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Revista Jurídica das Faculdades Secal – Ponta Grossa – v. 1 – n. 1. jan./jun. 2011
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A CONTRIBUIÇÃO DA ANTROPOLOGIA
PARA O CONHECIMENTO JURÍDICO
(PEQUENO GUIA RUMO A NOVOS ITINERÁRIOS).
The Contribution of Anthropology to the Legal Knowledge
(a litlle guide towards new itineraries) 1
Elisabetta Grande2
RESUMO
O presente artigo tem uma dupla finalidade. Em primeiro lugar, visa
traçar
as
grandes
linhas
do
pensamento
jus-antropológico
desenvolvido após o chamado realismo jurídico, com a finalidade
de evidenciar os nexos que vinculam dois debates: aquele sobre a
natureza do direito ocidental produzido pelo Estado e aquele acerca
do direito diverso deste. O trabalho, em segundo lugar, objetiva dar
um passo adiante na utilização da abordagem antropológica do
direito ocidental. Pretendemos sublinhar exatamente qual tipo de
investigação pode iluminar os aspects ocultos das dinâmicas que
1
Artigo traduzido do italiano pelos Professores Luís Fernando Sgarbossa e Geziela Iensue. Artigo originalmente publicado na Rivista Critica del Diritto Privato, Napoli, Jovene Editore, ano XIV, n. 3, setembro/1993, pp. 465 a 501. Agradece-se à autora pela gentil cessão graciosa dos direitos autorais para a
língua portuguesa para esta revista.
2
Professora da Universidade degli Studi de Piemonte Oriental Amedeo Avogadro, Alessandria, Itália.
Autora de inúmeros livros e aritigos jurídicos.
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estão no cerne da operação diária dos sistemas pertencentes à
denominada western legal tradition. A Antropologia jurídica, dessa
forma, colocaria seus instrumentos a serviço do conhecimento do
direito, sem limitar-se a nenhuma de suas epifanias territoriais.
ABSTRACT
This article is twofold. Firstly, it aims to outline the main lines of
thought jus-anthropological developed after the so-called legal realism, with the aim of highlighting the links which bind two debates:
one about the nature of Western law and that the state produced
about the right of this diverse . The work, secondly, it aims to take a
step forward in the use of the anthropological approach of Western
law. We intend to emphasize exactly what kind of research can illuminate the hidden Aspects of the dynamics that are central to the
daily operation of the systems being in the western legal tradition.
Legal Anthropology thus put their instruments in the service of
knowledge of law, not limited to any of its territorial epiphanies.
PALAVRAS-CHAVE:
Antropologia.
Historia.
Conhecimento
jurídico.
KEYWORDS: Anthropology. History. Legal knowledge.
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1. Relações de parentesco e relações de poder e entre poderes, solução dos conflitos: eis alguns temas caros ao jurista, mas simultaneamente caros para o antropólogo; eis, portanto, os temas que constituem o objeto de estudo precípuo do antropólogo do direito.
Esta figura de estudioso, cuja disciplina ainda permanece quase
que completamente desconhecida na Itália 3, concentra tradicionalmente
sua atenção sobre o conflito e sobre os variados modos de solução do
mesmo nas mais variadas sociedades e culturas. A Antropologia jurídica
nasce, realmente, como sub-disciplina da Antropologia social e cultural a
partir do momento no qual coloca a si mesma a estranha pergunta acerca
da existência de regras qualificáveis como jurídicas – e, portanto, da existência do direito – nas sociedades sem escrita e acéfalas, isto é, sem um
poder político centralizado. Definições sobre a regra jurídica – como as
elaboradas por A. R. Radcliffe-Brown4 – em termos de norma cuja observância é garantida pela aplicação de uma sanção por parte de um poder
politicamente organizado que dispõe da força, aliadas ao rígido positivismo
que imperava na Europa continental havia levado à identificação de todo o
direito com um código escrito e, no mundo do common law, à aplicação
3
As estatíticas fornecidas pela A.F.A.D., Associatin Française d‟Anthropologi du Droit evidenciam que o
ensino da Antropologia Jurídica na Itália conta com apenas um curso, e ainda assim não-permanente,
em contraste com o notável número de cursos da disciplina na França e nos Estados Unidos. Veja-se o
relatório de 10.10.1994, redigido pelo Presidente da A.F.A.D., Prof. Norbert Rouland. Entre as obras de
síntese da Antropologia Jurídica em língua italiana indicam-se: F. Remotti, Temi di antropologia giuridica, Turim, 1982; G. Mondarini Morelli, Norme e controllo sociale. Introduzione antropologica allo studio
delle norme, Sassari, 1980; R. Motta, Vecchie e nuove teorie del diritto primitivo, Alexandria, 1991; N.
Rouland, Antropologia Giuridica, em Juristas estrangeiros da atualidade, coleção organizada por C.
Mazzoni e V. Varanno, tradução italiana de R. Aluffi Beck-Peccoz, com apresentação de P. G. Monateri, Milão, 1992.
4
A. R. Radcliffe-Brown, verbete Sanction, Social, in: Encyclopedia of Social Sciences, vol.. XIII, Londres, 1934, especialmente p. 533.
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férrea da regra da stare decisis em sua concepção clássica, estabelecem
nos juristas e antropólogos do início do Século XX a convicção de que, nas
sociedades de estrutura elementar, carentes uma autoridade central, de
códigos, de cortes oficiais e de polícia, não possa existir qualquer forma de
direito.
Já a partir de 19625 Bronislaw Malinowski havia “indicado uma ruptura com os velhos métodos especulativos utilizando a observação etnográfica de campo para derrubar os mitos amplamente difundidos sobre o
direito e sobre a ordem social nas sociedades ágrafas”6. Isso nada menos
do que no período em que, quando no final dos anos trinta, o jovem Hoebel
comunicou aos reconhecidos mestres da Antropologia, Ruth Benedict e
Franz Boas, sua intenção de analisar o direito junto aos Cheyenne de Montana, ouvira questões sobre que tipo de direito se teria podido estudar junto
a um povo carente não somente de uma estrutura política organizada de
maneira centralizada, bem como de polícia e de cortes permanentes, mas
carente até mesmo de juristas profissionais e de escrita. A sociedade cheyenne apresentava-se como a clássica sociedade sem legislador, sem jurista e sem Estado7, ótimo terrenoi de prova para quem, como Edward
Adamsom Hoebel e Karl Nikcerson Llewellyn, buscasse descobrir se era
possível a existência de um direito não verbalizado. Como fazer, portanto,
5
Ano no qual, como é sabido, o antropólogo escreveu Crime and Custom in Savage Society (publicado
em Londres pela Routledge and Kegan Paul).
6
Nesse sentido, L. Nader, verbete Diritto e Società, 2. Antropologia Giuridica, na Enciclopedia Treccani
delle Scienze Sociali, Roma, 1993, p. 134.
7
Acerca das quais remete-se a Rodolfo Sacco, Modelli notevoli di società, I Cardozo Lectures in Law,
org. de P. G. Monateri e U. Mattei, Cedam, 1991; Id., Le grandi epoche del diritto, em Non solo Occidente, coleção sob a organização de M. Guadagni e U. Mattei, Turim, 199; Id., Il diritto mutto, nos Studi
in memoria di Gino Gorla, Milão, 1994, tomo I, pp. 681 e ss.
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para desvelar a existência de um direito entre os Cheyennes? A colaboração de Karl Llewellyn ao projeto de Edward Adamson Hoebel fora determinante neste ponto.
O então já célebre Betts, Professor of Jurisprudence na Columbia
Universtity Law School, expoente de ponta do realismo jurídico norteamericano – que havia, anteriormente, seguido o jovem antropólogo, afiliado, por sua vez, à escola funcionalista, na tese de doutoramento entre os
índios Comanches8– tinha pronta a resposta que sua escola de pensamento lhe entregara. Como Oliver Wendell Holmes lhe havia ensinado, em sua
época, “a vida do direito não é a lógica, mas a experiência” 9. A ausência de
uma law in the books não incidia, portanto, para Llewellyn, sobre a possibilidade real de estudar as regras jurídicas presentes em uma sociedade;
que era sobretudo a law in action. Ademais, cerca de quinze anos antes, já
Malinowski, mestre espiritual de Hoebel, ao descrever a vida e os costumes das populações das Ilhas Trobriand da Melanésia10, havia esclarecido
que o direito coincidia mais com a prática do que com a normas verbalizadas. E onde seria localizada a experiência do direito senão nas controvérsias e nas maneiras através dos quais as mesmas eram resolvidas? O
conflito e sua solução tornaram-se de tal forma centrais no estudo do direito junto aos Cheyenne e, mesmo que outros antropólogos antes de Hoebel
e Llewellyn tivessem estudado as controvérsias e sua solução nas socie-
8
Em seguida (1940) publicada sob o título de The Political Organization and Law-Ways of the Comanche Indians, Menasha, Wisconsin, sob os auspícios da American Anthropological Association.
9
O. W. Holmes Jr., The Common Law, Cambridge, Mass., 1881.
10
B. Malinowski, Crime and Custom in Savage Society cit.
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dades tradicionais 11, o método casuístico – chamado “case method approach” –, que dali em diante dominou a cena entre os antropólogos do direito, foi sempre atribuído aos dois autores de The Cheyenne Way: Conflict
and Case Law in Primitive Jurisprudence12.
O direito revela-se, para Hoebel e Llewellyn, no momento da lide e
de sua composição e, para além da qualificação da norma que acaba por
ser aplicada como jurídica ou não, ou das instituições estabelecidas para
dirimí-la, a controvérsia emerge como unidade de análise, presente em todas as sociedades e, por isso mesmo, instrumento idôneo de comparação.
O exame dos litígios resolvidos publicamente permite aos dois pesquisadores descobrir quais são as consequências jurídicas do homicídio, assim
como as normas que regem o matrimônio, o adultério, a propriedade e as
sucessões hereditárias entre os Cheyenne de Montana.
Após o estudo de Hoebel e Llewellyn a questão se as sociedades
sem escrita, sem cortes, sem juristas, sem legisladores e sem poder centralizado pudessem ter um direito foi definitivamente respondida em sentido positivo e, com ela, foram afastados em larga medida também as tentativas de dar uma definição restritiva do conceito de norma jurídica e de direito... Uma definição, em relidade, simultaneamente inclui e exclui. Demarca um âmbito; insere algo no interior desse âmbito e exclui algo mais: e
a exclusão é quase sempre arbitrária. Eu não tenho a pretensão de excluir
11
Ver, p. ex., J. Richardson, Law and Status Among The Kiowa Indians, Nova Iorque, 1940; R. F. Barton, Infugao Law, in: Univestity of California Publications in American Archaeology and Ethnology, 1919,
XV, 1, pp. 1-186.
12
Publicado pela Oklahoma University Press em 1941 e republicado em 1992 na coletânea The Legal
Classics Library por Gryphon Editions.
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nada do âmbito jurídico”. Em certo sentido o direito é tão amplo quanto a
própria vida, afirmava Llewellyn13. No rastro desses autores, os jusantropólogos tendem atualmente a identificar o direito com a noção ampla
que lhe conferia Malinowski, como sistema de controle social 14. O terreno
estéril das definições parece, desse modo, abandonado15.
2. a) Após o estudo da sociedade Cheyenne, o conflito e sua solução constituíram durante muito tempo o paradigma de referência dos estudos de antropologia jurídica. A controvérsia passa a ser estudada em sua
complexidade.
13
Ver o relato de W. Twining, Karl Llewellyn and The Realist Movement, Londres, 1973, p. 571.
Veja-se, por todos, L. Nader, verbete citado, passim, especialmente pp. 136-137: “Em outras palavras, o estudo antropológico do direito não conhece limites pré-concebidos, e coloca em discussão,
ainda, as ideias ou os conceitos pré-constituídos relativos ao direito.”
15
Acerca das conceituações resta presa ainda apenas uma pequena parte da antropologia, a de língua
francesa. Em testemunho das preocupações dogmáticas, não compartilhadas com a antropologia jurídica norte-americana, típica dos antropólogos do direito franceses, estão as tentativas de definir o objeto de investigação da disciplina através de distinções terminológicas entre etnografia, etnologia e antropologia jurídica. Veja-se N. Rouland, Antropologia giuridica cit., pp. 120 e ss. É sobre preocupações
de ordem conceitual que se funda, ainda, a rejeição recente do conceito de pluralismo jurídico por uma
parte da antropologia jurídica, sobretudo a francesa, que distingue entre pluralismo “jurídico” e pluralismo “normativo”, atribuindo ao segundo termo um conteúdo mais amplo, compreensivo das normas
“implícitas” e “inferenciais”, “de elaboração interacional e não institucional”. Neste sentido, R. A.
MacDonald, Pour la reconnaissance d‟une normativité implicite et „inférentielle‟, in : Sociologie et
Sociétés, XVIII, 1, abril 1986, pp. 47 e ss. ; G. Roscher, Pour une sociologie des ordres juridiques, in :
Les Cahiers de droit, 29, 1, 1988 ; A. Lajoie, Analyse du language et internormativité dans un territoire
autochtone ; Kahnawake, Centre de Droit Public, Université de Montréal, 1993, citados por R. Motta,
Intorno ai concetti giuridici e antropologici. Occidente e altri « blochi culturali » a confronto, in : Materiali
per una storia della cultura giuridica, 1995, p. 434. O recurso a tais distinções evidencia, em realidade,
as dificuldades em aceitar uma definição de direito desvinculada de confins pré-concebidos, pelo que
existiriam normas jurídicas propriamente ditas (aquelas não mais implícitas, inferenciais e interacionais)
e normas jurídicas “menos jurídicas”, apenas e somente “normativas”. Ver R. Motta, op. cit., especialmente p. 431. Para uma crítica ao conceito de pluralismo baseado em pressupostos de caráter definitório, ver ainda J. Carbonnier, Sociologie Juridique, A. Colin, Paris, especialmente pp. 150 e ss., bem
como as observações a respeito feitas por N. Rouland, op. cit., p. 85.
14
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O método etnográfico, ilustrado por Malinowski no primeiro capítulo
dos Argonautas do Pacífico16, levou os antropólogos a confrontar-se com
realidades caracterizadas por modos de solução de controvérsias bastante
diversos entre si. A classificação respectiva variou de acordo com o ponto
de observação adotado.
A distinção baseada na intervenção de um terceiro (ou sua ausência) na resolução do litígio contrapõe a negociação entre as partes – a denominada solução diádica – à mediação, à arbitragem e à decisão jurisdicional reclamada perante órgãos públicos – a denominada solução triádica.
Uma classificação diversa, fundada desta feita na existência de terceiro
que atue como decision maker, contrapõe, ao contrário, a tratativa – ou
negociação entre as partes – e a mediação à arbitragem e à decisão por
parte de órgãos judiciários 17. Nas duas primeiras hipóteses, de fato, a decisão da controvérsia compete às partes que, no caso da mediação solicitam
a um terceiro tão-somente a tarefa de propor uma solução: o mediador estimula as partes a resolver o litígio, não decidindo por elas. Diversamente
estão as coisas relativamente à arbitragem, no qual o árbitro é escolhido
pela parte com a finalidade de decidir por ela. Neste último caso, assim
como na hipótese de uma solução requerida a um órgão público, o decision maker é um terceiro. Naturalmente, como nos faz perceber Peter Stein,
16
Argonauts of the Western Pacific, 1922, republicado em 1984 pela Waveland Press.
A elaboração da distinção entre negociação e decisão judicial com base na presença ou ausência de
um third-part decision-maker deve-se sobretudo a Philip Gulliver. Em seu trabalho clássico Disputes
and Negotiations – Cross-Cultural Perspective, Nova Iorque, 1979, o autor busca demonstrar, através
de uma comparação entre as negociações dirigidas a solucionar as controvérsias trabalhistas no sistema norte-americano e o modo de solução dos litígios junto ao povo agricultor dos Arusha da Tanzânia, o modo como as tratativas entre as partes encontrem uma mesma estrutura em todos os lugares,
seguindo trajetórias e fases análogas em todas as sociedades, independentemente do objeto da disputa.
17
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“abstratamente, é nítida a distinção entre o mediador, que auxilia as partes
a chegar a um acordo, e o árbitro que, a pedido delas, decide em lugar das
mesmas. Na prática, frequentemente é difícil distinguir ambas as figuras, e
por vezes os antropólogos utilizaram os dois termos indiferentemente. Em
ambos os casos, os litigantes devem aceitar voluntariamente a decisão para que ela tenha eficácia. Ela não pode, como ocorre com a sentença das
cortes regulares, ser imposta às partes contra a sua vontade. Muitas vezes
pode não ser realmente claro se trata-se de uma decisão das partes que o
mediator conseguiu obter delas ou de uma decisão do árbitro” 18. Convém
observar como ambas as classificações mencionadas não levam em consideração os comportamentos unilaterais, ou seja, as formas de autotutela.
Em uma ótica diversa, os modos de solução das controvérsias podem ser distintos por serem formais ou informais: em tal perspectiva, a
contraposição vê, de um lado, a decisão jurisdicional, e, de outro, as formas de solução tradicionais, vale dizer, a arbitragem, a mediação, a trataria e a autotutela.
b) Independentemente da perspectiva adotada, as diversas formas
de solução de controvérsias foram vinculadas com as diversas formas políticas e econômicas características das diversas sociedades estudadas.
18
Neste sentido, P. Stein, I fondamenti del diritto europeo. Profili sostanziali e processuali
dell‟evoluzione dei sistemi giuridici, in Giuristi stranieri di oggi, coleção organizada por C. Mazzoni e V.
Varanno, apresentação de A. De Vita, M. D. Panforti e V. Varanno, Milão, 1987, p. 6.
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As sociedades acéfalas, sem organização estatal, revelaram-se dotadas de mecanismos capazes de assegurar a ordem social e de resolver
as disputas de modo completamente análogo ao que ocorre nas sociedades de poder centralizado por força das leis e de sua aplicação por parte
de tribunais. Isso confirma o dado de que a ordem não se atinge necessariamente através da presença de uma autoridade central que faça uso da
força e, para isso, valha-se da lei escrita, dos tribunais e da polícia.
Por muito tempo os etnógrafos buscaram relacionar o desenvolvimento econômico com as formas de solução de conflito, em uma perspectiva tipicamente evolucionista. Fora observado, assim, que para as sociedades de caçadores-coletores a obtenção de um acordo entre as partes
em conflito não era indispensável, diferentemente do que ocorria nas sociedades agrícolas, nas quais a sedentarização tornava crucial o caráter pacífico do convívio. A violência e a autotutela conviviam assim muito melhor
nas sociedades da primeira espécie do que nas da segunda 19. O aumento
da complexidade dos meios de produção foi conectado com a modificação
dos modos de solução das controvérsias com o objetivo de sustentar que
ao desenvolvimento econômico da sociedade faria contraponto uma sucessão das formas de resolução das controvérsias que veria em seu primeiro grau a autotutela e a negociação entre as partes e, após, em ordem
sequencial, a mediação, a arbitragem e, afinal, a decisão jurisdicional 20.
19
V. P. Gulliver, Nomadic Movements: Causes and Implications, in: Pastorialism in Tropical Africa,T.
Monad (org.), Londres, 1975, pp. 369 e ss.; E. Colson, Social Control and Vengeance in Plateau Tonga
Society, in: Africa, 23 (3), 1953, pp. 199 e ss.; M. Gluckmann, Custom and Conflict in Africa, Oxford,
1955.
20
L. T. Hobhouse, G. C. Wheeler, M. Ginsberg, The Material Culture and Social Institutions of the Simpler Peoples, Londres, 1930.
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Nessa ótica, a presença do órgão público jurisdicional seria típico das sociedades mais evoluídas, ao passo que as mais simples revelar-se-iam carentes até mesmo do instrumento da mediação21. A filosofia evolucionista
subjacente desenvolveu-se a ponto de considerar cada grau da escala indicada como pressuposto necessário para a passagem à fase econômicojurídica seguinte22. Somente a comparação transculturam pode refutar a
exatidão de teorias semelhantes. Sociedades de caçadores-coletores
comparadas revelaram utilizar formas diversas de solução das disputas: os
Innuit, estudados por Hoebel, privilegiavam a violência e a autotutela, contrariamente do que se verificava junto a alguns povos que habitavam o deserto do Kalahari23, que resolviam pacificamente as próprias controvérsias24. Observou-se como sociedade economicamente mais simples faziam
uso de instrumentos de solução de conflito situados em um grau mais elevado em comparação a sociedades economicamente mais complexas, e
como sociedades situadas no mesmo grau de desenvolvimento econômico
utilizassem diferentes mecanismos de solução de controvérsias. Sociedades industriais “altamente civilizadas”, aí compreendida a sociedade internacional, ademais, tendem hoje a migrar de um modelo conflituoso e juris-
21
E. A. Hoebel, The Law of Primitive Man, Cambridge, Mass., 1954.
Remete-se a R. D. Schwartz, J. C. Miller, Legal Evolution and Societal Complexity, in: American
Journal of Sociology, 70 (2), 1964, pp. 159 e ss.
23
W. Ury, Disputes Resolution Notes form The Kalahari, in: Negotiation Journal, 6 (3), 1990, pp. 229 e
ss.
24
Sobre questão ainda recente veja-se L. Nader, VI Cardozo Lectures in Law, P. G. Monateri e U. Mattei (orgs.), sob o título Antropological Projects: Law in motion, ocorrido em Trento, dias 26 e 27 de maio
de 1996, no prelo por Harmattan-Italia.
22
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dicional de solução do conflito para um modelo de tipo conciliatório e informal25.
c) É exatamente o perfil do caráter conciliatório mais do que conflitual do modo de solução da controvérsia, de outro lado, propiciou um certo
número de informações. A passagem dos modos informais de resolução
do conflito – negociação, mediação e arbitragem – à solução de tipo jurisdicional coincide, nas observações dos antropólogos do direito, com o progressivo declínio do caráter conciliatório da composição do litígio. Isso é
tanto mais verdadeiro quanto mais o órgão decisório público for expressão
de uma verdadeira autoridade estatal, que pode dispor da força para convocar diante de si os litigantes e para fazer executar as próprias decisões26.
O procedimento informal visa à obtenção de um compromisso aceitável para ambas as partes, na medida em que a ameaça da retorsão em
caso de ausência de acordo opera para os contendores como um incentivo
à renúncia de parte das próprias pretensões. Em um contexto análogo, a
solução final dependerá não apenas da aplicação das regras jurídicas ao
caso, mas também ao peso do status, da força política e das relações interpessoais entre as partes. Nesse contexto, ademais, o direito não será
25
L. Nader, Civilization and Its Negotiations, in: Understanding Disputes, The Politics of Argument, P.
Caplan (org.), Oxford-Providence, 1995, pp. 39 e ss.
26
É evidente que o binômio modelo conflitual/modelo conciliatório não é coincidente com o binômio resolução formal judicial/resolução informal das disputas, todas as vezes em que, restando em aberto a
via da autotutela, as partes optem por esta alternativa.
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objeto de uma aplicação estrita (o que, todavia, não é feito às custas da
certeza, como demonstram Hoebel e Llewellyn) 27 e o âmbito da controvérsia não terá contornos predeterminados, podendo as partes incluir nele
mais de uma questão. A organização judicial estatal modifica sobretudo o
aspecto conciliatório do modo de solução do litígio. Como nos chama a
atenção ainda o mesmo Peter Stein, de fato, “uma corte instituída por uma
autoridade central, que tem atrás de si o peso da comunidade, não tem o
dever de reconciliar as partes. Em maior ou menor grau, pode impor a elas
sua decisão, aplicando-a coativamente, quer elas a aceitem, quer não”28. A
decisão judicial pode, assim, dar razão total a um dos dois litigantes, sem
dever, ao menos de maneira aparente, levar em consideração fatores diversos daqueles estritamente jurídicos, que tornem a solução tomada aceitável do ponto de vista da parte vencida. A norma jurídica, que doravante
tende a ser enunciada abstratamente, antes do surgimento da controvérsia, recebe portanto uma aplicação necessariamente mais rígida, enquanto
a disputa ostentará confins pré-estabelecidos dos quais a corte não poderá
afastar-se na decisão da causa. Estaremos, assim, muito próximos daquele modelo que será definido como o clássico legal process, com suas características de verbalização de um complexo de normas conhecidas e
27
“Embora não houvesse juristas profissinais junto aos Cheyenne e raramente as regras jurídicas fossem enunciadas com precisão, os juízes Cheyenne eram capazes de aplicar seu sistema jurídico nãoescrito com sabedoria e segurança dignas dos maiores magistrados da tradição euro-americana”, explica-nos Laura Nader, na introdução à mais recente edição do trabalho de Hoebel e Llewellyn (Derlan,
N. J., 1992).
28
P. Stein, op. cit., p. 16.
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precisas, que encontram aplicação geral em juízos que separam os fatos
relevantes para a causa daqueles irrelevantes29.
Exemplifica tal estado de coisas uma comparação entre o modo de
resolução dos litígios entre os povos estudados por Philip Gulliver, Paul
Bohannan e Elisabeth Colson, ou seja, respectivamente, os Ndendeuli do
sul da Tanzânia, os Tiv da Nigéria setentrional, e os Gwembe Tonga, população da planície nos limites entre a Zâmbia e o Zimbabue.
Entre os Ndendeuli do sul da Tanzânia chega-se à solução das
controvérsias através da negociação entre grupos opostos, integrados pelos parentes e apoiadores das partes em litígio. Aqueles que não queiram
tomar partido a favor de uma ou da outra das partes atuam como mediadores. “A solução de uma controvérsia no interior da comunidade entre os
Ndendeuli”, explica-nos Phil Gulliver, “depende não apenas da aplicação
das normas, do reconhecimento dos direitos e das expectativas de tipo jurídico, ou da respectiva força contratual das partes litigantes e de seus
apoiadores, mas também de considerações relativas aos efeitos que o novo atitude produzirá sobre os interesses da comunidade como um todo e
sobre a continuidade da cooperação e da concórdia entre vizinhos”30. Nas
palavras de Peter Stein: “Na busca de soluções os Ndendeuli farão referência a normas e praxes amplamente aceitas nas sociedades, mas pode-
29
P. Stein, op. cit., pp. 16 e ss. Ver ainda R. Schlesinger, H. Baade, P. Herzog, E. Wise, Comparative
Law, 1994, 80-1.
30
P. Gulliver, Disputes Settlements Whithout Courts: the Ndendeuli of Southern Tanzania, in: Law, Culture and Society, L. Nader (org.), Chicago, 1969, p. 67.
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rão utilizar também outros argumentos, como a necessidade de proteger
os grupos existentes e a harmonia da sociedade em seu conjunto”31.
Entre os Tiv, da Nigéria, na época em que tal população foi estudada por Paul Bohannan, o domínio colonial já tinha imposto uma solução
das controvérsias de tipo jurisdicional. Nada obstante, a elaboração de
mecanismos decisórios judiciários é interessante observar o modo como a
escassa influência exercida pelo poder estatal colonial sobre as instituições
locais tenha, de fato, mantido entre os Tiv algumas características da solução de conflito típicas das sociedades de poder difuso. O tribunal indígena
instituído pelos ingleses – o jir mbatarev – apresenta uma forte comistão
de elementos tradicionais e modernos. Particularmente o aspecto tradicional pode ser percebido no caráter necessariamente conciliatório da decisão. Mesmo que o processo se desenrole na presença de um policial armado de bastão, o qual teria por tarefa fazer executar a sentença, esta é,
na realidade, reconhecida como válida e eficaz apenas se a solução proposta pela corte recebe o assentimento por parte dos dois contendores.
Caso contrário, o caso é considerado como não-resolvido, eis que não é
sobre a coerção oriunda do uso da força pública estatal que o tribunal Tiv
funda sua própria capacidade de impor a decisão32. O caráter compromissório que esta última assume implica, ademais, a possibilidade de a corte
ampliar o processo relativamente ao fato específico que constitui objeto da
disputa, bem como de recorrer a argumentos diferentes daqueles meramente jurídicos para encontrar a solução a ser proposta. Antes, como sub31
32
P. Stein, op. cit., p. 8.
P. Bohannan, Justice and Judgement among the Tiv, Londres, 1957, pp. 60 e ss.
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linha Bohannan, a decisão final do jir muito raramente faz referência a
normas jurídicas: “A finalidade da maior parte do jir é a de determinar um
modus vivendi: não a de aplicar o direito, mas a de decidir aquilo que é justo em um caso particular. Frequentemente os Tiv buscam tal finalidade
sem fazer qualquer referência explícita a normas ou „leis‟” 33.
Entre os Gwembe Tonga, população estudada por quase quarenta
anos por Elisabeth Colson, a penetração do poder estatal é atualmente
evidente, sobretudo quanto ao modo diverso de gerir os conflitos relativamente ao passado. O instrumento jurisdicional é atualmente o principal
modo de resolução das controvérsias. No passado o mecanismo de solução de conflitos mais utilizado era constituído pela tratativa pública entre
grupos familiares, durante a qual os membros mais velhos de cada grupo
especificavam as razões do litígio, declaravam as normas aplicáveis e
buscavam uma solução aceitável para ambas as partes. Em 1956, quem
não estivesse satisfeito com a solução negociada poderia recorrer à Chief‟s Court instituída pela administração colonial, então chamada local court,
junto à qual vigoravam algumas das formalidades típicas do modelo clássico de legal process34. Tais formalidades são hoje próprias do headman‟s
court, corte do chefe de vilarejo, tornada parte da organização judiciária estatal após 1991, na qualidade de tribunal de primeira instância. Como Colson nos faz observar, a mudança do modo de solução das disputas incidiu
em duplo sentido sobre os temas que são objeto de litígio. De um lado, assiste-se ao aumento de controvérsias sobre questões de bagatela, que em
33
34
Neste sentido, P. Bohannan, op. cit., p. 19.
E. Colson, The Social Organization of Gwembe Tonga, Manchester, 1960, pp. 171-176.
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outros tempos não teria podido constituir objeto de tratativa pública, posto
que dificilmente os litigantes teriam encontrado apoio de seus familiares
caso a disputa fosse considerada de pouca importância. De outro lado, a
decisão não mais assume caráter conciliatório; as partes são obrigadas a
apresentar no tribunal apenas os fatos relevantes para a causa, sem poder
apelar para aspectos mais gerais, relativos às suas relações recíprocas; a
corte pode julgar e decidir unicamente acerca das questões aventadas pelas partes; sobre os litigantes paira a ameaça do poder estatal para o caso
de serem violadas as formalidades processuais ou de não ser respeitada a
decisão da corte35.
Em conclusão, a tipologia das análises de campo relatadas, ao testemunhas a passagem gradual dos modos informais de solução dos litígios
para uma solução de tipo jurisdicional torna óbvio o quanto a presença do
Estado constitua, simultaneamente, origem e explicação do modelo conflitual de resolução das controvérsias.
d) Regras jurídicas e princípios gerais não são, portanto, ausentes
nas sociedades sem escrita e sem Estado. Estas, como demontrara J. Goody36, revestem simplesmente um papel e ocupam um espaço diverso –
mas nem por isso menos importante – no pensamento, nos discursos e na
prática relativamente ao que ocorre nas sociedades nas quais existem ju35
E. Colson, The Countenciousness of Disputes, in: Understanding Disputes, cit., 1995, pp. 65 e ss.;
especialmente pp. 73-76.
36
J. Goody, The Domestication of the Savage Mind, Cambridge, 1977.
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ristas profissionais e sistemas sofisticados de elaboração e de verbalização das normas. A enunciação das regras e dos princípios gerais na forma
que os torna compatíveis com o modelo clássico de legal process depende
de uma série de fatores.
Além da necessidade de escrita e de juristas profissionais é necessário que questões referentes às particulares relações entre as partes não
assumam relevo na determinação da solução do conflito, que em tal caso
restaria muito singular para poder receber uma posterior aplicação. Ademais, a verbalização de normas geralmente aplicáveis é ligada uma vez
mais à presença do Estado que, como nos ensina Paolo Grossi, em nome
da regra geral, abstrata e impessoal, esmaga toda particularidade concreta37.
A rigidez do direito obtida através da enunciação e aplicação de regras gerais e iguais para todos traz frequentemente consigo uma forte separação entre a justiça produzida pelas cortes estatais e o sentimento popular de justiça. A reaproximação entre uma e outra obtém-se, por vezes,
através do controle leigo sobre a aplicação do direito por parte de juristas
profissionais: o júri ou mesmo os juízes de paz em nossas sociedades estatais constituem exemplos disso que se afirma.
Voltando à análise do conflito nas sociedades tradicionais, já se
narrou a forma como os antropólogos do direito o examinaram em sua
complexidade. Entre os diversos pontos de observação assumidos reves37
P. Grossi, L‟ordine giuridico medievale, Bari, 1995, pp. 54 e ss.
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tem-se de particular interesse, em nosso ponto de vista, o perfil da solenidade e da importância das formas na resolução dos litígios e a inserção da
variável do tempo no estudo das controvérsias.
Elisabeth Colson, Phil Gulliver, Sally Falk Moore e Max Gluckman –
entre outros – estudam quais são os efeitos do respeito às formas sobre a
resolução do conflito. A solenidade do foro público – trate-se de negócio,
de mediação, de arbitragem ou de decisão jurisdicional – reveste-se de
importância determinante na obtenção da solução do litígio. O encontro
formal entre as partes evita o enfrentamento violento entre as mesmas. O
foro público modifica o tipo de argumentação utilizada para fazer valer as
próprias razões relativamente ao foro privado: os litigantes sabem que a
aceitação dos próprios pontos de vista depende da capacidade de cada
um de formulá-los em termos aptos a satisfazer o nível formal geralmente
exigido pela comunidade e necessário para convencer os próprios apoiadores e os demais38. Como ensina Max Gluckman, quer os litigantes, quer
os mediadores, e mesmo os órgãos públicos jurisdicionais buscam mostrar-se ao mesmo tempo rezoáveis e justos39. No foro jurisdicional, por outro lado, as formas desempenham o duplo papel de simbolizar o status daqueles que julgam e de legitimar as suas decisões 40. Recordar as perucas
do juízes ingleses parece ser útil.
38
Sobre o tema ver P. Gulliver, Disputes and Negotiations, cit., 1979, p. 192.
Neste sentido, M. Gluckmann, The Reasonable Man in Barotse Law, in: 7 Journal of African Administration, 1955, p. 51 e p. 127; e in 8 ivi, 1956, p. 101 e p. 151.
40
S. F. Moore, Individual Interests and Organisations Structures: Disputes Settlements as “Events of Articulation”, in: Social Anthropology and the Law, Hamnett (org.), Londres, 1977, p. 185.
39
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Parece igualmente evidente a razão da ausência daquelas perucas
se tratam-se de Law Lords: na condição de comitê do órgão legislativo em
função judicante, a House of Lords extrai alhures sua legitimação.
A simbologia das formas – na comunicação ou no comportamento –
e seu respeito revelam-se, definitivamente, indispensáveis à solução do litígio, determinando-lhe o grau de aceitação social.
Elisabeth Colson narra um episódio que exemplifica a questão. Entre os Gwembe Tonga da Zambia a corte do vilarejo é integrada pelo chefe
do vilarejo e por dois assistentes “a latere”. Quando julgam os casos que
lhe são submetidos os três sentam-se sobre assentos, ao passo que os
contendentes fazer valer suas próprias razões sentados sobre o chão. Em
1992 uma conflito público teve como protagonistas dois homens que gozavam de particular prestígio: um por ser o mais rico membro da comunidade, o outro por ter feito carreira na polícia nacional. Isso levou os magistrados a permitir que os litigantes também sentassem sobre assentos: erro fatal. Decaída a simbologia da inferioridade espacial cai por terra também a
legitimação dos juízes para resolver a contenda. Os juízes parecem, perante a comunidade, como homens do mesmo nível dos litigantes, com defeitos morais ainda piores do que os destes, cuja palavra não vale mais do
que a das partes em lide: o caso permanece irresolvido entre os insultos
gerais41.
41
E. Colson, The Contentiousness of Disputes, cit., pp. 77-79.
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Acerca da necessidade de analisar o conflito levando em conta a
variável tempo, insiste mais de um antropólogo do direito. Hoebel e Llewellyn são criticados por Laura Nader porque “utilizam em sua análise casos referentes a um período de tempo de setenta anos, comprimindo-os
em uma dimensão de presente etnográfico”42. Sally Falk Moore explica-nos
que “em uma Antropologia dinâmica, o período do estudo etnográfico é
concebido como um momento em uma história mais longa, independentemente do fato de que uma sequência possa ou não ser observada. Os desenvolvimentos futuros sempre fazem parte do presente etnográfico”43.
De um lado, portanto, enfatizar a dimensão tempo significa colocar
em foco a necessidade de observar o conflito em uma perspectiva histórica, que leve em conta a existência de fatores externos aptos a produzir
uma mutação no modo de solução da controvérsia. O impacto do colonialismo ou mesmo da filosofia missionária-cristã no direito consuetudinário
africano44 e o impacto da penetração do Estado em sociedades anteriormente carentes de organização centralizada – com tudo o que o dado
comporta em termos de regras sobre a propriedade da terra e das águas,
da falência dos liames familiares, da competição entre direito estatal e outros direitos – estão entre os fatores que não podiam permanecer fora do
estudo antropológico do direito, mesmo que orientado pelo paradigma da
controvérsia.
42
L. Nader, VI Cardozo Lectures in Law, cit., II Lição.
S. F. Moore, Imperfect Communications, in: Understanding Disputes, cit., 1995, p. 32.
M. Cannoch, Law, Custom and Social Order: The Colonial Experience in Malawi and Zambia, Cambridge, 1985.
43
44
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| 30 |
Por outro lado, a consideração do fator temporal permite relativizar
o significado que a solução do conflito parece assumir no imediato 45. Um
exemplo vale por todos. No seu primeiro volume sobre os Lozi da exRodésia do Norte – atualmente Zâmbia – no qual havia utilizado material
colhido durante os anos 1940, Max Gluckman descreve com grande ênfase e riqueza de detalhes uma decisão da corte local (“The case of the Headman‟s Fishdams”)46, que nos é apresentada como fruto de um delicado
compromisso entre as partes, em testemunho da capacidade da solução
judicial africana de restaurar o equilíbrio social e normativo por meios conciliatórios47. Sua volta aos Lozi em 1965 reserva-lhe, no entanto, uma
amarga surpresa: o aparente feliz compromisso não fora senão uma ilusão
momentânea, porque as partes não tinham realmente achado a solução
aceitável, tanto que uma havia matado a outra certo tempo após a decisão
do tribunal48.
Exatamente a tomada de consciência do afastamento entre solução
jurídica de um problema e sua solução social, leva Gulliver a refutar a expressão “dispute settlement” enquanto sinônimo de repacificação das par45
Acerca deste ponto basta indicar, eis que bastante evidentes, os paralelismos com a intenção manifestada pela maior parte do movimento realista norte-americano, de “sair das bibliotecas” para seguir a
controvérsia em seus desdobramentos posteriores relativamente à “solução” jurisdicional. Ver W. Twining, Karl Llewellyn and the Realist Movement, cit.; G. Tarello, Il realismo giuridico americano, Milão,
1961; U. Mattei, Stare Decisis, Milão, 1988.
46
Em M. Gluckmann, The Judicial Process among the Barotse of Northern Rhodesia, Manchester,
1955, pp. 178 e ss.
47
De modo semelhante daquilo que se viu ocorrer junto aos Tiv estudados por Paul Bohannan, e também junto ao Lozi da Zâmbia, a elaboração de um mecanismo decisório de tipo judicial não coincide,
realmente, com a aceitação de um modelo conflitual de resolução da lide. Isso pelo menos em todas as
ocasiões em que os vínculos entre as partes sejam complexos, ou seja, quando os contendores mantenham relações permanentes: nesta hipótese, explica-nos Gluckman, o objetivo da conciliação tornase imprescindível para os juízes Lozi.
48
M. Gluckman, The Judicial Process among the Barotse of Northern Rhodesia, Manchester, 1967, p.
432.
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tes49. A constatação de que o próprio fato de levantar uma questão instiga
as partes a pensar e a explicitar as razões do conflito vem acompanhada
da convicção de que mesmo a forma mais conciliatória entre os modos
tradicionais de solução de controvérsias possa comportar um comprometimento das relações entre os indivíduos ao final50. Abre-se assim o caminho para o estudo de métodos menos explícitos de enfrentar os conflitos. A
partir da análise das hipóteses nas quais as partes não têm interesse na
resolução de uma controvérsia, porque podem optar por não ter mais relações recíprocas (caso de algumas populações nômades)51, passa-se ao
estudo dos contextos nos quais o litígio explícito não é socialmente aceitável, como entre os Batistas do Sul dos Estados Unidos da América 52, ou
ainda nos casos nos quais o contraste assumido entre as partes é evitado
através de um silêncio e aparente desinteresse pela injustiça sofrida, que
pode conduzir silenciosamente ao ostracismo53. Poder-se-ia falar de formas “mudas” de solução de litígio 54. Estamos, de todo modo, distantes do
paradigma da controvérsia em sua formulação clássica. Tal paradigma,
ademais, já havia sido vítima dos ataques de grande parcela dos estudiosos da antropologia jurídica.
49
P. Gulliver, Disputes and Negociations, cit., 1979, pp. 78 e ss., p. 169 e p. 184.
Acerca deste ponto, além de P. Gulliver, Disputes and Negotiations, cit., p. 128, veja-se S. F. Moore,
Individual Interests, cit., 1977, p. 186 e E. Colson, The Contentiousness, cit., 1995, pp. 69 e ss.
51
Entre os pigmeus da África central é comum, em uma fase inicial do desacordo, armar as tendas de
forma que a abertura de uma não fique voltada para a abertura da outra. Se, posteriormente, nem
mesmo a intervenção do “bufão”, dirigida a desdramatizar e ridicularizar o conflito, terá eficácia, a solução final não poderá ser outra senão aquela de procurar um novo grupo ao qual seja possível associarse.
52
C. Greenhouse, Interpreting American Litigiousness, in: History and Power in the Study of Law: New
Directions in Legal Anthropology, J. Starr e J. F. Collier (orgs.), Ithaca, 1989.
53
B. Yngvesson, The Atlantic Fishermen, in: The Disputign Process, Law in Ten Societies, L. Nader e
H. Todd (orgs.), Nova Iorque, 1978, pp. 59 e ss.
54
Aqui a referência que se faz é a Rodolfo Sacco, evidentemente, Il diritto muto cit.
50
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3. As críticas ao uso do “case method approach” não tardaram, em
realidade. Já Malinowski, em um de seus últimos escritos – uma recensão
do trabalho de Hoebel e Llewellyn sobre os Cheyenne – evidenciara como
o método casuístico utilizado pelos dois autores padecia de um defeito de
perspectiva limitada sobre o direito, que dele derivava. Para Malinowski, a
par dos denominados trouble-cases era necessário estudas os chamados
trouble-free cases. Um quadro que tivesse dato conta do direito de uma
sociedade somente no momento de sua violação, e não no momento de
sua observância, resultaria inevitavelmente incompleto. O reconhecimento
da dificuldade de descobrir as regras jurídicas voluntariamente observadas
em uma sociedade sem escrita, sem códigos, sem juristas profissionais,
não reduzia a exigência de identificar as normas jurídicas que regulavam
realidades jurídicas acerca das quais a conflitualidade aberta fosse escassa ou inexistente. Entre os Cheyenne este era o caso, por exemplo, do setor relativo à propriedade, cujas regras os autores não conseguiam identificar em função da falta de um número consistente de controvérsias explícitas sobre o tema. O apelo de Malinowski por um estudo do sistema jurídico
como parte de um sistema mais amplo, compreensivo relativamente aos
vários mecanismos de controle social, encontrou guarida por parte de
quem, como Elisabeth Colson, fez uso do chamado método casuístico ampliado. O estudo etnográfico do direito não mais ficara confinado à análise
dos meios institucionais de resolução de conflitos. Se o direito não deveria
ser estudado de maneira isolada relativamente aos demais sistemas de
controle55, é sobretudo na estrutura social e cultural que se deveria buscar
55
“O estudo etnográfico do direito não é simplesmente um estudo das instituições jurídicas, e os siste-
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as dinâmicas relativas à observância voluntária das normas. A importância
de que, sob tal perspectiva, revestem-se as relações de troca recíproca e
os liames de lealdade estabelecidos na sociedade dos planaltos de Tonga,
estudada por Colson, evidencia as razões da conformidade voluntária para
com as normas por parte dos membros daquela comunidade. A observância voluntária das normas e das formas de solução do conflito que poderíamos chamar de “mudas” – não-institucionais, implícitas – são categorias
bastante próximas. Além das hipóteses nas quais o conflito não assume
forma explícita e não chega às sedes institucionais em virtude da operação
de fatores sócio-culturais como aqueles indicados – que levam as partes a
arrefecer logo ao nascer da possível controvérsia –, o método casuístico
alargado permite aos antropólogos do direito identificar outros sistemas
não-institucionais de resolução de conflitos. Aos estudos sobre a tratativa,
a mediação, a arbitragem, a decisão jurisdicional, se seguem, então, aqueles sobre os mecanismos de ridicularização das partes, do uso de sistemas
de arrefecimento do conflito, da ênfase sobre o sentimento de vergonha,
que propiciam a obtenção de uma solução não-verbalizada da controvérsia. A ampliação do espectro dos modos de solução de conflito traz consigo um interesse pela identificação das estratégias subjacentes à escolha
entre os mesmos por parte dos protagonistas do litígio. Uma vez mais são
os fatores sócio-culturais que atraem a atenção dos antropólogos do direito.
mas jurídicos constituem apenas uma parte de sistemas mais amplos”, afirma L. Nader, verbete Antropologia giuridica cit., p. 136.
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No rastro das indicações fornecidas por Max Gluckman56 descobrese como em uma situação de relações recíprocas complexas – i.e., na qual
os litigantes tenham fortes interesses comuns (econômicos, familiares, culturais, etc.) – as partes recorram com maior facilidade a uma solução negociada da controvérsia. A necessidade de manter sãos os vínculos recíprocos e o desejo de prosseguir, no futuro, com a própria relação, os estimulará a buscar uma solução de tipo conciliatório 57. Se, contrariamente, os
vínculos entre as partes são menos significativos, os litigantes recorrerão
mais facilmente a sistemas mais conflituais de solução da controvérsia, tais
quais a arbitragem ou o recurso à jurisdição de um órgão público, mostrando-se dispostos a aceitar uma decisão voltada a dar razão, de maneira
drástica, a um ou a outro58. O desenvolvimento de uma teoria relacional
dos mecanismos de solução dos litígios – baseada na observação de que
o tipo de relação entre as partes condiciona o tipo de procedimento adotado concretamente – será acompanhado dos estudos de quem não se satisfaz com a explicação da queda em um ou outro método de solução de controvérsias em termos puramente objetivos. Laura Nader, Harry Todd 59,
June Starr, Barbara Yngvesson60, entre outros, chamam a atenção para os
protagonistas da contenda, sobre os “titulares do direito”, para dar uma
resposta mais complexa ao fenômeno. Starr e Yngvesson esclarecem como além do tipo de relação entre as partes – simples ou complexa –, o ob56
M. Gluckman, The Judicial Process, cit., 1955, passim
Parecem evidentes os nexos com a distinção, muito difundida na Análise Econômica do Direito e na
Teoria dos Jogos, entre relações “one shot” e relações continuadas. Ver, para uma introdução básica,
R. Cooter, T. Ulen, Law and Economics, Glenview, 2 ed., 1996.
58
Por todos, veja-se L. Nader, verbete Antropologia giuridica, cit., p. 137.
59
Nader-Todd (orgs.), The Disputing Process, Law in Tem Societies, Nova Iorque, 1979.
60
Starr-Yngvesson, Scarsity and Disputing: Zeroing in on Compromise Decisions, in: American Ethnologist, 3, (II), 1975, pp. 553 e ss.
57
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jeto da disputa pode ser determinante na escolha do modo de solução do
litígio. Assim, se a controvérsia envolve valores particularmente cruciais –
como a propriedade de um bem imóvel, o acesso ao poder, o prestígio no
interior do grupo – as partes poderão ser levadas a preferir a solução de tipo conflitual à de tipo conciliatório para garantir para si o sucesso na disputa, ainda que isso implique a ruptura em suas relações sociais. A chave de
leitura proposta por Nader, por sua vez, baseia-se principalmente sobre as
relações de poder entre os contendores, que fazem suas escolhas em função das relações de força recíprocas61. Na nova perspectiva, a ênfase é
colocada realmente sobre as partes como protagonistas ativas na construção do sistema jurídico. Fala-se, portanto, de “actor oriented approach”.
Ainda nos anos setenta, todavia, ao lado daqueles que souberam
desenvolver a orientação de raio amplo de Malinowski, permaneciam – entre os antropólogos do direito – aqueles que continuavam a se declarar fiéis ao método casuístico puro. A tensão entre os primeiros e os segundos,
grosseiramente referidos uns a Malinowski e outros a Max Gluckman e a
Paul Bohannan (por terem os últimos utilizado o case-method approach no
estudo dos casos solucionados pelos tribunais dos Lozi e dos Tiv), explode
no ano de 1977, durante o congresso da associação dos antropólogos
americanos acerca do significativo tema “Rules v. Power”. Alguns anos
mais tarde os tons do debate foram amenizados e o trabalho de John Comaroff e Simon Roberts, Rules and Processes62, é testemunho do reencon-
61
L. Nader, Harmony and Ideology: Justice and Control in a Mountain Zapotec Village, Stanford, 1990;
Id., Civilization and its Negotiations, in: Understanding Disputes, cit., 1995, pp. 39 e ss.
62
Publicado em Chicago em 1981.
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tro do equilíbrio entre as orientações que anteriormente se debateram.
Atualmente é possível para S. F. Moore afirmar que “atualmente, o velho
tema norms vc. power tem escasso significado e não oferece qualquer
resposta. Adquire cada vez mais a imagem de falsa oposição sempre existente. É evidente, de fato, que power e norms podem estar em jogo atualmente”63. A sábia constatação da famosa antropóloga de Harvard, no entanto, não deve nos fazer perder de vista a importância que teve a passagem de um estudo do direito como sistema em si para um estudo do direito
como sistema indissoluvelmente vinculado a outros mecanismos de controle social, para a colocação da Antropologia jurídica entre as metodologias
de análise do direito capazes de superar o rígido positivismo ainda dominante.
4. “A marginalização do direito como objeto de estudo”64, operada
pelo antropólogo-jurista através da ampliação da perspectiva de observação realmente permitiu à antropologia do direito que oferecesse respostas
às questões colocadas pelo realismo jurídico.
Uma rápida olhadela voltada ao passado faz-se necessária.
O iluminismo, com seu anelo em direção da racionalidade do sistema e sua ênfase sobre o valor da certeza jurídica como se sabe havia
conduzido à identificação do direito com sua fonte. Naquela ótica, o direito
apresentava-se como inteiramente verbalizado e, para o jurista europeu63
Neste sentido S. F. Moore, Imperfect Communications, in: Understanding Disputes, cit., p. 30.
Trata-se de uma expressão empregada pela conhecida antropóloga do direito de Berkeley, Laura
Nader, durante o evento VI Cardozo Lectures in Law, cit.
64
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continental, completamente contido nos códigos e na lei. A crença na completa verbalização do direito e a convicção de que as normas escritas e
aplicadas coincidissem se harmonizavam bem com a exigência de que o
direito fosse certo. Mas na França François Gény já deveria destruir abertamente a ilusão iluminista. O juiz, explica-nos ele, não é a mera “boca da
lei”65.
O mundo do common law, de sua parte, já tinha tido que acertar
suas contas com os vários Bentham e Austin, os quais, erguendo o véu
ficcional da teoria declarativa66, tinham contribuído no sentido de instigar
os tribunais ingleses a vincular-se rigidamente aos próprios precedentes
para assegurar a certeza do direito, que eles, diversamente, não estavam
mais formalmente em condições de garantir.
Ao realismo jurídico sueco e norte-americano caberia dar o golpe
de misericórdia na convicção de que norma enunciada e norma aplicada
coincidissem. Os realistas nos ensinam que existem dinâmicas ocultas,
não raro arbitrárias – além de não verbalizadas – que presidem a vida jurídica. A decisão concreta, nos dizem eles, mesmo que formalmente reivindique sua origem nos princípios estabelecidos pelo legislador ou na regra
enunciada por este ou por aquele precedente jurisprudencial oculta uma
escolha que encontra sua verdadeira fonte alhures. Donde a dissociação
65
A redução de todo o direito ao texto como estratégia de legitimação do jurista romanista é enfatizada
atualmente por Antonio Gambaro, in: A. Gambaro, R. Sacco, Sistemi giuridici comparati, Turim, 1996,
pp. 240 e ss. Veja-se, ainda, P. G. Monateri, Il modello di civil law, in: A. Procida Mirabelli di Lauro
(org.), Sistemi giuridici comparati, Turim, 1996.
66
De acordo com a qual os magistrados, ao declararem a norma jurídica aplicável ao caso que lhes é
submetido nada mais fariam senão trazer à luz aquele conjunto de imutáveis em vigor desde sempre
que constituem o common law.
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entre law in action e law in the books, e donde, ainda, os problemas de legitimação do juiz ocidental em efetuar escolhas em nome e por conta da
coletividade.
Os caminhos percorridos pelo vários movimentos pós-realistas norte-americanos tiveram todos como última parada a busca de uma resposta
às questões de fundo postas pelo realismo. Se os Critical Legal Studies
assumem, relativamente ao tema, uma posição cética e pós-moderna, incapaz de restituir legitimação às escolhas do juiz ocidental 67, caminhos
mais construtivos foram percorridos por outros filões da cultura americana.
Assim a análise econômica do direito coloca-se em busca da coerência,
vindo a encontrá-la na eficiência econômica das normas que regem o direito68; os mecanismos institucionais e seu desenvolvimento possibilitam à
escola do Legal Process de Harvard o encontro de uma legitimação do sistema jurídico em sua estrutura69; o papel desempenhado pela tradição ao
guiar e organizar as escolhas do juiz é, ao final, reivindicado por mais de
uma corrente de pensamento70.
A passagem de um estudo antropológico do direito centrado no paradigma da controvérsia para a análise atenta às dinâmicas externas ao
67
Ver G. Marini, Ipotesi sul metodo nel diritto privato. Piccola guida alla scoperta di altri itinerari, in: Riv.
Crit. Dir. Priv., 1990, p. 343.
68
Ver R. Pardolesi, verbete Analisi economica del diritto, in: “Digesto”, 4. ed., Discipline privatistiche,
Turim, 1995.
69
W. Eskridge, P. Frickey, The Making of Legal Process, 107 Harvard L. R., 2031, 1994. Sobre o tema,
remete-se ainda a P. G. Monateri, Pensare il diritto civile, Turim, 1995.
70
Refiro-me, aqui, entre outros, a K. Llewellyn, autor de The Common Law Tradition, Deciding Appeals,
Boston, 1960; a G. Fletcher, Introduzione elementare alla scienza giuridica, in: Il Cardozo Lectures in
Law, P. G. Monateri e U. Mattei (orgs.), Pádua, 1991; Id., Basic Concepts of Legal Theory, Oxford,
1996; e A. Barak, La discrezionalità del giudice, in: Giuristi stranieri di oggi, C. Mazzoni e V. Varanno
(orgs.), com apresentação de A. Gambaro, Milão, 1996.
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conflito institucionalizado permite ainda à Antropologia jurídica inserir-se
entre os movimentos culturais que buscam oferecer uma resposta construtiva às questões postas pelo realismo jurídico.
A prova que com The Cheyenne Way Hoebel e Llewellyn forneceram sobre a existência de uma law in action confirma-se com a teoria de
que a vida do direito é uma variável independente de sua verbalização,
mas não oferecia ainda explicação alguma sobre as dinâmicas subjacentes
à law in action em si. Somente a Antropologia posterior buscará resolver
problemáticas do gênero.
O antropólogo do direito pode contar, para a execução de tal tarefa,
com a facilidade decorrente do fato de que suas pesquisas o colocam em
contato com sociedades nas quais dificilmente ocorreu o divórcio, comum
no mundo jurídico ocidental, entre direito e tradição71. A ausência, nesses
contextos, de uma linha de demarcação nítida entre norma jurídica e norma social, entre norma jurídica e norma religiosa, entre juiz e chefe tradicional, assim como a ausência de um jurista profissional que tenha impermeabilizado formalmente o direito relativamente aos demais mecanismos
de controle social, tornam mais fácil a identificação daqueles fatores sócioculturais que contribuem para com a determinação das dinâmicas e das
escolhas jurídicas também no mundo ocidental, mas que entre nós operam
de maneira extremamente criptotípica (oculta). Donde o grande interesse
71
Sobre o tema, veja-se A. Gambaro, Il successo del giurista, in: Foro it., 1983, V, pp. 85 e ss.; H. Bermann, Law and Revolution, The Formation of Western Legal Tradition, Cambridge, Mass., 1983, passim; U. Mattei, Verso una tripartizione non eurocentrica dei sistemi giuridici, in: Studi in memoria di Gino
Gorla, Milão, 1994, vol. I, p. 775. Ver, ainda, A. Gambaro, R. Sacco, Sistemi giuridici comparati, Turim,
1996, pp. 41 e ss.
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teórico de uma “análise antropológica do direito” que reivindique, ao lado
dos demais movimentos “law and ...” um papel como metodologia idônea
de ser aplicada a todo o campo.
5. a) Os antropólogos do direito do Século XX desenvolveram suas
investigações junto aos sistemas ditos tradicionais, os quais, no entanto,
em contato estreito com a crescente globalização, continuam desaparecendo gradualmente.
O grande desafio dos jusantropólogos do Século XXI consiste, portanto, em identificar o rumo futuro de sua disciplina.
Da micro-antropologia deve-se passar à macro-antropologia, asseveram os estudiosos da matéria, pretendendo com isso colocar em primeiro plano a exigência de abandonar o estudo exclusivo das sociedades
“primitivas” para passar a um estudo antropológico do direito de alcance
pleno. A questão que então se coloca é: qual o papel que pode ser desempenhado pela Antropologia na análise da western legal tradition?
Certamente aos estudos antropológicos do direito referiu-se e continua a referir-se mais de um movimento de reforma nos países ocidentais.
A reavaliação do material antropológico com finalidades de reforma
do direito por parte de juristas não-antropólogos esteve à base, por exemplo, da introdução do sistema da Alternative Dispute Resolution nos Esta-
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dos Unidos da América. Aplicado às mais variadas situações conflituais –
de problemas de vizinhança às questões relativas à tutela dos consumidores ou ainda à tutela ambiental, bem como nas relações intra-societárias –
o instrumento da ADR teve como insuspeito inspirador Philip Gulliver e seu
estudo sobre a negociação, como explica Nader72. Os anos 1970 e 1980
assistem surgir na América um amplo movimento direcionado à pacificação
e à substituição dos métodos conflituais de resolução das controvérsias
por métodos de feição mais conciliatória. O desejo de encontrar uma solução para o problema da ineficiência e insuficiência do sistema jurisdicional
leva o então Chief Justice da Suprema Corte Federal Warren Burger a declarar: “Os nossos predecessores distantes abandonaram lentamento o trial by battle e os demais métodos bárbaros de resolução dos conflitos; também nós devemos abandonar a confiança plena no instrumento conflituoso
para resolver todo tipo de controvérsia”73. A privatização da justiça – por
meio da mediação, da arbitragem ou da conciliação – constitui a forma de
diminuir a pressão sobre as cortes e, obviamente, os estudos antropológicos que haviam indicado de que forma a harmonia poderia ser restabelecida entre as partes, também mediante o compromisso e não apenas através do recurso à jurisdição e à execução forçada das decisões, oferecem
argumentos convincentes para os defensores da filosofia da ADRNT.
72
Ver L. Nader, VI Cardozo Lectures in Law, cit., II lição.
Neste sentido, W. Burger, Annual Message of the Administration of Justice, Warren E. Burger, Chief
Justice of the United States, no congresso da American Bar Association, 12 de fevereiro, 1984.
NT
ADR, sigla do Alternative Dispute Resolution (Solução Alternativa de Controvérsias), movimento em
prol da adoção de meios alternativos de solução de litígios.
73
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| 42 |
A Antropologia jurídica representa uma boa fonte de soluções também em outras ocasiões nas quais o direito oficial ocidental se mostra em
crise. Assim, por exemplo, na Austrália os estudos etnográficos sobre o direito tradicional são levados em conta por quem propõe, e consegue, entregar os aborígenes, declarados pela cortes estatais culpados de fatos
criminosos específicos, às tribos de pertença, a fim que de nela lhes seja
aplicada a sanção tradicional74.
O recurso aos estudos antropológicos do direito mostra-se útil, ainda, nas hipóteses nas quais o Estado promove um “desjurisdicização” de
fatos criminosos, favorecendo a mediação entre autor e vítima do crime, de
modo que o ressarcimento voluntário do dano substituam, mesmo que informalmente, a sanção penal. A transação penal, como forma de conciliação substitutiva da ação judicial, começa a desenvolver-se no Canadá, nos
Estados Unidos e na Inglaterra já nos anos 1970. Mais recentemente recorre-se a ela para evitar a ação penal, ou ainda para evitar a aplicação da
pena, em França, na Finlândia, na Holanda, na Bélgica, na Áustria e mesmo na Alemanha, embora neste último sistema o exercício da ação penal
revele-se obrigatório. Por vezes a possibilidade de uma transação penal é
oficialmente limitada à hipótese em que o autor do delito seja menor75.
74
E. Venbrux, R. Silverman, M. Nielsen (orgs.), Aboriginal Peoples and Canadian Criminal Justice, Toronto e Vancouver, 1992, in: Commission of Folk Law and Legal Pluralism, Newsletter XXVI, novembro
de 1995, pp. 45 e ss.
75
Sobre tais temas remete-se a J. Pradel, Droit pénal comparé, Paris, 1995, pp. 147 e ss. e bibliografia
ali citada.
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Os estudos de todos aqueles que, na esteira de Émile Durkheim 76,
teorizaram a evolução de uma lógica punitiva para uma lógica compensatória, em proporção direta com o crescimento em termos de “civilização” de
determinada sociedade, parecem conferir uma legitimação culturalmente
prestigiosa àquelas políticas do direito que objetivam transformar a sanção
penal em sanção civil através de mecanismos “mediadores” lato sensu,
como os indicados77. Donde opera-se a devolução de novos espaços para
a análise antropológica, espaços que no entanto parecem mais abertos no
plano da política do direito do que no cognoscitivo.
Sem aqui indagar além acerca de fenômenos que nos levariam longe com toda certeza, aquilo que é premente evidenciar como o direito estatal dos países ocidentais recorre à Antropologia em função da solução de
problemas contingentes, de crescimento excessivo, poder-se-ia dizer, para
os quais qualquer proposta criativa poderia parecer aceitável. Nada obstante, e ainda no plano da política do direito, os riscos culturais dessas
operações não podem ficar ocultos. A institucionalização de processos de
origem tradicional e espontânea não poderá senão subverter a estrutura de
maneira irremediável.
A experiência da redução a escrito dos costumes africanos no período colonial deveria ter ensinado uma lição difícil de esquecer.
76
E. Durkheim, De la division du travail social, Paris, 1893.
A esta temática, à qual estarei dedicando aprofundamentos futuramente, fiz menção em: Ai confini
della responsabilità. Prime riflessioni per un programma di ricerca in diritto comparato, in: Rass. Dir.
Civ., 1995, pp. 857 e ss.
77
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b) Se, portanto, o futuro da Antropologia jurídica não parece residir
em uma utilização “domesticada” dos mecanismos tradicionais de controle
social, tampouco se crê que a estrada para o futuro dos estudos antropológicos possa ser vislumbrada como a melhor compreensão que através
dos mesmos se possa obter acerca dos problemas de convívio entre tradições jurídicas diversas. Não parece competir à Antropologia jurídica encarregar-se de descobrir se e de que maneira o direito estatal de determinado
país deva resolver questões relativas ao reconhecimento do instituto da
poligamia quando praticada por um muçulmano residente em um país europeu, ou ainda se e de que modo o direito oficial francês ou belga deva tutelar a imigrante africana repudiada, ou mesmo de que forma tal direito deva gerir as lides oriundas dos ritos de vodu praticados pelo vizinho.
Certamente um conhecimento do direito e da cultura das tradições
diferentes da western legal tradition é útil para enfrentar temas que frequentemente colocam-se com maior propriedade no plano do direito internacional. Todavia reduzir o estudo jusantropológico ao campos de problemas análogos limita-o muito fortemente em suas potencialidades.
Pela mesma razão, igualmente reducionista nos parece o objetivo
de quem identifica as possibilidades de sobrevivência da disciplina aqui
discutida78 na existência de “blocos culturais em condições de expressar
diferentes estilos normativos”79.
78
É este o ponto de vista de Riccardo Motta, o qual, na ótica de uma macrocomparação de modelos jurídico-culturais, questiona-se se também o estilo jurídico navajo poderia ser validamente comparado
com os três blocos culturais analisados por Clifford Geertz (veja a nota seguinte), concluindo com a ob-
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Não há necessidade, em essência, de uma competição ou interação entre tradições jurídicas diferentes, particularmente entre as ocidentais
e as demais, para justificar a utilidade dos estudos antropológicos do direito. Mesmo se a western legal tradition acabasse por operar uma ocidentalização global do direito – de modo que, por exemplo, hipoteticamente, o
Navajo common law, com suas cortes, não se distinguisse mais do common law do Estado do Arizona, de Utah e assim por diante, ou ainda os índios Iroqueses Mohawk aceitassem a total homogeneização com os quebequenses ou com os canadenses, ou ainda os ciganos tivessem de
abandonar suas tradições jurídico-culturais – a Antropologia jurídica manteria ainda plena legitimação científica.
E isso por dos motivos.
servação de que “trata-se da comparação entre blocos exóticos, como os geertzianos, ou do confronto
entre estilos jurídicos ocidentais e Mixed Native Jurisprudence, como no caso do Hozho e dos Navajos
(o contraste entre a harmonia tradicional e o „jogo de soma zero‟ do direito norte-americano moderno) e
sua classificiação provisória em algum lugar da Southwestern Jurisprudence, compreensiva das expressões jurídicas e doutrinárias de Arizona, Utah, Novo México e Colorado, bem como as federais, ou
ainda o jogo de encaixes e tolerâncias das relações entre os Mohawk, ou mesmo entre seus representantes de Quebec e do Canadá, as linhas incertas das fronteiras interculturais, acompanhadas das diferenças muito mais nítidas de seus núcleos ético-jurídicos indicam um caminho (provavelmente não tão
nova) certamente eficaz para estudos comparativos sobre diferentes culturas jurídicas e sobre suas
bases étnico-culturais, explícitas e implícitas. Enquanto existirem blocos culturais capazes de expressar
diferentes estilos normativos, subsistirão as razões para as pesquisas sobre cultural boundary zones,
que gradualmente substituem-se no âmbito das pesquisas antropológicas aos territórios etnográficos
clássicos. Vale dizer, subsistirão razões também para sustentar que existe um potencial científico e didático que os estudos antropológicos e comparativos do direito ainda podem desenvolver.” R. Motta,
Intorno ai concetti giuridici e antropologici, Occidente e altri “blocchi culturali” a confronto, in: Materiali
per la storia della cultura giuridica, pp. 417 e ss., especialmente pp. 436 e ss.
79
Faz referência à noção de “blocos culturais”, entre outros, Clifford Geertz, em um conhecido ensaio
intitulado Local Knowledge, Fact and Law in Comparative Perspective, in Id., Local Knowledge, Further
Essays in Interpretative Anthropolgy, Nova Iorque, 1983, no qual o autor compara três “blocos culturais”
correspondentes ao estilo judiciário no mundo de cultura islâmica (o Haqq), no mundo de cultura indiana (o Dharma), bem como no mundo de cultura maltesa (o Adat).
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Antes de mais nada, como nos ensina Laura Nader, a Antropologia
jurídica nas sociedades complexas pode ser utilizada na perspectiva de um
“studying up”. “O que aconteceria se, na reinvenção da Antropologia, os
antropólogos estudassem os colonizadores em lugar dos colonizados, a
cultura do poder em vez daquela dos que não têm poder, a cultura dos ricos em lugar da dos pobres?”80. O método etnográfico, explica-nos a famosa antropóloga do direito de Berkeley, pode ser aplicado de maneira útil
para a compreensão das dinâmicas subjacentes ao direito ocidental. “Estamos nos especializando para compreender culturas inteiras em um contexto intercultural. Deveremos então nos encontrar perfeitamente à vontade na tarefa de descrever e estudar as law firms como sociedades secretas, de tentar analisar os liames de poder ao descrever aqueles comportamentos consuetudinários que são absolutamente indispensáveis para
compreender, por exemplo, os mecanismos existentes por trás do funcionamento do Congresso... O antropólogo deveria, mais do que qualquer outro, em função de sua própria compreensão do princípio da reciprocidade,
estar em condições de analisar a razão pela qual as decisões dos Federal
Communication Commissioners poderiam ser „racionais‟”81, afirma Nader,
que prossegue indicando exemplificativamente os diversos âmbitos de
aplicação de um studying up: as instituições jurídicas ocidentais, sua burocracia, as public agencies e seu funcionamento. A perspectiva do antropólogo, que aplique às próprias instituições a técnica de observação “participante” utilizada no estudo das instituições jurídicas das sociedades tradici80
L. Nader, Up to the Anthropologist, Perspectives gained from Studying up, in: Reinventing Anthropology, D. Hymes (org.), Nova Iorque, 1972, p. 289.
81
L. Nader, Up to the Anthropologist, cit., p. 293.
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onais, ao laicizar o direito ocidental, tornando-o menos uma prerrogativa
apenas da classe dos juristas, contribui para uma melhor compreensão e
um maior conhecimento de nosso “estilo jurídico”. É nesta linha de pensamento que Laura Nader enfrenta o tema da harmony ideology.
A ideologia da harmonia, que nos anos 1970 e 1980 domina a busca norte-americana de métodos alternativos de resolução de controvérsias
deságua, como se indicou, no incentivo ao uso de procedimentos extrajudiciais de tipo conciliatório. A arbitragem e, ainda mais, a mediação e a negociação entre as partes, são os métodos de resolução das controvérsias
encorajados pela harmony ideology, na ótica de uma superação da solução de tipo conflitual que dá lugar obrigatoriamente à jurisdição estatal.
O momento de maior sucesso, nos EUA, da corrente de pensamento conhecida como “ADR Movement”, coincide, como ensina Nader, com
um exportação da mesma filosofia em âmbito internacional. Em 1985, observa a estudiosa, a administração Reagan retira-se do acordo de submeter-se voluntariamente à jurisdição da Corte Internacional de Justiça: “O fato foi provavelmente a mais visível continuidade de uma tendência mais
ampla que fez escola entre os membros da ONU, que tinha registrado uma
constante redução do número dos Estados que concordavam e submeterse à jurisdição obrigatória da Corte Internacional”82. No âmbito internacional, portanto, a negociação entre as partes toma o lugar do recurso à decisão da Corte de Haia.
82
L. Nader, Civilization and its Negotiations, cit., p. 44.
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O que oculta a passagem do método conflitual de resolução das
controvérsias para o conciliatório? 83 O que se esconde em essência dentro
da ideologia da harmonia dominante, pergunta-se Laura Nader. Um perspectivo histórico-comparativa, unida à aplicação do método etnográfico ao
direito das sociedades complexas possibilita à Antropologia jurídica colocar
em evidência as lógicas subjacentes às escolhas relativas ao processo de
solução de conflito a ser adotado.
A ideologia da harmonia acaba por ser indicada, assim, como meio
de controle social e parece a detentora de uma ideologia que já era própria
dos missionários nos territórios colonizados, funcional relativamente à manutenção do poder na lógica hegemônica do mais forte. A ênfase no valor
da harmonia nas relações entre as partes oculta, na interpretação de Nader, o desejo de não modificar as relações de poder existentes, com evidente vantagem para aqueles que já são detentores de tal poder84. A sintonia com a análise dos Critical Legal Studies é, aqui, mais do que evidente.
c) A análise antropológica do direito oficial, do direito dos juristas
cultos não é, todavia, o único caminho aberto para a Antropologia jurídica
83
O leitor verá como o binômio resolução judicial versus negociação não exaure o espectro das alternativas possíveis. Os Estados soberanos sempre terão aberto o caminho do conflito armado, de modo
que a própria noção de conflito, tal qual utilizada por Nader, parece um tanto imprecisa.
84
Nader, L. Civilization and its Negotiations, cit., e Id., Harmony Ideology, cit., 1990.
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do futuro (um futuro hipotético no qual se assista à globalização e à homogeneização das culturas e das tradições jurídicas).
Laura Nader declara a inadequação dos estudos etnográficos tradicionais para a construção de modelos válidos para o estudo da sociedade
moderna ocidental. A despersonalização típica da sociedade de massa impediria que possam aí operar os mecanismos de controle social típicos das
sociedades tradicionais, caracterizadas, contrariamente, por fortes liames
sócio-políticos dos seus componentes85. Consequentemente a estudiosa
limita ao estrato oficial do direito a própria investigação antropológica da
western legal tradition.
O direito, todavia, mesmo na tradição ocidental – os estudos antropológicos já o ensinaram – não é apenas aquele dos legisladores, dos juízes, das cortes e dos juristas. O direito oficial não coincide com a totalidade do fenômeno jurídico. Rodolfo Sacco nos diz: “É possível um direito não
verbalizado? Eu somente posso me fazer a pergunta oposta. É possível
um direito completamente verbalizado? ... Eu duvido que exista ou possa
existir um direito inteiramente verbalizado”86. E ainda “Em todo ordenamento dotado de um legislador e de jurista culto sobrevivem elementos jurídi85
« Law in face-to-faceless societies, characterized by unequal distribution of power, does not lend itself
easily to the solutions for handling disputes in small face-to-face communities where power differential
are less. Ethnografic studies of law often remove law from the center of the study, because, in societies
where people share common social and political linkages, generalized social control results. In such settings, gossip and public opinion help detter socially harmful behavior and serve to direct disputes. However, the more attentive we become to settings were law or governmental social control reigns, in places where there are fully developed nation states, the more our studies center around law to the exclusion of other systems of social control. Then the traditional ethnographic studies of particular societies
no longer provide a model”. L. Nader, VI Cardozo Lectures in Law, cit., II lição; id., Antropologia giuridica, cit., p. 138.
86
R. Sacco, Modelli notevoli di società, cit., p. 42.
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cos pertencentes às fases mais primitivas... O Estado (italiano) julga gratuitamente qualquer conflito de interesses privados, mas coloca em operação
obstáculos importantes para dissuadir o jurisdicionado de acionar a Corte
(papel selado caro, custos de assistência legal, má qualidade dos serviços
judiciários; etc.): não faz sentir aqui seu peso, sem que se possa percebêlo, o tácito desejo de poder afastar-se das disputas dos particulares? E, ao
menos, não seria verdadeiro, talvez, que somente um percentual mínimo
dos conflitos seja resolvida pelo órgãos do Estado? E que muitas vezes
uma desaprovação social bastante evidente atinja quem toma a iniciativa
da ação judicial?”87.
Se, portanto, o Estado não resolve senão uma mínima parcela dos
conflitos e se, como é confirmado por Peter Stein, os rastros dos antigos
métodos de resolução das controvérsias “frequentemente sobrevivem
mesmo quando institui-se um mecanismo estatal de resolução dos conflitos”88, isso significa que na tradição ocidental ladeia o direito oficial um outro direito, diferente daquele do jurista culto, de fonte não-estatal89.
87
R. Sacco, Il diritto muto, cit., p. 693.
P. Stein, I Fondamenti, cit., p. 3, mas também a p. 15.
89
A propósito, ademais, veja-se em profundidade P. Grossi, L‟ordine giuridico medievale, cit., pp. 19 e
ss. O grande historiador do direito, na esteira da proposta pluralista formulada por Santi Romano na
obra L‟ordinamento giuridico (Florença, 1946, 2. ed.), nos lembra que, “se é verdade encontra nos dias
atuais „normalmente‟ no legislador e na administração pública seus produtores habituais, é igualmente
verdadeiro (e o fato é atualmente indiscutível) que a produção do direito é privilégio essencial de qualquer aglomeração social que pretenda viver plenamente sua própria liberdade na história... E é direito,
portanto, não apenas aquele produzido pela macro-entidade estatal, mas também aquele produzido por
uma gama de ilimitado e ilimitável de estruturas sociais nas quais pode encontrar lugar, em determinadas condições, como a comunidade internacional, uma confissão religiosa, a família e a denominada
comunidade criminosa, bem como as diversas aglomerações privadas.”
88
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A verbalização de uma parte de tal direito “mudo” é tarefa da Antropologia jurídica, que na busca das regras fundamentais valer-se-á do método comparativo. Por outro lado, como se foi demonstrado recentemente90, uma abordagem à comparação jurídica que descurasse os aspectos
mudos (não-verbalizados) seria gravemente deficitária tanto no plano heurístico quando no plano taxinômico91.
Mais de um Antropólogo do direito fez uso da comparação.
Max Gluckman confrontou o direito dos Barotsi do então Norte da
Rodésia com o direito ocidental para demonstrar a comparabilidade de duas tradições, uma das quais denegrida e desvalorizada pela outra. Os Lozi,
que consistem na tribo mais culta e dominante entre os Barotsi, ao decidirem judicialmente as controvérsias, acabam por fazer uso de conceitos e
categorias jurídicas análogas àquelas próprias da tradição ocidental. Particularmente o princípio da razoabilidade constitui, de acordo com a exposição de Max Gluckman, um critério universal comum à maior parte dos sistemas jurídicos92.
São notórias as críticas feitas sobre o tema por Paul Bohannan relativamente às dificuldades comparativas. Ao sublinhar a unicidade das categorias e dos valores próprios de cada cultura, Bohannan sustenta a im-
90
J. Vanderlinden, Comparer les doits, Diegem (Bélgica), 1995, pp. 397 e ss.
Significativamente tal ensinamento, absorvido pela escola comparatista italiana, foi valorizado no Japão, onde o convívio de um estrato jurídico oficial e de um estrato jurídico informal (giri) é ainda mais
evidente. Ver Kitamura, Brèves réflexions sur la méthode de comparaison franco-japonaise, in : Rev.
Int. Dir. Comp., 1995, p. 861.
92
M. Gluckman, The Judicial Process cit., 1955, especialmente o capítulo III.
91
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possibilidade de traduzir e comparar as categorias conceituais de cada tradição sem deformar-lhes o significado. Os resultados aos quais Gluckman
havia chegado constituíam, para Bohannan, uma ilusão de ótica, devida ao
fato de que, traduzindo para o inglês os conceitos jurídicos lozi, Gluckman
os teria ocidentalizado, desnaturando-os93.
É justificável com tal propósito recordar a lição que os seminários
de Cornell havia dado a todos que se propusessem à comparação para
permitir-lhes superar mais de um problema de tradução jurídica 94.
Philip Gulliver coteja as transações jurídicas que desenvolvem-se
entre os Arusha da Tanzânia com as transações que desenvolvem-se entre os trabalhadores da industrializada América do Norte, chegando à conclusão de que existe um modelo de negociação comum a todas as tradições jurídicas, cujas fases são muito similares, não obstante a diversidade
do objeto da controvérsia95.
Laura Nader confronta o sistema jurídico zapoteca do sul do México
com o sistema jurídico norte-americano sob a perspectiva do acesso à justiça. Suas conclusões são no sentido de que os Zapotecas têm acesso ao
direito, ao passo que os cidadãos americanos não. Os últimos, com efeito,
não conhecem o funcionamento de seu próprio sistema jurídico e frequen93
P. Bohannan, Ethnography and Comparison in Legal Anthropology, in: Law in Culture and Society, L.
Nader (org.), Chicago, 1969, pp. 401 e ss.
94
A temática da homologação dos dados estruturais não-homogêneos, tanto no interior quanto no exterior da western legal tradition, já é enfrentada com notável proficiência na introdução de R. Schlesinger
(org.), Formation of Contract. An Inquiry into the Common Core of Legal Systems, 2 v., Nova Iorque,
1967.
95
P. Gulliver, Disputes and Negotiations, cit., 1979.
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temente não podem ser permitir o recurso a um jurista profissional, único
oráculo do direito ocidental, em função do alto custo da prestação profissional96.
A comparação na qual se pensa nesta sede tem finalidade diversas
dos perseguidos por Max Gluckman, Philip Gulliver e Laura Nader. Não se
trata, com efeito, de evidenciar as falhas do sistema jurídico ocidental ou
de demonstrar que sistemas jurídicos diversos dos nosso são igualmente
dignos de interesse científico, ou ainda de descobrir qual sistema seja melhor ou pior. Trata-se, na realidade, de observar nosso próprio sistema
através dos “óculos” teoréticos fornecidos pelo aparato antropológico. Os
modos de solução das controvérsias típicos das sociedades tradicionais,
sejam eles institucionalizados ou não, sobrevivem também em nossa tradição: os estudos etnográficos sobre sociedades tradicionais nos servem de
espelho que reflete os elementos que estão presentes em nosso sistema,
mas que se tal espelho permaneceriam invisíveis97.
Verbalizar as normas criptotípicas, isto é, ocultas, que regem a
maioria das agregações sociais intermediárias que compartilhas os mesmos valores socioculturais (pense-se na família, nas organizações profissionais, na comunidade acadêmica, nas comunidades constituídas pelos
membros de uma faculdade, nos escritórios de advocacia, etc.) torna-se
mais fácil quando aquelas normas e aqueles mecanismos de solução das
96
L. Nader (org.), No Acces to Law, Alternatives to American Judicial System, Nova Iorque, 1980; Id.,
Up to the Anthropolgist, cit., p. 300.
97
Por último, decorrem ainda deste aspecto de self-reflection as mais importantes potencialidades da
comparação. J. Langbein, The Influence of Comparative Procedure in the United States, in: 43 Am. J.
Comp. Law, 1995, pp. 545 e ss.
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controvérsias são observados em sua operação alhures, em contextos
com os quais o jurista culto ainda não os relegou à esfera do não jurídico.
Os estudos da estratificação do direito na África 98 nos servem, então, para
evidenciar a competição e a interação de modelos e de tradições jurídicas
existentes também em nosso direito, mas que no contexto africano resultam muito mais evidentes em função da maior concentração temporal durante a qual fizeram seu aparecimento. Os estudos sobre modos informais
de resolução das controvérsias nas sociedades tradicionais, especialmente
em se tratando de processos não institucionalizados, nos esclarecem sobre os mecanismos atuantes em nível de agregações sociais intermediárias de nossa sociedade.
A abordagem denominada actor oriented propicia o esclarecimento
a forma como, também em nosso sistema, o recurso à jurisdição do Estado
não é senão um – talvez o mais drástico – entre muitos mecanismos de solução do conflito à disposição das partes99, as quais efetuam uma escolha
em favor da decisão jurisdicional legitimando, no fundo, o juiz da tradição
ocidental, cuja neutralidade e legitimação para decidir em nome e por conta da coletividade fora colocada em dúvida pelo realismo jurídico.
98
Remete-se a R. Sacco, Il diritto africano, Turim, 1995; M. Guadagni, Il modello pluralista, in: A. Procida Mirabelli di Lauro, Sistemi Giuridici Comparati, Turim, 1996.
99
Pense-se, por exemplo, na experiência do frequente recurso à jurisprudência estatal que a academia
italiana está vivendo atualmente: esta surge como LA SPIA do funcionamento falho dos tradicionais
mecanismos de solução de controvérsias de tipo conciliatório (mecanismos mudos, negociação, mediação), que anteriormente operavam de maneira eficaz. Tais mecanismos são descritos, em um modelo
antropológico simplificado, por U. Mattei e P. G. Monateri, Faculty Recruitement in Italy: Two Sides of
the Moon, in: 41 Am. J. Comp. Law, 1993, pp. 351 e ss.; veja-se, ainda, V. Zeno-Zencovich, Pubblicazioni concorsuali e deflorestazione, in: “Contratto e impresa”, 1993, p. 355.
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Em síntese, em um direito que “tornar-se-á provavelmente cada vez
menos estatal”100, não apenas a Antropologia jurídica tem um futuro, mas
mostra-se como o futuro do direito.
100
Neste sentido, R. Sacco, La circulation du modèle juridique français, Rapport de Synthèse, nos anais
do encontro da Associação Henri Capitant, 1994, p. 13.

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