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Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 |1| Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 |1| REVISTA JURÍDICA DAS FACULDADES SECAL PONTA GROSSA – PR vol. 1, n. 1 janeiro/junho 2011 Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 Direção Geral: Profa. Isaura Cristina de Andrade Aguiar Direção Acadêmica: Profa. Rubia Cristina de Andrade Aguiar Ferreira Machado Controladoria e Gestão de Qualidade: Profa. Katya Maria Cristina de Andrade Aguiar Coordenador do Curso de Direito: Prof. Luís Fernando Sgarbossa Faculdade de Direito – Campus I Rua Barão do Cerro Azul, 827 – Centro – Ponta Grossa – PR CEP 84010-210 – Telefax [42] 3220-6700 Home page: www.secal.edu.br – E-mail: [email protected] Dados de Catalogação na Fonte: Bibliotecário Carlos Roberto Hernandez CRB 9/1682 R327 Revista jurídica das faculdades SECAL [recurso eletrônico] / Faculdade de Direito SECAL. – v. 1, n. 1 (Jan. /jun. 2011). – Ponta Grossa: Faculdades SECAL, 2011. 199 p. Semestral. Modo de acesso: http://www.secal.edu.br/revista Sociedade Educativa e Cultural Amélia LTDA – SECAL. ISSN 2237-5937 1. Direito - Periódicos. I. Sociedade Educativa e Cultural Amélia LTDA - SECAL. II.Título. CDD 340.05 Solicita-se permuta (we ask fo exchange) |2| Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 |3| Revista Jurídica das Faculdades Secal • Editor responsável: Professor Luís Fernando Sgarbossa Mestre em Direitos Humanos e Democracia pela Universidade Federal do Paraná – UFPR; Doutorando em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná – UFPR Editora adjunta: Professora Geziela Iensue Mestre em Ciências Sociais Aplicadas pela Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG; Doutoranda em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná – UFPR Linhas Editoriais: Direitos Humanos e Direitos Fundamentais; Teoria jurídica, filosofia do Direito e metodologia da pesquisa em Direito; Teoria da decisão judicial, da interpretação e da argumentação jurídicas; Temas atuais do Direito Aplicado. Conselho Editorial: Professor Doutor Ivo Dantas. Livre-Docente UFPE. Livre-Docente UERJ. Doutor em Direito UFPE. Doutor em Direito UFMG. Mestre em Sociologia UFPE. Professor Titular de Direito Constitucional UFPE. (Recife-PE) Professor Doutor Alexandre Coutinho Pagliarini. Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa (Portugal). Doutor em Direito PUC-SP.Mestre em Direito PUC-SP. (Curitiba-PR) Professor Doutor Abili Lázaro Castro de Lima. Doutor em Direito UFPR. Mestre em Direito UFPR. Professor Adjunto UFPR. (Curitiba-PR) Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 |4| Professor Doutor Cesar Antonio Serbena. Pós-Doutor pela Universidade de Buenos Aires (Argentina). Doutor em Direito UFPR. Mestre em Direito UFPR. Professor Adjunto UFPR. (Curitiba-PR) Professora Mestra Geziela Iensue. Mestre em Ciências Sociais Aplicadas UEPG. Doutoranda em Direito UFPR. Coordenadora de Pesquisa, Extensão e PósGraduação Faculdade SECAL. (Ponta Grossa-PR) Professor Mestre Ilton Norberto Robl Filho. Mestre em Direito UFPR. Doutorando em Direito UFPR. Coordenador de Pesquisa da Academia Brasileira de Direito Constitucional. (Curitiba-PR) Professor Mestre Luís Fernando Sgarbossa. Mestre em Direito UFPR. Doutorando em Direito UFPR. Coordenador do Curso de Direito Faculdade SECAL. (Ponta Grossa-PR) Professor Mestre Pablo Malheiros da Cunha Frota. Mestre em Direito UNIP. Doutorando em Direito UFPR. Professor da Faculdade Processus. (Brasília-DF) Professor Mestre Roberto Bueno Pinto. Mestre em Filosofia do Estado e do Direito Fundação de Ensino Eurípides Soares da Rocha. Doutorando em Direito UFPR. Especialista em Direito e Ciência Política Centro de Estudios Constitucionales. (Madrid, Espanha) Tradução: Luís Fernando Sgarbossa e Geziela Iensue Revisão: .... Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 |5| EDITORIAL REVISTA JURÍDICA DAS FACULDADES SECAL: UM ESPAÇO ABERTO DE DEBATE, REFLEXÃO E DISCUSSÃO SOBRE O DIREITO. É com imenso prazer que apresentamos à comunidade acadêmica das Faculdades SECAL e à comunidade jurídica local, regional e nacional, o primeiro volume da REVISTA JURÍDICA DO CURSO DE DIREITO DAS FACULDADES SECAL. Com esta publicação, desejamos contribuir para com a formação teórico-prática dos acadêmicos do Curso de Direito SECAL, bem como com a sua formação humanística, crítica e reflexiva, fim este que repercute em seu perfil editorial. Temos igualmente a ambição de, com a publicação de um novo periódico, contribuir para com a cultura jurídica local, regional e nacional, razão da captação de artigos estrangeiros em alguns volumes, cujas traduções aqui veicularemos. Filosoficamente, a Revista Jurídica do Curso de Direito da Faculdade SECAL, orienta-se por um princípio maior, qual seja, o da liberdade de expressão, em condições de igualdade, sobre todos os temas relevantes relativos ao Direito e à Ciência Jurídica e aos saberes correlatos das áreas das Ciências Sociais e Humanidades em geral. Assim, a revista tem por orientação filosófica a abertura plural para a diferença e para a diversidade, a valorização do debate científico, democrático e crítico de ideias, o fomento do debate salutar, a Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 |6| democratização do saber, a educação para os direitos humanos e para a paz, através do desenvolvimento do espírito do esclarecimento e da tolerância. A Revista contará com duas versões, uma eletrônica, outra impressa, o que possibilita maior dinâmica, maior acessibilidade, incremento na democratização do saber, viabilidade financeira e menor impacto ambiental. Sua proposta é constituir um espaço aberto de discussão e reflexão sobre aspectos teórico-práticos de seus eixos ou linhas editoriais, quais sejam, Direitos Humanos e Direitos Fundamentais, Teoria Jurídica, Filosofia do Direito e Metodologia da Pesquisa em Direito, Teoria da decisão judicial, a interpretação e da argumentação jurídicas e, ainda, Temas atuais do Direito Aplicado. Todos aqueles que, de um modo ou de outro, fazem do Direito e da Ciência Jurídica e áreas afins o objeto de suas reflexões estão convidados ao salutar debate de ideias, que prima pela abertura plural e pela ética do comprometimento com a busca da verdade (ou quaseverdade, nas palavras do Professor Newton da Costa, da UFPR). Desejamos a todos proveitosa leitura e reflexão, sempre abertos às críticas e sugestões que auxiliem o aprimoramento deste veículo. Prof. Me. Luís Fernando Sgarbossa Editor Profa. Ms. Isaura Cristina de Andrade Aguiar Diretora Geral Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 |7| SUMÁRIO 9 A contribuição da Antropologia para o conhecimento jurídico (pequeno guia rumo a novos itinerários). Elisabetta Grande. Tradução de Luís Fernando Sgarbossa e Geziela Jensen 56 Interpretações constitucionalistas e internacionalistas para a proteção do trabalho em face das dispensas coletivas em épocas de crise econômica global. Alexandre Coutinho Pagliarini e Cláudia Coutinho Stephan 73 A criminalização da moralidade: a leitura moral do Direito por Hart. Roberto Bueno 96 Norberto Bobbio e uma Teoria Geral do Direito. Sergio Manuel Fialho Lourinho 119 A atualização do sentido da norma sem a alteração de seu texto; uma análise na perspectiva da Teoria do Fato Jurídico de Pontes de Miranda. Rodrigo José Rodrigues Bezerra 140 Shopping centers e suas peculiaridades contratuais. Silvana Martinazzo 165 A entrega de nacionais ao Tribunal Penal Internacional perante a Constituição Federal. João Irineu de Resende Miranda, Luciana de Paula Pires, Kátia Stanski 193 As leis ambientais e o obstáculo da cultura predominante: um enfoque sobre a inoperância da política pública da cobrança do uso da água. Gislaine Rocha Simões da Silva 235 Normas e diretrizes para submissão de trabalhos. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 |8| SUMMARY 9 The Contribution of Anthropology to the Legal Knowledge (a litlle guide towards new itineraries). Elisabetta Grande. Translation by Luís Fernando Sgarbossa and Geziela Jensen 56 Constitutional and International Interpretations of The Protection of Labor in face of Collective Relief from Obligations in Times of Global Economic Crisis. Alexandre Coutinho Pagliarini and Cláudia Coutinho Stephan 73 The Criminalization of Morality: a Moral Interpretation of Law by H. L. A. Hart. Roberto Bueno 96 Norberto Bobbio and a Theory of Law. Sergio Manuel Fialho Lourinho 119 Updating the Meaning of Rule Without Modiffy your Text: An Analysis From The Perspective of The Legal Theory of Pontes de Miranda. Rodrigo José Rodrigues Bezerra 140 Shopping Centers and their Contractual Peculiarities. Silvana Martinazzo 165 The Surrender of National People to the International Criminal Court According to the Brazilian Federal Constitution. João Irineu de Resende Miranda, Luciana de Paula Pires, Kátia Stanski 193 The Environmental Norms and The Obstacle of the Predominat Culture: an approach on the innoperancy of the public policies on the charging of the use of water. Gislaine Rocha Simões da Silva 235 Standards and guidelines for submitting papers. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 |9| A CONTRIBUIÇÃO DA ANTROPOLOGIA PARA O CONHECIMENTO JURÍDICO (PEQUENO GUIA RUMO A NOVOS ITINERÁRIOS). The Contribution of Anthropology to the Legal Knowledge (a litlle guide towards new itineraries)1 Elisabetta Grande2 RESUMO O presente artigo tem uma dupla finalidade. Em primeiro lugar, visa traçar as grandes linhas do pensamento jus-antropológico desenvolvido após o chamado realismo jurídico, com a finalidade de evidenciar os nexos que vinculam dois debates: aquele sobre a natureza do direito ocidental produzido pelo Estado e aquele acerca do direito diverso deste. O trabalho, em segundo lugar, objetiva dar um passo adiante na utilização da abordagem antropológica do direito ocidental. Pretendemos sublinhar exatamente qual tipo de investigação pode iluminar os aspects 1 Artigo traduzido do italiano pelos Professores Luís Fernando Sgarbossa e Geziela Iensue. Artigo originalmente publicado na Rivista Critica del Diritto Privato, Napoli, Jovene Editore, ano XIV, n. 3, setembro/1993, pp. 465 a 501. Agradece-se à autora pela gentil cessão graciosa dos direitos autorais para a língua portuguesa para esta revista. 2 Professora da Universidade degli Studi de Piemonte Oriental Amedeo Avogadro, Alessandria, Itália. Autora de inúmeros livros e aritigos jurídicos. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 10 | ocultos das dinâmicas que estão no cerne da operação diária dos sistemas pertencentes à denominada western legal tradition. A Antropologia jurídica, dessa forma, colocaria seus instrumentos a serviço do conhecimento do direito, sem limitar-se a nenhuma de suas epifanias territoriais. ABSTRACT This article is twofold. Firstly, it aims to outline the main lines of thought jus-anthropological developed after the so-called legal realism, with the aim of highlighting the links which bind two debates: one about the nature of Western law and that the state produced about the right of this diverse . The work, secondly, it aims to take a step forward in the use of the anthropological approach of Western law. We intend to emphasize exactly what kind of research can illuminate the hidden Aspects of the dynamics that are central to the daily operation of the systems being in the western legal tradition. Legal Anthropology thus put their instruments in the service of knowledge of law, not limited to any of its territorial epiphanies. PALAVRAS-CHAVE: jurídico. Antropologia. Historia. Conhecimento Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 11 | KEYWORDS: Anthropology. History. Legal knowledge. 1. Relações de parentesco e relações de poder e entre poderes, solução dos conflitos: eis alguns temas caros ao jurista, mas simultaneamente caros para o antropólogo; eis, portanto, os temas que constituem o objeto de estudo precípuo do antropólogo do direito. Esta figura de estudioso, cuja disciplina ainda permanece quase que completamente desconhecida na Itália3, concentra tradicionalmente sua atenção sobre o conflito e sobre os variados modos de solução do mesmo nas mais variadas sociedades e culturas. A Antropologia jurídica nasce, realmente, como sub-disciplina da Antropologia social e cultural a partir do momento no qual coloca a si mesma a estranha pergunta acerca da existência de regras qualificáveis como jurídicas – e, portanto, da existência do direito – nas sociedades sem escrita e acéfalas, isto é, sem um poder político centralizado. Definições sobre a regra jurídica – como as elaboradas por A. R. Radcliffe-Brown4 – em termos de norma cuja observância é garantida pela aplicação de uma sanção por parte de um poder politicamente organizado que dispõe da força, aliadas ao rígido positivis- 3 As estatíticas fornecidas pela A.F.A.D., Associatin Française d‟Anthropologi du Droit evidenciam que o ensino da Antropologia Jurídica na Itália conta com apenas um curso, e ainda assim nãopermanente, em contraste com o notável número de cursos da disciplina na França e nos Estados Unidos. Veja-se o relatório de 10.10.1994, redigido pelo Presidente da A.F.A.D., Prof. Norbert Rouland. Entre as obras de síntese da Antropologia Jurídica em língua italiana indicam-se: F. Remotti, Temi di antropologia giuridica, Turim, 1982; G. Mondarini Morelli, Norme e controllo sociale. Introduzione antropologica allo studio delle norme, Sassari, 1980; R. Motta, Vecchie e nuove teorie del diritto primitivo, Alexandria, 1991; N. Rouland, Antropologia Giuridica, em Juristas estrangeiros da atualidade, coleção organizada por C. Mazzoni e V. Varanno, tradução italiana de R. Aluffi BeckPeccoz, com apresentação de P. G. Monateri, Milão, 1992. 4 A. R. Radcliffe-Brown, verbete Sanction, Social, in: Encyclopedia of Social Sciences, vol.. XIII, Londres, 1934, especialmente p. 533. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 12 | mo que imperava na Europa continental havia levado à identificação de todo o direito com um código escrito e, no mundo do common law, à aplicação férrea da regra da stare decisis em sua concepção clássica, estabelecem nos juristas e antropólogos do início do Século XX a convicção de que, nas sociedades de estrutura elementar, carentes uma autoridade central, de códigos, de cortes oficiais e de polícia, não possa existir qualquer forma de direito. Já a partir de 19625 Bronislaw Malinowski havia “indicado uma ruptura com os velhos métodos especulativos utilizando a observação etnográfica de campo para derrubar os mitos amplamente difundidos sobre o direito e sobre a ordem social nas sociedades ágrafas”6. Isso nada menos do que no período em que, quando no final dos anos trinta, o jovem Hoebel comunicou aos reconhecidos mestres da Antropologia, Ruth Benedict e Franz Boas, sua intenção de analisar o direito junto aos Cheyenne de Montana, ouvira questões sobre que tipo de direito se teria podido estudar junto a um povo carente não somente de uma estrutura política organizada de maneira centralizada, bem como de polícia e de cortes permanentes, mas carente até mesmo de juristas profissionais e de escrita. A sociedade cheyenne apresentava-se como a clássica sociedade sem legislador, sem jurista e sem Estado7, ótimo terrenoi de prova para quem, como 5 Ano no qual, como é sabido, o antropólogo escreveu Crime and Custom in Savage Society (publicado em Londres pela Routledge and Kegan Paul). 6 Nesse sentido, L. Nader, verbete Diritto e Società, 2. Antropologia Giuridica, na Enciclopedia Treccani delle Scienze Sociali, Roma, 1993, p. 134. 7 Acerca das quais remete-se a Rodolfo Sacco, Modelli notevoli di società, I Cardozo Lectures in Law, org. de P. G. Monateri e U. Mattei, Cedam, 1991; Id., Le grandi epoche del diritto, em Non solo Occidente, coleção sob a organização de M. Guadagni e U. Mattei, Turim, 199; Id., Il diritto mutto, nos Studi in memoria di Gino Gorla, Milão, 1994, tomo I, pp. 681 e ss. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 13 | Edward Adamsom Hoebel e Karl Nikcerson Llewellyn, buscasse descobrir se era possível a existência de um direito não verbalizado. Como fazer, portanto, para desvelar a existência de um direito entre os Cheyennes? A colaboração de Karl Llewellyn ao projeto de Edward Adamson Hoebel fora determinante neste ponto. O então já célebre Betts, Professor of Jurisprudence na Columbia Universtity Law School, expoente de ponta do realismo jurídico norteamericano – que havia, anteriormente, seguido o jovem antropólogo, afiliado, por sua vez, à escola funcionalista, na tese de doutoramento entre os índios Comanches8– tinha pronta a resposta que sua escola de pensamento lhe entregara. Como Oliver Wendell Holmes lhe havia ensinado, em sua época, “a vida do direito não é a lógica, mas a experiência”9. A ausência de uma law in the books não incidia, portanto, para Llewellyn, sobre a possibilidade real de estudar as regras jurídicas presentes em uma sociedade; que era sobretudo a law in action. Ademais, cerca de quinze anos antes, já Malinowski, mestre espiritual de Hoebel, ao descrever a vida e os costumes das populações das Ilhas Trobriand da Melanésia10, havia esclarecido que o direito coincidia mais com a prática do que com a normas verbalizadas. E onde seria localizada a experiência do direito senão nas controvérsias e nas maneiras através dos quais as mesmas eram resolvidas? O conflito e sua solução tornaram-se de tal forma centrais no estudo do direito junto aos Cheyenne e, mesmo que outros 8 Em seguida (1940) publicada sob o título de The Political Organization and Law-Ways of the Comanche Indians, Menasha, Wisconsin, sob os auspícios da American Anthropological Association. 9 O. W. Holmes Jr., The Common Law, Cambridge, Mass., 1881. 10 B. Malinowski, Crime and Custom in Savage Society cit. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 14 | antropólogos antes de Hoebel e Llewellyn tivessem estudado as controvérsias e sua solução nas sociedades tradicionais11, o método casuístico – chamado “case method approach” –, que dali em diante dominou a cena entre os antropólogos do direito, foi sempre atribuído aos dois autores de The Cheyenne Way: Conflict and Case Law in Primitive Jurisprudence12. O direito revela-se, para Hoebel e Llewellyn, no momento da lide e de sua composição e, para além da qualificação da norma que acaba por ser aplicada como jurídica ou não, ou das instituições estabelecidas para dirimí-la, a controvérsia emerge como unidade de análise, presente em todas as sociedades e, por isso mesmo, instrumento idôneo de comparação. O exame dos litígios resolvidos publicamente permite aos dois pesquisadores descobrir quais são as consequências jurídicas do homicídio, assim como as normas que regem o matrimônio, o adultério, a propriedade e as sucessões hereditárias entre os Cheyenne de Montana. Após o estudo de Hoebel e Llewellyn a questão se as sociedades sem escrita, sem cortes, sem juristas, sem legisladores e sem poder centralizado pudessem ter um direito foi definitivamente respondida em sentido positivo e, com ela, foram afastados em larga medida também as tentativas de dar uma definição restritiva do conceito de norma jurídica e de direito... Uma definição, em relidade, simultaneamente inclui e exclui. 11 Ver, p. ex., J. Richardson, Law and Status Among The Kiowa Indians, Nova Iorque, 1940; R. F. Barton, Infugao Law, in: Univestity of California Publications in American Archaeology and Ethnology, 1919, XV, 1, pp. 1-186. 12 Publicado pela Oklahoma University Press em 1941 e republicado em 1992 na coletânea The Legal Classics Library por Gryphon Editions. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 15 | Demarca um âmbito; insere algo no interior desse âmbito e exclui algo mais: e a exclusão é quase sempre arbitrária. Eu não tenho a pretensão de excluir nada do âmbito jurídico”. Em certo sentido o direito é tão amplo quanto a própria vida, afirmava Llewellyn13. No rastro desses autores, os jus-antropólogos tendem atualmente a identificar o direito com a noção ampla que lhe conferia Malinowski, como sistema de controle social14. O terreno estéril das definições parece, desse modo, abandonado15. 2. a) Após o estudo da sociedade Cheyenne, o conflito e sua solução constituíram durante muito tempo o paradigma de referência dos estudos de antropologia jurídica. A controvérsia passa a ser estudada em sua complexidade. 13 Ver o relato de W. Twining, Karl Llewellyn and The Realist Movement, Londres, 1973, p. 571. Veja-se, por todos, L. Nader, verbete citado, passim, especialmente pp. 136-137: “Em outras palavras, o estudo antropológico do direito não conhece limites pré-concebidos, e coloca em discussão, ainda, as ideias ou os conceitos pré-constituídos relativos ao direito.” 15 Acerca das conceituações resta presa ainda apenas uma pequena parte da antropologia, a de língua francesa. Em testemunho das preocupações dogmáticas, não compartilhadas com a antropologia jurídica norte-americana, típica dos antropólogos do direito franceses, estão as tentativas de definir o objeto de investigação da disciplina através de distinções terminológicas entre etnografia, etnologia e antropologia jurídica. Veja-se N. Rouland, Antropologia giuridica cit., pp. 120 e ss. É sobre preocupações de ordem conceitual que se funda, ainda, a rejeição recente do conceito de pluralismo jurídico por uma parte da antropologia jurídica, sobretudo a francesa, que distingue entre pluralismo “jurídico” e pluralismo “normativo”, atribuindo ao segundo termo um conteúdo mais amplo, compreensivo das normas “implícitas” e “inferenciais”, “de elaboração interacional e não institucional”. Neste sentido, R. A. MacDonald, Pour la reconnaissance d‟une normativité implicite et „inférentielle‟, in : Sociologie et Sociétés, XVIII, 1, abril 1986, pp. 47 e ss. ; G. Roscher, Pour une sociologie des ordres juridiques, in : Les Cahiers de droit, 29, 1, 1988 ; A. Lajoie, Analyse du language et internormativité dans un territoire autochtone ; Kahnawake, Centre de Droit Public, Université de Montréal, 1993, citados por R. Motta, Intorno ai concetti giuridici e antropologici. Occidente e altri « blochi culturali » a confronto, in : Materiali per una storia della cultura giuridica, 1995, p. 434. O recurso a tais distinções evidencia, em realidade, as dificuldades em aceitar uma definição de direito desvinculada de confins pré-concebidos, pelo que existiriam normas jurídicas propriamente ditas (aquelas não mais implícitas, inferenciais e interacionais) e normas jurídicas “menos jurídicas”, apenas e somente “normativas”. Ver R. Motta, op. cit., especialmente p. 431. Para uma crítica ao conceito de pluralismo baseado em pressupostos de caráter definitório, ver ainda J. Carbonnier, Sociologie Juridique, A. Colin, Paris, especialmente pp. 150 e ss., bem como as observações a respeito feitas por N. Rouland, op. cit., p. 85. 14 Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 16 | O método etnográfico, ilustrado por Malinowski no primeiro capítulo dos Argonautas do Pacífico16, levou os antropólogos a confrontar-se com realidades caracterizadas por modos de solução de controvérsias bastante diversos entre si. A classificação respectiva variou de acordo com o ponto de observação adotado. A distinção baseada na intervenção de um terceiro (ou sua ausência) na resolução do litígio contrapõe a negociação entre as partes – a denominada solução diádica – à mediação, à arbitragem e à decisão jurisdicional reclamada perante órgãos públicos – a denominada solução triádica. Uma classificação diversa, fundada desta feita na existência de terceiro que atue como decision maker, contrapõe, ao contrário, a tratativa – ou negociação entre as partes – e a mediação à arbitragem e à decisão por parte de órgãos judiciários17. Nas duas primeiras hipóteses, de fato, a decisão da controvérsia compete às partes que, no caso da mediação solicitam a um terceiro tão-somente a tarefa de propor uma solução: o mediador estimula as partes a resolver o litígio, não decidindo por elas. Diversamente estão as coisas relativamente à arbitragem, no qual o árbitro é escolhido pela parte com a finalidade de decidir por ela. Neste último caso, assim como na hipótese de uma solução requerida a um órgão público, o decision maker é um terceiro. Naturalmente, como nos faz perce16 Argonauts of the Western Pacific, 1922, republicado em 1984 pela Waveland Press. A elaboração da distinção entre negociação e decisão judicial com base na presença ou ausência de um third-part decision-maker deve-se sobretudo a Philip Gulliver. Em seu trabalho clássico Disputes and Negotiations – Cross-Cultural Perspective, Nova Iorque, 1979, o autor busca demonstrar, através de uma comparação entre as negociações dirigidas a solucionar as controvérsias trabalhistas no sistema norte-americano e o modo de solução dos litígios junto ao povo agricultor dos Arusha da Tanzânia, o modo como as tratativas entre as partes encontrem uma mesma estrutura em todos os lugares, seguindo trajetórias e fases análogas em todas as sociedades, independentemente do objeto da disputa. 17 Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 17 | ber Peter Stein, “abstratamente, é nítida a distinção entre o mediador, que auxilia as partes a chegar a um acordo, e o árbitro que, a pedido delas, decide em lugar das mesmas. Na prática, frequentemente é difícil distinguir ambas as figuras, e por vezes os antropólogos utilizaram os dois termos indiferentemente. Em ambos os casos, os litigantes devem aceitar voluntariamente a decisão para que ela tenha eficácia. Ela não pode, como ocorre com a sentença das cortes regulares, ser imposta às partes contra a sua vontade. Muitas vezes pode não ser realmente claro se tratase de uma decisão das partes que o mediator conseguiu obter delas ou de uma decisão do árbitro”18. Convém observar como ambas as classificações mencionadas não levam em consideração os comportamentos unilaterais, ou seja, as formas de autotutela. Em uma ótica diversa, os modos de solução das controvérsias podem ser distintos por serem formais ou informais: em tal perspectiva, a contraposição vê, de um lado, a decisão jurisdicional, e, de outro, as formas de solução tradicionais, vale dizer, a arbitragem, a mediação, a trataria e a autotutela. b) Independentemente da perspectiva adotada, as diversas formas de solução de controvérsias foram vinculadas com as diversas formas políticas e econômicas características das diversas sociedades estudadas. 18 Neste sentido, P. Stein, I fondamenti del diritto europeo. Profili sostanziali e processuali dell‟evoluzione dei sistemi giuridici, in Giuristi stranieri di oggi, coleção organizada por C. Mazzoni e V. Varanno, apresentação de A. De Vita, M. D. Panforti e V. Varanno, Milão, 1987, p. 6. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 18 | As sociedades acéfalas, sem organização estatal, revelaram-se dotadas de mecanismos capazes de assegurar a ordem social e de resolver as disputas de modo completamente análogo ao que ocorre nas sociedades de poder centralizado por força das leis e de sua aplicação por parte de tribunais. Isso confirma o dado de que a ordem não se atinge necessariamente através da presença de uma autoridade central que faça uso da força e, para isso, valha-se da lei escrita, dos tribunais e da polícia. Por muito tempo os etnógrafos buscaram relacionar o desenvolvimento econômico com as formas de solução de conflito, em uma perspectiva tipicamente evolucionista. Fora observado, assim, que para as sociedades de caçadores-coletores a obtenção de um acordo entre as partes em conflito não era indispensável, diferentemente do que ocorria nas sociedades agrícolas, nas quais a sedentarização tornava crucial o caráter pacífico do convívio. A violência e a autotutela conviviam assim muito melhor nas sociedades da primeira espécie do que nas da segunda19. O aumento da complexidade dos meios de produção foi conectado com a modificação dos modos de solução das controvérsias com o objetivo de sustentar que ao desenvolvimento econômico da sociedade faria contraponto uma sucessão das formas de resolução das controvérsias que veria em seu primeiro grau a autotutela e a negociação entre as partes e, após, em ordem sequencial, a mediação, a arbitragem e, afinal, a 19 V. P. Gulliver, Nomadic Movements: Causes and Implications, in: Pastorialism in Tropical Africa,T. Monad (org.), Londres, 1975, pp. 369 e ss.; E. Colson, Social Control and Vengeance in Plateau Tonga Society, in: Africa, 23 (3), 1953, pp. 199 e ss.; M. Gluckmann, Custom and Conflict in Africa, Oxford, 1955. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 19 | decisão jurisdicional20. Nessa ótica, a presença do órgão público jurisdicional seria típico das sociedades mais evoluídas, ao passo que as mais simples revelar-se-iam carentes até mesmo do instrumento da mediação21. A filosofia evolucionista subjacente desenvolveu-se a ponto de considerar cada grau da escala indicada como pressuposto necessário para a passagem à fase econômico-jurídica seguinte22. Somente a comparação transculturam pode refutar a exatidão de teorias semelhantes. Sociedades de caçadores-coletores comparadas revelaram utilizar formas diversas de solução das disputas: os Innuit, estudados por Hoebel, privilegiavam a violência e a autotutela, contrariamente do que se verificava junto a alguns povos que habitavam o deserto do Kalahari23, que resolviam pacificamente as próprias controvérsias24. Observou-se como sociedade economicamente mais simples faziam uso de instrumentos de solução de conflito situados em um grau mais elevado em comparação a sociedades economicamente mais complexas, e como sociedades situadas no mesmo grau de desenvolvimento econômico utilizassem diferentes mecanismos de solução de controvérsias. Sociedades industriais “altamente civilizadas”, aí compreendida a sociedade internacional, ademais, 20 L. T. Hobhouse, G. C. Wheeler, M. Ginsberg, The Material Culture and Social Institutions of the Simpler Peoples, Londres, 1930. 21 E. A. Hoebel, The Law of Primitive Man, Cambridge, Mass., 1954. 22 Remete-se a R. D. Schwartz, J. C. Miller, Legal Evolution and Societal Complexity, in: American Journal of Sociology, 70 (2), 1964, pp. 159 e ss. 23 W. Ury, Disputes Resolution Notes form The Kalahari, in: Negotiation Journal, 6 (3), 1990, pp. 229 e ss. 24 Sobre questão ainda recente veja-se L. Nader, VI Cardozo Lectures in Law, P. G. Monateri e U. Mattei (orgs.), sob o título Antropological Projects: Law in motion, ocorrido em Trento, dias 26 e 27 de maio de 1996, no prelo por Harmattan-Italia. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 20 | tendem hoje a migrar de um modelo conflituoso e jurisdicional de solução do conflito para um modelo de tipo conciliatório e informal25. c) É exatamente o perfil do caráter conciliatório mais do que conflitual do modo de solução da controvérsia, de outro lado, propiciou um certo número de informações. A passagem dos modos informais de resolução do conflito – negociação, mediação e arbitragem – à solução de tipo jurisdicional coincide, nas observações dos antropólogos do direito, com o progressivo declínio do caráter conciliatório da composição do litígio. Isso é tanto mais verdadeiro quanto mais o órgão decisório público for expressão de uma verdadeira autoridade estatal, que pode dispor da força para convocar diante de si os litigantes e para fazer executar as próprias decisões26. O procedimento informal visa à obtenção de um compromisso aceitável para ambas as partes, na medida em que a ameaça da retorsão em caso de ausência de acordo opera para os contendores como um incentivo à renúncia de parte das próprias pretensões. Em um contexto análogo, a solução final dependerá não apenas da aplicação das regras jurídicas ao caso, mas também ao peso do status, da força política e das relações interpessoais entre as partes. Nesse contexto, ademais, o direito 25 L. Nader, Civilization and Its Negotiations, in: Understanding Disputes, The Politics of Argument, P. Caplan (org.), Oxford-Providence, 1995, pp. 39 e ss. 26 É evidente que o binômio modelo conflitual/modelo conciliatório não é coincidente com o binômio resolução formal judicial/resolução informal das disputas, todas as vezes em que, restando em aberto a via da autotutela, as partes optem por esta alternativa. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 21 | não será objeto de uma aplicação estrita (o que, todavia, não é feito às custas da certeza, como demonstram Hoebel e Llewellyn) 27 e o âmbito da controvérsia não terá contornos predeterminados, podendo as partes incluir nele mais de uma questão. A organização judicial estatal modifica sobretudo o aspecto conciliatório do modo de solução do litígio. Como nos chama a atenção ainda o mesmo Peter Stein, de fato, “uma corte instituída por uma autoridade central, que tem atrás de si o peso da comunidade, não tem o dever de reconciliar as partes. Em maior ou menor grau, pode impor a elas sua decisão, aplicando-a coativamente, quer elas a aceitem, quer não”28. A decisão judicial pode, assim, dar razão total a um dos dois litigantes, sem dever, ao menos de maneira aparente, levar em consideração fatores diversos daqueles estritamente jurídicos, que tornem a solução tomada aceitável do ponto de vista da parte vencida. A norma jurídica, que doravante tende a ser enunciada abstratamente, antes do surgimento da controvérsia, recebe portanto uma aplicação necessariamente mais rígida, enquanto a disputa ostentará confins préestabelecidos dos quais a corte não poderá afastar-se na decisão da causa. Estaremos, assim, muito próximos daquele modelo que será definido como o clássico legal process, com suas características de verbalização de um complexo de normas conhecidas e precisas, que encontram apli- 27 “Embora não houvesse juristas profissinais junto aos Cheyenne e raramente as regras jurídicas fossem enunciadas com precisão, os juízes Cheyenne eram capazes de aplicar seu sistema jurídico não-escrito com sabedoria e segurança dignas dos maiores magistrados da tradição euro-americana”, explica-nos Laura Nader, na introdução à mais recente edição do trabalho de Hoebel e Llewellyn (Derlan, N. J., 1992). 28 P. Stein, op. cit., p. 16. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 22 | cação geral em juízos que separam os fatos relevantes para a causa daqueles irrelevantes29. Exemplifica tal estado de coisas uma comparação entre o modo de resolução dos litígios entre os povos estudados por Philip Gulliver, Paul Bohannan e Elisabeth Colson, ou seja, respectivamente, os Ndendeuli do sul da Tanzânia, os Tiv da Nigéria setentrional, e os Gwembe Tonga, população da planície nos limites entre a Zâmbia e o Zimbabue. Entre os Ndendeuli do sul da Tanzânia chega-se à solução das controvérsias através da negociação entre grupos opostos, integrados pelos parentes e apoiadores das partes em litígio. Aqueles que não queiram tomar partido a favor de uma ou da outra das partes atuam como mediadores. “A solução de uma controvérsia no interior da comunidade entre os Ndendeuli”, explica-nos Phil Gulliver, “depende não apenas da aplicação das normas, do reconhecimento dos direitos e das expectativas de tipo jurídico, ou da respectiva força contratual das partes litigantes e de seus apoiadores, mas também de considerações relativas aos efeitos que o novo atitude produzirá sobre os interesses da comunidade como um todo e sobre a continuidade da cooperação e da concórdia entre vizinhos”30. Nas palavras de Peter Stein: “Na busca de soluções os Ndendeuli farão referência a normas e praxes amplamente aceitas nas sociedades, mas poderão utilizar também outros argumentos, como a necessidade de pro29 P. Stein, op. cit., pp. 16 e ss. Ver ainda R. Schlesinger, H. Baade, P. Herzog, E. Wise, Comparative Law, 1994, 80-1. 30 P. Gulliver, Disputes Settlements Whithout Courts: the Ndendeuli of Southern Tanzania, in: Law, Culture and Society, L. Nader (org.), Chicago, 1969, p. 67. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 23 | teger os grupos existentes e a harmonia da sociedade em seu conjunto”31. Entre os Tiv, da Nigéria, na época em que tal população foi estudada por Paul Bohannan, o domínio colonial já tinha imposto uma solução das controvérsias de tipo jurisdicional. Nada obstante, a elaboração de mecanismos decisórios judiciários é interessante observar o modo como a escassa influência exercida pelo poder estatal colonial sobre as instituições locais tenha, de fato, mantido entre os Tiv algumas características da solução de conflito típicas das sociedades de poder difuso. O tribunal indígena instituído pelos ingleses – o jir mbatarev – apresenta uma forte comistão de elementos tradicionais e modernos. Particularmente o aspecto tradicional pode ser percebido no caráter necessariamente conciliatório da decisão. Mesmo que o processo se desenrole na presença de um policial armado de bastão, o qual teria por tarefa fazer executar a sentença, esta é, na realidade, reconhecida como válida e eficaz apenas se a solução proposta pela corte recebe o assentimento por parte dos dois contendores. Caso contrário, o caso é considerado como não-resolvido, eis que não é sobre a coerção oriunda do uso da força pública estatal que o tribunal Tiv funda sua própria capacidade de impor a decisão32. O caráter compromissório que esta última assume implica, ademais, a possibilidade de a corte ampliar o processo relativamente ao fato específico que constitui objeto da disputa, bem como de recorrer a argumentos diferentes daqueles meramente jurídicos para encontrar a solução a ser proposta. An31 32 P. Stein, op. cit., p. 8. P. Bohannan, Justice and Judgement among the Tiv, Londres, 1957, pp. 60 e ss. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 24 | tes, como sublinha Bohannan, a decisão final do jir muito raramente faz referência a normas jurídicas: “A finalidade da maior parte do jir é a de determinar um modus vivendi: não a de aplicar o direito, mas a de decidir aquilo que é justo em um caso particular. Frequentemente os Tiv buscam tal finalidade sem fazer qualquer referência explícita a normas ou „leis‟” 33. Entre os Gwembe Tonga, população estudada por quase quarenta anos por Elisabeth Colson, a penetração do poder estatal é atualmente evidente, sobretudo quanto ao modo diverso de gerir os conflitos relativamente ao passado. O instrumento jurisdicional é atualmente o principal modo de resolução das controvérsias. No passado o mecanismo de solução de conflitos mais utilizado era constituído pela tratativa pública entre grupos familiares, durante a qual os membros mais velhos de cada grupo especificavam as razões do litígio, declaravam as normas aplicáveis e buscavam uma solução aceitável para ambas as partes. Em 1956, quem não estivesse satisfeito com a solução negociada poderia recorrer à Chief‟s Court instituída pela administração colonial, então chamada local court, junto à qual vigoravam algumas das formalidades típicas do modelo clássico de legal process34. Tais formalidades são hoje próprias do headman‟s court, corte do chefe de vilarejo, tornada parte da organização judiciária estatal após 1991, na qualidade de tribunal de primeira instância. Como Colson nos faz observar, a mudança do modo de solução das disputas incidiu em duplo sentido sobre os temas que são objeto de litígio. De um lado, assiste-se ao aumento de controvérsias sobre questões de 33 34 Neste sentido, P. Bohannan, op. cit., p. 19. E. Colson, The Social Organization of Gwembe Tonga, Manchester, 1960, pp. 171-176. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 25 | bagatela, que em outros tempos não teria podido constituir objeto de tratativa pública, posto que dificilmente os litigantes teriam encontrado apoio de seus familiares caso a disputa fosse considerada de pouca importância. De outro lado, a decisão não mais assume caráter conciliatório; as partes são obrigadas a apresentar no tribunal apenas os fatos relevantes para a causa, sem poder apelar para aspectos mais gerais, relativos às suas relações recíprocas; a corte pode julgar e decidir unicamente acerca das questões aventadas pelas partes; sobre os litigantes paira a ameaça do poder estatal para o caso de serem violadas as formalidades processuais ou de não ser respeitada a decisão da corte35. Em conclusão, a tipologia das análises de campo relatadas, ao testemunhas a passagem gradual dos modos informais de solução dos litígios para uma solução de tipo jurisdicional torna óbvio o quanto a presença do Estado constitua, simultaneamente, origem e explicação do modelo conflitual de resolução das controvérsias. d) Regras jurídicas e princípios gerais não são, portanto, ausentes nas sociedades sem escrita e sem Estado. Estas, como demontrara J. Goody36, revestem simplesmente um papel e ocupam um espaço diverso – mas nem por isso menos importante – no pensamento, nos discursos e na prática relativamente ao que ocorre nas sociedades nas quais existem 35 E. Colson, The Countenciousness of Disputes, in: Understanding Disputes, cit., 1995, pp. 65 e ss.; especialmente pp. 73-76. 36 J. Goody, The Domestication of the Savage Mind, Cambridge, 1977. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 26 | juristas profissionais e sistemas sofisticados de elaboração e de verbalização das normas. A enunciação das regras e dos princípios gerais na forma que os torna compatíveis com o modelo clássico de legal process depende de uma série de fatores. Além da necessidade de escrita e de juristas profissionais é necessário que questões referentes às particulares relações entre as partes não assumam relevo na determinação da solução do conflito, que em tal caso restaria muito singular para poder receber uma posterior aplicação. Ademais, a verbalização de normas geralmente aplicáveis é ligada uma vez mais à presença do Estado que, como nos ensina Paolo Grossi, em nome da regra geral, abstrata e impessoal, esmaga toda particularidade concreta37. A rigidez do direito obtida através da enunciação e aplicação de regras gerais e iguais para todos traz frequentemente consigo uma forte separação entre a justiça produzida pelas cortes estatais e o sentimento popular de justiça. A reaproximação entre uma e outra obtém-se, por vezes, através do controle leigo sobre a aplicação do direito por parte de juristas profissionais: o júri ou mesmo os juízes de paz em nossas sociedades estatais constituem exemplos disso que se afirma. Voltando à análise do conflito nas sociedades tradicionais, já se narrou a forma como os antropólogos do direito o examinaram em sua complexidade. Entre os diversos pontos de observação assumidos reves37 P. Grossi, L‟ordine giuridico medievale, Bari, 1995, pp. 54 e ss. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 27 | tem-se de particular interesse, em nosso ponto de vista, o perfil da solenidade e da importância das formas na resolução dos litígios e a inserção da variável do tempo no estudo das controvérsias. Elisabeth Colson, Phil Gulliver, Sally Falk Moore e Max Gluckman – entre outros – estudam quais são os efeitos do respeito às formas sobre a resolução do conflito. A solenidade do foro público – trate-se de negócio, de mediação, de arbitragem ou de decisão jurisdicional – reveste-se de importância determinante na obtenção da solução do litígio. O encontro formal entre as partes evita o enfrentamento violento entre as mesmas. O foro público modifica o tipo de argumentação utilizada para fazer valer as próprias razões relativamente ao foro privado: os litigantes sabem que a aceitação dos próprios pontos de vista depende da capacidade de cada um de formulá-los em termos aptos a satisfazer o nível formal geralmente exigido pela comunidade e necessário para convencer os próprios apoiadores e os demais38. Como ensina Max Gluckman, quer os litigantes, quer os mediadores, e mesmo os órgãos públicos jurisdicionais buscam mostrar-se ao mesmo tempo rezoáveis e justos39. No foro jurisdicional, por outro lado, as formas desempenham o duplo papel de simbolizar o status daqueles que julgam e de legitimar as suas decisões40. Recordar as perucas do juízes ingleses parece ser útil. 38 Sobre o tema ver P. Gulliver, Disputes and Negotiations, cit., 1979, p. 192. Neste sentido, M. Gluckmann, The Reasonable Man in Barotse Law, in: 7 Journal of African Administration, 1955, p. 51 e p. 127; e in 8 ivi, 1956, p. 101 e p. 151. 40 S. F. Moore, Individual Interests and Organisations Structures: Disputes Settlements as “Events of Articulation”, in: Social Anthropology and the Law, Hamnett (org.), Londres, 1977, p. 185. 39 Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 28 | Parece igualmente evidente a razão da ausência daquelas perucas se tratam-se de Law Lords: na condição de comitê do órgão legislativo em função judicante, a House of Lords extrai alhures sua legitimação. A simbologia das formas – na comunicação ou no comportamento – e seu respeito revelam-se, definitivamente, indispensáveis à solução do litígio, determinando-lhe o grau de aceitação social. Elisabeth Colson narra um episódio que exemplifica a questão. Entre os Gwembe Tonga da Zambia a corte do vilarejo é integrada pelo chefe do vilarejo e por dois assistentes “a latere”. Quando julgam os casos que lhe são submetidos os três sentam-se sobre assentos, ao passo que os contendentes fazer valer suas próprias razões sentados sobre o chão. Em 1992 uma conflito público teve como protagonistas dois homens que gozavam de particular prestígio: um por ser o mais rico membro da comunidade, o outro por ter feito carreira na polícia nacional. Isso levou os magistrados a permitir que os litigantes também sentassem sobre assentos: erro fatal. Decaída a simbologia da inferioridade espacial cai por terra também a legitimação dos juízes para resolver a contenda. Os juízes parecem, perante a comunidade, como homens do mesmo nível dos litigantes, com defeitos morais ainda piores do que os destes, cuja palavra não vale mais do que a das partes em lide: o caso permanece irresolvido entre os insultos gerais41. 41 E. Colson, The Contentiousness of Disputes, cit., pp. 77-79. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 29 | Acerca da necessidade de analisar o conflito levando em conta a variável tempo, insiste mais de um antropólogo do direito. Hoebel e Llewellyn são criticados por Laura Nader porque “utilizam em sua análise casos referentes a um período de tempo de setenta anos, comprimindo-os em uma dimensão de presente etnográfico”42. Sally Falk Moore explicanos que “em uma Antropologia dinâmica, o período do estudo etnográfico é concebido como um momento em uma história mais longa, independentemente do fato de que uma sequência possa ou não ser observada. Os desenvolvimentos futuros sempre fazem parte do presente etnográfico”43. De um lado, portanto, enfatizar a dimensão tempo significa colocar em foco a necessidade de observar o conflito em uma perspectiva histórica, que leve em conta a existência de fatores externos aptos a produzir uma mutação no modo de solução da controvérsia. O impacto do colonialismo ou mesmo da filosofia missionária-cristã no direito consuetudinário africano44 e o impacto da penetração do Estado em sociedades anteriormente carentes de organização centralizada – com tudo o que o dado comporta em termos de regras sobre a propriedade da terra e das águas, da falência dos liames familiares, da competição entre direito estatal e outros direitos – estão entre os fatores que não podiam permanecer fora do estudo antropológico do direito, mesmo que orientado pelo paradigma da controvérsia. 42 L. Nader, VI Cardozo Lectures in Law, cit., II Lição. S. F. Moore, Imperfect Communications, in: Understanding Disputes, cit., 1995, p. 32. 44 M. Cannoch, Law, Custom and Social Order: The Colonial Experience in Malawi and Zambia, Cambridge, 1985. 43 Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 30 | Por outro lado, a consideração do fator temporal permite relativizar o significado que a solução do conflito parece assumir no imediato45. Um exemplo vale por todos. No seu primeiro volume sobre os Lozi da exRodésia do Norte – atualmente Zâmbia – no qual havia utilizado material colhido durante os anos 1940, Max Gluckman descreve com grande ênfase e riqueza de detalhes uma decisão da corte local (“The case of the Headman‟s Fishdams”)46, que nos é apresentada como fruto de um delicado compromisso entre as partes, em testemunho da capacidade da solução judicial africana de restaurar o equilíbrio social e normativo por meios conciliatórios47. Sua volta aos Lozi em 1965 reserva-lhe, no entanto, uma amarga surpresa: o aparente feliz compromisso não fora senão uma ilusão momentânea, porque as partes não tinham realmente achado a solução aceitável, tanto que uma havia matado a outra certo tempo após a decisão do tribunal48. Exatamente a tomada de consciência do afastamento entre solução jurídica de um problema e sua solução social, leva Gulliver a refutar a expressão “dispute settlement” enquanto sinônimo de repacificação das 45 Acerca deste ponto basta indicar, eis que bastante evidentes, os paralelismos com a intenção manifestada pela maior parte do movimento realista norte-americano, de “sair das bibliotecas” para seguir a controvérsia em seus desdobramentos posteriores relativamente à “solução” jurisdicional. Ver W. Twining, Karl Llewellyn and the Realist Movement, cit.; G. Tarello, Il realismo giuridico americano, Milão, 1961; U. Mattei, Stare Decisis, Milão, 1988. 46 Em M. Gluckmann, The Judicial Process among the Barotse of Northern Rhodesia, Manchester, 1955, pp. 178 e ss. 47 De modo semelhante daquilo que se viu ocorrer junto aos Tiv estudados por Paul Bohannan, e também junto ao Lozi da Zâmbia, a elaboração de um mecanismo decisório de tipo judicial não coincide, realmente, com a aceitação de um modelo conflitual de resolução da lide. Isso pelo menos em todas as ocasiões em que os vínculos entre as partes sejam complexos, ou seja, quando os contendores mantenham relações permanentes: nesta hipótese, explica-nos Gluckman, o objetivo da conciliação torna-se imprescindível para os juízes Lozi. 48 M. Gluckman, The Judicial Process among the Barotse of Northern Rhodesia, Manchester, 1967, p. 432. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 31 | partes49. A constatação de que o próprio fato de levantar uma questão instiga as partes a pensar e a explicitar as razões do conflito vem acompanhada da convicção de que mesmo a forma mais conciliatória entre os modos tradicionais de solução de controvérsias possa comportar um comprometimento das relações entre os indivíduos ao final50. Abre-se assim o caminho para o estudo de métodos menos explícitos de enfrentar os conflitos. A partir da análise das hipóteses nas quais as partes não têm interesse na resolução de uma controvérsia, porque podem optar por não ter mais relações recíprocas (caso de algumas populações nômades)51, passa-se ao estudo dos contextos nos quais o litígio explícito não é socialmente aceitável, como entre os Batistas do Sul dos Estados Unidos da América52, ou ainda nos casos nos quais o contraste assumido entre as partes é evitado através de um silêncio e aparente desinteresse pela injustiça sofrida, que pode conduzir silenciosamente ao ostracismo53. Poder-se-ia falar de formas “mudas” de solução de litígio54. Estamos, de todo modo, distantes do paradigma da controvérsia em sua formulação clássica. Tal paradigma, ademais, já havia sido vítima dos ataques de grande parcela dos estudiosos da antropologia jurídica. 49 P. Gulliver, Disputes and Negociations, cit., 1979, pp. 78 e ss., p. 169 e p. 184. Acerca deste ponto, além de P. Gulliver, Disputes and Negotiations, cit., p. 128, veja-se S. F. Moore, Individual Interests, cit., 1977, p. 186 e E. Colson, The Contentiousness, cit., 1995, pp. 69 e ss. 51 Entre os pigmeus da África central é comum, em uma fase inicial do desacordo, armar as tendas de forma que a abertura de uma não fique voltada para a abertura da outra. Se, posteriormente, nem mesmo a intervenção do “bufão”, dirigida a desdramatizar e ridicularizar o conflito, terá eficácia, a solução final não poderá ser outra senão aquela de procurar um novo grupo ao qual seja possível associar-se. 52 C. Greenhouse, Interpreting American Litigiousness, in: History and Power in the Study of Law: New Directions in Legal Anthropology, J. Starr e J. F. Collier (orgs.), Ithaca, 1989. 53 B. Yngvesson, The Atlantic Fishermen, in: The Disputign Process, Law in Ten Societies, L. Nader e H. Todd (orgs.), Nova Iorque, 1978, pp. 59 e ss. 54 Aqui a referência que se faz é a Rodolfo Sacco, evidentemente, Il diritto muto cit. 50 Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 32 | 3. As críticas ao uso do “case method approach” não tardaram, em realidade. Já Malinowski, em um de seus últimos escritos – uma recensão do trabalho de Hoebel e Llewellyn sobre os Cheyenne – evidenciara como o método casuístico utilizado pelos dois autores padecia de um defeito de perspectiva limitada sobre o direito, que dele derivava. Para Malinowski, a par dos denominados trouble-cases era necessário estudas os chamados trouble-free cases. Um quadro que tivesse dato conta do direito de uma sociedade somente no momento de sua violação, e não no momento de sua observância, resultaria inevitavelmente incompleto. O reconhecimento da dificuldade de descobrir as regras jurídicas voluntariamente observadas em uma sociedade sem escrita, sem códigos, sem juristas profissionais, não reduzia a exigência de identificar as normas jurídicas que regulavam realidades jurídicas acerca das quais a conflitualidade aberta fosse escassa ou inexistente. Entre os Cheyenne este era o caso, por exemplo, do setor relativo à propriedade, cujas regras os autores não conseguiam identificar em função da falta de um número consistente de controvérsias explícitas sobre o tema. O apelo de Malinowski por um estudo do sistema jurídico como parte de um sistema mais amplo, compreensivo relativamente aos vários mecanismos de controle social, encontrou guarida por parte de quem, como Elisabeth Colson, fez uso do chamado método casuístico ampliado. O estudo etnográfico do direito não mais ficara confinado à análise dos meios institucionais de resolução de conflitos. Se o direito não deveria ser estudado de maneira isolada relativamente aos demais sistemas de controle55, é sobretudo na estrutura social e cultural 55 “O estudo etnográfico do direito não é simplesmente um estudo das instituições jurídicas, e os Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 33 | que se deveria buscar as dinâmicas relativas à observância voluntária das normas. A importância de que, sob tal perspectiva, revestem-se as relações de troca recíproca e os liames de lealdade estabelecidos na sociedade dos planaltos de Tonga, estudada por Colson, evidencia as razões da conformidade voluntária para com as normas por parte dos membros daquela comunidade. A observância voluntária das normas e das formas de solução do conflito que poderíamos chamar de “mudas” – nãoinstitucionais, implícitas – são categorias bastante próximas. Além das hipóteses nas quais o conflito não assume forma explícita e não chega às sedes institucionais em virtude da operação de fatores sócio-culturais como aqueles indicados – que levam as partes a arrefecer logo ao nascer da possível controvérsia –, o método casuístico alargado permite aos antropólogos do direito identificar outros sistemas não-institucionais de resolução de conflitos. Aos estudos sobre a tratativa, a mediação, a arbitragem, a decisão jurisdicional, se seguem, então, aqueles sobre os mecanismos de ridicularização das partes, do uso de sistemas de arrefecimento do conflito, da ênfase sobre o sentimento de vergonha, que propiciam a obtenção de uma solução não-verbalizada da controvérsia. A ampliação do espectro dos modos de solução de conflito traz consigo um interesse pela identificação das estratégias subjacentes à escolha entre os mesmos por parte dos protagonistas do litígio. Uma vez mais são os fatores sócioculturais que atraem a atenção dos antropólogos do direito. sistemas jurídicos constituem apenas uma parte de sistemas mais amplos”, afirma L. Nader, verbete Antropologia giuridica cit., p. 136. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 34 | No rastro das indicações fornecidas por Max Gluckman56 descobre-se como em uma situação de relações recíprocas complexas – i.e., na qual os litigantes tenham fortes interesses comuns (econômicos, familiares, culturais, etc.) – as partes recorram com maior facilidade a uma solução negociada da controvérsia. A necessidade de manter sãos os vínculos recíprocos e o desejo de prosseguir, no futuro, com a própria relação, os estimulará a buscar uma solução de tipo conciliatório57. Se, contrariamente, os vínculos entre as partes são menos significativos, os litigantes recorrerão mais facilmente a sistemas mais conflituais de solução da controvérsia, tais quais a arbitragem ou o recurso à jurisdição de um órgão público, mostrando-se dispostos a aceitar uma decisão voltada a dar razão, de maneira drástica, a um ou a outro58. O desenvolvimento de uma teoria relacional dos mecanismos de solução dos litígios – baseada na observação de que o tipo de relação entre as partes condiciona o tipo de procedimento adotado concretamente – será acompanhado dos estudos de quem não se satisfaz com a explicação da queda em um ou outro método de solução de controvérsias em termos puramente objetivos. Laura Nader, Harry Todd59, June Starr, Barbara Yngvesson60, entre outros, chamam a atenção para os protagonistas da contenda, sobre os “titulares do direito”, para dar uma resposta mais complexa ao fenômeno. Starr e Yngvesson esclarecem como além do tipo de relação entre as partes – 56 M. Gluckman, The Judicial Process, cit., 1955, passim Parecem evidentes os nexos com a distinção, muito difundida na Análise Econômica do Direito e na Teoria dos Jogos, entre relações “one shot” e relações continuadas. Ver, para uma introdução básica, R. Cooter, T. Ulen, Law and Economics, Glenview, 2 ed., 1996. 58 Por todos, veja-se L. Nader, verbete Antropologia giuridica, cit., p. 137. 59 Nader-Todd (orgs.), The Disputing Process, Law in Tem Societies, Nova Iorque, 1979. 60 Starr-Yngvesson, Scarsity and Disputing: Zeroing in on Compromise Decisions, in: American Ethnologist, 3, (II), 1975, pp. 553 e ss. 57 Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 35 | simples ou complexa –, o objeto da disputa pode ser determinante na escolha do modo de solução do litígio. Assim, se a controvérsia envolve valores particularmente cruciais – como a propriedade de um bem imóvel, o acesso ao poder, o prestígio no interior do grupo – as partes poderão ser levadas a preferir a solução de tipo conflitual à de tipo conciliatório para garantir para si o sucesso na disputa, ainda que isso implique a ruptura em suas relações sociais. A chave de leitura proposta por Nader, por sua vez, baseia-se principalmente sobre as relações de poder entre os contendores, que fazem suas escolhas em função das relações de força recíprocas61. Na nova perspectiva, a ênfase é colocada realmente sobre as partes como protagonistas ativas na construção do sistema jurídico. Falase, portanto, de “actor oriented approach”. Ainda nos anos setenta, todavia, ao lado daqueles que souberam desenvolver a orientação de raio amplo de Malinowski, permaneciam – entre os antropólogos do direito – aqueles que continuavam a se declarar fiéis ao método casuístico puro. A tensão entre os primeiros e os segundos, grosseiramente referidos uns a Malinowski e outros a Max Gluckman e a Paul Bohannan (por terem os últimos utilizado o case-method approach no estudo dos casos solucionados pelos tribunais dos Lozi e dos Tiv), explode no ano de 1977, durante o congresso da associação dos antropólogos americanos acerca do significativo tema “Rules v. Power”. Alguns anos mais tarde os tons do debate foram amenizados e o trabalho de 61 L. Nader, Harmony and Ideology: Justice and Control in a Mountain Zapotec Village, Stanford, 1990; Id., Civilization and its Negotiations, in: Understanding Disputes, cit., 1995, pp. 39 e ss. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 36 | John Comaroff e Simon Roberts, Rules and Processes62, é testemunho do reencontro do equilíbrio entre as orientações que anteriormente se debateram. Atualmente é possível para S. F. Moore afirmar que “atualmente, o velho tema norms vc. power tem escasso significado e não oferece qualquer resposta. Adquire cada vez mais a imagem de falsa oposição sempre existente. É evidente, de fato, que power e norms podem estar em jogo atualmente”63. A sábia constatação da famosa antropóloga de Harvard, no entanto, não deve nos fazer perder de vista a importância que teve a passagem de um estudo do direito como sistema em si para um estudo do direito como sistema indissoluvelmente vinculado a outros mecanismos de controle social, para a colocação da Antropologia jurídica entre as metodologias de análise do direito capazes de superar o rígido positivismo ainda dominante. 4. “A marginalização do direito como objeto de estudo”64, operada pelo antropólogo-jurista através da ampliação da perspectiva de observação realmente permitiu à antropologia do direito que oferecesse respostas às questões colocadas pelo realismo jurídico. Uma rápida olhadela voltada ao passado faz-se necessária. O iluminismo, com seu anelo em direção da racionalidade do sistema e sua ênfase sobre o valor da certeza jurídica como se sabe havia 62 Publicado em Chicago em 1981. Neste sentido S. F. Moore, Imperfect Communications, in: Understanding Disputes, cit., p. 30. 64 Trata-se de uma expressão empregada pela conhecida antropóloga do direito de Berkeley, Laura Nader, durante o evento VI Cardozo Lectures in Law, cit. 63 Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 37 | conduzido à identificação do direito com sua fonte. Naquela ótica, o direito apresentava-se como inteiramente verbalizado e, para o jurista europeucontinental, completamente contido nos códigos e na lei. A crença na completa verbalização do direito e a convicção de que as normas escritas e aplicadas coincidissem se harmonizavam bem com a exigência de que o direito fosse certo. Mas na França François Gény já deveria destruir abertamente a ilusão iluminista. O juiz, explica-nos ele, não é a mera “boca da lei”65. O mundo do common law, de sua parte, já tinha tido que acertar suas contas com os vários Bentham e Austin, os quais, erguendo o véu ficcional da teoria declarativa66, tinham contribuído no sentido de instigar os tribunais ingleses a vincular-se rigidamente aos próprios precedentes para assegurar a certeza do direito, que eles, diversamente, não estavam mais formalmente em condições de garantir. Ao realismo jurídico sueco e norte-americano caberia dar o golpe de misericórdia na convicção de que norma enunciada e norma aplicada coincidissem. Os realistas nos ensinam que existem dinâmicas ocultas, não raro arbitrárias – além de não verbalizadas – que presidem a vida jurídica. A decisão concreta, nos dizem eles, mesmo que formalmente reivindique sua origem nos princípios estabelecidos pelo legislador ou na 65 A redução de todo o direito ao texto como estratégia de legitimação do jurista romanista é enfatizada atualmente por Antonio Gambaro, in: A. Gambaro, R. Sacco, Sistemi giuridici comparati, Turim, 1996, pp. 240 e ss. Veja-se, ainda, P. G. Monateri, Il modello di civil law, in: A. Procida Mirabelli di Lauro (org.), Sistemi giuridici comparati, Turim, 1996. 66 De acordo com a qual os magistrados, ao declararem a norma jurídica aplicável ao caso que lhes é submetido nada mais fariam senão trazer à luz aquele conjunto de imutáveis em vigor desde sempre que constituem o common law. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 38 | regra enunciada por este ou por aquele precedente jurisprudencial oculta uma escolha que encontra sua verdadeira fonte alhures. Donde a dissociação entre law in action e law in the books, e donde, ainda, os problemas de legitimação do juiz ocidental em efetuar escolhas em nome e por conta da coletividade. Os caminhos percorridos pelo vários movimentos pós-realistas norte-americanos tiveram todos como última parada a busca de uma resposta às questões de fundo postas pelo realismo. Se os Critical Legal Studies assumem, relativamente ao tema, uma posição cética e pósmoderna, incapaz de restituir legitimação às escolhas do juiz ocidental67, caminhos mais construtivos foram percorridos por outros filões da cultura americana. Assim a análise econômica do direito coloca-se em busca da coerência, vindo a encontrá-la na eficiência econômica das normas que regem o direito68; os mecanismos institucionais e seu desenvolvimento possibilitam à escola do Legal Process de Harvard o encontro de uma legitimação do sistema jurídico em sua estrutura69; o papel desempenhado pela tradição ao guiar e organizar as escolhas do juiz é, ao final, reivindicado por mais de uma corrente de pensamento70. 67 Ver G. Marini, Ipotesi sul metodo nel diritto privato. Piccola guida alla scoperta di altri itinerari, in: Riv. Crit. Dir. Priv., 1990, p. 343. 68 Ver R. Pardolesi, verbete Analisi economica del diritto, in: “Digesto”, 4. ed., Discipline privatistiche, Turim, 1995. 69 W. Eskridge, P. Frickey, The Making of Legal Process, 107 Harvard L. R., 2031, 1994. Sobre o tema, remete-se ainda a P. G. Monateri, Pensare il diritto civile, Turim, 1995. 70 Refiro-me, aqui, entre outros, a K. Llewellyn, autor de The Common Law Tradition, Deciding Appeals, Boston, 1960; a G. Fletcher, Introduzione elementare alla scienza giuridica, in: Il Cardozo Lectures in Law, P. G. Monateri e U. Mattei (orgs.), Pádua, 1991; Id., Basic Concepts of Legal Theory, Oxford, 1996; e A. Barak, La discrezionalità del giudice, in: Giuristi stranieri di oggi, C. Mazzoni e V. Varanno (orgs.), com apresentação de A. Gambaro, Milão, 1996. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 39 | A passagem de um estudo antropológico do direito centrado no paradigma da controvérsia para a análise atenta às dinâmicas externas ao conflito institucionalizado permite ainda à Antropologia jurídica inserirse entre os movimentos culturais que buscam oferecer uma resposta construtiva às questões postas pelo realismo jurídico. A prova que com The Cheyenne Way Hoebel e Llewellyn forneceram sobre a existência de uma law in action confirma-se com a teoria de que a vida do direito é uma variável independente de sua verbalização, mas não oferecia ainda explicação alguma sobre as dinâmicas subjacentes à law in action em si. Somente a Antropologia posterior buscará resolver problemáticas do gênero. O antropólogo do direito pode contar, para a execução de tal tarefa, com a facilidade decorrente do fato de que suas pesquisas o colocam em contato com sociedades nas quais dificilmente ocorreu o divórcio, comum no mundo jurídico ocidental, entre direito e tradição71. A ausência, nesses contextos, de uma linha de demarcação nítida entre norma jurídica e norma social, entre norma jurídica e norma religiosa, entre juiz e chefe tradicional, assim como a ausência de um jurista profissional que tenha impermeabilizado formalmente o direito relativamente aos demais mecanismos de controle social, tornam mais fácil a identificação daqueles fatores sócio-culturais que contribuem para com a determinação das dinâmi71 Sobre o tema, veja-se A. Gambaro, Il successo del giurista, in: Foro it., 1983, V, pp. 85 e ss.; H. Bermann, Law and Revolution, The Formation of Western Legal Tradition, Cambridge, Mass., 1983, passim; U. Mattei, Verso una tripartizione non eurocentrica dei sistemi giuridici, in: Studi in memoria di Gino Gorla, Milão, 1994, vol. I, p. 775. Ver, ainda, A. Gambaro, R. Sacco, Sistemi giuridici comparati, Turim, 1996, pp. 41 e ss. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 40 | cas e das escolhas jurídicas também no mundo ocidental, mas que entre nós operam de maneira extremamente criptotípica (oculta). Donde o grande interesse teórico de uma “análise antropológica do direito” que reivindique, ao lado dos demais movimentos “law and ...” um papel como metodologia idônea de ser aplicada a todo o campo. 5. a) Os antropólogos do direito do Século XX desenvolveram suas investigações junto aos sistemas ditos tradicionais, os quais, no entanto, em contato estreito com a crescente globalização, continuam desaparecendo gradualmente. O grande desafio dos jusantropólogos do Século XXI consiste, portanto, em identificar o rumo futuro de sua disciplina. Da micro-antropologia deve-se passar à macro-antropologia, asseveram os estudiosos da matéria, pretendendo com isso colocar em primeiro plano a exigência de abandonar o estudo exclusivo das sociedades “primitivas” para passar a um estudo antropológico do direito de alcance pleno. A questão que então se coloca é: qual o papel que pode ser desempenhado pela Antropologia na análise da western legal tradition? Certamente aos estudos antropológicos do direito referiu-se e continua a referir-se mais de um movimento de reforma nos países ocidentais. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 41 | A reavaliação do material antropológico com finalidades de reforma do direito por parte de juristas não-antropólogos esteve à base, por exemplo, da introdução do sistema da Alternative Dispute Resolution nos Estados Unidos da América. Aplicado às mais variadas situações conflituais – de problemas de vizinhança às questões relativas à tutela dos consumidores ou ainda à tutela ambiental, bem como nas relações intrasocietárias – o instrumento da ADR teve como insuspeito inspirador Philip Gulliver e seu estudo sobre a negociação, como explica Nader72. Os anos 1970 e 1980 assistem surgir na América um amplo movimento direcionado à pacificação e à substituição dos métodos conflituais de resolução das controvérsias por métodos de feição mais conciliatória. O desejo de encontrar uma solução para o problema da ineficiência e insuficiência do sistema jurisdicional leva o então Chief Justice da Suprema Corte Federal Warren Burger a declarar: “Os nossos predecessores distantes abandonaram lentamento o trial by battle e os demais métodos bárbaros de resolução dos conflitos; também nós devemos abandonar a confiança plena no instrumento conflituoso para resolver todo tipo de controvérsia”73. A privatização da justiça – por meio da mediação, da arbitragem ou da conciliação – constitui a forma de diminuir a pressão sobre as cortes e, obviamente, os estudos antropológicos que haviam indicado de que forma a harmonia poderia ser restabelecida entre as partes, também mediante o compromisso e não apenas através do recurso à jurisdição e à execução 72 Ver L. Nader, VI Cardozo Lectures in Law, cit., II lição. Neste sentido, W. Burger, Annual Message of the Administration of Justice, Warren E. Burger, Chief Justice of the United States, no congresso da American Bar Association, 12 de fevereiro, 1984. 73 Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 42 | forçada das decisões, oferecem argumentos convincentes para os defensores da filosofia da ADRNT. A Antropologia jurídica representa uma boa fonte de soluções também em outras ocasiões nas quais o direito oficial ocidental se mostra em crise. Assim, por exemplo, na Austrália os estudos etnográficos sobre o direito tradicional são levados em conta por quem propõe, e consegue, entregar os aborígenes, declarados pela cortes estatais culpados de fatos criminosos específicos, às tribos de pertença, a fim que de nela lhes seja aplicada a sanção tradicional74. O recurso aos estudos antropológicos do direito mostra-se útil, ainda, nas hipóteses nas quais o Estado promove um “desjurisdicização” de fatos criminosos, favorecendo a mediação entre autor e vítima do crime, de modo que o ressarcimento voluntário do dano substituam, mesmo que informalmente, a sanção penal. A transação penal, como forma de conciliação substitutiva da ação judicial, começa a desenvolver-se no Canadá, nos Estados Unidos e na Inglaterra já nos anos 1970. Mais recentemente recorre-se a ela para evitar a ação penal, ou ainda para evitar a aplicação da pena, em França, na Finlândia, na Holanda, na Bélgica, na Áustria e mesmo na Alemanha, embora neste último sistema o exercício da ação penal revele-se obrigatório. Por vezes a possibilidade de uma NT ADR, sigla do Alternative Dispute Resolution (Solução Alternativa de Controvérsias), movimento em prol da adoção de meios alternativos de solução de litígios. 74 E. Venbrux, R. Silverman, M. Nielsen (orgs.), Aboriginal Peoples and Canadian Criminal Justice, Toronto e Vancouver, 1992, in: Commission of Folk Law and Legal Pluralism, Newsletter XXVI, novembro de 1995, pp. 45 e ss. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 43 | transação penal é oficialmente limitada à hipótese em que o autor do delito seja menor75. Os estudos de todos aqueles que, na esteira de Émile Durkheim76, teorizaram a evolução de uma lógica punitiva para uma lógica compensatória, em proporção direta com o crescimento em termos de “civilização” de determinada sociedade, parecem conferir uma legitimação culturalmente prestigiosa àquelas políticas do direito que objetivam transformar a sanção penal em sanção civil através de mecanismos “mediadores” lato sensu, como os indicados77. Donde opera-se a devolução de novos espaços para a análise antropológica, espaços que no entanto parecem mais abertos no plano da política do direito do que no cognoscitivo. Sem aqui indagar além acerca de fenômenos que nos levariam longe com toda certeza, aquilo que é premente evidenciar como o direito estatal dos países ocidentais recorre à Antropologia em função da solução de problemas contingentes, de crescimento excessivo, poder-se-ia dizer, para os quais qualquer proposta criativa poderia parecer aceitável. Nada obstante, e ainda no plano da política do direito, os riscos culturais dessas operações não podem ficar ocultos. A institucionalização de processos de origem tradicional e espontânea não poderá senão subverter a estrutura de maneira irremediável. 75 Sobre tais temas remete-se a J. Pradel, Droit pénal comparé, Paris, 1995, pp. 147 e ss. e bibliografia ali citada. 76 E. Durkheim, De la division du travail social, Paris, 1893. 77 A esta temática, à qual estarei dedicando aprofundamentos futuramente, fiz menção em: Ai confini della responsabilità. Prime riflessioni per un programma di ricerca in diritto comparato, in: Rass. Dir. Civ., 1995, pp. 857 e ss. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 44 | A experiência da redução a escrito dos costumes africanos no período colonial deveria ter ensinado uma lição difícil de esquecer. b) Se, portanto, o futuro da Antropologia jurídica não parece residir em uma utilização “domesticada” dos mecanismos tradicionais de controle social, tampouco se crê que a estrada para o futuro dos estudos antropológicos possa ser vislumbrada como a melhor compreensão que através dos mesmos se possa obter acerca dos problemas de convívio entre tradições jurídicas diversas. Não parece competir à Antropologia jurídica encarregar-se de descobrir se e de que maneira o direito estatal de determinado país deva resolver questões relativas ao reconhecimento do instituto da poligamia quando praticada por um muçulmano residente em um país europeu, ou ainda se e de que modo o direito oficial francês ou belga deva tutelar a imigrante africana repudiada, ou mesmo de que forma tal direito deva gerir as lides oriundas dos ritos de vodu praticados pelo vizinho. Certamente um conhecimento do direito e da cultura das tradições diferentes da western legal tradition é útil para enfrentar temas que frequentemente colocam-se com maior propriedade no plano do direito internacional. Todavia reduzir o estudo jusantropológico ao campos de problemas análogos limita-o muito fortemente em suas potencialidades. Pela mesma razão, igualmente reducionista nos parece o objetivo de quem identifica as possibilidades de sobrevivência da disciplina aqui Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 45 | discutida78 na existência de “blocos culturais em condições de expressar diferentes estilos normativos”79. Não há necessidade, em essência, de uma competição ou interação entre tradições jurídicas diferentes, particularmente entre as ocidentais e as demais, para justificar a utilidade dos estudos antropológicos do direito. Mesmo se a western legal tradition acabasse por operar uma ocidentalização global do direito – de modo que, por exemplo, hipoteticamente, o Navajo common law, com suas cortes, não se distinguisse mais do common law do Estado do Arizona, de Utah e assim por diante, ou ainda os índios Iroqueses Mohawk aceitassem a total homogeneização com os quebequenses ou com os canadenses, ou ainda os ciganos tives- 78 É este o ponto de vista de Riccardo Motta, o qual, na ótica de uma macrocomparação de modelos jurídico-culturais, questiona-se se também o estilo jurídico navajo poderia ser validamente comparado com os três blocos culturais analisados por Clifford Geertz (veja a nota seguinte), concluindo com a observação de que “trata-se da comparação entre blocos exóticos, como os geertzianos, ou do confronto entre estilos jurídicos ocidentais e Mixed Native Jurisprudence, como no caso do Hozho e dos Navajos (o contraste entre a harmonia tradicional e o „jogo de soma zero‟ do direito norteamericano moderno) e sua classificiação provisória em algum lugar da Southwestern Jurisprudence, compreensiva das expressões jurídicas e doutrinárias de Arizona, Utah, Novo México e Colorado, bem como as federais, ou ainda o jogo de encaixes e tolerâncias das relações entre os Mohawk, ou mesmo entre seus representantes de Quebec e do Canadá, as linhas incertas das fronteiras interculturais, acompanhadas das diferenças muito mais nítidas de seus núcleos ético-jurídicos indicam um caminho (provavelmente não tão nova) certamente eficaz para estudos comparativos sobre diferentes culturas jurídicas e sobre suas bases étnico-culturais, explícitas e implícitas. Enquanto existirem blocos culturais capazes de expressar diferentes estilos normativos, subsistirão as razões para as pesquisas sobre cultural boundary zones, que gradualmente substituem-se no âmbito das pesquisas antropológicas aos territórios etnográficos clássicos. Vale dizer, subsistirão razões também para sustentar que existe um potencial científico e didático que os estudos antropológicos e comparativos do direito ainda podem desenvolver.” R. Motta, Intorno ai concetti giuridici e antropologici, Occidente e altri “blocchi culturali” a confronto, in: Materiali per la storia della cultura giuridica, pp. 417 e ss., especialmente pp. 436 e ss. 79 Faz referência à noção de “blocos culturais”, entre outros, Clifford Geertz, em um conhecido ensaio intitulado Local Knowledge, Fact and Law in Comparative Perspective, in Id., Local Knowledge, Further Essays in Interpretative Anthropolgy, Nova Iorque, 1983, no qual o autor compara três “blocos culturais” correspondentes ao estilo judiciário no mundo de cultura islâmica (o Haqq), no mundo de cultura indiana (o Dharma), bem como no mundo de cultura maltesa (o Adat). Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 46 | sem de abandonar suas tradições jurídico-culturais – a Antropologia jurídica manteria ainda plena legitimação científica. E isso por dos motivos. Antes de mais nada, como nos ensina Laura Nader, a Antropologia jurídica nas sociedades complexas pode ser utilizada na perspectiva de um “studying up”. “O que aconteceria se, na reinvenção da Antropologia, os antropólogos estudassem os colonizadores em lugar dos colonizados, a cultura do poder em vez daquela dos que não têm poder, a cultura dos ricos em lugar da dos pobres?”80. O método etnográfico, explicanos a famosa antropóloga do direito de Berkeley, pode ser aplicado de maneira útil para a compreensão das dinâmicas subjacentes ao direito ocidental. “Estamos nos especializando para compreender culturas inteiras em um contexto intercultural. Deveremos então nos encontrar perfeitamente à vontade na tarefa de descrever e estudar as law firms como sociedades secretas, de tentar analisar os liames de poder ao descrever aqueles comportamentos consuetudinários que são absolutamente indispensáveis para compreender, por exemplo, os mecanismos existentes por trás do funcionamento do Congresso... O antropólogo deveria, mais do que qualquer outro, em função de sua própria compreensão do princípio da reciprocidade, estar em condições de analisar a razão pela qual as decisões dos Federal Communication Commissioners poderiam ser „ra- 80 L. Nader, Up to the Anthropologist, Perspectives gained from Studying up, in: Reinventing Anthropology, D. Hymes (org.), Nova Iorque, 1972, p. 289. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 47 | cionais‟”81, afirma Nader, que prossegue indicando exemplificativamente os diversos âmbitos de aplicação de um studying up: as instituições jurídicas ocidentais, sua burocracia, as public agencies e seu funcionamento. A perspectiva do antropólogo, que aplique às próprias instituições a técnica de observação “participante” utilizada no estudo das instituições jurídicas das sociedades tradicionais, ao laicizar o direito ocidental, tornando-o menos uma prerrogativa apenas da classe dos juristas, contribui para uma melhor compreensão e um maior conhecimento de nosso “estilo jurídico”. É nesta linha de pensamento que Laura Nader enfrenta o tema da harmony ideology. A ideologia da harmonia, que nos anos 1970 e 1980 domina a busca norte-americana de métodos alternativos de resolução de controvérsias deságua, como se indicou, no incentivo ao uso de procedimentos extrajudiciais de tipo conciliatório. A arbitragem e, ainda mais, a mediação e a negociação entre as partes, são os métodos de resolução das controvérsias encorajados pela harmony ideology, na ótica de uma superação da solução de tipo conflitual que dá lugar obrigatoriamente à jurisdição estatal. O momento de maior sucesso, nos EUA, da corrente de pensamento conhecida como “ADR Movement”, coincide, como ensina Nader, com um exportação da mesma filosofia em âmbito internacional. Em 1985, observa a estudiosa, a administração Reagan retira-se do acordo de submeter-se voluntariamente à jurisdição da Corte Internacional de 81 L. Nader, Up to the Anthropologist, cit., p. 293. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 48 | Justiça: “O fato foi provavelmente a mais visível continuidade de uma tendência mais ampla que fez escola entre os membros da ONU, que tinha registrado uma constante redução do número dos Estados que concordavam e submeter-se à jurisdição obrigatória da Corte Internacional”82. No âmbito internacional, portanto, a negociação entre as partes toma o lugar do recurso à decisão da Corte de Haia. O que oculta a passagem do método conflitual de resolução das controvérsias para o conciliatório?83 O que se esconde em essência dentro da ideologia da harmonia dominante, pergunta-se Laura Nader. Um perspectivo histórico-comparativa, unida à aplicação do método etnográfico ao direito das sociedades complexas possibilita à Antropologia jurídica colocar em evidência as lógicas subjacentes às escolhas relativas ao processo de solução de conflito a ser adotado. A ideologia da harmonia acaba por ser indicada, assim, como meio de controle social e parece a detentora de uma ideologia que já era própria dos missionários nos territórios colonizados, funcional relativamente à manutenção do poder na lógica hegemônica do mais forte. A ênfase no valor da harmonia nas relações entre as partes oculta, na interpretação de Nader, o desejo de não modificar as relações de poder existentes, com evidente vantagem para aqueles que já são detentores de tal 82 L. Nader, Civilization and its Negotiations, cit., p. 44. O leitor verá como o binômio resolução judicial versus negociação não exaure o espectro das alternativas possíveis. Os Estados soberanos sempre terão aberto o caminho do conflito armado, de modo que a própria noção de conflito, tal qual utilizada por Nader, parece um tanto imprecisa. 83 Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 49 | poder84. A sintonia com a análise dos Critical Legal Studies é, aqui, mais do que evidente. c) A análise antropológica do direito oficial, do direito dos juristas cultos não é, todavia, o único caminho aberto para a Antropologia jurídica do futuro (um futuro hipotético no qual se assista à globalização e à homogeneização das culturas e das tradições jurídicas). Laura Nader declara a inadequação dos estudos etnográficos tradicionais para a construção de modelos válidos para o estudo da sociedade moderna ocidental. A despersonalização típica da sociedade de massa impediria que possam aí operar os mecanismos de controle social típicos das sociedades tradicionais, caracterizadas, contrariamente, por fortes liames sócio-políticos dos seus componentes85. Consequentemente a estudiosa limita ao estrato oficial do direito a própria investigação antropológica da western legal tradition. 84 Nader, L. Civilization and its Negotiations, cit., e Id., Harmony Ideology, cit., 1990. « Law in face-to-faceless societies, characterized by unequal distribution of power, does not lend itself easily to the solutions for handling disputes in small face-to-face communities where power differential are less. Ethnografic studies of law often remove law from the center of the study, because, in societies where people share common social and political linkages, generalized social control results. In such settings, gossip and public opinion help detter socially harmful behavior and serve to direct disputes. However, the more attentive we become to settings were law or governmental social control reigns, in places where there are fully developed nation states, the more our studies center around law to the exclusion of other systems of social control. Then the traditional ethnographic studies of particular societies no longer provide a model”. L. Nader, VI Cardozo Lectures in Law, cit., II lição; id., Antropologia giuridica, cit., p. 138. 85 Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 50 | O direito, todavia, mesmo na tradição ocidental – os estudos antropológicos já o ensinaram – não é apenas aquele dos legisladores, dos juízes, das cortes e dos juristas. O direito oficial não coincide com a totalidade do fenômeno jurídico. Rodolfo Sacco nos diz: “É possível um direito não verbalizado? Eu somente posso me fazer a pergunta oposta. É possível um direito completamente verbalizado? ... Eu duvido que exista ou possa existir um direito inteiramente verbalizado”86. E ainda “Em todo ordenamento dotado de um legislador e de jurista culto sobrevivem elementos jurídicos pertencentes às fases mais primitivas... O Estado (italiano) julga gratuitamente qualquer conflito de interesses privados, mas coloca em operação obstáculos importantes para dissuadir o jurisdicionado de acionar a Corte (papel selado caro, custos de assistência legal, má qualidade dos serviços judiciários; etc.): não faz sentir aqui seu peso, sem que se possa percebê-lo, o tácito desejo de poder afastar-se das disputas dos particulares? E, ao menos, não seria verdadeiro, talvez, que somente um percentual mínimo dos conflitos seja resolvida pelo órgãos do Estado? E que muitas vezes uma desaprovação social bastante evidente atinja quem toma a iniciativa da ação judicial?”87. Se, portanto, o Estado não resolve senão uma mínima parcela dos conflitos e se, como é confirmado por Peter Stein, os rastros dos antigos métodos de resolução das controvérsias “frequentemente sobrevivem mesmo quando institui-se um mecanismo estatal de resolução dos confli- 86 87 R. Sacco, Modelli notevoli di società, cit., p. 42. R. Sacco, Il diritto muto, cit., p. 693. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 51 | tos”88, isso significa que na tradição ocidental ladeia o direito oficial um outro direito, diferente daquele do jurista culto, de fonte não-estatal89. A verbalização de uma parte de tal direito “mudo” é tarefa da Antropologia jurídica, que na busca das regras fundamentais valer-se-á do método comparativo. Por outro lado, como se foi demonstrado recentemente90, uma abordagem à comparação jurídica que descurasse os aspectos mudos (não-verbalizados) seria gravemente deficitária tanto no plano heurístico quando no plano taxinômico91. Mais de um Antropólogo do direito fez uso da comparação. Max Gluckman confrontou o direito dos Barotsi do então Norte da Rodésia com o direito ocidental para demonstrar a comparabilidade de duas tradições, uma das quais denegrida e desvalorizada pela outra. Os Lozi, que consistem na tribo mais culta e dominante entre os Barotsi, ao decidirem judicialmente as controvérsias, acabam por fazer uso de con88 P. Stein, I Fondamenti, cit., p. 3, mas também a p. 15. A propósito, ademais, veja-se em profundidade P. Grossi, L‟ordine giuridico medievale, cit., pp. 19 e ss. O grande historiador do direito, na esteira da proposta pluralista formulada por Santi Romano na obra L‟ordinamento giuridico (Florença, 1946, 2. ed.), nos lembra que, “se é verdade encontra nos dias atuais „normalmente‟ no legislador e na administração pública seus produtores habituais, é igualmente verdadeiro (e o fato é atualmente indiscutível) que a produção do direito é privilégio essencial de qualquer aglomeração social que pretenda viver plenamente sua própria liberdade na história... E é direito, portanto, não apenas aquele produzido pela macro-entidade estatal, mas também aquele produzido por uma gama de ilimitado e ilimitável de estruturas sociais nas quais pode encontrar lugar, em determinadas condições, como a comunidade internacional, uma confissão religiosa, a família e a denominada comunidade criminosa, bem como as diversas aglomerações privadas.” 90 J. Vanderlinden, Comparer les doits, Diegem (Bélgica), 1995, pp. 397 e ss. 91 Significativamente tal ensinamento, absorvido pela escola comparatista italiana, foi valorizado no Japão, onde o convívio de um estrato jurídico oficial e de um estrato jurídico informal (giri) é ainda mais evidente. Ver Kitamura, Brèves réflexions sur la méthode de comparaison franco-japonaise, in : Rev. Int. Dir. Comp., 1995, p. 861. 89 Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 52 | ceitos e categorias jurídicas análogas àquelas próprias da tradição ocidental. Particularmente o princípio da razoabilidade constitui, de acordo com a exposição de Max Gluckman, um critério universal comum à maior parte dos sistemas jurídicos92. São notórias as críticas feitas sobre o tema por Paul Bohannan relativamente às dificuldades comparativas. Ao sublinhar a unicidade das categorias e dos valores próprios de cada cultura, Bohannan sustenta a impossibilidade de traduzir e comparar as categorias conceituais de cada tradição sem deformar-lhes o significado. Os resultados aos quais Gluckman havia chegado constituíam, para Bohannan, uma ilusão de ótica, devida ao fato de que, traduzindo para o inglês os conceitos jurídicos lozi, Gluckman os teria ocidentalizado, desnaturando-os93. É justificável com tal propósito recordar a lição que os seminários de Cornell havia dado a todos que se propusessem à comparação para permitir-lhes superar mais de um problema de tradução jurídica94. Philip Gulliver coteja as transações jurídicas que desenvolvem-se entre os Arusha da Tanzânia com as transações que desenvolvem-se entre os trabalhadores da industrializada América do Norte, chegando à conclusão de que existe um modelo de negociação comum a todas as 92 M. Gluckman, The Judicial Process cit., 1955, especialmente o capítulo III. P. Bohannan, Ethnography and Comparison in Legal Anthropology, in: Law in Culture and Society, L. Nader (org.), Chicago, 1969, pp. 401 e ss. 94 A temática da homologação dos dados estruturais não-homogêneos, tanto no interior quanto no exterior da western legal tradition, já é enfrentada com notável proficiência na introdução de R. Schlesinger (org.), Formation of Contract. An Inquiry into the Common Core of Legal Systems, 2 v., Nova Iorque, 1967. 93 Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 53 | tradições jurídicas, cujas fases são muito similares, não obstante a diversidade do objeto da controvérsia95. Laura Nader confronta o sistema jurídico zapoteca do sul do México com o sistema jurídico norte-americano sob a perspectiva do acesso à justiça. Suas conclusões são no sentido de que os Zapotecas têm acesso ao direito, ao passo que os cidadãos americanos não. Os últimos, com efeito, não conhecem o funcionamento de seu próprio sistema jurídico e frequentemente não podem ser permitir o recurso a um jurista profissional, único oráculo do direito ocidental, em função do alto custo da prestação profissional96. A comparação na qual se pensa nesta sede tem finalidade diversas dos perseguidos por Max Gluckman, Philip Gulliver e Laura Nader. Não se trata, com efeito, de evidenciar as falhas do sistema jurídico ocidental ou de demonstrar que sistemas jurídicos diversos dos nosso são igualmente dignos de interesse científico, ou ainda de descobrir qual sistema seja melhor ou pior. Trata-se, na realidade, de observar nosso próprio sistema através dos “óculos” teoréticos fornecidos pelo aparato antropológico. Os modos de solução das controvérsias típicos das sociedades tradicionais, sejam eles institucionalizados ou não, sobrevivem também em nossa tradição: os estudos etnográficos sobre sociedades tradicionais nos servem de espelho que reflete os elementos que estão pre- 95 P. Gulliver, Disputes and Negotiations, cit., 1979. L. Nader (org.), No Acces to Law, Alternatives to American Judicial System, Nova Iorque, 1980; Id., Up to the Anthropolgist, cit., p. 300. 96 Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 54 | sentes em nosso sistema, mas que se tal espelho permaneceriam invisíveis97. Verbalizar as normas criptotípicas, isto é, ocultas, que regem a maioria das agregações sociais intermediárias que compartilhas os mesmos valores socioculturais (pense-se na família, nas organizações profissionais, na comunidade acadêmica, nas comunidades constituídas pelos membros de uma faculdade, nos escritórios de advocacia, etc.) torna-se mais fácil quando aquelas normas e aqueles mecanismos de solução das controvérsias são observados em sua operação alhures, em contextos com os quais o jurista culto ainda não os relegou à esfera do não jurídico. Os estudos da estratificação do direito na África98 nos servem, então, para evidenciar a competição e a interação de modelos e de tradições jurídicas existentes também em nosso direito, mas que no contexto africano resultam muito mais evidentes em função da maior concentração temporal durante a qual fizeram seu aparecimento. Os estudos sobre modos informais de resolução das controvérsias nas sociedades tradicionais, especialmente em se tratando de processos não institucionalizados, nos esclarecem sobre os mecanismos atuantes em nível de agregações sociais intermediárias de nossa sociedade. A abordagem denominada actor oriented propicia o esclarecimento a forma como, também em nosso sistema, o recurso à jurisdição do Es97 Por último, decorrem ainda deste aspecto de self-reflection as mais importantes potencialidades da comparação. J. Langbein, The Influence of Comparative Procedure in the United States, in: 43 Am. J. Comp. Law, 1995, pp. 545 e ss. 98 Remete-se a R. Sacco, Il diritto africano, Turim, 1995; M. Guadagni, Il modello pluralista, in: A. Procida Mirabelli di Lauro, Sistemi Giuridici Comparati, Turim, 1996. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 55 | tado não é senão um – talvez o mais drástico – entre muitos mecanismos de solução do conflito à disposição das partes99, as quais efetuam uma escolha em favor da decisão jurisdicional legitimando, no fundo, o juiz da tradição ocidental, cuja neutralidade e legitimação para decidir em nome e por conta da coletividade fora colocada em dúvida pelo realismo jurídico. Em síntese, em um direito que “tornar-se-á provavelmente cada vez menos estatal”100, não apenas a Antropologia jurídica tem um futuro, mas mostra-se como o futuro do direito. 99 Pense-se, por exemplo, na experiência do frequente recurso à jurisprudência estatal que a academia italiana está vivendo atualmente: esta surge como LA SPIA do funcionamento falho dos tradicionais mecanismos de solução de controvérsias de tipo conciliatório (mecanismos mudos, negociação, mediação), que anteriormente operavam de maneira eficaz. Tais mecanismos são descritos, em um modelo antropológico simplificado, por U. Mattei e P. G. Monateri, Faculty Recruitement in Italy: Two Sides of the Moon, in: 41 Am. J. Comp. Law, 1993, pp. 351 e ss.; veja-se, ainda, V. Zeno-Zencovich, Pubblicazioni concorsuali e deflorestazione, in: “Contratto e impresa”, 1993, p. 355. 100 Neste sentido, R. Sacco, La circulation du modèle juridique français, Rapport de Synthèse, nos anais do encontro da Associação Henri Capitant, 1994, p. 13. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 56 | INTERPRETAÇÕES CONSTITUCIONALISTAS E INTERNACIONALISTAS PARA A PROTEÇÃO DO TRABALHO EM FACE DAS DISPENSAS COLETIVAS EM ÉPOCAS DE CRISE ECONÔMICA GLOBAL Constitutional and International Interpretations of The Protection of Labor in face of Collective Relief from Obligations in Times of Global Economic Crisis Alexandre Coutinho Pagliarini101 Cláudia Coutinho Stephan102 RESUMO: O presente artigo explora a dispensa coletiva ou lay-off, fazendo breve incursão no direito comparado no direito brasileiro, analisando-o, em seguida, e nas perspectivas do Direito Constitucional e do Direito Internacional. Avalia, assim, o impacto da Convenção 158 da Organização Internacional do Trabalho na questão, assim como o problema da falta de regulamentação do art. 7º inciso I da Constituição da República de 1988. Abordando a recorrência das crises no sistema capitalista, o artigo problematiza tal ocorrência como fundamento para dispensas coletivas em face do di- 101 Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa. Doutor e Mestre pela PUC/SP. Mestra e Doutora em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP. Professora de Direito do Trabalho da PUC/MG, Poços de Caldas. 102 Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 57 | reito fundamental social garantidor da relação de emprego protegida contra dispensas arbitrárias ou sem justa causa, bem como em face dos princípios constitucionais da valorização do trabalho, da dignidade da pessoa, da justiça social, da segurança e do bemestar. Aborda a necessidade de negociação coletiva com as entidades sindicais como medida protetiva, em face dos mecanismos existentes de proteção do emprego. ABSTRACT: This article explores the collective dismissal or layoff, making a brief foray into comparative law and in Brazilian law, analyzing it, then and in the prospects of constitutional law and international law. Evaluates, so the impact of Convention 158 of the International Labour Organisation on the issue, as well as the lack of regulation of art. 7 th section I of the Constitution of 1988. Addressing the recurrence of crises in the capitalist system, the article discusses such an occurrence as a basis for collective layoffs in the face of the fundamental guarantor of social employment protected against arbitrary dismissal or dismissal without just cause, as well as constitutional principles in the face of the appreciation of the work , human dignity, social justice, safety and welfare. Addresses the need for collective bargaining with the unions as a protective measure, given the existing mechanisms of employment protection. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 58 | PALAVRAS-CHAVE: Dispensa individual. Dispensa coletiva. Layoff. Crise econômica. Valor social do trabalho. Negociação coletiva. KEYWORDS: Individual dismissal. Collective dismissal. Lay-off. Economic crisis. Social value of work. Collective bargaining. A dispensa individual envolve um único trabalhador, ou, mesmo que atingindo empregados diferentes, não configura ato demissional grupal ou maciço. Sua origem é centrada num fato pertinente ao contrato individual de trabalho. A despedida coletiva, por sua vez, denominada como lay-off, abrange um número significativo de trabalhadores vinculados ao mesmo empregador. Segundo Antônio Álvares, “a dispensa coletiva importa o desligamento de um número significante de empregados por motivos econômicos, tecnológicos, estruturais ou análagos103.” No direito da Holanda, a dispensa coletiva somente pode ocorrer com a permissão do órgão administrativo. Já na Alemanha, o empregador fica obrigado a participar a agência (autoridade administrativa) sobre a dispensa, exigindo-lhe também tal informação ao conselho de empresa, 103 ALVARES, Antônio. Dispensa coletiva e o controle pelo judiciário. Revista LTr 73-6/650-670. São Paulo: Ltr. 2009, p. 657. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 59 | esclarecendo o empregador sobre os motivos da dispensa, o número e as categorias de trabalhadores a serem despedidos, os prazos da dispensa, bem como os critérios de escolha dos que serão dispensados104. O Código do Trabalho Português regulou a matéria nos seus artigos 419 e 420, e aprovou a Diretiva número 2002/14/CE do Parlamento Europeu e do Conselho da União Europeia, que estabelece um quadro geral sobre informação e consulta dos trabalhadores105. O ordenamento jurídico brasileiro regula expressamente apenas a dispensa individual, não havendo diferença legal entre despedida por motivos econômicos e dispensa sem justa causa. Entretanto, o Ministério do Trabalho, através das Portarias número 3.218/87 e número 01/92 faz referência à dispensa coletiva, sendo que a primeira portaria regula o acompanhamento das demissões coletivas, apontando soluções alternativas, como a redução da jornada nos termos da Lei número 4.923/65 e a previsão de férias coletivas. A última portaria citada determina a fiscalização nas empresas em caso de dispensa em massa. A Portaria número 3.218/87 é considerada como ineficaz, já que prevê apenas recomendações, inexistindo determinação penalizadora. Sendo assim, ausentes os mecanismos de coerção, tal norma tornou-se letra morta. Quanto à Portaria número 1/92, do MTPS, os motivos de sua reduzida efetividade se justificam no argumento de que um simples ato ministerial não poderia disciplinar matéria reservada à lei complementar. 104 ÁLVARES, Antônio. Idem. p. 657. ALMEIDA, Renato Rua de. Subsiste no Brasil o direito potestativo do empregador nas despedidas em massa? Revista LTR 73-04/391. São Paulo. Ltr. Abril. 2009, p. 393. 105 Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 60 | Esclarece Nelson Mannrich que a Lei número 62, de 5 de junho de 1935, já excluía a responsabilidade do empregador nos casos de força maior, quando fatos superiores à sua vontade afetassem sua segurança econômica, determinando a ruptura dos contrato de trabalho, por justa causa106. Vale ressaltar que o artigo 18 § 2º e o artigo 20, II, ambos da Lei número 8.036/90, não excluem a responsabilidade do empregador quando rescinde o contrato de trabalho por extinção de estabelecimento na ocorrência de força maior, devendo depositar 20% (vinte por cento) da multa fundiária, atentando-se, para tal, ao artigo 501 da CLT. A Lei número 4.923, de 23 de dezembro de 1965, embora não tenha conceituado a dispensa coletiva, previu, no artigo 2º, soluções alternativas à dispensa motivada por crise, a exemplo da redução da jornada ou do número de dias de trabalho durante três meses, possibilitando a prorrogação mediante redução salarial não superior a 25% (vinte e cinco por cento) do salário contratual, respeitando-se o salário mínimo; proibiu a contratação de novos empregados por seis meses; priorizou a readmissão dos empregados despedidos em razão da crise econômica, bem como vedou o trabalho extraordinário, salvo nos caso de necessidade imperiosa, força maior, serviços inadiáveis ou inexecução geradora de prejuízo manifesto. 106 MANNRICH, Nelson. Dispensa Coletiva: da liberdade contratual à responsabilidade social. São Paulo: Ltr. 2000. p. 471. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 61 | Quanto à redução da jornada e consequente redução salarial, a doutrina não é unânime quanto à recepção da Lei número 4.923/65 pela Constituição de República, nos termos do artigo 7º, inciso VI107. Parecenos mais acertado, contudo, reconhecer que a mencionada lei foi recepcionada pela Carta Política de 1988, sendo válida, tendo em vista a compatibilidade formal e material com a norma constitucional, quando elenca medidas alternativas que pugnam pela manutenção dos postos de trabalho. Tem-se que a Lei número 4.923/65, de fato, retrata a atual conjuntura econômica, propondo, inclusive, soluções jurídicas para evitar o desemprego em massa. No tocante à Constituição vigente, o artigo 7º incisos I e III e artigo 10, I do ADCT, excluíram definitivamente o regime da estabilidade decenal, resssalvado o direito adquirido, e sendo assim, o empregador possui amplos poderes para dispensar o empregado, com ou sem justa causa, limitando-se a pagar a multa fundiária, conforme o caso, além de outros direitos a serem determinados por lei complementar, até hoje não editada. Não há distinção legal entre despedida arbitrária ou sem justa causa, nem entre dispensa individual ou coletiva, podendo, então, o empregador dispensar o empregado sem qualquer motivo, inexistindo a garantia dos empregos108. 107 MANNRICH, Nelson. Idem. p. 470. Os Estados que integram a Comunidade Europeia, no que tange às dispensas coletivas, seguem as Diretivas 75/129/CEE, de 17 de fevereiro de 1975 e 92/56/CEE9, de 24 de junho de 1992. In: NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Crise econômica, despedimentos e alternativas para a manutenção dos empregos. Revista LTr 73-01/7-16. São Paulo: Ltr. 2009, p. 9. 108 Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 62 | É importante destacar que em 23 de novembro de 1985, a 68ª reunião da Conferência Internacional do Trabalho da OIT, aprovou a Convenção número 158, que trata do término da relação de trabalho por iniciativa do empregador, protegendo os trabalhadores contra a despedida arbitrária. Em 1992, no dia 17 de setembro, tal convenção foi aprovada pelo Congresso Nacional, sendo ratificada pelo Governo brasileiro em 4 de janeiro de 1995, para vigorar doze meses depois. Entretanto, somente em 10 de abril de 1996, através do Decreto número 1.855 que o Governo Federal publicou o texto oficial, promulgando sua ratificação. Posteriormente, em 20 de dezembro de 1996, através do Decreto 2.100, o Presidente da República promulgou a denúncia da tratativa internacional, anunciando que a mencionada convenção deixaria de vigorar no Brasil a partir de 20 de dezembro de 1997. Ressalte-se, aqui, que segundo as regras e princípios básicos de Direito Internacional Público, mais especificamente da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados, a atitude do governo brasileiro em denunciar não foi bem acolhida, podendo-se considerar na contramão na normativa internacional pelas seguintes razões: (i) o Brasil é membro da Organização Internacional do Trabalho; (ii) o que um país se compromete internacionalmente a cumprir – pacta sunt servanda – deve ser levado a cabo; (iii) o processo formal de aprovação da Convenção 158 (OIT) foi respeitado; (iv) em nada a Convenção em tela viola a Constituição brasileira de 1988. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 63 | Em fevereiro de 2008, o Presidente da República encaminhou ao Congresso Nacional mensagem para nova ratificação da Convenção. Tempos depois, por 20 votos a 1, os parlamentares, na Comissão de Relações Exteriores e de Defesa Nacional, aprovaram parecer do deputado Júlio Delgado (PSB/MG) contrário à ratificação, sendo encaminhado pedido de arquivamento da mensagem presidencial à mesa da Câmara dos Deputados. A discussão contemporânea já não é mais sobre a constitucionalidade ou não da vigência da Convenção número 158, nem sobre a (in)constitucionalidade da denúncia da mesma convenção – visto que tal ato foi praticado pelo Presidente da República, e não pelo Congresso Nacional109. Discute-se, sim, a eficácia do inciso I, do artigo 7º da Constituição de 1988, que precisa ser regulamentado através da lei complementar nele prevista, para que a proteção contra a despedida arbitrária seja uma verdade jurídica e real. Sendo assim, até os dias atuais, não é raro ocorrer dispensas coletivas, envolvendo um grande número de trabalhadores, com a justificati- 109 Em obra de nossa autoria, defendemos que tanto o Presidente da República quanto o Congresso nacional têm autoridade para denunciar um tratado internacional sem que precise(m) um do outro; efetivamente, esta autoridade pode ser exercida sem a participação do outro responsável pelo treaty making power, e isto ocorre pelo seguinte: se para fazer sustentar um tratado em seu berço de nascimento são necessárias duas vontades concordantes (a do Presidente e a do Congresso), então a falta de uma destas vontades sustentadores faz tombar o acordo internacional. O Presidente e o Congresso são os dois pilares de sustentação do tratado; logo, na falta de um deles, o pacto cai. De qualquer modo, ressalte-se aqui que, em Direito Internacional Público, o condutor da política internacional de um Estado soberano é exclusivamente o Chefe do Executivo, o único com voz internacional de representatividade. In: PAGLIARINI, Alexandre Coutinho. Constituição e direito internacional: cedências possíveis no Brasil e no mundo globalizado. Rio de Janeiro: Forense, 2002, p. 97. Neste mesmo sentido: REZEK, Francisco. Direito Internacional Público: curso elementar. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 111. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 64 | va de fatores vinculados à situação econômica da empresa, do setor ou da atividade em geral, bem como em decorrência de causas disciplinares, tecnológicas ou financeiras, com respaldo analógico no artigo 165 da CLT. Renato Rua de Almeida observa que a doutrina tradicional ainda identifica no ordenamento jurídico pátrio a natureza potestativa implícita no ato unilateral do empregador de extinguir o contrato de trabalho, até mesmo nas despedidas coletivas, sem qualquer limite ou condição110. Sob esse aspecto, a crise, na acepção econômica, é uma das justificativas pautadas pelos empregadores para a rescisão do pacto laboral. Constitui um fenômeno do modelo capitalista, ou seja: “grave desequilíbrio conjuntural entre a produção e o consumo, acarretando aviltamento dos preços e/ou moeda, onda de falências e desemprego, desorganização dos compromissos comerciais; fase de transição entre um surto de prosperidade e outro de depressão, ou vice-versa111.” Como possui várias dimensões que se correlacionam com as variações do sistema econômico nacional, empresarial e mundial, a crise e- 110 ALMEIDA, Renato Rua de. Op.cit. p. 391. HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. São Paulo: Objetiva. 2009, p. 872. 111 Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 65 | conômica tem uma ligação direta com a questão dos empregos, sendo considerada, portanto, como companheira do Direito do Trabalho112. No entanto, não é possível a aceitação da liberdade contratual de despedir em massa, desconsiderando o direito fundamental social da proteção da relação de emprego contra a despedida arbitrária ou sem justa causa insculpido na Constituição vigente, e também em face ao paradigma da ilicitude contratual por abuso de direito, nos moldes dos arts. 187 e 422 do Código Civil. Todavia, incontestavelmente, a crise financeira que assolou os Estados Unidos da América no segundo semestre de 2008, abalou profundamente a economia de produção e aumentou o índice de desemprego, repercutindo seus graves efeitos em todo o mundo, voltando à baila a questão referente à despedida coletiva como medida estratégica para as empresas, sob a desculpa de evitar mal maior, quer seja, sua extinção. É certo, entretanto, que um mal – a crise impulsionada pelos Estados Unidos – não pode impulsionar uma injustiça que fira o direito constitucional ao trabalho digno e estável. Observa-se que o artigo 482 da CLT não elenca a crise econômica como hipótese típica e taxativa de justa causa para rescisão do contrato de trabalho. De qualquer forma, não se pode permitir juridicamente que o empregador exerça o direito potestativo de resilição unilateral do contrato de trabalho, dispensando coletivamente seus empregados, visto que o Texto Constitucional vigente, a partir dos pilares magnos da dignidade 112 NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Op. cit., p. 7 Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 66 | humana e da construção do Estado de Bem-Estar Social, autoriza a afirmação de que a dispensa coletiva deve ser evitada. Sendo assim, configura a dispensa coletiva uma agressão aos princípios constitucionais valorizadores do trabalho, da justiça social, do bem-estar e da segurança, entre outros. Esta lição está evidente na doutrina moderna, quando dispõe que até mesmo pela (ausência da regulamentação)113 legal do artigo 7º, inciso I, da Constituição, a eficácia horizontal deste direito fundamental social deve ser garantida pela exigência do cumprimento pelo empregador, nas dispensas coletivas, dos valores da boa fé objetiva e dos seus deveres anexos114. Sendo assim, tais valores impregnam o conteúdo do contrato de trabalho, como fonte subsidiária, por força do parágrafo único do art. 8º da CLT. Além do exposto, é imperativo que em tempos de globalização e crise econômica, o princípio da proteção, edificador de todo o Direito do Trabalho, equalizador da assimetria de forças caracterizadoras das relações de emprego, seja preservado. 113 Dizemos nós, com apoio em Celso Bastos (BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 22. ed. Atualizado por MEYER-PFLUG, Samantha. São Paulo: Malheiros, 2010, pp. 97/129), que uma norma constitucional positivadora de direito fundamental, seja ele individual ou social, só pode ser interpretada segundo o postulado da máxima efetividade da norma constitucional. Isto significa que uma norma definidora de direito humano deve ser aplicada pelo magistrado e independentemente de norma infraconstitucional, devendo ele próprio – o magistrado – tratar de imprimir efetividade àquilo que foi determinado pelo constituinte originário. Ressalte-se que a falta de norma regulamentadora de direito humano, em casos particulares, pode ensejar o ajuizamento de Mandado de Injunção, bem como Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão. 114 ALMEIDA, Op.cit. p. 391. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 67 | Igualmente, impõe-se a observância do princípio da continuidade da relação de emprego, que repudia a dispensa coletiva e o princípio do duplo controle social da dispensa operado pelos trabalhadores, através de entidades sindicais e pelo Estado, via intervenção administrativa. Nesse sentido, o Ministério Público do Trabalho tem instaurado inquéritos civis para investigar eventual abuso no poder de dispensar 115. A jurisprudência pátria tem inferido tratamento jurídico diferenciado entre dispensas individuais e coletivas, sustentando a existência de abuso por parte da empresa, que sem prévia negociação coletiva dispensa coletivamente contingente de empregados116. É bem verdade, igualmente, que existem decisões contrárias que reputam como lícita tal conduta patronal, ante a ausência de norma jurídica expressa que obrigue o empregador a negociar antecipadamente com as entidades de classe e buscar outros métodos que precedam a dispensa coletiva. Elucida Maurício Godinho Delgado que no ano de 2009, em julgamento de dissídio coletivo sobre despedida coletiva de empregados justificada por grave retração econômica, a Seção de Dissídios Coletivos do TST, por maioria de votos, decidiu que “a premissa de que a negociação coletiva é imprescindível para a dispensa em massa de trabalhadores.” Ressalvou o Relator Min. Maurício Godinho Delgado que “a d. maioria, contudo, decidiu apenas fixar a premissa, para casos futuros, de que 115 FABIANO, Isabela Márcia de Alcântara; RENAULT, Luiz Otávio Linhares. Crise financeira mundialtempo de socializar prejuízos e ganhos. Revista LTr. 73-12/1500-1509. São Paulo: LTr. 2009, p. 1504. 116 Vide decisão de mérito proferida pelo Tribunal Regional do Trabalho da 15ª Região, nos autos do processo DC-00309-2009-000-15-00-4, cujo relator foi o Desembargador José Antônio Pancotti. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 68 | a negociação coletiva é imprescindível para a dispensa em massa de trabalhadores, observados os fundamentos supra117.” Observa-se que a ordem constitucional prevê não apenas o princípio da dignidade da pessoa humana, no artigo 1º, III; como também, o da valorização do trabalho, nos artigos 1.º, IV; 6.º e 170, VIII, e o princípio da intervenção sindical nas questões trabalhistas, no artigo 8.º, III e VI. Desse modo, se do ponto de vista econômico, são inevitáveis as mudanças impostas pelas leis do mercado na seara das relações entre capital e trabalho, em prol da manutenção da empresa e do emprego, é preciso que seja preservada a pessoa humana, como tarefa inafastável do Estado Democrático de Direito. Justifica-se que de nada adiantaria a previsão normativa da valorização do trabalho, se nas relações jurídicas que o tem como conteúdo, ele for desprezado. Argumenta-se, ainda, que, à medida que o Estado intervém para salvar as empresas, a sociedade deve exigira intervenção estatal para resguardar o trabalho humano, posto ser ele, e não o capital, a razão de tudo. O certo é que existem diplomas internacionais ratificados, a exemplo das Convenções números 11, 98, 135 e 141 da OIT, que não autorizam dispensas coletivas unilaterais e potestativas, por se tratarem de ato coletivo inerente ao Direito Coletivo do Trabalho, exigindo, consequentemente, a participação dos respectivos sindicatos das categorias profissio117 DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr. 2010, p. 1041.TST-RODC 309/2009-000-15-00.4.- Ac. SEDC, 10.8.09. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 69 | nais. Além do exposto, a negociação é inerente ao Direito Coletivo, e no Brasil, a obrigação de negociar coletivamente está implícita nos §§ 1.º e 2.º do artigo 114 da Constituição de 1988. É necessário, primeiramente, que se reconheça juridicamente a diferenciação entre despedida individual e coletiva, visto que os impactos familiares, sociais e econômicos são totalmente distintos. Inegavelmente, a despedida em massa repercute de forma negativa não apenas no patrimônio moral e material de cada trabalhador, mas na sociedade como um todo, mediante o crescimento dos índices de pobreza, criminalidade, insegurança e revolta118. Por fim, o Direito do Trabalho precisa ser compreendido e aplicado à luz dos princípios constitucionais e internacionais valorizadores da dignidade humana, para que sejam reduzidas as injustiças sociais. Desse modo, é inaceitável, juridicamente, a dispensa coletiva imediata, sem prévia tentativa de negociação coletiva, e dessa assertiva advém a necessidade de se afirmar permanentemente a supremacia da Constituição da República e do Direito Internacional em prol da concretização dos direitos fundamentais. Entende-se que o moderno Direito do Trabalho não pode se distanciar dos instrumentos de controle de dispensa do trabalhador, haja vista existirem procedimentos que envolvem, desde simples consultas pré- 118 FABIANO, Isabela Márcia de Alcântara; RENAULT, Luiz Otávio Linhares. Crise financeira mundialtempo de socializar prejuízos e ganhos. Revista LTr. 73-12/1500-1509. São Paulo: LTr. 2009, p. 1503. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 70 | vias às representações trabalhistas, até autorizações administrativas, e finalmente, a atuação jurisdicional. Como alternativa jurídica e social para o enfrentamento da crise econômica global, salienta-se a previsão constitucional da redutibidlidade salarial via negociação coletiva em busca da manutenção dos postos de trabalho, como também, a alternativa da suspensão coletiva dos contratos de trabalho, também através da negociação coletiva. Entende-se que o sistema jurídico trabalhista brasileiro não está preparado para o enfrentamento de crises econômicas, porque faltam mecanismos que prevejam as dispensas coletivas, e inegavelmente, a crise econômica convive com o Direito do Trabalho, sendo necessário e urgente seu aperfeiçoamento, pois como é senso comum, se o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga e ignora o Direito. A propósito, o agente do direito deve buscar a efetividade do direito fundamental social da proteção da relação de emprego contra a despedida arbitrária ou sem justa causa, inadmitindo, portanto, a liberdade contratual como direito potestativo de despedida coletiva. Sendo assim, e em qualquer situação, inclusive em tempo de crise financeira, urge, primeiramente, valorizar e proteger o trabalho humano, pois como observou o Papa João Paulo II, trata-se de uma causa primá- Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 71 | ria, enquanto o capital deve ser considerado como conjunto de meios de produção, permanecendo apenas como causa instrumental119. Tem razão Antônio Álvares, quando sustenta que “onde há trabalho, há dinamismo, construtividade, progresso e bem-estar social. Onde não há trabalho há desemprego, miséria, estagnação social e desconstrutividade120.” Com efeito, o Estado-Nação deve intervir cada vez mais nas relações jurídicas, garantindo a realização dos direitos fundamentais dos cidadãos, essencialmente através do trabalho, enquanto meio preponderante para assegurar direito à vida com dignidade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Renato Rua de. Subsiste no Brasil o direito potestativo do empregador nas despedidas em massa? Revista LTR 73-04/391. São Paulo. LTr. Abril. 2009. ALVARES, Antônio. Dispensa coletiva e o controle pelo judiciário. Revista LTr 73-6/650-670. São Paulo: Ltr. 2009. BASTOS, Celso Ribeiro. Curso de direito constitucional. 22. ed. Atualizado por MEYER-PFLUG, Samantha. São Paulo: Malheiros, 2010 DELGADO, Maurício Godinho. Curso de Direito do Trabalho. São Paulo: LTr. 2010. 119 JOÃO PAULO II. Encíclica Laborem Exercens, 14.09.81. In: João Paulo II Encíclicas. Armando Casimiro Costa e Ives Gandra da Silva Martins Filho (Orgs). São Paulo: Ltr. 2003, p. 119. 120 ALVARES, Antônio. Dispensa coletiva e o controle pelo judiciário. Revista LTr 73-6/60-670. São Paulo: LTr. p.651. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 72 | FABIANO, Isabela Márcia de Alcântara; RENAULT, Luiz Otávio Linhares. Crise financeira mundial-tempo de socializar prejuízos e ganhos. Revista LTr. 73-12/1500-1509. São Paulo: LTr. 2009. HOUAISS, Antônio. Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. São Paulo: Objetiva. 2009. JOÃO PAULO II. Encíclica “Laborem Exercens”, 14.09.81. In: João Paulo II Encíclicas. Armando Casimiro Costa e Ives Gandra da Silva Martins Filho (Org.). São Paulo: Ltr. 2003. MANNRICH, Nelson. Dispensa Coletiva: da liberdade contratual à responsabilidade social. São Paulo: Ltr. 2000. NASCIMENTO, Amauri Mascaro. Crise econômica, despedimentos e alternativas para a manutenção dos empregos. Revista LTr 73-01/7-16. São Paulo: Ltr. 2009. PAGLIARINI, Alexandre Coutinho. Constituição e direito internacional: cedências possíveis no Brasil e no mundo globalizado. Rio de Janeiro: Forense, 2002. REZEK, Francisco. Direito Internacional Público: curso elementar. 12. ed. São Paulo: Saraiva, 2009 Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 73 | A CRIMINALIZAÇÃO DA MORALIDADE: A LEITURA MORAL DO DIREITO POR HART The Criminalization of Morality: a Moral Interpretation of Law by H. L. A. Hart Roberto Bueno121 RESUMO: O artigo investiga a relação entre direito e moral a partir das teorizações de H. L. A. Hart, situado no contexto da discussão existente na Inglaterra de sua época e passando pelo debate entre Hart e Devlin. O texto evidencia a tensão entre as perspectivas comunitarista e liberal, partindo da criminalização de condutas tipicamente privadas, notadamente envolvendo a conduta sexual. O texto evidencia a inconciliabilidade entre legislação perfeccionista e um Estado comprometido para com a tutela das liberdades individuais, problematizando a possibilidade de imposição de uma mo121 Professor da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: [email protected] Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 74 | ral por uma sociedade através do direito. A partir de problemas como a prostituição e o uso de drogas, o texto evidencia as diferenças entre políticas paternalistas que visam proteger o indivíduo de suas próprias opções de políticas anti-paternalistas, confrontando o Estado brasileiro e o Estado holandês. ABSTRACT: This paper investigates the relationship between law and moral theories from H. L. A. Hart, situated in the context of the existing discussion in England of his day and through the debate between Hart and Devlin. The text highlights the tension between communitarian and liberal perspectives, from the criminalization of behaviors typically private, especially involving sexual conduct. The text highlights the inconsistency between legislation perfectionist and a state committed to the protection of individual freedoms, questioning the possibility of imposing a moral for a society through law. From issues such as prostitution and drug use, the text highlights the differences between paternalistic policies aimed at protecting the individual from their own choices of antipaternalistic, comparing the Brazilian and Dutch States. PALAVRAS-CHAVE: Direito e Moral. Hart. Devlin. Comunitarismo. Liberalismo. Estado democrático. Legislação perfeccionista. Partenalismo. Anti-paternalismo. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 75 | KEYWORDS: Law and Morality. Hart. Devlin. Communitarianism. Liberalism. Democratic state. Perfectionist legislation. Paternalism. Anti-paternalism. INTRODUÇÃO Os debates em torno à moral e ao direito não raro encontram-se marcados por fundamentações religiosas e em crenças pessoais arraigadas em cada um dos partícipes de um diálogo público ou privado do qual resta tão difícil separar-nos quanto o seria abandonar-nos à aventura de desconstituir-nos como pessoas e encantar-nos com o mundo de personas desconhecidas e passar a interpretar-lhes ou aderir-lhes de sorte a desconstituir-nos como nós mesmos. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 76 | Supondo a não adesão a estes processos de suplantação do eu pela alteridade através de complexos processos dialógicos podemos dizer que vivemos insertos imersos preocupados em harmonizar pelo resto de nossas vidas princípios e categorias morais presas aos poços mais profundos de nosso mais recôndito passado. Neste artigo visamos trazer parte do debate proporcionado por Hart entre moral e direito, o qual se dá desde uma abordagem liberal cujas conseqüências se farão sentir abertamente tanto no decorrer da argumentação como, congruentemente, em suas conclusões. 1. DIREITO E MORAL: UMA PERSPECTIVA HARTIANA Os debates em torno ao direito e a moral nos remetem ao debate sobre a liberdade de determinação de nossas personalíssimas crenças e valores bem como os limites do exercício destes elementos. Desde logo, enfrentam-se duas posturas nesta matéria, uma amplamente ligada aos valores e liberdades individuais e, por outro lado, uma perspectiva que denominaríamos de conservadora-coletivista em que predominam os valores tradicional-comunitários. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 77 | Como bom liberal, Hart não poderia deixar de inclinar-se e proceder à pública defesa da descriminalização dos então positivados crimes sexuais na legislação inglesa. Desde logo, os argumentos divergiam energicamente em uma sociedade todavia marcada pelo debate moral conservador. Em seu momento talvez Hart houvesse podido fazer suas as palavras proferidas pelo Juiz Harry Blackmun no ano de 1982, quando dos debates sobre o caso Hardwich, em que um homem foi preso por praticar sexo oral com outro homem dentro de sua casa. Na oportunidade o juiz manifestou-se da seguinte forma: [...] Privar os indivíduos do direito de escolherem, por si mesmos, como se haver em suas relações íntimas apresenta uma ameaça muito mais grave aos valores mais enraizados da história da nossa nação, do que jamais o faria a tolerância com a inconformidade [...]. (apud SANTOS, 1987, p. 25). A posição do Juiz Blackmun converge com outra anterior era indicada por Hart em sua posição liberal. Na argumentação de Blackmun é perceptível toda uma leitura moral que remete ao indivíduo o privilégio da determinação dos rumos morais de suas vidas. Em suma, o juiz procura traçar uma linha divisória bastante clara entre o que são valores individuais e sua estrutura moral e, por outro lado, aqueles outros que seriam valores morais que não poderiam ser impostos pela coletividade à dimensão da realização individual e moral de cada um dos membros de uma determinada sociedade. Não muito distante desta leitura moral que se aproxi- Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 78 | ma de nossos dias era aquela levada a termo no final dos anos cinqüenta quando a realidade britânica ainda permanecia próxima aos valores tradicionais de uma sociedade vitoriana. Hart entende que o desenvolvimento do Direito encontra-se permeado por influência da moral (cf. HART, 1987, p. 31) e este será um dos aspectos mais importantes para a abordagem do tema que ora temos pela frente neste artigo. Neste contexto, uma série de questões são levantadas por Hart diz respeito às relações entre Direito e moral. Na sequência procuraremos realizar uma síntese delas de sorte a que toda a argumentação hartiana sobre o tema ganhe mais sentido. A primeira questão que apresenta diz respeito à possibilidade de que sejam tecidas críticas ao Direito desde a ótica da moral. A crítica de Hart é sobre a admissibilidade de que tomemos por regra que a mera positividade do Direito seja entendida como suficiente para impedir que a norma jurídica seja condenada segundo os princípios morais (cf. HART, 1987, p. 32). Outra questão conexa a esta da qual Hart irá ocupar-se e dará lugar ao desenvolvimento da argumentação desta sua obra é seu questionamento da coerção legal da moralidade, em suma, se “o fato de que determinada conduta seja considerada imoral, de acordo com os padrões comuns, é suficiente para justificar sua punição pela lei [...]”. (HART, 1987, p. 33). Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 79 | Contudo, entendemos que uma questão central em Hart diz respeito a consideração de condutas como imorais abriria as portas par justificar sua punição através de normas jurídicas (cf. HART, 1987, p. 33). Poderíamos, por tomar o exemplo de sociedades que radicalizaram no aprofundamento desta questão,122 legislar de forma restritiva à união entre brancos e negros? Desde logo, esta é uma pergunta-chave, uma vez que será a partir desta linha de questionamentos que, posteriormente, terá desdobramento o tema relacionado à possibilidade de punir ou não condutas havidas como imorais, tais como o homossexualismo. A abordagem deste tema por parte do pensamento liberal remete à uma leitura do tema da moralidade realizada por John Stuart Mill em que posicionava-se francamente contrário a que as intervenções em temas morais pudessem ter lugar. Sinteticamente, dizia ele que o único motivo pelo qual o poder pode ser corretamente exercido sobre qualquer membro de uma comunidade civilizada contra a sua vontade é para impedir que ele cause mal aos outros. Mas esta argumentação milliana, contudo, não seria suficiente para desarmar a argumentação conservadora ou tradicionalista. Esta tradi- 122 Como exemplos históricos deste tipo de sociedades podemos citar tanto a Alemanha nacionalsocialista como também, já mais próximos de nossos dias, a legislação Sul-Africana durante o nefasto período do Apartheid. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 80 | ção poderia reivindicar a utilização do argumento de que a comunidade civilizada poderia valer-se da prerrogativa que lhe concede Mill para impedir, em seu entendimento social, de sofrer o mal que alguns lhe pretendem causar do ponto de vista moral. 2. A MORAL E O CONTEXTO DO DEBATE NA INGLATERRA NA OBRA DE HART Um dos sérios debates travados na Inglaterra dos anos cinqüenta envolveu positivamente os interesses de Hart. Naquela quadra histórica punha-se ao dia o debate sobre a possibilidade de punição no âmbito penal de condutas reputadas publicamente como imorais e que na legislação constassem como criminosas. Uma das dimensões deste debate foi a criminalização da moralidade sexual, e sobre este tema nos ocuparemos nas linhas que seguem abaixo. Acerca da cultura jurídica inglesa do período e da posição da jurisprudência encontra-se ilustrativa posição no caso Jones v. Randal (1774) quando a Corte sustenta que [...] Tudo quanto seja contra bonos mores et decorum está proibido pelos princípios de nosso direito, e a Corte Real, como censora e guardiã geral da moralidade pública, está autorizada a conhecer e punir. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 81 | O que significa precisamente o poder de criminalizar a moralidade sexual é ter o poder de atribuir à moral alheia uma intrínseca aversão ou um desvalor publicamente compartilhado. Contudo, mais do que isto, subjaz a esta concepção uma vertente filosófica que denominaríamos de essencialista ou metafísica, capaz de identificar o bem e o mal. Ao fazê-lo, tais correntes de pensamento sentem-se habilitadas e capacitadas para impor o bem em detrimento do mal, de impor condutas que evitem aquele mal identificado. Desde logo, nada mais essencialista ou metafísico, do que a suposição da existência de uma capacidade tão ampla e que, por definição, desconstitui o espaço privado de definição de seus próprios interesses e preferências. Segundo esta proposta da visão essencialista, as preferências morais ganham, desta forma, a possibilidade de habitar a dimensão da ilicitude. Esta perspectiva não pode coexistir com uma perspectiva filosófica rival que contemple um ponto de partida analítico relativista. A legislação norte-americana aderiu à primeira leitura filosófica quando, por exemplo, em alguns estados norte-americanos a homossexualidade era criminalizada bem como a prostituição. Os argumentos que miravam a condenação penal de condutas baseadas em argumentos morais transitavam entre o punitivo de uma moralidade socialmente nociva – e como exemplo disto poderia ser tomada a prática da prostituição – à compreensão de condutas sexuais avessas à compreensão majoritária como aceitável e/ou saudável. Como e- Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 82 | xemplo tomar-se-ia a homossexualidade, entendida durante muito tempo como desvio de conduta ou doença psíquica, até que, já muito proximamente aos nossos dias é que em vários países, dentre os quais o Brasil, terminou por prevalecer o entendimento de que a sexualidade não implica abordagem patológica mas unicamente preferências de ordem sexual e, sendo o caso, tema de ordem moral estritamente privada. Conexo com ambos temas tornou-se desde já clássico o trabalho de Comissão Wolfenden (Wolfenden Committee) que, em 1954, foi designado para apresentar estudo sobre a situação legal destas questões. Em 1957 a Comissão alcançou algumas conclusões e recomendou que [...] as práticas homossexuais entre adultos consencientes, observada a privacidade, não permanecessem como crimes; por outro lado, decidiu-se, unanimamente, recomendar que, não constituindo, em si, a prostituição, uma ilicitude, deveria a legislação incriminá-la, se praticada nas ruas, porquanto o assédio a cidadãos comuns era um incômodo ofensivo. (HART, 1987, p. 41). O trecho é bastante ilustrativo e a indicação de reformas sobre o conteúdo das leis penais então vigentes, incriminatórias tanto da homossexualidade quanto da prostituição recebiam especial atenção da Comissão. No entanto, a Comissão pouco ou nada esclarece sobre a fundamentação teórica de sua recomendação, isto sim, permanecendo implícita Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 83 | a inspiração filosófica liberal-milliana presente em On Liberty. Fundamentalmente do que se trata é de que devemos preservar uma esfera de moralidade ligada unicamente às deliberações do indivíduo na qual contra a qual nada possa o Estado. Esta esfera de moralidade privada a qual haveria de ser dedicada especial atenção no sentido de preservá-la deve conter, inclusive, uma dimensão de imoralidade ou amoralidade – segundo assim seja reputada pelo entendimento médio socialmente compartilhado – cuja prática reste protegida desta concepção predominantemente compartilhada e distanciada, portanto, da intervenção legal por parte do Estado. A recomendação da Comissão Wolfenden argumenta que “deve-se preservar uma esfera de moralidade privada e imoralidade que é, em termos breves e rudes, irrelevante para a lei”. (apud HART, 1987, p. 42). 3. EM TORNO AO DEBATE HART-DEVLIN É possível dizer que a argumentação teórica central ínsita na legislação penal inglesa daquele período estava conectada com as preten- Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 84 | sões teóricas de Lorde Devlin. Nestes termos apresenta-se o debate entre Hart e Lorde Devlin. Os termos em que este debate entre Hart e Lorde Devlin foi posto pode ser qualificado como aquilo que, a seu momento, Isaiah Berlin denominaria como irreconciliáveis. Inversamente a Hart, Lorde Devlin retoma parte do conteúdo da Comissão Wolfenden para sustentar que “a supressão da imoralidade é uma tarefa legalmente tão importante quanto a supressão das atividades subversivas” (apud HART, 1987, p. 43). Estava posto o argumento inicial em prol da intervenção do Estado em condutas que já em filósofos anteriores ao período, tal como John Stuart Mill, 123 era considerado como esfera privada do indivíduo. O argumento nuclear para que tenhamos uma defesa articulada em prol dos direitos de autodeterminação moral por parte de cada um dos indivíduos em uma determinada sociedade implica considerar que no marco de uma sociedade secular não poderíamos entender alguma prática sexual como ofensiva. A ideia central é de que “há certos padrões de comportamento, ou princípios morais, que a sociedade requer sejam observados” (HART, 1987, p. 56) e, neste sentido, caberia na visão de Lor- 123 Temos uma boa noção do estágio do argumento liberal em torno a proteção da esfera privada dos indivíduos tomando por base o período de nascimento de J. S. Mill, em 1806 (Londres, 20 de maio) com falecimento em 1873 (Avignon, 8 de maio). Ademais deste período produtivo de praticamente cem anos antes, consideremos que sua produção teve lugar em língua inglesa, devemos considerar sua amplíssima influência tanto no período como posteriormente, elementos que o tornaram ainda mais próximo da argumentação formulada por Hart (Harrowgate, 18 de julho de 1907 – Oxford, 19 de dezembro de 1994), Devlin e todo o seu contexto. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 85 | de Devlin ao Direito Criminal a imposição de um “[...] princípio moral, e nada mais”. (apud HART, 1987, p. 56). A articulação sociopolítica secular busca a preservação da privacidade das práticas a que se dediquem privadamente os indivíduos. Em suma poderíamos argumentar que no marco de um Estado que preserva as liberdades haveremos de recorrer à desarticulação do poder do Estado em intervir na esfera privada de cada indivíduo no que concerne ao exercício de seus assuntos pessoais, desde logo, e recorrendo a Mill, quando terceiros não resultem prejudicados. No que concerne a esta última argumentação deveremos nos preocupar com o entendimento sobre o que pode ser caracterizado como um “prejuízo” a terceiros. Ao fim e ao cabo, desde qual critério poderíamos entender pertinente a reclamação de um indivíduo, ou grupo, sobre o caráter prejudicial da conduta de outros? Haveria um critério objetivo para tanto? Acaso poderíamos considerar prejudicial a queixa de alguém que se ofenda com a freqüência de pessoas com características e opções religiosas e/ou sexuais quando deva eventualmente compartilhar espaço físico no hall e nos elevadores do prédio em que reside? Haveria como considerar realmente prejudicial e, portanto, motivada a queixa de que, por exemplo, prostitutas freqüentam determinada área, ainda quando suas ações não se caracterizem por distúrbios públicos? Como poderíamos responder positivamente a estas perguntas quando não temos um critério Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 86 | determinado?124 Acaso respondêssemos positivamente à demanda em reconhecer o caráter prejudicial das condutas citadas nos exemplos não incorreríamos em decisões marcadas por um manifesto e profundo subjetivismo judicial que abriria brechas para que ampliássemos a tão indesejada intervenção pública nos assuntos atinentes à vida privada? Desde logo, nos exemplos citados temos uma dimensão mais problemática do que aquelas citadas no texto hartiano, qual seja, a prática de condutas em privado ou, se preferirmos, entre quatro paredes. Sobre estas, contudo, em nosso tempo histórico, nos parece amplamente compartilhada a visão de que sua tutela é um dos deveres aos quais uma sociedade democrática deve ocupar-se em manter protegidos. Nos exemplos logo acima citados percebemos uma zona cinzenta, menos clara e evidente, bastante tênue entre a proteção da esfera privada e a necessária intervenção pública. 124 Evitamos citar aqui outros casos corriqueiramente citados como exemplos concretos de maior incidência de disputas em torno à moralidade, tais como a questão que envolve o aborto, o adultério, a eutanásia, certas formas de bigamia e poligamia bem como a legislação sobre o suicídio. Desde logo, temos ainda casos de certa atualidade, e não pouca exoticidade, como a de dois alemães que encontraram-se através da internet sendo que um deles tinha a intenção de oferecer-se à prática canibal do outro, o que terminou por ocorrer. O desfecho do evento foi a condenação do autor da prática canibal, em que pese ela contasse sabidamente com a anuência do indivíduo morto. Neste aspecto haveria de ser levantada a questão sobre se a anuência de vítimas elidiriam a responsabilidade do sujeito ativo da prática de crimes. Quanto ao aspecto exótico de certas legislações, Hart é bastante sugestivo ao referir-se à questão do tratamento então dispensado à bigamia na Inglaterra. Na oportunidade a bigamia poderia existir de fato, sendo, juridicamente, irrelevante. Isto sim, tornava-se objeto de atenção jurídica, e recriminação, quando o homem, por exemplo, desejasse oficializar as diversas relações celebrando matrimônios com todas as mulheres com as quais mantivesse relações (cf. HART, 1987, p. 63). Em uma situação como esta, por exemplo, qual seria a justificativa para perseguir judicialmente o indivíduo? Acaso fosse o caráter “imoral” da manutenção de relações com diversas mulheres acaso seria o mero fato de oficializar o que tornaria realmente o fato mais odioso do que manter as mesmas relações de forma não-oficial? Consistiria o caráter reprovável da bigamia o mero registro público? Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 87 | 4. O DEBATE MORAL: A ARGUMENTAÇÃO LIBERAL PERANTE O CONSERVADORISMO FILOSÓFICO O debate entre Hart e Lord Devlin configura um Hart defensor da ausência legislativa ou da interpretação moral, strictu sensu, por parte do Judiciário de questões morais privadas. Aqui se contrapõe a visão prática positivista, hartiana, a uma outra visão que poderíamos denominar de perfeccionismo moral, claramente presente em Fuller quando defende que a lei ou sua interpretação podem e devem buscar a realização de valores morais. Desde logo, perante a argumentação que vínhamos erigindo na seção anterior, um Estado preocupado com a tutela das liberdades individuais não poderia congruentemente legislar de forma restritiva de práticas morais privadas e, por conseguinte, adotar uma postura filosófica perfeccionista. Contudo, o perfeccionismo ínsito na argumentação de Lorde Devlin sustenta ser admissível a qualquer sociedade tomar as providências legais para que preservem a sua auto-existência ou, ao menos, aquilo que entende ser necessário à sua preservação (cf. HART, 1987, p. 45). A respeito do apresentado no parágrafo anterior há uma crítica consistente de que o argumento capitaneado por Lorde Devlin carece de Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 88 | uma constatação histórica ou empírica, ou seja, de que a tese de que a sociedade desarticule-se e pereça por não proteger determinados valores morais fundamentais não encontra apoio empírico, senão apenas hipotético, nos termos sugeridos por Lorde Devlin (cf. HART, 1987, p. 71).125 A rigor, parece insuficiente a argumentação, a ponto de que Hart sintetiza que “[...] não há, de novo, uma maneira inequívoca de comprovar ou de refutar a teoria quanto à circunstância de quem quer que se desvie da moral sexual convencional se revela, em outros pontos, hostil à sociedade”. (HART, 1987, p. 72). Quanto a este último elemento, o entendimento de que o Estado poderia legislar sobre matérias que a sociedade acredita ou avalia que lhe atentam à sua preservação enquanto tal, desde logo, cabe refletir. O perigo ínsito nesta argumentação apresentada por Lorde Devlin é de que a percepção de perigos pode ser bastante ampliada até o ponto de atingir condutas e opções bastante distanciadas do razoável. Assim, por exemplo, como justificaríamos argumentação contrária a uma sociedade que tenha a firme e compartilhada percepção de que a união de negros e brancos deve ser proibida? Em suma, se o critério for apenas o do esta125 Cabe sublinhar que Hart não se opõe à tese de Lorde Devlin quando sustenta que alguma moral compartilhada é necessária à manutenção da sociedade além do que como mero agrupado de pessoas (tese da moderação) mas, isto sim, quando o referido autor procura suplantar a tese inicial para afirmar a necessidade de uma moral (tese do rigor extremo) que se imiscua em detalhes da vida privada como necessários para a manutenção dos valores morais sem os quais a sociedade não lograria manter-se (cf. HART, 1987, p. 71-72). Em outro trecho o autor volta a sublinhar esta leitura quando afirma que “[...] Pode-se argüir [...] que uma sociedade humana, na qual esses valores não sejam reconhecidos de jeito algum, sua moralidade não é nem uma possibilidade empírica, nem lógica, e, ainda que fosse, tal sociedade não teria qualquer valor prático para os seres humanos” (HART, 1987, p. 89). Ainda ao final do livro, Hart volta a referir-se ao tema reforçando o ponto de vista de que “não se pode comprovar, com manifesta certeza, que a preservação de uma sociedade exija a coerção de sua moralidade, ´como tal´”. (HART, 1987, p. 99). Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 89 | belecimento deste consenso compartilhado, se o critério para estabelecer legislações moralmente proibitivas for apenas a de que se verifique o consenso sobre questões morais, acaso haveria como argumentar de forma importante em sentido contrário? De forma positiva, não parece que a afirmação de tal posição permissiva de legislação com base unicamente no consenso possa permitir-nos alcançar um locus legislativo seguro, previdente e prudente em matéria moral. Como nos recorda Hart, temos uma pergunta incessante, qual seja, a de que “o problema relativo a saber se uma sociedade tem o ´direito´ (right) de impor sua moral [...] se é moralmente permitido a qualquer sociedade impor, legalmente, observância aos princípios que adota [...]”. (HART, 1987, p. 46). Contudo, ademais deste problema levantado no parágrafo anterior acerca do direito impor uma determinada perspectiva moral, cujo viés encontra-se socialmente compartilhada, emerge um problema. A questão que se põe é sobre quais fundamentos morais poderiam justificar a imposição de uma determinada leitura moral de uma questão sobre outras leituras morais acerca de um determinado problema. Como diz Hart, não há suficiência na argumentação da punição de homens “simplesmente porque outros não concordam com o que eles fazem” (HART, 1987, p. 69). Presente esta questão, haveríamos de preocupar-nos com a legitimidade do Direito Penal punir tão ligeiramente, na medida em que sem fundamentação teórica firme, a condutas morais. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 90 | A abordagem de problemas morais desde a ótica do Direito Criminal pode levar-nos a prática de um conceito paternalista que se confunde, eventualmente, com o que Hart denomina de “moralismo legal” (HART, 1987, p. 58), o qual encontra raramente uma justificação plausível em um Estado democrático. CONSIDERAÇÕES FINAIS Um aspecto central em favor da descriminalização de aspectos privados da moralidade humana encontra-se no fato de que tal política possui um viés paternalista contra o qual uma sociedade livre e um Estado orientado por políticas tuteladoras das liberdades individuais haveria de preocupar-se em evitar. O paternalismo aplicado desde a perspectiva da política criminal implicaria em legislar minuciosamente sobre questões que em um Estado democrático e liberal reputaria como atinentes, única e exclusivamente, às determinações individuais. O ponto de partida de sua argumentação, Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 91 | como soa óbvio, é o de que ao indivíduo haveria de ser concedida maior esfera de autonomia perante uma amplitude de intervenção estatal consideravelmente diminuída. A leitura do Estado liberal é de que haverá de evitar a proteção das pessoas contra elas próprias e suas escolhas que, para o milliano Hart, bastam os debates, os conselhos e argumentações, nada mais restando possível do que precatar terceiros acerca de algumas conseqüências que imaginamos poder advir de certas condutas (cf. HART, 1987, p. 93). Esta leitura é desarmônica contra a perspectiva liberal que busca o centro de equilíbrio das liberdades nas escolhas individuais. Neste sentido o debate sobre a política criminal de drogas, por exemplo, merece destaque. Uma prática liberal por excelência, trataria o problema menos desde uma perspectiva principiológica baseada em convicções dogmáticas acerca das drogas. Isto normalmente se dá, inclusive pela característica de tal abordagem, desde uma perspectiva excludente relativamente às escolhas pessoais, excluída, desde logo, a circunstância em que tal escolha tenha por sujeito ativo pessoas destituídas de razão temporária ou definitivamente, casos em que se inserem os menores de idade, os enfermos psiquicamente atingidos de forma temporária e um segundo grupo paciente de doenças que lhes atinjam o discernimento de forma irreversível. A perspectiva consagrada por uma política anti-paternalista é a de dedicar-se ao tratamento das conseqüências, inclusive em termos de sa- Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 92 | úde pública, que as escolhas e preferências individuais possam ocasionar. Nestes termos, por exemplo, temos algumas políticas contemporâneas brasileiras que preocupam-se em limitar o consumo do cigarro. Trata-se de clara opção individual em que o Estado adota política restritiva mas não proibitiva. O Estado adota política pública que visa a desencorajar progressivamente o vício do fumo. Esta política encontra argumentação não apenas em que afeta de forma considerável a saúde do fumante, posto que fôra este o argumento central isoladamente tratar-se-ia nada menos do que de uma política aberta e inaceitavelmente paternalista. O aspecto central neste tipo de política pública nos parece ser o fato de que a prática do fumo causa considerável impacto negativo sobre terceiros, e não apenas somente sobre a saúde (e aqui o caso dos fumantes passivos) como também sobre os prejuízos financeiros que este grupo em especial causa às finanças públicas.126 Opostamente às políticas paternalistas o Estado holandês, por exemplo, aborda a questão das drogas e da liberdade sexual de forma distinta aquela que, por exemplo, é levada a termo no Brasil. 127 Na Holanda 126 Não temos no momento dados concretos, mas informações esparsas dão conta de que há um pesado investimento estatal no tratamento de doentes crônicos cuja origem encontra-se no fumo. Neste caso, portanto, subsiste o argumento de que se trata de uma escolha individual, não moral, que causa impacto sobre terceiros. Neste caso do fumo permanece o marco da política pública desincentivadora do fumo na medida em que, por exemplo, não visa mais do que coibir o consumo do fumo em certos locais públicos, abstendo-se da invasão ao seu consumo privado. No entanto, como se percebe, tal vedação parcial não termina por ser congruente com o problema detectado de, por exemplo, atingir os cofres públicos e, assim, causar impactos e prejuízos econômicos a terceiros derivados de vício alheio. A rigor, tal impacto econômico aos cofres do Estado continuaria a produzirse no caso de um fumante fazê-lo, contumaz e intensamente, apenas em privado. 127 Entre nós, por não avançar a argumentação relativamente a outros países próximos, é flagrante o fracasso das políticas públicas que tem as drogas como objeto. Para observar tal fracasso não necessitamos mais do que atentar à realidade que nos cerca. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 93 | há uma ampla liberdade para a escolha do consumo de drogas cujo processo de comercialização bem como da legalização das lojas de venda tem acompanhamento do Estado. Paralelamente, o Estado ocupa-se em atender as conseqüências derivadas destas escolhas de seus cidadãos com dados bastante concretos em mãos, uma vez que os negócios não oficializados restam desestimulados, embora não inexistentes. A mesma aproximação ao problema é feita pelo Estado holandês no que concerne à prostituição, tratando do tema como uma questão de saúde pública, concedendo às profissionais do sexo todo acompanhamento de saúde que a atividade exige. Especificamente no que concerne à legislação sobre temas morais e a imposição de um ponto de vista excludente de todos os demais sugere que tangenciamos às estruturas mais basilares de um Estado democrático. Neste sentido o liberal Hart sustentava que “não nos é dado, na vida social, adotar um só valor ou um só objetivo moral, levados, como somos, pela necessidade de conviver com os outros” (HART, 1987, p. 62), convivência que, contudo, não implica no absoluto direito de que às “maioria seja concedido o direito moral de determinar como todos devem viver” (HART, 1987, p. 95).128 Diretamente ou não, inspirado em Mill, a conclusão é de que não se trata de apresentar uma teoria indiferente á 128 Esta argumentação se assenta em um “equívoco fulcral‟, diz Hart (1987, p. 96), dado que não se pode conceder ao poder político um poder ilimitado cujo fundamento é de que aja em seu nome. A rigor, então, é um “equívoco [...] inaceitável, de que tudo que a maioria faz, com este poder, se encontra além das críticas e jamais sujeito à resistência”. (HART, 1987, p. 96). Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 94 | moral mas, isto sim, nos limites propostos por Hart,129 é de que o uso da coerção, e em especial da penalização criminal, seja por demais restringida. A título de palavras finais para este trabalho sugiro acompanhar as mesmas com as quais Hart conclui Direito, Liberdade e Moralidade, que nos parecem especialmente elucidativas a respeito de seus propósitos com o livro: [...] Ninguém pensaria, ainda quando a moral popular fosse mantida por uma ´esmagadora maioria´ ou marcada pelo tríplice estigma da ´intolerância, indignação e repulsa´, que a fidelidade aos princípios democráticos requer sejam admitidos e sua imposição sobre a minoria justificada. (HART, 1987, p. 97). Neste sentido, indiscutivelmente, não encontramos à disposição de um Estado democrático argumentos liberais que fundamentem legitimamente do ponto de vista moral a imposição de compromissos morais cultivados por maiorias ou por minorias no poder. Como nos diz Hart, em 129 O que também mostra esta inclinação hartiana é citação de trecho de Mill: “Seria uma grave incompreensão desta doutrina supor que defende uma egoísta indiferença e que pretende que os seres humanos não têm nada a ver em sua conduta mútua, e que só devem inquietar-se pelo bemestar ou as ações de outro quando seu próprio interesse está em jogo... Os seres humanos devem ajudar-se, uns aos outros, a distinguir o melhor do pior, e a prestar apoio mútuo para eleger o primeiro e evitar o segundo”. (apud HART, 1987, p. 93). Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 95 | torno à fidelidade aos princípios democráticos não podemos lançar mão da imposição de valores morais a partir do arcabouço jurídico estatal. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: HART, Herbert L. A. Direito, liberdade e moralidade. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1987. 102p. ______ . O Conceito de Direito. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2007. 348p. MacCORMICK, Neil. H. L. A. Hart. Stanford: Stanford University Press, 1996. 184p. ______ . Derecho Legal y Socialdemocracia. Madrid: Tecnos, 1990. 216p. PÁRAMO, Juan Ramón de. H. L. A. Hart y la teoria analítica del derecho. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1984. 470p. SANTOS, Gerson Pereira dos. Introdução. In: HART, Herbert L. A. Direito, liberdade e moralidade. Porto Alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1987. P. 1127. SILVEIRA, Sheila Stolz da. Um modelo de positivismo jurídico: o pensamento de Herbert Hart. Revista Direito GV 5, Vol. 3, No. 1, Jan.Jun., 2007, p. 101-120. ZIPURSKY, Benjamin C. Practical Positivism versus Practical Perfectionism: The Hart-Fuller Debate at Fifty. New York Law Review, Vol. 83, Sep., 2008, p. 1170-1212. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 96 | NORBERTO BOBBIO E UMA TEORIA GERAL DO DIREITO Norberto Bobbio and a Theory of Law Sergio Manuel Fialho Lourinho “A experiência jurídica é uma experiência normativa” 130 RESUMO: Partindo da obra de Norberto Bobbio, pretende-se traçar a essencialidade do pensamento jurídico presente na mesma, abordando a Teoria da Norma, de fulcral estruturalidade no domínio de uma Teoria Geral do Direito. ABSTRACT: Based on the work of Norberto Bobbio, we propose to identify the legal theory present in: A Theory of Judicial Norms, the most important work about law theory that exists in the legal comunity. *Mestrando em Direito do Estado pela Universidade Federal do Paraná; Especialista em Direito Ambiental pela Universidade de Lisboa; Bacharel em Direito na área de Ciências Histórico-Jurídicas pela Universidade de Lisboa; Pesquisador da CAPES. 130 In: BOBBIO, Norberto, Teoria da norma jurídica, São Paulo, EDIPRO, 2001, Pág. 23. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 97 | PALAVRAS CHAVE: Norberto Bobbio – Teoria do Direito – Filosofia Jurídica KEY-WORDS: Norberto Bobbio – Law Theory - Legal Philosophy 1. INTRODUÇÃO O Direito carece de uma Teoria Geral. Norberto Bobbio, autor considerado clássico ainda em vida, feito de notável apreço, resume na obra em análise: Teoria da Norma Jurídica, não apenas um exaltar de uma concepção jurídica, mas um verdadeiro contributo para uma Teoria Geral do Direito. A Teoria da Norma Jurídica afirmou-se como o paradigma e todas as considerações e análises críticas às teorias jurídicas suas contemporâneas são o seu bastante alicerce que cimentam o fortalecimento de uma doutrina que ainda hoje se releva como fundamental e necessária para fazer face aos problemas do Direito atual. Abordamos aqui primeiramente a colocação da Teoria face ao estado de coisas pretérito no momento da sua construção. Seguidamente relacionamos as questões jus-filosóficas imanentes que fomentam a base de todo o jurídico. Por último tratamos da diferenciação a ser feita de entre a norma jurídica e demais tipos de norma, concluindo pelo critério eleito de Bobbio referente à sanção como critério unificador e caraterizador da norma jurídica que, por contraposição à social e moral por suas pretensas caraterísticas vem a suprir inconveniências que teria no caso das duas ante-referidas. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 2. | 98 | TEORIAS DO DIREITO CONSIDERADAS Norberto Bobbio parte da definição de direito como “um conjunto de normas ou regras de conduta” de forma a acentuar o cariz de normatividade. O ser humano na sua vivência em sociedade vê-se envolto numa teia de procedimentos aos quais está adstrito, sejam estes de cariz moral, social, religioso ou jurídico. Toda e qualquer sociedade está permeada por uma normatividade implícita que varia de época para época, de sociedade para sociedade, a análise histórica perfaz esse conhecimento e oferece uma resposta á interligação que é feita em volta de todo esse poder da norma, essa força vinculante que obriga, com mais ou menos coercitividade, seja esta apanágio do Estado enquanto regente da civilização ou do meio religioso, moral ou do mero trato social que vincula, muito embora de forma distinta. A multiplicidade normativa distingue-se pelo tipo de finalidade, pelo escopo perseguido pela regra em questão, no entanto, tanto a imponente regra jurídica como a regra de conduta de trato social tem em comum o fato de se constituirem como meio de influenciar comportamentos. Os momentos preliminares desta obra deixam já transparecer uma teoria jurídica, a teoria normativa, nem se pense que se esgota aqui toda uma forma de ver o direito, abordamos uma de entre várias outras formas Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 99 | de pensar o jurídico. O autor traz agora á colação duas outras teorias, o direito como instituição e o direito como relação. 2.1. TEORIA INSTITUCIONALISTA Desenvolvida por Santi Romano, a Teoria da Instituição refere que o direito assenta em três vetores essenciais: Sociedade, Ordem e Organização. Na definição de Romano: “Existe direito quando há uma organização de uma sociedade ordenada”, ou seja, o conceito de instituição refere-se a uma sociedade ordenada e organizada, é de fato esta última vertente o cerne da sociedade jurídica, a organização como meio a partir do qual um ente social passa a adoptar a sua regulamentação. Bobbio alerta para a incongruência interna da teorização, o brocardo: “ubi ius ibi societas” é de admitir, pois com certeza que onde existe direito existe sociedade, o direito pressupõe a sociedade, já o inverso: “ubi societas ibi ius” não será admissível na medida em que nem toda a sociedade é jurídica. O autor contrapõe a teoria da instituição face à teoria estatalista do direito, a qual reconduzia ao Estado a fonte de todo o direito, não admitindo qualquer outro meio de produção de norma vinculadora, descurando a realidade social e a existência de outras ordens que não a jurídica. Esta teoria é fruto das vicissitudes da saída de um estado de ordens plúrimas como era o estado medieval, neste coexistiam os diversos “estados” dentro do estado, e mesmo fora deste, persistiam Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 100 | outras entidades como a Santa Sé e os impérios civis que a estes obrigavam. A centralização do poder normativo, apanágio de um estado que se materializou numa congregação de poderes outrora pertencentes a entidades distintas formalizou e consubstanciou-se numa teorização que veio a identificar o direito com o Estado. Entendendo o poder como a capacidade para ditar regras que vinculam a totalidade de um grupo ao qual se dirigem, usando inclusivamente da coação para fazê-las cumprir, facilmente identificamos o Estado Moderno como entidade congregadora desse expediente, com caráter de exclusividade. É neste estado de coisas que surge a teoria institucionalista, frente a um Estado monopolizador do poder que se revela no meio de produção de normas e de as fazer cumprir através de um outro poder que lhe advoga o meio de coagir pela força ao cumprimento das referidas. Bobbio cumpre uma prévia observação metodológica que nos surge como de extrema relevância para a questão. Da análise de uma teoria restam considerações de cariz ideológico e de cariz científico, constituindo a segunda vertente aquela que esta em causa na sua análise, o saber se a doutrina em questão oferece resposta para a o seu escopo, que é, no caso, uma melhor compreensão do fenômeno jurídico. Dessa análise, resultam duas críticas: A teoria da instituição não se configura como oposta à teoria da normativa aqui referida, os seus antípodas situam-se conforme referido na teoria estatalista que com a segunda não se identifica. A amplitude da teoria estatal não será inferior à teoria nomativa sendo esta também compatível com um pluralismo Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 101 | jurídico. A segunda crítica diz respeito ao surgimento do direito na sociedade, Santi Romano advoga que é na organização que se funda a génese, no entanto, Bobbio demonstra que a regra tem uma significação prévia ao elemento caraterizador em questão, pois uma sociedade organizada, para o ser, carece de normas, que a vão caraterizar enquanto tal, dessa forma, não tem sentido afirmar a primordialidade da organização, na medida em que esta mesma vai buscar a sua essência própria á normatividade que emana e que a vai consagrar. Conclui o autor pela inclusão na teoria da instituição, da teoria da normatividade do direito e saudando a primeira pelo seu contributo na mediação entre uma teoria das normas juridicas para uma teoria do ordenamento jurídico. 2.2. TEORIA DA RELAÇÃO INTERSUBJETIVA Olhar o direito como relação intersubjetiva parte do pressuposto que o direito nasce do fenômeno social, tal como na teoria intitucionalista. No entanto também sobre esta doutrina os institucionalistas lançaram farpas, alegando que o mero acordo de vontades entre dois indivíduos é insusceptível de gerar direito porque padece da ausência do elemento institucional. Em Kant, encontramos uma vertente da teoria da relação, este definindo o direito como “o conjunto das condições por meio das quais o arbítrio de um pode acordar-se com o arbítrio de um outro segundo uma Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 lei universal da liberdade” | 102 | traça a dissociação daquilo que considera como relação jurídica, das outras ordens existentes (moral, religiosa, social). Avançando numa mais concreta diferenciação entre ação moral e ação jurídica e pretensas caraterísticas das referidas, Del Vechio assenta a primeira numa base subjectiva e unilateral e a segunda de cariz intersubjectivo e bilateral. Temos numa mais recente teoria da relação jurídica, da autoria de Alessandro Levi, a qual, segundo Bobbio, denota indícios de que tal como a teoria da instituição também esta assenta em pressupostos que a reconduzem aos fundamentos da teoria da normatividade. Desde logo o que origina a juridicidade não é a relação em si mas sim a norma que vai regular essa relação, também no discriminar das características da relação jurídica, Levi aponta a tutela, a sanção, a pretensão e a prestação, aos quais Bobbio alerta para o fato de se manifestarem como constituintes de qualquer relação que não exclusivamente a jurídica, ou seja, algo mais restará para que se considere elemento fundamental e esse elemento será a norma reguladora. A relação jurídica consiste numa relação entre dois sujeitos, na qual um detém um direito e o outro um dever. A origem desta relação que estatui direito e dever, tem como base uma norma, que nos indica que o sujeito A e o sujeito B são titulares deste direito ou daquele dever. É a norma o elemento qualificador de uma relação jurídica. Temos então a diferenciação entre relação de fato e relação de direito. A primeira não está imbuída do axioma que lhe imprimirá a Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 103 | juridicidade, não obstante uma mesma relação será de fato e de direito simultaneamente, tal como o exemplo da fidelidade dos conjugues, atracada num pilar ético-moral ao qual o ordenamento jurídico vem fornecer a juridicidade e transformar uma mera relação de fato numa relação eminentemente jurídica. A conclusão obtida é portanto, ante o exposto, pela inclusão da teoria normativa nas doutrinas supra-referidas, mais do que isso, pela consideração desta como pressuposto de validade das demais. Assume uma complementariedade das três, com prevalência do aspecto normativista. 3. A NORMA JURÍDICA 3.1. JUSTIÇA, VALIDADE E EFICÁCIA Toda a norma jurídica deve passar pelo crivo da justiça, validade e eficácia. Os três critérios estão dissociados entre si e estabelecem pretensões distintas. Por norma justa deve entender-se a correspondência desta com os princípios estruturantes, com o ideário finalístico do ordenamento da qual ela faz parte. Trata-se da questão que entrelaça o ser com o dever ser, a norma justa é aquela que deve ser e aquela que é, isto se optarmos Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 104 | por uma equiparação entre os valores reais e ideais e se admitirmos que o real exprime o ideal, a norma injusta está sempre no plano do que não deveria ser. É este o “problema deontológico do direito”. A validade coloca-nos num plano de estrita observância técnica, não se ajuíza de um ponto de vista axio-valorativo, mas sim técnicojurídico. Saber se uma norma é válida é saber se esta faz parte do ordenamento jurídico, desta forma três análises podem ser feitas: indagar da autoridade do órgão que a emanou; saber da sua possível ab-rogação, direta ou implícita. Tratamos aqui da problemática “ontológica do direito”. Por fim, a eficácia, diz respeito à norma na sua relação com os destinatários da mesma, a questão que se coloca é saber se uma determinada norma é ou não seguida e as razões advenientes, no caso de resposta negativa, é aqui colocado o “problema fenomenológico do direito”. Conforme supra-referimos, os três critérios encontram-se de forma dissociada pelo que o autor expõe seis proposições onde se verifica na prática essa independência: 1. Uma norma pode ser justa sem ser válida131; 2. Uma norma pode ser válida sem ser justa132; 3. Uma norma pode ser válida sem ser eficaz133; 131 Normas de direito natural podem ser justas, mas só serão válidas quando incorporadas num sistema de direito positivo. 132 A escravidão era injusta , mas era válida. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 105 | 4. Uma norma pode ser eficaz sem ser válida134; 5. Uma norma pode ser justa sem ser eficaz135; 6. Uma norma pode ser eficaz sem ser justa136. Os três critérios exprimem os fundamentos da análise jurídica, como teoria da justiça, como teoria geral do direito ou como sociologia jurídica. Estas disciplinas resultam em abordagens específicas a problemáticas jurídicas que constituem um problema jurídico central137. A sugestão e análise independente, visa o afastamento de certas teorizações reducionistas que reconduzem validade à justiça (doutrina do direito natural), ou justiça à validade (positivismo jurídico) ou por fim, a validade à eficácia (realismo) e que são descaracterizadoras da totalidade dos três elementos constitutivos da “experiencia jurídica”. Perante a teoria do direito natural, a lei deve estar de acordo com a justiça. Bobbio alerta para o fato desta perspectiva se colocar no plano ideal, contraposto a um real, leis injustas não perdem o seu cunho que as caracteriza como tal, muito embora se colocarmos a questão no plano do dever ser, aí, toda a lei será justa. O problema que se coloca aqui diz respeito à definição de justiça, a doutrina do direito natural não hesita em 133 A lei seca nos E.U.A.. As regras de boa educação, são eficazes no sentido que aceites e aplicadas por todos mas para serem válidas têm de ser incorporadas num sistema de direito objectivo 135 Se a norma pode ser justa sem ser válida, também podemos dizer , a fortiore, que pode ser justa sem ser eficaz 136 O mesmo acerca da escravidão. 137 Esta tripartição referida, foi desenvolvida por Del Vecchio no séc. XX e adotada até hoje, numa abordagem atual, mas baseada na mesma metodologia V. Rescoe Pound e os conceitos de Jurisprudência analítica, jurisprudência crítica ou ética e jurisprudência sociológica. 134 Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 106 | assumir essa qualificação, no entanto, esta é mutável, ao longo das épocas apresentou diferentes conceptualizações e desta forma não terá como assumir uma verdade única sobre o dever ser de justiça como tal. A conclusão a que chegamos é a que não existe uma distinção universalmente aceite sobre o que é justo e injusto, desta forma indagase a quem deve competir traçar essa solução. Duas alternativas surgem: ou àqueles que detém o poder, ou a todos os cidadãos, o que em ambas as situações se objeta no sentido da não recondução da validade à justiça. Exemplificando, o autor identifica uma aparente aplicação da pretensa recondução da validade à justiça: O direito natural não cumpriria a função de direito sem o auxílio do direito positivo, e, o fato do próprio direito positivo em discordância com o direito natural dever obediência, logo, daqui se infere a diferenciação entre validade e justiça, o direito que não é justo pois não está de acordo com a lei natural, é obedecido num plano de validade ainda que não o seja num plano de justiça. Reduzindo a justiça à validade, o positivismo jurídico afirma a justiça de um comando pelo simples fato de no plano da sua validade este se considerar como tal válido. Do racionalismo Hobbesiano138 ao positivismo strictu sensu de Kelsen, remontando aos sofistas helénicos, é exposta a fundamentação pela qual se obriga, e assume-se assim a validade como forma de fazer obedecer a um comando, o qual, após 138 Bobbio entende que foi Hobbes quem melhor representou o ideal positivista, destacando a indiferenciação entre entre validade e justiça da norma, nas suas palavras: “no estado de natureza não existe direito válido, tampouco há justiça, e onde há justiça significa que há um sistema constituído de direito positivo” Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 107 | válido se torna justo, ou não relevando aqui uma forma de justiça num plano material, mas sim formal, de acordo com o cariz de obediência ao qual está adstrito por força da validade que por sua vez se concretiza por uma lei do mais forte numa vertente sofística. Surge em oposição às duas grandes doutrinas do direito uma nova concepção que se denomina de realismo jurídico. Parte da crítica ao idealismo característico do direito natural e ao formalismo excessivo positivista. A primeira manifestação dá-se pela Escola histórica do direito, encabeçada por Savigny e que traz consigo uma nova perspectiva do direito, assume o direito consuetudinário como expressão do sentimento jurídico popular e portanto aquele que melhor pode caracterizar o direito. A concepção sociológica do direito, consagra uma nova manifestação desta corrente realista que aponta um desfazamento entre a lei que existe como tal positivada e o espírito jurídico popular, evoca o direito judiciário, pela mão do terceiro poder como expediente prático para consagrar e corrigir esse desfazamento. O movimento do direito livre bem como a jurisprudência realista são exemplos de manifestações desta corrente139. Por último, temos na América do Norte o terceiro momento de manifestação do realismo em oposição ao excessivo formalismo positivista, seguindo esta vertente sociológica pela mão do juiz Holmes, 139 A doutrina que representa esta corente, encontramos em Kantorowicz o expoente máximo do Movimento do direito livre, cujo apanágio considerava a exaltação da livre criação normativa pelo juiz. François Gény, que advogava uma preterição da técnica jurídica no sentido desta representar uma subordinação do direito técnico e um maior apego à ciência jurídica que tenha em consideração a realidade social, tomando em linha de consideração o plano histórico e material. Eugen Erlich numa linha mais relativa ao empirismo social, tomado em linha de conta pela análise da sociedade. Phillipp Heck, com a defesa de uma “jurisprudência dos interesses” pela via de um melhor dirimir dos conflitos entre as partes, por oposição é claro de um direito estatal rígido. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 108 | rompendo contra um excessivo tradicionalismo jurídico das cortes introduz uma “interpretação evolutiva do direito”, outros nomes como Roscoe Pound e Jerome Frank assumiram-se como protagonistas num movimento de insurreição contra a vertente dominante, em favor do denominado realismo jurídico que pujantemente defendiam. Em resumo, a doutrina realista, assume a crítica no plano das fontes, na medida em que deseja incrementar outras para além do tradicional monopólio estatal-legal. Por último, o autor relaciona o plano da validade e eficácia no panorama das novas fontes introduzidas pela corrente em questão (direito consuetudinário e direito judiciário). Conclui pela inclusão dos dois elementos, validade e eficácia, no seio das subreferidas em situação análoga à da própria lei. 3.2. CRITÉRIOS MATERIAIS DE DISTINÇÃO Para efetuar uma diferenciação entre a norma jurídica de outros tipos de norma é necessário tomar uma apriorística baseada numa vertente material, abandonando uma perspetiva formal, tal como foi anterefutado por Bobbio quando tratou das questões atinentes à: - Imperatividade - Heteronomia Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 109 | - Autonomia Referentes à diferenciação entre Direito e Moral, nos primeiros capítulos obra. 1. Conteúdo A norma jurídica visa sempre regular uma relação intersubjetiva, constituindo a bilateralidade sua caraterística fundamental que se releva pela instituição simultânea de um direito e um dever aos sujeitos no âmbito da relação intersubjetiva. Crítica de Bobbio: É perfeita a diferenciação entre o Direito e Moral, no entanto permanece a confusão entre norma jurídica e norma social pelo fato desta última partilhar da caraterística apontada da bilateralidade e do conteúdo como relação intersubjetiva. 2. Fim As relações intersubjetivas reguladas pelo Direito são específicas e isso o distingue da ordem social cujas normas regulam situações genéricas. A finalidade do ordenamento jurídico pela manutenção da sociedade regulada como tal imprime a especificidade própria do escopo finalístico das suas normas. A norma social não considerada como Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 110 | essencial a esta mesma teleologia configura-se como distinta num plano acessório em relação à primeira. Crítica de Bobbio: A consideração sobre a essencialidade é de cariz subjetivo e mutável por natureza. Certas sociedades atribuem relevância a disposições que lhe conferem cariz jurídico. Impossibilidade de definição pacífica e universal sobre o que torna uma regra essencial á conservação da sociedade. 3. Sujeito que estabelece a norma Assume este critério que é a entidade que emite a norma que lhe confere a juridicidade. Neste caso, quem detém o poder soberano, na medida em que estabelece a norma, lhe confere essa caraterística fundamental. Parte-se do pressuposto que uma norma é sempre uma expressão do poder, nos termos do positivismo jurídico no qual não releva o escopo finalístico material mas apenas uma confissão de fé no poder soberano que inclusivamente decidirá sobre o que é a norma essencial para a conservação da sociedade. Crítica de Bobbio: Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 111 | O poder soberano faz valer a sua essencialidade das normas pelo recurso à coercibilidade. 4. Tese jusnaturalista – conceito de justiça A essência do direito está contida nos valores em que o legislador se inspira. O poder soberano dita as regras, não obstante está prévinculado a esses referidos valores. É jurídica a regra que foi formulada de acordo com os mesmos valores aos quais se dá o nome de justiça. Para ser jurídica é necessário ser justa. Crítica de Bobbio: Divergência de opiniões acerca do conceito de justiça. Impossibilidade de regular o critério. 5. Natureza da obrigação Importa seguir como critério a forma como a norma é recebida pelo destinatário, a forma como é obedecida. Temos duas teorizações: 1. Kant – A norma jurídica é a que é obedecida pelas vantagens que dela se possam tirar. Satisfaz-se com uma mera adesão exterior. Não pune motivações. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 2. | 112 | Haesaert – Só é jurídica a norma se o seu destinatário estiver convencido da sua obrigatoriedade. Crítica de Bobbio: A norma jurídica, pela sua posição intermédia entre a norma moral e social é caraterizada em traços de confusão com cada uma das referidas. Para traçar a diferenciação da norma jurídica com a moral, agrega-se caraterísticas da norma social e o mesmo face à norma moral. 3.3. CRITÉRIO EXPOSTO - SANÇÃO Tratamos aqui do momento da resposta à violação. Quando uma ação real não corresponde à ação prescrita, gera-se uma violação a qual se denomina ilícito. Esta assume duas formas mediante a norma violada constitua um imperativo negativo ou positivo: Norma: Imperativo negativo – ilícito = ação – sua violação constitui-se como inobservância Imperativo positivo – ilícito = omissão – sua violação constitui-se como inexecução Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 113 | Após uma violação encontramos então a sanção como meio de resposta e que se configurará nos termos seguintes expostos por Bobbio, caraterizando os diversos tipos de sanção: 1. Sanção Moral Pode-se definir a própria norma moral como aquela cuja sanção é “puramente interior”. Temos aqui sanção como uma consequência desagradável adveniente da violação de uma norma. A Sanção moral consistiria num sentimento de culpa, num estado de angústia, perturbação, no remorso e no arrependimento. Pelas caraterísticas da moral, a sanção moral denota especificidades próprias inerentes à pretensa autonomia da mesma. Crítica de Bobbio - Ineficácia 2. Sanção Social Por oposição à ante-caraterizada sanção interna que constitui a sanção moral, encontramos uma externa, tratamos obviamente de uma sanção que atinge o violador da norma, provindo de uma ação de outrem, este, por seu turno, representa a sociedade que rodeia e estipula tacitamente o comportamento a seguir. No plano da eficácia, este tipo de sanção posiciona-se nos antípodas da primeira supra-citada. De referir ainda os diversos graus que pode tomar uma sanção social (desde a pura e simples reprovação de comportamento até à eliminação do grupo). Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 114 | Crítica de Bobbio – Desproporcionalidade 3. Sanção Jurídica De forma a suprir os inconvenientes supra-citados da: Interioridade Não institucionalização Temos a sanção na sanção jurídica uma resposta: Externa Institucionalizada Á violação de uma norma jurídica. A institucionalização da sanção vem trazer: Certeza da reposta Proporcionalidade Imparcialidade Que por sua vez vai gerar um aumento da eficácia das regras institucionais. Querela doutrinária Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 115 | O autor adverte para o fato do critério introduzido poder não ser aceite por parte da doutrina que não considera a sanção como elemento constitutivo do direito, relegando-lhe relevância secundária. Temos aqui a contraposição doutrinária entre sancionistas e não-sancionistas. Argumentos sustentados pela doutrina não-sancionista 1. Adesão espontânea O ordenamento jurídico conta primeiro do que tudo com a adesão espontânea às suas regras. Quem obedece, fá-lo por consenso e não por temor à consequência adveniente do não cumprimento. A violação das normas não constitui a regra, mas sim a exceção. Crítica de Bobbio: A adesão espontânea não fornece garantia suficiente O problema não diz respeito à necessidade da sanção para todo e qualquer momento, mas somente para quando uma norma é violada. Não se nega a adesão espontânea, esta funciona ao lado do poder sancionatório. 2. Normas sem sanção Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 116 | A existência de normas sem sanção obstariam a que se considerasse a sanção como critério caraterizador da norma jurídica. Crítica de Bobbio: “Quando se fala em uma sanção organizada como elemento constituinte do direito, nos referimos não às normas singulares, mas ao ordenamento normativo tomado no seu conjunto, razão pela qual, dizer que a sanção organizada distingue o ordenamento jurídico de outro tipo de ordenamento não implica que todas as normas desse sistema sejam sancionadas.” Caso das normas superiores na hierarquia normativa o Aplicação sanção pressupõe um aparato coercitivo, pressupõe o poder. o Conforme nos aproximamos da fonte de poder, diminui-se a carga de autoridade entre quem estabelece a norma e quem a obedece. o Questão lógica de não contradição entre o conceito de poder supremo 3. Ordenamentos sem sanção Dando como exemplo o ordenamento jurídico internacional, o qual alegadamente não poderia impor sanção nos termos do ordenamento estatal. Bobbio alega que existe sanção, muito embora distinta no modo como é regulada. Apelando aos conceitos de auto-tutela e hetero-tutela, segundo o autor o ordenamento internacional executa a sanção pelo Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 117 | primeiro, existindo assim uma diferença de grau face ao ordenamento jurídico-estatal mas não de substância. Exemplifica o fenómeno das guerras, embargos económicos e políticos como sanção no ordenamento jurídico-internacional. 4. Processo ao infinito “Se é verdadeiro que uma norma é jurídica só se é sancionada, também a norma que estabelece a sanção será jurídica só se for sancionada, e, na sequência, a norma que sanciona a primeira norma sancionadora, para ser jurídica, deverá remeter-se por sua vez a uma nova norma sancionadora” Bobbio retoma a argumentação acerca da crítica á adesão espontânea, no sentido de que esta é também admitida, paralelamente. Ademais, traça a ruptura lógica na qual entraríamos por via de tal argumento “quis custodiet custodes”140. 4. CONCLUSÃO Norberto Bobbio foi sem sombra de dúvidas o grande teorizador do Direito do Século XX. O seu legado, para além de uma extensa obra no domínio da Filosofia Política e do Direito do Estado, engloba também o 140 Quem governará os que nos governam? Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 118 | presente domínio da Teoria Geral do Direito, e, dentro desta, a Teoria da Norma e a Teoria do Ordenamento constituem marcos teóricos essenciais para a formação do jurista. O presente trabalho, teve como principal preocupação, atentar ao domínio da base de toda a concepção jurídica do autor, pela Teoria da Norma Jurídica que, posteriormente se vai agregar a uma Teoria do Ordenamento, a qual não foi estudada na presente, mas que se considera essencial para uma melhor percepção de uma Teoria Geral do Direito da autoria do senador italiano. BIBLIOGRAFIA BOBBIO, Norberto, Teoria da norma jurídica. Bauru: EDIPRO, 2001. _____. Teoria do ordenamento jurídico. 6 Ed. Brasília: Ed. UNB, 1995. _____. O Direito e o Estado no pensamento de Emanuel Kant. 3 Ed. Brasília: Ed. UNB, 1995. _____. O Filósofo e a Política. Rio de Janeiro: Editora Contraponto, 2003. BUENO, Roberto, A filosofia jurídico-política de Norberto Bobbio. São Paulo: Editora Mackenzie, 2006. DUTRA, Delamar José Volpato, Manual de Filosofia do Direito. Caxias: EDUCS, 2008. FERRAZ JR., Tércio Sampaio, Teoria da norma jurídica. 2 Ed. São Paulo: Editora Forense, 1986. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 119 | A ATUALIZAÇÃO DO SENTIDO DA NORMA SEM A ALTERAÇÃO DE SEU TEXTO; UMA ANÁLISE NA PERSPECTIVA DA TEORIA DO FATO JURÍDICO DE PONTES DE MIRANDA Updating the Meaning of Rule Without Modiffy your Text; An Analysis From The Perspective of The Legal Theory of Pontes de Miranda Rodrigo José Rodrigues Bezerra141 RESUMO A teoria do fato jurídico desenvolvida por Pontes de Miranda apresenta o direito como um produto das relações sociais, como forma imprescindível para a harmonização da comunidade, aproximando-o da sociologia do direito. Assim, busca-se esquadrinhar essa teoria desde a produção da norma, seu suporte fáctico, a incidência e o surgimento do fato jurídico, de modo a permitir a compreensão do funcionamento da atualização do sentido da regra sem a alteração de seu texto. Apresenta-se o fenômeno jurídico em três dimensões – axiológica, dogmática e sociológica, e somente mediante um exame de todos esses aspectos é que se pode formular uma teoria adequada do direito. A norma jurídica, buscando objetivar a realidade e transportá-la para o direito, descreve em seu su141 – Mestrando em Direito pela Universidade Federal de Alagoas. Pós graduado em ciências penais pela UNIDERP. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 120 | porte fáctico o fato social tido como relevante – dimensão axiológica – e, quando concretizado, passa a pertencer ao mundo jurídico. É a incidência da norma que promove este fenômeno, ocorrendo sempre que o suporte fáctico se concretiza, independente de qualquer ação humana, já que se dá no mundo dos pensamentos, de natureza lógica e formal – dimensão dogmática. Momento diverso se dá com a aplicação da norma, que consiste em conduta posterior à incidência e é realizada pelo jurista/intérprete, que deve encontrar o conteúdo da incidência e reproduzi-lo no mundo dos fatos – dimensão sociológica. Assim, as palavras utilizadas pela regra jurídica devem ter seus conceitos extraídos das relações sociais, estando sujeitos à variação temporal e espacial, já que não podem ser considerados como um fim em si mesmo. ABSTRACT The legal theory developed by the brazilian jurist Pontes de Miranda introduced the law as a product of social relations as an essential means of harmonization of the community, toward the sociology of law. Thus, we seek to scrutinize this theory since the production of standard, its factual support, the incidence and the emergence of legal fact, to enable the operation of the actualization of the rule without changing its text. It presents the legal phenomenon in three dimensions – axiological, dogmatics and sociological, and only through an examination of all these Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 121 | aspects enable formulate an adequate theory of law. The rule of law, seeking to objectify reality and carry it to the law, describes in his factual support the social fact considered relevant - axiological dimension - and, when implemented, shall belong to the legal world. Is the incidence of the norm that promotes this phenomenon, occurring whenever the factual support materializes, independent of any human action, as happens in the world of thought, logic and formal in nature - dogmatic dimension. Different moment is with the application of the rule, which is a subsequent conduct performed by the jurist, who must find the content of the incidence and play it on the world of facts - sociological dimension. Thus the words used by the rule of law should have taken their concepts of social relations and is conditioned to temporal and local variation, and they can not be considered as an end in itself. PALAVRAS-CHAVE Norma jurídica. Interpretação. Atualização. Sentido. Caráter criativo dos fatos. KEYWORDS Keywords: Rule of law. Interpretation. Update. Meaning. Creative character of the facts. 1 INTRODUÇÃO Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 122 | A grandiosidade qualitativa e quantitativa da obra de Pontes de Miranda impressiona a todos que sobre ela se debruçam, o que, não obstante represente elemento de amplitude e solidez das premissas conceituais, exige que não se extraia conclusão a partir de textos isolados, sob pena de incompreensão prefeita da teoria. Pontes de Miranda descreve o direito como sendo um produto das relações sociais, as quais influenciam o conteúdo dos conceitos introduzidos na regra jurídica, cabendo ao jurista realizar a atividade interpretativa, atribuindo significado às palavras, como condição para a aplicação da norma ao caso concreto. Em sua Teoria, diverge da concepção amplamente aceita pela doutrina que iguala a incidência da norma a sua aplicação pelo jurista/intérprete, uma vez que a juridicização do fato social descrito na norma ocorre independentemente de qualquer conduta humana, sendo automática e infalível, bastando a concretização da hipótese prevista na regra. Ocorre que o significado das regras é alterado sempre que as circunstâncias sociais não permanecerem as mesmas daquelas existentes quando de sua edição, o que impõe ao intérprete realizar a atualização dos conceitos utilizados na norma, sem que isso caracterize qualquer conduta criativa. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 123 | O presente texto busca esquadrinhar a teoria do fato jurídico de Pontes de Miranda, desde a produção normativa, adentrando-se no elemento factual e na incidência, culminando com a juridicização do fato social, para que se possa enxergar como é realizada a atualização do sentido da regra jurídica sem a alteração de seu texto. 2 O DIREITO COMO PROCESSO DE ADAPTAÇÃO SOCIAL A convivência humana, para que seja pacífica, exige que regras de controle sejam produzidas, de modo que os processos de adaptação social exercem forte influência na tarefa de harmonização da sociedade. A religião, a política, a arte, entre outros, são utilizados pela própria comunidade como forma de estabelecer regramentos para direcionar o comportamento dos indivíduos, a fim de que o conjunto de valores vigentes seja respeitado. Além destes processos de adaptação, há um conjunto de regras que possuem característica que as diferenciam das demais, que consiste na obrigatoriedade de serem respeitadas pela comunidade. São as regras jurídicas. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 124 | O direito, portanto, aparece como instrumento para que se evite o caos social, permitindo uma convivência pacífica em sociedade, a qual se submete, independente de sua adesão, a este sistema de regras. Assim, é a regra jurídica que descreve estes fatos sociais, fixando os efeitos que deles nascerão quando ocorridos. Para Pontes de MIRANDA (1999, p. 55), a regra jurídica foi a criação mais eficiente do homem para submeter o mundo social e, pois, os homens, às mesmas ordenações e coordenação, a que ele, como parte do mundo físico, se submete. Mais eficiente porque foi a técnica que mais de perto copiou a mecânica das leis da física. 3 O DIREITO E AS RELAÇÕES SOCIAIS – AS DIMENSÕES DO FENÔMENO JURÍDICO A produção normativa realizada pelo legislador traz para o mundo do direito os fatos tidos como relevantes pela e para a comunidade, atribuindo-lhes efeitos jurídicos. É dos fatos sociais que se produzem as normas jurídicas, mediante a ação legiferante do órgão competente. Por isso, a análise realizada por Pontes de MIRANDA se aproxima de elementos da sociologia do direito, pois para ele, “o objeto da ciência jurídica, da investigação positiva, não está nas regras de direito, porém na Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 125 | vida comum dos homens, nos fatos da coexistência, nas relações sociais”(1972, tomo II, p. 229).142 Nisso é possível visualizar uma crítica à teoria pura do direito criada por Hans Kelsen, que pretende examinar o Direito apenas no aspecto dogmático, ou seja, das normas positivadas, desconsiderando que, como bem explica Marcos Bernardes de MELLO (1998, p. 14), o fenômeno jurídico apresenta três dimensões: política ou axiológica, normativa, e sociológica. Na dimensão axiológica, há a verificação, pela comunidade, dos fatos relevantes para as relações sociais, e que devem ser objeto de regulamentação pelo direito. “Nessa dimensão a comunidade jurídica decide sobre a norma jurídica, quer dizer, revela a norma jurídica.” (MELLO, ob cit.). É aqui que se desenvolve a criação do direito. Já a dimensão normativa significa o aspecto da norma jurídica positivada, ou seja, já produzida e vigente, vista como “dogma em sua abstração lógica.” (MELLO, ob cit.) 142 Para Pontes de Miranda, o direito é uma realidade social, e por isso “pressupõe no jurista o sociólogo que fundamentalmente deve ser. Legislador, intérprete ou juiz, não se compreende que use de outros métodos antes de empregar o da Ciência principal, que é a Sociologia.” (1972, tomo I, p. 283) Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 126 | Por sua vez, na dimensão sociológica é que se procura examinar a subordinação dos fatos sociais aos regramentos normativos, isto é, a efetividade da regra jurídica perante o mundo social. Assim, qualquer análise do fenômeno jurídico, para ser completa e adequada, deve considerar essas três dimensões em que se manifesta, sob pena de se produzir uma teoria parcial, olvidando-se de elementos essenciais existentes em momentos distintos do Direito – criação, incidência, aplicação e efetividade. Para Pontes de MIRANDA, é nas relações sociais que nasce o direito. É no seio da sociedade que se busca enxergar os valores vigentes e encontrar os fatos relevantes para serem transportados para o mundo jurídico, mediante a atribuição dos efeitos jurídicos previstos nas regras. Diz ele que somente superficial análise do fenômeno jurídico e apreciação do que é aparente, formal, no direito, poderia produzir a convicção, largamente propagada, de que está nos dispositivos gerais, abstratos, da lei, o que possa haver de efetivo, de real, na vida jurídica. Ora, em verdade, são os atos o mais fecundo elemento de investigação analítica, porque são matéria, conteúdo, algo de concreto, ao passo que o enunciado é apenas forma, continente, abstração.( 1972, tomo II, p. 229) Portanto, a origem primeira do direito é o fato social, de onde se extrai o conteúdo das regras jurídicas a que estará submetida toda a comunidade. Por isso afirma Pontes de MIRANDA que “a verdade das re- Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 127 | gras jurídicas está na medida em que servem a ordem social como normas contidas nas próprias relações sociais ou como providências reclamadas por elas para corrigir os defeitos de adaptação.”(1972, tomo IV, p. 118) 4 A NORMA JURÍDICA, O SUPORTE FÁCTICO, A INCIDÊNCIA E A APLICAÇÃO A norma jurídica é o instrumento utilizado pelo direito para descrever o fato social que, por ter sido considerado socialmente relevante, produz efeitos jurídicos quando concretizado.143 Somente a norma é capaz de qualificar o fato como jurídico, com o surgimento da eficácia que lhe é inerente. Por sua vez, na regra jurídica, a descrição dessas condutas está contida no suporte fáctico. Sua concretização, portanto, é pressuposto para que haja a incidência da norma. Enquanto ainda não realizado, ou seja, existindo apenas como um enunciado da regra jurídica, é tido como suporte fáctico abstrato; quando materializado no mundo fáctico, há o suporte fáctico concreto. 143 Conforme ensina o prof. Lourival VILANOVA, “sem norma, um fato jurídico não adquire qualificação de fato jurídico. E sem fato jurídico, efeito (eficácia) nenhum advém. De onde se depreende que os fatos jurídicos são internos a cada sistema. Não há fato jurídico „fora‟ de sistema normativo. É o sistema que decide que fatos são fatos jurídicos (juridicização do fáctico) e que fatos deixam de ser jurídicos (desjuridicização do fáctico). Em outros termos, que fatos trazem „consequências jurídicas‟, que fatos não têm tais conseqüências, são „juridicamente irrelevantes‟ (ou porque ainda não foram qualificados, ou porque o eram, mas deixaram de ser).”(2000, p. 54/55) Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 128 | Assim, ocorrido o suporte fáctico, opera-se a incidência da norma jurídica, que o introduz no mundo jurídico. Pontes de MIRANDA enxerga que a técnica do direito tem como um dos seus expedientes fundamentais, e o primeiro de todos, esse, que é o de distinguir, no mundo dos fatos, os fatos que não interessam ao direito e os fatos jurídicos, que formam o mundo jurídico; donde dizer-se que, com a incidência da regra jurídica sobre o suporte fático, esse entra no mundo jurídico.(1999, p. 123/124) Assim, é por meio da incidência da norma que se juridiciza o fato social, trazendo-o para o mundo jurídico. Portanto, ocorrido o suporte fáctico, sofre ele a incidência da norma jurídica que o previa, e que passa a produzir a eficácia jurídica.144 Ademais, esta incidência ocorre de modo infalível, ou seja, sempre que concretizado o suporte fáctico há a incidência da norma jurídica, produzindo-se a eficácia jurídica prevista na regra. Aspecto interessante deste tema em Pontes de Miranda é que a incidência é tratada como um fenômeno que ocorre no mundo dos pen144 Afirma Pontes de MIRANDA que “a incidência da regra jurídica é a sua eficácia; não se confunde com ela, nem com a eficácia do fato jurídico; a eficácia da regra jurídica é a sua incidência; a do fato jurídico, irradia-se, é juridicização das conseqüências dele, devido à incidência. Cada regra de direito enuncia algo sobre fatos (positivos ou negativos). Se os fatos, de que trata, se produzem, sobre eles incide a regra jurídica e irradia-se deles (feitos, com a incidência, jurídicos) a eficácia jurídica.”(1999, p. 63.) Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 129 | samentos, ou seja, possui uma natureza lógica e formal, impossível de ser alterada pelo indivíduo, especialmente porque este não participa do fenômeno; trata-se da fatalidade da incidência, pois “a vontade humana nada pode contra a incidência da regra jurídica, uma vez que ela se passa em plano de pensamento.” (1999, p. 83)145 Com isso, sequer se faz necessário que haja o conhecimento, por quem quer que seja, da ocorrência do suporte fáctico, já que a incidência independe de uma conduta humana, salvo quando o próprio suporte fáctico da norma exige esse conhecimento para sua suficiência. Na verdade, para Pontes de MIRANDA, não é a lei que „ordena‟ incidirem as suas regras; as regras jurídicas incidem, a lei incide, porque a lei e as demais regras jurídicas foram concebidas para esse processo de adaptação social. A incidência é, pois, o conceito típico: ela fica entre a lei como elaboração jurislativa e a eficácia que resulta do fato jurídico (=fato + incidência). (1999, p. 65) Assim, considera-se ser a incidência infalível, incondicional e inesgotável, porquanto ocorrerá sempre que o suporte fáctico se concretizar, dentro da dimensão dogmática do fenômeno jurídico; por isso se diz ser formal, de natureza lógica, não encontrável no mundo material, mas apenas no grau de abstração do pensamento, o que torna desnecessário, por 145 Marcos Bernardes de Mello diz que “a natureza lógica da incidência determina que a sua realização independa da sua efetiva repercussão no plano da experiência. O não se efetivarem os efeitos do fato jurídico nascido da incidência é questão que se instaura na dimensão sociológica do direito.”(1998, p. 60) Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 130 | isso, que haja a prova ou demonstração efetiva da ocorrência do suporte fáctico.146 Marcos Bernardes de MELLO (2003, p. 23) esclarece que mesmo sendo um fenômeno que ocorre no mundo de nossos pensamentos, a incidência possui uma realidade, que consiste em adjetivar os fatos sociais sem lhes alterar a substância. Conforme leciona, “a atribuição de qualificação jurídica a um fato tem cunho, eminentemente, axiológico e não constitui característica intrínseca sua, sendo um plus quanto à sua natureza própria, estranho à sua essência natural.” (2003, p. 6) Atividade diversa é a aplicação da norma, que consiste em conduta posterior à incidência e é produzida pelo jurista, que busca encontrar seu exato conteúdo e reproduzi-lo no mundo dos fatos. Disto se conclui que a incidência não é regida pelo dever ser, mas por uma relação de causalidade normativa, pois como bem diz Marcos Bernardes de MELLO (2003, p. 23), “a incidência é insuscetível de não ocorrer”, já que infalível, sempre que ocorrido o suporte fáctico. Somente na aplicação da norma é que há o dever-ser, ou seja, o dever de que haja a correspondência entre o aplicado e o incidido, com a plena realização da norma jurídica. 146 Ao contrário, Geraldo ATALIBA entende que a “averiguar-se, em cada caso, se ocorreu fato subsumido à hipótese é fundamental para apurar-se se houve ou não incidência do mandamento.”(2009, p. 42/43) Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 131 | 5 A INTERPRETAÇÃO E A ATUALIZAÇÃO DO SENTIDO DA NORMA Ao distinguir a incidência da aplicação, e reconhecer apenas nesta uma participação humana, Pontes de Miranda atribui grande relevância para a atividade de extrair o sentido da norma jurídica pela interpretação, para que haja a adequação entre a aplicação e a incidência.147 Com efeito, a norma jurídica traz conceitos que buscam abstrair a realidade que descreve, permitindo que esta seja inserida nas regras jurídicas. Ocorre que, inevitavelmente, nesta atividade há uma redução da realidade, seja pela limitação do observador/legislador em captar a totalidade do fenômeno social, seja pela natureza contingente das palavras148; porém, somente assim se permite a objetivação de elementos subjetivos, isto é, transformar em conceitos os fatos sociais e permitir que se veiculem mediante palavras os fatos que se pretende regular. Para Pontes de MIRANDA, “a palavra é sinal, notação; por traz dela está o conceito.” (1972, tomo II, p. 101). E adverte que “o conceito não se identifica com a 147 Diz Pontes de Miranda: “Há diferença sutil, técnica, entre interpretar e aplicar a lei. A interpretação, diz E. Delarque, é conhecimento, é obra do sábio; a aplicação, a do prático, isto é, ação. Interpretar a lei é procurar penetrar-lhe o sentido geral, fora de toda aplicação, ainda muito antes de se sentir, na prática, a necessidade de a conhecer; aplicar a lei é resolver caso particular, e fazê-lo entrar na lei geral. Interpretar é saber; aplicar, obrar, pôr em prática a ciência.”(1972, tomo IV, p. 77) 148 “Nada mais variável e contingente que o falar humano.” (Miranda, 1972, tomo I, p. 77) Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 132 | coisa, e é por isto que se torna indispensável ao estudo do direito a prévia iniciação na teoria do conhecimento.” (ob. cit.) Pontes de MIRANDA desenvolveu estudos sobre o problema fundamental do conhecimento, onde afirma que o conceito pode descrever e envolver o –jecto. Mas, não-raro, excede-o ou não o alcança em todo o seu tamanho. O –jecto significado ou fica como que solto, sacolejante, dentro do conceito que o ultrapassa, ou incontido, incircunscrito, a exceder a significação do conceito. (1937, p. 201).149 Afasta-se do ontologismo, reconhecendo que na formulação das regras, perde-se parte do real, mediante sua abstração para poder transportar um dado da realidade para uma regra jurídica dotada de objetividade.150 149 Para Pontes de Miranda, -jecto (com hífem) é o objeto abstraído pelo observador. “Chamámos –jecto a tudo que se apresenta, seja de ordem estritamente física, seja de ordem psíquica, desde que considerado sem ser do lado de quem vê ou do outro lado, isto é, eliminados os elementos que representem oposição entre êles, operação que exprimimos pelo „poe entre parênteses os prefixos de (su)jeito e de (ob)-jecto.‟ Reservaremos o têrmo jecto, sem hífen, para exprimir o que seria o facto sem nós; v. g. se os homens, como os mamutes, desaparecessem da face da Terra.”(Miranda, 1937, p. 85) 150 Seguindo os passos de Pontes de Miranda, Djacir MENEZES afirma: “O ontologismo da filosofia antiga preocupava-se com as essências imutáveis, que eram implícitas à qualidade das coisas. O qualitativo era irredutível ao quantitativo. Hoje o pensamento dominante na ciência é inverso. Si não afirmou irretorquìvelmente o postulado de que as variações qualitativas são função de variações quantitativas, é porque ainda está embebido do espírito da velha filosofia que impregnou a linguagem, onde se retratam todos os vícios do ontologismo. Daí o valor da linguagem matemática para Le Dantec, onde a expressão impersonaliza-se ao mais alto grau.”(1971, p. 133) Para Pontes de MIRANDA, “em toda a extensão do conhecimento humano começa o quantitativo a substituir, explicativamente, o qualitativo. Mediante tal processo de simplificação, ganham maior inteligibilidade, assim os pormenores como o conjunto do mundo.”(1972, tomo I, p. 12/13). Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 133 | Adotando postura mais radical e idealista, João Maurício ADEODATO afirma que os eventos reais seriam incognicíveis, já que fenômenos únicos, irrepetíveis, e inadaptados ao aparato cognoscitivo do ser humano, que agiria somente mediante generalizações, de modo que “a razão humana guarda uma incompatibilidade ontológica com o mundo empírico no qual vivem esses mesmos seres humanos. O evento real é assim irracional por ser inexoravelmente contingente.”(2010, p. 267) Na verdade, apesar de reconhecer a relatividade da capacidade humana em conhecer a realidade, Pontes de Miranda apenas se aproxima do pragmatismo, especialmente quando afirma ser impossível a existência de verdades humanas independentes do sujeito, pois “o nosso conhecimento é processo biológico, como querem os pragmatistas, porém não há dúvida que é impossível elidir a coisa em si. Dizer que tudo isso é idéia seria suprimir a realidade, com a qual a idéia nos poria em comunicação.” (1972, tomo I, p. 38). Isso não significa uma impossibilidade de se conhecer a realidade, mas apenas limita esse conhecimento, já que toda sensação abstrai, toda sensação, por si só, já é uma extração. O ser só se dá abstraído. O ôlho deixa vir até mim a luz; é cego para o som, o gôsto, o tacto, o cheiro. (..) Os sentidos dão-nos o que do mundo nos excita, não o mundo ôntico total. (MIRANDA, 1937, p. 21) Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 134 | O reconhecimento desta limitação é relevante, pois que admite a perda/redução de parte da realidade no momento da produção da regra jurídica, que poderá ser recuperada no momento da interpretação das regras e dos próprios fatos sociais pelo jurista, como forma de se alcançar uma adequada verificação da realidade. Assim, sendo os conceitos a forma objetiva de descrever a realidade relevante ao direito, é com esta que se deve buscar seu conteúdo, que não pode ser considerado imutável – já que submetido às circunstâncias espaciais e temporais, a fim de que a norma jurídica seja adequadamente entendida e aplicada. Por isso, não pode o conceito ser considerado um fim em si mesmo, pois já disse Pontes de MIRANDA que o conceito jurídico é estéril como qualquer outro conceito, e perigoso, porque pode levar ao mal como ao bem. Com ele consegue-se a solução acertada, mas pode chegar-se apenas a enganos; não é conteúdo, é meio; é o fim que lhe dá fecundidade, e para acertar depende de ser conferido com o real. (1972, tomo II p. 94/95.) Na verdade, a extração do sentido das normas exige uma atividade do jurista intimamente relacionada ao estudo da realidade social, já que, para Pontes de Miranda (1972, tomo II, p. 94), o significado das palavras não nasce de uma elaboração arbitrária, mas está atrelado às rela- Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 135 | ções sociais. Os conceitos trabalhados pela ciência têm por objeto o próprio objeto da norma jurídica, que é a coexistência humana.151 Humberto ÁVILA desenvolve o entendimento no sentido de que o significado das palavras depende de seu uso e interpretação, o que seria comprovado pelas modificações de sentidos pelo decurso do tempo. Para ele, “a interpretação não se caracteriza como um ato de descrição de um significado previamente dado, mas como um ato de decisão que constitui a significação e os sentidos de um texto”(2005, p. 23). Porém, reconhece que nesta construção de sentido não se pode concluir que não há significado algum antes da interpretação, pois “há traços de significados mínimos incorporados ao uso ordinário ou técnico da linguagem.”(ob. cit. p. 24) De fato, há uma construção do sentido pelo intérprete, sendo que todo o material utilizado é extraído das relações sociais, sem que se possa falar em ação criativa do aplicador. É que o mesmo invólucro institucional, o mesmo texto de lei, pode ter sentidos diferentes em dois ou três períodos de vigência, às vezes distantes de um século, e somente nas relações sociais é que poderemos conhecer aqueles sentidos, porque é somente nas relações sociais que se encontram e podem ser apanhadas as normas que a regeram 151 Para Lourival Vilanova, “ a linguagem e os conceitos têm origem e seguem processos de mudanças dentro das relações sociais.”(As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo, São Paulo: Noeses, 2005, p. 40) Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 136 | (história jurídica), que as regem (documentação atual), e que as devem reger (legislação e interpretação jurídica).(MIRANDA, 1972, tomo IV, p. 41) Isso apenas reflete que, como já dito, nem o legislador nem o juiz criam direito. Ele é criado pela sociedade, pelas relações sociais, de modo que o caráter criativo está nos fatos. Para Pontes de MIRANDA (1972, tomo II, p.123), a lei é mera virtualidade e seu conteúdo – ou a modificação dele – é estabelecido pelos elementos da vida social. Portanto, a alteração do sentido é produto da interpretação apenas no momento da aplicação da norma, já que na incidência esta alteração é fruto das próprias relações sociais.152 Por certo, há hipóteses em que a norma jurídica necessita ter seu sentido atualizado, de modo que se torne adequada às circunstâncias fácticas do momento e diversas daquelas existentes no momento de sua produção. Ilustrando, pode-se perceber que a expressão “ato libidinoso” utilizada pelo Código Penal editado em 1940, e ainda nele presente, apre152 Afirma Pontes de Miranda: “A realidade do Direito é ligada à vida social, à coexistência e adaptações sociais; e não só à vida psíquica pròpriamente dita. O raciocínio que se emprega para explicar, harmonizar os textos e construir o direito de um povo dá a impressão de que se trata de criação do espírito individual e de que se trabalha com ele como se trabalharia com as páginas de um romance ou as poesias de uma época. Por outro lado, a feitura das leis com as suas tentativas individuais, os seus discursos, faz crer na elaboração meramente espiritual das Constituições, leis e decretos. Tudo isso é o resultado de exame superficial. Aquêles esforços, aquêles impulsos, aquêles raciocínios e a própria intervenção em atos da alma individual movem-se dentro de possibilidades que a realidade social marca, obedece a princípios que, vindos dos outros processos sociais (Religião, Moral, Política, Economia, Ciência, Arte) e do próprio Direito vigente, atuam como continentes, de que os anteprojetos, os projetos, as emendas e o colorido das discussões são conteúdo.”(1947, p. 30) Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 137 | senta hoje significado diverso daquele encontrado nos primeiros anos de sua aplicação. Assim, ao reconhecer a possibilidade de transformação do sentido da norma em razão do momento histórico, Pontes de Miranda atribui ao intérprete o dever de buscar nas relações sociais o significado das normas, agindo como verdadeiro sociólogo do direito, especialmente porque a atualização do sentido da norma ocorre na dimensão axiologia do fenômeno jurídico.153 6 CONCLUSÃO A teoria do fato jurídico de Pontes de Miranda trata o direito como uma forma de adaptação social, tendo sua origem e por objeto a própria comunidade, o que o aproxima da sociologia. Formula-se a regra jurídica para submeter o mundo social ao seu comando, tal como o homem se submete às leis físicas, o que se torna evidente no conceito de incidência da norma, porquanto submetida a uma relação de causalidade normativa que a torna infalível. Somente a aplicação – dimensão sociológica - está submetida ao dever-ser. 153 Nesse sentido também é o entendimento de Carlos MAXIMILIANO, quando diz que “o bom intérprete foi sempre o renovador insinuante, cauteloso, às vezes até inconsciente, do sentido das disposições escritas – o sociólogo do direito.”(2000, p. 159) Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 138 | Todavia, a formulação das regras promove uma abstração da realidade, reduzindo-a, tanto pela limitação do legislador em absorver a totalidade dos dados sociais como pela natureza contingente das palavras. Porém, no momento da interpretação das regras, cabe ao intérprete extrair o significado das palavras mediante uma análise da realidade social antes abstraída e tornada objetiva nas palavras da norma, porquanto os conceitos não são um fim em si mesmo, sendo, na regra jurídica, o dado social objetivado. Portanto, é essa mesma realidade que limita a ação do intérprete, o qual apenas reconstrói aquilo que constata, tal como o legislador, ao revelar o direito nascido da sociedade, na dimensão axiológica do fenômeno jurídico. Assim, a atualização do sentido da norma é produto da evolução social, das alterações que se procedem na comunidade. Porém, ao intérprete não se reconhece atividade criativa, já que sua conduta consiste em buscar nas relações sociais – verdadeira fonte da norma jurídica - o sentido das palavras, transformando o intérprete em um sociólogo do direito. BIBLIOGRAFIA ADEODATO, João Maurício: Ética & Retórica – para uma teoria da dogmática jurídica. 4ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 139 | ATALIBA, Geraldo: Hipótese de incidência tributária, 6ª Ed. 10 tiragem, São Paulo: Malheiros, 2009. ÁVILA, Humberto: Teoria dos Princípios – da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 4ª ed., São Paulo: Malheiros, 2005. MAXIMILIANO, Carlos: Hermenêutica e aplicação do direito. 18ª ed. Rio de janeiro: Forense, 2000. MELLO, Marcos Bernardes de: Teoria do Fato Jurídico – plano da existência. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 1998. _________________________: Teoria do Fato Jurídico – plano da eficácia 1ª parte. São Paulo: Saraiva, 2003. MENEZES, Djacir: O problema da realidade objetiva. 2ª ed., Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1971. MIRANDA, Pontes de: Comentários à Constituição de 1946, vol. I. Rio de Janeiro: Henrique Cahen Editor, 1947. __________________: O problema fundamental do conhecimento. Porto Alegre: Livraria do Globo, 1937. ___________________: Tratado de Direito Privado, tomo I. 1ª ed., Campinas: Bookseller, 1999. ___________________: Sistema de Ciência Positiva do Direito, tomo I. 2ª ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972. ___________________: Sistema de Ciência Positiva do Direito, tomo II. 2ª ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972. ___________________: Sistema de Ciência Positiva do Direito, tomo IV. 2ª ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972. VILANOVA, Lourival: Causalidade e Relação no Direito. 4ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 140 | SHOPPING CENTERS E SUAS PECULIARIDADES CONTRATUAIS Shopping Centers and their Contractual Peculiarities Silvana Martinazzo154 RESUMO: Este artigo tem a finalidade de elucidar as dúvidas quanto à origem dos Shoppings Centers, trata-se de um cenário extremamente complexo, cercado de indagações e de diferentes posições doutrinárias e jurisprudenciais, que no decorrer do trabalho será analisada. Diante disso, o presente trabalho toma como ponto de partida sua origem, trazendo em sua trajetória o histórico com aspectos importantes para o sucesso desse empreendimento. Dentro desse contexto, serão abordados tópicos explicativos a cerca desse sinuoso empreendimento chamado Shopping Center, que traz consigo múltiplas peculiaridades como um organismo comercial, e também seu nascimento no Brasil. O estudo segue abordando ponto central deste texto que é questão dos contratos de locação suas divergências doutrinárias e a complexidade das cláusulas contratuais, bem como abordará a falta de regramento legal específico, que se escora ao regulamento da lei de locações (Lei 8.245/91). 154 Bacharel em Direito pela Instituição Centro de Ensino dos Campos Gerais – CESCAGE. Bacharel em Ciências Contábeis pela Faculdade Reunidas de Palmas – FACEPAL Especialista em Direito Imobiliário aplicado a Gestão Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná -PUC. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 141 | ABSTRACT: This article aims to clarify the doubts regarding the origin of Shopping Centers, this is a highly complex, surrounded by questions from different positions and doctrinal and jurisprudential, which during the work will be reviewed. Thus, the present work takes as its starting point rise, bringing in its history with the historical aspects important to the success of this venture. Within this context, explaining topics will be addressed about this winding development called Shopping Center, which brings many quirks as a commercial organization, and also his birth in Brazil. The study proceeds by addressing the central point of this text that is a matter of lease their doctrinal differences and complexity of contractual clauses, as well as address the lack of specific legal regulation, which anchors itself to the regulation of the tenancy law (Law 8.245/91). PALAVRAS-CHAVE: Shopping centers. Aspectos históricos. Locação. Cláusulas contratuais. KEY-WORDS: Shopping centers. Historical aspects. Leases. Contractual clauses. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 142 | 1. ORIGEM Há indícios de que o Shopping Center teria nascido em Paris, com as galerias, embora essa denominação seja americana. Em Paris (MEIRA apud p.24 PATRUCCO, 1972), por volta do ano de 1852, com pequeno armazém de nome “Bom Marche”,que introduziu ao mercado, vendas de produtos de renome e com preços inferiores, acrescentando variedades de artigos, em um só local com acesso livre ao público e preços fixos e marcados em cada artigo. Essa inovação introduziu ao mercado daquela época comodidade para o consumidor. O resultado da inovação comercial da época foi que, aquele grande armazém, acabou reunindo a totalidade dos desejos das pessoas que ali visitavam; era, além de uma exposição de produtos, um lugar de passeio, de quebrar rotina em francês chama-se dépaysement. A partir da década de 50 do século passado, os centros de compras se formaram em muitos países, proporcionando um notável desenvolvimento econômico, social e cultural. DINAH (2001) relata que, os fatores preponderantes à época que levaram ao surgimento do shopping center foram: o aumento do poder aquisitivo da população; a descentralização da população para zonas periféricas, bem como à grande expansão automobilística norte-americana, a qual fez sentir a necessidade de os Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 143 | centros comerciais disponibilizarem um grande espaço de estacionamento para automóveis. O Shopping Center nasce quando tem início a decadência do centro comercial. KOTLER & ARMSTRONG (1994) colocam: Toda grande cidade tinha um centro comercial com lojas de departamentos, lojas de especialidades, bancos e cinemas. Contudo, quando as pessoas começaram a se mover para as periferias das cidades, esses centros comerciais, com seus problemas de fluxo de automóveis, estacionamento e crimes, começaram a perder negócios. Os negociantes situados nos centros das cidades começaram a abrir filiais em shopping centers regionais, e o declínio dos centros comerciais continuou. Os Shoppings Centers surgiram, com as profundas alterações na sociedade após a Segunda Guerra Mundial. Destaca-se que eles vieram com o intuito de ser uma nova maneira de comerciar, a qual busca conquistar o maior número de clientes e maior espaço no meio comercial. Desde a Antigüidade, já existiam atividades originárias dos Shoppings Centers, pois naquela época, os mercadores, estabeleciam-se em templos para oferecer “conforto” para quem lá permanecia e buscava alguns produtos. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 144 | Há uma divergência quanto à data exata de surgimento dos shoppings centers. Para (MEIRA p. 28 apud PATRUCO) e 1933, para ENGEL, BLACKWELL e MINIARD é 1922 e, para outros, ainda é por volta de 1950. O surgimento oficial do shopping center teria ocorrido com inauguração do Coutry Club Plaza, em Kansas City, EUA, como solução para diminuir o tráfego urbano, e em 1949, conforme relata PETRUCCO, teríamos já 75 centros nos Estados Unidos. A proposição mais aceita na indústria é de que o primeiro shopping center fechado teria sido o Southdale, inaugurado em 1956, em Edina, Minnesota, nos Estados Unidos (MICHAELS, 1996; ICSC155), nos moldes dos shoppings modernos, com sistema climatizado e lojas de departamentos e lojas-âncora. 2. NO BRASIL A atividade de Shopping Centers é bem recente no Brasil. Segundo DINAH SONIA RENAULT PINTO (2001), o primeiro Shopping foi instalado no Brasil com o nome de Shopping Centers Iguatemi em 1966, na cidade de São Paulo. Desde a inauguração de tal empreendimento no Brasil, esses centros de compras se espalharam pelo país afora, na maioria nas capitais dos Estados e nas grandes cidades do interior. Além disso, “os principais empreendimentos implantados no País são de grande porte, abrigando, geralmente, cada um, 155 FAQ About The Shopping Industry (www.org/members/news/misc). Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 145 | quantidade superior a 300 (trezentas) lojas” (CERVEIRA FILHO, 1999, p.2). É notório o crescimento no nesse setor, o cenário nos traz a imensa aceitação do publico tanto pelas oportunidades de emprego, quanto pelo conforto, segurança e praticidade que os shoppings centers oferecem. Além das diferenças de comportamento, pode-se dizer que os shoppings centers possuem, pelo menos, três características próprias, a saber: “Existência de um aluguel percentual, que resulta na participação do empreendedor no faturamento do lojistas; a existência de uma associação dos lojistas – representante da vontade dos associados; o regimento interno e as normas complementares – regulamentadores do comportamento dos lojistas, do uso das lojas e das áreas comuns, bem como questões relacionadas a obras e benfeitorias, responsabilidades, visitantes, empregados das lojas e prepostos, fornecedores, etc.; a participação direita do empreendedor na administração do shopping” (BUZAID,1988, p. 564). Nos estados Unidos, os shoppings centers desenvolverem-se em três categorias: shopping center vizinhança, shopping center de comunidade e shopping center regional, essa terceira modalidade que implantou-se no Brasil. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 146 | 3. DEFINIÇÃO DE SHOPPING CENTER A definição de Shopping Center, que poderia ser traduzida por centro de compras, mas também tem uma identificação usada por Cerveira Filho “Templo de Consumo. Acredita-se que a segunda denominação dá a verdadeira idéia da grandeza estrutural que é um shopping centers. Um Shopping Center convencional,tem lojas com segmentos diversificados, chamados de mix, bem como praças de alimentação, áreas de serviços e lazer. Tem como carro chefe, lojas-âncoras que são estruturas mercadológicas especiais que funcionam como pólo de atração, localizadas em pontos estratégicos. Uma área de consumo dessa dimensão, requer, um espaço de estacionamento compatível com a área bruta locável, que garanta a afluência e o escoamento tranqüilo, do fluxo de automóveis e que também permita adequada entrada e saída, com distâncias as mais reduzidas possíveis, da vaga de estacionamento ä entrada das lojas. Quanto à definição de Shopping Centers, O International Council of Shopping Center (ICSC), nos Estados Unidos da América, destaca que: “um grupo de estabelecimentos comercias unificados arquitetonicamente e construído em terreno planejado e desenvolvido. O Shopping Centers Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 147 | deverá ser administrado como uma unidade operacional, sendo o tamanho e tipo de lojas existentes relacionados diretamente com a área de influência comercial a que esta unidade serve. O shopping center também deverá oferecer estacionamento compatível com todas as lojas existentes no projeto” (www.radiobras.gov.br/sinopse/2000/sinopses_061 000.htm). Outra definição é a apresentada por LIMA (2002, p. 108), o qual destaca que; “Shopping Centers, também conhecidos como centros comerciais, são prédios e locais especialmente destinados a tipos de negócios em que há um complexo de atividades que centralizam o comércio de vários ramos, proporcionando certo conforto e facilidades à clientela (estacionamento, diversões, restaurantes, bares, enfim, um misto de lazer e comércio)”. De acordo com CERVEIRA FILHO (1999), o Shopping Centers pode ser identificado como “templo de consumo e movimenta cerca de 17% o comércio nacional, nos dias atuais. Juntamente com este” templo de consumo”, foram sendo agregadas condições de lazer, entretenimento e cultural a tal ambiente, o que denota ser um setor de grande relevância para a sociedade. Necessário destacar que “templo de consumo” é uma colocação de Cerveira Filho, mas que bem demonstra a importância e a grandeza do Shopping Centers, quando então se verifica que é um conjunto de vários estabelecimentos, com objetivos diferentes e que Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 148 | estão reunidos no mesmo lugar. Assim, ao se adentrar em um Shopping Centers as pessoas o fazem tendo o mais variado objetivo e desejo. Assim, verifica-se que tal empreendimento pode ser considerado como uma organização, uma vez que Shopping Center é o resultado de diversos atos e idéias, os quais redundam em contratos diversificados, que não se fundem numa idéia unitária. 4. FINALIDADE Com relação à finalidade do shopping center, CERVEIRA FILHO (1999), destaca que é congregar num mesmo local o maior número possível de atividades empresariais, distribuindo os diferentes ramos do comércio e serviços, de acordo com a planificação técnica precedida de apurados estudos sobre o potencial de compras da área de influência a que ele serve, visando a dar ao consumidor segurança, conforto e o máximo de estímulo, facilitando-lhe a escolha e a aquisição. A finalidade de um centro de compras, hoje universalmente identificado como „Shopping Center‟, é congregar, num mesmo local, o maior número possível de atividades empresariais, distribuindo os diferentes ramos de comércios e serviços, segundo uma planificação técnica precedida de acurados estudos sobre o potencial de compras da área de influência a que ele serve, visando a dar conforto e o máximo de estímulo ao consumidor, facilitando-lhe a escolha e a aquisição de quaisquer mercadorias e serviços. (REQUIÃO, 1984, p. 120). Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 149 | Conforme ANDRADE (apud MARTINS, 2004) o Shopping Center não se caracteriza por ser uma simples aglomeração de estabelecimentos incumbidos a prestar serviços e a comercializar bens de consumo. Ele se caracteriza, também, por possuir configurações peculiares, uma vez que no empreendimento em comento o consumidor encontra tudo aquilo que precisa, ou de que possa necessitar. Em conseqüência disso, tem-se uma grande diversidade e variedade de mercadorias e serviços colocados à disposição dos consumidores interessados no presente complexo empresarial. Além disso, como se pode verificar nos inúmeros Shoppings Centers existentes, há característica marcante existente que é a própria publicidade mantida pelo empreendimento através de atraentes propagandas e promoções, visando à promoção da própria imagem, como também de manter os atuais freqüentadores e angariar novos. “Desconsiderar a importância do Shopping Center no cenário urbano, a sua força na atividade comercial, seria ignorar a própria realidade. Os Shoppings Centers não somente vieram para ficar, como a sua expansão é irreversível” (CERVEIRA FILHO, 1999, p. 1). Assim, tendo como base o shopping centers é que se intenta analisar como se processam as tomadas de decisões nesse local e qual é a será abordado tópico a seguir. 5. ASPECTOS JURÍDICOS DOS SHOPPINGS CENTERS Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 150 | Já foi abordado nos tópicos anteriores a origem, definição e finalidade desse empreendimento organizacional. No entanto é nesse campo que surgirá as maiores divergências, pois como já foi explanado, o shopping center foi a maior alteração do Direito Empresarial moderno, no entanto a questão não é tão simples assim, não possui um amadurecimento do assunto no ordenamento brasileiro, ainda necessita de estudos aprofundados, tanto na doutrina quanto na jurisprudência há muito o que se discutir sobre a natureza jurídica do contrato de shopping center. Junto com todas as peculiaridades do Shopping Center, surgiu, natural e inevitavelmente, a inovação do direito e a necessidade de uma infra-estrutura jurídica, a sustentar tais organizações. Os inevitáveis conflitos de interesses revelaram relações jurídicas com muitas particularidades. Assim é que a Escola Superior de Magistratura Nacional, com a colaboração da ABRASCE, promoveu, em 1983, um Simpósio (DINAH 2001). Nesse, os maiores especialistas brasileiros discutiram os pontos controvertidos da doutrina e da jurisprudência em torno da natureza jurídica e econômica dos shoppings centers, bem como sobre sua estrutura, funcionamento e projeção na economia brasileira. Em face das grandes controvérsias, no Simpósio decidiu-se que seria conveniente deixar o problema suspenso, para que a jurisprudência pudesse maturá-lo à luz dos casos concretos, numa contribuição de que se utilizaria o legislador quando, mais tarde, tivesse de definir o regime jurídico do shopping center. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 151 | As várias peculiaridades apontadas contêm desafiantes questões jurídicas; dentre os contratos de locação de shopping centers. Antes de adentrar ao cerne da questão, é mister destacar a diferença entre contratos típicos e contratos atípicos ou inonimados. 6. CONTRATOS TÍPICOS E ATÍPICOS A lei nº 8.245/91 Lei do Inquilinato, prevê o contrato do espaço em shopping center como de locação, submetendo-o ao regime do inquilinato, locação esta não residencial e sim comercial. Dentro desse liame é conveniente lembrar que os contratos podem ser classificados quanto à tipicidade, podendo ser atípicos ou típicos. Álvaro Villaça Azevedo (APUD Márcio Pecego Heide), subdivide os contratos atípicos em: atípicos propriamente ditos e contratos mistos. Segundo o doutrinador, para entender a natureza jurídica de um contrato, deve-se analisar as prestações que o compõem (dar, fazer e não fazer), já que estas integram a essência das convenções. “Os contratos podem ser classificados em contratos típicos e atípicos, podendo ser os últimos nominados ou inominados. O contrato típico é aquele que tem nomem iuris próprio e previsão legal específica a seu respeito, prevendo maiores detalhes sobre sua forma e conteúdo. Exemplos clássicos são o contrato de locação, de compra e venda, de depósito e etc. Já o contrato atípico decorre de situações em que devem ser estabelecidas obrigações e direito mútuos que difiram de forma anteriormente Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 152 | prevista em Lei, e que poderá, como acima dito, ser nominado ou não” (AZEVEDO, 1991, p. 53). À vista disso, depreende-se que os contrato típicos são aqueles a que a lei confere denominação própria e sujeita-se a regras que ela determina. Já os contratos atípicos são aqueles que a lei não disciplina de forma expressa, carecem de disciplina particular não podendo a regulamentação dos interesses dos contratantes contrariar a lei, a ordem pública, os bons costumes e os princípios gerais do direito. Contudo são lícitos, em conformidade com o principio da autonomia das vontades. Após tecidas as preliminares, cumpre agora mencionar que não existe um entendimento unânime. Tal convergência de entendimento surge uma vez que há doutrinadores que defendem a tipicidade do presente contrato – considerando-o simplesmente como de locação – mesmo, muitas vezes admitindo cláusulas atípicas em seu teor. De outra banda, há outros que sustentam a atipicidade do contrato, tendo em vista as peculiaridades que o instrumento possui, advindas, principalmente, dos aspectos específicos e complexos que o centro comercial detém. Quanto aos adeptos da tipicidade, melhor dizendo, do contrato de locação, observa-se que: “Não ouso asseverar seja atípico o contrato celebrado entre o incorporador e os lojistas ou prestadores de serviços. Esse contrato é, desenganadamente, o de locação, embora com algumas peculiaridades que, todavia, não chegam a descaracteriza-lo”. (MONTEIRO, 1984, p. 166). Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 153 | Outros entendimentos acerca do assunto são: “(...) se trata de um vero e próprio „contrato de locação‟, e que o fato desse contrato, com toda a parafernália de dependências e acessórios, de tipo físico ou intelectual, exigir modelação específica às contingências mercadológicas do empreendimento não retira a natureza de „contrato de locação‟” (PEREIRA, 1984, p. 77). (...) Do que se infere do exame da situação de shopping center conclui-se que não existe um contrato específico, abrangente de todas as situações que possa ela envolver, e que exibisse o rótulo de contrato de shopping center” (PEREIRA, 1984, p. 86). Ainda, nessa linha de pensamento, acerca de que é contrato de locação: “Uma das facetas que os shopping centers oferecem de modo constante à observação dos juristas deriva dos vínculos locatícios que se estabelecem normalmente entre a pessoa que detém, organiza e administra o centro comercial e as empresas que nele se instalam, exercendo o comércio” (ANDRADE, 1984, p. 169). Outrossim: “Nos contratos com cláusula de aluguel calculado sobre a receita ou faturamento estão presentes Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 154 | todos os elementos que caracterizam a figura jurídica da locação, tal como resulta do conceito legal, expresso no art. 1.188 do CC156. A circunstância, já tantas vezes assinaladas, de ajustarem as partes o pagamento do aluguel – ou seja, a retribuição – em percentual sobre o rendimento periódico obtido não desnatura a relação locatícia, nem configura qualquer espécie de sociedade, ainda que em conta de participação” (ANDRADE, 1984, p. 177). Tais doutrinadores consideram que entre o lojista e o empreendedor há um contrato de locação, ou seja: de dupla natureza, embora revestido de cláusulas especiais com o objetivo de atender às características exclusivas do centro empresarial em questionamento. Diante dos entendimentos acima expostos, pode se entender que embora os doutrinadores admitam características específicas – por exemplo, a existência de aluguel fixo e, outro, variável; contribuição mensal ao fundo de promoção, ao relacionamento entre empreendedor de shopping e lojista, isto é, permitam cláusulas atípicas contratuais, defendem a existência de um contrato de locação típico, visto que tais características não são suficientes para desconfigurar a natureza locatícia do contrato. Deste modo, não existe motivo para a origem de um novo tipo de contrato. Tal entendimento de que a natureza locatícia dos contratos, que envolvem espaços situados em shopping center é prestigiada pela própria 156 Vide art. 565, Código Civil de 2002. “Art. 565. Na locação de coisas, uma das partes se obriga a ceder à outra, por tempo determinado ou não, o uso e gozo de coisa não fungível, mediante certa retribuição”. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 155 | lei, segundo COELHO (2003, p. 114), que prevê as condições livremente pactuadas nos respectivos contratos. Como opositores de tal entendimento ao juízo acima sustentado, tem-se, primeiramente, o Professor Orlando Gomes, o qual considera a existência de um novo negócio jurídico, um contrato atípico misto. Tal compreensão é seguida por Alfredo Buzaid, o qual reviu anterior entendimento sobre o assunto; Fernando Albino; João Nascimento Franco; Álvaro Villaça Azevedo; Wilson Renault Pinto, Maria Elisa Gualandi Verri e Desembargador Joaquim Penalva Santos. Dessa forma, nota-se que até o presente momento não há unanimidade de entendimento acerca da natureza jurídica do contrato de locação. Contudo, cumpre destacar que há tendências: a maioria da doutrina considera-o como sendo contrato atípico misto. Divergência essa, não ocorre, quando das cláusulas específicas desse tipo de contrato, sobre as quais há de entendimentos de que é livre a negociação pactuadas entre as partes, desde que não firam os princípios gerais de Direito. As demais cláusulas, assim, submeter-se-iam aos ditames da Lei de locação. 7. CARACTERÍSTICAS CONTRATUAIS Os contratos de shopping center possuem características próprias, que os fazem fugir à rotina dos demais instrumentos celebrados para fins de comércio. Partindo da posição doutrina onde o trata como contrato atí- Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 156 | pico misto, destacam-se algumas cláusulas contratuais que despertam maior polêmicas a cerca desse negócio jurídico complexo, são elas: 7.1. ALUGUEL PERCENTUAL Os contratos de Shopping Center prevêem o aluguel de forma fixa que é corrigida anual, e, outra forma variável chamada de aluguel percentual, onde essa nomenclatura permite ao empreendedor a participação das vendas do lojista. Para esclarecer melhor está variável de aluguel, em primeira plana, esse valor é apurado através de informações que o próprio lojista fornece a administradora do shopping através de boletins informativos. Esse informativo relata a venda semanal da loja que no decorrer do mês apurase o total bruto das vendas, que a administradora aplicará o percentual acordado em contrato cujo qual varia de 5 (cinco) a 12(doze) %. Decisão da segunda Câmara do Segundo Tribunal de ALÇADA Civil do estado de São Paulo, relator Luiz Moreno Gonzalez, “O direito não veda que em contrato de locação se fixe o aluguel em porcentagem sobre os resultados do negócio instalado na loja arrendada, nem que se estabeleça um mínimo a ser corrigido anualmente, Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 157 | conforme os índices fornecidos pelo Conselho Nacional de Economia”. Nota-se a forma atípica do contrato neste tópico, que extrapola os moldes comuns de um contrato de locação, onde permite a participação dos lucros ao empreendedor. Esta figura atípica chamada de aluguel percentual, é fonte de ferrenhos ataques da parte dos lojistas, que além de proporcionar a participação de suas vendas ao empreendedor, ficam a mercê de fiscalizações no estabelecimento comercial, que verificam a veracidade das informações apresentadas. Essa possibilidade de fiscalização do faturamento do lojista, decorre de uma cláusula contratual que permite o empreendedor ter aceso ao livros de registros, que é de caráter confidencial, geralmente é feita por um departamento do próprio empreendedor que chama-se auditoria. 7.2. O ALUGUEL E DOBRO Aqui reside um ponto nevrálgico do contrato, este aluguel em do- bro é aplicado todo mês de dezembro de cada ano. Argumenta-se que são devidos em função dos investimentos em promoções da época natalina. No mês de dezembro é normal que as vendas dobrem, no entanto este 13º (décimo terceiro) aluguel visa a compensação de “valores”, para crédito do empreendedor que poderá sofrer possíveis sonegações por parte do lojista. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 158 | Justifica-se a aplicação do dobro do aluguel nesta data devido as verbas destinadas, a publicidade, promoções, mas questiona-se tais verbas não são oriundas do fundo de promoção? Que é um fundo específico para esses fins. No entanto o 13º tem destino certo ao empreendedor que neste caso não desembolsa verbas publicitárias. Noutra direção, segundo Maria Elisa Gualandi Verri, a “referida cláusula se devidamente convencionada pelas partes é válida”, O pensamento da doutrinadora leva-se ao encontro da relação pactual entre empreendedor e lojista, que tem respaldo do artigo 54 da lei do Inquilinato, cujo teor é o seguinte: “Art. 54. nas relações entre lojistas e empreendedores de shopping centers,prevalecerão as condições livremente pactuada nos contratos e locação respectivos e as disposições procedimentais previstas nesta lei”. Nestes moldes, segundo o julgado da Sexta Câmara do Segundo Tribunal de ALÇADA Civil do Estado de São Paulo, reconhece a validade às Normas Gerais regedoras das Locações em shopping centers, admitindo: “validade de cláusula de Contrato Geral que prevê o pagamento em dobro do aluguel do mês de dezembro”. (Relator Juiz Macedo Cerqueira”157. E - (AZEVEDO –2004), assegura: “ Cláusula bem peculiar é também a que obriga o utilizador a pagar 13º salário aos empregados e ao 157 Boletim da Associação dos Advogados de São Paulo, nº 1.496/195, de 19/08/1987. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 159 | pessoal da administração do shopping center. Também, se convencionada, é válida essa clausulação, em que se objetiva pagamento sem anda ter a ver com o aluguel ou eventuais encargos. 7.3. FUNDO DE PROMOÇÃO Inserida neste permissivo legal, uma cláusula específica para cobrança de Fundo de Promoção, no qual estipula-se uma percentagem sobre o aluguel pago. Esta taxa relativo ao fundo de promoção destina-se a campanhas, em todos os meios de divulgação, que visam ao desenvolvimento geral de vendas do shopping center, com a finalidade de incentivar as vendas, decorações e atividades publicitárias. Consta ainda, nessa espécie de contrato, uma obrigação do locatário, quanto ao pagamento das despesas inerentes ao condomínio relativo ao seu espaço locado. As despesas ordinárias de condomínio são rateadas proporcionalmente à área útil ocupada, em forma de CRD`S (Coeficiente de rateio e despesas). Há ainda os encargos específicos que são despesas com ar condicionado, gás, água, IPTU, imunização e taxa de incêndio. Integra ao contrato, as normas gerais, trata-se de normas Gerais Regedoras das locações e regulamento interno do condomínio do Shopping Center. Destaca-se que nesta escritura declaratória são fixadas normas a que aderem os contratantes locatários, nos chamados contratos de locação. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 160 | Como explica Rubens Requião: Essas Normas nada mais são do que desdobramentos do contrato de locação, que é, no caso, um instrumento locônico, de poucas cláusulas, naturalmente contendo as essenciais. Com o instrumento principal de locação, integrando-o, essas normas gerais compõem um contrato bilateral e sinalagmático entre o empreendedor e o comerciante. Mas como o contrato de locação e suas “Normas Gerais” constituem um contra-tipo, um contrato-standard, igual pata todas as partes, com suas cláusulas e condições impressas, a não ser aquelas que identificam e qualificam o personalismo do contrato, alguns juristas nele têm visto um contrato de adesão”. Dentro destas normas menciona-se, por exemplo: tratativas a respeito de funcionamento interno de determinadas categorias de shopping, letreiros, decoração, vitrine, projetos referente a instalações comerciais, onde os locatários devem apresentar á administração do shopping para exame e posterior aprovação.Ainda, destaca-se uma cláusula específica onde o locatário não poderá destinar sua atividade para outros fins diversos do que foi mencionado em contrato e outras várias restrições. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 161 | Desse modo, declara Rubens Requião158 como válida as Normas Gerais Complementares dos Contratos de Locação, pois quem quiser contratar em centros comerciais, shopping centers, como lojista, deverá aderir a essas Normas gerais, para que fique unificada a forma de participação dos interessados, sob um mesmo regramento.Ressaltando que o contratante tem condições de procurar outras opções caso seja a sua vontade, ou realizar com outro locador em outro lugar, enfatiza-se que o contratante tem a opção de não realizar o negócio com co centro comercial.Inexistindo, assim, o contrato de adesão. Acerca de tal empreendimento pode ser considerado como uma organização, uma vez que shopping center é o resultado de diversos atos e idéias, os quais redundam em contratos atípicos, que não se fundem numa idéia unitária. Ë um verdadeiro complexo estrutural, normativo, integrado a sociedade, como já foi citado, e que, tem-se por meta realização do empreendimento e a garantia de seu sucesso. CONCLUSÃO O Shopping Center, não só constitui, como já dito, importante revolução tecnológica, no que diz respeito comercialização.Trás consigo uma fonte de irradiação de direitos e deveres.É um verdadeiro complexo estrutural, gerador de novos empregos, envolvendo grande quantidade de 158 Considerações jurídicas. In PINTO, Roberto Wilson Renault; OLIVEIRA, Fernando ª Albino. Shopping Centers: aspectos jurídicos RT 571/28 Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 162 | profissionais para o sucesso desse empreendimento, que é um aspecto social, de relevante importância, o qual não se pode deixar de assinalar. No aspecto legal, formaliza-se através de contrato atípico misto, uma vez que representa um complexo obrigacional regulamentado pela Lei do Inquilinato e pelas cláusulas livremente pactuadas entre as partes.Cada uma delas, formam o complexo contrato, que tem lucratividade de inovação mercadológica (tenant mix) e no fim a que se destina, ou seja, o próprio shopping center a atrair consumidores e otimizar a concorrência. Conclui-se que a relativa novidade desse negócio jurídico permanece sendo geratriz de controversas, doutrinária e jurisprudencial, formando-se posicionamentos nos mais diversos rumos. Nas linhas de estudo abordadas no texto, intentou-se delimitar os aspectos centrais e as principais controvérsias havidas em torno dos contratos de shopping center, procurando-se aclarar as incertezas inerentes a uma falta de regulamentação legal específica. 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Autor Ives Gandra da Silva Martins , consultado em 29/08/2006 A ENTREGA DE NACIONAIS AO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL PERANTE A CONSTITUIÇÃO FEDERAL Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 165 | The Surrender of National People to the International Criminal Court According to the Brazilian Federal Constitution Luciana de Paula Pires159 Kátia Stanski160 Prof. Dr. João Irineu de Resende Miranda161 RESUMO: Com o Estatuto de Roma surgiu o Tribunal Penal Internacional, com jurisdição para os crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e de agressão. A Emenda Constitucional 45 de 2004 inseriu o §4º, no art. 5º da Constituição Federal, que estabelece a jurisdição do Tribunal Penal Internacional para o Brasil. Contudo, ainda existem dúvidas quanto alguns dispositivos do Estatuto, que parecem ir contra o ordenamento jurídico brasileiro. Um dos pontos conflitantes é o instituto da entrega de nacionais ao Tribunal, e, uma vez que não há previsão de entrega de nacionais na legislação nacional, muitos estudiosos fazem referência ao instituto da extradição, e sendo assim, seria inconstitucional, tendo como ponto de partida na Constituição, o artigo que a prevê. Esse trabalho se destina a esclarecer a dita inconstitucionalidade dos artigos contrários à Constituição. 159 Acadêmica do Curso de Direito da Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG. Acadêmica do Curso de Direito da Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG. 161 Mestre e Doutor em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP. Professor da Universidade Estadual de Ponta Grossa – UEPG. 160 Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 166 | ABSTRACT: With the Rome Statute the International Criminal Court appeared, with jurisdiction for genocide crimes, crimes against human kind, war crimes and aggression crimes. The Constitutional Emendation 45 of 2004 inserted the §4th, in article 5th of the Federal Constitution, which establishes the jurisdiction of the International Criminal Court for Brazil. However, there are still doubts about some articles of the Statute, which seem to go against the Brazilian legal system. One of the conflict points is the surrender of national people institute to the Court, and, since there is no legal forecast for the surrender of national people in the legal system, many experts refer to the extradition institute, and under this approach would be unconstitutional, having as a reference the Federal Constitution, and the article that regulates it. This article intends to clarify the so called unconstitutionality of the articles against the Constitution. PALAVRAS-CHAVE: Tribunal Penal Internacional, Constituição Federal, instituto de entrega, constitucionalidade. KEY-WORDS: International Criminal Court, Federal Constitution, surrender of national people institute, constitutionality. 1. INTRODUÇÃO Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 167 | Tendo em vista as diversas transformações sofridas pelo mundo pós-guerra, viu-se a necessidade de criar um órgão que garantisse a efetivação dos direitos humanos, punindo os indivíduos que praticassem os crimes mais graves, em desrespeito a esses direitos. Com a instituição de um regime democrático de direito e a promulgação da Constituição de 1988, o país se comprometeu a reger-se nas relações internacionais, pela prevalência dos direitos humanos. Com base nesse compromisso, ratificou o Estatuto de Roma, que instituiu o Tribunal Penal Internacional, ficando o Brasil, portanto, sujeito à jurisdição do Tribunal. O propósito deste trabalho é demonstrar como o tema da constitucionalidade dos artigos ditos conflituosos com a Constituição Federal se faz presente nos dias de hoje. Por ser um tema novo, já que o Brasil somente ratificou o Estatuto de Roma, criador do Tribunal Penal Internacional em setembro de 2002, muito se tem indagado sobre o embate dos referidos artigos, e sua recepção pela Constituição. Além disso, menciona-se para o fato de que qualquer indivíduo brasileiro, caso cometa um crime dos elencados pelo Estatuto, poderia ser julgado pelo Tribunal, de maneira que, a garantia de seus direitos, e a maneira como esse nacional seria entregue a esse órgão são de interesse de toda a sociedade brasileira. A pesquisa de caráter documental e bibliográfico procura embasar as conclusões a que chegaram os autores, de forma a demonstrar que os conflitos são apenas aparentes. O desenvolvimento do trabalho se dará de forma a entender o Tribunal Penal Internacional e a forma como atua, levando em consideração o disposto no Estatuto de Roma, tendo como contrapartida os artigos da Constituição e seus significados neste contexto. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 2. | 168 | A CONSTITUIÇÃO BRASILEIRA DE 1988 E A RECEPÇÃO AOS TRATADOS DE DIREITOS HUMANOS A Constituição de 1988 caracterizou-se por uma maior participação popular, refletindo o momento histórico de transição democrática, sendo considerada a Constituição Cidadã. Caracterizou-se pela união das três ordens de poder: a econômica, a política e a social, e também por fortalecer e ampliar direitos e garantias fundamentais.162 Os direitos humanos estão protegidos pelo artigo 60, §4°, inciso IV, da Constituição, o qual afirma: “Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: (...) IV – Os direitos e garantias individuais”163. Neste sentido, Alexandre Pagliarini comenta que o poder constituinte originário impõem limitação ao poder constituinte derivado, já que o poder transformador só poderá atuar dentro do quadro previsto pelo poder originário. 164 Segundo Flávia Piovesan, a Constituição Federal de 1988 é considerada o marco dos direitos humanos, pois foi a partir deste pacto que os direitos humanos ganharam força no Brasil e internacionalmente. 165 162 BONAVIDES. Paulo; ANDRADE. Paes de. A História Constitucional do Brasil. Porto: Universidade Portucalense, 2003, p. 479-493. 163 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (promulgada em 5 de Outubro de 1988). São Paulo: Saraiva, 2010. 164 PAGLIARINI, Alexandre Coutinho. Justificativas para a Constituição Supranacional e o caso da União Européia. Prismas: Direitos, Políticas Publicas e Mundialização. Brasília, v. 7, n. 1, jan./jun. 2010, p. 154. 165 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 11 ed. rev. e atual – São Paulo: Saraiva, 2010. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 169 | Pode-se constatar que o Brasil teve várias razões para, na Constituição de 1988, internacionalizar os direitos humanos como, por exemplo, a abertura econômica e política. Aquela se apresenta no artigo 4º da CF, parágrafo único: “A República Federativa do Brasil buscará integração econômica, política, social e cultural dos povos da América Latina, visando a formação de uma comunidade Latino-Americana de nações” 166. Já a abertura política e conseqüentemente a internacionalização dos direitos humanos se apresenta no artigo 5º, § 2º da CF, “Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”167. Tendo em vista o artigo 5°, § 2º da CF, Luiz Fernando Sgarbossa168 esclarece que esta norma “(...) significa o acolhimento automático dos direitos, liberdades e garantias individuais decorrentes do regime ou da ratificação de instrumentos internacionais no rol constitucionalmente consagrado e assegurado”, portanto, o Poder Judiciário pode aplicar normas extra-constitucionais, ou seja, normas e tratados internacionais não adotados formalmente pelo Brasil. Destarte, a Carta Magna de 1988 tem o intuito de proteger a dignidade da pessoa humana, não só através da Constituição, mas através de tratados internacionais que defendam a primazia dos direitos humanos. 166 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (promulgada em 5 de Outubro de 1988). São Paulo: Saraiva, 2010 167 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (promulgada em 5 de Outubro de 1988). São Paulo: Saraiva, 2010 168 SGARBOSSA, Luís Fernando. Direitos e garantias fundamentais: Interpretação jusfundamental “pro homine”. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2008, p.25-30. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 170 | A Constituição Federal de 1988 caracterizou-se ainda pelo fato de ser neoconstitucionalista. O neoconstitucionalismo segundo Luís Roberto Barroso é um movimento que: (...) desenvolveu-se na Europa, ao longo da segunda metade do século XX, e, no Brasil, após a Constituição de 1988. O ambiente filosófico em que floresceu foi o do pós-positivismo, tendo como principais mudanças de paradigma, no plano teórico, o reconhecimento de força normativa à Constituição, a expansão da jurisdição constitucional e a elaboração das diferentes categorias da nova interpretação constitucional. (...) Dela resulta a aplicabilidade direta da Constituição a diversas situações, a inconstitucionalidade das normas incompatíveis com a Carta Constitucional e, sobretudo, a interpretação das normas infraconstitucionais conforme a Constituição, circunstância que irá conformar-lhes o sentido e o alcance169. Ao exposto, percebe-se que o neoconstitucionalismo decorreu de um longo processo histórico de conquista e consolidação dos direitos humanos resultando na aplicação direta da Constituição. Assim, afirma-se que a Constituição Federal de 1988, foi um marco neoconstitucionalista, haja vista que “está voltada a realização do estado democrático de direito, por intermédio de efetivação de direitos humanos.” 170 , ou seja, tem por tem objetivo a primazia dos direitos huma- nos e seu cumprimento no caso concreto. Diante do exposto, a Constituição Federal de 1988 é considerada o pacto social mais amplo na questão de direitos humanos da história 169 BARROSO. Luís Roberto. Neoconstitucionalismo e Constitucionalização do Direito (Triunfo tardio do direito constitucional no Brasil). Disponível em: <http://bdjur.stj.gov.br/xmlui/bitstream/handle/2011/18540/Neoconstitucionalismo_e_Constitucionaliza %c3%a7%c3%a3o_do_Direito.pdf?sequence=2> Acesso em: 16 de novembro de 2010. 170 CAMBI, Eduardo. Neoconstitucionalismo. In: ______. Neoconstitucionalismo e Neoprocessualismo: Direitos Fundamentais, Políticas Publicas e protagonismo judiciário. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009, p. 27. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 171 | constitucional do Brasil. Tendo como objetivo proteger os direitos humanos, a ponto de adotar tratados internacionais que reforcem a primazia dos mesmos. 3. TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL Para que se possa ter uma visão mais abrangente do instituto da entrega de nacionais ao Tribunal Penal Internacional, é de salutar importância fazer um esboço das características desta instituição, enumerando o que é, como atua, onde atua, e de que maneira esta atuação acontece. O Tribunal Penal Internacional é uma instituição permanente com jurisdição penal complementar sobre as pessoas responsáveis pelo cometimento dos mais graves crimes com alcance internacional. Foi instaurado com o fim de garantir os direitos humanos, na medida em que pune os indivíduos que praticam crimes de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e crimes de agressão, considerados crimes de natureza gravíssima, já que violam os direitos fundamentais do ser humano, como a vida e a liberdade171, de maneira que atuará quando os Estados não puderem ou não quiserem fazê-lo. O Tribunal caracteriza-se pela desvinculação do caráter político apresentado pelos tribunais ad hoc, até então existentes, podendo ser considerado um marco contra a impunidade internacional172. Citem-se como tribunais ad hoc o Tribunal Militar de Nuremberg e o Tribunal de Tóquio, que nada mais são do que os países vencedores de conflitos fa171 MIRANDA, João Irineu de Resende. O Tribunal Penal Internacional frente ao princípio da soberania. 2005. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. 172 MAIA, Marrielle. Tribunal Penal Internacional: Aspectos institucionais, jurisdição e princípio da complementaridade. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p.45-56. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 172 | zendo justiça contra os países vencidos, e mais recentemente os Tribunais da ex-Iugoslávia e de Ruanda, propostos pelo Conselho de Segurança por motivos políticos173. Conforme afirma Marriele Maia: A criação de uma corte internacional com jurisdição penal, nesse contexto, reveste-se de muitas dificuldades políticas e de grandes complexidades jurídicas, e seu estatuto somente veio a ser discutido em Roma em decorrência da superação da alegação do domínio reservado do Estado, pautado no princípio da soberania, graças ao desenvolvimento das relações internacionais e à expansão da proteção internacional dos direitos humanos e do direito internacional humanitário. (FERREIRA, 2001, p.43) 174 Pode-se afirmar, portanto, que o tribunal, ao contrário dos seus antecessores, de Nuremberg e de Tóquio que eram basicamente a justiça dos vencedores sobre os vencidos, não demonstrando de maneira nenhuma a imparcialidade no julgamento, o TPI pode ser considerado um tribunal internacional cujo fim é a defesa da humanidade. Composto por 128 artigos, o Estatuto de Roma instituiu o Tribunal Penal Internacional. O Tribunal é composto por juízes imparciais, e um promotor com autonomia, além de funcionar com câmaras de funções próprias, como as de questões preliminares, de julgamento e a de recurso. Os juízes e o promotor gozam de privilégios e imunidades que são necessários para o cumprimento de suas funções, dentro do território de 173 PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 11 ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2010. p.229 174 MAIA, Marrielle. Tribunal Penal Internacional: Aspectos institucionais, jurisdição e princípio da complementaridade. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p.43. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 173 | cada Estado-parte. Os idiomas oficiais são os mesmos dos das Nações Unidas, inglês e francês. Tem caráter complementar ao dos Estados Parte, ou seja, só poderá atuar quando houver incapacidade ou falta de disposição por parte do Estado no qual foi cometido o crime, ou do qual o indivíduo for nacional. Além disso, sua jurisdição é ratione materiae, ou seja, apenas no que tange os crimes elencados pelo Estatuto, os chamados core crimes: crime de genocídio, contra a humanidade, de guerra e de agressão, poderá agir, concluindo-se, portanto, que “(...) o Tribunal destina-se a intervir somente nas situações mais graves, em que se verifique a incapacidade ou falta de disposição dos Estados-parte de processar os responsáveis pelos crimes previstos pelo Estatuto de Roma.” 175. O tratado que instituiu o Tribunal Penal Internacional entrou em vigor em 1º de julho de 2002, e passou a vigorar no Brasil pelo Decreto nº 4388/02 de 1º de setembro. 4. A INSERÇÃO DO TRIBUNAL PENAL INTERNACIONAL NO BRASIL Após a Carta Magna de 1988, o Brasil ratificou vários tratados de direitos humanos. Dentre estes tratados destaca-se o Tribunal Penal In- 175 MAIA, Marrielle. Tribunal Penal Internacional: Aspectos institucionais, jurisdição e princípio da complementaridade. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p.78. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 174 | ternacional, que segundo Renata M. Lima176 foi criado depois de vários tribunais que o antecederam, com caráter ad hoc. Devido ao desgaste que sofreram os tribunais ad hoc, como por exemplo, privilegiar os países que venceram a 2º guerra mundial, surgiu a necessidade de um tribunal permanente. O Tribunal Penal Internacional, foi aprovado em 07 de fevereiro de 2000, por 120 países. No Brasil o tribunal Penal Internacional passou por um processo formal até ser ratificado: No dia 10 de outubro de 2001, o então presidente Fernando Henrique Cardoso submeteu o texto a apreciação do Congresso Nacional, em consonância com o disposto no art.49, I, da Constituição Federal. E somente em 6 de junho de 2002, o Estatuto foi aprovado por meio do Decreto Legislativo 112. Feito isso, o referendo retornou ao Chefe do Executivo, que providenciou o depósito do instrumento de ratificação perante o Secretário-Geral das Nações Unidas em 20 de junho do mesmo ano, confirmando sua vinculação o Tratado de Roma no plano jurídico internacional. (MAIA, 2006, p. 152).177 Ao exposto, o TPI foi plenamente ratificado e adotado pelo Brasil, porém a Constituição Federal e o Estatuto de Roma apresentam várias contradições que deixam dúvidas quanto ao seu funcionamento e trazem diversas dúvidas acerca de sua hierarquização. 4.1 CONTRADIÇÕES EXISTENTES ENTRE O TPI E A CF/88 176 LIMA, Renata Mantoveni de. Coleção para entender: o Tribunal Penal Internacional. Belo Horizonte: Del Rey. 2006. p. 30-31. 177 MAIA, Marrielle. Tribunal Penal Internacional: Aspectos institucionais, jurisdição e princípio da complementaridade. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 175 | Dentre as principais contradições existentes entre o Estatuto de Roma e a Constituição Federal destacam-se: a pena de prisão perpétua, as imunidades, a imprescritibilidade, o respeito à coisa julgada e a entrega de nacionais. A prisão perpétua está prevista no artigo 77, §1, alínea b, do Estatuto de Roma e prevê: “Pena de prisão perpétua, se o elevado grau da ilicitude do fato e as condições pessoais do condenado o justificarem” 178 . Em contraposição o artigo 5º, inciso XLVII, alínea b da Constituição Federal dispõe que o Brasil não adotará pena de prisão de caráter perpétuo, com exceção para o caso de guerra declarada179. Segundo o artigo 110 do Estatuto de Roma, haverá um reexame das penas dispostas e quanto a pena de prisão perpétua, o parágrafo 3º dispõe que: “Quando a pessoa já tiver cumprido dois terços da pena, ou 25 anos de prisão em caso de pena de prisão perpétua, o Tribunal reexaminará a pena para determinar se haverá lugar à sua redução. Tal reexame só será efetuado transcorrido o período acima referido”180. Portanto, a prisão de caráter perpétuo poderá ser reduzida quando o julgado cooperar com o TPI, além disso, a pena de prisão perpétua é proibida dentro do Brasil, mas nada impede que a mesma seja aplicada fora do país. Ressalte-se ainda que o país assinou o Tratado internacional, e deve cooperar com o mesmo. Quanto às imunidades, o Estatuto de Roma dispõe no artigo 27 a irrelevância da qualidade de oficial e esclarece que o Estatuto será apli178 BRASIL. Decreto 4388/2002. Tribunal Penal Internacional. Disponível em: <http://www2.mre.gov.br/dai/tpi.htm>. Acesso em: 25 de agosto de 2010. 179 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (promulgada em 5 de Outubro de 1988). São Paulo: Saraiva, 2010 180 BRASIL. Decreto 4388/2002. Tribunal Penal Internacional. Disponível em: <http://www2.mre.gov.br/dai/tpi.htm>. Acesso em: 25 de agosto de 2010. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 176 | cado de forma igual a todos, sem nenhuma distinção baseada na qualidade de oficial181. Contrariamente, a Constituição Federal no artigo 53, §2 dispõe que: “Desde a expedição do diploma, os membros do Congresso Nacional não poderão ser presos, salvo em flagrante de crime inafiançável”182. Ao exposto, conclui-se que não se pode aceitar que criminosos tenham liberdade devido a sua qualidade de oficial, e posteriormente, cometam outros crimes mais graves. No que diz respeito à prescrição de crimes, o Estatuto de Roma esclarece no artigo 29 “Os crimes da competência do Tribunal não prescrevem” 183 . Contraposto em parte, o artigo 5º, esclarece que apenas dois crimes são imprescritíveis no Brasil: o crime de racismo (art. 5°, inciso XLII) e a ação de grupos armados (art. 5°, inciso XLIV). Em relação a esta contradição, a prescrição tem como objetivo, na justiça brasileira, combater a lentidão e a inconveniência de se punir o infrator muito tempo depois da ocorrência do crime, haja visto que certos crimes perdem seu significado perante sociedade devido ao discurso do tempo, não sendo mais interessante sua persecução penal. Com relação à coisa julgada, a Constituição Federal dispõe no artigo 5º, inciso XXXVI que a lei não prejudicará a coisa julgada, em contrapartida, o Estatuo de Roma esclarece que a coisa julgada será novamente julgada quando o Tribunal: 181 BRASIL. Decreto 4388/2002. Tribunal Penal Internacional. Disponível em: <http://www2.mre.gov.br/dai/tpi.htm>. Acesso em: 25 de agosto de 2010. 182 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (promulgada em 5 de Outubro de 1988). São Paulo: Saraiva, 2010 183 BRASIL. Decreto 4388/2002. Tribunal Penal Internacional. Disponível em: <http://www2.mre.gov.br/dai/tpi.htm>. Acesso em: 25 de agosto de 2010. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 177 | Art. 20, §3º: a) Tenha tido por objetivo subtrair o argüido à sua responsabilidade criminal por crimes da competência do Tribunal; ou, b) Não tenha sido conduzido de forma independente ou imparcial, em conformidade com as garantias de um processo equitativo reconhecidas pelo direito internacional, ou tenha sido conduzido de uma maneira que, no caso concreto, se revele incompatível com a intenção de submeter a pessoa à ação da justiça. 184 Ao exposto, deve-se relatar que o Tribunal Penal Internacional visa o fim da impunidade e, portanto, quando for claro que o julgamento de um crime foi dotado de fraude o Tribunal Penal Internacional intervirá. 5. INSTITUTO DA ENTREGA Dentre as contradições encontradas entre a Constituição Federal e o Estatuto de Roma apresentadas acima, acrescente-se o instituto de entrega de nacionais para o Tribunal Penal Internacional, que será abordado com maior ênfase neste item. A primeira colocação que se pode fazer a respeito é que são institutos diferentes, e por isso, sua diferenciação é de extrema importância para o entendimento do tema. 5.1 EXTRADIÇÃO O instituto da extradição é o ato de um Estado de entregar um indivíduo, seja ele nacional ou estrangeiro, que está em seu território, para 184 BRASIL. Decreto 4388/2002. Tribunal Penal Internacional. <http://www2.mre.gov.br/dai/tpi.htm>. Acesso em: 25 de agosto de 2010. Disponível em: Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 178 | outro Estado que promoverá seu julgamento e punição por um crime que ele cometeu. 185 Pode-se afirmar que a extradição visa precipuamente impedir a impunidade, já que seu fim é o julgamento e punição de um crime que o indivíduo cometeu dentro do limite territorial do Estado que requer o pedido de extradição. É amparado por tratados assinados entre o Estado requerente e o Estado requerido, ou na promessa de reciprocidade quando não há tratado para tal. 186 Algumas condições podem ser citadas para que o pedido de extradição seja aceito e esteja em conformidade com disposições legais a respeito. A primeira delas diz respeito ao lugar da infração, ou seja, o indivíduo somente será extraditado para o Estado em cujo território tenha praticado o crime. A segunda concerne à legislação, ou seja, o crime para o qual se faz o pedido deve ser punido tanto no Estado requerente, quanto no Estado requerido. A terceira condição versa sobre o não rejulgamento do indivíduo, ou seja, se ele já foi julgado no Estado requerido pelo mesmo fato, este não pode embasar o pedido de extradição. O quarto fator diz respeito a uma garantia prevista constitucionalmente, que é o não julgamento por tribunal de exceção. O último consiste na prescrição do crime, ou seja, se o crime já estiver prescrito no Estado requerente, no 185 MELLO, Celso D. de A.. Curso de Direito Internacional Público. 12ª ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. 2 v. 186 MELLO, Celso D. de A.. Curso de Direito Internacional Público. 12ª ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. 2 v. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 179 | Estado requerido, ou nos dois, não haverá possibilidade de executar-se o pedido de extradição. 187 No ordenamento jurídico, a não extradição é uma garantia fundamental, prevista em cláusula pétrea na Constituição, no art. 5º, LI que diz: “nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado, em caso de crime comum, praticado antes da naturalização, ou de comprovado envolvimento em tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, na forma da lei.” 188. Percebe-se, em vista disso, que nenhum brasileiro pode ser extraditado, com exceção do naturalizado, e este, apenas nos casos elencados pela Lei Magna. 5.2 ENTREGA O instituto da entrega por sua vez, está relacionado aos Estados signatários do Estatuto de Roma, criador do Tribunal Penal Internacional. É a entrega de um indivíduo à um organismo internacional, que é o Tribunal Penal Internacional, que só pôde ser criado, pelo esforço de diversos Estados, ante a indignação causada por fatos ocorridos no passado, e que não poderiam voltar a acontecer numa sociedade internacional pautada pela defesa dos direitos humanos.189 187 MELLO, Celso D. de A.. Curso de Direito Internacional Público. 12ª ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. 2 v. 188 BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (promulgada em 5 de Outubro de 1988). São Paulo: Saraiva, 2010 189 BRINA, Marina M. da C.; LIMA, Renata M. de. Para Entender o Tribunal Penal Internacional. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 180 | Tem como base um tratado multilateral, que é o próprio Estatuto de Roma, e assim como o instituto da extradição visa impossibilitar que indivíduos que cometeram os crimes elencados pelo Estatuto fiquem impunes. O pedido de entrega está previsto no art. 89 do Estatuto de Roma que dispõe: O Tribunal poderá dirigir um pedido de detenção e entrega de uma pessoa, instruído com os documentos comprovativos referidos no artigo 91.º, a qualquer Estado em cujo território essa pessoa se possa encontrar, e solicitar a cooperação desse Estado na detenção e entrega da pessoa em causa. Os Estados Partes darão satisfação aos pedidos de detenção e de entrega em conformidade com o presente capítulo e com os procedimentos previstos nos respectivos direitos internos.190 5.3 DIFERENCIAÇÃO DOS INSTITUTOS No que diz respeito ao conflito do Estatuto de Roma com a Constituição, faz-se necessária algumas considerações, já que as normas do Estatuto de Roma apresentam caráter complementar conferindo responsabilidade subsidiária, sendo aplicáveis na recusa, omissão ou ineficiência das normas do Estado-parte no caso concreto, portanto, as contradições não se apresentam diretamente191. 190 BRASIL. Decreto 4388/2002. Tribunal Penal Internacional. Disponível em: <http://www2.mre.gov.br/dai/tpi.htm>. Acesso em: 25 de agosto de 2010. 191 MIRANDA, João Irineu de Resende Mirada. O Tribunal Penal Internacional e a Ordem Jurídica Brasileira após a Emenda Constitucional n°. 45/04 - 2005. Universidade Estadual de Ponta Grossa, 2006. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 181 | Com relação ao instituto da entrega, vale dizer que é assunto diferente da extradição, ainda que tenham como objeto a entrega de um indivíduo nacional. Como se analisou acima são diferentes, na medida em que, a extradição é a entrega de um nacional para outro Estado, com base em um tratado, convenção ou no próprio direito interno, ou seja, a extradição pressupõe reciprocidade na relação entre os Estados192. O instituto da entrega por sua vez, diz respeito ao envio de um indivíduo pelo Estado para o Tribunal Penal Internacional, organismo internacional, criado pela vontade dos próprios Estados, conforme previsto pelo Estatuto, art. 89. A recusa em entregar um nacional, quando uma ordem é emitida pelo Tribunal, pode acarretar ao país responsabilidade internacional, conforme previsto pelo próprio Estatuto193. A cooperação dos Estados é fundamental para o devido funcionamento do TPI. Sendo assim, destaca Marrielle Maia que: “A Conferência de Roma criou um regime que estipula a obrigação dos Estados de cooperar plenamente com o Tribunal e assegurar que existam, no direito interno do Estado contratante, procedimentos aplicáveis a todas as formas de cooperação especificadas no Estatuto.” 194 . É de se ressaltar que o mesmo Estatuto prevê a cooperação dos Estados que dele fazem parte, e nisso se inclui o fato de apresentar os indivíduos que cometem os crimes previstos para o devido julgamento. 192 MELLO, Celso D. de A.. Curso de Direito Internacional Público. 12ª ed. rev. e aum. Rio de Janeiro: Renovar, 2000. 2 v. 193 BRINA, Marina M. da C.; LIMA, Renata M. de. Para Entender o Tribunal Penal Internacional. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. 194 MAIA, Marrielle. Tribunal Penal Internacional: Aspectos institucionais, jurisdição e princípio da complementaridade. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. p. 97. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 182 | O Estatuto não prevê a recusa de cooperação. Para evitar maiores problemas, as delegações propuseram a diferenciação de extradição e entrega para o Estatuto, uma vez que o último não iria ferir a soberania dos Estados, tendo em vista que em alguns o instituto não é previsto na legislação, e em outros é proibido. Dispõe o art. 102 do Estatuto de Roma que: Para os fins do presente Estatuto: a) Por entrega entende-se a entrega de uma pessoa por um Estado ao Tribunal, nos termos do presente Estatuto; b) Por extradição entende-se a entrega de uma pessoa por um Estado a outro Estado, conforme previsto num tratado, numa convenção ou no direito interno. 195 Quando da aprovação do Estatuto de Roma pela delegação brasileira, já se previa que, mesmo com a diferenciação pelo próprio texto do Estatuto, ainda sim, o art. 89 referente ao assunto poderia trazer questionamentos acerca do instituto da entrega ali previsto, e o da extradição de nacionais, proibido pela Constituição Federal, sendo a norma constitucional cláusula pétrea. 196 Porém, como são institutos diferentes, e havendo previsão constitucional apenas para a extradição, art. 5º, incisos LI da CF, nada dizendo a respeito da entrega, não há que se falar em inconstitucionalidade da entrega. 195 BRASIL. Decreto 4388/2002. Tribunal Penal Internacional. Disponível em: <http://www2.mre.gov.br/dai/tpi.htm>. Acesso em: 25 de agosto de 2010. 196 MAIA, Marrielle. Tribunal Penal Internacional: Aspectos institucionais, jurisdição e princípio da complementaridade. Belo Horizonte: Del Rey, 2001. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 183 | A ressalva que pode ser feita a respeito, é que tal instituto ainda não encontra amparo na legislação brasileira, o que deveria ser feito, para que o instituto pudesse ser implementado pelo Tribunal, conforme assinalado, o que obriga a cooperação absoluta dos Estados, incluindo aí a criação de uma legislação infraconstitucional necessária para a boa implementação do Estatuto, já que o país, quando da assinatura do Estatuto de Roma, se comprometeu a cooperar plenamente com o Tribunal197. Enquanto não houver norma constitucional a respeito, em caso de pedido de entrega de um nacional para o Tribunal Penal Internacional, segundo posição adotada pelo STF, aplicar-se-á a norma mais favorável ao indivíduo, o que nesse caso se representa pela norma constitucional, e não pelo Estatuto de Roma, ainda que ambos tenham a mesma hierarquia normativa. 198 Isso só vale quando está se referindo a brasileiros natos, ou naturalizados (dependendo do crime). No que diz respeito aos estrangeiros, o Brasil poderia entregá-los à jurisdição do TPI sem maiores problemas. Ainda que não sejam inconstitucionais as normas mencionadas, vale dizer que está em trâmite na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 4.038/2008199, com o objetivo de definir os crimes elencados pelo Estatuto de Roma, instituir normas processuais específicas e dispor sobre a cooperação do país para com o Tribunal Penal Internacional, prevendo inclusive o instituto da entrega, e como ele se procederá. 197 BRINA, Marina M. da C.; LIMA, Renata M. de. Para Entender o Tribunal Penal Internacional. Belo Horizonte: Del Rey, 2006. p.163-164. 198 MIRANDA, João Irineu de Resende. O Tribunal Penal Internacional frente ao princípio da soberania. 2005. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005. 199 BRASIL. Projeto de Lei 4038/2008. Disponível em <http://www.camara.gov.br/sileg/Prop_Detalhe.asp?id=410747>. Acesso em: 15 de agosto de 2010. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 184 | Com isso, o Brasil estará cumprindo a cláusula do Estatuto de Roma, que prevê a adequação do ordenamento nacional, com vistas a permitir a cooperação plena com o Tribunal conforme prescrito. 6. A EMENDA CONSTITUCIONAL 45/2004, E SUAS RESPECTIVAS CONSEQUENCIAS As dúvidas e discussões geradas devido às aparentes contradições entre o Estatuto de Roma e a Constituição Federal impulsionaram o poder legislativo a instituir a Emenda Constitucional nº 45 de 2004, que dispõe sobre Tratados Internacionais de Direitos Humanos: “§3º Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.” 200 Ainda o art. 4º dispõe que: “§ 4º O Brasil se submete à jurisdição do Tribunal Penal Internacional a cuja criação tenha manifestado adesão.” 201 A referida Ementa Constitucional 45/2004, teve como objetivo disposto no parágrafo 3°, traçar um procedimento formal para a inserção dos Tratados Internacionais de Direitos Humanos no Brasil, contribuindo as- 200 BRASIL. Emenda Constitucional n° 45 de 30 de dezembro de <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc45.htm>. outubro de 2010. 201 BRASIL. Emenda Constitucional n° 45 de 30 de dezembro de <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/emendas/emc/emc45.htm>. outubro de 2010. 2004. Disponível em: Acesso em: 24 de 2004. Disponível em: Acesso em: 24 de Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 185 | sim, com uma hierarquia definida e afirmando o funcionamento da jurisdição do Tribunal Penal Internacional no Brasil. Deve-se ressaltar que a Emenda Constitucional 45/2004 trouxe uma hierarquização para tratados Internacionais de Direitos Humanos, porém, indaga-se qual hierarquia terão os Tratados Internacionais de Direitos Humanos que não passarem pela formalidade disposta no parágrafo 3°, ou forem anteriores da Emenda. Para resolver a questão proposta acima, várias teses surgiram tentando definir a hierarquia dos tratados, como por exemplo, a tese da constitucionalidade, que defende a hierarquia constitucional dos tratados internacionais de direitos humanos, e a tese da supralegalidade, adotada pelo STF, que defende que os tratados internacionais de direitos humanos estão abaixo das leis constitucionais e acima das leis infraconstitucionais. Segundo Flavia Piovesan, adepta a tese da constitucionalidade: “(...) por força do §2° do artigo 5°, todos os tratados internacionais de direitos humanos já eram, antes da Emenda Constitucional, reconhecidos materialmente como normas constitucionais. O novo §3° não teria, portanto, o condão de reduzir esses status, também em razão do disposto no artigo 60, §4°, IV, da CF, que disciplina sobre as cláusulas pétreas” (apud ANNONI, 2006, p. 31).202 Seguidores da tese constitucionalista, como por exemplo, o Ministro Celso de Mello, entendem que os tratados de direitos humanos anteriores a Emenda Constitucional 45/2004 e os não aprovados por ela, já ti202 ANNONI, D. Os direitos humanos na reforma do judiciário brasileiro. Espaço Jurídico. Santa Catarina. V. 7, n°1, jan/jun. 2006. (p. 29-38). Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 186 | nham caráter constitucional e, portanto, a emenda tem como objetivo garantir a perenidade dos tratados internacionais de direitos humanos. Além disso, os tratados internacionais aprovados pela Emenda Constitucional 45/2004, não poderão ser denunciados, pois, eles têm caráter formal e material, visto que são aprovados por duas casas do congresso por três quintos, enquanto que a denuncia é de legitimidade do poder executivo, portanto são poderes diferentes que devem ser respeitados. A tese da constitucionalidade defende a primazia dos direitos humanos, ou seja, quando haver contradições entre o Estatuto de Roma e a Constituição Federal, deve-se aplicar a lei mais favorável.203 A tese da supralegalidade, adotada pelo Ministro Gilmar Mendes, e pelo STF, defende que os tratados internacionais de direitos humanos estão acima das leis infraconstitucionais e abaixo das leis constitucionais, pois não se pode deixar os tratados internacionais de direitos humanos, na mesma paridade das leis constitucionais, visto que afetariam a soberania da Constituição, porém não se pode deixá-las na mesma paridade das leis infraconstitucionais, pois não se teria sentido de adotá-los. Essa tese resguarda a existência de um efeito paralisante nas normas menos favoráveis. Segundo ela, quando uma norma internacional é mais favorável, esta não revoga a norma interna e sim a paralisa naquele determinado caso. A tese da supralegalidade foi aplicada pelo ministro Gilmar Mendes no caso do depositário infiel, Recurso extraordinário 203 ANNONI, D. Os direitos humanos na reforma do judiciário brasileiro. Espaço Jurídico. Santa Catarina. V. 7, n°1, jan/jun. 2006. (p.31). Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 187 | 466.343-1204, onde foi aplicado o artigo 7°, §7° do Pacto de San José da Costa Rica, paralisando o artigo 5º, inciso LXVII. O Recurso Extraordinário 466.343-1 foi: “[...] interposto pelo Banco Bradesco S/A, contra acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo, que no julgamento de apelação, confirmou sentença de procedência de ação depositória, fundada em alienação fiduciária em garantia, deixando impor cominação de prisão civil ao devedor fiduciante, em caso de descumprimento de obrigação da entrega do bem, tal como postura o ator fiduciário, por entendê-lo inconstitucional [...]” 205 Como disposto acima, o Tribunal de Justiça de São Paulo não decretou a prisão civil do depositário infiel. O apelante interpôs o Recurso a fim de haver seus direitos, ou seja, a aplicação da prisão civil ao depositário infiel, disposto no artigo 5º, inciso LXVII da CF. Porém, ao término do Recurso Extraordinário o artigo 5º, inciso LXVII foi paralisado pela aplicação do artigo 7º §7º do Pacto de San José da Costa Rica, que dispõem que não haverá prisão civil por dívidas, prevalecendo, portanto, a liberdade. O Ministro Gilmar Mendes declarou que não se pode no estágio avançado em que estamos privilegiar a propriedade ao invés da liberdade. Defende a tese de que, os tratados de direitos humanos apresentam uma hierarquia especial, pois estão acima das leis infraconstitucionais, ou seja, 204 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE n° 466.343-1. Banco Bradesco S/A e Vera Lucia B de Albuquerque. Julg. Dez. 2008. Disponível em: < http://redir.stf.jus.br/paginador/paginador.jsp?docTP=AC&docID=595444&pgI=1&pgF=100000 >. Acesso em: 23 de agosto de 2010. 205 SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. RE n° 466.343-1. Banco Bradesco S/A e Vera Lucia B de Albuquerque. Julg. Dez. 2008. Disponível em: <http://redir.stf.jus.br/paginador/paginador.jsp?docTP=AC&docID=595444&pgI=1&pgF=100000 >. Acesso em: 23 de agosto de 2010. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 188 | leis ordinárias e outros tratados internacionais comuns, porém abaixo da Constituição. Diante do exposto, percebe-se que a problemática centralizada na questão da hierarquia dos tratados internacionais adotados anteriormente a Emenda Constitucional 45/2004, será tema de várias discussões, visto que as teses apresentam relevantes fundamentos, que divide até o atual momento, os Ministros do STF entre a tese da constitucionalidade e a tese da supralegalidade. 7. CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente trabalho tentou demonstrar o quão importante é a implementação dos direitos humanos dentro de um sistema nacional harmonioso, tendo em vista que o país, signatário de diversos tratados sobre o assunto, sempre se comprometeu a exercitá-los de forma a garantir seu cumprimento. O Estatuto de Roma foi pensado para evitar que crimes como os que ocorreram na 2ª Guerra Mundial, na Iugoslávia e em Ruanda, voltem a acontecer, com base na falta de punição. Os direitos humanos, de grande importância nos dias de hoje, merecem destaque e respeito no cenário internacional, e para isso devem contar com a ajuda de todos os países que lutam e preservam a paz. É de extrema importância, ressaltar que os conflitos entre as normas do Tribunal Penal Internacional são apenas aparentes, de forma que o Brasil não pode se valer de prerrogativas nacionais, desrespeitando Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 189 | normas já impostas no ordenamento brasileiro, e mais, desrespeitando normas de direito internacional, que necessitam da cooperação de todos os países para que efetivamente haja a proteção desses direitos. As breves considerações expostas são para demonstrar que o Brasil deve respeitar e apoiar o Estatuto de Roma, uma vez que dele já faz parte, criando uma legislação que acabe com as discussões acerca da inconstitucionalidade dos referidos temas, ainda que tais conflitos sejam aparentes. Levando em consideração as principais contradições, destaca-se que as mesmas são aparentes, pois com introdução do §4 ao artigo 5°, pela Emenda Constitucional 45 de 2004 as normas do Estatuto de Roma agora possuem base de material perante a Constituição. Além disso, o Estatuto de Roma apresenta caráter complementar interferindo somente em conflitos de extrema perplexidade e tanto a Constituição Federal quanto o Estatuto de Roma visam à primazia dos direitos humanos. E é o caráter complementar que faz com que as normas não sejam afrontadas diretamente206. Quando da aderência ao Tribunal Penal Internacional, o Brasil o fez constitucionalmente, por meio do artigo 5º, §4º, além de tê-lo feito de forma infraconstitucional, por meio do Decreto 4388/2002207. 206 MIRANDA, João Irineu de Resende Mirada. O Tribunal Penal Internacional e a Ordem Jurídica Brasileira após a Emenda Constitucional n°. 45/04 - 2005. Universidade Estadual de Ponta Grossa, 2006. 207 BRASIL. Decreto 4388/2002. Tribunal Penal Internacional. Disponível em: <http://www2.mre.gov.br/dai/tpi.htm>. Acesso em: 25 de agosto de 2010. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 190 | Por se tratar de um tema novo, passível de muitos impasses por parte dos doutrinadores e pesquisadores. Sua relevância se encontra principalmente no fato de que o país é signatário do Estatuto de Roma, e seguindo suas proposições, deve com ele cooperar, de maneira a implementar uma legislação que auxilie o processo de julgamento, e eventual condenação por parte do Tribunal aos criminosos ali mencionados. Como tal legislação ainda não existe, muito se tem discutido sobre a constitucionalidade de alguns institutos, especialmente sobre o instituto da entrega. O exame da questão sobre tal tema se faz necessário, tendo em vista que os direitos humanos são consideravelmente novos, e sua implementação no âmbito nacional e internacional, depende de cooperação entre todos os entes internacionais. REFERÊNCIAS ANNONI, D. Os direitos humanos na reforma do judiciário brasileiro. Espaço Jurídico. Santa Catarina. V. 7, n°1, jan/jun. 2006. (p. 29-38). BONAVIDES. Paulo; ANDRADE. Paes de. A História Constitucional do Brasil. Porto: Universidade Portucalense, 2003, p. 479-493. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil (promulgada em 5 de Outubro de 1988). São Paulo: Saraiva, 2010 BRASIL. Decreto 4388/2002. Tribunal Penal Internacional. Disponível em: <http://www2.mre.gov.br/dai/tpi.htm>. Acesso em: 25 de agosto de 2010. BRASIL. Emenda Constitucional n° 45 de 30 de dezembro de 2004. 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Gislaine Rocha Simões da Silva208 RESUMO Este trabalho objetivou analisar os obstáculos que a falta de uma transformação cultural dentro da sociedade civil, e dos próprios governantes representa para que efetivamente as leis ambientais, em especial a Lei Nacional de Políticas Públicas de Recursos Hídricos (PNRH) alcance os objetivos para os quais foram criados. Enfoca a existência de regulamentações da política pública que 208 Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 194 | instituiu o valor econômico à água como forma de contenção, conscientização e sustentabilidade com efeito prático tímido, diante da ausência de implementações em todos os Estados federados, sucumbidos pela inércia interessada em manter a disseminação da cultura capitalista da acumulação, concebido no pensamento essencialmente antropológico e imediatista para sustentar uma falsa noção de qualidade de vida, cujo custo é a degradação da natureza. Demonstra a clara evolução do pensamento na questão ambiental trazida pelos símbolos disseminados pelo discurso a partir da ECO 92, mas contrapõe com a insuficiência de absorção pelos atores sociais da gravidade da situação, principalmente quando envolve as gerações futuras que o artigo 225 da Constituição Federal também pretende proteger. ABSTRACT This work had the objective to analyze the obstacles that the lack of a cultural transformation inside of the civil society, and the proper governors represent so that the environmental norms, in special the National Law of Public Policies of Hydric Resources (PNRH) reach the objectives for which they had been created. It focuses on the existence of regulations of the public policy that instituted the economic value to the water as a way of containment, awareness and sustainability with shy practical effect, in face of the absence of implementations in all the Federative States, lost for the inertia in- Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 195 | terested in keeping the dissemination of the capitalist culture of accumulation, conceived in the essentially anthropologic and immediate thought to support a false notion of quality of life whose cost is the degradation of nature. It shows the clear evolution of the thought in the environmental question brought by the symbols spread for the speech from ECO 92, but it opposes down the insufficience of absorption for the social actors of gravity of the situation, mainly when it involves the future generations that the art. 225 of the Federal Constitution also intends to protect. PALAVRAS-CHAVE: leis ambientais; política nacional de recursos hídricos; água; valor econômico da água; cultura. KEY-WORDS: Environmental norms; national policy of Hydric Resources; water; economic value of the water; culture. 1 INTRODUÇÃO Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 196 | O discurso ambiental que vem sendo propalado desde a ECO 92, ensejou a criação de diversas legislações que orientam, punem, previnem e regulam o uso dos recursos naturais. Os dispositivos legais são tidos como conquista, resultado de debates, críticas, movimentos. Há uma extensa regulamentação federal, estadual e municipal a respeito, resultados de incansáveis pesquisas interdisciplinares que buscam alcançar o desenvolvimento sustentável. A implementação de políticas públicas que envolvam, não somente as ações estatais, mas toda a coletividade surgiu como um arcabouço de soluções que preservariam o meio às gerações e atenderiam o artigo 225 da Constituição Federal de 19881. Entre as legislações federais ambientais foi publicada em 09 de janeiro de 1997 a Lei 9.433 que regula as Políticas Nacionais de Recursos Hídricos, criando institutos inéditos com intuito de proporcionar medidas que conciliassem desenvolvimento econômico com equilíbrio ecológico. Considerando as variáveis que as águas representam dentro do contexto social e econômico, a escassez da água foi o ponto crucial para a elaboração destes institutos. Contudo, mesmo diante das medidas previstas na legislação, as mudanças nas ações humanas é que ainda não são perceptíveis. A existência de políticas públicas que envolvam a sociedade sequer são amplamente difundidas e praticamente desconhecidas por grande parcela Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 197 | dos indivíduos. A transformação social é tímida e necessita uma mudança cultural para atingir os fins que o discurso da lei almeja. O presente trabalho, sem a pretensão de esgotar o assunto, pretende abordar o obstáculo que a falta de mudança cultural representa para a efetiva transformação social, que impede ou dificulta que atinjam seus fins, as políticas públicas de recursos hídricos, criadas pela Lei 9.433/97, em especial, quanto à cobrança pelo uso da água. As posições adotadas denotam uma realidade que cerceia a implementação dos institutos dentro de um contexto tomado pela ideologia capitalista, mecanicista que persiste acima de qualquer consciência ambiental, e vão além das preocupações com as futuras gerações e o mundo. Percebe-se a contraposição entre o imediatismo ao que o indivíduo acostumou-se priorizar e o dever de preservar e defender a sadia qualidade de vida. Como já mencionava Junges (2004) os homens vivem a insignificância da vida e o imediatismo do presente. É esta racionalidade que deve ser superada, não apenas pelos membros da sociedade civil, mas pelos próprios governantes. Como preleciona Souza (2006), até a promulgação da Constituição Federal de 1988, o Estado era considerado o “dono da natureza”, e pouco fez para preservá-la, pelo menos até então. O mesmo autor, inclusive, ressalta que muito fez para destruí-la, deixando o Estado de aplicar Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 198 | eficazmente seu poder de polícia, agindo com descaso em relação ao meio ambiente, facilitando a geração das degradações ambientais. A partir da divulgação maciça dos efeitos da degradação ambiental, no aspecto formal muitas coisas mudaram. Mas a atuação prática dos atores sociais está ainda em lento processo de transformação, e a morosidade é um obstáculo que não acompanha o que a legislação ambiental, formalmente, pretende empreender. Neste artigo, busca-se apresentar esta incongruência. 2 DESENVOLVIMENTO 2.1 O fortalecimento do discurso ambiental Por muitas gerações não distantes da época atual, e na maior parte do mundo a água era tida como um recurso tão disponível como o ar. Não havia a preocupação quanto às regiões do mundo que esta acessibilidade era reduzida, tão pouco havia maior preocupação quanto à sua capacidade de renovação. Com a qualidade de inesgotável a sociedade a atribuía múltiplos usos, especialmente de ordem econômica. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 199 | A trajetória histórica da relação entre os cenários social e econômico, resultado da intensificação do mercantilismo pela descoberta de novas riquezas e novas trocas comerciais, culmina com o desenvolvimento da tecnologia que deu início à Revolução Industrial, trazendo as conseqüências ambientais que hoje a humanidade vivencia. Houve nesta trajetória a predominância do antropocentrismo, atribuído ao individualismo (ideal do Iluminismo), que prioriza o progresso material em detrimento da degradação e em favor da dominação da natureza. Este enfoque prevalece até o Século XX, quando o Estado organiza-se como promotor da qualidade de vida, intervindo na iniciativa privada para assegurar o interesse coletivo, incluindo aí, a preservação do meio ambiente. Neste vértice destaca-se a contenção do desgaste dos recursos naturais, em que a sociedade civil, em especial, as empresas inserem-se como atores sociais importantes na implementação de políticas ambientais que amenizem os efeitos de suas próprias ações degradantes, assim como para atender objetivos específicos internos ou exigências externas. A visibilidade dos efeitos do desgaste dos recursos naturais implicou na necessidade não somente de transformar a cultura, mas também de novas normas que visassem a contenção, através de políticas públicas, imputações de sanções e responsabilidades. Na visão de Berger e Luckrmann (1987), a continuidade da vida cotidiana somente é interrompida pelo aparecimento de um problema, quando isso acontece, a reali- Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 200 | dade da vida cotidiana procura integrar o setor problemático dentro daquilo que já é não-problemático. A política e a legislação ambiental brasileira existem desde o período colonial, com previsões inicialmente de efeitos essencialmente econômicos, o que veio se modificando até a edição da Lei n. 6.938/81, que inaugura uma visão holística dentro da normatização pátria. Sob a luz das normas ambientais advindas dessa nova linhagem postural, busca-se a descentralização da proteção e gestão dos bens ambientais, visando maior efetividade. Em relação aos recursos hídricos, criou-se a Lei 9.433/97, instituindo a Política Nacional de Recursos Hídricos, que entre todas as suas criações conferiu à água valor econômico, instituindo a cobrança pelo seu uso. Como bem dizia o poeta João Guimarães Rosa a água de boa qualidade é como a saúde ou a liberdade: só tem valor quando acaba. Ainda que haja noção das conseqüências que o uso irrestrito da água poderia causar, somente quando são sentidos os efeitos nefastos é que se tomam providências de contenção e preservação. Pesquisas realizadas revelam dados quantitativos que demonstram um quadro alarmante quanto à disponibilidade dos recursos hídricos, conforme indica Machado (2005) quando informa que somente cerca 0,007% da água doce existente no planeta está disponível para o consumo, e 9% dos países concentram 60% dos recursos hídricos. No Brasil, Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 201 | cuja posição é privilegiada, detém-se de 12 a 15% dos 0,0007% da água doce, mas a distribuição é totalmente desigual. Na Amazônia, concentrase cerca de 7% da população e detém entre 70 a 80% dos recursos hídricos disponíveis no Brasil. Nesta concepção geográfica, fica claro a necessidade de limites em relação à utilização da água, seja para proporcionar a distribuição de investimentos às áreas menos favorecidas, seja para empreender uma consciência ecológica de contenção. Reconhecido os múltiplos usos da água, gerou-se a criação de normas específicas para a regulamentação de políticas de cunho financeiro e pedagógico. O atual tratamento dispensado aos recursos hídricos decorreu de uma conjuntura que não somente envolvia a questão ambiental, como econômica e social, empreendendo um embate complexo entre os mais variados setores que compõe a sociedade. Toda a questão ambiental envolve uma análise sistêmica. Tal característica pressupõe o levantamento de várias questões e suas relações que ultrapassam os limites da pesquisa focada simplesmente na questão geográfica e biológica. Que a água é vital para a manutenção dos seres vivos não é o único preceito que justifique as medidas restritivas de seu uso, que deve se equilibrar com outras áreas de desenvolvimento. Rodrigues (1990) em sua obra “Campo Midiático” enfatiza a força simbólica dos discursos que determinam as conveniências, que não somente devem ser freqüentes, intensas e aceleradas para não serem es- Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 202 | quecidos, e, portanto, não perderem sua visibilidade simbólica, como também devem atingir maior variedade de dimensões alcançando a amplitude necessária para implantar estratégias funcionais em maior número de setores. O campo social em que se desenvolveram os estudos sobre a institucionalização das políticas públicas de recursos hídricos, representou exatamente o que este autor destacou. Debates tardios sobre a preservação do meio ambiente, degradados na excessiva demanda poluidora que não preocuparam a economia capitalista durante os muitos anos que se seguiram após a Revolução Industrial, somente ganharam força política e institucional a partir do momento que, constatado os efeitos degradantes da natureza, investiu-se na criação de comitês, grupos e associações formadas por entes governamentais ou particulares investidos de algum interesse, de legitimidade para a discussão dos meios de preservação. O discurso de movimentos sociais que defendiam a questão ecológica fortaleceu-se no campo social com manifesta intensidade que permitiu a reunião de líderes nacionais e internacionais cujos debates embasaram leis, normas e tratados que regem a questão ambiental com maior força política entre os entes. Como mencionara Melucci (2001), os movimentos sociais são um sinal. Não são apenas um produto da crise, os últimos efeitos de uma sociedade que morre, mas, ao contrário, trata-se da mensagem daquilo que está nascendo, indicando uma transformação profunda na lógica e nos processos que guiam as sociedades complexas. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 203 | As dimensões ou setores atingidos permitiram criar estratégias que envolvam toda a coletividade a participar do desenvolvimento de políticas públicas que preservem o meio ambiente. Dentro de uma sistemática que tentou incutir uma renovação da consciência que transformava a cultura. Como ensinou Melucci (2001) o agir coletivo que visa a solução de uma crise pressupõe uma necessidade história. O mundo exigia práticas que o permitissem sobreviver. O simbolismo que se verifica em campanhas e nas próprias normas pertinentes é de que a responsabilidade é de cada um e de todos, igualando os atos de indivíduos em sua vida cotidiana e de grandes indústrias. O que se questiona é a transferência desta responsabilidade aos particulares ser válida, verdadeiramente legítima e eficiente, uma vez que, em contrapartida, por exemplo, aos Estados não se cobra sequer maior agilidade em criar-se infra-estrutura para a redução em proporções possíveis do uso dos derivados do petróleo. Inegável que a força dos debates que instituíram o valor econômico da água tenha advindo da força discursiva e da amplitude que se atribuiu ao assunto, após os efeitos degradantes observados no mundo. Mas foi suficiente para transformar os paradigmas e injetar nos indivíduos, efetivamente, a consciência da importância da preservação do meio ambiente, não como um discurso oportuno, mas como uma necessidade proeminente? Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 204 | Rodrigues (1990) quando trata da emergência da questão comunicacional e da nova racionalidade científica, aborda o desenvolvimento da tecnização das ciências humanas, criticando o imediatismo que evita um aprofundamento da problemática e mantém o interesse dominante, incutindo à comunidade necessidades que naturalmente não existem, como ocorreu com os debates que envolviam o meio ambiente. Admitiu-se por muitos anos a degradação do meio ambiente como meio de subsistir os meios tecnológicos para garantir as “necessidades” que se acredita à humanidade possuir. O interesse dominante põe em pauta interesse particular no campo social e o torna coletivo e público, como forma de estratégia de transferir funções e responsabilidades. No processo do conhecimento, a transição pressupõe um choque causado pelo deslocamento da atenção, como ensinam Berger e Luckmann (1987). A quebra de paradigmas onde se sustenta a prevalência do pensamento antropológico e transfere-se ao pensamento biocêntrico empreende significativo esforço para alterar a forma de pensar e agir. Neste aspecto, impossível ignorar o poder simbólico, estudado por Bourdier (1998), da divulgação positiva que invocava a preservação do meio ambiente, que invocava novas formas de agir dos homens, com informações detalhadas dos efeitos do aquecimento global, da poluição das águas, das queimadas florestais, das emissões de gás carbônicos. A própria Lei de Recursos Hídricos (Lei 9.433/1997), foi a forma de política pública implantada para instituir a cobrança do uso deste bem público como Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 205 | meio de combater o uso desmedido do recurso natural, cuja escassez até poucos anos parecia ser ilusório. Contudo, as implementações carecem de efetividade, porque sucumbidos pelo interesse econômico, tornam-se meras simbologias. A trajetória histórica da relação entre os cenários social e econômico, resultado da intensificação do mercantilismo pela descoberta de novas riquezas e novas trocas comerciais, culmina com o desenvolvimento da tecnologia que deu início à Revolução Industrial. Segundo Machado (2005), por mais de 60 anos, as políticas públicas de recursos hídricos foram dominadas pela supremacia da geração da energia e para impulsionar o desenvolvimento e a industrialização. A idéia dominante de crescimento nacional focava a atividade a fomentação do capital. Antecedeu uma trajetória de predominância do antropocentrismo, atribuído ao individualismo, que prioriza o progresso material em detrimento da degradação e em favor da dominação da natureza. Este enfoque é prevalecente até o século XX. A preocupação em relação aos recursos naturais, em especial, aos hídricos, teve início quando as conseqüências ambientais que hoje a humanidade vivencia começaram a se agravar, não obstante fosse previsível. Superada (nos discursos) a idéia do individualismo dos direitos fundamentais, hoje já se propõe um comunitarismo ambiental ou de uma comunidade com responsabilidade ambiental, que engendra a participa- Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 206 | ção ativa do cidadão na defesa e proteção do meio ambiente. Há uma tendência em distribuir atribuições, e neste aspecto não se pode deixar de ressaltar a imprescindibilidade de que o Estado ou as entidades públicas deixem de participar, até para fins de preservar o interesse de toda a coletividade. Os alertas sobre a iminente crise da disponibilidade da água, que contou com dados quantitativos importantes para análises qualitativas, inseriram-se nos debates somente a partir de 1990, especialmente em virtude da ECO 92, fortalecendo-se com a Agenda 21 adotada na Conferência do Meio Ambiente e Desenvolvimento. A própria ONU, na Assembléia Geral proclamou o período de 2005 a 2015 a “Década Internacional para a Água: a água, fonte de vida”, iniciada no dia 22 de março de 2005, fixando esta data consagrada como “Dia Mundial da Água”, segundo constata-se em Pompeu (2006). O Estado organiza-se como promotor da qualidade de vida, intervindo na iniciativa privada para assegurar o interesse coletivo, incluindo aí, a preservação do meio ambiente. No intuito de buscar medidas de contenção do desgaste dos recursos naturais, envolvendo vários atores sociais na participação, as próprias empresas foram investidas de atribuições como agente importante na implementação de políticas ambientais que amenizem os efeitos de suas próprias ações degradantes, assim como para atender objetivos específicos internos ou exigências externas. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 207 | Como ensina Souza (2003), para analisar a conjuntura “é necessário identificar os ingredientes, os atores, os interesses em jogo”. A implementação da Lei 9.433/97 que regula as Políticas Nacionais de Recursos Hídricos surgiu deste contexto que visa preservação do meio ambiente dentro de uma estrutura que permita o desenvolvimento sustentável objetivando equilibrar o desgaste ecológico com a atividade empresarial. Atualmente já há referências ao Estado Constitucional Ecológico, com base nas regulamentações sobre as formas de participação política expressa na democracia sustentada, que proporcionem desenvolvimento equilibrado com o desenvolvimento social e econômico, associado às idéias de justiça intergeracional ou direitos das futuras gerações como mencionam Ferreira e Leite (2004). A partir dos anos de 1980 com a redemocratização, e as idéias difundidas por todos os meios de comunicações das implicações ambientais, como bem ressalta Marcovitch (2006) o ambientalismo assumiu uma nova feição pública e ganhou prioridade nas políticas governamentais. Embora a questão tenha se fortalecido somente na década seguinte, ainda na década de 1980 criou-se o Ministério do Meio Ambiente e Secretarias nos altos escalões de governos estaduais e municipais. Mas o que se questiona acompanha a mesma dúvida de Marcovitch (2006): depois destas “conquistas legais e formais” que estágio se en- Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 208 | contra o país nessa questão, quando se avança na primeira década do Século XXI? Basta verificar que no plano formal, o Brasil tornou-se, um dos países mais conscientes do mundo. Mas isto foi suficiente, ou foi apenas um passo? 2.2 Da necessária transformação cultural dos atores – obstáculo às medidas de proteção ambiental A Lei não somente identifica os atores sociais envolvidos nas políticas instituídas como cria outros, tais como o Comitê de Bacias Hidrográficas. Entendam-se atores, não somente todos os usuários das águas (identificados como aqueles que a retiram do seu estado natural diretamente de sua origem), a União, Estados e Municípios, mas também os órgãos que integram o Sistema Nacional de Gerenciamento dos Recursos Hídricos, em especial os Comitês de Bacia Hidrográfica, unidade administrativa criada pela Lei. 9.433/97, que terá funções administrativas de gestão, planejamento, fiscalização e cobrança pelo uso da água. A Bacia passa a ser considerada unidade territorial de gestão. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 209 | Os comitês de Bacia Hidrográfica são compostos por membros dos mais variados setores, cujo discurso que o justifica é o de atender os interessados nos múltiplos usos da água. Machado (2005) questiona este gerenciamento colegiado que envolve atores com diferentes interesses e graus de poder. A gestão pública colegiada, integrada, descentralizada e participativa, permitiria não favorecer um ou outro interesse, mas interagir, permitindo ampla participação social (Poder Público, usuários, comunidades etc.), de forma descentralizada: Por outro lado, interesses políticos, econômicos e culturais impostas por uma parcela de atores que detém maior capacidade de dominação no seu uso e apropriação. Há a influência política e argumentativa que permite alguns participantes realizarem manobras, utilizarem astúcias, reorganizarem os meios para conduzir os recursos, resultando na barganha em argumentos de troca, para firmar pactos. Transformaria este espaço social em mais uma estratégia de finalidade econômica, afastando a preocupação preliminar quanto ao meio ambiente degradado. O envolvimento de vários indivíduos de diferentes representações pode implicar em um “empurra-empurra” de responsabilidades, motivo pelo qual Machado (2005) atenta para a necessidade de uma divisão eqüitativa de responsabilidade, envolvendo entes privados e públicos. Neste aspecto, destaca-se o comentário de Souza (2003) sobre relações de forças, quando afirma que as classes sociais, os grupos, os diferentes atores sociais estão em relação uns com os outros. Essas relações podem Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 210 | ser de confronto, de coexistência, de cooperação e estarão sempre revelando uma relação de força, de domínio, igualdade ou subordinação. Para Freitas (2000), a perspectiva da Lei n. 9.433/97é de que se considere a água como um bem inestimável, relevando-se como insumo indispensável para a produção, devendo ser tratada como recurso estratégico para o desenvolvimento econômico e como um bem cultural e social indispensável à sobrevivência e à qualidade de vida da população. Ao se adotar esta característica os mecanismos de preservação devem se estender a todos. E os envolvidos devem ter incutido uma noção moral ética clara dos princípios que a lei lhe impõe. A água como bem cultural pode ser explicada pelas determinações de Hall (1997) em suas reflexões sobre as revoluções culturais da contemporaneidade que induziram a entender como a cultura pode ser atualmente analisada sob a ascensão dos novos domínios, instituições e tecnologias associadas às indústrias culturais que transformaram as esferas tradicionais da economia, indústria, sociedade e da cultura em si: a cultura vista como uma força de mudança histórica global; a transformação cultural do cotidiano; a centralidade da cultura na formação das identidades pessoais e sociais. Vendo essa centralidade sob as dimensões epistemológicas, as ciências humanas e sociais concedem à cultura uma importância e um peso explicativo bem maior do que visto anteriormente. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 211 | A cobrança pelo uso de recursos hídricos tem como objetivos, de acordo com o artigo 2º da Lei Federal 9.433/97: reconhecer a água como bem econômico e fornecer ao usuário uma indicação de seu real valor, incentivar a racionalização do uso da água, e obter recursos financeiros para o financiamento dos programas e intervenções contemplados nos recursos hídricos. Portanto, um dos objetivos da lei é realmente disseminar uma cultura de incentivo da racionalização, ou seja, uma transformação cultural. Uma revolução conceitual de peso está ocorrendo nas ciências humanas e sociais, colocando as questões culturais numa posição mais central, ao lado dos processos econômicos, das instituições sociais e da produção de bens, riquezas e serviços. A cultura passa então a ser vista como uma condição constitutiva da vida social, ao invés de uma variável dependente, provocando uma mudança de paradigma nas ciências sociais e na humanidade. Dá-se assim à cultura um papel constitutivo e determinado na compreensão e na análise de todas as instituições e relações sociais. Portanto, considerá-la um elemento fundamental para a eficácia de políticas públicas não é exagero. Nestes 11 anos desde a criação da Lei n. 9.433/97, articulou-se muito, levantaram-se críticas na questão de políticas ambientais, mas, tal como sugere Soares (2003, p. 132) as políticas ambientais promovidas pelos governos federal, estadual e municipal, embora com abertura para a participação popular “não têm força para interferir nas decisões macro- Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 212 | econômicas do país”, e isto acarreta a notória indiferença à legislação imposta quando não se volta aos interesses da classe dominante. Para a humanidade, a perspectiva da escassez da água é fator preocupante, assumindo papel relevante no plano dos fatores sociais, políticos, éticos, econômicos e culturais que fazem sobressair qualquer modificação efetuada pelo ser humano no ambiente natural com conseqüências que interferem de maneira negativa nos eventos da natureza. Uma das maiores preocupações atualmente é a de que vários países já sofrem a escassez de água e há previsões de que mais e mais países serão assolados pela seca, cabendo aos brasileiros, mediante este quadro, praticar uma administração eficaz para regulamentação e controle do uso da água. Um dos passos mais importantes nesse sentido foi realmente a aprovação da Lei no 9.433/1997, que instituiu a Política Nacional de Recursos Hídricos e criou o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos, definindo uma série de diretrizes e instrumentos destinados a racionalizar e harmonizar os diversos usos da água, que entre outras medidas estabeleceu instrumentos de cobrança pelo uso da água. Embora haja críticas que mencionam a mercantilização do recurso natural, transformando a água em produto, é inegável que os objetivos dos ideais ecológicos não contenham vantagens ao meio ambiente e ao custo de sua conservação. Daí a importância em verificar como está sendo recepcionada esta lei pela sociedade brasileira. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 213 | Granziera (2001) já categorizou a água juridicamente como uma coisa ou um bem de valor material, valor este que impõe uma relação jurídica. A medida deste valor é localizada pela satisfação de sua necessidade. Decorre deste aspecto a probidade do direito em considerar a água como material suscetível de valor, impondo para sua utilização, restrições, seja de cunho administrativo, seja de natureza financeira, como é o caso da cobrança pelo uso dos recursos hídricos. A sociedade não está preparada a pagar pelo uso da água. E o mais grave, maior parcela não conhece sequer a própria situação. Esta reflexão foi despertada por um artigo editado em um jornal de Ponta Grossa, PR – Diário dos Campos em data de 18 de março de 2007, com o título “Você conhece a nossa água?”. O autor deste artigo – Paulo Barros é engenheiro agrônomo, diretor do Departamento de Meio Ambiente da Prefeitura de Ponta Grossa, instiga a população pontagrossense a conhecer melhor o manancial de água da cidade de Ponta Grossa, iniciando com o paradoxo de que a maioria das pessoas tem bastante conhecimento sobre o Rio Nilo e o Rio Amazonas, mas não sabem que é o Rio Pitangui e o Rio Jutubá que fornecem a água para o consumo doméstico do Município. A crítica do artigo está em que é ilusório acreditar que a população preocupa-se com a preservação dos mananciais de água, se não os conhecem. Lembra o autor que até a década de 1970, estes rios eram saudáveis, necessitando apenas de um tratamento simples para tornarem-se Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 214 | potável, enquanto, hoje, há necessidade de um tratamento complexo e usam-se mais insumos químicos para tornar a água potável. Como a sociedade pode participar de uma política voltada para a gestão dos recursos hídricos se desconhecem os rios que abastecem sua cidade. Como preservar um bem precioso, cobrando sua preservação se sequer tem conhecimento de sua existência? E o desconhecimento da população também se refere à existência de políticas públicas. Não há preocupação com o que não se conhece. Quantas pessoas conhecemos que sabe da existência de um valor econômico atribuído à água e que há mecanismos de cobrança voltadas a preservação, contenção e sustentabilidade? Notoriamente os que já pagam, nos Estados de Ceará e São Paulo já têm este conhecimento, porque a cobrança já lhes afetou. O conhecimento e a conscientização ambiental vêm da própria sociedade, dado que as decisões políticas sobre o meio ambiente tomadas hoje, vão interferir na vida das futuras gerações, e por mais que haja conscientização ambiental, mas não sejam cobradas medidas efetivas, o estrago no futuro já será irremediável. A questão se agrava à medida que a crescente população, acompanhada de novos requisitos da vida moderna e aumento da atividade econômica, faz crescer a demanda por água bruta dos mananciais. Aliado a isso, o crescimento econômico desordenado, com a ocupação não a- Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 215 | propriada do solo e o uso perdulário da água, tem contribuído para tornar a disponibilidade hídrica em certas regiões incompatível com as demandas nas suas múltiplas modalidades de uso. A titular do Ministério do Meio Ambiente Marina Silva, (apud MARCOVITCH, 2006, p. 55), no prefácio que abre o livro “Meio Ambiente do Século 21” organizado por André Trigueiro, faz um desabafo muito franco e oportuno sobre os debates internacionais, Em maio deste ano participei da reunião do Comissão de Desenvolvimento Sustentável da ONU em Nova Iorque, e voltei a ter aquela sensação que há algum tempo denominei de „falar para o espelho‟. Vi muita gente boa, bem-informada, especializada, mas revelando certo cansaço de falar e ouvir as mesmas coisas com tão pouco resultado prático. Era como se aquele conhecimento avançado e aquela linguagem especializada nos apartassem do mundo corriqueiro das pessoas. Outra sensação tem-me ocorrido: a de que estamos tomados por uma espécie de consumismo ideológico, nos alimentando dos conceitos, das idéias, como fins em si. Um acúmulo de conhecimento que acaba circulando muito pouco na sociedade. Pare- Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 216 | ce faltar tempo ou paciência para processar conceitos ainda não realizados, internalizá-los na vida. Eles são substituídos velozmente, busca-se a mais recente teoria que por sua vez será consumida, e por aí vai. Segundo Souza (2003), as ações da trama social e política se desenvolvem em determinados espaços que podem ser considerados como cenário. Considerando que o Comitê de Bacia Hidrográfica é um espaço destinado a desenvolver os projetos efetivos de prática das políticas públicas, especialmente para implantação da cobrança pelo uso da água, os conflitos, que possam gerar são importantes para a pesquisa porque demonstram os bastidores da criação e os interesses em que foram pautados. A própria omissão, por exemplo, no Estado do Paraná, que até o momento não a instituiu é objeto que poderia representar o produto dos interesses desenvolvidos. A instituição da cobrança do uso da água atingirá os usuários do recurso natural, especialmente as indústrias. Valendo-se de um planejamento neste sentido, a empresa atende sua participação em um contexto sistêmico, levando em consideração os recursos captados e os valores obtidos, de forma a moldar uma gestão ambiental suficiente e necessária Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 217 | para obter resultados pretendidos. As empresas surgem neste contexto como um dos principais atores sociais. Conciliando os avanços do capitalismo, que segundo Souza (2003) visa o uso da tecnologia, do aumento potencial da produção de bens sofisticados em escalas que atinjam a maior massa popular, com a participação das empresas na contribuição com as políticas públicas ambientais, a legislação traça mecanismos de colaboração. Além da cobrança a que as empresas usuárias da água estariam sujeitas, regulou-se o Sistema de Gerenciamento Ambiental com finalidades básicas da gestão ambiental para assegurar a economia e uso racional de matérias-primas e insumos através de orientação aos consumidores e fornecedores quanto à compatibilidade ambiental da produção e/ou novos investimentos. Como instrumento indica-se o sistema de gerenciamento ambiental (SGA) entendido como forma de buscar aproximação com o desenvolvimento sustentável, garantia de produção com redução do comprometimento da qualidade de vida futura, ajustamento às necessidades ecológicas, econômicas e sociais em um quadro compatível com a realidade. O conflito reside em impor às aspirações individuais a supremacia das coletivas. Contradições estas que podem ser evitadas se houver um pensamento sistêmico, adotando-se uma visão holística, não fragmentada. Quando se trata da questão ambiental, o discurso dos indivíduos é Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 218 | aquele politicamente correto, reforçado pela mídia que cria o simbolismo da preservação do meio ambiente como essência da sobrevivência humana. Mas a prática que infelizmente se constata, é que o interesse particular sempre prevalece em suas condutas, ou na falta delas. Todos sabemos que a água é importante e que devemos economizá-la, mas quantos realmente contêm seus gastos para reduzir o desgaste e não para conter a tarifa cobrada pela empresa de saneamento e esgoto? Como dizia Sennet (1991) a pessoa está aberta para tudo e nada rejeita a priori de sua esfera de ação, contanto que não tenha de se tornar um participante ou envolver-se numa cena. A água é um bem público, e com esta qualidade a cultura da sociedade é de que a ninguém pertence e a ninguém compete a responsabilidade de sua preservação. Ainda utilizando os debates de Sennet (1991), para quem o capitalismo, e a relação entre os homens na convivência urbana na modernidade são fatores que contribuíram para o declínio da vida pública, os sinais da subversão do que é público causa desinteresse dos indivíduos com as questões que atingem a coletividade e não a si especificamente e individualmente, enquanto seus efeitos não estão sendo sentidos por si. Um pensamento egoístico e altamente auto-destrutivo. Todos conhecem a importância da água, mas enquanto não lhes falta, não há interesse de preservar porque as gerações futuras, ou os residentes em outras regiões sofrerão ou já sofrem com a escassez. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 219 | O Estado do Paraná, embora tenha legislação própria instituindo a cobrança pelo uso da água, acompanhando a Lei Federal 9.433/97, desde 2002 tem projetos para sua implementação, como se constata no artigo de Pesch (2001), publicado no Jornal Estado do Paraná em 21 de outubro de 2001. Até o início de 2008 não houve a sua instituição. Muitos fatores contribuem para a inércia, mas é inegável que a relativa disponibilidade proporciona uma falsa impressão de que não há pressa, uma vez que na região Sul, que contém 6,5% dos recursos hídricos disponíveis no Brasil e 15% da população, como aponta Machado (2005), situação privilegiada se comparada à região sudeste que contém praticamente a mesma quantidade de água, mas 42,63% da população nacional, ou da região nordeste, que contém 3,3% dos recursos e 28,91% da população. Sennet (1991), abordando o domínio público, já dizia que o comportamento e as soluções que são impessoais não suscitam muita paixão. O que se volta à coletividade, sem maiores vantagens pessoais não instigam a atuação, principalmente quando a Lei regula, mas não impõem coercitivamente a implementação das políticas públicas prazos, sob certas penalidades nos casos de omissões. Quando falta água e luz elétrica nas residências é lembrado que os recursos naturais são finitos e de todos os discursos ambientalistas que já se ouviu até então. No entanto, pouco se faz para regenerar o meio ambiente. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 220 | Por outro lado, quantas empresas instituem o Sistema de Gerenciamento Ambiental, para conter os desgastes naturais por consciência ecológica, e não para obter benefícios, como confere a ISO 14.000? Não obstante as vantagens competitivas decorrentes da implementação da gestão ambiental, constata-se que a performance ambiental está estritamente vinculada com a melhoria da reputação das empresas, o que reflete interesse meramente pessoal e econômico. O que se questiona é o alcance de uma política descomprometida eticamente com o meio ambiente. Segundo Bourdieu (1998) é preciso mudar as maneiras de fazer o mundo, para que ele seja transformado, alterando a visão e as operações práticas pelas quais os grupos são produzidos e reproduzidos. Significa que sem a mudança da visão consciente os meios não atingem seus fins. Ainda está em ascensão o modelo de produção pós-capitalista, em que se destaca a sociedade do conhecimento e das organizações e proporciona às atividades concentradoras de capital, competitividade por meio da gestão ambiental e, ao mesmo tempo, a sua participação na melhora da qualidade de vida de todos, sob a luz de uma visão sistêmica. Em outras palavras, o que se busca superar é o tratamento focado no desenvolvimento industrial e, como se nenhuma relação tivesse a preservação do meio ambiente. A conciliação, o equilíbrio, e a sustentabili- Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 221 | dade são os desafios. A preocupação é quanto tempo mais se pode esperar. Bourdieu (1990), em sua obra “Coisas Ditas” criticava a visão microssociológica que esquece muitas outras coisas. Compara esta visão com o olhar muito de perto de uma árvore, impedindo que se veja toda a floresta, ou seja, por não se ter construído o espaço, não se tem nenhuma chance de ver de onde se está vendo o que se vê. Esta espetacular descrição não é senão uma das melhores interpretações do pensamento holístico, sistêmico e complexo necessário para se conceber o ideal ambientalista. Mais importante que conciliar desenvolvimento econômico e social com equilíbrio ambiental, é necessário a conciliação cultural do que se entende por qualidade de vida: lucro versus sobrevivência. Como já invocado por Brito (2006, p. 21), há um binômio incongruente entre meio ambiente e desenvolvimento econômico em relação aos discursos dos políticos e dos ambientalistas. “O que se vê são a superpopulação, a destruição dos habitats e do solo, além da existência de grandes áreas nas mãos de grandes produtores rurais que desmatam toda a área, deixando a terra desnuda.” Numa perspectiva econômica, a relutância em admitir a política pública da cobrança da água se instala no conflito entre custos ecológicos e benefícios econômicos, como já salientado por Leff (2000, p. 180), “nu- Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 222 | ma visão alternativa de desenvolvimento, na qual a produtividade ecológica e a tecnologia se integram no processo produtivo global – que articula os processos naturais, culturais e tecnológicos -, ambiente e desenvolvimento se conjugam e se realimentam de forma positiva”. A atuação das indústrias nas políticas públicas de recursos hídricos, não obstante possam ser realizadas sem nenhum comprometimento ético não deixa de alcançar resultados favoráveis. A lei muitas vezes é fonte de absorção de uma cultura, uma consciência. Como dizia Bourdieu (1990), as representações dos agentes variam segundo sua posição e os interesses que estão associados Além disso, menciona o hábito como sistema de esquemas de percepção e apreciação e como estruturas cognitivas e avaliatórias que eles adquirem através da experiência durável de uma posição do mundo social. O direito muitas vezes deve assumir o papel transformador. Por exemplo, com o advento do Código de Trânsito Brasileiro de 1997, a lei impôs multas significativas, inclusive para forçar que o condutor assumisse uma postura que garantisse sua própria segurança. Mesmo que fosse para sua proteção, não havia o hábito de usar cinto de segurança. A coerção legal forçou uma conduta, que hoje tornou-se um hábito, porque é comum verificar a utilização do cinto pela maioria dos condutores de automóveis. Trata-se hoje de uma ação automática que se toma assim que se adentra no veículo. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 223 | Esta é a transformação que se esperaria do indivíduo em relação ao meio ambiente. A questão é que a legislação confere maiores garantias, mas enquanto não oferece coercitividade, adere-se ao que está mais fácil, aos interesses imediatos. A legislação que regula, mas não impõe não passará de mero instrumento decorativo para conferir uma ilusória solução do problema. O papel do Estado de Direito como garantidor assume a promoção de políticas públicas que assegurem a segurança de seus cidadãos. A busca por mecanismos que previnam danos irreversíveis ou de difícil reversão ao meio ambiente, viabilizando, contudo, que não haja comprometimento das necessidades humanas, fomentou a criação de institutos desta natureza, mas não alcançou a consciência humana na amplitude que deveria. Como mencionado anteriormente, a cobrança pelo uso da água amplamente regulada por quase todos os Estados, somente tem sido cobrado por dois (Ceará e São Paulo). Os fins esperados pela Lei 9.433/97, passados 11 anos de sua publicação ainda mal saíram do papel, sucumbidos por uma cultura desinteressada na participação conjunta de uma política que busca qualidade de vida não somente no enriquecimento, mas na sustentabilidade ambiental. A responsabilidade da sociedade civil pressupõe uma contrapartida da atuação estatal, ora considerando como o impositor da ordem es- Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 224 | tratégica de conservação. O discurso de que necessitamos dos produtos da indústria, do capital é noção que controla a consciência, e, simbolicamente, nos confere a responsabilidade, como uma conseqüência pelo nosso interesse, o ônus de sermos investidores de custos de preservação do recurso hídrico. É a cultura da Sociedade de Risco, onde ser feliz é ter e consumir. No Estado do Paraná a cobrança do uso da água está regulada na Lei Estadual 12.726 que isentou o setor agropecuário paranaense de pagar pela água que retirar primariamente para o uso, beneficiando assim a agricultura extensiva. Contudo, é justamente este setor quem mais desperdiça e polui as águas. Portanto, sucumbem-se interesses econômicos, e certamente, políticos, por aquele que envolve o meio ambiente, como se não estivesse na posição de prioridades das políticas públicas. O enfoque crítico na criação desta política pública seria não somente a transferência de responsabilidades pelo interesse dominante, difundida pelas formas de comunicação, mas também a criação simbólica de uma consciência de que as conseqüências dependem da gestão privada. Há ainda a crítica na cobrança ter a oculta intenção de criar um novo mercado. O cientista social Bourdieu (1998), quando trata do espaço social e poder simbólico, menciona que se apreende a realidade social baseada na construção do pensamento do senso comum, enfatizando que são Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 225 | construções de coisas ditas, já criadas. E não somente o cientista deve agir de tal forma, mas toda a sociedade que tem interesses da própria sobrevivência. Há necessidade de desprendimento de ideologias e prenoções. Ao se deparar com a institucionalização da cobrança de um recurso que não tinha qualquer valor econômico porque disponível, o desafio é exatamente desvincular-se da noção de que se trata de uma fonte inesgotável, de um custo a ser transferido para o particular como principal degradador, de que sua institucionalização possui fins exclusivamente isentos de qualquer interesse da classe dominante. É difícil desconstruir em uma cultura de consumo, cujo desenvolvimento se mede pela acumulação, que a industrialização não é o símbolo de qualidade de vida, e a busca de seu crescimento deve ocorrer a qualquer custo. A preocupação ambiental fortalecida impõe medidas, mas ainda não é assimilada como prioridade. Kelnner (2001), abordando teorias e estudos culturais, ressaltou a importância em compreender o papel da cultura numa vasta gama de lutas sociais, tendências e desenvolvimentos em curso, bem como situações locais, nacionais e globais dos nossos dias articuladas entre si por meio dos textos da mídia, para que efetivamente se integre no conjunto de agentes transformadores. Conhecimento e a conscientização ambiental vêm da própria sociedade, dado que as decisões políticas sobre o meio ambiente tomadas hoje, vão interferir na vida das futuras gerações, e por mais que haja Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 226 | conscientização ambiental, mas não sejam cobradas medidas efetivas, o estrago no futuro já será irremediável. Não olvidando a importância da lei, o diploma por si só não tem o condão de alcançar os objetivos que se sustenta. Ou seja, a solução técnica é insuficiente, quando não se obtém uma resposta ética, com mudança de paradigmas concretizados na vida pessoal, social ou na produção de bens de consumo em relação à natureza, como já advertiram Ferreira; Leite (2004), que ainda ressaltam a necessária mudança de rota na organização econômico-industrial e político-social da sociedade, bem como a conversão das atitudes de consumo e de relacionamento com o ambiente natural e social. A obra “Ética Ambiental” de Junges (2004) traz ricas contribuições à análise da cultura como instrumento necessário à eficácia das leis ambientais. Na esteira do tema abordado o autor expõe sobre a necessária superação da concepção do ser humano como espécie dominante e separada do mundo. Trata-se de despojando-se do seu isolamento individualista e colocando-se no ponto de vista de todos, assumindo uma perspectiva holística e formas transpessoais em atitudes junto à natureza. Sirvinkas (2005), fala da necessidade de se construir uma nova base ética normativa da proteção do meio ambiente. Embora o autor mencione a possibilidade dos recursos naturais considerados coisas apropriáveis sob o ponto de vista econômico, há quem entenda que a flora, Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 227 | a fauna e a biodiversidade também são sujeitos de direitos, devendo ser protegidos pelo direito, o que é defendido pelo biocentrismo. A sobrevivência está estreitamente ligada às atitudes humanas. O Poder Legislativo pode estar fazendo sua parte, ainda que de forma corrompida, como ocorreu no Estado do Paraná em que se isentou da cobrança pelo uso da água o setor que mais degrada o recurso, mais uma vez defendendo a lógica capitalista, mas se torna inócua até que efetivamente se observe a absorção da consciência humana de que o equilíbrio depende das condições bióticas e sociais ao seu redor. 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS Os discursos ambientais disseminados pelos meios de comunicação especialmente a partir da década de 1990 promoveram na esfera jurídica, relevantes resultados no que diz respeito à regulamentação de políticas públicas que possuem o objetivo, ao menos formal, de buscar a preservação do meio ambiente. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 228 | Inegável a contribuição que a mídia e os movimentos ambientais trouxeram para toda a coletividade até porque evoluiu o pensamento ecológico e trouxe a baila os estudos que apresentavam a necessidade de adquirir uma consciência emergencial. A degradação natural e social resultou até então do pensamento desassociado entre o equilíbrio ecológico e o desenvolvimento econômico e social, subordinado a uma tendência em considerar prioridades de forma fragmentada e ignorar a existência de pensamentos sistêmicos que envolvam todas as questões que cercam a atividade humana. Porém, a conscientização que resultou em inúmeras leis, não foi suficiente porque ainda não transformou a cultura que domina as ações estatais e empresariais. Como já afirmara Souza (2006), não basta a existência de leis, o que importa é formar uma consciência ambiental, para que assim as leis possam ser efetivadas. Se esta consciência já existisse, evidente que a lei talvez fosse desnecessária. Mas a lei como fonte de formação de conduta deve ser empreendida amplamente pelos órgãos governamentais. Enquanto texto sua efetividade restará prejudicada. Reagindo a uma mentalidade predatória da natureza o homem estará colaborando consigo, deixando de confiar no mito da sobreabundância da natureza e da crença no caráter ilimitado dos recursos naturais e na sub-rogabilidade daqueles exauríveis está conservando recursos também para as próximas gerações. Mas quantos pensam nas próximas gerações? Industriais não deixam de captar água do rio sem nenhuma con- Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 229 | traprestação em abundância, sem contribuir de qualquer forma para o retorno do recurso à natureza em estado consumível somente porque daqui a quarenta anos o seu neto suportará as conseqüências. A conscientização não ultrapassa o interesse imediatista. É preciso levar em conta que a ONU já divulgou que em 2050, uma população de 40% a 50% do planeta não terá acesso à água. Atualmente, esse é número está em torno de 20%. Mas quando uma afirmativa dessas atingirá realmente os atores sociais, e aqui incluindo sociedade civil e governantes que também operam de forma a preservar o interesse do capital dominante. O consumo de água no mundo dobra a cada 20 anos, mas esse consumo é o dobro do crescimento da população no mesmo período. Há um crescimento exponencial de consumidores, quando a quantidade de água que se tem atualmente é a mesma desde que o mundo existe. Não basta que a água exista, porque necessário estar também disponível. Considerando a má distribuição deste recurso no Brasil, em relação especialmente com a população existente em cada região, as políticas públicas se tornam um mecanismo de urgente necessidade de implementação. Ou seja, sair efetivamente do papel. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 230 | O conflito ético deve superar os interesses exclusivamente políticos e econômicos. Não se pode negar que a industrialização proporcionou significativa melhora na qualidade de vida dos seres humanos, mas não pode aniquilar o próprio Planeta, sob pena de redundar em prejuízos ainda maiores. A falta de uma cultura que concilie sistematicamente o ambiente e o desenvolvimento econômico e social tem conseqüências mais irreversíveis do que a degradação causada pela própria ciência e técnica porque concebe uma falsa percepção, porque confere uma noção de que soluções estão sendo tomadas, porque as legislações estão abordando o tema. Mas as medidas que efetivamente evitariam desastrosos resultados não estão acontecendo. Como ressaltado por Junges (2004) a indústria “provocou a acentuação do dualismo ser humano e natureza, a exploração dos recursos naturais para atender às crescentes necessidades humanas, o desenvolvimento de tecnologias com o impacto sobre o ambiente”. Embora haja políticas públicas empresariais, salvo raras exceções, ações com descomprometimento ético ambiental são assumidos somente quando alguma vantagem é auferida. O custo de uma política ambiental consciente teria mais retorno pessoal que necessariamente econômico. Mas a cultura está corrompida por uma disseminação tardia dos impactos degradantes. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 231 | Ao se referir ao desenvolvimento sustentável impossível que ocorra sem a atividade industrial. Porém, como a água é instrumento essencial, o impacto causado sobre este recurso natural não pode ser ignorada, devendo ser adequada a uma política que conceba meios de preservação, com valorações calculáveis que não comprometa o patrimônio de forma insustentável. O Estado do Paraná por questões políticas e econômicas pode estar protelando a implementação da cobrança pelo uso as água. Não obstante as polêmicas críticas sobre este instituto, o que se observa é um dos grandes obstáculos realmente é a cultura disseminada, pois se ao contrário fosse, que razão justificaria o setor que mais contribui para a degradação do recurso hídrico ser isentado da referida cobrança pela Lei Estadual? Como se espera atingir os fins de assegurar à atual e às futuras gerações a necessária disponibilidade de água, em padrões de qualidade adequados aos respectivos usos; a utilização racional e integrada dos recursos hídricos, com vistas ao desenvolvimento sustentável e a prevenção e a defesa contra eventos hidrológicos críticos de origem natural ou decorrentes do uso inadequado dos recursos naturais, se o setor agropecuário, ramo predominante do Estado não participará desta política pública de efeitos tão amplos? Como afirmara Leff (2000), a qualidade de vida está entrelaçada com a do ambiente e com a satisfação das necessidades básicas, bem como com a conservação do potencial dos ecossistemas e com o apro- Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 232 | veitamento integrado dos recursos naturais e a sustentabilidade ecológica do habitat. Porém, ressalta, que esta qualidade também depende de formas inéditas de identidade, cooperação, solidariedade, participação e realização, assim como da satisfação de necessidades e aspirações mediante novos processos de trabalho. O que se espera é que a transformação cultural não demore tanto quanto demorou a ser normatizado o uso da água com vistas à sua preservação, e em tempo, possa efetivamente assegurar condições ou alguma qualidade de vida às gerações futuras como preconiza o art. 225 da Constituição Federal de 1988. REFERÊNCIAS BERGER, P. LUCHMANN, T. A construção social da realidade. 7. ed. Trad. Brasileira. Petrópolis, 1987. BOURDIEU, P. Coisas ditas. São Paulo: Brasiliense, 1990. _____. O poder simbólico. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. BRASIL Constituição da República Federativa (1988). 2.ed. São Paulo: Price Waterhouse, 2000. _____. Lei n. 9.433 de 08 de janeiro de 1997. 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Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 235 | REVISTA JURÍDICA DAS FACULDADES SECAL Normas e diretrizes para submissão de trabalhos LINHAS EDITORIAIS A Revista Jurídica das Faculdades Secal é um periódico voltado à publicação de trabalhos científicos, inéditos em língua portuguesa, enquadrados em uma das seguintes linhas editoriais: Direitos Humanos e Direitos Fundamentais A linha editorial “Direitos Humanos e Direitos Fundamentais” visa à publicação de trabalhos acadêmicos voltados à (re)orientação da prática e da teoria jurídicas para o ser humano, prestigiando sobretudo publicações que privilegiem uma abordagem humanística do jurídico. Teoria jurídica, Filosofia do Direito e metodologia da pesquisa em Direito A linha editorial “Teoria jurídica, Filosofia do Direito e metodologia da pesquisa em Direito” visa à publicação de trabalhos acadêmicos voltados à desconstrução e reconstrução de saberes e práticas do Direito e da Ciência Jurídica, a partir de uma revisão crítica de teorias, postulados e métodos da pesquisa em Direito. A revisão de teorias dominantes, a proposta de novas abordagens teóricas e metodológicas são prestigiadas. Teoria da decisão judicial, da interpretação e da argumentação jurídicas A linha editorial “Teoria da decisão judicial e da argumentação jurídica” visa publicar trabalhos acadêmicos voltados à discussão, Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 236 | problematização e revisão da teoria da decisão judicial, buscando ampliar a compreensão sobre os processos de formação da decisão dos magistrados, bem como o papel desempenhado pela argumentação jurídica neste diapasão. Abordagens voltadas à retórica, à tópica, à hermenêutica jurídica, à relação entre direito e lógica formal, à relação entre direito e as lógicas para-consistentes e assemelhadas são prestigiadas. Temas atuais do Direito Aplicado A linha editorial “temas atuais do Direito Aplicado” visa dar vazão aos artigos de cunho mais técnico ou prático, que contribuirão para com a formação dos acadêmicos no eixo prático. Todos os temas da atualidade da prática jurídica que possam contribuir para com a formação integral dos docentes e com a difusão de conhecimentos acerca dos últimos desenvolvimentos envolvendo a prática jurídica são admitidos. Em todas as linhas, o rigor científico e metodológico, assim como a interdisciplinaridade são valorizados. Trabalhos publicados no exterior são considerados inéditos para os fins das presentes regras de submissão e publicação de trabalhos. PERIODICIDADE A periodicidade da Revista é semestral. EDITORES O Editor da Revista é o Professor Mestre Luís Fernando Sgarbossa, Coordenador do Curso de Direito da Faculdade SECAL. A Professora Geziela Iensue é Editora Adjunta do periódico. CONSELHO EDITORIAL O Conselho Editorial da Revista é composto por juristas de renome nacional. Entre eles constam os seguintes: Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 237 | Professor Doutor Ivo Dantas. Livre-Docente UFPE. Livre-Docente UERJ. Doutor em Direito UFPE. Doutor em Direito UFMG. Mestre em Sociologia UFPE. Professor Titular de Direito Constitucional UFPE. (Recife-PE) Professor Doutor Alexandre Coutinho Pagliarini. Pós-Doutor em Direito pela Universidade de Lisboa (Portugal). Doutor em Direito PUCSP. Mestre em Direito PUC-SP. (Curitiba-PR) Professor Doutor Cesar Antonio Serbena. Pós-Doutor pela Universidade de Buenos Aires (Argentina). Doutor em Direito UFPR. Mestre em Direito UFPR. Professor Adjunto UFPR. (Curitiba-PR) Professor Doutor Abili Lázaro Castro de Lima. Doutor em Direito UFPR. Mestre em Direito UFPR. Professor Adjunto UFPR. (Curitiba-PR) Professor Mestre Ilton Norberto Robl Filho. Mestre em Direito UFPR. Doutorando em Direito UFPR. Coordenador de Pesquisa da Academia Brasileira de Direito Constitucional. (Curitiba-PR) Professora Mestra Geziela Iensue. Mestre em Ciências Sociais Aplicadas UEPG. Doutoranda em Direito UFPR. Coordenadora de Pesquisa, Extensão e Pós-Graduação Faculdade SECAL. (Ponta GrossaPR) Professor Mestre Luís Fernando Sgarbossa. Mestre em Direito UFPR. Doutorando em Direito UFPR. Coordenador do Curso de Direito Faculdade SECAL. (Ponta Grossa-PR) Professor Mestre Pablo Malheiros da Cunha Frota. Mestre em Direito UNIP. Doutorando em Direito UFPR. Professor da Faculdade Processus (Brasília-DF). Professor Mestre Roberto Bueno Pinto. Mestre em Filosofia do Estado e do Direito Fundação de Ensino Eurípides Soares da Rocha. Doutorando em Direito UFPR. Especialista em Direito e Ciência Política Centro de Estudios Constitucionales (Madrid, Espanha). Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 238 | PARECERISTAS AD HOC O períodico conta, ainda, com uma comissão de pareceristas ad hoc, composta por seu corpo docente, pesquisadores vinculados à Instituição de Ensino Superior e por convidados, para a apreciação de trabalhos científicos submetidos à apreciação para publicação. BLIND PEER REVIEW ou REFEERING Os artigos devem ser submetidos a apreciação do Conselho Editorial e/ou Comissão de pareceristas ad hoc sem a identificação de seus autores, de modo a caracterizar o sistema blind peer review ou revisão por pares. ENVIO DE CONTRIBUIÇÕES O envio de contribuições deve ser feito exclusivamente por via eletrônica, através do e-mail do Editor [email protected]. Ao Editor compete verificar a aderência da produção científica às linhas editoriais do períodico e o cumprimento dos demais requisitos e exigências e, após, encaminhar a algum dos membros do Conselho Editorial ou da Comissão de Pareceristas ad hoc para parecer quanto à forma e conteúdo. Na submissão do trabalho para parecer, incumbe ao Editor preservar o anonimato do(s) autor(es) do trabalho submetido a parecer, bem como observar a exigência de titulação igual ou superior do parecerista relativamente ao autor do trabalho em exame, e ainda, tanto quanto possível, a adequação da área do conhecimento do trabalho para com a área de atuação do Conselheiro ou Parecerista. ESPÉCIES DE CONTRIBUIÇÕES São aceitos para apreciação e eventual publicação trabalhos científicos que se enquadrem como artigos, resenhas ou comentários jurisprudenciais. REGRAS GERAIS ESPÉCIES DE PARECERES Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 239 | O parecer exarado pelo Conselheiro Editorial ou parecerista ad hoc opinará pela publicação, pura e simplesmente, em caso de trabalho cuja análise de substância e de forma assim o aconselhe. Em caso de inadequação sanável da substância do trabalho, o parecer exarado deverá ser no sentido da publicação condicionada às alterações indicadas, hipótese na qual a efetiva aceitação para publicação ficará condicionada à efetivação das alterações precisamente indicadas pelo parecerista. Por fim, em caso de inadequação insanável do trabalho, o parecer exarado deverá ser no sentido da não publicação, simplesmente, da contribuição. Da decisão pela publicação, publicação condicionada à realização de alterações ou não publicação não caberá qualquer recurso. DIREITOS, OBRIGAÇÕES E RESPONSABILIDADES DOS AUTORES A Revista não remunera pela publicação de trabalhos científicos. Os autores farão jus a dois (02) exemplares da versão impressa em que seu trabalho eventualmente for publicado, ou cópia do arquivo contendo a versão eletrônica, juntamente com declaração de publicação. A publicação do trabalho, mesmo aprovada pelo Conselho Editorial ou Comissão de Pareceristas, fica condicionada à recepção, pelo Editor, de autorização de publicação firmada pelo autor ou, em caso de obras coletivas, por todos os autores. Deverá(ão) o(s) autor(es) enviar, ainda, declaração de autoria e de que a obra é inédita, assumindo total responsabilidade civil e penal pelas afirmações. Do mesmo modo, os conceitos e opiniões emitidos pelos autores são de sua inteira responsabilidade, não representanto a opinião da Revista e nem da Faculdade Santa Amélia. REVISÃO Todos os trabalhos submetidos à apreciação para publicação na Revista estarão sujeitos a revisão quanto a aspectos formais, como revisão ortográfica e gramatical, e a formatação e editoração com vistas à harmonização dos textos ao padrão da Revista. As intervenções referidas não implicarão em alteração substancial do trabalho, respeitando-se os direitos de autor. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 240 | DEVOLUÇÃO DE ORIGINAIS A Revista não devolve os originais, sejam eles publicados ou não, ficando os mesmos arquivados. NORMAS PARA A SUBMISSÃO DE ARTIGOS Extensão: Os artigos enviados para apreciação devem contar com extensão entre 10 e 30 laudas. Excepcionalmente, a critério do Editor, poderão ser submetidos a avaliação trabalhos que excedam 30 laudas. Folha de rosto O artigo deve ser antecedido de folha de rosto na qual conste a identificação, titulação e vínculo institucional do(s) autor(es), bem como o título completo da produção. Este deve ser o único local em que o(s) autor(es) do artigo é(são) identificado(s). No texto do artigo não deve aparecer menção do nome do autor em tal condição. Formatação O original deve ser elaborado em arquivo do Microsoft Word, versão 97/2003 ou compatível, tamanho do papel A-4, com margens superior e esquerda de três centrímetros (3 cm) e com margem inferior e direito de dois centímetros (2 cm). Título e subtítulo O título do artigo deve ser objetivo e claro, permitindo a identificação do objeto do artigo de maneira fácil e clara. A eles deve seguir-se sua tradução para a língua inglesa e/ou espanhola. Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 241 | Resumo/abstract Após o título e o subtítulo em português e em inglês, deve seguir-se um resumo e sua versão para a língua inglesa (abstract) ou espanhola (resumen), com não mais do que duzentas (200) palavras, constituída de frases curtas e objetivas. Palavras-chave / key-words Após o resumo e o abstract devem seguir as palavras chave em língua portuguesa, no número mínimo de três (03) e máximo de cinco (05). As palavras chave devem traduzir os pontos essenciais do tema abordado no artigo. O resumo deve ser seguido por sua versão para a língua inglesa (keywords) ou espanhola (palavras clave), observando os mesmos critérios (mínimo três, máximo cinco). Títulos das seções e numeração A fonte utilizada deve ser Times New Roman, tamanho 12, em negrito apenas. Deve o autor numerar as sessões em algarismos arábicos (1, 2, 3, e assim sucessivamente). As subseções deverão ser subdivididas em subitens também indicados por algarismos arábicos. Exemplificativamente, as seções primárias receberão a numeração 1, 2, 3, e assim sucessivamente. As seções secundárias, a numeração 1.1.; 1.2.; 1.3.; 2.1.; 2.2.; 2.3.; 3.1.; 3.2.; 3.3.; e assim sucessivamente. As seções terciárias, a numeração 1.1.1; 1.1.2; 1.1.3.; 2.1.1.; 2.1.2.; 2.1.3; 3.1.1.; 3.1.2.; 3.1.3.; e assim sucessivamente. Formatação do corpo de texto Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 242 | O corpo do texto do artigo deverá ser elaborado em fonte Times New Roman, tamanho 12, com espaço entre-linhas 1,5 e com recuo, na primeira linha de cada parágrafo, de 1,25 cm. Citações As citações devem ter sua notação de acordo com o sistema autor-data (Norma ABNT NBR 10520), sendo que as referências bibliográficas completas devem ser deixadas para o final do artigo. Citações diretas de até três (03) linhas devem encontrar-se no texto do parágrafo, sem redução da fonte, entre aspas. Citações diretas de mais de três (03) linhas devem ser destacadas do texto do parágrafo por uma linha de espaço antes e após. Devem ser grafadas sem aspas, com fonte Times New Roman tamanho 10, e espaçamento interlinear simples. Todo o texto da citação deve ser recuado da margem esquerda em 1,25cm. Formatação do texto das notas de fim Notas explicativas devem ser feitas como notas de fim, e não como notas de rodapé. A numeração das mesmas deve ser arábica, e a fonte Times New Roman 10, com espaçamento interlinear simples. Referências bibliográficas A lista de referências bibliográficas, ao final do artigo, deve ser elaborada com observância do disposto na norma pertinente da Associação Brasileira de Normas Técnicas – ABNT, a saber, a norma NBR 6023. NORMAS ESPECÍFICAS PARA A SUBMISSÃO DE RESENHAS A publicação de resenhas de obras jurídicas ou vinculadas à área das Ciências Sociais Aplicadas ou mesmo das Ciências Humanas interessa à Revista. A Resenha é aqui compreendida como uma análise crítica de uma obra, compreendendo, portanto, além de um resumo, uma contribuição pessoal do autor. A submissão de resenhas para a apreciação do Conselho Editorial ou da Comissão de Pareceristas seguirá as seguintes diretrizes: Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 243 | 1.1. Extensão: As resenhas enviadas para apreciação devem contar com extensão mínima de duas (02) e máxima de três (03) laudas. 1.2. Folha de rosto A resenha deve ser antecedida de folha de rosto na qual conste a identificação, titulação e vínculo institucional do(s) autor(es), bem como o título completo da produção. Este deve ser o único local em que o(s) autor(es) do artigo é(são) identificado(s). No texto da resenha não deve aparecer menção do nome do autor em tal condição. 1.3. Formatação O original deve ser elaborado em arquivo do Microsoft Word, versão 97/2003 ou compatível, tamanho do papel A-4, com margens superior e esquerda de três centrímetros (3 cm) e com margem inferior e direito de dois centímetros (2 cm). 1.4. Título e subtítulo O título do artigo deve ser objetivo e claro, permitindo a identificação da obra objeto da resenha de maneira fácil e clara. A eles deve seguir-se a referência completa da obra resenhada, de acordo com a normalização da ABNT NBR 6023. 1.5. Formatação do corpo de texto O corpo do texto do artigo deverá ser elaborado em fonte Times New Roman, tamanho 12, com espaço entrelinhas 1,5 e com recuo, na primeira linha de cada parágrafo, de 1,25 cm. Estruturação da resenha A estruturação da resenha deve compreender o resumo ou conhecimento sintético da obra resenhada, as conclusões do autor da Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011 | 244 | obra resenhada, e a apreciação crítica do autor da resenha sobre a obra resenhada. NORMAS PARA JURISPRUDENCIAIS A SUBMISSÃO DE COMENTÁRIOS Os comentários jurisprudenciais devem seguir, naquilo que for pertinente, as regras para submissão de artigos, além das regras gerais estabelecidas precedentemente.
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