a dialógica é inerente a essas relações, sem que, para isso, necessite de predisposição
para o diálogo.
No diálogo encontra-se a troca, a conversação, a influência de um no outro. Daí
a concepção de que as relações sociais são dialógicas, estruturadas pelo diálogo. Para
Lukianchuki (2001, p. 1), “as palavras de um falante estão sempre e inevitavelmente
atravessadas pelas palavras do outro [...] em linguagem bakhtiniana, a noção do eu
nunca é individual, mas social”.
Buber confirma esta visão ao afirmar que:
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
As possibilidades de uma avaliação dialógica no fórum do AVA
Relação é reciprocidade. Meu Tu atua sobre mim assim como eu atuo
sobre ele. Nossos alunos nos formam, nossas obras nos edificam [...]
Quanto aprendemos com as crianças e com os animais! Nós vivemos
no fluxo torrencial da reciprocidade universal, irremediavelmente
encerrados nela (BUBER, 2004, p. 62).
Compartilhando desta visão do “eu” com o “outro”, Vygotsky (1998) acreditava
na necessidade das mediações para o desenvolvimento do aprendizado, inclusive
auxiliadas por instrumentos e pela própria linguagem. Segundo Oliveira (1993,
p. 27), “Vygotsky trabalha, então, com a noção de que a relação do homem com o
mundo não é uma relação direta, mas, fundamentalmente, uma relação mediada”,
o que caracteriza a base do sociointeracionismo. Para melhor caracterizar esse
processo, pode-se determinar mediação como “processo de intervenção de um
elemento intermediário numa relação: a relação deixa, então, de ser direta e passa a
ser mediada por esse elemento” (OLIVEIRA, 1993, p. 26).
No entrecruzar das falas de Bakhtin e Vygotsky pode-se vislumbrar uma educação
com base nas interações, na coletividade, na dialógica e na colaboração, respeitando
o princípio de alteridade e de autonomia do sujeito. Suas teorias evidenciam a
linguagem enquanto mediadora do processo social, de ensino e de aprendizagem,
estando o processo avaliativo imbricado nestes e pautado na dialógica.
De acordo com Bakhtin (2004, p. 124), “a comunicação verbal entrelaça-se
inextricavelmente aos outros tipos de comunicação e cresce com eles sobre o terreno
comum da situação de produção”. Os processos de ensinar e de aprender não se
consolidam sem a comunicação verbal, seja ela oral, escrita ou reflexiva, e junto a ela
desencadeiam-se situações de produção necessárias à construção do conhecimento.
A partir da informação transmitida ou adquirida, o sujeito estará propenso à
construção/produção do conhecimento. Para tanto, ele necessita de espaço, de
tempo e de diálogo para consolidar o conhecimento produzido e, assim, caracterizar-se
a aprendizagem.
As práticas pedagógicas, evidenciando aqui as referentes ao processo avaliativo,
na perspectiva dialógica apresentada por Bakhtin, preocupam-se com o percurso das
trocas, isto é, aquilo que é dado como real, que é o conhecimento já dominado,
sofrerá mediações e, ao atingir o potencial, o conhecimento que o sujeito estava
pronto para alcançar, consolidará a autonomia desejada. Sob esse aspecto, Vygotsky
(1998) esclarece que entre o desenvolvimento real e o desenvolvimento potencial
do sujeito há um longo caminho de trocas a ser construído, um percurso que ele
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
103
Susan Kratochwill
denominou zona de desenvolvimento proximal (ZDP). Sendo assim, a comunicação é
fator crucial nos processos de ensinar e aprender e está além do próprio processo,
pois desse diálogo surgirão a compreensão e a significação.
AVALIAÇÃO DA APRENDIZAGEM
Os caminhos trilhados pelo sujeito/aprendiz na construção/produção do próprio
conhecimento caracterizam o processo de avaliação dialógica, visto sob o ângulo de
trocas, diálogos e mediações:
A perspectiva da ação avaliativa é percebida como uma das mediações
pela qual se encorajaria a reorganização do saber. Ação, movimento,
provocação, na tentativa de reciprocidade intelectual entre os elementos
da ação educativa. Professor e aluno buscando coordenar seus pontos
de vista, trocando idéias, reorganizando-as [...] a ação avaliativa,
enquanto mediação, se faria presente, justamente, no interstício
entre uma etapa de construção do conhecimento do aluno e a etapa
de produção, por ele, de um saber enriquecido, complementado.
(HOFFMANN, 2001, p. 63-64)
Para analisar as possibilidades de implementação de uma avaliação dialógica,
dirigida especialmente às atividades do fórum, faz-se necessário buscar nos teóricos
consagrados em estudos sobre a avaliação o referencial adequado ao embasamento
desta perspectiva. Romão (2005, p. 133) traz sua contribuição ao afirmar que “a
avaliação pode funcionar como diagnóstico ou como exame; como pesquisa ou como
classificação; como instrumento de inclusão ou de exclusão; como canal de ascensão
ou como critério de discriminação”.
Uma das primeiras barreiras que se deseja transpor aqui é a de avaliação como
ato de punição, ou seja, eliminar a “visão culposa”1 da avaliação e inserir a visão
de avaliação enquanto processo mediador do processo de aprendizagem e como
diagnóstico contínuo dos processos de ensino e de aprendizagem.
Considera-se, neste estudo, que os conceitos e os fundamentos da avaliação
independem do ambiente no qual se desenvolve a aprendizagem, e que os recursos
tecnológicos oferecidos no AVA podem potencializar novas práticas de avaliação,
1 Segundo Romão (2005), essa visão da avaliação tem raízes na civilização ocidental cristã, que tinha o pecado como referencial
(ideologia do pecado), na qual todos se puniam e puniam aos outros pelos erros, e também na ideologia burguesa alimentada pelo
Estado burguês, que tem a escola como um aparelho ideológico dos mais eficientes. Na concepção burguesa, a avaliação significa
resultado de produção, ou seja, deseja como resultado o produto daquilo que foi investido e, como em todo sistema capitalista, o
principal é o produto, e que seja positivo.
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As possibilidades de uma avaliação dialógica no fórum do AVA
posto que os dispositivos e interfaces digitais propiciam a interação, a interatividade
e a dialogia necessárias para fazer da avaliação uma subsidiária do planejamento e da
execução, um instrumento que auxilia na melhoria dos resultados, conseqüentemente
auxiliando na construção do conhecimento (LUCKESI, 2005).
Segundo Hoffmann (2001, 1994) e Luckesi (2005), enquanto teóricos da
avaliação da aprendizagem, a avaliação deve se consolidar em um processo de
acompanhamento, de mediações e de intervenções, tornando-se, então, um
processo dialógico:
A avaliação, enquanto relação dialógica, vai conceber o conhecimento
como apropriação do saber pelo aluno e também pelo professor, como
ação-reflexão-ação que se passa na sala de aula em direção a um saber
aprimorado, enriquecido, carregado de significados, de compreensão.
Dessa forma, a avaliação passa a exigir do professor uma relação
epistemológica com o aluno – uma conexão entendida como reflexão
aprofundada a respeito das formas como se dá a compreensão do
educando sobre o objeto de conhecimento. (HOFFMANN, 1994, p. 56)
Evidenciando-se a avaliação no AVA, com todas as possibilidades digitais que
o ambiente propicia, estas características da avaliação podem ser concretizadas
considerando que “a interação mútua deve ser valorizada e o trabalho autoral e
cooperativo dos alunos fomentado” (PRIMO, 2006, p. 48). A educação on-line nada
mais exigirá da avaliação além daquilo que o processo avaliativo verdadeiramente
comprometido, seja na educação presencial ou a distância, já exijam, mas que as
práticas constatadas nem sempre concretizam.
AS POSSIBILIDADES AVALIATIVAS DO FÓRUM
Vygotsky (1998) afirma que o desenvolvimento pode ocorrer de fora para dentro,
pois todas as situações vividas e observadas por meio da fala do outro e do confronto
com o outro são internalizadas e vão ganhando significados distintos conforme a
linguagem e o pensamento vão se desenvolvendo, e, dessa forma, o sujeito está
sempre aprendendo em seu cotidiano. Foi sob esta perspectiva que se considerou
o fórum como um ambiente propício ao desenvolvimento daquilo que exprime
o conceito de internalização (VYGOTSKY, 1998) e, em decorrência disto, um
favorecedor das práticas avaliativas dialógicas.
Fóruns de discussão são salas virtuais de interação muito utilizadas nos AVAs
e abordam os mais diferentes assuntos. São interfaces de comunicação assíncrona,
pois a comunicação não é feita em tempo real: as mensagens são armazenadas em
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
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Susan Kratochwill
um servidor e podem ser consultadas a qualquer tempo, acessando-se os servidores
de news integrados à internet. Esse sistema funciona quase como uma biblioteca
permanente, que se complementa a cada instante com as novas participações.
Existem fóruns que estão abertos há mais de vinte anos e, assim, “alguns especialistas
consideram que os arquivos desses grupos de discussão formam hoje a mais vasta
experiência de participação coletiva de troca de idéias jamais vista no mundo”
(ZOTTO, 2001, p. 4).
A partir dessa concepção do fórum on-line, os AVAs incorporaram didaticamente
essa interface a mais uma possibilidade interativa de aproximação das distâncias, de
colaboração, de diálogo, de socialização e de trocas de informação e reflexão. Sendo
ambientes próprios para o processo de educação formal, cumpre esclarecer como se
dimensiona o fórum disponibilizado no ambiente de ensino e de aprendizagem
on-line como mais uma possibilidade de avaliação de concepção dialógica. O fórum
com finalidades educacionais no ambiente on-line pode ser definido como:
Um espaço de comunicação formado por quadros de diálogo nos
quais se vão incluindo mensagens que podem ser classificadas
tematicamente. Nestes espaços, os usuários, e no caso que nos
referimos, fóruns educativos, os alunos podem realizar novas
contribuições, esclarecer outras, refutar as dos demais participantes
etc., de uma forma assíncrona, sendo possível que as contribuições
e mensagens permaneçam todo o tempo a disposição dos demais
participantes. (SÁNCHEZ, 2005, p. 3, tradução nossa)
Sem desconsiderar a relevância dos momentos síncronos nos processos de
ensino, de aprendizagem e de avaliação, pode-se considerar a característica
assíncrona do fórum como uma de suas vantagens. A participação assíncrona
possibilita maior empenho na pesquisa e nas leituras para o aprofundamento dos
temas, além de aprimorar a própria capacidade de desenvolver o raciocínio por meio
da escrita necessária para a participação.
Quando se vislumbra uma avaliação dialógica, em sua perspectiva diagnóstica e
formativa, a dinâmica do fórum de discussão acaba por ser mais um elemento que
vem complementar o fazer docente, mais um instrumento avaliativo que, por suas
características, possibilita a dialogia na construção do conhecimento, da mesma
forma que propicia ao estudante/aprendiz a possibilidade de se auto-avaliar, gerando,
assim, a “aprendizagem individual como resultado de um processo grupal” (ARIZA,
2000 apud BRITO, 2004, p. 5, tradução nossa). Seguindo esta característica,
ao mesmo tempo em que o docente acompanha e participa das contribuições
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
As possibilidades de uma avaliação dialógica no fórum do AVA
individuais, desenrola-se uma teia textual coletiva que acaba por caracterizar a
aprendizagem de forma colaborativa.
A efetiva possibilidade do fórum de discussão on-line, com fins educativos, pode
ser uma excelente ferramenta de avaliação:
O fórum pode chegar a constituir-se como uma grande ferramenta de
avaliação, através do qual o moderador ou docente terá em conta o
número e a qualidade das contribuições dos participantes. Além do
mais, poderá considerar questões como as colaborações complementares
dos alunos para apoiar o trabalho do outro, para complementar a
informação, ajudar a resolver dúvidas de outros companheiros, etc.
(SÁNCHEZ, 2005, p. 7, tradução nossa)
Torna-se interessante a dinâmica desenvolvida no fórum justamente pela sua
perspectiva dialógica. Dentro desse processo dialógico, a autonomia e a autoria
se constituem em respeito à alteridade, à individualidade e, ao mesmo tempo, à
coletividade. Assim, forma-se um campo rico de possibilidades, além de se
desenvolver um texto dinâmico e interativo por sua fluência de idéias, alternâncias,
descobertas e construções. “Discussão on-line é de fato uma nova forma de escrita
colaborativa. Sob esse ponto de vista, uma discussão on-line forma um único texto
com vários autores em vez de uma coleção de textos únicos.” (FEENBERG; XIN, sem
data, p. 5, tradução nossa)
O FÓRUM EM PRÁTICA
Por experiência própria, em ambientes virtuais de aprendizagem, deu-se a imensa
necessidade de procurar melhor compreender como se dão os processos avaliativos
dialógicos a partir de uma das interfaces disponibilizadas no AVA: o fórum de discussão
on-line.
Com base em uma abordagem qualitativa de perspectiva sociohistórica (FREITAS,
2002, 2003a, 2003b), foi realizado um estudo investigativo, evidenciando-se o
processo dialógico de acordo com a teoria enunciativa da linguagem de Bakhtin
(2000, 2004). Uma investigação sob esta perspectiva:
[...] enfatiza [...] a compreensão dos fenômenos a partir de seu acontecer
histórico, no qual o particular é considerado uma instância da
totalidade social. A pesquisa é vista como uma relação entre sujeitos,
portanto dialógica, na qual o pesquisador é uma parte integrante do
processo investigativo. (FREITAS, 2002, p. 21)
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
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Susan Kratochwill
Partindo do princípio de que a “avaliação da aprendizagem determina uma série
de diferenciados caminhos a percorrer na avaliação e no trabalho pedagógico
como um todo” (DILIGENTI, 2003, p. 39), considera-se como uma das possibilidades
ou um dos caminhos deste processo avaliativo no AVA a utilização do fórum de
discussão enquanto dinâmica do diálogo ou enquanto espaço dialógico.
Não há uma palavra que seja a primeira ou a última, e não há limites
para o contexto dialógico (este se perde num passado ilimitado e num
futuro ilimitado). Mesmo os sentidos passados, aqueles que nasceram
do diálogo com os séculos passados, nunca estão estabilizados
(encerrados, acabados de uma vez por todas). Sempre se modificarão
(renovando-se) no desenrolar do diálogo subseqüente, futuro. Em cada
um dos pontos do diálogo que se desenrola, existe uma multiplicidade
inumerável, ilimitada de sentidos esquecidos, porém, num determinado
ponto, no desenrolar do diálogo, ao saber de sua evolução, eles serão
rememorados e renascerão numa forma renovada (num contexto novo).
Não há nada morto de maneira absoluta. Todo sentido festejará um dia
seu renascimento. (BAKHTIN, 2000, p. 413-4)
A partir do diálogo dinamizado no fórum do AVA pode-se observar o
desenvolvimento de novas perspectivas acerca dos conteúdos estudados. O próprio
material impresso disponibilizado ao estudante/aprendiz perde a característica de
mera transmissão de conteúdos, de forma fechada e unilateral, como se fosse a última
palavra, e desenrola-se numa espiral de multiplicidades, renovando-se no contexto
dialógico. Esta interface assíncrona rompe com o falar-ditar-do-mestre e potencializa,
a partir de suas características digitais, polifônicas e plásticas, a concretização de uma
avaliação dialógica, contínua (formativa/diagnóstica) e interativa.
Para que se atinja este contexto, é de fundamental importância que o educador
esteja consciente de seu papel nesse processo e saiba que:
[...] sua competência deve deslocar-se no sentido de incentivar a
aprendizagem e o pensamento. O professor torna-se um animador da
inteligência coletiva dos grupos que estão a seu encargo. Sua atividade
será centrada no acompanhamento e na gestão das aprendizagens: o
incitamento à troca dos saberes, a mediação relacional e simbólica,
a pilotagem personalizada dos percursos de aprendizagem etc. (LÉVY,
2005, p. 171, grifo do autor)
Se o educador consegue se colocar na posição de mediador dos processos de
aprendizagem, conseqüentemente estará apto a acompanhar dialogicamente os
percursos destas aprendizagens, tornando a avaliação um processo dialógico.
Aproveitando-se do fórum de discussão do AVA, cabe ao educador-mediador incentivar,
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Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
As possibilidades de uma avaliação dialógica no fórum do AVA
provocar os diálogos que caracterizarão a oportunidade de uma avaliação mediadora que
pressupõe o contexto dialógico e, enfim, primar pela ação-reflexão-ação, o que no fórum
se concretiza como interação-reflexão-interação (HOFFMANN, 1994, 2006).
A forma como o fórum é mediado acaba por interferir diretamente na forma como
os participantes interagem com e nele. De acordo com as falas e interferências
do educador-mediador, os estudantes/participantes se sentirão motivados ou não
a participar dialogicamente da discussão proposta.
Outra possibilidade é que o fórum de discussão on-line, dinamizado numa
perspectiva dialógica e colaborativa, acabe por atender aos seguintes objetivos:
[...] (a) promover a negociação entre avaliadores e avaliados; (b) viabilizar
uma agenda de negociação; (c) obter informações que subsidiem a
negociação e (d) utilizar as informações obtidas via avaliação de forma
responsiva, isto é, para promover a discussão de questões significativas
do processo com vistas à melhor aprendizagem de todos os envolvidos.
(NUNES; VILARINHO, 2006, p. 114-5)
Sob a visão de Sánchez (2005), o fórum pode ser mais um recurso de avaliação
onde se pode observar, além da quantidade, a qualidade das participações e a forma
como um complementa e apóia a participação do outro. Complementar, refutar,
interferir na participação do outro retrata o caráter dialógico da dinâmica e ao
mesmo tempo revela como cada sujeito está construindo e reconstruindo o seu
conhecimento acerca dos assuntos (conteúdos) em debate. Tal dinâmica propicia
ao docente/mediador a possibilidade avaliativa dialógica, pois permite não só
acompanhar como também interferir no processo em que, conforme afirma Vygotsky
(1998), qualquer situação de aprendizado tem sempre uma história prévia. Ao entrar
no fórum para começar a debater um tema, o estudante traz consigo um determinado
conhecimento sobre o assunto (nível de desenvolvimento real). Mas, ao dar início
às interações e prosseguir com os debates, deseja-se que os estudantes atinjam
outro nível de conhecimento sobre o assunto (nível de desenvolvimento potencial).
Observando, interagindo e permitindo a interação no ambiente favorável que se
torna o fórum, propicia-se uma zona de desenvolvimento (zona de desenvolvimento
proximal) que:
[...] é a distância entre o nível de desenvolvimento real, que se costuma
determinar através da solução independente de problemas, e o nível
de desenvolvimento potencial, determinado através da solução de
problemas sob a orientação de um adulto ou em colaboração com
companheiros mais capazes. (VYGOTSKY, 1998, p. 112)
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A partir dos estudos de Vygotsky (1998), pode-se propor como analogia:
NÍVEL DE
DESENVOLVIMENTO
REAL
ZONA DE
DESENVOLVIMENTO
PROXIMAL
NÍVEL DE
DESENVOLVIMENTO
POTENCIAL
O primeiro contato
do estudante com o fórum
de discussão, onde ele
trará para o debate aquilo
que já tem construído e
conhecido sobre o tema.
O fórum em si, que
permite as intervenções
do educador assim como
dos demais estudantes
colaborativamente.
O conhecimento que
o estudante será capaz
de atingir após ter
interagido dialogicamente,
influenciando e recebendo
influências durante seu
debate no fórum.
Avaliação diagnóstica
(conhecendo o que
o estudante sabe).
Avaliação formativa,
mediadora, DIALÓGICA
(acompanhando o
processo construtivo
do estudante).
Avaliação somativa
(momento de
apresentação
de resultados construídos
no processo).
Dinamizando um processo avaliativo dialógico no fórum de discussão do AVA
o docente não pode se esquecer que:
[...] a visão do educador/avaliador ultrapassa a concepção de alguém
que simplesmente “observa” se o aluno acompanhou o processo e
alcançou resultados esperados, na direção de um educador que propõe
ações diversificadas e investiga, justamente, o inesperado, o inusitado.
Alguém que provoca, questiona, confronta, exige novas e melhores
soluções a cada momento. (HOFFMANN, 2004, p. 77)
O fórum de discussão dinamizado no ambiente virtual de aprendizagem pode ser
uma das possibilidades de se concretizar uma avaliação dialógica da aprendizagem na
educação on-line, ou, ainda, também pode ser utilizado com mais uma possibilidade de
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As possibilidades de uma avaliação dialógica no fórum do AVA
apoio, com o mesmo propósito, na sala de aula presencial. E, sob esta visão,
concorda-se que “é no movimento dessa rede de conexões que a avaliação da
aprendizagem deve ser gestada. Avaliar é diagnosticar e tomar decisões acerca desse
diagnóstico” (SANTOS, 2006, p. 316).
CONCLUSÃO
A utilização do fórum de discussão em ambientes virtuais de aprendizagem tem
sido uma prática docente cada vez mais constante. Os dinamizadores dessa atividade
têm descoberto, juntamente com seus aprendizes, que a utilização dessa interface
digital tem trazido muito mais interatividade e interação aos processos de ensino e
de aprendizagem. Tem proporcionado maior tempo para a participação dos aprendizes;
tem exigido deles maior necessidade de leituras e pesquisas; tem feito com que
apresentem melhor desempenho na produção escrita; tem oferecido maior liberdade
na quantidade de participações, assim como na extensão da participação; tem
propiciado possibilidades de avaliação diagnóstica/formativa individual e em grupo,
auto-avaliação e interação, aprendizagem colaborativa, além de representar um
qualificado arquivo das manifestações pessoais.
O fórum on-line propicia a interatividade por ser uma interface digital que possui
como características a participação-intervenção, a bidirecionalidade-hibridação e a
permutabilidade-potencialidade. Tais características, apontadas como fundamentos
da interatividade, são potencializadoras da aprendizagem colaborativa, considerando-se
a aprendizagem enquanto processo construtivo, sociointeracionista e mediado.
Esta interface on-line tornou-se, sem dúvida, mais um recurso didático que
tem auxiliado docentes e estudantes, de forma colaborativa, em seus processos
educacionais, sejam estes de ensino, de aprendizagem ou de avaliação. As modalidades
de ensino não presenciais têm se valido desta prática em seus ambientes virtuais
de aprendizagem, mas docentes do ensino presencial também têm aproveitado esta
interface digital como uma extensão da sala de aula, beneficiando-se da dialógica
e de todas as possibilidades proporcionadas por este recurso, colocando-se em
evidência as inúmeras possibilidades avaliativas proporcionadas.
Revista Acadêmica do Curso de Letras da Faculdade CCAA • 2008 • Vol. 1 • No 1
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DIRETRIZES PARA SUBMETER TRABALHOS
1. Os trabalhos devem ser inéditos e originais.
2. A Revista INTERSIGNOS aceita publicar trabalhos nos seguintes formatos discursivos:
artigo (entre 10 e 15 páginas), ensaio (entre 10 e 15 páginas), relato ou resumo
de pesquisa (entre 5 e 10 páginas). A Revista também publica, a cada edição, uma
entrevista com algum expoente na área (entre 3 e 5 páginas).
3. Ilustrações, tabelas, gráficos, desenhos, fotografias ou outros recursos visuais devem
ser encaminhados em CD-R separado, enumerados com algarismos arábicos, com as
respectivas legendas e a indicação, no texto, do lugar em que devem ser inseridos.
4. Os trabalhos serão apreciados pelo Conselho Editorial, que poderá sugerir
reformulações, a fim de que atendam à proposta editorial da publicação. Os textos
aprovados são revisados e corrigidos ou adequados aos padrões editoriais. Qualquer
modificação significativa será previamente apresentada ao autor, para sua
consideração. Os trabalhos que não atendam às orientações serão devolvidos
para correção e ajuste. Aqueles que não forem aceitos pelo Conselho não serão
devolvidos. Em qualquer dos casos, o autor será comunicado sobre o parecer do
Conselho Editorial. A revisão tipográfica é de responsabilidade da equipe da revista.
5. O autor do texto aprovado deverá ceder os direitos autorais à Waldyr Lima Editora
por meio de carta de cessão de direitos (cujo modelo será fornecido pela Faculdade
CCAA) devidamente assinada. Fica permitida a reprodução total ou parcial dos
trabalhos aceitos para publicação, desde que citada a fonte. Os autores têm exclusiva
responsabilidade pelos trabalhos por eles assinados e pelas opiniões que expressem,
direta ou indiretamente, em seus respectivos textos.
6. Os trabalhos devem ser enviados por e-mail ou CD para [email protected]
e [email protected] e em texto impresso, via Sedex, para Av. Marechal
Rondon 1.460, Riachuelo, Rio de Janeiro – RJ, CEP: 20.950-202, aos cuidados dos
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Orientações e normas técnicas de apresentação do trabalho:
1. Formatação dos textos: programa Word, papel A4, fonte Arial, corpo 12, espaço
entre linhas 1,5 (um e meio), texto justificado, 1cm de recuo no início do parágrafo,
3cm de margens esquerda e superior, 2cm de margens direita e inferior, páginas
numeradas.
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Estrutura dos trabalhos:
1. Elementos pré-textuais:
a) Título: primeira linha, caixa-alta, conciso, objetivo e claro. Se houver subtítulo, deve
vir na linha seguinte, também em caixa-alta;
b) Nome e identificação do autor: duas linhas abaixo do título, alinhados à margem
esquerda. Após o nome do autor, indicar formação acadêmica, instituição à qual
está vinculado e e-mail para contato;
c) Resumo do trabalho: três linhas abaixo da identificação do autor; entre 5 (cinco)
e 10 (dez) linhas; versão em português, inglês e espanhol; colocar a palavra
RESUMO em caixa-alta, seguida de dois-pontos; texto justificado, espaço simples;
texto objetivo, conciso e claro, redigido de acordo com as normas de formatação
textual da ABNT;
d) três palavras-chave que expressem os conceitos centrais do texto, em português,
inglês e espanhol.
2. Elementos textuais:
a) Alinhamento: justificado em todo o texto;
b) Espaçamento: 1,5 (um e meio) entre linhas e parágrafos, duplo entre partes do
texto (citações diretas longas, tabelas, ilustrações, etc.);
c) Citações:
i) citação indireta (paráfrase): no corpo do texto, indicando-se o ano de
publicação da obra, entre parênteses, após a menção do nome do autor;
ii) citação direta: no corpo do texto, até 3 linhas, entre aspas. Acima de 3 linhas,
fora do corpo do texto, em parágrafo separado, com um recuo de 4cm a partir
da margem esquerda, espaço entre linhas simples e em corpo 10. Após as
citações, indicam-se, entre parênteses, nome do autor em caixa-alta, ano de
publicação da obra e número da página onde se encontra a citação.
3. Elementos pós-textuais:
a) Referências: somente aquelas efetivamente mencionadas no texto, e conforme
normas da ABNT.
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