JC Relations - Jewish

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JC Relations - Jewish
Jewish-Christian Relations
Insights and Issues in the ongoing Jewish-Christian Dialogue
Gensch, Brigitte | 01.08.2002
“Olho para olho”, não “olho contra olho”
Brigitte Gensch
Anotações exegéticas e sistemáticas para o regulamento jurídico de indenização
(Ex 21,22-25; Lv 24,17-22; Dt 19,16-21)
“Nenhum outro mishpat (regulamento legal) tem sido tão descompreendido de modo tão
premeditado e funesto. A expressão ‘olho por olho, dente por dente’ passa ainda pela promulgação
mais brusca do ius talionis, a formulação clássica duma rigorosa desforra com o igual, e muita gente
não conhece nenhuma outra palavra do Antigo Testamento.”
Com essa observação justa, Benno Jacob inicia a sua interpretação dos versículos Ex 21,22-25, dos
quais, sobretudo, trataremos no que segue. (Benno Jacob, O Livro de Êxodo, Stuttgart 1997,
661-673.)
E desde que e porque a assim chamada 5a antítese do sermão da montanha cristão opõe ao antigo
“olho por olho, dente por dente” o novo mandamento, não só de não resistir ao mal, mas também
de oferecer a outra face (Mt 5,38ss.), a formula de talião antigotestamentária avança ao ponto de
diferença dos dois Testamentos e ao critério da própria discriminação até das duas religiões - aqui o
Judaísmo, ali a Cristandade.
A oposição de “antigo e novo” está sendo, nas tradições da Bíblia alemãs, promovida
também pelo que a respetiva passagem Mt 5,38ss. está sendo provida com títulos como “Da
Desforra” ou “Mandamento de vingar-se somente moderadamente”, encontrando-se o
último título na “Gute Nachricht” [Boa Nova].
Com a fórmula tal, expressa-se um preconceito antijudaico especialmente obstinado, o qual, com
um hálito de Marcião, tem inteiramente um ricochete no próprio Deus. Pois, se segundo esse
preconceito, justiça se entender, antes de tudo, como a prática sem misericórdia, e portanto cruel,
da retaliação, então chegará certamente a ser duvidoso como o Deus justo do Antigo Testamento
possa ser idêntico com o Deus misericordioso e amável do Novo Testamento.
E como o Deus, assim o povo: uma paz com um povo que chama um Deus tal como o seu próprio,
evidentemente, jamais seria possível, sobretudo não quando tiver chegado à realidade de poder
dum estado próprio, a saber o Estado de Israel. “Olho por olho, dente por dente”: uma lógica por si
irresistível e interminável de franca retaliação estaria sendo posta em marcha com isso, que não
chegaria ao seu fim senão, afinal, ninguém teria mais nada a comer e todos estariam cegos.
Incontestavelmente, o sermão da montanha jesuano marca o começo duma tradição que entende
mal, a qual tira o regulamento legal “Olho por olho, dente por dente” do contexto original de
indenização orientada para a eqüivalência, enquadrando-o no quadro duma lógica brutal de
retaliação. Pois à citação da Setenta “Oftalmon anti oftalmon kai odonta anti odontos” (“olho
para/em vez de/por causa de olho; dente...”) segue a orientação de não resistir ao mal. O
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regulamento legal de cobrar um equivalente dum dano, chega a ser norma de retaliação de “igual
por igual/como tu a mim, assim eu a ti”, sendo convertido para resistência contra um mal, qual
resistência, em conseqüência da igualdade, teria mesma de ser chamada de má.
A qual absurdidade ética o pode levar, se não se elucidar suficientemente mantendo os
contextos pouco nítidos, mostra uma citação de Eduard Schweizer, que interpreta Mt
5,38ss.: “Em Jesus, a orientação ao outro volta a ser unívoca, preocupa-se com a
comunidade quebradiça e sempre posta em perigo, a qual pelo uso da força, mesmo se for a
de queixa legal e de processo, provoca muitas vezes irritação, contra-violência e
intensificação de escalação, as quais levam à catástrofe” (Die Bergpredigt [O Sermão da
Montanha], Göttingen 1982, 46).
A paralela lucanica (Lc 6,27ss) tira, assim, a conseqüência (porém em silêncio): que o ser proibido
retribuir o mal com mal, já resulta da - no sentido verbal - prática ingrata de reagir ao bom com
bom.
V. 33: “E se fazeis bem aos que vos fazem bem, que agradecimento tereis?”
Portanto, tem-se de reagir ao mal com o fazer o bem.
A transformação para a lógica má de desforra precipita-se, não por último, na linguagem.
A palavra “anti”, que se encontra como prefixo no verbo grego “antistenai = resistir”, rege também
o paralelismo “olho por olho/dente por dente”. Na LXX, “anti” representa a palavra hebraica “tahat”
(a ser traduzida por “para/no lugar de/representando-o ou o substituindo”).
A palavra grega “anti”, tomada em si, possui uma largura semântica, que inteiramente vem de
“por/em vez de/contra” até “ao lugar de/pró”. Mas pela combinação com o verbo adversativo
“resistir” também o “anti” do paralelismo (olho/dente) está sendo restrito ao significado
adversativo, o qual se precipita legalmente na tradução de “olho por/em troca de/contra”.
Completamente falsas, porém, são todas as traduções que projetem para trás, querendo imputar o
caráter adversativo tanto à palavra hebraica “tahat” como também ao estado das coisas indicado
pela palavra. Pois, como está para ser mostrado agora, trata-se na formula `ayin tahat `ayin, não
duma lógica de retaliação, antes da exigência de direito legítima duma indenização orientada pela
equivalência. Nenhum circuito ou ainda uma espiral - interminável e sem paz - de violência e contraviolência são para ser iniciados; antes, a paz de direito é para ser mantida ou conseguida. E a praxe
legal iniciada é orientada, não pelo ator, mas sim pela vítima, procedendo pela praxe jurídica
orientada pela referida fórmula, pois almeja, não a danificação ou punição dos feitores, mas sim ao
direito da vítima para a compensação do dano, p. ex. à “reparação”, é à que a fórmula de tahat
aponta.
Livremos, então, a fórmula de `ayin tahat `ayin das escórias do antijudaísmo.
Como norma de estrito retaliamento, o mishpót “olho por olho” nem foi jamais ensinado nem
praticado.
Lamentavelmente, também Calvin achou precisar perder-se no galope, quando na
“Institutio”, interpretando Mt 5, notou: “Assim os fariseus instruíam os seus discípulos para a
cobiça de vingança” (Inst. IV 20,20).
Já no tempo bíblico, e sempre no tempo de Jesus, a fórmula de talião orientava uma praxe da
indenização financeira para todos os casos de lesão corporal (exclusive homicídio e assassínio). As
obrigações de indenização, as quais exatamente não têm o caráter de multas pecuárias, são
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sumariamente chamadas de “tashlumím”; e para ouvidos só um pouco treinados no hebraico
percebe-se daí a palavra “shalôm = paz”. A aspiração à paz, na obtenção e conservação desta,
rege, não somente a religião judaica, mas também o direito judaico; prevenções e superação de
conflito funcionam como princípios guias de direito; e o princípio “mipnei darkei shalôm” quer
animar a razão pacifista exatamente para a, por causa da, paz, (mipnei darkei shalôm), tomando
caminhos inusitados também: assim que Abraão o fez, quando, pressentindo o conflito por vir,
separou-se do seu sobrinho Ló, e ambos seguiram os seus caminhos (Gn 13,5-12).
Entre os tashlumím, a Mishnáh conta não só a indenização no sentido estreito, conhece, antes,
cinco áreas, nas quais seja preciso prestar restituição (cf. Mishnáh, tratado Bava Qama, cap. 8,1):
substituição de dano (“nézeq”), indenização por dores (“tsa`ar”), custos de cura (“rifui”),
impossibilidade de trabalhar (“shébet”) e por ser ofendido (“boshet”).
V.22-25: complicações exegéticas, halákicas e de história social
(Benno Jacob, S. R. Hirsch, Frank Crüsemann, Jürgen Ebach)
O Consenso:
Concórdia há na literatura determinante em que “tahat” tem de ser traduzido por “em substituição
de, por, ao lugar ou em resposta por”. Numerosos exemplos bíblicos podem justificar isso, sendo
alguns citados aqui:
Gn 2,21: “E Deus fez cair um sono profundo sobre o homem, e quando dormia, tomou um dos seus
lados e pôs carne no lugar dele” (“tahténòh”).
Gn 4,25: Adão conheceu outra vez a sua mulher, ela deu à luz um filho e o chamou de Shêt, pois
Deus me pôs outra semente no lugar de Hébel, pois Qáyin assassinou este” (“tahat Hébel”).
2R 10,24 (Yehu obriga os seus vigilantes a responderem pelos prisioneiros). “Quem deixar escapar
um dos homens que vos entregou, responde com a sua vida por ele!” (“nafshô tahat nafshô” = a
vida do vigilante pela vida do prisioneiro).
1R 20,39: (também aqui trata-se da responsabilidade por um prisioneiro): “Se ele desaparecer,
responderás com tua vida por ele, ou deves pagar um talento de prata” (“nafshekó tahat nafshô”).
Os dois últimos exemplos ocupar-nos-ão ainda, pois nesses Frank Crüsemann apoia a sua tese
central de que - sempre que a substituição financeira não for expressamente mencionada - a
fórmula de “néfesh tahat néfesh” (“vida por vida”) exclui a possibilidade duma indenização em
dinheiro, insistindo, antes, em que só vida (culpada) possa substituir vida perdida.
Ex 21,36: “Ou se for agora sabido que é um boi corneador, pelo que também levantou nas pontas
ontem e anteontem, e o seu proprietário ainda não cuidar dele: ele tem de substitui-lo plenamente,
boi por boi; o morto, porém, fica dele” (“shalêm yeshalêm shor tahat hashôr”).
Dois rabinos - duas opiniões: referente a uma controversa não resolvida entre S. R. Hirsch e Benno Jacob:
A interpretação do Livro da Aliança pelo grande exegeta e rabino Benno Jacob, mencionada já no
começo, tem, no que se refere ao capítulo 21, a vantagem de estar sem ruptura e de ser acabado,
porque trata todos os casos que trazem a fórmula de tahat, sem exceção, como tais de
compensação financeira. Assim, B. Jacob traduz, consequentemente, também o versículo 23 assim:
“Se, porém, acontecer um acidente, deves dar substituição de vida por vida.”
Aí, 661. O regulamento de ligar o primeiro elo da fórmula de tahat com “substituição”:
substituição de vida, substituição de olho, substituição de dente etc., Buber/Rosenzweig,
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então, aceitá-lo-ão na sua tradução da Bíblia, como, em globo, a tradução deles pousa, em
algumas decisões lingüísticas e teológicas, no comentário e na tradução de B. Jacob.
Precisamente também a “teologia do nome”, de reproduzir o Tetragrama com “ICH” [EU],
“DU” [TU], “ER” [ELE], “SEINE” [SUA, DELE] etc. (pronomes pessoais e possessivos em letras
maiúsculas e espaçadas), baseia-se nas visões teológicas de Jacob.
Naturalmente, também B. Jacob insiste no a priori da ética judaica de que a vida (humana) e a sua
manutenção é o bem maior, e de que ela, de todos os bens, mais merece proteção - não havendo
nenhum valor de troca no mundo, e muito menos o valor de troca do ouro, que possa restituir vida
perdida.
Só três ações rompem essa hierarquia, pois evitar essas têm categoria mais alta que a
manutenção da vida e de si próprio: se alguém, sob ameaça de morte, for forçado ou
forçada a caluniar o Eterno, de assassinar ou violentar outra pessoa, então terá de sacrificar
a vida própria.
Mas, Jacob argúi, como se trata, no versículo 23, dum trágico acidente completamente involuntário
(“òssôn”), a saber nem dum homicídio por engano nem de modo algum dum assassínio, que chega
aqui a vez do mishpót dum pagamento de dinheiro, embora a rixa masculina tenha custado uma
vida, a saber aquela duma mulher grávida. E enquanto o pagamento de dinheiro no versículo 22
não é obrigatório (o casal pode, mas não precisa, insistir para uma indenização pela perda dos
fetos), existe, no caso do acidente mortal, para os juizes (chamados de “pelilim” no versículo 22) a
obrigação de pagar ao homem da acidentada uma indenização (“e deves dar”, referindo Jacob o
“tu” aos juizes).
Samson Raphael Hirsch, o grande rabino neo-ortodoxo do século 19, tira da incomensurabilidade
simples de dinheiro e vida outras conseqüências de interpretação do que Benno Jacob. Assim diz
para o versículo 23:
“Se, porém, acontecer um caso de morte, terás de dar vida por vida.”
Da frase do versículo 22: “... e se não acontecer caso de morte, deve ser multado com dinheiro...”
Hirsch se ganha a antítese, que também escora halakicamente, a saber: se acontecer, em geral, um
acidente com morte conseqüente (como conseqüência duma ação humana), essa “dispensa”
também “esse cometimento de crimes que merecem pena de morte, não sujeito à pena de morte,
da pena de dinheiro” [S. R. Hirsch, O Pentateuco, 2a parte: Êxodo, Tel Aviv 1986, 241] (é que o
cometimento sujeito à pena está, em todo o caso, privado da possibilidade de indenização por
dinheiro: o refúgio ou a execução são aqui as sanções).
O apoio halakico encontra-se no Talmude Babilônico, tratado Ketubôt (Ket. 35a). Aí, está sendo
discutida a diferença de princípio, a qual separa a matança dum animal daquela duma pessoa, a
respeito das sanções a serem infligidas e não infligidas. Ponto de partida é a frase de Lv 24,21:
“Quem matar um animal, deve-o substituir, quem, porém, assassina um homem, será matado.
Na escola de Hiskias se ensinava - assim a nossa paráfrase de Ket. 35a - que a matança dum
animal, em todo o caso, obriga ao pagamento de substituição por dinheiro, não importa se o animal
foi matado de propósito ou sem propósito, premeditada ou inopinadamente. E completamente
correspondente a isso, o mero fato da matança duma pessoa por uma pessoa, isenta esta da
obrigação de indenização por dinheiro, nem propósito nem engano, nem intenção nem sem querer,
nem qualquer grau imaginável de descuido podendo algo mudar nisso.
S. R. Hirsch, portanto, tira do total dos casos de direito regulamentados pela fórmula de tahat, o
caso especial da perda de vida, pela qual não pode haver regulamento de substituição financeiro; e,
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salvo essa exceção, Hirsch inscreve a fórmula de consenso judaica de que “tahat” introduza a
jurídica praxe judaica dos tashlumim, na sua tradução (como também B. Jacob e Buber/Rosenzweig
o fazem).
Versículos 24-25: “Olho substituição por olho. ... Calombo substituição por calombo.”
Direito igual para todos?
Também Frank Crüsemann, de cuja exegese social-históricamente motivada vamos falar agora,
exclui a problemática do “néfesh tahat néfesh” (“vida por vida”) do total dos regulamentos dos
tashlumim, no entanto, por outras razões e outras finalidades que S. R. Hirsch. É que Crüsemann
pergunta pela relatividade social-histórica do texto bíblico, a saber pelas condições de formação
sociais e políticas do mesmo e as suas intenções de origem sociais e políticas. Assim, deixa-se
conduzir pela posição do problema de enquanto a discriminação da sociedade de então em
escravos e livres determina a estrutura de direito do Livro de Aliança.
Reproduzimos a seguir as exposições de Crüsemann, as quais publicou em: Crüsemann,
“Auge um Auge...” [Olho por Olho ...] (Ex. 21,24s.), Ao sentido social-histórico da lei de talião
no Livro da Aliança, Evang. Theol. ano 47o, caderno 5, 1987, 411-426.
Para o Livro de Aliança em total, constata que o teor do mesmo de princípios de direito estaria dado
com o regulamento dos tashlumim, tratando-se, então, preferencial e preponderantemente da
praxe da indenização de dano financeira. O capítulo 21, que está no meio do nosso interesse,
tematizaria essencialmente o direito de escravo, direito esse que dirigiria a construção e estrutura
interna do capítulo (vv. 2-11 regulamentam a duração da situação de escravo, a transição para a
escravatura permanente, e direitos e modos de libertação; vv. 12-17 dedicam-se ao próprio assunto
do direito de morte e sejam postos entre parênteses aqui; vv. 18-32 são organizados pelo ritmo de
três vezes “delitos contra livres - delitos contra escravos”: v. 18ss., v. 22ss., v 28ss.).
Para a passagem v. 23b - v. 25 (“vida por vida ... mossa por mossa”) Crüsemann anota uma quebra
nítida de estilo ao precedente, pois o modo de falar casuístico usado até agora, está sendo
abandonado agora inconfundivelmente. A tese exegética central reza agora: atraído pela fórmula
absoluta de “néfesh tahat néfesh” (o caso de morte em v. 23 reclama a vida culpada), foi inserida
ao texto a glosa de vv. 24-25 com as formulações de tahat análogas, as quais exigem todas a
efetivação do talião estrito no lugar de indenização financeira. Vendo os arrabaldes textuais da
inserção posterior, deduz-se daí o sentido da mesma. É que um escravo ou escrava sofrer uma
lesão corporal grave, este ou esta tem de ser - somente - libertado (v. 26); se não morrer um
escravo ou escrava imediatamente pelas pancadas, mas somente 1-2 dias depois, não sucederá
conseqüência jurídica nenhuma, pois o escravo o a escrava “é a sua propriedade” (v. 21).
Segundo Crüsemann, portanto, a exigência de talião estrita protesta contra a inserção contra o
tratamento desigual de livres e escravos, enquanto se tratar da lesão da integridade corporal. A lei
de talião estrita no contexto do direito de escravo, reclama que os donos não sejam tão barata e
baratamente demais isentados da sua culpa, e que não se possam livrar por um preço
demasiadamente baixo das ações nocivas.
Com boas razões, para as quais mostrar não é o lugar aqui, Crüsemann data a glosa de Ex 21,24-25
no tempo de crise do século 8, à qual a crítica profética reage.
O Livro de Aliança, como um todo, é mais antigo e nasceu só depois da formação de estado
de Israel no século 9, pois só com essa havia escravatura em escala maior e, com isso, a
necessidade do regulamento legal da mesma.
Algumas passagens da literatura sapiencial e profética documentam a paralelidade: assim, por
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exemplo nos provérbios de Salomão, diz (Pr 13,8):
“Dinheiro expiatório pela vida duma pessoa é sua riqueza, mas o pobre não ouve reprimenda.”
Quer dizer: o rico compra a sua liberdade da sua culpa, irritando-se o povo sobre isso; o pobre está
isento de tal irritação, pois não pode comprar a sua liberdade, mas sim tem de responder com o
corpo e a vida. Analogamente, a glosa reflete a problemática de que, perante a crise social
(empobrecimento e depauperação, descida na escravatura de dívida e acumulação de riqueza), o
Livro de Aliança, com a sua - tomada em si - boa praxe de indenização de compensação financeira,
chega a ser abusável e abusado.
Não há “Wiedergutmachung” [refazer o bem] (Jürgen Ebach) ou:
Substituição do dano, em vez de “Entschädigung” [tirar o dano]
Há pouco, outro exegeta do AT, Jürgen Ebach, recolheu as reflexões de Frank Crüsemann, levandoas em frente.
Jürgen Ebach, Der Fluch des Christentums? Gewalt und Gewaltlosigkeit in der Bibel [A
Praga da Cristandade? Violência e Sem-violência na Bíblia], palestra de 18-1-2001,
pronunciada na ESG Bielefeld.
As teses de Ebach, porém, visam, não tanto o histórico social, como mais as dimensões da filosofia
de direito e da ética.
Ebach recebe a tese de Crüsemann de que os vv. 24-25 trariam uma inserção posterior
protestadora na camada anterior do texto, inserção essa que partiria do regulamento da
substituição financeira. A camada da substituição do dano, camada essa que dá a impressão de ser
mais nova, revela-se então como a mais antiga, mas a camada agindo como a mais arcaica do
talião estrito, porém, como a camada verdadeiramente mais nova.
Porquê, no entanto, essa re-arcaização aparente do direito, este que, em ensino e prática, nunca
conhecia a realização de talião estrito nem a quis conhecer? Já que, antes, as discussões rabínicas e
talmúdicas provam a absurdidade de todas as tentativas de deixar tal exigência de talião estrito
chegar a ser real. A Gemara B. Q. 83b/84a discute algumas das absurdidades, p. ex.: como se deve
chegar a um regulamento de eqüivalência, em vista do fato natural de que dois olhos nunca têm
tamanho igual, mas sempre são relativamente maiores ou menores. O quê se deve fazer, quando o
danificador já estiver cego, como este deve “restituir” o dano de perda de olho que causar?
Ou: Como se deve encontrar compensação justa, se um cego de um olho ou danificar ou for
danificado? Perder ele um olho, e com isso toda a sua capacidade de ver, o culpado deve então ficar
cego ou não? Se, porém, o cego de um olho for o culpado, fazendo perder um olho a alguém , seria
então permitido sancioná-lo com a perda do único olho, embora essa sanção fosse
desproporcionada? Etc., etc.
Embora, então, realização do talião estrito não seja possível, a glosa bíblica, com a sua fórmula
arcaica, não a larga. Exorta com isso, em cada efetivação duma substituição de dano monetária,
que se recorde da discrepância, a qual perdura entre o dano e a substituição deste. Cada
regulamento financeiro de dano não pode realizar senão aproximação à equivalência, nenhuma
correspondência real - só uma vida poderia substituir uma vida. Embora um dano possa ser
atenuado a respeito das suas conseqüências, não deixa de ser “reparado” simplesmente.
Talvez devíamos completamente renunciar à palavra de “indenização”, porque sugere que um dano
possa ser removido do mundo, falando, em vez disso, consequentemente de compensar do dano,
pois é que a palavra “compensação” indica exatamente que o dano não pode ser levado a
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desaparecer.
Um dano, cada dano, fica marcado na realidade. Mas exatamente esta impossibilidade de o anular
marca, tanto a necessidade como o limite da compensação financeira realmente praticada.
Finalmente, seria para perguntar, ao que aponta, então, a impossibilidade de anular além dos
limites da compensação. Aponta à necessidade do perdão, assim, pelo menos, podemos entender a
Mishnáh B. Q. 8,7:
“Embora lhe pague indenização, não lhe será perdoado antes de ter rendido perdão a ele.”
Só o conjunto de prestação de compensação e pedido (consentido) de perdão extingue o dano e,
com isso, estamos teologicamente na esplanada do “Yôm haKipurim”.
Tradução: Pedro von Werden SJ
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