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CISC CENTRO INTERDISCIPLINAR DE SEMIÓTICA DA CULTURA E DA MÍDIA imagemeviolência EXTENSÃO, IMPLICAÇÃO E TRANSGRESSÃO. DA VIOLÊNCIA DAS IMAGENS À POÉTICA DO KAIROS Hans Ulrich Reck Tradução: Paulo Oliveira1 1 NT: Mantive no original as citações em outras línguas, diversas do alemão, traduzindo-as parcialmente em notas de rodapé. Extensão Allan Kaprow escreve em 1958, num texto com o título The Legacy of Jackson Pollock: 2 A meu ver, Pollock nos deixou no ponto em que precisamos nos confrontar com os objetos de nosso cotidiano (nossos corpos, nossa vestimenta, lugares, ou também grandezas imponentes como a 42nd Street), ou quando até mesmo nos deixamos impressionar por eles. Descontentes com a impressão que a cor talvez possa causar a nossos outros sentidos, trata-se então de se lançar mão dos materiais específicos do ver, do ouvir, do movimento, das pessoas, do tato e do olfato. Objetos de todos os tipos servem de material para a nova arte: tinta, cadeiras, alimentos, lâmpadas incandescentes ou fluorescentes, fumaça, água, meias velhas, um cachorro, filmes e milhares de outras coisas que ainda venham a ser descobertas pelas novas gerações de artistas. Esses ousados criadores não nos mostram apenas, como se fosse essa a primeira vez, um mundo que já nos circunda, mas que não é percebido por nós; eles nos desvendarão também outros fatos e acontecimentos completamente inauditos, que podem ser encontrados em latas de lixo, registros policiais ou nas portarias de hotéis, que podem ser vistos nas vitrines e nas ruas, e que fazem parte da experiência dos sonhos ou de terríveis acidentes. O cheiro de morangos amassados, a carta de um amigo, ou um cartaz de propaganda de Drano (um produto de limpeza para tubos), três batidas na porta, um arranhão, um suspiro ou uma voz que não cessa de reprimir, uma luz estroboscópica que ofusca, um melão – tudo isso será transformado em material para essa nova arte concreta. O jovem artista de hoje não mais precisa afirmar “sou um pintor”, ou “um poeta”, ou “um dançarino”. Ele é simplesmente um “artista”. Toda a vida está aberta diante dele. Ele descobrirá o sentido da cotidianidade nos objetos do cotidiano. Ele não procurará transformá-los em algo especial, mas somente tornará reconhecível seu verdadeiro significado. Mas do 2 NT: O legado de Jackson Pollock. 2 que nada ele inventará o incomum – e talvez também a nulidade. As pessoas reagirão com alegria ou repulsa, os críticos ficarão confusos ou se divertirão, mas isso será, tenho certeza, a alquimia dos anos 60. Essa declaração é ao mesmo tempo somativa e programática. A extensão da base material e a dispersão das artes, a poetisação das materialidades e a mediatização das possibilidades expressivas: tudo isso descreve o território a ser sempre de novo percorrido, redescrito, resimbolizado, remontado. O elogio de Kaprow ao existente e comum invoca uma conclusão e faz uma exigência. A ampliação do material tornou-se conhecida desde então como corriqueira, multisensorial e natural ao mesmo tempo, exatamente no sentido descrito por Kaprow. Pode-se generalizar, para abranger um traço fundamental da arte deste século, com sua enorme significação: a arte moderna tentou com o maior dos empenhos tornar visível o invisível. Em seu olhar está inscrita a violência da mesma forma que a constante procura por novos materiais e suportes expressivos. A arte moderna é um híbrido, tem caráter duplo: ela rejeita o absoluto, ao mesmo tempo em que procura, senão nomeá-lo, pelo menos indicálo. Na hoje forçosa despedida dos gestos de extensão, implicação e transgressão aí inscritos, mostram-se as saídas para a crise da visibilidade, as quais, no entanto, não se deixam separar do triunfo do visível, sendo antes um seu idêntico, que dele origina, por ele é forçado. Essa é a história de um sucesso que irremediavelmente culminará na ruína de seus próprios pressupostos, que ao mesmo tempo impõe e possibilita uma afirmação radical. Entretanto, a descrição histórica mais comum dos estilos artísticos reduz o problema a uma niveladora atribuição de projetos aos três casos limites da já citada tipologia de uma arte ilimitada da modernidade: construtivismo com extensão; arte minimalista como implicação; dadaísmo, surrealismo, fluxus, arte contextual e intermedialidade como figuras de transgressão. Isso apenas como exemplo incompleto. Outros relacionamentos são concebíveis ou até mesmo palpáveis. Mas qual seria o problema dessa atribuição tão eminentemente arbitrária? 3 O saber e o mostrar “L'art c'est dire ce qu'on ne sait pas, montrer ce qu'on ne voit pas”, descreve de maneira precisa Jean Luc GODARD3 o que está em jogo: não o tornar visível, como pensa Paul Klee (um dos mistificadores das modernas alegorias artísticas), mas sim o “dizer” do não-sabido; não o ver, mas sim um mostrar. É no mostrar que a estética da existência se revela como o essencial e imprescindível, não na representação ou no ver. Não a visualização, mas o gesto; não a apresentação, mas sim uma encenação retórica é aquilo que deve ser retido, de novo e de novo, desta expressão de Samuel Beckett à qual Godard atribui tanta importância: “Mal 4 vu, mal dit”. O não-reconhecido não é o transcendental, mas sim o não-sabido. Sua invisibilidade não é nenhum mistério. É possível evocá-lo: mostrando. Na página 43 de seus Caprichos, publicados em 1799, Francisco de Goya coloca sob o título El sueño de la razon produce monstros sua procura por uma resposta à angustiante pergunta acerca do que, de fato, se passa na cabeça de um artista ou, de modo mais geral, de um fantasiador. Do artista e do fantasiante como alguém em permanente sonho, entenda-se bem. Sua resposta – traçada de modo tão contundente na alucinação dos fantasmas, das energias imaginativas que não precisam tornar-se necessariamente, em primeira linha, imagens da arte – mostra a conformação dupla, a ambivalência, aquilo que L. Binswanger mais tarde chamaria de “modo da vida desencontrada” e Karl Jaspers de “o emergir do significado a partir do vivido”, a saber, a irritação da constante mutação do mal em razão, e vice-versa. É o sonho, e não o sono que torna ativa esse tipo de influência, com a qual o real extrapola do modo desmedido, tomando a aparência do irreal. O mal se revela como encontro a si mesmo da razão e, inversamente, a razão como encontro a sim mesmo do mal. É sabido que tal a-moralização fundamenta, no mais tardar a partir de Baudelaire, a estética especificamente moderna que, indo além dos valores morais, reporta-se às categorias 3 Jean Luc-Godard par Jean Luc-Godard, tome 2. 1984-1998. Paris. 1998, p.410. NT: “A arte é dizer o que não se sabe, é mostrar o que não se vê”. 4 NT: “Mal visto, mal dito”. 4 desenvolvidas por ela própria: capacidade de correspondência, insistência, radicalismo, choque, intensificação do efeito. O belo no tecido onírico do mundo transforma-se no desejo do excesso. Característica desse movimento é a estética das artes que fundamenta tal passo, através da internalização do quimérico e da intensificação de seu caráter ameaçador. A ela corresponde, naturalmente com tônica inversa no tocante a valores e interesses, a estética burguesa desde Kant, marcada pela rejeição dos monstros. É precisamente aqui que fica demonstrada a eficácia do dispositivo do desejo, posto que a partir do romantismo o mundo passa a ser percebido como tecido dos sonhos por excelência (Novalis). A arte transforma-se em autopercepção da excentricidade do mundo. Ela é um movimento das transformações: o estar-fora-de-si do mundo é por ela percebido como sua oportunidade e surge como incorporação das desregulamentações, como sistema de regras do desregrado e desenfreado. Como isso garante-se, no plano conceitual, que a arte não esteja sujeita a nenhum tipo de restrição, nem na mensagem, nem no material, nem tampouco no efeito almejado ou em seu dimensionamento. 5 Henri Michaux e a estética da turbulência O anseio da arte articula-se como superação, não somente dos seus próprios limites, mas também das energias do mundo. A arte pensa a si própria e se projeta como transgressividade do mundo: desejo como força e poder da natureza. O campo sombrio do limite provoca não mais a arte da representação, mas sim a arte do impossível. É aí que atualmente investe uma “competência da arte para o caos”, a qual não se esgota no esquema da representação. Tal “competência para o caos” impõe a monstruosidade como ação e enredo. Os desenhos de mescalina de Henri Michaux são um modelo privilegiado de como esse processo se articula enquanto construção de um mundo interior do desejo artístico. Neles já não se distinguem a extensão, a implicação e a transgressão, pois suas intensidades têm por base a auto-observação experimental de uma percepção/representação neuronicamente estimulada. Trata-se aqui da interiorização como coisificação e ao mesmo tempo eliminação da subjetividade, de “sondagens intrapsíquicas” (Norval Baitello Jr.), da “dança neuronial” (JeanJacques Lebel). A mente é, como o sujeito, um corte através do mundo, não seu limite ou mesmo sua conformação monádica. Os desenhos de mescalina de Henri Michaux, elaborados num período que vai dos anos 40 aos anos 60 do século XX, giram em torno daqueles fenômenos que não são epifenômenos da alucinação, mas sim suas bases e pressupostos. Tratase especialmente das categorias ponto/limite/sujeito. O interesse de Michaux não está voltado para uma ampliação da consciência, mas sim para aquilo que ele insistentemente chama de “preparação para o abstrato”, tal qual se manifesta o mundo na organização epistêmica dos esquemas de percepção. As experiências de Michaux com a mescalina mantêm, naturalmente, uma relação de analogia com sua concepção nômade de literatura. No entanto, o crucial é que se trata de decisão singular, de início arbitrária, ainda que pessoalmente bem fundamentada, de investigar a mente pela via introspectiva, ou seja, fazer com que a mente seja 6 descritível a partir de si mesma, o que pressupõe a disposição resoluta para a deformação e desregulamentação. A auto-observação como experiência perfeitamente passível de generalização: uma análise neuronial que exige uma atitude precisa por parte de quem a realiza. O que interessa a Michaux são a cognição e os esquemas mentais, são conjuntos psicológicos e sensações, ou seja, as subrotinas que acompanham o processamento de signos, através das quais surgem os valores psíquicos da significação. Mas não lhe interessa o espírito, ou a consciência, nem tampouco a afirmação da identidade. Deve-se lembrar que o pano de fundo para as psicoses auto-induzidas e os deslocamentos da percepção de Michaux continua a ser o surgimento estético do romantismo europeu: a irrealização do mundo como realidade do imaginário. Na arte – aqui naturalmente compreendida como arte “de verdade”, não simplesmente quaisquer imagens – e pela arte é que se supera o mundo, cujo projeto só vem a se esboçar nessa mesma transgressão. É na arte que o sonho chega a uma imagem de si mesmo. A arte é – no método, na prática – uma superação de limites, não os meios para isso. O mesmo se coloca para as drogas e os alucinógenos. É exatamente por esse motivo que as drogas e os alucinógenos não tem uma relação íntima com a criação poética ou com o processo artístico. Talvez possam até, como Baudelaire anotou de modo inequívoco em Os paraísos artificiais, servir para aprofundar e alargar o material perceptivo. Mas também dificultam na mesma medida a formação/o adensamento artístico desse mesmo material. No prefácio de Misérable Miracle (La Mescaline),5 Henri MICHAUX se manifesta em 1957 sobre a empreita da mescalina e faz o seguinte resumo: Esta é uma expedição científica. Com a ajuda de palavras, signos e desenhos. O objeto de pesquisa é a mescalina. A própria imagem gráfica das páginas aqui reproduzidas, vinte e cinco das quinhentos e cinqüenta que foram anotadas, será capaz de fornecer mais dados aos que sabem ler uma caligrafia do qualquer outra 5 NT: O milagre mal-aventurado (a mescalina). 7 descrição. Em relação aos desenhos, que começaram a ser feitos logo após a terceira experiência, deve ser posto que eles devem seu surgimento a uma vibração que, por assim dizer, manteve-se de forma cega e automática por vários dias, mas que como tal, no entanto, espelha de forma acurada tais visões que ressurgem por esse meio. Diante da impossibilidade de reproduzir por completo o manuscrito, o qual representa de forma direta tanto seu objeto quanto os ritmos, as formas e caos, e também a resistência interna com todas suas rupturas, surgiram grandes dificuldades em relação à tipografia. O texto original, antes sensível do que legível, ao mesmo tempo desenho e escrita, não se revelou necessariamente satisfatório. Atirado de volta com vigor, zigzagueando pela página, zuniam em fuga as frases cortadas com suas sílabas voantes, distorcidas, atingindo a queda e chegando à morte. Seus trapos tornaram-se novamente vivos, levantaram-se de novo, saindo em disparada para em seguida de novo se espatifar. Suas letras evadiam-se fugazes ou se dissolviam em formas de zigzague. As seguintes, também desconexas, davam de símile forma prosseguimento ao relato, pássaros dramáticos cujo vôo invisíveis tesouras de súbito cortavam. Às vezes surgiam de pronto palavras atrofiadas. Surgiu-me por exemplo “martyryssiblement”, martelando-me repetidamente os sentidos, o que muito me dizia e não se me escapava. De outra feita repetia incansavelmente “Krakatoa! Krakatoa! Krakatoa”, ou algo bem banal como “cristal” surgia vinte vezes seguidas e fazia-me um grande discurso por incumbência de um mundo todo outro, sem que eu fosse capaz de ao menos acrescer-lhe algo, completando-o com uma palavra sequer. Solitário como um náufrago numa ilha, era meu tudo e qualquer coisa, mas também o oceano selvagem e agitado do qual acabara de emergir, e que evocava na memória, resistindo no fracasso, o náufrago que eu também era, diante dele.6 6 Henri MICHAUX, prefácio de Misérable Miracle (La mescaline), apud Peter WEIBEL (ed.): Henri Michaux, Meskalin-Zeichunungen. Kat. Linz, 1998, p.53. 8 Um dos fundamentos dos desenhos de Michaux é constituído certamente pelos efeitos e conhecimentos da “visão pareidólica”, sobre cujos resultados artísticos Leonardo da Vinci já se manifestara. Inúmeros outros pontos de referência podem ser agregados: palimpsestos/texturas entre a caligrafia, escrita hermética e imagem turbulenta; hieróglifo, a linha pantomínica da natureza oculta, procriadora, geradora, desenvolvida do maneirismo até as paisagens de Ferdinand Hodler; as utopias da arte como uma “língua franca” visual, em que as idéias do mundo e da natureza deixam-se compreender em sua medida universal, de forma direta e sensata, sem passar pelo registro das línguas dialetais; códigos secretos como alquimia e cabala; imagens dissimuladas e ocultas como nas anamorfoses; partituras de um tornar-se imagem de uma escrita cosmologicamente geradora; visualização da natura naturans, não da natura naturata, ou seja, incorporação do sentido lógico criador, e não representação dos fenômenos oriundos dessa geração: genealogia do movimento criador. 9 Tempo e visão sob a ótica das experiências com mescalina de Henri Michaux O futuro – enquanto experiência neuronial de todos esses fenômenos, categorias e aspectos que se condensam e se sobrepõem numa sincronia inimaginável – nada mais é do que a intensidade da presencialidade de tudo aquilo que já começou ou cessou de forma significativa, mas que, como futuro passado ou presente, sempre mantém-se como relação ao atual, ao presente, ao momento da presença. Esse momento, por sua vez, naturalmente nunca é apreensível, sendo antes sempre transitório – parte do tempo enquanto mudança dos porvires passados e futuros com relação à presencialidade. Até mesmo a irreversibilidade do processo cosmológico continua a ser uma especulação e depende da não comprovável hipótese de consistência que, desde Descartes, menos descreve a realidade do que evidencia o problema físico, de como a “instância geradora do sonho” é capaz de possibilitar a coerência do real. Não é possível definir realmente o tempo, como evidencia a dolorosa experiência tantas vezes repetida desde Santo Agostinho. Mas parece plausível pensar o tempo no plural. Apesar da referencialidade paradoxal em relação ao momento do transitório, o “tempo” revela-se como estratificação de todas as formas de movimento na simultaneidade, como intensidade. O tempo faz com que haja diferenças/divisas. Se não houvesse o tempo, tudo existiria de modo concomitante. Isso seria tanto intolerável quanto impossível. Por isso é típico que, nos mitos de tantas e diferentes culturas, o esquartejamento dos deuses é ao concomitantemente ponto de partida da cosmogonia e genealogia do tempo. O assassínio dos deuses que condiciona e possibilita sua mortalidade, nada mais é do que a condição de possibilidade do tempo e reprodução de sua gênese real. O futuro é por isso sempre o modus do diferente, aquilo que resta como diferença, independentemente da modalidade do tempo. É esse o pano de fundo das repetidas narrações acerca dos alongamentos do tempo possibilitados pelos alucinógenos, eternidades do momento, seqüências de transitórias eternidades isoladas entre si no espaço. Segundo Michaux, tudo aqui flui para pontos. O 10 sujeito nada é além de uma permanente passagem de dentro para fora num limite que é pontilhado, e por isso mesmo a qualquer momento e lugar permeável. Segundo Michaux, a função da mescalina não está na evocação do imaginário ou na tonificação das imagens perceptivas, mas sim na preparação para o abstrato. Isso condiciona uma disposição para a loucura (psicoses auto-induzidas) que não se deixa nivelar por nenhuma epifania de idéias ou visões. Tal assimetria é o problema ético fundamental da imaginação induzida via alucinação. Em princípio, ela não conhece nenhum equilíbrio e nenhuma imparcialidade conciliadora. Aqui não se pode esperar por uma recompensa. Escreve ainda Michaux, sobre o poder da imaginação e o domínio por visões geradas naturalmente por via neuronial, estabelecendo uma relação entre a alucinação extasiada do branco e a epifania do visionário: Branco absoluto. Branco mais puro que qualquer outro branco. Branco da subida ao trono do branco. Branco radical decorrente da exclusão, da absoluta eliminação do não-branco. Branco exasperado e delirante, branco berrantemente branco. Fantástico, irado. Vertedor da pele da teia. Branco terrivelmente elétrico, implacável, irresistível. Branco com chamas de branco. Deus do “branco”. Não, Deus não, macaco ululante. (Sob a condição de que não estourem minhas células.) Cessar do branco. Noto que por um bom tempo o branco terá para mim algo de histérico. À margem de um oceano tropical, num sem número de espelhamentos provocados pela luz prateada de uma lua invisível, por dentre as ondas das água agitada, num incessante crescendo... Por entre arrebentações silenciosas, no estremecer da superfície brilhante, no ir e vir veloz e lancinante de manchas de luz, no rasgar de cachos e arcos e linhas de luz, nos escurecimentos, no reaparecer, nos dançantes reflexos de luz que se dissolvem e voltam novamente a se formar, recolhendo-se e expandindo-se, distribuindo-se outra vez diante de mim, comigo, em mim, náufrago, num amarfanhar insuportável, meu sossego mil vezes violentado pelas línguas do infinito oscilante, subjugado senoidalticamente pela montante de linhas fluidas, imensamente com mil 11 borboletas, fui e não fui, fui tomado e estava perdido, minha presença era extrema. O farfalhar inumerável rasgou-me mil vezes. 7 7 Opus cit., p.56. 12 O limite e o indizível Os comentários de Michaux referem-se, aqui e em outros textos, ao fluir. Não está em foco a experiência do infinito, mas sim o fato de que ele não pode ser compreendido nem se manifestar a partir de si mesmo. A experiência – e aqui deve ser dito que trata-se daquela experiência obtida a partir do uso experimental da mescalina – refere-se a um infinito que constitui o individual e transforma o indivíduo em diviso, lugar da constante geração de pressão. O diverso individual é constituído através do infinito. Na alucinação vivenciam-se numerosos infinitos superpostos uns aos outros. É dessa forma que surge a turbulência do infinito enquanto infinito no individualizado. O constructo “sujeito” dissolve-se numa multidão de pontos em permanente fluir. O limite está aquém e além das pontuações. No campo turbulento do limite, o infinito corresponde ao puro desejo. Em seu glorioso livro Le non-dit des émotions,8 Claude Olievenstein analisou esse desejo menos como pura intensidade, decifrando-o muito antes como figura da angústia, a saber, de uma angústia profunda, absoluta, uma inamovível perhorrecência.9 É possível enumerar conceitos, fenômenos e enunciado: fluir, cobiçar, desejo/angústia – figura oscilante, pavor; existenciais da exploração do mundo, situações limite, androginia, S/M, droga/vício.10 Para o vício que se prende à droga, vale a obstinação em passar pela abstinência e a indissolubilidade com a qual se vai de uma droga para a outra, de caso a caso, mas sempre de modo ultimativo e incondicional. Em primeira linha, não é a alucinação ou embriaguez que torna a droga interessante, mas antes a constituição de uma aversão ao mundo postergada, num desejo irrealizável estabilizado enquanto vício que, justamente em sua condição de não realizável, torna-se irrenunciável e se renova 8 NT: O não-dito das emoções. NT: termo não dicionarizado em alemão (Perhorreszenz). Traduzi por neologismo de construção análoga, com o prefixo per-, o radical horror e o sufixo -cência, com base na hipótese de que aqui está em jogo um processo de “vivenciar grande horror”. 10 NT: mantive no original a abreviação S/M, na ausência de elementos que possibilitassem a inferência de seu correspondente em português. 9 13 naquele cold turkey (não se acredita, portanto, que as crises fisiológicas da abstinência conteriam alguma sensação psíquica de sofrimento – como demonstra claramente o fracasso de tentativas de terapia). Prefere-se a experiência dolorosa da limitação e do isolamento na abstinência à cisão do desejo por uma identidade infinita e infinitamente fluida na pura intensidade do non-dit, do indizível, impronunciável, não dito, do que não deve ser dito. É, portanto, o cold turkey que constitui a identidade do viciado. O que ele caracteriza não é precisamente a fase do querer-sair do vício, pretensamente motivada pelo sofrimento. A cisão, na qual o preenchimento do todo só então vem a se realizar enquanto diferença, é a realização de fato da condição de vício ou do projeto de vida do viciado. O viciado deve ser abordado como pessoa do vício, porque em todas as formas de vício trata-se sempre do mesmo, e um vício pode ser trocado por outro. O que importa de fato é, ainda que tendo de pagar como preço o maior dos horrores, o inatingível e o indizível, aquilo que continua a trabalhar contra qualquer estilização e ritualização, e que não por nada se deixa saciar. Os desenhos e escritos de Henri Michaux colocam-se num lugar único face a essa descoberta do inatingível, situando-se eles mesmos num ponto inatingível para qualquer teoria do “sujeito”, sem que seu significado para a discussão filosófica tivesse sido até hoje levado de algum modo em consideração. Uma conseqüência essencial das considerações de Michaux diz respeito à rejeição do órgão do olho e da hierarquia de dominância do visual. O ver dissolve-se na alucinação extasiada da mescalina em estímulos neuroniais, intensidade intra-mental, ser subjugado por visões da embriaguez branca ou sua conversão em negritude, uma negritude que ultrapassa qualquer medida. Da violência do ver A arte visual – e seja aqui insistentemente repetido, aquela que não se percebe como redução ilegítima – geralmente idolatra o ver, transfigurando o ato de um ver pretensamente inocente num ver apegado à ação e à verdade, conformação violenta do ver/da identificação visual. É por isso que, para a arte, acirra-se de forma decisiva a problemática do ver. Contra a insolência das imagens e a 14 autonomia da arte, pode-se recorrer ao problema da imaginação e seu envolvimento num “ver como traição”. As artes não conseguem executar as imagens dentro da linha geral ocidental sem se trair. Elas são a interrupção do olhar do anacoreta. Elas estão na função de heresia sem ortodoxia. Elas são a múltipla tomada de partido pela materialidade das coisas, contra o aspecto imaterial das imagens (...). No cômputo geral, as próprias grandes obras da arte européia foram manifestações do terreno, e permaneceram tão atentas quanto perspicazes diante das armadilhas da transformação em espírito. Ao mesmo tempo, elas resguardaram o tempo e o espaço. Elas eram localizáveis e datáveis, e dessa forma constituíam uma exortação ao efêmero e ao toque de corpos mortais. (...) Trata-se da preocupação do olhar a partir das coisas, trata-se de uma objeção consolidada contra a clareza, 11 contra o mortífero das imagens. “Troubler le regard, c‘est l‘art” (Marc le Bot). Isso permite uma compreensão profunda e baseada numa perspectiva bem outra de um dispositivo não só da perturbação, mas sim do ferimento ou até mesmo da destruição do olho, dispositivo esse que passou por um recorte praticamente obsessivo, em particular na cultura francesa do século XX. Menciono aqui apenas aquela mutilação que, demonstrada simbolicamente, chega mesmo à destruição do olho, desse sentido violentamente dominante dos tempos modernos, e que passou a ter um significado canônico. O ano de 1928 marcou o citado recorte de dupla maneira. Primeiramente, como corte através do olho, no filme Un chien andalu,12 de Luis Buñuel e Salvador Dali. Além disso, como arrancar do olho, em A história do olho, de Georges Bataille. Essa auto-mutilação submissa do órgão ótico significa, para o discurso do sujeito, uma aceitação radical do obsceno. Bataille escreve a esse respeito nas anotações sobre o já canônico texto Madame Edwarda: Sobre a forma análoga de testículos de touro e globos oculares: Desta vez fui até o ponto de tentar explicar a mim mesmo essas estranhas relações, imaginando para isso em meu espírito uma região mais profunda, onde se encontrassem as imagens elementares, todas obscenas, ou seja, as imagens 11 Dietmar KAMPER. von wegen. München. 1998, p.55-56. NT: citação em francês: “Perturbar o olhar, isso é que é arte”. 12 NT: Um cão andaluz. 15 mais indecentes, ao largo das quais sempre passa a consciência, incapaz de 13 enfrentá-las sem fuga, sem perplexidade. O insuportável como suspensão e realização do erótico ao mesmo tempo, figura de intensidade, linha de fuga do inimaginável, daquele infinito que constitui o individual na turbulência: esse erotismo é o terror, mas também a única possibilidade de reconhecê-lo: “O erotismo sério, o erotismo compreendido de forma trágica, significa assim uma completa reviravolta de nosso sistema de representação (ibid., prefácio a Madame Edwarda, p.57). A dor como desejo, desejo da dor como condição de possibilidade da percepção, rastro transcendente do real, o próprio real nesse rastro, nada mais abrindo que o real do insuportável. “E eu não conseguia perceber aquilo que estava acontecendo, nada sabia eu da volúpia extrema, nada sabia eu da dor extrema” (ibid., p.58). A experiência própria do limite, aquilo que Michaux chama de infinito turbulento e Olivenstein de non-dit, que representa em Battaile o terror como limite absoluto e limite do absoluto, significa: surgimento do real em função de tal transcendência. Para ir até o fim do êxtase, onde nos perdemos no deleite dos sentidos, precisamos sempre estabelecer-lhe um limite: esse limite é o terror. (...) É bem verdade que o terror nunca se associa à atração: mas se não é capaz de detê-la, destruí-la, o terror reforça a atração. Esse perigo paralisa, mas, se for menos ameaçador, pode também excitar a volúpia.14 Não atingimos tal êxtase, a não ser que vejamos a morte, a destruição diante de nós – ainda que apenas de longe. (...) Existe uma esfera em que a morte não significa apenas desaparecimento, mas sim aquela comoção insuportável na qual desaparecemos à revelia de nosso desejo, quando não poderíamos por preço algum desaparecer. É exatamente esse 13 Georges BATAILLE. Das obszöne Werk. Editora Rowohlt (das neue Buch), p.233. NT: traduzo aqui Lust por “volúpia”, enquanto expressão de desejo/vontade, de natureza sexual ou não (poder-se-ia também pensar em “apetite”). No original, são citados ainda os termos Begehren (desejo), Sehnsucht (aspiração) e Verlangen (exigência). Cumpre notar que o campo semântico formado por tais termos estabelece limites entre um termo e outro que diferem dos limites entre os diversos termos existentes no campo semântico correspondente em português. Por esse motivo, não é improvável que os termos aqui utilizados tenham outras traduções no contexto da obra de autores diferentes, ou na percepção de diferentes tradutores. 14 16 por preço algum, esse contra nosso desejo, o que marca o momento da volúpia mais extrema e da êxtase inominável, porém maravilhosa. Se nada houvesse que nos supera, que não pudesse ocorrer por preço algum, nunca atingiríamos o ponto do “fora de si”, aquele momento que ao mesmo tempo procuramos e evitamos com todas nossas forças. (...) Um superar extenuante (...). O Ser nos é dado num insuportável superar do Ser que não é menos insuportável que a morte. E como o Ser nos é novamente tomado de volta na morte, no mesmo momento em que nos é dado, precisamos procurá-lo no vivenciar da morte, naquele momento insuportável em que acreditamos estar morrendo, porque o Ser em nós é só excesso, quando a abundância do terror e da alegria coincidem. Até mesmo o pensar (a reflexão) realiza-se em nós apenas no excesso. O que significa verdade fora da representação do excesso, se não formos capazes de ver aquilo que vai além da possibilidade do ver, que é insuportável de se ver, como o deleite é insuportável no êxtase? Se não formos capazes de pensar aquilo que extrapola a possibilidade de pensar...? (ibid., p.59-60) A essa destruição, a essa na ausência de limites apavorante e drástica conseqüência da destruição do sentido, em nome de uma rejeição radical (de tudo o que for visto, visível, observável, plástico, visual), e com isso de uma rememorada ressonância da cosmogonia, que desde sempre surgiu do corpo dilacerado de Deus – para pelo menos sugerir mais uma camada de correspondência necessária – respondem as mitologias de uma criação dilacerada, que pode ser descrita, nos termos de Herbert Silberer, como um movimento pendular entre colocações “titânica” e “anagógicas”, entre por um lado forma fechada monoteísta e por outro heterodoxema e sincretismo heterotopológico.15 15 Cf. Herbert SILBERER, Probleme der Mystik und ihrer Symbolik, Viena, 1914. p.164, p.170 e seguintes, p.206 e seguintes, p.232 e seguintes). 17 O aniquilamento do olho Tal despedaçamento surge naturalmente também em numerosos textos e imagens alquimistas – até nos dias de hoje. “Do ponto de vista mitológico, há uma ligação íntima entre a luta com o dragão, o despedaçamento, o incesto, a separação dos ancestrais e vários outros temas e motivos” (SILBERER, ibid.). A essa série pertence, na cosmogonia babilônica, a cisão do monstro Tiamat através de Marduk. A divisão dicotômica no mito da criação é conhecida em várias culturas. O mito de Ísis e Osiris na mitologia egípcia é um dos modelos mais exemplares do cosmologicamente inevitável despedaçamento que é considerado ao mesmo tempo irrevogável e pré-condição para o renascimento da vida. Entre Horus, o filho de Isis, e Set, seu irmão, tem início uma luta em cujo desenrolar Set arranca um olho de seu adversário, engolindo-o em seguida, mas acaba perdendo sua genitália. Depois de ter sido finalmente derrotado, é obrigado a devolver o olho de Horus, que este usa para reanimar Osiris, que pode então entrar como soberano no reino dos mortos. A retirado dos olhos representa naturalmente a emasculação – um gesto que na auto-punição no final da tragédia de Édipo deveria compensar o incesto fatal, evocando com isso a lembrança constante da cegueira do mundo humano, na mais dolorosa das formas. A explicação do dividido heterogeneamente como condição da dinâmica real e verdadeira da vida – isso explica o cerne sincrético de todas essas mitologias. Em todas essas histórias individuais, a retirada do olho não é certamente um parspro-todo (mesmo que seguramente o seja no caso de Bataille e Buñuel/Dali), mas não deixa entrementes de apontar para o despedaçamento que realmente conta e se situa num nível mais alto – o do corpo todo. A lembrança de tais mitos – o mito iraniano remete nesse aspecto ao touro primordial “Abudad” – sugere que a saliente predominância do olho enquanto sentido dominante não deve ser vista apenas como uma figura destinada à auto-regulamentação e disciplina da modernidade européia. Todas as partes do corpo podem ser instrumento para a 18 execução do necessário despedaçamento, da dicotomia, a qual vem a ser inaugurada pelo sincretismo, em sua condição de experiência concomitante da necessária multiplicação de todas as formas de vida. Todas as partes do corpo podem representar todas as outras partes do corpo, mas também o próprio acontecimento cósmico. No curso real da violenta destruição, tanto o processo de despedaçamento quanto as partes do corpo transformam-se em atributos desse acontecimento. É precisamente esse ato de atribuição o que explica como as imagens podem tornar-se ao mesmo tempo epifenômenos, corpos de ressonância e mídia para a multiplicação sincrética: o hermetismo da forma possibilita atributos que colidem com a associação infinita de significados individualizados. Georges Bataille resume sua visão do problema do ver da seguinte maneira: Se quiséssemos imaginar o universo sem o homem, um universo no qual diante das coisas se abrisse apenas o olhar do animal, poderíamos, porque o animal não é homem nem coisa, apenas nos representar um ver no qual nada vemos, posto que o objeto desse ver é um deslizar, o qual passa das coisas que não têm sentido nenhum enquanto estiverem isoladas, chegando a um mundo pleno de sentido, sentido esse trazido pelo homem, que é quem confere a cada coisa seu sentido. (...) Em um mundo no qual o olho que se abre nada compreende do que vê, no qual, tomando como medida os nossos parâmetros, os olhos não vissem de verdade, não haveria nenhuma paisagem. (...) Tudo o que posso por fim apreender é que uma tal visão que me imerge na escuridão da noite e me cega, traz-me ao mesmo tempo para mais perto do momento no qual, e disso já não posso duvidar, a nítida clareza da consciência me leva para o ponto mais distante dessa verdade imperscrutável, que se descerra entre mim e o mundo com o intuito de ocultar-se. 16 16 Georges BATAILLE. Theorie der Religion. Munique, Matthes & Seitz. 1977, p.22-24. 19 A poética do kairos a exemplo de Gordon Matta-Clark Forças da experiência enquanto limite, ao mesmo tempo experiência das forças, que isso é o real enquanto ruptura, cesura, corte... dialética do limite. Corte no olho, corte através do real. O real enquanto embebido por inteiro do olhar violento. A tal proposta pode-se contrapor a obra de Gordon Matta-Clark, como modelo marcante de uma economia do desperdício e do esbanjamento, no espírito da poética do kairos. Gordon Matta-Clarck apodera-se do mundo através de transformações, as quais vieram naturalmente a provocar associações – umas mais, outras menos lícitas – face ao processo do hermético. Em foco está basicamente o cortar/separar e o ligar/fundir. O título da exposição sobre Gordon Matta-Clark da Generali Foundation (Viena, 1999/2000) expressa, de modo adequado: Reorganizing structure by drawing through.17 Alguns apontamentos sobre a pessoa e a obra de Gordon Matta-Clark (19431978): “O artista da serra elétrica”. O pai, pintor famoso, surrealista: Roberto Matta Erschaurren. A mãe: Anne Clark (depois Albert). Ambiente boêmio (Duchamp, meta-ironia), conceitos, estratégias artísticas: referências à arte conceitual e à arte minimalista. Estudo de arquitetura iniciado em 1962, na célebre Cornell School of Architecture. Criação do grupo e do programa anarchitecture (integrado por Gordon Matta-Clark, Denise Green, Jim Bishop, Joel Shapiro, Jeremy GilbertRolfe, Marcia Hafif). Como marca registrada, tem-se a integração de “novas” mídias, i.e., mídias não pictóricas, tais como performance, dança, música (Laurie Anderson). O grupo mantém – bem dentro do espírito da já citada pretensão a expandir os materiais e transformar a arte, não mais reduzindo-a a obra e representação, nos termos de Allan Kaprow – uma cooperativa que administra um 17 NT: Uma possível leitura do título em inglês seria “A reorganização da estrutura pelo trespassamento em desenho”. 20 restaurante de nome Food (inauguração no dia 25 de setembro de 1971), compreendido como empreendimento social, mas também como local de performances: teatro-comida. Ao ato de cozinhar é atribuído grande valor. Transformação na permanência: longa duração no lugar de erupções culinárias de curto prazo. É possível, com o tempo suficiente, cozinhar tudo. Matta-Clark parece ter como objetivo uma unidade in(di)ferenciável, uma espécie de matéria prima alquimística. Para Matta-Clark, o cozinhar não funciona como um cortar e rejuntar. Os ingredientes não são utilizados tendo em vista sua diferenciação. Quando se agrega lixo àquilo que se cozinha, já se conta de antemão com seu processo de dissolução. Os projetos sociais se agregam em torno do cozinhar, como, por exemplo, uma cozinha pública de sopas. O moto é “sempre ter algo cozinhando”. Como campo de trabalho podem ser considerados a ecologia urbana e a reciclagem, a cidade e o lixo. O método tem por objetivo a percepção do urbano e se compreende como “morada de um exercício para a vida na sarjeta”. A afinidade com a concepção de Robert Smithson (site vs. non-site) é evidente. Como fomentadores atuam, com permanente paciência e convicção, os marchands Horace e Holly Solomon, com galeria em Greene Street, 112. Os trabalhos esculturais de Gordon Matta-Clark têm acompanhamento fílmico permanente. Assim define Gordon Matta-Clark alguns estímulos essenciais e um fio condutor: Nossa reflexão sobre a “anarquitetura” era fugaz e nunca se propôs a desenvolver trabalhos que fossem uma postura alternativa diante de edificações ou antes diante da compartimentalização do espaço útil, ela demonstrava que tais posturas tinham raízes muito profundas. A arquitetura é também meio ambiente. Quando se vive em uma cidade, a estruturação do espaço como um todo torna-se de algum modo arquitetônica. Nós pensávamos mais em espaços vazios metafóricos, 18 lacunas, lugares que sobraram e áreas não edificáveis. As expansões dos materiais supracitadas têm por base, no século XX, uma oposição que funciona de forma complementar: destruição da forma e/ou culto do 18 Gordon Matta-Clark em Splitting, entrevista concedida a Liza Béan e publicada em Avalanche, 21/05/1974. Apud Katalog Gordon-Matta-Clark, Kunstverein Münster. 1999, p.40. 21 material. Os trabalhos de Matta-Clark servem a essa tipologia como uma espécie de arqueologia, por meio do cortar e da encenação efêmera da destruição da forma. Trata-se de uma inversão da estética do objet-trouvé,19 a qual estabelece o sincretismo do mundo, uma anomalia selvagem, através de associações. Ela constrói uma decomposição disjuntiva das associações não mais legíveis, quando o objet-trouvé não é estabelecido através de declarações, mas sim aceito e visto como realidade implícita, de modo que o objet-trouvé se coloca então sob o signo de uma outra prática, tornando-se com isso passível de mutação. A concretude flutuante solapa a hierarquia dos valores tradicional. A fantasia construída é sempre redução da fantasia e, portanto, insuficiente. O efetivo como resultado do conceito efetivado não alcança o real, mas reforça seu terror. Toda identidade do pensamento no mundo com sua materialidade constrange a gênese apagada de forma violenta, elimina a diferença e prescreve seu apagamento. De forma inversa a sujeira, a contaminação, a desconstrução, possibilitam juízos essenciais sobre a categoria residual dos valores. O deixar decair dos valores, o estabelecimento de rupturas, a demonstração das obsolescências, descrevem a lógica funcional do processo estético por baixo da fixação do duradouro e da estilização do significativo. O aí implícito reconhecimento do monstruoso é um modelo útil para correções na asserção de identidade do existente. A esquematização dos valores através de uma teoria do lixo como a de Michael Thompson mostra que o invisível e desprezado, como domínio residual do sistema como um todo, está na base dos valores duradouros e transitórios. Tal modelo descreve de modo adequado o inevitável fracasso de todas as tentativas de excluir arte da vida social comum. Matta-Clark preenche os requisitos básicos para a transformação do pensamento histórico em formal-analítico, da discursividade para o cálculo. Isso pode ser 19 NT: “objeto encontrado”. 22 expresso pela distância de Matta-Clark face a fragmentos de edificações como “esculturas anarquitetônicas”. O esculpir da arquitetura, o isolamento dos fragmentos esculturais tem continuidade através de recortes de imagens na fotografia: montagem de cortes que mantêm o corte. O caráter público das obras transforma o monumental do histórico, enquanto algo dado no agora (forma de surgimento do histórico), numa qualidade “non-u-mental”, na formulação de MattaClark. Sua intenção: pôr a descoberto as feridas do recalcado, e ao mesmo tempo restringir ou mesmo quebrar com os automatismos instituídos. A lógica dual da vontade e da matéria dá lugar, em Matta-Clark, a uma lógica triádica: vontadeprojeto-deslocamento. A insistência do efetivo que vem à tona através de seus cortes fomenta e articula a resistência do real. Trata-se de construir resistências. Os cortes de Matta-Clark devem ser valorados como encenação dessa resistência. Os cortes se articulam numa rede. Henri LEFEBVRE, em La production de l‘espace (1974),20 imaginou para esse espaço uma aranha que marca uma teoria especial como insistência de um conhecimento específico. Essa teoria de uma orientação serve como termo de comparação para que não se considere a prática incisiva de Matta-Clark como uma forma alcançada pela via da marcação, cujo significado residiria na sucessão de momentos diferenciadores, qual seja, escultura moldada, mas antes como fusão poética de dois momentos. O espaço não se constitui através de marcações lógicas sucessivas, mas antes se transforma num processo temporal, o qual se prescreve sob o signo do kairos, tendo por finalidade o desenvolvimento de paradoxias de momentos felizes. Já mesmo a aranha, enquanto forma de vida mais baixa, marca o espaço e se orienta em ângulos como nós... Já ela se estende para além de seu corpo animal numa segunda natureza de propriedades construídas por ela mesma, em seu fazer produtivo e reprodutivo. Para a aranha, há esquerda e direita, em cima e em baixo... Seu aqui e agora deixa o âmbito do simplemente objetivo, porque engloba 20 NT: A produção do espaço. In H. FABRE. Maravillas en los insectos. Madrid/Barcelona. Anos 20. 23 em si relações e movimentos. – Decorre daí que as leis fundamentais da orientação espacial estão dadas antes de tudo no próprio corpo. O Outro está presente enquanto oposto do Eu. Um corpo diante do outro corpo, impenetráveis, salvo por violência – ou amor. Objeto de forças que se expandem, agressão ou desejo. Aqui, o fora também é dentro, assim como o Outro também é corpo, carne suscetível de ferida, simetria receptível... (Assim encontram-se, estreitamente vizinhas, secreção e segredo).21 Dois modelos ou metodologias do cortar e também duas diferentes avaliações da dinâmica das ações de Matta-Clark podem ser mencionados: • punctum, recortar, fragmento, partida, destruição; • liberar, desconstrução, unidade, conservação dos recortes para um olhar purificado; levar as coisas à perfeição; o ser-efetivo ou efetividade ou ser-assim das coisas ainda não é o suficiente. No corte, o punctum parece dominar: pontualização, descontextualização, renúncia a grandes gestos. A questão permanentemente investigada é: misturar ou cortar, abrir ou concentrar? Ou, nos termos de Matta-Clark, splitting and cutting. Em termos vitalistas, os modelos do cozinhar e do cortar podem ser descritos desta forma: • modelo discreto: hierarquia, seleção, fragmento, diferença, aquecer, separar, aguçar, reorganização das diferenças, análise, transformação do transitório, tempo histórico ou irreversível; • modelo constante: ênfase, empatia, correspondência cósmica, deixar ferver, mexer, coesão situativa, sincretismo, endurecimento da unidade, cozimento dos recursos temporais necessários para a transformação; tempo de trânsito, dissolução. A construtividade da destruição reabilita a ruína e o arruinamento enquanto procedimento. O arruinar emerge como única ação estética justificada contra os 21 LEFEBVRE (1974), opus cit.. Tradução desse trecho para o alemão: Tom Fecht. 24 mitos da criação e as reivindicações da arte (Bazon Brock): desvendamento da mecânica das normalizações, da insistência no concreto, individual. Um dos últimos projetos de Matta-Clark, não mais realizado, tinha o sugestivo título Twentieth Century Ruins.22 22 NT: Ruínas do século XX. 25 O lugar da arte Disso é possível tirar algumas conclusões, no tocante a perspectivas futuras, sobre o lugar da arte: o que é decisivo trata hoje de gestos, seu espaço e seu tempo, e não mais da expressão. É por isso que, atualmente, os esforços estéticos e as práticas artísticas desenvolvidas deslocam-se de maneira decidida da representação para a atividade, da mimese para a ação experimental. Os lugares da arte não se originam nas imagens, as imagens obtêm seu lugar através da ação. Procurar lugares para a mensagem artística e um elemento essencial do processo de encontrar imagens de uma arte que não mais se esgota na obra, mas antes procura formas abertas de ação. Atualmente crescem – não somente nas gerações mais jovens – a consciência, a curiosidade e também a competência para achar e criar inúmeros lugares para a arte. Com isso muda-se também o material sígnico, o arranjo e, dito de forma um tanto patética, a linguagem da arte. Ela torna-se capaz de presença na medida em que mediatiza a si própria enquanto experimento e ação. Ela se liberta do quadro estático dos significados atribuíveis e fixos. Ela abandona a nature morte do sentido e sua allegorese. Seu tableau vivante já não é uma superfície. Da imagem-espaço de até agora emerge necessariamente a imagem-tempo: topografia de ações, não de referências. Se não soasse tão pretensioso, e se não soubéssemos que os tempos interessantes são aqueles que não têm uma ordem fixa, e que por isso não se pode propor novos paradigmas, porque falta uma medida para a padronização – poder-se-ia dizer que a mudança da imagem-espaço topográfica para a imagem-tempo dinâmica seria uma virada paradigmática da maior importância. 26