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CULTURA Tema: O Samba pede passagem Pesquisador: Francis Vogner dos Reis Sinopse Desde o advento do cinema sonoro o samba foi uma das principais marcas do cinema brasileiro, seja como tentativa de estreitar laços com o grande público (na grande época do rádio entre os anos 30 e 40 e nas chanchadas dos anos 50), seja na busca de afirmar uma identidade brasileira urbana e moderna (que foi a tentativa de muitos filmes ligados ao Cinema Novo e ao Cinema Marginal). Nos anos 1950 as chanchadas da Atlântida tematizavam a cultura do carnaval e dos espetáculos, como Garotas e Samba, de Carlos Manga. Nos anos 90, Julio Bressane, que sempre usou o samba em seus filmes experimentais, faz O Mandarim, filme que trata do assunto por meio do cantor Mário Reis. No cinema da última década, o samba continua sendo questão primordial quando se pensa o legado da cultura brasileira. Filmes como Cartola Música para os Olhos, de Lírio Ferreira e Hilton Lacerda e Paulinho da Viola -­‐ Meu tempo é Hoje, de Izabel Jaguaribe, mostram que a mítica do samba se mantém viva. O programa pretende estimular uma reflexão sobre o papel do samba na cultura popular e o modo como o cinema trabalha suas implicações. Apresentação dos filmes e das questões Garotas e Samba (Brasil, 1957), de Carlos Manga Cineastas como Watson Macedo e José Carlos Burle pertencem à primeira geração das chanchadas, pois começaram a filmar nos anos 1940 (ainda que não tenham começado em comédias musicais), já Carlos Manga pertence a uma segunda geração que começou a filmar muito jovem nos anos 1950. Carlos Manga se notabilizou por uma certa elegância na estilização das chanchadas, gênero que na época era considerado por muitos críticos como produto tecnicamente precário e esteticamente pobre. Na comparação com Watson Macedo, que possuía um estilo mais direto e parcimonioso (alguns diriam “primitivo”), a sofisticação de Manga faz saltar os olhos. Garotas e Samba, de 1957, é um filme que inicia o período final das chanchadas da Atlântida e tem vários elementos que, desde o início, constituíam o gênero: o enredo se passa no mundo dos espetáculos, mais precisamente no de espetáculos musicais, personagens ingênuos (muitas vezes pobres) às voltas com vigaristas, personagens pitorescos, moralistas e ricaços, além de, é claro, números musicais com sambas e marchinhas. Em Garotas e Samba, duas moças do interior sonham em fazer sucesso no rádio e nas boates do Rio de Janeiro. Moram em uma pensão administrada por uma solteirona recalcada. O interesse amoroso -­‐ uma delas se apaixonará por um galã do rádio -­‐ desencadeará as confusões. O Mandarim (Brasil, 1995), de Júlio Bressane Entre os cineastas modernos brasileiros, Júlio Bressane é quem mais se apropriou do repertório da canção música popular e sempre teve no samba matéria prima fundamental. Já em O Anjo Nasceu (1969) o samba canção estava presente como elemento dissonante em uma estética da agressão. Posteriormente (e até os dias de hoje) o samba é uma constante em seus filmes, seja como tema, seja de maneira inusitada como em Cleópatra (2007), onde ele pontua a história da rainha do Egito com alguns sambas. Porém, foi em 1995 que o diretor se lançou a realizar um filme especificamente sobre o samba a partir da figura do cantor Mário Reis. Parte do elenco do filme é de músicos interpretendo a si mesmos (Caetano Veloso) ou outros cantores e compositores (Chico Buarque interpreta Noel Rosa, Gilberto Gil personifica Sinhô). Nesse cruzamento entre passado e presente Júlio Bressane encontra o terreno mítico da música popular brasileira tendo no samba uma espécie de alma e gênese da canção moderna brasileira. Paulinho da Viola -­‐ Meu tempo é hoje (Brasil, 2003), de Izabel Jaguaribe Se o filme O Mandarim, de Júlio Bressane, encontra o lugar do samba em um tempo híbrido de passado e presente, em Paulinho da Viola -­‐ Meu tempo é hoje, se encontra o lugar do samba no presente, rejeitando a nostalgia, pois, segundo o próprio músico, “não vivo no passado, mas o passado vive em mim”. A atualidade do samba e também dos sambistas de outrora (por intermédio de Paulinho da Viola) são, portanto, a discussão central do filme de Izabel Jaguaribe. Já no início Paulinho da Viola relata que não sente saudades, nem nostalgia e que tudo que foi realizado no passado para ele ainda é vivo e atuante. A tradição do samba, portanto, seria elemento vivo e dinâmico. O subtítulo do filme “meu tempo é hoje” frisa esse presente permanente na nossa tradição musical mais célebre. Nessa junção “entre tempos” é que se dá o filme de Jaguaribe e a música de Paulinho de Viola. 2 Cartola -­‐ música para os olhos (Brasil, 2007), de Lírio Ferreira e Hilton Lacerda Por meio de uma estética de fragmentos os diretores Hilton Lacerda (roteirista de Baile Perfumado, Amarelo Manga, Árido Movie, entre outros) e Lírio Ferreira (diretor de Baile Perfumado e Árido Movie), contam a história de Cartola e pensam o seu legado. Os diretores não recorrem somente a entrevistas e imagens de arquivo, mas procuram criar imagens que venham a sugerir um leve princípio de ficcionalização e um formalismo incomum em documentários. É interessante notar que o modo como o filme aposta mais em imagens e música (sua junção e disjunção) do que em uma narração complexa e cronológica. Há cronologia e depoimentos de especialistas, porém o investimento em várias naturezas de imagem (desenhos, imagens documentais atuais e antigas, imagens de arquivo, de filmes) dá o tom do filme que procura, não só realizar uma biografia, mas fazer um inventário de imagens que representem Cartola e o samba. Material Anexo Ode ao cinema com samba. Ou samba com cinema? Este ano de 2010 comemora um marco no cinema nacional. A criação da companhia de cinema Cinédia. Esse estúdio criado por Ademar Gonzaga simbolizou a organização do cinema no Brasil como negócio, trazendo para o estrelato artistas do naipe de Oscarito, Grande Otelo, Carmem Miranda e por aí vai. Nos 80 anos de comemoração da Cinédia, o Ocê resgatará para você leitor momentos importantes da mistura cinema e samba. O primeiro filme com cenas de carnaval foi rodado em 1911 e se chamava “Pela vitória dos clubes”. Mas, era um filme mudo, com acompanhamento na sala de exibição de músicos. O primeiro filme falado produzido sobre o carnaval é a “A voz do carnaval”, de 1933. O filme é um semi-­‐documentário e fala do reinado de Momo no Carnaval carioca. Neste filme há pérolas de uns compositores que “quase” não contribuíram para o samba nacional se tornar esta arte de primeira grandeza. Os números musicais do filme tinham bambas da mais alta linhagem do samba, como Noel Rosa, Lamartine Babo, Assis Valente e vocais de Carmem Miranda, que ainda não tinha sido descoberta pelos americanos. O filme teve boa aceitação no Brasil e fora dele. Foi levado pela embaixada brasileira na França, berço do cinema mundial, para uma série de cinco exibições. Foi sucesso e mostrou ao mundo nossa festa de Momo. 3 A ideia e musicais “Made in Brazil” teve prosseguimento com mais dois clássicos do nosso cinema. “Alô, alô Brasil” e “Alô, Alô carnaval”, de 1935 e 1936 respectivamente foram outras produções musicais da Cinédia nos anos 30 com clássicos do nosso samba. As duas fitas traziam o melhor do rádio da época. Lá estavam Carmem Miranda, Lamartine Babo, Oscarito, Francisco Alves, Dircinha Batista e uma constelação de artistas que fizeram a base da nossa cultura popular. Eram filmes de leveza comprovada, tendo as músicas como pano de fundo do roteiro. Bem ao estilo dos musicais norte-­‐americanos em que até os mais elementares diálogos são realizados com canções. Alô, alô Brasil e Alô, alô Carnaval consolidaram o modelo de musical nacional, pois se embasaram no modelo dos EUA, porém souberam utilizar nossa música. A Cinédia pegou a embalagem estrangeira, colocou nosso tempero, o que caiu nas graças do público brasileiro. Afinal, era uma sensação nova ver em movimento as vozes que embalavam a imaginação dos ouvintes, grudados nos seus programas favoritos. Esses filmes são marcos importantíssimos para a arte brasileira, pois construiu a primeira identidade audiovisual brasileira de verdade. Os filmes produzidos por aqui tinham temáticas mais estrangeiras. E o cinema nacional conseguiu criar uma linguagem mais local e se comunicar com o brasileiro através desses filmes musicais, que usaram a fama e talento dos artistas do rádio para atrair o público às salas de cinema. Até então, somente a música e a literatura haviam ganhado status de produto nacional. Além da importância histórica para o cinema, os musicais feitos pela Cinédia e mais tarde copiados por outros estúdios como Vera Cruz e Atlândida anos depois, registraram os movimentos do carnaval para quem não conhecia ao vivo. Potencializaram a força de canções que eram tocadas somente em rádios do Rio e São Paulo. Massificou por completo o modelo de carnaval como festa popular. A importância da Cinédia ao completar 80 anos de existência ultrapassa o cinema. Atinge em cheio várias expressões da arte brasileira, pois revelou atores, cantores populares; colocou em evidência compositores das canções que ainda cantamos. Abaixo, um vídeo do programa Arquivo N, da GloboNews com a história completa desse estúdio que fez tanto pelo cinema quanto pelo samba brasileiro. OCÊ NO SAMBA | 2 de março de 2010 Disponível em http://ocenosamba.com.br/2010/03/ode-­‐ao-­‐cinema-­‐com-­‐samba-­‐ou-­‐samba-­‐
com-­‐cinema/ 4 O trecho a seguir é extraído da dissertação “As contradições da canção -­‐ música popular brasileira em O Mandarim, de Julio Bressane”, de Fábio Diaz Camarneiro. Mandarim Sobre a importância da música em Bressane, escreve Ismail Xavier: Desde o início, são freqüentes os momentos de escuta de uma canção integral, em gravação antiga, que vem para se relacionar de formas variadas com a imagem, numa articulação em que a música impõe a sua duração de começo a fim. Mais do que dar o tom, ela se faz um momento especial que podia ser de desconcerto nos filmes de 1969-­‐70 ou, mais tarde, de festa, como em Tabu e Mandarim. Nestes dois filmes, Bressane altera a regra do jogo e, ao invés da música como som off, traz à cena a voz e a performance do cantor. Sem grande aparato, temos o momento vocal que, na sua aparente informalidade, impõe a vivacidade e a técnica de uma locução discreta, enquanto a duração do plano permite recuperar o grão da voz e suas nuances, a dimensão reveladora da canção popular. O máximo no mínimo. Em O mandarim, a explicitação da realização do filme cria um espaço (o Rio de Janeiro mítico do Copacabana Palace) e um tempo para a narração, além de criar um princípio organizador (a memória, as “obsessões” de Bressane) para as escolhas envolvendo a música popular brasileira. Esse princípio de organização é reforçado no último plano do filme, uma dedicatória “às avessas”: ao invés do filme ser dedicado a Mário Reis, é o cantor, em um bilhete manuscrito, que dedica o filme para “Julinho”. Como que pinçado de uma caixa de souvenires particulares, o bilhete é mais um elemento de memória na construção da narrativa. Se o samba é uma arte que prescinde de diploma, sendo uma arte intuitiva, como repetem personagens em Tabu e O mandarim, não precisaria de um cânone. Porém, o esforço de Bressane parece ser na construção de seu próprio cânone. A presença de Welles em O mandarim reforça essa idéia: Welles e Cidadão Kane, cânones do cinema moderno por excelência: o filme de 1941 ocupa, há quatro décadas, o primeiro lugar na lista de “melhores filmes de todos os tempos” realizada pela revista britânica Sight and Sound. A partir desse cânone cinematográfico, Bressane tece um cânone musical particular. A música popular brasileira, o seu próprio “Rosebud”, seu próprio “herói fechado”, cheio de mistérios e desvãos. Uma música que parece, às vezes, funcionar como uma estrutura viva, independente, como um “rizoma”: o que Bressane oferece são lampejos, fragmentos que, organizados de uma maneira pelo cineasta, podem ser reorganizados pelo público, realizando assim uma 5 característica do conceito de Deleuze e Guattari: a possibilidade, no “rizoma”, dos pontos serem ligados de maneira livre, sem uma estrutura prévia. Um jogo de armar. Jogo que sempre está no cerne do cinema de Bressane. Em seu tabuleiro, cabem a rebeldia radical de Welles e a ironia lasciva de Oswald; a alegria carnavalesca de Lamartine e a “elegância discreta” de Mario Reis. Jogo em que se debatem, de um lado, o país histórico e, do outro, o mítico. Em O mandarim, assim como na Vie de Rossini, de Stendhal, a realidade histórica cede lugar para a fantasia sobre os personagens representados. Realidade e fantasia se cruzam e se interpenetram. Se lembrarmos a famosa fórmula (“print the legend”) de O homem que matou o facínora, de John Ford (filme sobre as contradições na origem dos Estados Unidos), podemos tentar entender em outra chave (talvez, em uma chave tropicalista) a idéia de “western de terceiro mundo”, que é como se auto-­‐define O bandido da luz vermelha, de Sganzerla. No filme de Ford, a fórmula é explícita: “quando a lenda for mais forte que a história, imprima-­‐
se (divulgue-­‐se) a lenda”. No Brasil, em nossos “westerns de terceiro mundo”, tudo é um pouco mais complicado. Em seus filmes, Bressane persegue um paideuma e busca construir um cânone para abalar todos os cânones, que “abale todas as estruturas”, como disse Caetano em um famoso discurso proferido no teatro Tuca, em setembro de 1968, São Paulo, durante a efervescência do movimento tropicalista. O mandarim atualiza a tradição da música popular brasileira. Nas palavras de Ismail Xavier, isso é recorrente no cinema de Bressane, no qual: trata-­‐se sempre de atualizar um legado, retirar certas pérolas da penumbra, projetar luz nova sobre um trabalho. Marcar uma aproximação, sem dúvida, mas também uma diferença que se assinala na forma indireta da evocação que não perde a evidência assumida. O intermediário, duplo de Bressane, que realiza essas aproximações e diferenças dentro da estrutura de O mandarim é Mario Reis. O título do filme nos informa algo importante sobre esse personagem: historicamente, os mandarins eram membros da burocracia da China imperial: oficiais cultos, conhecedores de poesia, literatura e do confucionismo, que executavam atividades de Estado e eram selecionados obedecendo a uma rigorosa seleção. Numa analogia grosseira, seriam algo próximos dos contemporâneos membros do corpo diplomático chamados “adidos culturais”, mas realizando atividades no âmbito interno do país. 6 Mario Reis era também burocrata: ao se “retirar” da vida artística no final dos anos 1930, o cantor assumiu o cargo de oficial de gabinete do então prefeito do Distrito Federal, cônego Olympio Mello. Para Bressane, Mário Reis é O mandarim: o homem culto da classe média que tinha sensibilidade perceber o que de importante se passava a sua volta: o samba nos morros, o microfone elétrico, o rádio. Um burocrata-­‐artista, um artista-­‐burocrata, e aqui podemos fazer uma aproximação de Mario com as contradições que José Miguel Wisnik apontava a partir de Mario de Andrade. Por um lado, podemos ver alguma semelhança entre o projeto de cinema de Bressane e as idéias do escritor modernista que recomendava que se aproveitasse a tradição folclórica e popular para retrabalhá-­‐la em uma chave erudita. Era exatamente a fórmula que Villa-­‐Lobos usou em várias de suas composições, sendo o “Choro n. 1” (que vemos interpretado em O mandarim) apenas um exemplo. Lembremos também a idéia de Mario de Andrade sobre o “intérprete traidor”: Intérprete traidor é o que se serve da obra de arte alheia para se revelar a si mesmo. O intérprete traidor é o criador frustrado, o que não podendo objetivar a sua imaginação criadora por uma incapacidade qualquer revela essa sua personalidade, o que faz dentro dela objeto de prazer estético, por meio de obras já construídas. Mais uma vez insisto em notar que não dou nenhuma intenção pejorativa aos termos que emprego. A estética não sendo uma crítica mas um ramo de estudos de verificação está isenta de censuras, dá conselhos, mostra, verifica. Cada intérprete em O mandarim pode ser entendido como uma espécie de “intérprete traidor” na medida em que esses músicos “revelam suas personalidades por meio de obras já construídas”. Assim, quando Gil canta Sinhô, por exemplo, quem passa a ser melhor compreendido por nós é Gil. Tal compreensão passa pela valorização da performance do ator / cantor como expressão maior de significado. Mas, claro, não podemos, em nenhuma hipótese, dizer que cada um desses intérpretes seja, citando Mario de Andrade, um “criador frustrado”, “incapaz de objetivar sua imaginação criadora por uma incapacidade”. O intérprete ideal — assim como o ouvinte ideal — seria para Mario de Andrade o puramente receptivo, aquele que, nas palavras de Gilda de Mello e Souza, estivesse “disposto a amar”, soubesse se despojar dos ídolos de toda a espécie, das verdades transitórias, dos preconceitos 7 adquiridos através dos anos, da vencração descabida, para se nortear, sobretudo, pela compreensão exata do passado. É exatamente esse estado receptivo que o cinema de Bressane pede de seu público. É necessário “se despojar dos ídolos de toda a espécie, das verdades transitórias, dos preconceitos adquiridos através dos anos”. Ver Bressane, numa experiência inter-­‐semiótica, é ouvir Bressane. E quem melhor formula a experiência de ouvir sem preconceitos é Gilda de Mello e Souza (através de Mario de Andrade). Lembrando o paralelo entre O mandarim e Cidadão Kane, podemos pensar que também em Welles os diferentes pontos de vista sobre a vida de Charles Foster Kane seriam “interpretações traidoras” da vida do personagem. Justamente porque, no final das contas, nenhuma delas prevalece sobre a outra. Todas se interpenetram, se modificam, se complementam. Cada personagem possui o seu próprio Kane, e ninguém o possui verdadeiramente, já que ele é um “herói fechado”. O resumo dos diferentes relatos encontra sua representação visual em um plano próximo ao final do filme de Welles, que mostra as muitas facetas de seu personagem principal refletidas num jogo de espelhos: Figura 7 “Cidadão Kane”: o personagem em um abismo de reflexos Temos aqui a representação visual da fragmentação do personagem de Charles Foster Kane. Da mesma maneira, por um jogo de deslocamentos paródicos, Bressane cria um retrato multifacetado da canção popular brasileira. Assim como em Kane, cada intérprete “trai” seu personagem ao misturar sua própria figura e a figura retratada. A música em O mandarim aparece como os relatos dos personagens em Kane: cada performance musical presente no filme de Bressane parece querer construir sua própria tradição; porém, essa tradição não é de ninguém. Para Bressane, a música popular brasileira é também um “herói fechado”, um jogo de espelhos (de repetições, de variações). Se o mote é a repetição, a variação, podemos também lembrar a famosa frase de Paulo Emilio Salles Gomes sobre nossa “incapacidade criativa de copiar”. O brasileiro seria criativo, enfim, por uma “incapacidade”, palavra que Mario de Andrade também utiliza para explicar sua idéia de intérprete ideal: por sermos incapazes de criar, nos esvaziaríamos para deixar surgir uma criação alheia. 8 Mas, como bem mostram Tabu e O mandarim, esse esvaziamento é impossível. Estamos repletos de recalques que desejam vir à tona e que realmente o fazem durante o carnaval. Segundo Ismail Xavier, “o debate do moderno cinema brasileiro com as questões de mercado e com a linguagem nele hegemônica fecha um ciclo de retomada das questões do Modernismo”. É nesse sentido que o cinema de Bressane lança mão das idéias de Mario de Andrade, da antropofagia de Oswald, do tropicalismo, do Cinema Novo para retrabalhar o samba e a Bossa Nova e, de quebra, Orson Welles etc. Em O mandarim, é recorrente que os atores olhem diretamente para a câmera, enquadrados frontalmente. Há também o caminhar em direção à câmera (Mario Reis em dois momentos, Noel Rosa / Chico Buarque em outro). Em certas passagens, os atores, além de olharem diretamente para a câmera, a utilizam para fazer comentários à parte (diante da vidente, Mario Reis volta-­‐se à câmera e diz “estou frito”; em outro momento, a personagem de Giulia Gam levanta a cabeça para encarar longamente a câmera que a enquadrava em plongée). Ismail Xavier escreve que, em Bressane, o mundo diegético se fragmenta, podendo chegar a uma presença radicalmente residual. Mesmo quando mais encorpado, ele não “segura” a câmera, pois esta busca outras paragens e produz material para interpolações, ora observando sem pressa o mar e a montanha, ora um rosto fixo, a rua, os jardins em paz. Ela perambula, cria seu próprio interesse, ou se assume como extensão do corpo, como quando, em plena integração com a trilha sonora, faz movimentos aptos a compor, com a copa das árvores, uma coreografia em sintonia com a canção carnavalesca, como em Tabu (1982) e O mandarim (1995). A partir dessas observações, podemos dizer que O mandarim tem parentesco com o gênero musical não apenas pelo tema em si ou pela sucessão de números musicais apresentados. Há também uma relação mais delicada, subterrânea: nos musicais clássicos de Hollywood ou nas chanchadas brasileiras, as apresentações de canto e dança surgem como momentos em que a construção de um espaço-­‐tempo ficcional se rompe. Dentro desse gênero, esses momentos (e apenas esses momentos) permitem que o ator olhe diretamente para a câmera, explicitando um espetáculo consciente da presença do espectador. Figuras 8; 9 “O mandarim”: a diegese desconstruída; o olhar em direção à câmera 9 Essa autoconsciência, em O mandarim, é mais um diálogo com o cinema moderno. Bressane toma as chanchadas como modelo e como inspiração, mas utiliza procedimentos que remontam a Welles e Jean-­‐Luc Godard: a construção em “tableuax” e os tempos mortos no começo e final do plano, além da montagem de atrações de Eisenstein. O mandarim é, portanto, produto de uma cultura erudita que traz como tema a canção popular brasileira, uma manifestação “popular”. Surge uma tensão entre a forma complexa do filme e a aparente simplicidade dos sambas e dos temas carnavalescos. Dentro dessa dicotomia, Mario Reis é uma espécie de símbolo particular: homem que realiza, ao menos dentro do imaginário de Bressane, a união entre a utopia do carnaval e o cotidiano da vida. Mario Reis é um signo, resultado do cruzamento da história da música popular com a memória afetiva de Júlio Bressane. O patrimônio histórico e cultural se transforma em matéria-­‐prima a serviço de uma memória íntima. A tradição da música popular brasileira em choque. Como diz Celso Favaretto, apontando a falta de ingenuidade com que a Tropicália observa a tradição, “o Brasil não é tratado como essência mítica, perdida — espécie de paraíso devastado” (FAVARETTO, 1995, p. 147). Para Bressane, a cultura brasileira também não é um paraíso devastado (apesar de vivermos, como sugere Tabu, em um “paraíso tropical perdido”), mas um elemento presente, em que toda a tradição encontra-­‐se viva, pronta para ser retrabalhada e resignificada. Os filmes do diretor demandam um espectador que, na recepção da obra, simule a atitude do intérprete ideal de Mario de Andrade e esteja “disposto a amar”. “Alguém cantando longe daqui, alguém cantando longe, longe...” Nesse exemplo de Caetano, fala-­‐se simplesmente do ato de cantar, sem que se saiba exatamente o quê se canta. No cinema de Bressane, muitas vezes é mais importante a imagem em si, o próprio ato de olhar, do que a concatenação imediata de uma imagem com outra na tentativa de construção de um sentido lógico. Ao invés disso, temos sensações, rimas, sensibilidades mais próximas ao ouvido do que à lógica racional. Esses trechos normalmente desprezados de material filmado, que em outra concepção de cinema não estariam no corte final do filme, anunciam a própria realização de O mandarim, mas também introduzem, de forma sutil, a idéia do registro e da memória: qualquer material filmado, ainda que descartado na montagem final, é capaz de ser recuperado e reavaliado. Fábio Diaz Camarneiro 10 “As contradições da canção 0 música popular brasileira em O Mandarim, de Júlio Bressane”, p.95 -­‐ p.101. Garotas e Samba (1957), de Carlos Manga Curiosidades -­‐ Berta Loran interpreta a vedete Ninon Ervilha, paródia a Ninon Sevilla, famosa atriz do cinema mexicano dos anos 50. -­‐ Números Musicais com: Vou mandar meu filho prá Paris, com Joel de Almeida Marchinha do piche: Haroldo Lobo e Ivo Santos, com César de Alencar Se o negócio é sofrer: Mário Lago e Chocolate, com Nora Ney Encosta a cabeça no meu rosto e Está na hora da onça beber água, com Isaurinha Garcia Não pense em me abandonar, com Francisco Carlos -­‐ "Garotas e samba é uma das mais simpáticas, alegres e divertidas comédias musicais da Atlântida, mas também o fim de um ciclo. Desta vez, sem os maiores astros do estúdio, Oscarito ou Eliana, mas com um super-­‐elenco. Foi o último trabalho na Atlântida de Adelaide Chiozzo, que havia sido uma das maiores estrelas do estúdio e até hoje continua carreira com sucesso como cantora. E também de Ivon Cury (1928-­‐1995), que ainda faria outros filmes, mas em outros estúdios. A história clássica é obviamente inspirada em filmes americanos de Betty Grable. Este filme marca a estréia no cinema da ótima Sônia Mamede (1936-­‐1990), que veio do teatro de revista e entrou no elenco por acidente, substituindo Consuelo Leandro. Infelizmente ela faleceu cedo, aos 53 anos de idade, em 1990. Mas não é só isso, prestem atenção em papéis pequenos nas aparições de Jece Valadão, Berta Loran, Cyll Farney e até de Teresinha Morango, que havia sido escolhida Miss Cinelândia num concurso e ficaria famosa como Miss Brasil, tirando o segundo lugar no Concurso de Miss Universo. Garotas e samba é um dos meus filmes favoritos da Atlântida e marcante também pela presença de Zé Trindade (1915-­‐1990), o comediante baiano, baixinho, gordinho, feio, com um bigode fininho e um jeito de malandro, que se tornaria, a partir daqui, um grande sucesso no cinema. Zé já fazia cinema desde quarenta e sete e continuou trabalhando até quarenta anos depois, com uma participação em Um trem para as estrelas. Morreu em noventa, aos 75 anos." -­‐ comentário de Rubens Ewald Filho. 11 Disponível em: http://www.meucinemabrasileiro.com/filmes/Garotas-­‐e-­‐Samba/Garotas-­‐e-­‐
Samba.asp Garotas e Samba O filme Garotas e Samba é um filme brasileiro de comédia musical lançado em 1957 e dirigido por Carlos Manga na produtora de filmes Atlântida Cinematográfica. Garotas e Samba foi escrito por José Cajado Filho e é uma paródia do filme How To Marry a Millionaire. Garotas e Samba tem musicais com Francisco Carlos, Adelaide Chiozzo, Rui Rey, Ivon Cury, Emilinha e outros cantores. O filme conta a história de três moças que vão se hospedar na pensão de Dona Inocência e se tornam amigas. As três amigas se chamam Zizi, Didi e Naná. Zizi fugiu de uma casamento arranjado, Didi quer ser cantora de rádio e Naná quer se casar com um homem rico. Zizi recebe um convite para trabalhar como vedete na boate do cantor Charlô, depois Didi é enganada por Belmiro e Naná seduz um milhionário baiano. Garotas e Samba tem 106 minutos de duração e conta com o seguinte elenco: Elenco: Francisco Carlos, Sônia Mamede, Adelaide Chiozzo, Renata Fronzi, Zé Trindade, Jece Valadão, Zezé Macedo, Pituca, Ivon Cury, Berta Loran, Cyl Farney. Keven Gomes Trindade Correio Eletrônico 17 de julho de 2010 Disponível em: http://www.correioeletronica.com.br/2010/07/filmes-­‐garotas-­‐e-­‐samba.html Vertentes do cinema entrevista Carlos Manga O cinema de agora ainda possui novas ideias de criação? Claro que sim. O cinema pode ser criado e recriado sim, como nao. O cinema nao acaba nunca, meu querido. É uma grande arte. É um coisa maravilhosa. O cinema tem momentos ruins. A itália foi dona do cinema no mundo, passou por um período grande e agora está bem por baixo. Amanhã vai está bem por cima de novo. Cinema é cinema. E sobre os novos realizadores que não conseguem divulgar os seus filmes? É um pena. Que eles não desistam, porque o cinema nao pode acabar. E como eu disse aqui, eu vou fazer um novo filme. 12 "O Homem do Sputinik foi premiado e visto por 15 milhões de pessoas de 60 milhões de habitantes. Eu tinha muito orgulho do que fazia e acreditava que era bem feito. Mas as ofensas, tipo 'Carlos Manga e Luiz Severiano Ribeiro Junior, não sei qual é o ativo e o passivo', o único detalhe é que eu gosto de mulher demais". Tudo é Cajado Filho "Ele criou a chanchada para sacanear a sociedade". Depois a política mudou o tom do cinema e veio as "degradantes pornochanchadas. A meiguice começou a desaparecer". "Eles buscavam o que era arte", resume-­‐se a época apresentada. Um homem vai ao Manga e diz "Quero beijar sua mão. O senhor é um grande homem", emociona-­‐se. A Chanchada É o espetáculo ou filme em que predomina um humor ingênuo, burlesco, de caráter popular. As chanchadas foram comuns no Brasil entre as décadas de 1930 e 1960. A produtora carioca Atlântida descobriu nos filmes carnavalescos um grande negócio, capaz de fazer muito sucesso entre o público brasileiro. Sem dúvida, ela foi a grande responsável pelo sucesso das chanchadas e a pioneira em adotar os temas carnavalescos em forma de musicais. Foram cinco fases: Primeira fase -­‐ As comédias mudas, Segunda fase -­‐ Os filmes musicais, Terceira fase -­‐ Os carnavalescos da Atlântida, Quarta fase -­‐ A chanchada e Quinta fase -­‐ As chanchadas B. O diretor Watson Macedo, responsável pelos grandes filmes dos anos 40, filmou em 1949, com um argumento do galã Anselmo Duarte, o primeiro e ideal conceito de chanchada. Carnaval no Fogo contava com todos os igredientes do fênomeno desse gênero popular: O mocinho e a mocinha em perigo. O cômico tenta ajudá-­‐los mas se dá mal. O vilão os aterroriza. Mistério. Luta final. Final Feliz. Nesse filme, Oscarito e Grande Otelo protagoniazam a célebre cena do balcão, de Romeu e Julieta, e se consagram como os maiores comediantes do Brasil. A Herbert Richers então chegou, como rival da Atlântida, e com a direção do ambicioso Luiz Severiano Ribeiro Jr, monopolizou o circuito comercial e exibidor. Surgiram novos e grandes cômicos: Zé Trindade, Dercy Gonçalves e Ankito, que tiveram seus grandes momentos. Uma enxurrada de chanchadas invadiam o país. A crítica cinematográfica ia à loucura. Condenava o gênero ao inferno. Carlos Manga Cineasta, produtor, é o mais famoso e popular diretor do período de ouro – os anos 1950 da Atlântida, onde esteve à frente de clássicos da chanchada como Nem Sansão nem Dalila 13 (1954), Matar ou correr (1954) e O homem do Sputnik (1959). Foi presidente da Rio Cinematográfica Ltda. e diretor da Tycoon Produção Artística Ltda. Exerceu o cargo de Diretor de Controle de Qualidade da Rede Globo de Televisão. Como diretor de filmes publicitários, teve numerosos prêmios conquistados. Por sua contribuição ao cinema brasileiro, recebeu o primeiro troféu ‘Oscarito’, no Festival de Gramado. Filmografia 1953 A DUPLA DO BARULHO 1954 NEM SANSÃO, NEM DALILA 1954 MATAR OU CORRER 1955 GUERRA AO SAMBA 1955 O GOLPE 1956 COLÉGIO DE BROTOS 1956 VAMOS COM CALMA 1956 PAPAI FANFARRÃO 1957 GAROTAS E SAMBA 1957 DE VENTO EM POPA 1958 É A MAIOR 1958 ESSE MILHÃO É MEU 1959 O HOMEM DO SPUTNIK 1959 O CUPIM 1959 O PALHAÇO O QUE É? 1960 DUAS HISTÓRIAS 1960 OS DOIS LADRÕES 1961 QUANTO MAIS SAMBA MELHOR 1961 PINTANDO O SETE 1962 ENTRE MULHERES E ESPIÕES 1962 AS SETE EVAS 1974 O MARGINAL 1974 ASSIM ERA A ATLÂNTIDA (documentário) 1986 OS TRAPALHÕES E O REI DO FUTEBOL Vertentes do cinema Disponível em: http://www.vertentesdocinema.com/2010/02/historias-­‐do-­‐cinema-­‐com-­‐carlos-­‐
manga.html 14 O Mandarim (1995), de Júlio Bressane O Mandarim' faz cinema com MPB ``O Mandarim", que estréia nos cinemas em novembro, é o mais complexo e mais acessível dos filmes do cineasta Júlio Bressane. O aparente paradoxo é o mesmo que marca o tema do filme -­‐a música do cantor Mário Reis, expressão cultural tão refinada quanto popular. Não foi por acaso que, depois de ``Os Sermões", Bressane se debruçou sobre ``o signo Mario Reis", como gosta de dizer. Um filme completa o outro: a voz ``erudita" (Vieira) e a ``popular" (Mário), igualmente essenciais na constituição da fala brasileira. Inovador íntegro e delicado, que conjugou a transgressão do modo corrente de cantar com a tradição mais profunda do samba, realizando a ponte entre o morro e a zona sul (e, através desta, com a cultura contemporânea), Mário Reis está para a música como o próprio Bressane está para o cinema. Mais do que fazer, como ordinariamente se faz, um filme que ``ilustrasse" a biografia e a arte de Reis, Bressane transforma o cantor em cinema, em imagens que condensam toda uma leitura pessoal da música popular brasileira. Falou-­‐se muito sobre a utilização, por Bressane, de ídolos atuais no papel de figuras históricas da música popular. Mais que homenagem, piada ou jogada de marketing, o procedimento do diretor está perfeitamente integrado a sua proposta e sua linguagem. Nestas, cada vez mais, tudo é signo, e, combinado com outros signos, multiplica as associações e leituras possíveis. Ao colocar Gilberto Gil no papel de Sinhô, ou Chico Buarque no de Noel Rosa, ou ainda Edu Lobo no de Tom Jobim, Raphael Rabello no de Villa-­‐Lobos e Gal Costa no de Carmem Miranda, Bressane apresenta sua leitura da chamada ``linha evolutiva" da música popular brasileira. Não é casual que o único compositor que aparece com seu próprio nome seja Caetano Veloso. De certo modo, Caetano faz na música a mesma operação de síntese e cruzamento de significados que Bressane buscou fazer em seu filme. Em ``O Mandarim" alternam-­‐se imagens saturadas de informação (a carga simbólica de que está investido certo ator, a gravura na parede, o enquadramento que cita outro filme, a música alusiva etc.), que pedem para ser decifradas, com outras em que as coisas parecem estar ali apenas por seu valor imanente -­‐leia-­‐se, por sua beleza. 15 ``O Mandarim" é de uma riqueza inesgotável, da utilização narrativa de imagens-­‐síntese (o microfone, o disco, o corpo da mulher) à recorrência de planos característicos do cineasta: o crepúsculo no mar, as ondas quebrando nas pedras, a copa de uma árvore filmada em ``contre-­‐plongée"... Um plano genial resume a idéia do filme: numa rua do Rio, os transeuntes andam para trás (obviamente graças à inversão da película); aos poucos se aproxima, de frente, em direção à câmera parada, Mário Reis (Fernando Eiras). Bressane vira do avesso o real para chegar a sua verdade. José Geraldo Couto Folha de S. Paulo (4 de outubro de 1995) Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/1995/10/04/ilustrada/15.html Em filme, Julio Bressane reafirma idéia de beleza sem fronteiras Desde os anos 90, os filmes de Julio Bressane deixaram de se preocupar quase exclusivamente com o Brasil e sua cultura. Era assim em "Os Sermões" (89) ou em "São Jerônimo" (99), assim é em "Dias de Nietzsche em Turim". Essa tendência não designa uma nova fase, até porque o que sempre interessou a Bressane no Brasil é o que podemos ter de universal, não o que eventualmente nos particulariza. Quando, ao contrário, viaja no tempo e, sobretudo, no espaço, como em "São Jerônimo", reencontra seu personagem no sertão brasileiro, ou reconstrói Roma no parque Lage: sinais de um mundo de correspondências, onde tempo e espaço, idéias e imagens viajam sem passaporte. Existe uma sincronia do mundo, na visão de Bressane, que certamente não acredita em idéias do tipo capitalismo tardio ou periférico para designar o Brasil. Somos um centro do mundo, de um mundo quem sabe sem centro, e é isso que nos permite ler um autor como Nietzsche e, eventualmente, filmá-­‐lo. No caso de "Dias de Nietzsche", a impressão é que se trata de um filme-­‐manifesto. Para começar, existe o deslocamento geográfico: é fora da Alemanha que Bressane vai encontrar o pensador alemão, em êxtase diante de Turim, de seus costumes e paisagens. Não por acaso os primeiros textos tratam de sua ruptura com Wagner e o wagnerismo, ou seja: com o romantismo, o nacionalismo germânico, o arianismo, o anti-­‐semitismo. Em resumo, com a idéia de nação. 16 Nietzsche representa aqui o homem além da particularidade nacional, embora não só: sua aspiração é também romper a barreira do tempo. Certos homens nascem póstumos, dirá Nietzsche em um dos textos reencontrados aqui. São idéias presentes em mais ou menos todo o cinema de Bressane, que ajudam a compreender, no mais, sua oposição ao cinema novo, corrente que decorre precisamente de idéias como nação, contemporaneidade e urgência. Se tomarmos "O Mandarim" (95), outro filme recente de Bressane, veremos que a evocação de Mario Reis e dos compositores de sua época (Noel, Lamartine, Sinhô) busca menos reencontrar o Rio de Janeiro e uma época específica do que manifestar a permanência dessa época (tanto que os velhos sambistas reencarnam em compositores contemporâneos). Assim também com Nietzsche. Estamos em Turim, por vezes. Mas nem sempre. Quando Nietzsche se refere ao êxtase, é uma paisagem carioca que vemos, expressão de uma beleza que não precisa ter sido vista por Nietzsche para impor sua beleza. Ou antes, para conter o belo (que também dispensa passaporte). Da mesma forma, Nietzsche é o pensador a calhar para um artista, porque um filósofo-­‐artista, poeta, anticristo, dionisíaco por excelência, capaz de se extasiar diante da "Carmen" de Bizet -­‐
o filósofo que não procura, acha, o filósofo para todos e para ninguém. Não será assim que Bressane também se concebe como diretor de cinema? Filme significativo, "Dias de Nietzsche" talvez sofra pela extrema abstração. Cada imagem, cada palavra (ou signo, preferiria seu autor) parece nos remeter a outro lugar. Cada idéia, a outra idéia. Turim pode ser o Rio ou a Índia, Nietzsche pode ser Bizet ou Bressane. O encontro final com a música não deixa de evocar o cinema de Visconti. Por fim, existe a postulação de uma filosofia experimental por Nietzsche, a designar a filiação do cinema experimental que Julio Bressane sustenta há 30 anos. Coisa bastante para configurar uma viagem magnífica para os que acompanham a obra do diretor. Coisas demais para não deixar indiferente quem não a segue com constância. Inácio Araújo Folha online (22 de outubro de 2001) Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/critica/ult569u392.shtml O deserto em transe [Texto escrito para o livro organizado por Simona Fina e Roberto Turigliatto e editado pelo vigésimo Torino Film Festival, realizado de 7 a 15 de novembro de 2002, para acompanhar a Retrospectiva Júlio Bressane.] 17 “Cultivar o deserto como um pomar às avessas” João Cabral de Mello Neto / Psicologia da composição No princípio, a sombra. O mandarim (1995) por exemplo: Mário Reis cantando. O cantor e o microfone na frente do plano estão de fato no fundo da cena. Em destaque, o que se vê primeiro e mais forte é a sombra de Mário na parede, grande, maior que o rosto dele iluminado em primeiro plano, mas pequenino. Mário e a sombra de Mário aparecem numa especial relação dentro do quadro em que a luz quase se reduz a uma sombra clara da sombra. A imagem propõe uma outra informação colada naquela que se recebe de imediato (Mário ao microfone); propõe uma segunda imagem em fusão (a sombra na parede) para pensar a cena que está ali menos pela ação e mais pelo desenho da imagem em que a sombra do cantor soa mais forte que a música que ele canta. A imagem sugere o cinema como a produção de uma sombra que se cola na realidade e na imaginação. Enquanto o espectador vê o filme (e talvez não só neste instante), a projeção muda de posição com a realidade. O filme tela, a realidade passa a ser a sombra do cinema, transforma-­‐se numa espécie de sombra da sombra. “Realidade implica memória, imaginação, sonho. Tudo é real. Quem sente o real só como o que acontece nas primeiras páginas dos jornais vive uma mutilação do real” – diz Bressane. [no texto Mistério, quer dizer fechar os olhos na revista Cinemais número 35, julho -­‐ setembro de 2003.] “A arte não pode ser considerada nem simplesmente sobreposta nem simplesmente justaposta à vida. Em certo sentido substitui-­‐se à vida e em outro sentido utiliza-­‐a e trans-­‐forma-­‐a para realizar uma síntese de nova ordem”. [Texto de apresentação de O gigante da América no folheto editado pela Embrafilme, 1978.] O cantor e a sombra do cantor em quadro então como uma síntese da idéia do cinema, uma reafirmação de que o cinema (Bressane gosta de repetir o que dizia Gance) “é música da luz”, uma sombra de outra ordem e natureza, que ali, visível de verdade, se empenha em revelar não só o que é mas também o que não podemos ver ali, a realidade: no lugar de Mário Reis, a sombra de Mário Reis. A sombra não apenas como percebida no quadro, como o que “só pode 18 ser definido em relação à luz e à figura”, mas como conceito: modo de pensar a imagem cinematográfica como ausência mesmo quando presença. A imagem do cantor é mais a sombra do cantor do que a figura iluminada do cantor: no cinema toda luz é sombra. [Em entrevista para a revista Cinemais, número 6, julho/agosto de 1997, páginas 7 a 42, Bressane lembra: “Foi Germaine Dulac que notou que Griffith montava um fotograma com outro dependendo da cor, das sombras, de como elas estavam organizadas. Montava um fotograma claro com um escuro, o que Abel Gance mais tarde chamou de a música da luz. Por que música da luz? Ele dizia: “O cinema é um fotograma branco e transparente onde você escreve uma sombra, essa sombra é que organiza a imagem; então ela é música. Cinema é a música da luz”. Em várias outras ocasiões Bressane voltou a citar Abel Gance, como no texto de apresentação de Miramar; no ensaio sobre a adaptação de Vidas secas de Graciliano Ramos feita por Nelson Pereira dos Santos, lido no seminário sobre cinema e literatura (realizado no Rio pelo jornal O Globo, em outubro de 1997, e mais tarde, com o título de Vida luz deserto, incluído na coletânea Cinemancia, editora Imago, Rio de Janeiro, 2000); e no debate sobre Cinema de poesia, realizado no Centro Cultural do Banco do Brasil no Rio de Janeiro, em maio de 2001.] Com freqüência nos filmes de Bressane, e particularmente nos que realizou depois de O mandarim, a sombra de um personagem (ou a de um qualquer objeto em cena) ocupa um espaço destacado na imagem. A sombra que anda no deserto presa nos pés de São Jerônimo (1999) e a que dança solta na partitura branca enquanto Nietzsche toca piano, ou na parede enquanto ele escreve, em Dias de Nietzsche em Turim (2001) são exemplos. Estão ali, até certo ponto, porque presenças naturais, projetadas pela luz do sol lá em cima, pela luz que entra pela janela ali ao lado. Em O mandarim – prefácio, manifesto, trailer dos filmes que seriam realizados em seguida –, a sombra de Mário Reis é resultado de uma luz colocada para projetá-­‐la na parede no fundo da cena. As sombras de Jerônimo e de Nietzsche estão em quadro porque a câmera está especialmente interessada em documentar a sua presença. Os planos não se ocupam especialmente delas, que se integram harmoniosamente à paisagem – e exatamente por isso podem ser percebidas como presenças significativas: estão na cena como um sinal de que os personagens, mesmo quando cobertos de boa e intensa luz, se constituem como uma sombra. No centro do plano eles se colocam fora do espaço privilegiado pela luz. A janela, o mar, o céu, a paisagem aberta por trás dos personagens dominam a cena em Miramar (1997). Eles se situam na sombra, são vistos em contraluz. Do ponto de vista da 19 construção da imagem a luz passa a funcionar como sombra: mais encobre que ilumina o que parece ser o essencial da cena. É como se alguma coisa estivesse fora da ordem: se a imagem é examinada fora do contexto dramático que a organiza pode parecer que ou o personagem, ou a luz, um dos dois, se encontra no lugar errado; na verdade está tudo exatamente onde deveria estar. O que filme nos mostra não é uma imagem feita de luz e sombra, e sim uma imagem onde a sombra é a luz. Dias de Nietzsche em Turim por exemplo: o plano em que Nietzsche caminha em direção do sol quase na linha do horizonte e aquele outro em que a câmera, quase colada no chão, acompanha a caminhada de Nietzsche: ela filma de baixo para cima e no claro intenso do céu como fundo do quadro, Nietzsche aparece em silhueta, no centro da ação, em primeiro plano, mas oculto como sombra no fundo da cena. É assim que o vemos: vulto escuro contra o vitral no alto da escadaria, contra a luz da porta que dá para a rua, contra a janela, contra o céu. A luz que vem intensa do alto ou do fundo do quadro, e a que vem tênue e trêmula da vela sobre a mesa em que ele escreve, projetam manchas entre o amarelo e o alaranjado que sugerem ora uma escadaria, ora as estátuas e os arranjos do mármore no chão, ora o quarto de poucos adornos em que ele trabalha. A luz, em sintonia com este personagem silhueta, cobre o cenário de sombras, intensas algumas, suaves outras, mas de qualquer modo faz do cenário um espaço que contém mais sombras que luz: Nietzsche de pé, diante do alfaiate que toma as medidas para um novo casaco, está na sombra -­‐ a luz que entra pela lateral do quadro, ilumina quase só o alfaiate que se move em segundo plano. Diante da janela, com os olhos postos em uma qualquer coisa lá fora, Nietzsche aparece na imagem quase como se fosse só o branco da camisa e a pele clara de sua testa -­‐ o resto do quadro é sombra: o negro dos cabelos e do bigode que cobre o rosto e o tom escuro da roupa se confundem com as sombras do quarto. Temos aqui duas imagens que sintetizam bem a estrutura de composição de Dias de Nietzsche em Turim. O que vale não é propriamente a ação, um quase nada sem continuidade; um fragmento, e fragmento que se dá a ver sem sincronismo com o som. O que Nietzsche narra ou comenta com sua fala sussurrada (voz interior, som silencioso), pode já ter sido visto na imagem anterior, aparecer bem depois da fala, ou mesmo ser uma imagem puramente verbal, que não se traduz em ação visível. Uma coisa não ilustra a outra: a imagem e o som correm descolados, a informação que o espectador recebe nasce deste conflito (algo assim como o que se produziria se uma sombra se desgrudasse da luz e da figura que a projeta e seguisse seu rumo independente). E esta particular ligação entre imagem e som é também a que se 20 estabelece entre o quadro e as figuras dentro dele, entre o filme e a história que ele conta. O que importa não é o movimento dos personagens, mas o movimento da luz. [Na entrevista a Cinemais número 6 Bressane diz que em alguns momentos do Miramar tentou “contar a ação não através do movimento, dos gestos dos personagens, mas da maneira com que a luz é percebida no quadro. O cinema aí transpassa a fronteira da pintura. Antes do roteiro, antes do ator, antes do entrecho tem a luz. Agora, essa modificação da luz é uma modificação de ordem dramática. Dramaturgia é luz. No cinema a luz é central.” Filme de amor (2003), com a textura da fotografia e a composição do quadro inspirada, entre outros pintores, em trabalhos de Balthus, viria de novo transpassar a fronteira da pintura.] O que age dramaticamente em cena é a luz, que ao distribuir sombras pelo cenário nos revela algo essencial do personagem, mesmo quando ele não está em cena, e também algo essencial do instrumento sensível que nos fala desse personagem: a sua condição de sombra. Sombras dentro da imagem são freqüentes; estão lá enquanto Nietzsche escreve à luz de vela, se senta ao piano pensando em Bizet e Wagner, ou caminha de um lado para outro no quarto. Mas o que importa não são as sombras que podemos ver, as que fazem parte direta da cena. Importam aquelas outras que embora ali estão invisíveis. Na abertura de Dias de Nietzsche em Turim uma câmera intencionalmente insegura passeia por becos estreitos e pouco iluminados ao som de Tristão e Isolda – uma imagem mais sombra que qualquer outra coisa. Igualmente uma imagem-­‐sombra é a que temos na série dos bem iluminados movimentos circulares em que, no trecho final do filme, a câmera gira em torno do rosto de Nietzsche – primeiro de perfil, depois de frente e logo de costas para a câmera. Todo o quarto gira. Roda em seguida o teto, num plano feito como se a câmera estivesse na mesa em que Friedrich escreve. Luz por toda imagem, sombra quase nenhuma, mas esta, a que não se vê como tal e sim como luz, esta, é a sombra que importa. Invisível mas presente, como idéia geradora da luz que, de repente, e sem qualquer razão aparente, apaga todo o colorido e transforma a cena em preto e branco; idéia geradora tanto da fotografia suave que marca o instante em que a boca de Caetano Veloso sussurra uma canção na orelha de Mário quanto da escolha de uma cópia riscada de ¡Que viva México! de Eisenstein (1931/1932) e de velhos discos de 78 rotações, igualmente riscados e cheios de pequenos ruídos, em O mandarim e em Miramar; idéia geradora tanto da granulada e pouco definida fotografia em preto e branco que arranha os olhos em Um anjo nasceu (1969) ou Matou a família e foi ao cinema (1969) quanto do suave colorido de São Jerônimo (1999) ou da ainda mais suave textura de Filme de amor (2003). 21 [Para explicar como o personagem de Miramar começa a fazer cinema, Bressane conta na entrevista a em Cinemais número 6: “¡Que viva México!: tinha uma cópia em 35, mas eu ampliei uma cópia em 16 para 35. Ficou estranhíssimo, mas é o filme dele... Porque ali é o momento em que Miramar faz o filme, em que ele vê o filme. Começa com o Eisenstein. De repente, começam a entrar trechos de um outro filme que não é o do Eisenstein e que, possivelmente, talvez seja o dele, Miramar, as coisas que ele está pensando. Ele está coçando os olhos... Aquilo, é como se estivesse se passando na cabeça dele (...) Miramar começa a ver o cinema.”] O que importa de fato não é a maior ou menor presença de áreas iluminadas ou escuras na imagem, nem o uso de sombras para expressar uma qualquer coisa fantasmagórica ou ameaçadora, como ocorre quando o cinema procura seguir as convenções narrativas do filme noir ou do filme de terror. O que importa é o fato de que toda imagem de cinema é pensada nos filmes de Bressane como sinal cujo sentido está fora dele mesmo, como escrita-­‐sombra para ser iluminada pelo olhar do espectador (que completa, ilumina, esclarece o filme: “se o artista entendesse o que quer, não precisava público, bastava a si mesmo. Um só objeto artístico possibilita diversos caminhos, diversas interpretações... Controvérsia! Contradição! Sem isso não existe vida”. [Resposta a uma questão da platéia no debate Cinema de poesia, realizado no Centro Cultural do Banco do Brasil no Rio de Janeiro, em maio de 2001, reproduzido na revista Cinemais número 33.] Sombra, a de Mário na parede ou qualquer outra que aparece (ou organiza) o quadro nos filmes de Bressane. Talvez a que primeiro vem à memória é a que domina a tela na segunda parte de Ivan, o terrível (Ivan Gronzny, 1946) de Eisenstein, na cena em que o tzar, sentado diante da mesa de trabalho, conversa com o embaixador que irá ao encontro da rainha da Inglaterra propor uma aliança militar. Na mesa, um tabulerio e as peças de um jogo de xadrez. Ivan explica ao embaixador como ele deve se servir dos movimentos das peças do xadrez para explicar como os navios ingleses deveriam contornar o Báltico, em poder dos teutões, para chegar à Rússia através do mar Branco. Ivan está sentado. O embaixador, de pé diante da mesa. Um e outro pequeninos na imagem, na parte inferior do quadro. Mas o que de fato prende a atenção do espectador nesta cena não são as figuras pequeninas de Ivan e do embaixador. O que se nota primeiro é a enorme sombra da cabeça de Ivan projetada na parede do fundo sobre a sombra do embaixador. 22 Inverte-­‐se a real relação dentre os dois personagens: na cena o embaixador, de pé, lá de cima, olha para Ivan, sentado, cabeça curvada sobre o jogo de xadrez na mesa; na imagem, no entanto, a sombra enorme da cabeça de Ivan parece engolir a figura do embaixador. O embaixador está de pé e Ivan está sentado, sim, mas a luz que joga a sombra na parede, colocada ao lado do tzar, amplia e joga a sombra da cabeça de Ivan lá para cima, mantém a sombra do embaixador pequena e jogada na parte de baixo. O significado da cena está no modo de apreendê-­‐la, na forma, na composição do quadro. A sombra de Ivan, não propriamente Ivan, mas a figura que ele projeta na parede, ele enquanto tzar, o poder absoluto que ele concentra, sua sombra enfim, domina a imagem. A sombra fala mais que a conversa entre o tzar e o embaixador. É o que se vê primeiro, é o que se vê mais forte. Primeiro, a forma. A forma como se somente ela existisse -­‐ e por isso mesmo, a imagem seguinte esquece os atores e enquadra apenas as sombras na parede. A forma que se destaca não porque o realizador, preocupado em se mostrar especialmente virtuoso, enfeitou a cena com adornos desnecessários para o entendimento da ação. Não se trata de algo excessivo e que, solto e sem função alguma, tenha engolido o tema do filme. A forma aqui se destaca porque significa. Não é só um meio de registrar visualmente um gesto – o gesto que conteria dentro dele o significado total da cena. Fazer cinema, Eisenstein procurou demonstrar ao longo de seus diversos ensaios e de sua prática, não se reduz ao registro de uma cena real ou teatral diante da câmera; fazer cinema é compor uma imagem cinematográfica, por meio da organização de registros de fragmentos da cena visível, compor uma imagem para expressar o entendimento e o sentimento do homem com a câmera diante da cena. Ivan, o embaixador e o jogo de xadrez que será entregue como presente para a rainha da Inglaterra, portanto, não são só a conversa que vemos e ouvimos na cena, mas, simultaneamente, uma forma, um modo de ver a conversa mais na sombra que nas figuras na frente do quadro. Na parede tela, na projeção, na sombra, a verdadeira relação entre os personagens em cena. Voltemos a Ivan para corretamente compreender Mário e sua sombra em O mandarim O que importa de fato é o cinema como forma essencialmente nômade, movimento que convida o olhar a caminhar sempre para fora de si mesmo para poder ser inteiramente percebido: o aqui, o visível, o agora, já não está mais aqui: transita. Dele temos apenas sua sombra. Antes da sombra, o deserto. 23 O radical, o extremo, o “contramundo”, o “ainda preservado das pisadas humanas”; o “privilegiado centro de percepção”, da “errância”, do “pensamento nômade”, do “devir incessante”; o “silêncio”, o que “é só pensamento”, o vazio, o que é luz ainda sem sombra alguma, o ”oceano de luz, a esponja de luz” -­‐ o deserto metáfora. O deserto como o “fotograma branco e transparente” em que o cinema deve inscrever a sombra. Do ponto de vista do processo de invenção cinematográfica, tanto do processo do realizador quanto do processo do espectador, todo deserto é fértil. É o “espaço tradutor” por excelência. [Na já citada entrevista para Cinemais e na também citada comunicação para o seminário Cinema e literatura, Bressane observa que a metáfora do deserto é “fundamental”. É “uma natureza que nos faz falta, a natureza do deserto”. Tem uma “importância civilizacional. O deserto é uma metáfora que surgiu na filosofia no início do século I e seguiu, século II, III, até o século IV. Os padres do deserto criam e trazem para a filosofia essa metáfora da natureza anti-­‐
natureza, da natureza contra-­‐mundo que é o deserto. A mitologia do cangaço no Brasil tem como pano de fundo isso. O que é importante não é apenas a ação dos bandoleiros, mas a ação naquele palco onde a ação se passa: o deserto. Minha idéia de São Jerônimo é que essa natureza é o próprio São Jerônimo, entendeu? A própria natureza fosse ele. As frases estavam ali, naquelas pedras, nos espinhos, na terra seca -­‐ entende? Essa é a idéia que considero genial do Nelson Pereira dos Santos em Vidas secas (...) A ênfase do fio da narração não é o entrecho apenas, mas a forma de captação da luz. A ação está sendo dita pela luz. A luz, aquela aproximação com o sol é que conta a história (...) No filme do Nelson os personagens são a própria natureza. Não há uma diferença (...) aquela natureza você não separa dos homens. A fixação no vazio: aquele deserto, sertão, desertão, deserto grande. Ênfase no vazio. O vazio é a causa de tudo aquilo. O vazio é um ponto que não está ali. Isso é o poder da imagem do deserto...”] Nietzsche, se sentindo incomparavelmente melhor em Turim (“eis a cidade que precisava neste momento, feita sob medida para mim”), feliz porque não perdera um só dia de trabalho desde que chegara, vê a cidade italiana, com suas “calçadas que são um paraíso para os pés”, como “um lugar clássico para os pés e para os olhos”. Diz que “só os pensamentos que temos caminhando valem alguma coisa” e define aquele espaço e tempo ali com uma expressão que serve também para indicar o deserto ideal para uma invenção cinematográfica: “os dias são de uma luminosidade indescritível”. São Jerônimo, como Nietzsche, caminha para pensar: para traduzir a Bíblia troca a cidade pelo deserto. 24 Mário, o mandarim, como Nietzsche, constrói seu deserto na cidade e caminha solitário para a frente contra a multidão que anda para trás – como nos mostra uma imagem do filme. Miramar, cercado de livros como Nietzsche e como Jerônimo, no deserto do suicídio dos pais, caminha para descobrir/pensar a imagem em movimento, o cinema -­‐ “organismo intelectual demasiadamente sensível”. Organismo não apenas sensível mas “demasiadamente sensível”, demasiado que leva o cinema “a seus limites, a fazer fronteira com todas as artes”, a estar todo o tempo caminhando entre elas, a existir como se fosse um prefixo. Imaginemos o processo de invenção de um filme como o de construção de uma palavra, sugere Júlio, o cinema seria então um trans, um prefixo indicador de trânsito, de movimento em torno de, em direção a, através de. Uma trans-­‐forma. Uma trans-­‐forma-­‐ação. No cinema, tudo o que fica é passagem, (“no plano fixo, no rosto, não tem movimento? Tem. O movimento está na expressão do ator”) o que está parado eppur si muove. [Comunicação lida no debate Cinema e literatura, outubro de 1997 no auditório do jornal O Globo, sobre a adaptação de Vidas secas de Graciliano Ramos feita por Nelson Pereira dos Santos.] Nesta metáfora do deserto como condição essencial para a criação, Miramar tem algo de passo inaugural, tem algo de primeiro filme. Em parte pelo seu entrecho, a descoberta do cinema por um jovem; em parte pela alusão aos primeiros filmes de Bressane: a cena que o jovem Miramar filma poderia ser um plano de O anjo nasceu, e a tragédia (o deserto trágico) que abre a história, o suicídio dos pais, poderia ser uma variação da imagem/título que deflagra a história de Matou a família e foi ao cinema – ambos filmes realizados com uma câmera de 16mm não muito diferente da que se vê nas mãos de Miramar. E ainda, e em parte maior, Miramar tem algo de primeiro filme pela sua estrutura da composição, mais procura que encontro. É um filme realizado com “muita liberdade, deixando que essa coisa inconsciente, irracional, os impulsos aborígenes, apareçam um pouco”. [Entrevista para a revista Cinemais número 6.] Conscientemente ou não, surgem aqui dois componentes desse mergulho no deserto como terra fértil que serão retomados e desenvolvidos adiante. O primeiro, pouco depois sublinhado numa fala de Dias de Nietzsche em Turim, é a reafirmação de que “a arte, e somente a arte, torna a vida possível. É o grande estimulante da vida. É a única forma de resistência superior à negação da vida”. O segundo, pouco depois sublinhado pelo despojamento e penitência de São Jerônimo, é a reafirmação da necessária desconstrução de si mesmo como etapa do 25 processo de formação ou transformação da pessoa. Ir ao deserto não apenas para isolar-­‐se do que existe em volta e poder assim concentrar-­‐se na invenção, mas para isolar-­‐se de si mesmo, para trazer o deserto para dentro de si, para interiorizar a paisagem estéril e inóspita. Despersonalizar-­‐se, descentralizar-­‐se, desertificar-­‐se: “Não tem mais a idéia de um eu, no sentido de um eu profundo, de um eu em que você se volta para si... Não. Só um eu que seja fora de si, que seja além de si. Você tem que seguir atrás dele numa aventura de loucura pura, porque você está descentrado desse sujeito. Agora, sem esse esmaecimento e sem o nada, sem o deserto, não se cria. A imagem da terra esterilizada é a metáfora da criação, porque descentraliza o sujeito, abole essa coisa monstruosa, a prisão da vida, a prisão do eu. Esse pequeno self, esse pequeno eu, você guarda no seu plexo e não deixa ele descer. É o eu debaixo, cego, peniano, vaginal. Essa descentralização, esse esmaecimento do sujeito é a parte central da criação”. [Júlio Bressane, debate Cinema de poesia transcrito na revista Cinemais número 33.] Filme de amor, onde “três pessoas que vêm de pontos distantes, um homem e duas mulheres, atravessam uma cidade vazia, desolada, e se fecham um fim de semana numa casa vazia”, retoma, desenvolve, radicaliza estas questões apresentadas através de Miramar, Nietzsche e Jerônimo: desertificar-­‐se para se abrir à arte, só ela torna possível viver. Miramar discute como “transfigurar uma tragédia, uma perda, uma coisa que é só dor e impedimento, em potência” através da criação. A discussão se faz marcada de citações, o que, no fundo, “implica num colapso do tempo e numa despersonalização”, porque “coloca dentro do seu, o outro, o alheio” – coloca dentro de si o outro e o tempo do outro. Parte maior desse outro são referências literárias: Memórias póstumas de Bras Cubas, de Machado de Assis, Memórias sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade, Reflexões de um cineasta de Sergei Eisenstein, que, diz Júlio, tem muito de memórias e algo de romance de formação. Em alguns instantes os livros que Miramar carrega se transformam quase em personagens vivos que dialogam com ele. Saltam para primeiro plano. No entanto, Miramar não é uma adaptação literária (o que ele considera quase impossível: “na maior parte do tempo, a literatura vai para o cinema sem a literatura: vai apenas como um enredo”); nem é uma tradução (igualmente uma impossibilidade: “um texto: o que traduzir? Traduzir é lidar com uma impossibilidade: não tem tradução”); e nem mesmo, expressão que Júlio toma de Haroldo de Campos, por encontrá-­‐la mais adequada, uma transcriação literária (uma alusão: a possibilidade única, de 26 certo modo a essência da arte: “como o texto é intraduzível você não tem que recriá-­‐lo apenas, tem que transcriá-­‐lo, traduzir o estilo”). Transcriação foi o que Júlio procurou realizar em Brás Cubas (1985) a partir de Memórias póstumas de Brás Cubas de Machado de Assis (o primeiro de seus filmes apoiados num texto literário: “as idéias alheias são sempre melhores que as próprias. A gente sempre se interessa pelo que não é nosso”). Miramar não adapta, não traduz nem transcria: transita pela literatura. É uma alusão à literatura, mas não se apóia num texto – daí a idéia de “botar dentro da imagem a própria coisa da literatura”. Miramar tem a ver com uma tradição do romance, procura criar “uma ossatura, um esqueleto de lugares comuns desse gênero chamado de romance de formação”, prosa feita de “fragmentos, livro de capítulos”. [Todos os trechos citados no parágrafo acima são igualmente retirados da entrevista em Cinemais número 6, em que Bressane diz ainda, com relação aos livros de Machado de Assis, Oswald de Andrade e Sergei Eisenstein: “Eu faço um trocadilho, como se no romance da formação do menino Miramar esses três livros fossem as três perspectivas: mira mar, a mira mór, a que ele aprende, e a mira morte, a que vai ensinar a morrer. Esses três textos têm também em comum o fato de serem todos romances de formação. O livro de Eisenstein é uma espécie de memórias: como é que ele se tornou cineasta, as reflexões sobre a cor, as referências a Prokofiev, seu amigo...”. Em outra ocasião, referindo-­‐se a Vidas secas no citado debate Cinema e literatura, disse que dirigir um filme a partir de um texto “consiste em operar uma passagem da escritura dramática à escritura cênica e adicionar à metamorfose do texto um jogo em termos de realidade cênica. Projetar no espaço o que o texto projetou no tempo. Projetar no espaço significa luz”.] Em Miramar Bressane se propôs o deserto, o esmaecimento do eu, o abandono de si “às forças aborígenes” como um meio de “experimentar a possibilidade de não ter poder, de não ter domínio sobre o filme” – fazer cinema como se cada filme fosse o primeiro, como se o trabalho fosse mais conduzido pelo cinema do que pelo realizador. Não se trata de retomar algo esboçado no começo mas não realizado de todo nos filmes seguintes, mas de se deixar guiar pela arte, pelo não controlado em termos absolutos pela razão: “Se você já tem o objetivo, a certeza do que você quer, do que você deseja, a criação torna-­‐se desnecessária. A verdadeira descoberta se dá, e ainda assim não necessariamente, no instante em que se está fazendo...” [Ainda na entrevista para Cinemais número 6 Bressane observa: “o início do filme, onde se dá a questão da tragédia, com o famoso arquétipo dos pais, os pais que se matam. Isso é um lugar 27 comum, mas esse lugar comum é que vai ser o ponto de transfiguração. Configura-­‐se uma tragédia que Miramar vai ter que transfigurar para que essa mancha não o engula. Então, os procedimentos: criar uma espécie de, diria assim, a grosso modo, trilha sonora diversa da imagem. Contar com dessemelhantes, como de fato são. Não que isso seja imperativo. Há grandes exemplos de trilhas sonoras coincidentes com a imagem, há grandes exemplos de trilhas sonoras que impulsionam a imagem, há integrações extraordinárias. Agora, há também uma outra variante, a das coisas dissociadas. E isso, evidentemente, cria uma perturbação, um estranhamento. Aquelas imagens não têm diálogo, e então eu fiz uma trilha sonora com trechos de filmes, trechos de falas, para dar um sentido de autonomia; nada que estivesse sendo uma referência, um comentário. Dissociando. A trilha sonora colocada ao acaso, às vezes fica mais sugestiva do que você pensava. Coisas que você procurava dissociar, quando colocadas juntas revelam umas coincidências que você não esperava. Minha idéia era criar nessa primeira parte, com o suicídio, o carnaval e tal, uma configuração de tragédia, de coisa que evidencie conflito. Para que aquilo fosse uma espécie de bolha vital, para que Miramar pudesse sair dali”. A trilha sonora montada sobre as imagens dos pais, esclarece adiante nesta mesma entrevista: são trechos de interpretações “mais convencionais, mais didáticas, com cacos que talvez digam a mesma coisa, mas com uma outra interpretação; procurei, por exemplo, misturar uma leitura de um trecho da descrição de uma sala, dos objetos de uma sala, do Judas, o obscuro, uma coisa acadêmica, misturar isso com a voz e a interpretação da Betty Davis e do Herbert Marshall em The Little Foxes [de William Wyler, 1941, exibido no Brasil com o título de Pérfida] -­‐ o cara com câncer: “Ah! Eu te odeio,” e tal. Quer dizer, a situação de crueldade, de você dizer uma coisa brutal, existe nos dois textos. Agora, a emissão disso os transforma completamente. Esses textos: primeiro é dito numa imagem de livros sobre a mesa, os livros dispostos com um cavalo chinês. O segundo em cima de um cinzeiro, como se fosse uma espécie de boca falando, uma distorção. Os dois textos dizem coisas semelhantes, mas a emissão os torna diferentes”.] Em diferentes ocasiões Bressane reafirmou que faz filmes porque o cinema não é só um instrumento de expressão, “mas um poderoso instrumento de auto-­‐transformação. Eu faço cinema por causa disso, para sair de mim, entende? Faço por necessidade. Faço filmes porque eu não sei o que é cinema. É por isso que eu faço. Para descobrir o que é. Se eu soubesse o que é, talvez nem quisesse fazer.” [No debate Cinema de poesia, realizado no Centro Cultural do Banco do Brasil no Rio de Janeiro, em maio de 2001, transcrito em Cinemais número 33.] 28 Uma radicalização deste impulso foi um dos pontos de partida de Filme de amor. Bressane conta que diferente de outros filmes, “que representavam o coroamento de uma idéia”, ele aqui “deixou a idéia andar sozinha; tratei de seguir a idéia”. O filme é “uma colcha de retalhos, um rearranjo de lugares comuns”, foi feito “de maneira inconsciente. O ato de fazer o filme não é inconsciente, mas a força que me conduziu a ele foi.” [Mistério, quer dizer fechar os olhos em Cinemais número 35. Ao apresentar o filme, Bressane escreveu: “A estória, o tecido da fábula das três Graças, Tália, Abgail e Eufrosina, a trindade projetada por Vênus, deusa do amor, onde virtude e prazer são reconciliados, fartamente estruturada no Ocidente, é o que é narrado no filme, de forma transformada e recriada, fazendo florir na superfície, na pele, toda profundidade do antigo mito. Na trama será mostrado por que as Graças são três, porque são elas irmãs. e porque suas mãos estão sempre entrelaçadas. As três Graças são o amor, a beleza e o prazer, o triplo benefício das três Graças consiste no princípio: dar, receber e retribuir. O simbolismo das três Graças é o simbolismo de todo sentimento amoroso, da antiguidade até nós, seu gesto, sua narrativa mental, seu movimento, orienta e desorienta todo nosso território afetivo, nocional e pulsional. Nesta dança entre conceito e imagem, cada um é instrumento para desvendar o outro. Um gesto responde a outro gesto, uma carícia responde a outra carícia, um olhar responde a outro olhar. Flexibilidade ilimitada, movimento de incessante metamorfose. Sensações, pensamentos que não se limitam jamais a um só órgão, pois encarnam, formulam, vivem inteiramente através do ritmo total de nossa carne, nosso corpo vivo e pensante. Numa reunião de três amigos, cruzam-­‐se várias linhas de força e de cordasmusicais. Encontrar a corda principal e fazê-­‐la vibrar eis o destino deste nosso Filme de amor.”] Antes da sombra o deserto porque, numa certa medida, a sombra que organiza a imagem no cinema deve, idealmente, ser percebida pelo espectador também como o deserto fértil capaz de estimular nele, espectador, uma nova invenção. O cinema, na verdade, exige de quem faz e de quem vê um esforço idêntico para poder sair de si e transitar, não mais como observador passivo mas como um ativo criador, entre as fronteiras com as outras artes. Antes do deserto, a arte. Os livros, os escritos, os discos que cercam Miramar, Jerônimo, Mário e Friedrich, (que estão quase todo o tempo lendo, escrevendo, ouvindo, vendo), mais a música, o cinema e a pintura ocupam um espaço central e fundador no cinema de Júlio Bressane. A linguagem da arte é o verdadeiro tema de seus filmes: “a linguagem é um modo de sentir o mundo. O cinema nasceu 29 no tempo da metalinguagem” e por isso seus filmes se constroem próximos do ensaio, da teoria, da crítica, da análise, da montagem de citações. Aqui um pedaço de Eisenstein. Ali outro de Nelson Pereira dos Santos. Fragmentos de filmes mudos, imagens dos primeiros anos do cinema (“procuro pontuar meus filmes por esse ver através do início”), imagens que fazem fronteira com o deserto, com o antes do cinema. Uma frase de Wagner, um diálogo de um filme de Pasolini, um diálogo tirado de um filme de Wyler, um texto de São Jerônimo, a voz de Mário Reis – nada disso, nem as imagens nem os sons, para compor algo semelhante a uma antologia e sim para montar uma base para uma impossível tradução que reinventa, para uma possível transcriação. Fazer arte para compreender o que é. Falar da arte como organismo intelectual sensível, demasiadamente sensível, capaz de levar as pessoas a forçar seus limites e comunicar-­‐se, fazer fronteira, com sua própria experiência e com a do outro. Portanto é ela, a arte, a poesia -­‐ uma “coisa fundante”, “anterior a tudo” -­‐ que age na cena. Mário, Miramar, Jerônimo, Friedrich, Hilda, Matilda, Gaspar, e todos os outros personagens, se comportam na imagem como uma projeção do espectador (tradutor, transcriador) diante da obra de arte. Uma projeção do espectador e também do realizador, do artista enquanto sensibilidade que reorganiza os lugares comuns da arte, do artista enquanto espectador da arte, enquanto sensibilidade que pode dizer de si mesmo o que certa vez cantou um verso português: “Não sou eu quem descrevo. Eu sou a tela. E oculta mão colora alguém em mim.” [Verso tomado como epígrafe do texto O Brasil encoberto na coletânea de ensaios Cinemancia.] Imaginemos Miramar como um filme primeiro, ponto de partida. O mandarim como um prólogo. São Jerônimo e Dias de Nietzsche em Turim como desenvolvimento de questões esboçadas no romance de formação de Miramar: o artista mais tela que projetor, a projeção mais coisa mental que técnica sofisticada. [“As imagens hoje, requintadas do ponto de vista técnico, são feitas com mais facilidade -­‐ não digo só por um problema de tecnologia. Há um armazenamento enorme, uma coisa que está estocada. Quantos milhões de fotogramas foram feitos para se chegar àquela coisa que hoje você faz com simplicidade? (...) A tecnologia se desenvolveu, se sofisticou -­‐ a fotografia, a revelação, a qualidade da imagem -­‐ já a coisa expressiva, é incrível (...) acho que houve uma distorção quanto a isso que se chamou a qualidade da imagem. Qualidade da imagem significa 30 uma qualidade mental, não é verdade? Quando comecei levava fé no cinema sujo. Achavam ruim você fazer filme em 16mm para ser ampliado, mas aquilo tinha uma potência. Hoje, o que você vê é que há uma tecnologia mais acessível, mais desenvolvida. Isso que seria um ganho, e é um ganho, em todos os tempos, em todas as épocas, é também uma perda no sentido em que não é uma necessidade entre nós. São coisas que ainda estão muito longe, ainda em processo de formação, ainda em ebulição imensa, para se ter uma visão já definida. Mas eu acho que essa perda é geral, no mundo inteiro. A imagem da publicidade, é impressionante! Como é que a gente se deixou seduzir por essa facilidade tão grande, por uma coisa tão fácil? E é assim em todos os lugares, não só no cinema mas as artes de uma maneira geral... Nem sempre o grau problemático no campo das idéias, no campo do mental, está de acordo com o instrumento. O instrumento, às vezes, é muito mais sofisticado. É preciso ter cabeça para usar essa complexidade. Comprar um Concorde para ir do Rio a Niterói? Ele nem levanta vôo. Botar um escafandro num cara para ele pular numa banheira? Botou um escafandro, tem que descer 12 mil metros.” Então, isso é o que eu acho, e falo de todos nós. O fato de estar falando não quer dizer que esteja fora disso. Ao contrário, talvez saiba bem porque estou como todos metido nisso. Nessa ausência, nessa carência.”] A arte como organismo vivo que escreve a si mesmo, mais criadora do artista que criação dele, na realidade mero instrumento dela, simples porta-­‐voz de uma força exterior que não domina (“e o cinema, nesse sentido, é devastador; você faz, imagina que controla e o que de fato controla deve significar uns cinco por cento do filme”). [No debate Cinema de poesia em Cinemais número 33.] E, finalmente, imaginemos Filme de amor como uma radicalização do que se propõe nestes quatro filmes: em parte no que a imagem mostra: três pessoas se reúnem numa casa vazia como um deserto “movidas por uma pulsão inconsciente um desejo de recriar a existência para sentir uma coisa difícil de sentir, que é o sentimento do amor”; em parte no modo de mostrar: entre a pintura e o cinema, entre um filme e uma crítica de filme filmada, entre a cor e o preto e branco, entre o imediatamente visível e o visível-­‐outro a que ele faz alusão, entre duas ações que balizam o corpo do filme – os três na praia, os três de volta ao trabalho – entre: intervalo: entreato. Neste contexto é que Júlio pode afirmar, nos filmes e nas conversas sobre eles, que toda arte é alusiva (“e quanto mais repetição, quanto mais parecença, quanto mais citação, mais forte é o objeto artístico”); que a coisa espontânea é uma perda, que fazer arte exige leitura, 31 armazenamento de (“por mais poético, por mais gênio, por mais dom que se tenha é preciso quebrar o nariz: ler”). [“A questão do armazenamento e da renovação é dificílima”, diz Bressane na citada entrevista a Cinemais número 6: “O Oswald de Andrade disse assim: “Eu leio um livro; me arranca pedaço e eu arranco pedaço dele”. Nunca li um livro rindo. Para mim é uma loucura, é um esforço, é uma coisa tremendíssima. Porém, depois de um esforço desse, tem que pegar um e, se for preciso, jogar pela janela e pegar um outro que diz o contrário daquele. Quer dizer, são enfrentamentos, que você, para ser minimamente moral, minimamente ético consigo próprio, são uma coisa imensa (...) Daí, a questão da visão bi-­‐polarizada, isso ou aquilo. A dificuldade está em colocar os dois pólos juntos. Não é isso ou aquilo: é isso e aquilo, os dois. Isso é que é a coisa.”] E ainda neste contexto é que ele relembra a velha questão “atribuída à poesia de Horácio”, à poesia do lugar comum: “A poesia era considerada uma remontagem, uma reorganização de velhos lugares comuns. A saturação desses lugares comuns e a recolocação deles de novas maneiras é que criavam a novidade. A novidade era a relação nova dos lugares comuns. Esses lugares comuns é que são indispensáveis”. [entrevista a Cinemais número 6] Quando em O mandarim, ao lado do ator Fernando Eiras, que faz o papel de Mário Reis, Caetano Veloso, Chico Buarque de Holanda, Gilberto Gil, Gal Costa, Edu Lobo e Rafael Rabelo aparecem interpretando Noel Rosa, Sinhô, Ismael Silva, Tom Jobim, Carmen Miranda ou Heitor Villa-­‐Lobos, eles estão ao mesmo tempo interpretando estes papéis e interpretando a si mesmos, como herdeiros/seguidores/reorganizadores da tradição da música popular brasileira que passou por Mário Reis e por todos os outros. Atuam no mesmo espaço em que agem as citações visuais ou sonoras que se inserem nos filmes de Bressane. São, como Mário, como Miramar ou como Jerônimo, demonstrações de que a arte inventa os artistas. São em bom e bem ritmado som o que num outro momento foi a voz mansa e sussurrada de Friedrich e o intervalo, o corte no dia-­‐a-­‐dia medíocre experimentado por Hilda, Matilda e Gaspar: a afirmação de que a arte, e somente a arte, torna a vida possível. É neste contexto, enfim, que Bressane pode lidar com o cinema como um processo de cultivar no deserto a sombra como uma luz às avessas. José Carlos Avellar escreverCinema 32 Disponível em: http://www.escrevercinema.com/O_deserto_em_transe.htm Paulinho da Viola -­‐ Meu tempo é hoje (2003), de Izabel Jaguaribe Paulinho da Viola – Meu Tempo É Hoje, de Izabel Jaguaribe Brasil, 2003 0. Fernando Calazans, um dos estilistas da crônica esportiva brasileira, não cansa de lembrar o quanto a ditadura do técnico e a imposição de modelos rígidos de posicionamento acabam castrando a liberdade e a criatividade do craque, impedindo-­‐o de real;izar a melhor expressão de sua arte. OK, futebol não é cinema, e técnico de futebol não é exatamente uma boa metáfora para o trabalho de mise-­‐en-­‐scène cinematográfica. Mas basta ver Paulinho da Viola tocando solitário num suntuoso estúdio decorado com paredes cenográficas de um vermelho fashion para nos lembrarmos de outra das frases repetidas à exaustão pelos comentaristas esportivos, todas as diferenças com o cinema à parte: pouco importa que no time só tenha craque, o técnico pode perder o jogo. 1. "Meu tempo é hoje" era para ser mais do que o subtítulo do filme. Era para ser a fórmula de acesso ao universo pessoal, pessoalíssimo do cantor e compositor Paulinho da Viola, sambista renovador e poeta talentoso que mantém com as coisas que tem a seu redor uma relação de temporalidade toda particular. A aposta, parece que a diretora Izabel Jaguaribe e o roteirista Zuenir Ventura a fizeram juntos: fazer dessa temporalidade difusa, dessa estranha relação com o tempo que duvida haver saudade mas que mantém com todas as coisas do passado e de sua tradição uma relação absolutamente solene, uma espécie de leitmotif estruturante do roteiro que faria evoluir dramaticamente o filme ao mesmo tempo que remeteria todos os aspectos da existência do personagem retratado ao eixo principal da trama. Temos um roteiro. 2. Antes de saber se esse roteiro funciona, valeria inicialmente fazer outro tipo de questionamento: há necessidade de roteiro desse tipo? Outros filmes recentes souberam ancorar o eixo dramático da "trama" em outro aspecto que não seja a tentativa de compor um tipo: João Moreira Salles fragmenta a narrativa em nacos de cotidiano para filmar o pianista Nélson Freire, Andrucha Waddington parte de "qualquer lugar" para tentar achar o fenômeno "São João" sem guia, no mesmo nível dos olhos de seus entrevistados. Aqui, conceituar a relação do protagonista do documentário com o tempo serve apenas a um critério tipificante um tanto tolo que, sim, consegue cimentar a narrativa do filme – mas a aparência de sair do 33 filme achando que ele apresenta uma tese coerente é uma qualidade que se esgota em si mesma? Coerente ou não, vemos que a proposição que o filme quer demonstrar – "Quando penso no futuro, não esqueço do passado", como uma de suas canções diz – de fato cabe a Paulinho da Viola assim como o vemos em filme, mas que na própria materialidade das cenas que vemos há muito mais temas a serem levantados, muito mais situações de interesse, muito mais etc., e Meu Tempo É Hoje parece estar fascinado unicamente e comprovar sua tese e conseguir montar juntas a partir dela as cenas mais pitorescas que se conseguiu filmar. 3. Assim, vemos toda uma mitologia dos veteranos samba aqui renovada. O elogio do Centro da cidade, dos locais tradicionais, o elogio do profissional dedicado (o expert da sinuca, o homem que conserta relógios, o próprio Paulinho que é um consertador perfeccionista e patológico), a vida com os outros sambistas – particularmente tocantes as cenas com a Velha Guarda da Portela e com Zeca Pagodinho –, a vida de pai de família tranqüilo porém cheio de manias... O filme constrói esse painel com alguma graça, mas com eficiência relativa: para cada cena em que se evolui em alguma medida a personalidade de nosso protagonista (a visita à garagem, a dança e as conversas com a família), corresponde uma cena feita mais para servir de portfólio ao diretor de fotografia (a sinuca) ou um encontro para fazer efeito de sensação (Marina Lima e Marisa Monte, por mais que tenham regravado nos últimos anos canções de Paulinho, não acrescentam muito ao filme). 4. Quanto à música, tão importante quanto o fio condutor Paulinho-­‐tempo-­‐futuro-­‐passado, o filme dedica a ela tempo suficiente para que o cantor consiga nos deslumbrar com suas canções. Podemos sentir falta de algumas ("Para Ver as Meninas"), podemos acreditar que algumas mereciam melhor atenção ("Coisas do Mundo, Minha Nega"), mas a principal questão a respeito da música diz respeito à encenação disposta para que Paulinho da Viola possa cantar suas músicas. Imponentes demais para uma pessoa que vive de modo bastante estóico – o próprio filme ajuda a construir esse mito –, o cenário e a iluminação das cenas de música acham um Paulinho sem tanta naturalidade, um tanto intimidado por um espaço que não corresponde àquele que tem no coração (e que vai levar o nome de "seu"). Assim, só uma canção consegue romper o nível reverência-­‐eficiência para nos transportar para terreno instável: "Sinal Fechado". Background histórico-­‐político sobre a canção à parte, é um dos momentos que sobram no filme. Assim como o relato da primeira execução de "Foi um Rio Que Passou em Minha Vida" na concentração antes e depois do desfile da Portela. Momentos mágicos contados com magia por quem viveu. Entretanto, esses breves momentos não são suficientes para encher de magia o próprio filme, bastante indiferente no geral para ser modificado pelo tema que escolheu seguir – o samba, Paulinho da Viola, o tempo, o passado 34 ou a tradição. A distância escolhida sendo a da reverência protocolar, o gosto acaba saindo, mas o gozo não sobressai. Ruy Gardnier Contracampo -­‐ revista de cinema Disponível em http://www.contracampo.com.br/criticas/paulinhodaviola.htm Análise do Filme Paulinho da Viola meu tempo é hoje Paulinho da Viola diz que se preocupa pouco com o tempo. Mas é sua relação com ele -­‐ tema tão presente em sua obra -­‐ que inspira e conduz o documentário sobre um dos maiores nomes da música popular brasileira. A idéia central do filme Paulinho da Viola, Meu tempo é hoje surgiu de uma das várias conversas do cantor e compositor com o jornalista Zuenir Ventura -­‐ que colaborou com o roteiro -­‐ e os cineastas João Moreira Salles e Izabel Jaguaribe, fã confessa do artista e que assina a direção do documentário. Izabel conseguiu driblar a notória timidez do artista, acompanhando o compositor muitas vezes sem câmera. "Todo o processo durou dois anos, de filmagem foi quase um ano. Fizemos as filmagens bastante espaçadas e isso foi uma das coisas boas para ganhar sua confiança", afirmou ela. "A gente percebeu que quanto mais a gente conversava, mais ele ficava à vontade." A convivência quase diária com Paulinho da Viola permitiu que a cineasta descobrisse detalhes curiosos da vida do compositor, que em novembro completa 61 anos. Um deles é uma paixão de Paulinho por restaurar carros antigos, mantidos pelo artista em um depósito na Barra da Tijuca. Mas ele confessou que não gostou muito de ver sua mania de montar (e desmontar) carros na tela, porque ele não dedica mais seu tempo a isso. Outro aspecto capturado pelas lentes de Izabel foi o gosto do compositor pela marcenaria. No filme, Paulinho mostra que um martelo é tão importante em sua vida como um violão ou cavaquinho. "Se não fosse músico, eu seria marceneiro", disse. Também no documentário, a mulher de Paulinho, Lila, brinca com a aflição do artista por consertar coisas, contando que uma vez o compositor chegou a pedir um alicate num quarto de hotel. No longa-­‐metragem, o pai de Paulinho, o violonista César Faria, do conjunto de choro "Época de Ouro", lembra que o filho respirou música desde garoto. Um tempo em que a casa dos Faria, no bairro de Botafogo, era frequentada por Jacob do Bandolim, Altamiro Carrilho e Pixinguinha. 35 Paulinho achava que ia estudar contabilidade e tocar apenas por prazer. Chegou a trabalhar como auxiliar de contador, mas não demorou muito para ser sambista em tempo integral, contrariando a vontade do pai como canta nos versos de 14 Anos, presente no filme. O documentário intercala cenas do cotidiano de Paulinho -­‐ do passeio por um sebo no centro do Rio ao jogo de sinuca com os amigos e o café da manhã em família -­‐ com encontros musicais com Marisa Monte, Marina Lima, o parceiro Elton Medeiros, a Velha Guarda da Portela, que acolheu e conquistou o coração do sambista, além de uma roda de samba no sítio de Zeca Pagodinho. É com Marisa Monte que Paulinho vive um dos momentos mais comoventes do filme, cantando Carinhoso, de Pixinguinha e João de Barro, escolhida por ele como a melhor canção de todos os tempos. Paulinho da Viola recorre a versos do compositor Wilson Batista -­‐ "Meu mundo é hoje, não existe amanhã para mim" -­‐ para ilustrar como ele lida com o tempo. Mas é ele mesmo quem sintetiza seu modo de encarar a vida. "O meu tempo é hoje. Eu não vivo no passado, o passado vive em mim." Louise Disponível em http://www.zemoleza.com.br/carreiras/31928-­‐analise-­‐do-­‐filme-­‐paulinho-­‐da-­‐
viola-­‐meu-­‐tempo-­‐e-­‐hoje.html Cartola -­‐ música para os olhos (2007), de Lírio Ferreira e Hilton Lacerda Cartola Hilton Lacerda e Lírio Ferreira, Brasil, 2006 Houve sempre nos filmes de Lírio Ferreira um sentido muito forte de reafirmação de um certo passado cultural e popular do país, algo que na passagem de Baile Perfumado para Árido Movie se anuncia primordialmente com o retorno a dois momentos fundantes da idéia que do Brasil se criou, no século passado, a literatura regionalista dos anos 30 e o cinema moderno dos anos 60. Retorno, e não revisão: repetiam-­‐se certas fórmulas anteriores, aplicadas à contemporaneidade sem qualquer critério, como se a simples aproximação parasitária de um pensamento canônico pudesse fazer reagir naturalmente, no interior dos filmes, os elementos ali dispostos em nome dessa recuperação cultural. O projeto de Cartola tem essa mesma direção, mas se nos filmes anteriores era dela que se partia, aqui ela será o fim. 36 Assim, a figura do sambista carioca é tomada como uma espécie de sumário da tradição popular brasileira, naquilo que todos esses ícones culturais teriam de recipientes (voluntários e conscientes, ou não) dessa nossa identidade forjada na comunicação entre expressões diversas. A trajetória de Cartola se inicia pelo fim, e sobre as imagens em preto e branco de seu funeral, ouvimos Jards Macalé recuperar a primeira frase das Memórias Póstumas. Importa para o filme que Cartola tenha nascido no ano da morte de Machado de Assis, e que a estrutura narrativa que adote (do funeral se retorna ao nascimento do sambista, para que então se avance linearmente) esteja ligada à de Brás Cubas, mas não apenas como uma curiosidade que se transforme em matriz dramática. Lírio Ferreira e Hilton Lacerda querem, de fato, colar a experiência machadiana à de Cartola, nem diminuir uma da outra, nem muito menos sobrepor, mas fazê-­‐las dialogar. Os dois foram, afinal, definidores daquilo que percebemos hoje como cultura brasileira. Definidor também é o próprio cinema, e se a arqueologia natural desse tipo de projeto já inclui a recuperação de imagens de arquivo que ajudem a construir este personagem perdido, Cartola buscará também na história do audiovisual brasileiro este diálogo formador. São sim as imagens das participações de Cartola em filmes e programas de tevê, mas também aquelas de seus companheiros de geração (Nelson Cavaquinho, Carlos Cachaça), e ainda outras onde não haja qualquer ligação direta, trechos da memória visual do país que, retirados de seu contexto e postos em comunicação, dizem tanto sobre si quanto sobre aquilo que ajudaram a construir enquanto idéia de cultura. O que poderia sugerir um biografismo simples, revelando informações e histórias de que não se tinha conhecimento, construindo esse Cartola menos mítico, mais humano, acaba se frustrando diante de várias negativas do filme em mergulhar e expor os detalhes dessa personalidade. Ferreira e Lacerda insistem, na verdade, na própria mitologia já estabelecida, desfazendo seu caráter conformador de sentidos (a grande diferença do que Árido Movie faz com o Cinema Novo, por exemplo). Mito, mas talvez sem a real dimensão e profundidade de sua própria história, e desse modo colar à Cartola todo o Humberto Mauro, Glauber Rocha, Carlos Manga e Julio Bressane que se tem disponível, e também os clipes de Welles e Carmen Miranda com um bombardeio da II Guerra, ou a colagem de Mutantes, Roberto Carlos, Pelé e uma tropa militar da ditadura, tendo partido, lá no começo, do pecador original que foi Machado, é ratificar, agora “com provas”, a imanência do sambista sobre nossa formação cultural, um papel de formador maior do que a falta de memória e perspectiva histórica acabou por perder. 37 Neste filme, Cartola sempre é. Se As Rosas Não Falam aparece montada como tema eterno e de domínio público, que sai da flauta cretina de um músico andino numa praça para Beth Carvalho ao violão, e depois para Altemar Dutra diante duma orquestra em um show de tevê, até que finalmente se complete com o próprio compositor, esta diversidade é a própria materialização do gênio popular pela conjugação da imagem. Há nessas afirmações todas um risco gigantesco, mas é dessa coragem de dizer efetivamente algo sobre sua fonte de inspiração/atuação que os filmes anteriores de Lírio Ferreira mais se ressentiam. Lida-­‐se sim com o mito, mas não para sugar desesperadamente suas últimas forças. Cartola tem fôlego próprio, e é por isso que consegue, se arriscando, mas ainda assim com muita integridade, respirar na cadência superlativa de seu personagem. Rodrigo de Oliveira Contracampo -­‐ revista de Cinema Disponível em http://www.contracampo.com.br/85/critcartola.htm Filmar o samba É num contexto de uma profusão recente de cinebiografias, em geral marcadas pelo tom oficioso e por uma nostalgia enlatada (cujo maior expoente foi Vinícius, de Miguel Faria Jr, um dos documentários brasileiros mais vistos da história), que surge Cartola, de Hilton Lacerda e Lírio Ferreira. Lírio já tinha dado sinais de uma ousadia polêmica em seu segundo longa-­‐ficção, Árido Movie, com um olhar bem diverso em relação às imagens comuns do sertão no cinema. Mas aqui o impacto é outro. Estamos em reino diferente, que, talvez, não seja simplesmente o da "verdade", mas de um regime em que a narrativa opera por diferentes vias. Como um documentário biográfico, Cartola arrisca, e por isso mesmo destaca-­‐se entre seus pares e alcança significados para além de uma mera transposição da celebridade para a prateleira de filme. Montado em fragmentos (muitas vezes desconexos), buscando conexões inusitadas, o filme vai construindo sua trajetória irregular. No início, um garoto andando de trem, vestido em roupas de época e acompanhado por uma narração over do próprio Cartola sobre sua infância, realiza uma dessas típicas dramatizações que encenam o passado. Mas eis que, mais à frente, alguém dando um depoimento narra um episódio em que Cartola se relacionava com uma mulher casada, e o marido, ao descobrir, resolveu tirar satisfações. Antes do depoimento chegar ao desfecho, há um corte para imagens em preto e branco, com um sujeito entrando num quarto e dirigindo-­‐se desconfiado em direção à cama, quando uma cabeça aparece do lençol: é Oscarito! Largando a encenação do passado, Cartola se apropria de outros filmes para 38 realizar essa função. A partir daí, uma série de cenas de filmes nacionais complementam as imagens de arquivo, em alguns momentos funcionando como criativas intervenções narrativas, em outros, apenas citando a época histórica. O personagem do filme se expande de Cartola para o samba – ou, ainda mais, para o "filmar o samba". Esse caráter metalinguístico, já evidente pelo uso constante de fragmentos de filmes, adquire um sentido mais preciso nessa questão que é "filmar o samba". Essa é a questão de Nelson Pereira dos Santos em Rio, Zona Norte, cujo sambista, personagem de Grande Otelo, aparece diversas vezes no documentário. É a questão também de Orson Welles, que aparece rápida e discretamente junto com as imagens do carnaval dos anos 40, partes de seu inacabado It´s All True. E é nessa tradição em que se insere Cartola, que filma o samba entendendo que não foi o primeiro nem será o último a fazer isto, se colocando na história das imagens, uma história que permanece em movimento. É claro que nessa grande colagem podemos encontrar vários problemas, como os dispensáveis depoimentos de intelectuais que elucidam o tema. Mas essa necessidade de deixar as arestas aparentes, explicitando o caráter fragmentário do filme, ilustrado pela animação que forma o nome das pessoas, nos sugere isto: o samba, esses personagens, Cartola, não podem ser apreendidos como algo uno, acabado. Eles são constituídos de partes soltas, muitas vezes contraditórias, lacunas (como o longo momento sem imagens no meio do filme). Não há como dar conta do personagem, não como em Vinícius, que ambiciona ser um grandioso mausoléu audiovisual do artista. Talvez por isso, os realizadores tenham falado na apresentação do filme ser necessário construir um novo olhar. Lucas Keese Revista Cinética Disponível em http://www.revistacinetica.com.br/cartola.htm Cartola e os guardiões da cultura nacional: entrevista com Hilton Lacerda, diretor do documentário Cartola – Música para os Olhos 2008 é um ano emblemático para a cultura brasileira. Nele comemoramos dois centenários de grande importância para nossas artes: o de morte do escritor Machado de Assis e o de nascimento do sambista Angenor de Oliveira, o mestre Cartola. Para os discursos de nossa representação cultural, o ano, portanto, sugere um marco cronológico no ambiente artístico nacional ao simbolizar uma “passagem de bastão” da cultura letrada, sintetizada aqui na figura do fundador da Academia Brasileira de Letras, para a cultura popular, amalgamada no compositor mangueirense. É nesta perspectiva que, por sinal, podemos ler/ver o início de 39 Cartola – Música para os olhos, documentário dos diretores pernambucanos Lírio Ferreira e Hilton Lacerda, ao mostrar a cena de um microfone percorrendo uma caveira, não por acaso retirada do filme Brás Cubas de Júlio Bressane. Concretização de um projeto iniciado no ano de 1999, quando ainda se chamava Peito Vazio e que seria dirigido por Lírio Ferreira e Paulo Caldas (parceiro do primeiro no longa metragem Baile Perfumado), Cartola – Música para os olhos só veio a ter sua primeira exibição no Festival do Rio em 2006. Durante a sua extensa trajetória de produção, entre as inúmeras questões que surgiam na construção da biografia, uma ganhava certo destaque. Uma questão que, na verdade, se referia mais aos seus realizadores do que ao personagem retratado: seriam os diretores, jovens e criados geograficamente longe do universo do samba, autores legítimos para construir uma cinebiografia a altura do grande Cartola? Com a exibição regular da película nos cinemas do país em 2007, esta suspeita balizou algumas críticas como, por exemplo, a do crítico musical João Máximo que considerou o documentário uma sucessão de equívocos, afirmando que “os dois moços que assinam direção e roteiro” talvez não conhecessem a história do sambista [1] (ao se referir aos diretores de forma impessoal como “os dois moços”, Máximo os desautoriza a falar sobre Cartola, numa atitude que conota paternalismo em relação ao compositor). No entanto, para além dos diretores, a questão acima revelava (e ainda revela), sobretudo, a situação em que não raro encontramos alguns símbolos e expressões da cultura popular brasileira, submetidos constantemente aos ditames de autoridades sedentas por capital simbólico -­‐ não por acaso, quase sempre as mesmas que são aversas aos experimentalismos e/ou novas poéticas. Por outro lado, ela também nos serve, mesmo a contrapelo, de alerta para o real sentido das criações populares: o de que elas sempre prescindirão de donos, seus bastões nunca deixarão de ser passados. Tal como fez e tal como é o mestre Cartola, em seu legado e nas livres interpretações que podemos fazer dele. Nesta entrevista, o diretor e roteirista Hilton Lacerda comenta o assunto. “Foi lançado um véu poderoso que distancia curiosos que agora têm como antagonista uma poderosa indústria cultural, que agradece esse gesto gentil por parte dos guardiões dos segredos e da poesia que vem do povo”, ironiza. Além do tema, fala da importância de Cartola na sua vida e para a cultura brasileira. Pergunta -­‐ Quando e como entrou no projeto do filme Cartola – Musica para os olhos? 40 Hilton Lacerda -­‐ Na verdade eu participo do projeto do Cartola desde o início, mas eu tinha sido convidado para roteirizar o projeto, que nasceu de um convite do Itaú Cultural, em sua primeira edição do Rumos Cultural. Neste momento houve um convite e não uma seleção. Paulo Caldas e Lírio tinham acabado de lançar o Baile Perfumado e estavam em bastante evidência no cenário nacional. Naquele ano, o instituto tinha estabelecido como tema o olhar estrangeiro. Mais especificamente: artistas de determinado Estado observando a cultura do outro. E assim foi iniciado o Cartola, que tinha por meta a entrega de um roteiro de pernambucanos observando a cultura carioca. Naquele momento, Paulo Caldas estava bastante envolvido com seu filme O Rap do Pequeno Príncipe contra as Almas Sebosas e terminou se afastando do projeto. E aí, eu fui convidado por Lírio Ferreira e Clélia Bessa (produtora da Raccord Produções Cinematográficas) a participar do Cartola também como diretor. Clélia é a produtora do filme desde o primeiro momento. P -­‐ Qual a sua relação com Cartola? Como tomou contato com sua obra e qual a importância dela na sua vida? HL -­‐ Cartola, desde muito cedo, fez parte de minha vida. Primeiro por uma questão de uma educação bastante eclética. Nunca houve um parâmetro muito claro de conduta em relação à cultura na minha infância. Não por uma decisão intelectual da família, mas por certa liberdade e desleixo (o que faz bastante bem). Filho de uma classe média bastante típica nas décadas de sessenta e setenta, Cartola entrou em minha vida a partir de reuniões familiares que envolviam samba, seresta e muita cachaça. Além disso, na época do lançamento do primeiro disco do compositor, foi alimentado (coisa sazonal no Brasil) o modismo pelo samba-­‐canção (que já vinha desde o início da década de sessenta). Existiam pessoas mais velhas que passaram a cultuar Cartola, Nelson Cavaquinho, Clementina de Jesus... Resumindo, a entrada de Cartola em minha vida veio da cumplicidade entre uma educação bastante aberta e um lance de mercado que surtia seus resultados. No mais, foi permanecer bastante livre, para, já na adolescência, poder ouvir com o mesmo interesse coisas realizadas em tempos distintos. E isso ia do punk rock até as narrativas de Lupcínio Rodrigues. Dos sucessos fáceis da rádio (o fenômeno de massas é sempre interessante) às árias mais diletas. E é assim até hoje. E acredito que em minha vida o Cartola terminou se firmando como algo definitivo ao desembocar em nosso documentário. Do flerte contínuo à paixão da pesquisa. E aí já foi 41 Cartola desdobrando-­‐se em possibilidades de leitura, e revelando mais que sua música: farol numa possível leitura do Brasil. P -­‐ Como você pensa Cartola no panorama cultural brasileiro? HL -­‐ Acredito que Cartola não pode ser observado em sua individualidade. Porque assim estaríamos fazendo apenas uma leitura poética do músico. Não que exista aí um erro, mas é uma questão de relevância para uma geração inteira e para a formação de uma cultura popular urbana extremamente importante. Acredito que o compositor fez parte de uma geração que marcou de forma muito forte as matizes da nossa cultura. Ali, no início do século vinte, existia um projeto embrionário da formação do Brasil. Ou pelo menos essa formação sendo popularizada. Então, quando falo de Cartola enquanto importância cultural, estou falando de um momento de reconhecimento das classes que estavam fora do jogo social. E essas classes marcando posição e produzindo cultura de primeira linha, que terminou transbordando e fugindo do recipiente limitado e bombástico da época. P -­‐ Qual o significado do seu centenário para a cultura nacional? HL -­‐ Num país onde a memória vive por um fio, é muito importante você conseguir comemorar o centenário de um personagem tão importante como Cartola. Mas, a homenagem em si (extremamente necessária) não está à altura das discussões que podem e devem ser alimentadas. E isso vai desde a posição da cultura como porta voz de um povo, como a questão do negro na formação do Brasil. E até, e não seria ruim, aproximar a experiência marginal da vida do compositor com experiências atuais: de que forma essas discussões e leituras podem trazer novas interpretações sobre aquilo que somos ou sobre aquilo que podemos ser. P -­‐ “Seriam os diretores, criados geograficamente longe do universo do samba, autores legítimos para construir uma cinebiografia a altura do grande Cartola?” HL -­‐ Essa pergunta já foi feita e refeita muitas vezes durante o período de lançamento e produção do nosso filme. O engraçado é que acho ela completamente boba, magra. Quase raquítica. Isso porque ela não leva em consideração o fenômeno cultural, que nos dá direito a 42 interpretar mundos distintos a partir de óticas muito próprias, através de pontos de vistas muito particulares. Mas compreendo a pergunta, pois ela nos dá o direito de ver certo preconceito com relação aos eixos ali representados. Claro que o universo do samba não é restrito a um Rio de Janeiro que algumas pessoas tentam transformar num lugar provinciano, ensimesmado. Pelo menos o Rio da época de Cartola era um centro aglutinador de referência e regiões, e que fazia borbulhar a cultura brasileira. E isso estava na literatura, na música, no cinema... Na vida do Brasil. E mesmo que não o fosse, porque estaríamos algemados na visão e na opinião sobre espaços e culturas geograficamente compartimentadas? Ninguém acusou Nelson Pereira dos Santos de não ser um sertanejo para realizar Vidas Secas. O tivessem feito, seria uma pena, além de um erro. E além do mais, a nossa leitura não é uma visão definitiva. É uma leitura que busca na criatividade narrativa uma visão de um país a partir de um de seus ícones. Assim, os nobres guardiões da “verdadeira brasilidade” nem precisavam se alterar. Queríamos abrir portas e não cerrá-­‐las. P -­‐ Como você percebe essa relação entre autoridade e cultura popular no Brasil? HL -­‐ O mundo corporativo se transformou numa espécie de praga que bane a discussão do centro das coisas. E isso não acontece apenas com relação à cultura popular. No meio acadêmico isso está cheio. Quantos donos têm Machado de Assis, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Graciliano Ramos... O mundo acadêmico sofre bastante com isso. E é esse mundo acadêmico que municiou os donos da cultura popular. Os verdadeiros descobridores da alma genuína e lírica do povo. Os grandes projetores. Os tradutores que vieram para explicar para o povo o que eles eram e o que eles representavam. E o tomaram de tal forma que engessam a compreensão dos fenômenos populares. Não que eles tenham parado sua produção (cultura é corpo em eterno movimento), mas foi lançado um véu poderoso que distancia curiosos que agora têm como antagonista uma poderosa indústria cultural, que agradece esse gesto gentil por parte dos guardiões dos segredos e da poesia que vem do povo. Sendo mais direto, além de maior gentileza com o acesso a documentos e aos bens culturais populares, os guardiões poderiam ser mais atuantes no sentido de alimentar embates menos conservadores. Poderiam ficar com os ouvidos mais abertos para o outro. Claro que essa crítica não generaliza, mas cobre uma boa parte dos donos da cultura no Brasil, espécies de guardas de trânsito cultural. Bibliografia MÁXIMO, João. Um divórcio entre músicas e imagens. In: O Globo, 07/04/2007. 43 Roberto Azoubel da M. Silveira REPOM Disponível em: http://www.repom.ufsc.br/repom5/entrevista/cartola.htm 44 

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