Homero e Platão para sobreviver à violência

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Homero e Platão para sobreviver à violência
INSTITUTO FERNAND BRAUDEL DE ECONOMIA MUNDIAL
CLIPPING
segunda-feira, 26 de novembro de 2001
Homero e Platão para sobreviver à violência
Em Diadema, jovens debatem justiça e preconceito no Projeto Círculos de
Leitura
FABIO DIAMANTE - O Estado de S.Paulo
O muro sujo e os portões enferrujados da Escola Estadual Maria Carolina Cardim, no bairro Campanário, em Diadema, na Grande São Paulo, parecem uma fronteira. Do portão para fora, pobreza,
tráfico de drogas e ausência do poder público. Dentro da escola, jovens de 13 a 19 anos lêem a
Odisséia, de Homero, falam do Banquete, de Platão, de suas vidas em meio à violência e o preconceito. E ainda cantam, encenam, divertem-se e fazem planos.
Todas as tardes de sábado, invariavelmente, um grupo de jovens se reúne com pesquisadores do
Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, associado à Fundação Armando Álvares Penteado
(FAAP), no Projeto Círculos de Leitura, iniciado em setembro de 2000.
A iniciativa chegou a ser proibida por diretores e políticos, mas acabou recebendo apoio. A proposta
nasceu após o Fórum Sobre Violência e Segurança Pública, há dois anos. Diadema possui um dos
maiores índices de criminalidade do mundo. No sábado, o sol estava forte e o dia era propício para
uma pelada na rua ou um passeio com as amigas. Mesmo assim, divididos em dois pequenos grupos, 15 alunos discutiam as aventuras de Ulisses, na Odisséia.
No segundo andar da escola, numa sala com buracos no teto, oito jovens liam em voz alta a página
41 da obra. Na roda, um jovem negro, bastante tímido, parecia se destacar. Participando da leitura,
o diretor-executivo do Instituto Braudel, Normal Gall, pede ao garoto que leia um trecho. “Quero
que leia como poeta. Você tem alma de poeta”, diz Gall.
O garoto a que ele se refere é chamado por todos de Tikinho - com k, como ele mesmo assina. Ele
escreve poesias e letras de rap. Seu nome é Umiraci Pinto Martins, de 15 anos. O garoto ficou mais
envergonhado ainda com o elogio de Gall. Colocou os óculos escuros e só aí conseguiu olhar de
frente para os outros. Tikinho lê com dificuldade: “Chipre, Fenicía, etiópes (sic).” Mas fala facilmente
sobre as lições que aprendeu com a Odisséia do guerreiro Ulisses, obra que leu inteira. “Ele era um
homem honrado e justo. Mostrou que a gente tem de correr atrás”, disse.
Justiça - O trecho do livro que conta o encontro de Ulisses com o cíclope de um olho na testa, Polifemo, levantou a discussão sobre justiça. Na história, Ulisses teve seus companheiros mortos pelo
monstro, que os prendeu numa caverna. O guerreiro não matou o cíclope, mas furou-lhe o olho. “A
justiça mesmo era matar. Olho por olho, dente por dente”, disse Charles Wilson Ramos, de 20 anos,
óculos escuros, boné ao contrário e diversos anéis e pulseiras de metal. “O olho por olho é justo?”,
pegunta Gall. “Não, mas hoje é assim.”
No andar de baixo, um segundo grupo de dez pessoas - oito meninas - discute também a Odisséia
com a pesquisadora do Instituto Braudel Maryluci de Araujo Faria. As palavras desconhecidas são
checadas no dicionário. Mais tarde, as turmas se unem para a discussão final. “Com muitas pessoas
eles ficam tímidos”, explicou Gall.
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segunda-feira, 26 de novembro de 2001
Alguns leram os textos que trouxeram. Tikinho tirou do bolso um papel amassado com o texto “Encontrei minha solução”. “Era para uma mina, mas ela foi embora”, disse. Ele parou de ir à escola
para ajudar a mãe a criar os irmãos. O livro que mais gostou foi Estação Carandiru, de Dráuzio Varella, que fala sobre a vida dos presos no complexo penitenciário. “Cada dia que a gente sobrevive,
a gente é vencedor.”
O encontro na tarde de sábado é encerrado com uma canção: “Círculo de Leitura, cultura e arte,
tenho orgulho de fazer parte”, diz o refrão da música, de autoria de Tikinho e de seu amigo Charles,
seguido de uma salva de palmas para lá de merecida.