PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO
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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DO RIO GRANDE DO SUL FACULDADE DE FILOSOFIA SANDRA MARIA DE OLIVEIRA A LINGUAGEM EM QUINE Porto Alegre 2011 SANDRA MARIA DE OLIVEIRA A LINGUAGEM EM QUINE Tese apresentada como requisito para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Orientador: Dr. Roberto Hofmeister Pich Porto Alegre 2011 SANDRA MARIA DE OLIVEIRA A LINGUAGEM EM QUINE Tese apresentada como requisito para obtenção do grau de Doutor pelo Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Filosofia da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Aprovada em _________ de _____________________ de ____________________ BANCA EXAMINADORA: Prof. Dr. ______________________________________________________ Prof. Dr. _______________________________________________________ Prof. Dr. __________________________________________________________ Prof. Dr. ___________________________________________________________________ Para meus filhos, eixo e totem, Tatiana, Tadeu Jr., José Carlos e minha neta Giulia, que trouxe encantamento e magia para a família. AGRADECIMENTOS Ao Professor Doutor Roberto H. Pich, que num dia de outubro de 2005, acreditou que este momento seria possível. Naquele dia, apresentou-me Quine e percebeu que o projeto embrionário, embasado na Filosofia da Linguagem, tema apaixonante, que ainda não conseguia vislumbrar, era viável. Obrigada pela confiança, incentivo, encorajamento nos momentos em que dúvidas sobre o andamento do trabalho me assaltavam. Ou, ainda, quando a afasia intelectual tomava conta. A meus colegas e amigos pelas discussões sempre pertinentes e pelo interesse demonstrado pela minha área de pesquisa. A meus filhos, que sempre acreditaram e estiveram presentes em todas as etapas deste processo de descobertas e construção. The road not taken Robert Frost Two roads diverged in a yellow wood, And sorry I could not travel both And be one traveler, long I stood And looked down one as far as I could To where it bent in the undergrowth; Then took the other, as just as fair, And having perhaps the better claim, Because it was grassy and wanted wear; Though as for that the passing there Had worn them really about the same, And both that morning equally lay In leaves no step had trodden black. Oh, I kept the first for another day! Yet knowing how way leads on to way, I doubted if I should ever come back. I shall be telling this with a sigh Somewhere ages and ages hence: Two roads diverged in a wood, and I— I took the one less traveled by, And that has made all the difference. RESUMO A abrangência da discussão acerca da linguagem é ampla. Desse modo, buscamos trazer elementos que fundamentam a problemática desta tese, cujo núcleo concentrase nos desdobramentos das abordagens concernentes ao behaviorismo, empirismo e pragmatismo, assim como conceitos-chave no sistema quineano, a fim de elucidar seu pensamento para sustentar esta investigação. Nesse contexto, o problema deste estudo consiste em buscar embasamento na teoria da linguagem de Quine para responder à questão em relação ao viés behaviorista levantado; a saber, que concepção filosófica permeia a teoria da linguagem em Quine. Esta investigação orienta-se a partir de textos fundamentais, como From a Logical Point of View; Word and Object: Ontological Relativity and other Essays; Pursuit of Truth; The Ways of Paradox and Other Essays; The Web of Belief; The Roots of Reference; Theories and Things, de Quine; quanto a Dewey baseamo-nos, sobretudo, em Experience and Nature, em que ele, de forma pontual, mostra seus conceitos acerca da linguagem. Além disso, a partir dos textos é possível responder às hipóteses e indagações que motivaram este trabalho, referentes à linguagem e seus pressupostos em Quine. Ademais, apresentamos conceitos pertinentes à questão da indeterminação e seus pressupostos que são discutidos no capítulo 2. No terceiro, linguagem e empirismo mostram o mundo da experiência que há no sistema filosófico de Quine. Por fim, nas considerações finais, concluímos que, realmente, a teoria de Quine a respeito da linguagem, seu aprendizado e aquisição apresentam um cunho behaviorista marcante, comprovando a hipótese inicial. Palavras-chave: Linguagem. Behaviorismo. Empirismo. Pragmatismo. ABSTRACT The scope of the discussion about language is very broad. Thus, we have searched to provide elements that underlie the problem of this thesis, whose core focuses on developments concerning the approaches of behaviorism, empiricism and pragmatism, as well as key concepts in the quinean system in order to clarify his thought to support this research. In this context, the problem of this study is to search basis in Quine's theory of language to answer the question in relation to behavioral bias raised, namely, which philosophical idea permeates Quine‘s philosophical theory of language. This investigation has been guided from basic quinean texts, such as: From a Logical Point of View; Word and Object; Ontological Relativity and Other Essays; Pursuit of Truth; The Ways of Paradox and Other Essays; The Web of Belief; The Roots of Reference; Theories and Things. Regarding to Dewey, the study has grounded in the book Experience and Nature, in which he, incisively, show his concepts about language. Moreover, from the texts, it can be possible to answer the hypotheses and questions that have motivated this research, concerning language and its assumptions on Quine. Furthermore, we have presented relevant concepts to the issue of uncertainty and assumptions that have been discussed in Chapter 2. In the third, language and empiricism can show the world of experience that there is on Quine's philosophical system. Finally, in the final remarks, we conclude that, indeed, Quine's theory about language, learning and acquisition has a strong behaviorist nature, confirming the initial hypothesis. Keywords: Language. Empiricism. Behaviorism. Pragmatism. SUMÁRIO INTRODUÇÃO ............................................................................................................... 10 1 QUINE A PARTIR DE DEWEY .................................................................................. 17 1.1 A importância do contexto na construção da concepção da linguagem em Quine .. 17 1.2 Introduzindo Dewey ................................................................................................. 19 1.2.1 A influência de Dewey na filosofia de Quine ........................................................ 19 1.2.2 A linguagem na visão de Dewey .......................................................................... 21 1.2.3 A perspectiva do naturalismo de Quine a partir de Dewey .................................. 26 1.3 Embasamento quanto ao pragmatismo ................................................................... 31 1.4 Resumo.................................................................................................................... 32 2 INDETERMINAÇÃO................................................................................................... 34 2.1 A teoria da linguagem na concepção de Quine ....................................................... 34 2.2 O viés da tese da tradução radical ........................................................................... 37 2.2.1 Apresentação do thought experiment .................................................................. 37 2.3 Trazendo aspectos da indeterminação da tradução ................................................ 42 2.4 Relatividade ontológica e seus desdobramentos: inescrutabilidade ou indeterminação da referência na perspectiva empírico-naturalista ................................ 46 2.5 Considerações acerca do fisicalismo ....................................................................... 51 2.6 Resumo.................................................................................................................... 54 3 LINGUAGEM: EMPIRISMO E BEHAVIORISMO ....................................................... 57 3.1 O behaviorismo quineano ........................................................................................ 57 3.2 Algumas objeções acerca da visão behaviorista ..................................................... 61 3.3 A crítica de Quine aos dogmas analítico-sintético ................................................... 64 3.3.1 Divisão entre verdades analíticas e verdades sintéticas ..................................... 64 3.3.2 Problema da analiticidade.................................................................................... 67 3.3.3 Em relação ao segundo dogma ........................................................................... 71 3.4 A relevância do holismo ........................................................................................... 72 3.4.1 A tese Duhem-Quine ........................................................................................... 72 3.5 Percepção do compromisso ontológico na teoria da linguagem .............................. 78 3.6 Características da epistemologia naturalizada em Quine ........................................ 81 3.6.1 O espírito científico da epistemologia naturalizada .............................................. 83 3.7 A relevância das frases observacionais no aporte teórico quineano ....................... 86 3.8 Resumo.................................................................................................................... 93 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................... 95 REFERÊNCIAS .............................................................................................................. 99 10 INTRODUÇÃO Neste estudo proponho ampliar a compreensão acerca do pensamento de Quine no que diz respeito à linguagem, sua aquisição e aprendizado. Nesse sentido, busco trazer elementos que fundamentam a problemática desta tese, cujo núcleo concentra-se nos desdobramentos das abordagens concernentes ao behaviorismo, empirismo e pragmatismo, assim como conceitos-chave no sistema quineano, a fim de elucidar seu pensamento para sustentar esta investigação. Desse modo, é necessário trazer à tona os pensadores que auxiliaram Quine na construção de seu sistema filosófico, que de uma maneira ou outra ampliaram sua visão no que tange à linguagem que é a discussão deste estudo. Assim, trazemos uma perspectiva da Filosofia da Linguagem, situada na zona limítrofe, entre a lógica e a linguística, a Filosofia da Linguagem busca, sobretudo, analisar as argumentações a favor e contra as diversas visões do sentido que são a cada momento propostas. Desse modo, consiste na investigação dos erros das investigações dos outros, dos paradoxos que surgem em certas teses e das possíveis contra-argumentações a elas. Em vista disso, analisar o que seria uma argumentação é, logo, um pré-requisito indispensável para iniciar o estudo da Filosofia e, de modo particular, da Filosofia da Linguagem. (PENCO, 2006).1 Nesse sentido, a Filosofia da Linguagem apresenta duas acepções fundamentais: uma mais restrita e outra mais ampla. Em sua acepção mais restrita, é o resultado de uma investigação filosófica acerca da natureza e do funcionamento da linguagem, às vezes, também denominada ‗análise da linguagem‘. Por isso, quando um filósofo investiga questões como a natureza e função da linguagem, está elaborando Filosofia da Linguagem. (COSTA, 2003).2 Por conseguinte, o mesmo acontece quando investiga questões intrinsecamente relacionadas à linguagem, a saber, a questão do significado de nossas expressões linguísticas; de como somos capazes de nos referir às coisas por meio da 1 2 PENCO, Carlo.Introdução à Filosofia da Linguagem. Petrópolis: Vozes, 2006, p. 13. COSTA, Cláudo. Filosofia da Linguagem. 2. ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003, p. 7 – 9. 11 linguagem; da natureza da verdade de nossas proposições; de como podemos, por meio de proferimentos linguísticos, nos comunicar com os outros. Por outro lado, na acepção mais ampla, a Filosofia da Linguagem diz respeito a qualquer abordagem crítica de problemas filosóficos metodologicamente orientada por uma investigação da linguagem; por esse motivo, por vezes, é chamada de ‗crítica da linguagem‘. Logo, uma considerável parte da filosofia do século XX caracterizou-se duplamente, como uma investigação filosófica acerca da linguagem, como também por uma abordagem crítico-linguística de problemas filosóficos em geral. (COSTA, 2003).3 O questionamento sempre presente sobre a finalidade e utilidade da linguagem conduz à reposta óbvia que é a comunicação, no entanto, essa visão trivial foi, por muito tempo, desconsiderada pela tradição filosófica. No século XX, grande parte da pesquisa sobre a linguagem, ‗pode ser tomada como uma batalha contra as simplificações exacerbadas e deslizes, uma luta para superar o legado de concepções unilaterais da linguagem em diferentes tradições filosóficas‘, aponta Medina (2005, p. 9).4 Importa lembrar um momento relevante para a Filosofia da Linguagem no século XX que foi a virada linguística, para a pragmática, defendida por filósofos tão diversos como Wittgenstein, Strawson, Donnellan, Grice e Habermas. A partir disso, os problemas centrais da semântica passam a ser percebidos por meio da pragmática da comunicação, ‗o problema central que necessita ser explicado é o de como os falantes particulares interpretam uns aos outros em contextos particulares de comunicação‘. (TAYLOR, CHARLES,1985 apud MEDINA, 2007).5 A linguagem, ainda, conforme Taylor, é responsável pela criação de espaços públicos, como também pela constituição de uma perspectiva dialógica, um ‗entre nós‘ ou ‗estar junto‘. Essa não percepção a respeito dos espaços públicos e da comunidade de falantes é devido à consequência de uma tradição epistemológica da linguagem que privilegiou o ponto de vista monológico do observador descolado. Desse modo, com sua ênfase na criação linguística de espaços públicos, inaugurou um 3 Op. cit. MEDINA, José. Linguagem: conceitos-chave em Filosofia. Porto Alegre: Artmed, 2007, p. 54. 5 Id. Ibid. p. 9. 4 12 dialogismo, que salienta a dimensão social da linguagem e o impacto de práticas discursivas na constituição de comunidades humanas. Dentre alguns filósofos que seguiram essa tendência da Filosofia da Linguagem contemporânea, pode-se citar Bakhtin, Wittgenstein, Foucault, Habermas, Rorty e Brandom. A Filosofia da Linguagem constitui-se, essencialmente, não como sistema filosófico que busca resposta aos problemas tradicionais da Filosofia – o problema do Ser (Ontologia); o problema do Conhecimento (Epistemologia); o problema do Bem (Ética); mas, como tentativa de refletir sobre questões específicas a partir de uma interrogação da linguagem tal qual é usada. A linguagem é, então, a origem e a solução do problema. (MARCONDES, 2000).6 Grande parte da produção filosófica, especialmente do século XX, tem sido guiada pela crença de que a Filosofia da Linguagem é a base fundamental de todos os problemas filosóficos, na medida em que a linguagem é o exercício característico da mente e o modo como damos forma às nossas crenças. (BLACKBURN, 1997).7 Este breve panorama visa a situar este estudo no contexto da Filosofia da Linguagem, buscando compreender a linguagem em Quine, assim como estabelecer conceitos pertinentes no desdobrar de seu arcabouço teórico. Este trabalho procura mostrar a abordagem empirista, assim como o viés behaviorista e pragmatista de Quine no que diz respeito à linguagem. Desse modo, em sua obra, mostra que a ambição empirista reducionista do início do século XX não pode ser mantida se quisermos explicar o funcionamento da linguagem natural. Assim, a linguagem natural é um modo de estruturar o mundo e contém em si uma teoria implícita, portanto, a tese de Quine a propósito das teorias científicas pode ser estendida, também, à linguagem em geral. Em vista do exposto, quando da publicação do conjunto de ensaios que compõem o livro From a Logical Point of View (1953), sua importância filosófica tornouse amplamente reconhecida. Seu célebre ataque à distinção analítico/sintético anunciou uma mudança profunda nas formas de encarar a linguagem proveniente do positivismo lógico e uma reapreciação das dificuldades de fornecer uma base empírica sólida para 6 MARCONDES, Danilo. Filosofia, Linguagem e Comunicação. 3. ed. rev. e ampl. São Paulo: Cortez, 2000. 7 BLACKBURN, Simon. Dicionário Oxford de Filosofia. Rio de Janeiro: Zahar, 1997, p. 152. 13 as teses sobre a convenção, o significado e a sinonímia. Além disso, sua reputação consolidou-se com Word and Object (1960), quando apresenta seu programa behaviorista da linguagem, que permanece em muitos outros ensaios e livros posteriores. Além disso, é nessa obra que a indeterminação da tradução radical assume, pela primeira vez, o papel principal. Na nossa visão, Quine adota uma perspectiva behaviorista além de pragmatista sobre a natureza da linguagem com a qual atribuímos pensamentos e crenças a nós mesmos e aos outros. Esses idiomas intensionais, com a noção de necessidade que comportam, resistem a ser facilmente incorporados na concepção científica do mundo, e Quine reage com ceticismo em relação a eles; é verdade que Quine não sanciona o eliminativismo 8, mas toma os idiomas intensionais como idiomas de segunda categoria, impróprios para descrever fatos estritos e literais. Por motivos semelhantes, Quine exprimiu sistematicamente suspeitas quanto à justeza lógica e filosófica de apelar às possibilidades lógicas e aos mundos possíveis. Além disso, alega que só as linguagens da matemática e da ciência são bem-comportadas e apropriadas para a descrição literal e verdadeira do mundo. Desse modo, as entidades às quais as nossas teorias se referem têm de ser seriamente encaradas em nossas ontologias. Na teoria do conhecimento, Quine está associado à perspectiva holista da verificação (Tese Duhem-Quine, que será referendada no capítulo 3), concebendo um corpo de conhecimento em termos de uma teia cuja periferia está em contato com a experiência, mas que em cada ponto está conectada a outros pontos por uma rede de relações. Por outro lado, lembramos que Quine é também conhecido pela perspectiva segundo a qual a epistemologia deveria ser naturalizada, ou conduzida segundo um espírito científico, sendo o objeto da investigação a relação existente nos seres humanos entre os dados de entrada (inputs) da experiência e os dados de saída (outputs) da crença. Apesar de as abordagens de Quine dos grandes problemas da filosofia terem sido atacadas por denunciarem um cientismo ilegítimo e, por vezes, um 8 Ponto de vista de que os termos com os quais pensamos sobre certo domínio estão tão corrompidos por erros que é preferível abandoná-los a continuar a tentar formular teorias acerca do modo como são usados. (BLACKBURN, 1997, p. 113). 14 behaviorismo, a clareza de sua visão e o âmbito de sua obra lhe conferem tanto respeito quanto credibilidade. Em vista disso, percebemos que Quine persiste na posição empirista que deve haver uma relação com o mundo exterior, e de que essa relação carrega nossa linguagem de significado, que se constrói por meio de situações compartilhadas. Ele descarta a busca de entes mentais que correspondem ao significado das palavras, desse modo, o que se pode verificar é o comportamento linguístico dos falantes, em atos sociais retificados. Por conseguinte, é necessário começar pelas reações de assentimento e discordância dos pares envolvidos nesses atos sociais. Ademais, Quine indaga em sua obra From a Logical Point of View (1953) quais são os objetos que povoam nosso mundo. Afirma que quando falamos em mundo não tentamos descrever algo exterior ao sujeito que conhece, mas sim ao próprio universo linguístico deste. Buscando em Wittgenstein do Tratactus, pode-se afirmar que o mundo é algo determinado no interior do discurso. Desse modo, é possível reformular a indagação para quais são os objetos que povoam nossa linguagem? Ou ainda, sobre o que falamos quando falamos sobre objetos? Nessa perspectiva, Quine subdivide o universo dos objetos de uma determinada linguagem em objetos abstratos e concretos. Os primeiros correspondem às classes, atributos, proposições, números, relações e funções entre outros, por sua vez, os outros correspondem aos objetos físicos. Convém ressaltar que Word and Object é um marco, o fio condutor do sistema quineano,Ontological Relativity and Other Essays (1969); The Web of Belief (1970); The Roots of Reference (1974), Theories and Things (1981), Pursuit of Truth (1990). Nesse contexto, sem menosprezar suas publicações, visto que todas são relevantes de uma forma ou outra, são essas que norteiam a fundamentação desta tese. Esses conceitos dentre outros são mostrados ao longo deste trabalho, a fim de que o posicionamento de Quine possa tornar-se específico dentro dos parâmetros observados na elaboração nesta investigação. Conforme mencionado, procuramos apontar que permeia na filosofia de Quine um posicionamento de cunho empírico aliado à abordagem behaviorista, assim como pragmático em que a linguagem é percebida como estímulos sensoriais compartilhados, que acontecem a partir de atos 15 sociais, cujo foco principal é a pressão por objetividade. Além disso, apresenta o sentido quineano a respeito do compromisso ontológico, que aponta que uma teoria acerca de determinado segmento da realidade ou da experiência é uma coleção consistente de crenças ou afirmações, expressas em determinada linguagem. Nesse sentido, uma teoria será verdadeira se todas as crenças que a compõem, e logo todas as consequências lógicas dessas crenças forem verdadeiras. Com efeito, os objetos com os quais uma teoria está ontologicamente comprometida são precisamente aqueles cuja existência é assumida, de forma explícita ou implícita, pela teoria; tais objetos formam a ontologia, ou ainda, uma das ontologias, da teoria. Em suma, um conjunto de entidades cuja inexistência teria como consequência a falsidade da teoria. Este estudo foi dividido em três capítulos, a saber, o primeiro contém as influências que permearam suas ideias no decorrer de sua trajetória na elaboração de suas fundamentações no que diz respeito à linguagem. Por conseguinte, cita-se Dewey que representa papel de destaque no pensamento de Quine no que se refere à comunicação dos indivíduos por meio das interações sociais. Nesse contexto, busca trazer as principais referências que embasam seu posicionamento pragmatista, assim como os conceitos dessas perspectivas. Por sua vez, o segundo capítulo trata da indeterminação, a saber, o compromisso ontológico propalado por Quine no que tange a seus conceitos sobre relatividade ontológica, inescrutabilidade ou indeterminação da referência, compromisso ontológico, tradução radical e fisicalismo. Todos esses conceitos são referenciados, explanados para mostrar sua estreita ligação com a elaboração do arcabouço teórico de Quine em relação à linguagem Num terceiro momento, aponta-se a linguagem e empirismo, discutindo a crítica de Quine aos dogmas analítico-sintético; a relevância do holismo, trazendo a tese Duhem-Quine. Além disso, a pertinência do compromisso ontológico e seus desdobramentos, como também a epistemologia naturalizada, finalizando com as frases observacionais. Nesse contexto, os conceitos, tendências e perspectivas, aqui apresentados permitem mapear, como também determinar que tipo de teoria subjaz ao 16 pensamento de Quine no que tange à linguagem. Assim, neste estudo, defendo a concepção empirista da linguagem no sistema filosófico de Quine, assim como behaviorista, visto que essa perspectiva permanece ao longo de seus trabalhos, a partir desse posicionamento procurarei demonstrar por meio dos textos já mencionados e outros relevantes, que serão apontados no decorrer da pesquisa. 17 1 QUINE A PARTIR DE DEWEY Neste capítulo remeterei à importância do contexto na construção da concepção behaviorista da linguagem em Quine, de modo que os principais imbricamentos serão, de alguma forma, apresentados, a fim de dar sustentação à tese elaborada, a saber, a linguagem em Quine. 1.1 A importância do contexto na construção da concepção da linguagem em Quine Por conseguinte, de maneira geral, oferecemos algumas informações consideradas relevantes para um melhor entendimento da proposta. Nesse sentido, Quine é o principal representante do naturalismo na segunda metade do século XX, como também um dos mais influentes filósofos e lógicos norte-americanos, considerado o maior filósofo analítico da segunda parte dessa época. Seu naturalismo consiste na insistência de uma conexão ou aliança estreita entre as perspectivas filosóficas e as ciências naturais. A filosofia, assim interpretada, é uma atividade pertencente à natureza, na qual a natureza examina a si própria. Isso contrasta com critérios que distinguem filosofia de ciência, e colocam a filosofia numa posição especial transcendente. Num determinado momento, Quine descreve o naturalismo como ‗o reconhecimento de que é dentro da própria ciência, e não em alguma filosofia anterior, que a realidade deve ser identificada e descrita‘ (1981, p.21)9. Convém lembrar que a ideia de ciência, utilizada por Quine, é menos restritiva do que parece; ele toma as ciências naturais como paradigma, em especial, a física, incluindo também psicologia, economia, sociologia e história. Além disso, Quine não percebe o conhecimento científico como diferente do nosso conhecimento comum, ele vê, mais exatamente, como resultado de tentativas 9 QUINE, W. O. Theories and Things. ‗[…] the recognition that it is within science itself, and not in some prior philosophy, that reality is to be identified and described’. Cambridge: Harvard University Press, 191, p. 21. 18 de melhorar nosso conhecimento comum. No ensaio de 1957, The Scope and Language of Science, ele afirma que ‗a ciência não é um substituto para o conhecimento comum, mas uma extensão dele‘ (p. 229)10. O cientista, aponta Quine, ‗é indistinguível do homem comum em seu sentido de evidência, exceto que o cientista é mais cuidadoso‘ (p. 233)11. Podemos acrescentar que o cientista é mais focado em questões sobre a verdade e objetividade e, desse modo, mais claro e sistemático, acrescenta Hylton12 (2010). Os métodos da ciência são empíricos, então, Quine opera numa perspectiva científica, é um empirista, mas com uma diferença. O empirismo tradicional, como em Locke, Berkeley e Hume, e algumas formas do século XX, consideram impressões, ideias ou dados dos sentidos (sense data) como unidades básicas do pensamento. O empirismo de Quine, por outro lado, considera tanto a teoria quanto as facetas observacionais da ciência. Com efeito, a unidade da significação não consiste em simples impressões (ideias) ou mesmo frases observacionais isoladas, mas sistemas de crenças. Ressalta-se que esses aspectos são apresentados no capítulo três com maior ênfase. Por conseguinte, Quine é um falibista13, visto que sustenta que cada crença individual num sistema é, em princípio, revisável. Quine propõe uma nova concepção de frases observacionais, uma explicação naturalizada de nosso conhecimento do mundo externo, inclusive, rejeição do conhecimento a priori. Ademais, estende a mesma explicação empirista e falibilista de nosso conhecimento à lógica e à matemática, aspectos que não são tratados neste trabalho, por que seu enfoque é a linguagem. 10 ________. The Scope and Language of Science. ‘Science is not a substitute for common sense but an extension of it.’ 1957, p. 229. 11 Id. Ibid. ‘[…] It is indistinguishable from the common man in his sense of evidence, except that the scientist is more careful’. p. 233. 12 HYLTON, Peter. Willard van Orman Quine. http://plato.stanford.edu/ First published Fri Apr 9, 2010; substantive revision Fri Apr 30, 2010. 13 Ver Pierce, C. S. The Essencial Peirce (two volumes edited by the Peirce edition Project. Bloomington: Indiana University Press, 1992 – 1999. ―Não é necessário que nossas crenças sejam corretas ou estejam alicerçadas na certeza. Podemos, justificadamente, ficar satisfeitos com nossas crenças, mesmo que exista a possibilidade de novos dados nos forçarem a rever nossa opinião. Assim, é uma posição que se situa entre o dogmatismo e o ceticismo.‖ (BLACKBURN, S. 1997, p. 142). 19 Quine é, ainda, fisicalista, uma vez que as ciências requerem objetos físicos, e a matemática envolvida nas ciências exige objetos abstratos, a saber, conjuntos. A teoria da referência, que inclui noções como: referência, verdade e verdade lógica, é nitidamente demarcada da teoria do significado, que inclui noções como: significado, sinonímia, a distinção analítico-sintético e necessidade. Ademais, Quine é o principal crítico das noções da teoria do significado, argumentando que tentativas de fazer a distinção entre verdades meramente linguísticas (analíticas) e verdades mais importantes (sintéticas) falharam. Ele explora os limites de uma teoria empírica da linguagem e oferece a tese da indeterminação da tradução como crítica adicional à teoria do significado, esclarece Orenstein.14 ‗Todo o sistema filosófico de Quine pode ser compreendido como uma tentativa de explicar o funcionamento interno da linguagem significativa, utilizando para tanto a própria linguagem significativa‘, ressalta Stein (2003, p. 69).15 Além disso, afirma que, apesar de muitos sistemas filosóficos demonstrarem a vontade de romper essa circularidade, não é a pretensão de Quine. Em outras palavras, Quine filosofa acerca do mundo, incluindo sua própria filosofia, essa circularidade não atrapalha, uma vez que a experiência confiável aponta qual teoria é correta, e a teoria aponta quais dados são confiáveis, conforme corrobora Schuldenfrei (1972).16 1.2 Introduzindo Dewey 1.2.1 A influência de Dewey na filosofia de Quine Vamos procurar mostrar a profunda ligação que havia entre esses dois filósofos, levando Quine a mencioná-lo, já que muito de seu pensamento é embasado nele. Desse modo, Dewey fundamentou e representou um marco no sistema filosófico de Quine, nesse sentido, sua interferência e relevância são apontadas neste momento. 14 ORENSTEIN, Alex. Willard Van Orman Quine. Routledge Encyclopedia. New York: Routledge, 1998, p.3-4. 15 STEIN, Sofia. Empirismo e Fisicalismo: características do holismo epistemológico de Willard Quine. Philósophos 8, pp. 69 – 78, jan. / jun. 2003. 16 SCHULDENFREI, R. Quine in perspective. The Journal of Philosophy, v. 69, n. 1, p. 5-16, 1972. 20 Ele inicia seu texto Relatividade Ontológica17 citando Dewey, nessa ocasião, ele afirma estar orgulhoso por encontrar-se na Columbia University na qualidade de primeiro palestrante na John Dewey Lecturer. A ligação de ambos, segundo o filósofo, reside no naturalismo, cujo fundamento reside em não admitir a existência de nada que seja exterior à natureza, reduzindo a realidade ao mundo natural, recusando, portanto, qualquer elemento sobrenatural ou princípio transcendente. Juntamente com Dewey, sustenta que o conhecimento, a mente e o significado são parte do mesmo mundo com o qual se relacionam, devendo, assim, ser estudados com o mesmo espírito empirista que anima a ciência natural. Portanto, ressaltamos a dívida importante que Quine tem em relação a Dewey na fundamentação de seu escopo teórico acerca da concepção behaviorista da linguagem. Por conseguinte, não há lugar, nesse contexto, para uma filosofia a priori, enfatiza Quine. Ao referir-se à filosofia da mente, o filósofo naturalista tende a falar de linguagem. Ele conceitua linguagem como uma habilidade social adquirida exclusivamente baseada na evidência do comportamento manifesto das outras pessoas em circunstâncias publicamente reconhecíveis. Enfatiza Quine, citando Dewey, que ‗o significado [...] não é uma existência psíquica; é principalmente uma propriedade do comportamento‘18. Partindo desse princípio, não faz qualquer sentido afirmar-se a existência de uma linguagem privada. Nessa perspectiva, procurar-se-á argumentar sobre a influência de Dewey na filosofia de Quine. Com efeito, é relevante perceber o papel preponderante do ambiente sociolinguístico-cultural na comunicação das pessoas, incluindo o comportamento associado a esse evento experenciado. A observação, imitação de sons e comportamentos de uma dada comunidade linguística formam a base da aquisição e desenvolvimento de uma determinada linguagem. A partir desse ponto de vista, que consiste no foco deste trabalho, são desenvolvidos os parâmetros para mostrar a 17 QUINE, W.V. Ontological Relativity and Other Essays. New York: Columbia University Press, 1969, p. 26. 18 DEWEY, John. Experience and Nature. Illinois: Open Court, 1925 – 1958, p.176. Meaning […] is not a psychic existence; it is primarily a property of behavior. 21 possibilidade de a filosofia quineana, no que diz respeito à linguagem, pode-se fundamentar nessa experiência entre o eu e o social e sua consequente aceitação. 1.2.2 A linguagem na visão de Dewey O núcleo duro da filosofia de Dewey (1859-1953) reside na concepção de instrumentalismo ou funcionalismo, uma vez que, para nessa concepção, as ideias só têm importância desde que sirvam de instrumento para a resolução de problemas reais, para diferenciar-se dos pragmatismos de Peirce e William James, dos quais iniciara. Assim como James, Dewey opôs-se às teorias tradicionais sobre a verdade, considerada como correspondência entre pensamento e pensado ou coerência entre ideias. Seu afastamento de James deveu-se, principalmente, pela rejeição de Dewey à visão subjetivista do problema da verdade e justificação da crença religiosa do filósofo. Quanto a Peirce, Dewey acreditava ser seu pragmatismo muito restrito, e pretendia ampliar seu campo de ação. Pretendia Dewey, também, com sua discordância, criticar as filosofias especulativas. Os sistemas abstratos e idealistas, segundo ele, teriam buscado em vão encontrar a unidade entre os fragmentos de um universo que o próprio pensamento especulativo dividiu. As dualidades matéria-espírito, exterior-interior, pensado-pensamento consistem em falsos problemas decorrentes de considerar-se a consciência como contemplação. O filósofo opõe-se a essa concepção de consciência com o instrumentalismo ou funcionalismo, concebendo que o conhecimento não é mais do que atividade dirigida e parte funcional da experiência. Afirma que o pensamento não tem fim em si mesmo, é uma fase da vida, um acontecimento que se produz em um ser vivo, em certas condições configuradoras de uma situação de conflito para o homem. Nesse sentido, as ideias funcionariam como hipóteses de ação referentes exclusivamente ao futuro e verdadeiras na medida em que pudessem funcionar como guias para a ação. Ressalta ele que a racionalidade da natureza, afirmada pelos cientistas naturais, não constitui um postulado teórico, mas uma crença que propicia à atividade inteligente a possibilidade de intervir nos fenômenos, modificando-se na medida do necessário. Dessa maneira, o instrumentalismo concebe a atividade inteligente não como algo que lhe vem de fora, mas como produto da natureza que 22 realiza suas próprias forças em busca de uma produção mais plena e mais rica em acontecimentos. No início do capítulo quinto, do livro Experiência e Natureza19, denominado Natureza, Comunicação e Significado, Dewey afirma que dentre todas as realizações, a comunicação é a mais notável. Ressalta, ainda, que o resultado da comunicação passa a ser a participação e o ato de compartilhar. O solilóquio é o resultado e o reflexo da conversação com os outros. Por causa do conversar, dar e receber social, posturas orgânicas várias passam a constituir uma reunião de pessoas ocupadas em conversar, conferenciando umas com as outras, trocando experiências diversas. Por meio do falar, uma pessoa identifica-se com atos e feitos potenciais; desempenha muitos papéis, representando um drama contemporâneo, dessa maneira, emerge a mente. A significação das essências lógicas e racionais é a consequência nas interações sociais, no convívio, na assistência mútua, na direção e ação organizada na guerra, nas festividades, no trabalho.20 Com efeito, a linguagem é uma função natural da associação humana e suas consequências interferem com outros eventos, físicos e humanos, conferindo-lhes significado ou significação. A falta de conhecimento de que esse mundo da experiência interior depende de um prolongamento da linguagem, a qual é uma produção e uma operação de caráter social, conduz à linguagem subjetivista, solipsista e egotista no pensamento moderno. Assim, linguagem é um evento experenciado. Nesse sentido, os eventos na medida em que são objetos ou coisas significantes existem em um contexto. Dewey (1958) afirma que as palavras estão para o falar, assim como as moedas para o dinheiro. Percebemos nessa comparação a percepção de instrumentalidade, enquanto as moedas, cédulas – coisas físicas – contêm qualidades imediatas e finais. Na condição de dinheiro, são substitutos, representantes e incorporam a si relações. Nas palavras de Dewey21, 19 Id. Ibid. p.168. Id. ibid. p. 170. 21 Id. Ibid. Money, as substitute, not only facilitates the exchange of existing utilities prior to their use, but also revolutionizes the production and consumption of all utilities, because it brings into existence new transactions, creating new stories and events. The exchange from money it is not an event that can be 20 23 O dinheiro, enquanto substituto, não apenas facilita a troca das utilidades existentes antes de seu uso, mas também revoluciona a produção e o consumo de todas as utilidades, porque traz à existência novas transações, criando novas histórias e acontecimentos. A troca a partir do dinheiro não é um evento que possa ser isolado. Representa a emergência da produção e do consumo de um novo meio e em novo contexto, em que adquirem novas propriedades. No que tange à linguagem, nessa comparação, conforme Dewey 22, A linguagem, semelhantemente, não é simples agência de economia de energias na interação dos seres humanos. É liberação e amplificação das energias que constituem a mencionada interação, e que confere a elas a qualidade adicional do significado. A qualidade do significado, assim introduzida, é estendida e transferida, atual e potencialmente, dos sons, movimentos e traços, para todas as outras coisas da natureza. Portanto, a linguagem, os signos e a significação vêm à existência não por intenção e por desejo, e sim por necessidade de compartilhamento, tendo como subprodutos, os gestos e o som. Desse modo, a história da linguagem é a história do uso feito dessas ocorrências. Com efeito, os sons tornam-se linguagem apenas quando usados dentro de um contexto de auxílio e direção mútuos. Nesse sentido, compreender é antecipar em conjunto, é referir-se a algo que, quando efetuado, produz participação numa empresa comum e inclusiva. O significado, de fato, conforme já mencionado, não é uma existência psíquica; é primordialmente uma propriedade do comportamento, e secundariamente uma propriedade dos objetos. O significado é primeiramente intenção, e a intenção não é pessoal no sentido de privativa e exclusiva. O que ocorre de distintivo a respeito da compreensão de B em relação aos sons e movimentos de A, consiste em que o primeiro responde à coisa a partir do ponto de vista da A23. Nesse momento, é possível relacionar a posição do observador que encontramos em Quine. De tal sorte que a linguagem é especificamente um modo de interação de pelo menos dois seres, um dos quais fala enquanto o outro ouve: pressupõe um grupo organizado ao qual pertencem tais criaturas, e do qual hajam adquirido seus hábitos de isolated. It represents the emergence of production and consumption of a new medium and new context in which they acquire new properties. p.172. 22 Id. Ibid. The language, likewise, is not a single agency of saving energy in the interaction of human . beings. It is the release and amplification of energies that form the mentioned interaction, which gives them the additional quality of meaning. The quality of meaning, thus introduced, is extended and transferred, current and potentially, sounds, movements and traces, for all other things of nature. p. 173. 23 Id. Ibid. p. 175. 24 linguagem. Por essa razão, trata-se de uma relação, não de algo com caráter particular. Constata Dewey que apenas esta consideração é suficiente para condenar o nominalismo tradicional.24 Além disso, o significado dos signos, sempre inclui algo comum entre as pessoas e um objeto. Ao atribuir-se significado em relação ao que fala com respeito ao seu propósito, pressupõe-se outra pessoa que partilhará a execução do propósito, como também independente das pessoas, por meio do qual o propósito deverá ser realizado. Dewey enfatiza que pessoas e coisa têm de servir de modo semelhante, como meios, numa consequência comumente partilhada. Em suma, tal comunidade de participação é o significado, aponta o filósofo25, tornando coerente seu posicionamento, quanto ao significado estar relacionado aos objetos, pessoas e ao contexto em que estão inseridos. Em outro momento, destaca Dewey que tornar o outro cônscio da possibilidade de algum uso ou de uma relação objetiva é perpetuar aquilo que seria de outra forma um incidente, tornando-o um instrumento: a comunicação é uma condição da consciência. Assim, todo significado é genérico ou universal. Conforme aponta Dewey, é algo comum ao locutor, ao ouvinte e à coisa à qual o locutor se refere. Ademais, é também universal como meio de generalização; significado é um método de ação, um meio de utilizar as coisas como meios em vista de uma consumação partilhada, e um método é geral, ainda que as coisas às quais se aplica sejam particulares. Dewey esclarece que é heresia conceber que significados sejam privados, propriedades de fantasmagóricas existências psíquicas.26 Para fundamentar seu pensamento, cita, como exemplo, o apito do policial de trânsito, cujo significado último deste evento é o consequente sistema total de comportamento social, em que os indivíduos são conduzidos, a partir de um ruído, à coordenação social. 24 Posição que sustenta que as coisas denominadas pelo mesmo termo nada têm em comum exceto isso; o que todas as cadeiras têm em comum e serem chamadas de ‗cadeiras‘. Essa doutrina é habitualmente associada à tese de que tudo que existe são individuais particulares, não existindo, pois, ‗universais‘. (BLACKBURN, 1997, p. 268). 25 Id. Ibid. […] such community of participation is the meaning. p. 179. 26 Id. Ibid. p. 182. 25 Por outro lado, seu significado próximo é uma coordenação de movimento das pessoas e dos veículos vizinhos e de maneira direta afetados. Assim, percebemos que o significado é construído pelos participantes, no caso, a partir de um ruído produzido, ou seja, um evento social compartilhado, cuja consequência é determinar um tipo de comportamento que conduz à organização social. Dewey ainda ressalta a invenção e o uso de instrumentos que ocuparam lugar de destaque na consolidação dos significados, porque um instrumento é uma coisa usada como meio para consequências, em lugar de ser tomada direta e fisicamente. Por isso, defende Dewey27 que É algo intrinsecamente relacional, antecipatório, prenunciador. Sem que haja referência ao que está ausente, ou à ‗transcendência‘, nada é um instrumento. A evidência mais convincente de que os animais não ‗pensam‘ consiste no fato de que eles não possuem instrumentos, dependendo de suas próprias estruturas relativamente fixa, corporais, para que produzam resultados. Adiante Dewey28 amplia o conceito de instrumento para a linguagem, que é o foco deste trabalho, enfatizando que Desde que ser um instrumento, ou ser utilizado como meio para consequências, é ter e ser dotado de significado, a linguagem, sendo o instrumento dos instrumentos, é a fonte da qual emana toda significação. Já que as outras instrumentalidades e agências, as coisas comumente pensadas como utensílios, instrumentos e ferramentas, apenas podem originar-se e desenvolver-se em grupos sociais tornados possíveis pela linguagem. Na concepção de Dewey, as coisas tornam-se instrumentos por meio dos cerimoniais e institucionalmente, haja vista o caráter notoriamente convencionalista e tradicionalista dos utensílios primitivos e de suas simbolizações. Além disso, os instrumentos e meios de ação acham-se sempre em conexão com alguma divisão do trabalho dependente de algum dispositivo de comunicação. Podemos citar, como exemplo, uma pessoa utilizando algo parecido com um pedaço de pau para afofar a terra, para favorecer o crescimento das plantas. Esse pedaço de pau, mesmo que 27 Id. Ibid. It's something inherently relational, anticipatory, precursory. Without that there is reference to what is absent, or to 'transcendence', nothing is an instrument. The most convincing evidence that animals do not 'think' is the fact that they have no instruments, depending on their own relatively fixed structures, and their bodies to produce results. p.179. 28 Id. Ibid. ‘Since being a tool, or be used as a means to consequences, is to be endowed with meaning, language, being the instrument of instruments, is the source from which all meaning comes. Whereas the other agencies and instrumentalities, things commonly thought as objects, instruments and tools, can only originate and develop in social groups made possible by language. p. 180. 26 tenha sido usado uma vez como alavanca, reverte à condição de ser apenas um pedaço de pau, a menos que seja distinguida e retida a relação entre ele e sua consequência. Nesse sentido, somente a linguagem, ou algum tipo de signo artificial, poderá registrar a relação e torná-la significativa em outros contextos particulares. Assim, objetos como: lanças, vasos, cestos, armadilhas podem ter-se originado por acaso, entretanto, apenas a repetição por meio da ação organizada explica sua institucionalização como instrumentos. Logo, enfatiza Dewey29 que tornar o outro cônscio da possibilidade de algum uso ou de uma relação objetiva é perpetuar aquilo que seria de outra forma um incidente, tornando-o um instrumento; a comunicação é uma condição da consciência. Para Dewey, a capacidade que mais claramente nos separa dos outros animais, além da habilidade de nos tornarmos cidadãos de uma sociedade democrática liberal, é a de usar a linguagem, conforme aponta Rorty30. Contudo, para Dewey o sentido de ter linguagem e, por conseguinte, pensamento, não era para penetrar a partir das aparências a verdadeira natureza da realidade, mas sim permitir a construção social de novas realidades. Em sua concepção, a linguagem não era um medium de representação, mas um modo de coordenar as atividades humanas para aumentar o alcance de suas possibilidades. 1.2.3 A perspectiva do naturalismo de Quine a partir de Dewey Para que possamos entender essa proximidade de Quine com Dewey, passamos a observar as afirmações do próprio Quine, ao externar enfaticamente essa conexão. Por conseguinte, no texto Relatividade Ontológica31 ele salienta que está 29 Id. Ibid. ‗[…] making the other aware of the possibility of any use or an objective relationship is to perpetuate what is otherwise an incident, becoming it an instrument; communication is a condition of consciousness. p. 180. 30 RORTY, R. Pragmatism. Routledge Encyclopedia. New York: Routlege, 1998, vol.7, p. 638. 31 QUINE, W.V. Ontological Relativity and Other Essays. New York: Columbia University Press, 1969, p. 27 ‗Philosophically I am bound to Dewey by the naturalism that dominated his last three decades. With Dewey I hold that knowledge, mind, and meaning are part of the same world that they had to do with, and that they are to be studied in the same empirical spirit that animates natural science. There is no place for a prior philosophy. When a naturalistic philosopher addresses himself to the philosophy of mind, he is apt to talk of language. Meanings are, first and foremost, meanings of language. Language is a social art which we all acquire on the evidence solely of other people’s overt behavior under publicly recognizable 27 ligado a Dewey pelo naturalismo, que dominou as três últimas décadas deste filósofo. Declara, ainda, que com ele sustenta que o conhecimento, a mente e o significado são parte do mesmo mundo com o qual se relacionam, e que devem ser estudados com o mesmo espírito empirista que anima a ciência natural. Quine ressalta, também, que não há lugar nessa concepção para uma filosofia a priori. Seguindo essa perspectiva, a linguagem, para Quine, é uma habilidade social que se adquire exclusivamente com base na evidência do comportamento manifesto das outras pessoas em circunstâncias publicamente reconhecíveis. Remetendo a Dewey, ressalta: ‗o significado [...] não é uma existência psíquica; é principalmente uma propriedade do comportamento‘.32 Acrescenta também que Dewey enfatizou a não existência de uma linguagem privada: ‗O solilóquio é o produto e o reflexo da conversa com os outros‘.33 No entendimento de Quine, existem duas partes que se referem ao conhecimento de uma palavra. A primeira diz respeito a conhecer o seu som e ser capaz de reproduzi-lo, parte fonética. Essa parte relaciona-se a observar e imitar o comportamento das outras pessoas. A outra se refere à parte semântica, mais complexa, consistindo em saber como usar a palavra, remetendo no caso paradigmático a algum objeto visível. O aprendiz não só tem de aprender a palavra por meio da fonética, ouvindo-a de outro falante, como também ver o objeto do qual se fala. Além disso, para captar a relevância do objeto para a palavra, ele tem de ver que o falante também vê o objeto. Para fundamentar seu posicionamento, Quine cita Dewey, ‘A teoria característica acerca da compreensão de B dos sons emitidos por A, é que ele reage à coisa do ponto de vista de A‘ 34 . Em outros termos, é necessário ver o que está estimulando o outro falante. Portanto, o falante ao aprender uma linguagem, torna-se um estudioso do comportamento do vizinho. Enfatiza Quine que, ‗por outro lado, na circumstances. Meanings, therefore, those very models of mental entities, end up as grist for the behaviorist’s mill’. 32 DEWEY, J. Experience and Nature. Illinois: Open Court, 1925, p. 179. ‗Meaning [...] is not a psychic existence; it is primarily a property of behavior‘. 33 Id. Ibid. ‗Soliloquy is the product and reflex of converse with others‘. p. 170. 34 QUINE, W. V. Id. Ibid. ‘The characteristic theory about B’s understanding of A’s sounds is that he responds to the thing from the standpoint of A.’ p. 28. 28 medida em que suas tentativas são aprovadas ou corrigidas, ele, também, objeto de estudo comportamental por parte do vizinho.‘35 No que tange a palavras que não atribuem traços observáveis a coisas, Quine declara que o processo de aprendizagem é mais complexo e obscuro, apontando de maneira crítica que ‗a obscuridade é o habitat natural da semântica mentalista‘. 36 Insiste, contudo, que ‗mesmo nas partes complexas e obscuras da aprendizagem da linguagem, o aprendiz não tem outros dados para trabalhar a não ser o comportamento manifesto dos outros falantes‘.37 Assim, Quine assume com Dewey uma perspectiva naturalista da linguagem e behaviorista do significado, desistindo do mito da linguagem como um museu38, defendido pela semântica não crítica, no qual as obras exibidas são os significados (meanings) e as palavras são as legendas. Dessa forma, mudar de linguagem é mudar de legenda. Desiste, ainda, de estar seguro no que diz respeito à determinação. Conforme o mito do museu, as palavras e as frases de uma linguagem têm seus significados determinados. Para descobrir o significado das palavras de um nativo é preciso observar seu comportamento, todavia, mesmo assim, o significado das palavras é suposto estar determinado na mente do nativo, em seu museu mental. Por outro lado, ao reconhecer com Dewey que o significado [...] é principalmente uma propriedade do comportamento39, afirma Quine que não há significados, nem semelhanças nem distinções de significado, além do que está implícito nas disposições das pessoas para o comportamento manifesto 40. Acrescenta que, para o naturalismo, a questão de saber se duas expressões são semelhantes ou não, quanto a seu significado, não tem resposta determinada, conhecida ou desconhecida, a não ser na medida em que a resposta pode ser decidida, em princípio, pela disposição de fala, conhecida ou desconhecida. 35 ‗ Id. Ibid. ‘[...] and conversely, insofar as his tries are approved or corrected, he is a subject of his neighbor’s behavioral study’. p. 28. 36 Id. Ibid. ‗[…] obscurity is the breeding place of mentalistic semantics’. p.28 37 ‗ Id. Ibid. [...] even in the complex and obscure parts of language learning, the learner has no data to work with but the overt behavior of others speakers’. p. 28. 38 Id. Ibid. ‗Uncritical semantics is the myth of a museum in which the exhibits are meanings and the words are labels. To switch language is to change the labels’. p. 27. 39 Id. Ibid. ‗Meaning [...] is primarily a property of behavior’. p. 29. 40 Id. Ibid. ‗[...] we recognize that there are no meanings, nor likenesses nor distinctions of meaning, beyond what are implicit in people’s dispositions to overt behavior’. p. 29. 29 Para sustentar sua teoria sobre a indeterminação, Quine cita o exemplo hipotético da existência de uma expressão em uma linguagem remota que pode ser traduzida, no caso para o inglês, de duas maneiras igualmente defensáveis, entretanto, com significados diferentes em inglês, sem mencionar a ambiguidade no interior da linguagem nativa. Supõe ele que a um só e mesmo uso da expressão por parte dos nativos podem ser dadas qualquer uma das duas traduções inglesas, cada uma delas ajustadas por meio de arranjos compensatórios realizados na tradução de outras palavras. Supõe, ainda, que ambas as traduções conjuntamente com os ajustes efetuados para cada caso, são adequadas a todo o comportamento observável por parte dos falantes da linguagem remota e aos falantes do inglês. Além disso, supõe que sejam perfeitamente adequadas não só ao comportamento observado, mas a todas as disposições para o comportamento por parte de todos os falantes em questão. Baseando-se nessas suposições, seria impossível saber se uma destas traduções era a certa, e a outra errada. Se o mito do museu fosse verdade, segundo Quine, haveria um certo e um errado nesta questão, contudo, não se poderia saber qual, por não haver acesso ao museu. Se, no entanto, essa hipótese for revista sob a perspectiva naturalista, é necessário considerar a noção de semelhança de significado (alike in meaning) como simplesmente sem sentido (non sense). Outro exemplo hipotético de Quine, mencionado no livro Word and Object41, relaciona-se à questão que depende do fato de que o todo de um coelho está presente quando e somente quando uma parte não separada de um coelho está presente; também quando e somente quando um estágio temporal de um coelho está presente. Então, o questionamento que permanece é se é possível traduzir a expressão nativa gavagai por coelho, ou por parte não separada de coelho, ou por estágio de coelho. Torna-se impossível resolver o assunto por simples ostenções, ou seja, simplesmente interrogando repetidamente a expressão gavagai para que o nativo dê seu assentimento ou dissentimento na presença das estimulações relevantes. O que é indeterminado neste exemplo artificial não é apenas o significado, mas também a extensão e a referência. Os termos coelho, parte não separada de coelho e estágio de 41 QUINE, W. V. Word and Object. Cambridge: MIT Press, 1960 § 1. 30 coelho, não diferem somente quanto ao significado, então, a referência revela-se comportamentalmente inescrutável. Nesse momento, Quine inicia a discussão sobre a inescrutabilidade da referência, segundo a qual nenhum dado empírico relevante para a interpretação das elocuções de um locutor pode servir para decidir entre diversas maneiras alternativas e incompatíveis de atribuir referentes às palavras. Portanto, não há fato algum que consista em que as palavras tenham certa referência. Assim, buscamos, a partir de indicações de Quine, sua aproximação a Dewey, principalmente, em relação à conceituação de linguagem, como uma habilidade social adquirida exclusivamente baseada na evidência do comportamento manifesto das outras pessoas em circunstâncias publicamente reconhecíveis. Como também do significado, por meio da afirmação de Dewey ‗o significado [...] não é uma existência psíquica; é principalmente uma propriedade do comportamento‘, conforme já estabelecido. Esses pressupostos, dentre outros mencionados, constituem a perspectiva naturalista da linguagem e behaviorista do significado. Partindo desses princípios, não faz qualquer sentido afirmar-se a existência de uma linguagem privada. Em relação à epistemologia, Dewey aceitou a corrente falibilista, característica do pragmatismo que consiste na visão de que qualquer proposição aceita como um item do conhecimento tem seu status somente de forma provisória, contingente sobre sua adequação em fornecer um entendimento coerente do mundo como base para a ação humana. Tendências recentes em filosofia, no entanto, conduzindo à dissolução desses paradigmas rígidos introduzem abordagens que continuam e expandem os temas do trabalho de Dewey. O posicionamento de Quine referente à linguagem trabalha com os pressupostos naturalistas antecipados por Dewey em sua teoria naturalista da investigação. Assim, Dewey, sem dúvida, prestou grande sustentação ao arcabouço teórico de Quine acerca da linguagem, o qual, por sua vez o expandiu e impôs sua marca, tornando-se um dos filósofos mais emblemáticos nesse fundamento. 31 1.3 Embasamento quanto ao pragmatismo Além do behaviorismo, a tradição filosófica do pragmatismo também influenciou Quine na elaboração de suas teorias. A corrente pragmatista encontrada na filosofia de Quine encontra-se fundamentada, principalmente na tradição, nascida nos Estados Unidos em torno de 1870, com os filósofos Charles Sanders Peirce42 (1839 – 1914), William James43 (1842 – 1910) e John Dewey44 (1859 – 1952), denominados ‗pragmatistas clássicos‘. O núcleo do pragmatismo consiste na máxima pragmatista, cujo fundamento é uma regra para esclarecer os conteúdos de hipóteses traçando suas ‗consequências práticas‘. No trabalho de Peirce e James, a máxima pragmatista foi mais aplicada ao conceito de verdade. Esses filósofos uniram seu pragmatismo a uma perspectiva epistemológica distinta: aquela que rejeitava o foco cartesiano em relação a derrotar o ceticismo e, ao mesmo tempo, endossava a ideia falibista que afirma que qualquer uma de nossas crenças e métodos poderia, em princípio, ser falsa. Esse princípio estava ligado ao estudo dos padrões normativos que deveríamos adotar ao levar a cabo nossas investigações, ao tentar descobrir coisas. A investigação é uma atividade, e esse tipo de abordagem, em Dewey, conduz à rejeição à dicotomia entre juízos teóricos e juízos práticos. Assim, enquanto Peirce e James usaram pragmatismo em sentido restrito, princípio de Peirce, outros utilizaram em sentido amplo, representando uma abordagem particular para entender a investigação e os padrões normativos que a governa. Ambos James e Peirce usaram ‗pragmatismo‘ como o nome de um método, princípio ou ‗máxima‘ para esclarecer conceitos e hipóteses, como também identificar disputas vazias, conforme aponta Hookway45. Os pragmatistas, ainda, compartilharam uma perspectiva epistemológica distinta, a abordagem falibista anti-cartesiana em relação às normas que regem a 42 Ver PEIRCE, C. S. Pragmatism and Pragmaticism. ed. C. Hartshorne and P. Weiss. Cambridge: Harvard University Press, vol. 5 of Collected Papers, 1934. 43 Ver JAMES, W. Pragmatism and the Meaning of Truth. Cambridge: Harvard University Press, 1979. 44 Ver DEWEY, John. The Essential Dewey. Ed. HICKMAN, L. e ALEXANDER, T. Bloomington: Indiana University Press, 1999. 45 HOOKWAY, Christopher. Stanford Encyclopedia of Philosophy. August, 2008 http://plato.stanford.edu/. 32 investigação. Eles viam a si próprios como provendo um retorno ao senso comum e aos fatos da experiência, portanto, rejeitando uma herança filosófica falha que distorceu o trabalho dos pensadores que os antecederam. Os erros, assim considerados, a superar, incluem o cartesianismo, o nominalismo e a ‗teoria da cópia da verdade‘, já que esses ‗erros‘ estão todos relacionados. Mais tarde, outros pensadores, como por exemplo: John Dewey e C. I. Lewis46 desenvolveram as ideias do pragmatismo, embora continuassem a considerar conceitos e hipóteses como instrumentos, não pensavam que o pragmatismo denotasse o princípio de Peirce. Dewey descreveu o pragmatismo como uma exploração sistemática do que ele denominava ‗a lógica e ética da investigação científica‘. Cabe ressaltar que essa breve introdução não pretende aprofundar-se nos meandros do pragmatismo, mas sim apresentá-lo como subsídio para fundamentar o trabalho de Quine. Desse modo, convém lembrar que a linguagem natural em Quine apresenta uma abordagem behaviorista-empirista, assim como o pragmatismo que permeia sua teoria. Em vista disso, os aspectos investigados são superficiais, indicando obras para mais esclarecimentos. 1.4 Resumo Convém enfatizar que o foco deste primeiro capítulo residiu na influência do pensamento de Dewey na obra de Quine, a dívida, podemos assim afirmar, quanto ao seu legado no desdobramento da filosofia quineana, em vários momentos, ressalta essa intervenção em seu trabalho, citando Dewey de forma ostensiva. Destaco ainda que Quine não só embasou seu trabalho em Dewey, como o expandiu, tornando-o, podemos afirmar, sua marca registrada. Outro aspecto que deve ser salientado são as literaturas utilizadas para fundamentar essa perspectiva, sobretudo, From a Logical Point of View; Word and Object: Ontological Relativity and other Essays; Pursuit of Truth; The Ways of Paradox and Other Essays; The Web of Belief; The Roots of Reference; Theories and Things, de 46 Ver LEWIS, C. I. A Pragmatic Conception of the a Priori. Journal of Philosophy, vol. 20, p 169-77. 33 Quine; quanto a Dewey procurou-se estabelecer Experience and Nature, em que ele, de forma pontual, mostra seus conceitos acerca da linguagem. Sabe-se que há outros estudos de Quine que expõem seu pensamento, entretanto não serão aprofundados nesta investigação, uma vez que entendemos que essas obras englobam o núcleo que se discute neste momento. Por conseguinte, este capítulo tentou explorar alguns dados históricos e filosóficos pertinentes à filosofia de Quine. É razoável afirmar que toda fundamentação filosófica baseia-se em seus antecessores, visto que as diversas perspectivas no que tange ao pensamento e teorias consistem em reflexões a respeito do que foi ou está sendo discutido. Com efeito, as controvérsias, as objeções enriquecem o panorama da construção e elaboração do pano de fundo das teorias; o pensamento de Quine não foge à regra, principalmente em relação à linguagem, terreno movediço e pleno de intervenções de pensadores de toda a gama. Buscar referendar o pensamento de um filósofo e tentar encaixar suas ideias nas diversas tendências de escolas, movimentos; é esclarecedor para perceber de forma mais nítida sua travessia em busca de respostas a suas proposições. Não é diferente no que diz respeito à construção do pensamento quineano, desse modo, referir a teorias e pensadores que influenciaram seu pensamento é de fundamental importância para que seja possível entender os meandros de suas ideias. A teia de conhecimento e crenças, utilizando uma metáfora conhecida, deve ser desvendada e revelada, a fim de traduzir de forma compreensível os caminhos percorridos por Quine em seu questionamento em relação à linguagem e seu funcionamento. Logo, o escopo, trazido para sustentar o arcabouço da teoria de Quine no que tange à filosofia da linguagem, pretende investigar a fundamentação do filósofo acerca da linguagem, de tal sorte que se torne mais claro, para estudos futuros, seu entendimento. Assim, percebemos que o enfoque do posicionamento de Quine quanto à linguagem sustenta-se, sobretudo, na aceitação social, e estimulações compartilhadas, já discutidas em Dewey, assim como na corrente behaviorista de estímulo-resposta de Skinner. 34 2 INDETERMINAÇÃO Este capítulo procurará mostrar os conceitos relativos ao viés da indeterminação, aspecto fundamental que permeia a filosofia de Quine, a fim de que se torne claro o intento de fundamentar esta tese. Em vista disso, buscarei estabelecer parâmetros entre a linguagem e a indeterminação que embasa muitos aspectos da teoria quineana referente à linguagem. 2.1 A teoria da linguagem na concepção de Quine Language is a social art which we all acquire on the evidence solely of other people‘s overt behavior under publicly recognizable circumstances. (OR, 26) Language is socially inculcated and controlled; the inculcation and control turn strictly on the keying of sentences to shared stimulation. Internal factors may vary ad libitum without prejudice to communication as long as the keying of language to external stimuli is undisturbed. (EN, 81) Iniciamos com a definição do próprio Quine quanto à linguagem, de acordo com a epígrafe, ‗A linguagem é uma arte social em que todos adquirimos a evidência exclusivamente a partir da manifestação do comportamento de outras pessoas, sob circunstâncias publicamente reconhecíveis‘. Portanto, Quine reconhece esse traço importante da linguagem como algo a ser aprendido por meio da observação e do comportamento das pessoas em situações de compartilhamento. Ressalta em outro momento, nos mesmos termos iniciais, que ‗A linguagem é uma arte social. Em adquirindo-a, dependemos inteiramente de pistas intersubjetivamente disponíveis quanto ao que dizer e quando‘ 47. Por conseguinte, Quine várias vezes reitera o aspecto social da linguagem, não abrindo margem para enfoques subjetivos. Neste momento, e a partir disso, procuramos embasar o fio 47 QUINE, W.O. Word and Object. ‗Language is a social art. In acquiring it, we have to depend entirely on intersubjectively available cues as to what to say and when’. p. ix. 35 condutor deste estudo, nesta concepção empirista de comportamento observável, juntamente com o behaviorismo e o pragmatismo que permeiam a aquisição e aprendizagem da linguagem materna em Quine. Conforme já mencionado, na Introdução, a filosofia da linguagem situa-se na zona limítrofe entre a lógica e a linguística, e busca, essencialmente, analisar as argumentações a favor e contra as diversas visões do sentido que são, a todo o momento, propostas. Há duas acepções principais para a filosofia da linguagem: uma mais restrita, em que ela é o resultado de uma investigação filosófica acerca da natureza e do funcionamento da linguagem, às vezes, denominada de ‗análise da linguagem‘; outra mais ampla, diz respeito a qualquer abordagem crítica de problemas filosóficos, metodologicamente orientada por uma investigação da linguagem, por essa razão é por vezes chamada de ‗crítica da linguagem‘. A função da análise filosófica da linguagem não é descobrir e explicar o sentido de um trecho do discurso, mas descrever o sistema produtor da significação; não o que o ato linguístico significa, mas como chega a significar, argumenta Marcondes48. Assim, não se trata de um estudo empírico da língua, porém da formulação de uma teoria da linguagem, tendo como núcleo a teoria do significado. Nesse espaço, da investigação filosófica acerca da natureza e funcionamento da linguagem, de sua estrutura lógica, do significado dos conceitos e proposições, Quine intervém, colocando em dúvida a existência dos significados como entes teóricos aceitáveis, para consagrar-se mais simplesmente aos enunciados. Para ele, a linguagem consiste em um complexo de disposições presentes para a conduta linguística, isto é, disposições para comportamento público compartilhado. O filósofo admite a importância da distinção entre significado e denotação (ou referência) e recusa-se a identificar os significados com ideias contidas na mente. Permanece, assim, o problema de definir que tipo de ente é o significado. 48 MARCONDES, Danilo. Filosofia, Linguagem e Comunicação. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2000. 36 ‘Ele não abandona a posição empirista de que deve haver uma relação com o mundo exterior e de que essa relação que carrega nossa linguagem de significado‘, afirma Stein49. Além disso, ressalta que, para ele, a linguagem é uma ferramenta na constituição da intersubjetividade, e é justamente nessa intersubjetividade que se estrutura o significado por meio de situações compartilhadas. O aspecto relevante da linguagem é o de que de fato há significado, sendo esse significado construído dentro de um universo intersubjetivo. Quine constitui-se em um grande questionador de grande parte da tradição filosófica, centrada em torno da reflexão sobre o significado, em particular dos primeiros herdeiros da revolução lógica fregeana, os neopositivistas lógicos. Esses estudiosos atinham-se a princípios fundamentais que, segundo Quine, são dogmas que se devem abater, a saber: I. a dicotomia analítico/sintético: ideia segundo a qual os enunciados de uma teoria dividem-se em duas classes, os analíticos, necessários e a priori, e os sintéticos e a posteriori; II. o reducionismo: ideia conforme a qual todo enunciado com significado pode ser reduzido a dados observáveis imediatos. Quine desenvolve uma crítica a esses dogmas no artigo Os Dois Dogmas do Empirismo50, cuja intenção é liberalizar o empirismo. O foco de sua crítica é uma extensão do princípio de contextualidade de Frege, baseado em uma visão radicalmente contextualista do significado: a unidade de significação é a totalidade da linguagem, não um enunciado isolado. Compreender um enunciado significa, segundo Quine, compreender uma linguagem. Noutras palavras, o significado de uma palavra isolada depende não só do enunciado de que faz parte, mas da totalidade da linguagem em que está inserida. Este posicionamento vem ao encontro do objetivo desta tese, trazer fundamentos para creditar a concepção tanto empírico quanto behaviorista de Quine quanto à linguagem. A linguagem, na perspectiva pragmatista de Quine, acontece na comunidade de falantes nas trocas abertas e sociais, ou seja, públicas. Afirma ele que 49 STEIN, Sofia I. Empirismo, Lógica e Linguagem. In: Linguagem, Ciência e Valores. Caxias do Sul: EDUCS, p.69-70. 50 QUINE, W. O. From a Logical Point of View. Cambridge: Harvard University Press, 2003. 37 ‗cada um de nós aprende sua linguagem de outras pessoas, a partir de proferimentos observáveis de palavras sob circunstâncias intersubjetivas perceptíveis‘ 51. Portanto, Quine salienta em vários momentos em seus escritos que não há linguagem privada, que o significado acontece em situações compartilhadas e intersubjetivas. Logo, pode-se afirmar que a linguagem natural, a saber, qualquer linguagem efetivamente falada, em oposição às linguagens artificiais – cuja sintaxe e regras são estabelecidas para fins teóricos – na concepção de quineana, acontece no espaço público, em situações compartilhadas, não havendo, desse modo, linguagem privada, ou ainda significados ‗na mente‘. O aprendizado de uma linguagem, segundo ele, estabelece-se nas trocas observáveis e, conforme mencionado, sob circunstâncias intersubjetivas perceptíveis, corroborando nossa afirmativa primeira sobre a natureza da linguagem, no sistema filosófico de Quine. 2.2 O viés da tese da tradução radical The thesis is then like this: manuals for translating on language into another can be set up in divergent ways, all compatible with one another. (WO, p.27) 2.2.1 Apresentação do thought experiment A situação ideal que Quine constrói, para sustentar sua tese em relação à tradução radical, consiste em um thought experiment, que pode ser apresentado com um seguinte caso hipotético: imagine-se um linguista de campo que se propõe elaborar no terreno a tradução de uma língua alienígena totalmente estranha para ele (junglelanguage); e cujos falantes desconhecem completamente a linguagem do linguista (por exemplo, o português). O objetivo final do linguista consistirá na construção de um manual de tradução jungle-language-português que tome como veleidade última possibilitar ao linguista uma efetiva comunicação com todos os falantes da jungle- 51 QUINE, W.O. Word and Object. ‗Each of us learns his language from other people, through the observable mouthing of words under conspicuously intersubjective circumstances.‘ Cambridge: MIT Press, 1960, p.1. 38 language. De tal sorte que todos os indícios iniciais disponíveis para o linguista consistirão no comportamento verbal dos nativos, ou seja, nas suas disposições verbais, e as situações ambientais observáveis partilhadas. Por conseguinte, essas últimas observações consubstanciam a posição behaviorista de Quine a esse respeito. Logo, o questionamento que segue é pertinente: de que modo constrói o linguista seu manual? Esse processo cumprirá dois momentos distintos, no primeiro, e dada a escassez de informações de que dispõe, o linguista traduz por tentativa e hipoteticamente expressões da linguagem alienígena, apelando para as manifestações de assentimento e dissentimento dos nativos e para as situações observáveis concomitantes com determinada elocução verbal. A seguir, e tendo por base o mesmo tipo de dados, o linguista tentará confirmar a sua tradução inicial inquirindo os nativos acerca das expressões em várias circunstâncias e obtendo o respectivo veredito por meio das suas manifestações de assentimento e dissentimento em cada caso. Nesse contexto, conforme Branquinho52, o par ordenado das várias situações que para determinada expressão provocam o assentimento e dissentimento dos nativos é classificado por Quine como constituindo o estímulo-significado dessa expressão. Assim, é esse estímulo-significado que assegura a tradução segura (pelo menos mais segura) da expressão em causa. Em vista disso, dada as características específicas assumidas pelo estímulo-significado, só uma parcela da linguagem pode ser traduzida desse modo, em particular uma classe de frases que Quine denomina de frases de observação, a saber, frases ocasionais cujo valor de verdade é completamente determinado pelas circunstâncias observáveis e que são inicialmente traduzidas de modo holofrástico, isto é, como um todo. Além das frases de observação, ou sentenças observacionais, são também traduzíveis, dessa maneira, as construções cuja função gramatical equivale à dos conectivos vero-funcionais do cálculo proposicional. Esses últimos não serão apresentados por não consistirem o foco deste estudo. 52 BRANQUINHO, João et al. Enciclopédia de Termos Lógico-Filosóficos. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 406-407. 39 Por outro lado, a segunda fase do processo de tradução, ressalta 53 Branquinho tentará ultrapassar essa barreira limitativa imposta pelas restrições técnicas do estímulo-significado. Com efeito, a situação exige que se reformule de modo um pouco mais técnico a ideia de ‗manual de tradução‘. Um manual de tradução de uma linguagem L para uma linguagem L‘ (L é a linguagem-alvo e L‘ a linguagemfonte) pode ser visto como resultando em uma função recursiva (pode-se dizer f) que toma como argumentos frases de L e como valores frases de L‘, sendo a relação estabelecida em cada caso uma relação de tradução entre essas frases. Mais especificamente, o que se quer com um manual de tradução é obter um método efetivo que dê para cada frase arbitrária de L a sua tradução L‘. Dessarte, pode-se perceber as limitações técnicas do expediente do estímulo-significado e a impossibilidade de este levar a cabo de modo completo o projeto de um manual de tradução, sendo, então, necessário um novo método de abordagem da linguagem alienígena. Tal método consiste na adoção de um conjunto de hipóteses analíticas que estabeleça correlações semânticas hipotéticas entre palavras e expressões das duas linguagens de modo a obter um léxico e uma gramática para a linguagem-alvo, partindo da tradução hipotética de termos da linguagem alienígena na nossa própria e de partículas e construções gramaticais do mesmo modo, corrobora Branquinho54. Acrescenta o autor55 Sendo essa correlação hipotética, ela não poderá, no entanto, ser totalmente arbitrária, devendo obedecer a duas restrições que constituem conjuntamente, pode-se afirmar, o ‗critério de correção‘ para as hipóteses analíticas, ou seja, em última instância, para o manual de tradução. Nesse sentido, a primeira restrição exige a compatibilidade das hipóteses analíticas com a primeira fase de tradução via estímulo-significado, garantindo, assim, o acordo com as disposições verbais dos nativos e constituindo, portanto, a sua ‗adequação empírica‘. No que diz respeito à segunda restrição, de caráter mais normativo, exige, embora de modo flexível, a maximização do acordo entre as crenças dos nativos e as do linguista, a fim de evitar situações de absurdidade e contrassenso. Assim, dado esse critério, pode-se, então, construir um conjunto de hipóteses analíticas que respeitem essas duas restrições e que garantam um léxico e uma gramática para a linguagem alienígena. Desse modo, o que se 53 Id. Ibid. Id. Ibid. 55 Id. Ibid. p. 406. 54 40 obtém no final desse processo é, finalmente, o almejado manual de tradução LL‘, ou jungle-language-português, no caso hipotético em consideração; ou seja, uma função recursiva f que cada membro (frase) arbitrário de L nos dê, de modo efetivo, a sua tradução em L‘. (BRANQUINHO, p. 406) Com efeito, complementa Branquinho56, esse poder recursivo ou indutivo é diretamente imputado à gramática de L, que transforma, por construção sintática, os elementos lexicais dessa linguagem em expressões mais complexas. Uma gramática para L deve definir recursivamente o conjunto de expressões que podem ocorrer nessa linguagem, a saber, as expressões gramaticalmente corretas dessa linguagem. Em suma, uma gramática para L, junto com o conjunto finito do léxico, deve definir recursivamente todos os elementos infinitos (frases infinitas) de L. Nesse contexto, ressalta Branquinho57 sendo o caso que, por meio de hipóteses analíticas, têm-se correlações semânticas das construções gramaticais e do léxico de L em L‘, o manual f pode, para cada frase arbitrária de L, e independentemente da sua complexidade gramatical fornecer a sua tradução em L‘. Desse modo, f determina um conjunto infinito de pares ordenados em que o primeiro elemento de cada par consiste em um elemento (frase) de L e o segundo na sua tradução em L‘, ou seja, em um elemento (frase) de L‘. Após o levantamento de dados hipotéticos, convém lembrar que Quine 58 ressalta que ―a psicologia prática é o que sustenta nosso tradutor radical durante todo o tempo, e o método de sua psicologia é a empatia; ele se imagina na situação do nativo da melhor maneira possível‖. Assim, por exemplo, o linguista ouve um nativo dizer ‗gavagai‘ na presença de um coelho e formula diferentes hipóteses quanto a que tal termo possa designar: todo o animal; suas partes; sua cor; seu movimento, assim por diante. Para testar essas hipóteses, o linguista diz ‗gavagai‘ em circunstâncias distintas e espera pelo assentimento ou dissentimento do nativo. Desse modo, algumas hipóteses são confirmadas ou confirmadas. O linguista continuará, a seu modo, confirmando hipóteses a respeito de frases individuais, bem como de tendências gramaticais, até 56 Id. Ibid. Id. Ibid. p. 407. 58 QUINE, W.O. Pursuit of Truth. ‗Practical psychology is what sustains our radical translator all along the way, and the method of his psychology is empathy; he imagines himself in the native’s situation as best he can’. 1993, p. 46. 57 41 estabelecer um manual de tradução, que lhe permita interpretar qualquer frase arbitrária que os nativos possam enunciar. Nesse contexto, há um problema, independente da quantidade de evidência disponível para o linguista, e de quão bem adequado seu manual de tradução é a essa evidência, sempre é possível construir um manual alternativo que se enquadre bem à evidência. Em outras palavras, é, em princípio, possível para dois tradutores radicais que sigam o mesmo procedimento terminarem com manuais de tradução incompatíveis. A partir desse experimento de pensamento, Quine generaliza suas conclusões e argumenta que a indeterminação radical é um traço básico e inevitável da linguagem. A tese da indeterminação, que será vista a seguir, diz respeito não somente à atividade particular de um tradutor radical, mas a todo uso da linguagem. Conforme Quine aponta, ‗ a tradução radical começa em casa‘59. Embora usemos os mesmos sinais e sons que outras pessoas em nossa comunidade linguística, a tarefa de interpretar a fala deles não é diferente da tradução radical: para que se possa compreender falantes da mesma língua, também é necessário ser capaz de traduzir seus significados para a nossa língua. Por conseguinte, o fato de que estamos usando os mesmos sinais e sons não faz diferença alguma, porquanto, significados não estão atrelados a sinais ou sons: não há significados independentemente do sistema de crenças nos quais eles aparecem. Portanto, os significados são relativos a sistemas de crenças e aos falantes particulares que as têm. Comumente, quando dizemos que usamos as mesmas palavras, não estamos necessariamente falando a respeito de termos sinônimos, mas de termos homofônicos, ou seja, termos que se parecem e soam iguais, mas, tanto quanto sabemos, podem ter significados bastante diferentes, visto que seus significados derivam-se de uma rede de crenças na qual estão inseridos. Esse aspecto da teia de crenças será abordado mais adiante. Em síntese, Quine conclui que o comportamento linguístico de assentimento ou discordância não basta para discriminar a diferença de tradução. Toda 59 Id. Ibid. ‗I have directed my indeterminacy thesis on a radically exotic language for the sake of plausibility, but in principle it applies even to the home language’. p. 48. 42 tradução depende de ‗uma teoria de fundo‘ ou de um esquema conceitual de fundo. Daí se segue que linguistas diferentes, situados diante das mesmas observações, podem elaborar traduções diferentes. A conclusão de Quine é que não há a tradução exata. Todo tradutor parte de um conjunto de hipóteses analíticas: diferentes conjuntos de hipóteses sobre o modo como analisar a linguagem que se vai traduzir podem dar resultados diferentes, todos compatíveis com a mesma evidência empírica. Toda tradução depende, então, do esquema conceitual que se utiliza ao traduzir. Uma diversidade nas traduções não implica que um manual esteja necessariamente errado; dois manuais podem ser ambos adequados aos dados empíricos. 2.3 Trazendo aspectos da indeterminação da tradução Para Quine, o critério de comunicação bem-sucedida, quer a tradução esteja envolvida ou não, quer seja interação fluente, verbal e não verbal: ‗Sucesso em comunicação é julgado pela fluência da conversação, pela previsibilidade frequente das reações verbais e não verbais, e pela coerência e credibilidade do testemunho do nativo‘60. Desse ponto de vista, falar de sinonímia e de ideias na mente é simplesmente um verniz teórico, que consiste (no máximo) na necessidade de justificação. Quine duvida que esse verniz teórico seja justificável; seu ceticismo sobre a teoria, entretanto, não é ceticismo sobre os dados. Desse modo, fluência na conversação certamente ocorre, às vezes, em casos em que há diferentes linguagens envolvidas. Essa tradução bem-sucedida não é colocada em dúvida por qualquer coisa dita, sua pretensão, na verdade, é que possa ser possível em mais de uma maneira. Na filosofia de Quine, essa tese é um dos tópicos mais discutidos e controversos. É formulada por ele da seguinte forma: ‗[...] manuais para traduzir uma linguagem em outra podem ser construídos de modos divergentes, todos compatíveis com a totalidade das disposições verbais, mas, no entanto, incompatíveis entre si‘61. Em 60 QUINE, W. Pursuit of Truth. ‘Success in communication is judged by smoothness of conversation, by frequent predictability of verbal and nonverbal reactions, and by coherence and plausibility of native testimony‘. 1990, p. 43. 61 QUINE, W. Word and Object. ‗[…] manuals for translating one language into another can be set up in divergent ways, all compatible with the totality of speech dispositions, yet incompatible with one another’. 1960, p. 27. 43 outras palavras, essa tese afirma que podem existir traduções diferentes, todas elas confirmadas em igual grau pelos dados disponíveis, isto é, todas elas corretas. Baseia-se, assim, na relatividade dos esquemas conceituais, a saber, (i) pode haver diversas traduções (manuais de tradução) compatíveis com os dados empíricos, mas incompatíveis entre si; (ii) toda tradução é, com efeito, relativa ao esquema conceitual usado pelo linguista observador ao analisar a linguagem nativa. Essa tese assume motivações essencialmente destrutivas, em particular no que concerne à imagem clássica da semântica para as linguagens naturais, que Quine classifica, na generalidade, como ‗mentalistas‘. Em outros termos, essa concepção mentalista de semântica pode ser descrita como consistindo na intuição que faz corresponder a cada expressão significante de uma linguagem um objeto extralinguístico, que consiste precisamente no seu sentido. Quine fornece, como já mencionado no capítulo 1, a imagem sugestiva do museu: ‗a semântica não-crítica consiste no mito de um museu no qual as obras exibidas são os significados (meanings) e as palavras são as legendas. Mudar as linguagens é mudar as legendas.‘62 Para melhor compreender essa tese considerem-se as três frases seguintes: (i) Snow is white; (ii) La neige est blanche; (iii) A neve é branca. Todas essas três frases são diferentes entre si, somos levados, no entanto, a identificá-las de algum modo, assumindo que algo de comum subsiste a todas elas, a saber, o seu significado. A premissa implícita do mentalismo, que a tese da indeterminação desafia, é a de que a existência de ‗significados‘ constitui uma condição necessária para a intercompreensão linguística. A motivação fundamental que leva Quine a desconfiar da semântica mentalista consiste no fato de os ‗significados‘ serem entidades pouco claras quanto à sua individuação, pelo que, só devemos postulá-los se houver real necessidade. A situação idealizada por Quine parte do thought experiment, que sustentará sua tese da ‗tradução radical‘, baseada no caso hipotético: imagine-se um linguista de campo que se propõe elaborar a tradução de uma língua alienígena totalmente estranha para ele – pode-se chamá-la de jungle-language, cujos falantes desconhecem a linguagem do pesquisador. Seu objetivo final consistirá na elaboração 62 QUINE, W. Ontological Relativity. ‗Uncritical semantics is the myth of a museum in which the exhibits are meanings and the words are labels. To switch languages is to change the labels’. 1969, p. 27. 44 de um manual de tradução jungle-language/português, cujo propósito é possibilitar a comunicação efetiva com todos os falantes da comunidade da jungle-language. Todos os dados que o linguista dispõe consistem no comportamento verbal dos nativos, ou seja, nas suas disposições verbais e as situações ambientais observáveis compartilhadas, consubstanciando a posição behaviorista quineana. Quine posiciona-se da seguinte maneira em relação à indeterminação da tradução: Essas reflexões nos deixam poucas razões para esperar que dois tradutores radicais, trabalhando de forma independente em relação à jungle, trariam à tona manuais intercambiáveis. Seus manuais poderiam ser indistinguíveis em termos de qualquer comportamento nativo que eles pudessem esperar, e, ainda assim, cada manual poderia prescrever algumas traduções que o outro tradutor .63 rejeitaria. Tal é a tese da indeterminação da tradução Acrescenta ele, A tese da indeterminação da tradução consiste em que essas afirmações (claims) da parte desses dois manuais podem ser ambas verdadeiras, e ainda, que as duas relações de traduções podem não ser usadas em alternância, frase a frase, sem incorrer em sequências incoerentes. Ou, em outros termos, as frases inglesas estabelecidas como tradução de uma dada sentença jungle por dois manuais concorrentes podem não ser intercambiáveis em contextos de 64 inglês. Quine afirma que o comportamento linguístico de assentimento ou discordância não basta para discriminar a diferença de tradução. Toda tradução depende de uma ‗teoria de fundo‘ ou de um esquema conceitual de fundo. Daí se segue que linguistas diferentes, situados diante das mesmas observações, podem elaborar traduções diferentes. A conclusão de Quine é que não há a tradução exata. Todo tradutor parte de um conjunto de hipóteses analíticas, isto é, diferentes conjuntos de hipóteses sobre o modo como analisar a linguagem que se vai traduzir podem produzir 63 QUINE, W.V. Indeterminacy of Translation. In: The Pursuit of Truth. Cambridge: Harvard University Press, 1990, p. 47–8.’These reflections leave us little reason to expect that two radical translators, working independently on Jungle would come out with interchangeable manuals. Their manuals might be indistinguishable in terms of any native behavior that they give reason to expect, and yet each manual might prescribe some translations that the other translator would reject. Such is the thesis of indeterminacy of translation.’ 64 Id. ibid. p. 48. ‗The thesis of indeterminacy of translation is that these claims on the part of two manuals might both be true and yet the two translation relations might not be usable in alternation from sentence to sentence, without issuing in incoherent sequences. Or, to put it another way, the English sentences prescribed as translation of a given Jungle sentence by two rival manuals might not be interchangeable in English contexts.’ 45 resultados diferentes, todos compatíveis com a mesma evidência empírica. Toda tradução depende, então, do esquema conceitual que se utiliza ao traduzir. Segundo Quine, a tradução permanece indeterminada devido à inescrutabilidade da referência de termos de uma língua, a saber, não é possível determinar qual é exatamente a referência de um termo, como, por exemplo ‗gavagai‘, usado pelos falantes da comunidade linguística ao observar um coelho, pois, apesar de, em um manual, ser possível traduzir o termo por ‗coelho‘, seria concebível criar um manual cuja tradução do termo ‗gavagai‘ fosse constituído por ‗parte não destacada de um coelho‘ ou ‗fase temporal de um coelho‘. Essa constatação leva Quine a concluir que: (i) O linguista não pensa em significados ao elaborar manuais de tradução, mas, sim, baseia-se na observação do comportamento dos falantes nativos; (ii) É possível determinar as situações em que os falantes assentiriam a uma sentença como ‗gavagai‘, mas não é possível traduzir o termo ‗gavagai‘ de maneira unívoca, uma vez que a referência é inescrutável. É possível afirmar que é óbvio esse posicionamento contra a semântica clássica (mentalista), já que conforme caracterização, postula que dada duas linguagens, apenas uma tradução correta entre elas seria possível e que duas frases expressariam a mesma proposição (sentido) somente se uma fosse a tradução da outra. A tese da indeterminação derruba esse postulado, mostrando como várias traduções corretas são possíveis, embora incompatíveis e atingindo, assim, por inerência, a própria ideia de ‗proposição‘ ou ‗sentido‘, sustentada pelo postulado da existência de uma e só uma tradução correta entre linguagens. Puntel65 salienta, questionando esse posicionamento, que a despeito das dificuldades dessa concepção, apontadas, entre outros, por Quine sob a designação de ‗indeterminação da tradução‘, essa tese é compartilhada pela maioria dos filósofos atuais. No entanto, isso é questionável, porque por trás disso está a pressuposição de que se pode ‗traduzir‘ uma determinada linguagem para outra linguagem sem nenhum problema, como se uma linguagem fosse um tipo de ‗roupa‘ que arbitrariamente pudesse ser trocada por outra, sendo que o corpo assim ‗vestido‘ permaneceria idêntico. Tomando-se, por exemplo, a sentença alemã ‗Schnee ist weiβ‘ e a sentença portuguesa ‗neve é branca‘ e, supondo-se que sentenças com essa forma expressam uma proposição, supõe-se, em seguida, que ambas as sentenças 65 PUNTEL, Lorenz B. Estrutura e Ser: um quadro referencial teórico para uma filosofia sistemática. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2008, p.128. 46 expressam exatamente ‗a mesma‘ proposição (ou seja, a proposição de que a neve é branca). Pode-se perceber que Puntel discorda dessa tese, que segundo ele, é compartilhada pela maioria dos filósofos atuais, visto que subjaz a ela que ambas as frases, traduzidas de línguas diferentes, expressem a mesma proposição; ou seja, supõe-se que inicialmente expressem uma proposição, para após, chegar-se à conclusão que ambas expressam a mesma proposição. Com efeito, a tese da indeterminação da tradução é um aspecto controverso e polêmico no escopo teórico de Quine. Por outro lado, a controvérsia e a polêmica, em nosso ponto de vista, devem permear os meandros da filosofia, para fomentar a reflexão e alimentar a discussão que são o combustível do fazer filosófico. 2.4 Relatividade ontológica e seus desdobramentos: inescrutabilidade ou indeterminação da referência na perspectiva empírico-naturalista [...] But I can now say what ontological relativity is relative to […] It is relative to a manual of translation. (PT, 51-52) Esses conceitos assumem um caráter dúbio na filosofia de Quine, especialmente nos seus desenvolvimentos recentes66, em que ele denomina a Relatividade Ontológica de Relatividade Atenuada (defused). A tese da relatividade ontológica, também conhecida como a inescrutabilidade ou indeterminação da referência, está em concordância com o empirismo naturalista de Quine. Desse modo, foi generalizada em uma perspectiva que Quine denomina de estruturalismo global, visto que consiste nas sentenças observacionais construídas holofrasticamente, como um todo indissolúvel em que o sistema é externamente restrito. Assim, há meios diferentes, mas igualmente plausíveis de encontrar essas restrições observacionais, e isso pode envolver diversas ontologias, tais como uma ontologia de coelhos ou de partes de coelhos. Nesse contexto, a tese da inescrutabilidade da referência significa que a referência de uma palavra não é determinada por fatos, mas é relativa ao aparato de individuação de nossa escolha, isto 66 Id. Ibid. Pursuit of Truth. Cambridge: Harvard University Press, 2 nd ed., 1993. 47 é, a ontologia construída no nosso manual de tradução. Essa teoria aponta que nenhum dado empírico relevante para a interpretação das elocuções de um locutor pode servir para decidir entre diversas maneiras alternativas e incompatíveis de atribuir referentes às palavras usadas; assim, não há fato algum que consista em as palavras terem certa referência. Na teoria da indeterminação da referência, Quine defende a tese de que não é possível, no interior de qualquer linguagem, língua ou universo linguístico, determinar ou mostrar qual a referência determinada de um termo ou expressão. Isto significa afirmar que qualquer tentativa de tradução entre idiomas distintos, ou mesmo qualquer ato comunicacional, não pode alcançar uma total clareza com relação àquilo de que se está falando. Esta falta de clareza com relação à referência, no entanto, não impede os indivíduos envolvidos na comunicação de avançarem em sua compreensão do processo de interação comunicacional. Assim, apesar da indeterminação da referência, e inclusive por causa dela, a linguagem se desenvolve em um todo complexo e rico em significações que auxiliam os sujeitos do discurso a se movimentarem nesse ambiente, buscando, a partir das experiências sensíveis, o conhecimento do real. Quine defende, ainda, que, apesar de limitada e impossível de ser determinada, é a referência a dados sensoriais que garante a intersubjetividade. Por não termos acesso a mentes, não se sabe, portanto, quais as percepções de outras pessoas. Entretanto, é essa forma limitada de comunicar, evocando palavras que não têm uma referência determinada, que lidamos diariamente. Por exemplo, o aprendizado de uma criança de enunciar a palavra ‗mamãe‘, para utilizá-la, a criança não necessita saber a que se refere, pelo contrário é o uso constante da palavra que irá moldar a referência. Isso acontece, pois a criança é estimulada e induzida a proferir tal palavra estritamente na presença apropriada. Nesse sentido, Quine67 busca trazer seu thought experiment para dentro de casa, na família, assim: [...] Para começar, o caso da criança assemelha-se ao do gentio. Pois embora possamos estar completamente satisfeitos por ter a criança aprendido o truque 67 QUINE, W. O. Speaking of Objects. Ontological Relativity & other essays. p. 6-7, 1969. ‗To begin with, the case of the child resembles that of the heathen. For though we may fully satisfy ourselves that the child has learned the trick of using utterances ‘mama’ and ‘water’ strictly in the appropriate presences, or as means of inducing the appropriate presences’. 48 de usar as enunciações mamãe e água estritamente nas presenças apropriadas, ou como meio de induzir as presenças apropriadas [...] Com efeito, a criança, a partir de constantes enunciações de determinada palavra, quando confrontada com certos estímulos sensoriais e, consequente, aprovação, por parte de algum sujeito que já domina a linguagem, dessas enunciações, aprende a utilizar, num primeiro momento, a utilizar termos como mamãe, água e vermelho. Lembrando que a criança assim o faz, diferentemente do adulto que domina a linguagem, apenas para expressar a ocorrência de certo estímulo, sem identificar um objeto. Embora essa teoria seja semelhante à indeterminação da tradução, não lhe é idêntica. Em primeiro lugar, a inescrutabilidade da referência pode ser compatível com o fato de as diferentes interpretações do que o locutor diz terem todas o mesmo valor de verdade; ao passo que Quine presume, frequentemente, que a indeterminação implica que as diferentes interpretações não sejam equivalentes (em qualquer sentido do termo), de tal modo que o que é dito pode ser verdadeiro segundo uma interpretação e falso segundo outra. Em segundo lugar, a tradução pode ser indeterminada mesmo que a referência seja escrutinável se, por exemplo, o objetivo da tradução correta for o de fixar mais do que as referências dos termos. No entanto, ‗inescrutabilidade‘ não é o melhor termo para designar a teoria de Quine, visto que sugere algo real, mas incognoscível, ao passo que segundo a tese de Quine os termos não têm qualquer referência única real. A essa teoria tão controversa, Quine prefere, anos após Ontological Relativity, chamar de ‗indeterminação da referência‘. Ressalta, desse modo que Tomada analiticamente, a indeterminação é trivial e indiscutível. Foi de modo factual ilustrada em Ontological Relativity (p.35-36) [...] e mais abstratamente acima pelas funções de substituição (§13). É a reflexão surpreendente que interpretações divergentes de palavras em uma frase podem compensar-se para sustentar uma tradução idêntica de uma frase como um todo. É o que denominei de inescrutabilidade da referência; ‗indeterminação da referência‘ teria sido melhor. A tese séria e controversa da indeterminação da tradução não é isso; é sim a tese holofrástica, que é mais forte. Manifesta-se para as divergências que subsistem irreconciliáveis mesmo dentro do nível da frase 49 inteira e são compensadas apenas por divergências nas traduções de outras 68 frases inteiras. Quine acrescenta que Ao contrário da indeterminação da referência, que é tão prontamente ilustrada por ajustes mutuamente compensatórios dentro dos limites de uma simples frase, a indeterminação holofrástica ou total da tradução aproxima-se mais amplamente de uma linguagem para admitir ilustração factual. A tradução radical é uma realização rara e não vai acontecer duas vezes de maneira bem69 sucedida para a mesma linguagem. Nesse texto, Quine observa que, muito mais do que ele, muitos leitores buscaram uma distinção técnica entre as frases ‗inescrutabilidade da referência‘ e ‗relatividade ontológica‘; ressaltando que essa distinção nunca ficou muito clara para ele. Segundo suas próprias palavras: Leitores amáveis procuraram uma distinção técnica entre minhas frases ‗inescrutabilidade da referência‘ e ‗relatividade ontológica‘, que nunca ficou clara para mim mesmo. Mas, posso agora afirmar a que relatividade ontológica é relativa, mais sucintamente do que antes proferido em palestras, artigo e livro com este título. É relativa a um manual de tradução. Para afirmar que ‗gavagai‘ denota coelhos é necessário optar por um manual de tradução em que ‗gavagai‘ é traduzido como ‗coelho‘, em vez de optar por quaisquer manuais 70 alternativos. Por conseguinte, Quine finaliza questionando se a indeterminação ou relatividade estende-se de alguma forma à home language; visto que no livro Ontological Relativity ele assim o fizera. Ademais, salienta por que a home language pode ser traduzida pelas próprias permutas que partem materialmente da transformação de identidade comum, como as funções de substituição apoiam. No 68 QUINE, W. O. The Pursuit of Truth. Cambridge: Harvard University Press, 1993, p. 50. ‗Taken analytically, the indeterminacy of translation is trivial and indisputable. It was factually illustrated in Ontological Relativity (p.35-36) […] and more abstractly above by proxy functions (§ 13). It is the unsurprising reflection that divergent interpretations of the words in a sentence can so offset one another as to sustain an identical translation of the sentence as a whole. It is what I have called inscrutability of reference; ‘indeterminacy of reference’ would have been better. The serious and controversial thesis of indeterminacy of translation is not that; it is rather the holophrastic thesis, which is stronger. It declares for divergences that remain unreconciled even at the level of the whole sentence, and are compensated for only by divergences in the translations of other whole sentences.’ 69 Id. Ibid. p. 50-51. ‘Unlike indeterminacy of reference which is so readily illustrated by mutually compensatory adjustments within the limits of a single sentence , the full or holophrastic indeterminacy of translation draws too broadly on a language to admit of factual illustration. Radical translation is a rare achievement, and it is not going to be undertaken successfully twice for the same language.‘ 70 Id. Ibid. p. 51-52. ‗Kindly readers have sought a technical distinction between my phrases ‘inscrutability of reference’ and ‘ontological relativity’ that was never clear in my own mind. But I can now say what ontological relativity is relative to, more succinctly than I did in the lectures, paper, and book of that title. It is relative to a manual of translation. To say that ‘gavagai’ denotes rabbits is to opt for a manual of translation in which ‘gavagai’ is translated as ‘rabbit’, instead of opting for any of the alternatives manuals.’ 50 entanto, se escolhermos como manual de tradução a transformação da identidade, desse modo, tomando o valor nominal da home language, a relatividade é resolvida. Referência é, então, explicada em paradigmas descitacionais, semelhante ao paradigma da verdade de Tarski (§33); assim ‗rabbit‘ denota coelhos, o que quer que sejam, e ‗Boston‘ designa Boston.71 Com efeito, se inicialmente havia um diferença entre relatividade ontológica e inescrutabilidade da referência; enquanto a inescrutabilidade remete para a possibilidade de diferentes condições de satisfabilidade de diferentes predicados; por sua vez, a relatividade ontológica joga com a noção de diferentes domínios para reinterpretar predicados de uma teoria. Tome-se como exemplo o caso das frases abertas ‗x é um coelho‘ e ‗x é uma parte não destacada de coelho‘, elas assumem diferentes condições de satisfabilidade em um mesmo domínio fixo, a saber, de objetos físicos; essa é a situação com que lida a inescrutabilidade. Suponha-se, ainda, que reduzimos o domínio dos objetos físicos para um domínio de ‗lugares-tempo‘; por meio de uma função de substituição pode-se permutar cada objeto físico pelo seu correspondente ‗lugar-tempo‘. Assim, para a frase aberta ‗x é um coelho‘, procede-se a uma reinterpretação, por meio da função, como ‗x é um lugar-tempo de coelho‘. Essa situação de relatividade é manifestamente diferente daquela que lida com a inescrutabilidade. A situação pode ser resumida da seguinte forma: enquanto a inescrutabilidade depende da confrontação de diferentes manuais de tradução; a relatividade pode ser demonstrada relativamente a um único manual, afirma Branquinho72 Embora Quine tivesse a princípio adotado a perspectiva anteriormente descrita, nos seus escritos tardios tendeu a esbater a diferença entre relatividade e inescrutabilidade e a fazer quase como que uma identificação entre as duas, conforme 71 Id. Ibid. p. 52. ‘And does the indeterminacy or relativity extend also somehow to the home language? In ‘Ontological Relativity’ I said it did, for the home language can be translated into itself by permutations that depart materially from the mere identity transformation, as proxy functions bear out. But if we choose as our manual of translation the identity transformation, thus taking the home language at face value, the relativity is resolved. Reference is then explicated in disquotational paradigms analogous to Tarski’s truth paradigm (§33); thus ‘rabbit’ denotes rabbits, whatever they are , and ‘Boston’ designates Boston’. 72 BRANQUINHO, João et al. Enciclopédia de Termos Lógico-Filosóficos. São Paulo: Martins Fontes, 2006. 51 mencionado. Na verdade, há casos em que, de modo evidente, a adoção de diferentes manuais ou de diferentes ontologias acaba por equivaler. Tome-se o exemplo dos ‗complementos cósmicos‘; é possível reinterpretar o discurso do meu interlocutor como se referindo a complementos cósmicos de objetos físicos, a saber, a totalidade do cosmos menos esse objeto físico; e não aos próprios objetos. Nesse caso, estamos tanto perante uma situação de tradução, e, portanto, de inescrutabilidade da referência (os termos denotam coisas diferentes se traduzirmos ‗gavagai‘ por ‗coelho‘, ou por ‗complemento cósmico de coelho‘), como de relatividade ontológica; podemos adotar uma função de substituição que reinterprete cada objeto de uma ontologia fisicalista em um objeto de uma ontologia de complementos cósmicos. Esse último tipo de consideração parece ser a razão que encorajou Quine a não estabelecer uma diferença substancial entre relatividade ontológica e inescrutabilidade da referência. 2.5 Considerações acerca do fisicalismo Conforme mencionado, Quine retoma seu posicionamento empirista, ao afirmar que a visão fisicalista seria a mais adequada para tentar enfrentar a questão epistemológica de como nos referimos ao mundo. De maneira geral, fisicalismo é a tese de que tudo é físico, ou como os filósofos contemporâneos, por vezes, afirmam, que tudo o que ocorre ou é superveniente ou demandado pelo físico. A tese é geralmente concebida como tese metafísica, paralela à atribuída ao filósofo grego Thales, que afirma que tudo é água; ou ao idealismo de Berkeley, filósofo do século XVIII, declarando que tudo é mental. Desse modo, a ideia geral é que a natureza do mundo real (ou seja, o universo e tudo nele) está de acordo com uma determinada condição, a condição de ser físico. Certamente, os fisicalistas não negam que o mundo pode conter vários aspectos que, à primeira vista, não parecem físicos – aspectos de natureza biológica, psicológica, moral ou social. Mas insistem, no entanto, que, no final do dia, tais aspectos são ou físicos ou sobrevêm no físico, como aponta Stoljar.73 73 STOLJAR, Daniel. Physicalism. http://plato.stanford.edu. First published Tue Feb 13, 2001; substantive revision Wed Sep 9, 2009. 52 Stein74 salienta que não é só na sua análise do significado que Quine retoma certas pretensões empiristas. A sua análise da referência de termos a objetos também desemboca em uma visão epistemológica próxima à visão reducionista do positivismo lógico. Ao ressaltar que a visão fisicalista seria a mais clara para fazer frente ao problema epistemológico de como nos referimos ao mundo, Quine volta a introduzir um tipo de primazia da ontologia de objetos físicos sobre outras ontologias possíveis: O que está posto como objetos aos quais os termos podem referir serão, primariamente, objetos que são considerados idênticos sob mudanças de perspectiva. Isto explica a primazia dos corpos. Se a clareza pode ser atribuída a coisas assim como a palavras, então corpos são coisas das mais claras. Se a investigação deve começar com o que é claro, então comecemos como 75 fisicalistas. No texto On What There Is, Quine esclarece sobre sua aceitação de uma teoria científica, ou, segundo ele, um sistema de física. Nesse sentido, aceitar uma ontologia significa aceitar um sistema conceitual global destinado a acomodar a ciência no sentido mais amplo; com efeito, adotamos também um esquema conceitual mais simples no qual organizamos e acomodamos os fragmentos desordenados da experiência bruta, determinando, assim nossa ontologia e uma construção razoável do todo. Da mesma forma, pode ser dito em relação à adoção de qualquer sistema de teoria científica, de uma questão da linguagem e estendido à adoção de uma ontologia. Por conseguinte, afirma Quine, Nossa aceitação de uma ontologia é, creio eu, semelhante em princípio a nossa aceitação de uma teoria científica, digamos, de um sistema de física: adotamos, ao menos na medida em que somos razoáveis, o esquema conceitual mais simples no qual os fragmentos desordenados da experiência bruta podem ser acomodados e organizados. Nossa ontologia fica determinada uma vez fixado o esquema conceitual global destinado a acomodar a ciência no sentido mais amplo; e as considerações que determinam uma construção razoável de qualquer parte desse esquema conceitual, por exemplo, da parte física ou biológica, não são diferentes em espécie das considerações que determinam uma construção razoável do todo. Tanto quanto a adoção de qualquer sistema 74 STEIN, Sofia I. A. Empirismo e fisicalismo: características do holismo epistemológico de Willard Quine. PHILÓSOPHOS 8 (1): 69-78, jan./jun. 2003. 75 SHAHAN, R.; SWOYER, C. Facts of the Matter. In: Essays on the Philosophy of W.V. Quine. Oklahoma: The Harvester Press, 1979, p.159. ‗What is posited as objects to which the terms may be referring primarily to objects that are treated the same under changing perspective. This explains the primacy of the bodies. If clarity can be attributed to things like the words, then bodies are things clearer. If the investigation should begin with what is clear, then we begin as physicalist’. 53 de teoria científica pode ser dita uma questão de linguagem, o mesmo – mas 76 não mais – pode ser dito da adoção de uma ontologia. Em função disso, não há como separar, na concepção de Quine, a aceitação de uma ontologia acarreta também a aceitação de um esquema conceitual global destinado a acomodar o todo. Nesse sentido, adotamos o esquema conceitual mais simples para ordenar os fragmentos desorganizados da experiência bruta, em outras palavras, a fim de redimensionar nossas concepções para organizá-las e acomodá-las. Mais adiante em seu texto, Quine conclui que um esquema conceitual fisicalista, que pretende falar de objetos externos, comparado a um fenomenalista, oferece muitas vantagens ao simplificar nossos relatos globais, reduzindo a complexidade do fluxo de experiência a uma simplicidade conceitual manipulável, simplicidade essa que orienta na atribuição de dados sensíveis a objetos. Desse modo, completa Quine que Ainda, assim, concluiríamos, sem dúvida nenhuma, que um esquema conceitual fisicalista, que pretende falar de objetos externos, oferece muitas vantagens ao simplificar nossos relatos globais. Reunindo os eventos sensíveis dispersos e tratando-os como percepções de um objeto, reduzimos a complexidade de nosso fluxo de experiência a uma simplicidade conceitual manipulável. A regra da simplicidade é, na verdade, a máxima que nos orienta na atribuição de dados sensíveis a objetos: associamos uma sensação anterior de redondo a uma sensação posterior de redondo à mesma assim chamada moeda, ou a duas assim chamadas moedas diferentes, obedecendo às exigências de 77 simplicidade máxima para nosso quadro global de mundo. 76 th QUINE, W.O. On What There Is. In: From a Logical Point of View. 15 ed. Cambridge: Harvard Press, 2003, p.17. ‗Our acceptance of an ontology is, I think, similar in principle to our acceptance of a scientific theory, say a system of physics: we adopt, at least insofar as we are reasonable, the simplest conceptual scheme into which the disordered fragments of raw experience can be fitted and arranged. Our ontology is determined once we have fixed upon the overall conceptual scheme which is to accommodate science in the broadest sense; and the considerations which determine a reasonable construction of any part of that conceptual scheme, for example, the biological or the physical part, are not different in kind from the considerations which determine a reasonable construction of the whole. To whatever extent the adoption of any system theory may be said to be a matter of language, the same – but no more – may be said of the adoption of an ontology.‘ 77 Id.Ibid. p. 17. ‗We should still find, no doubt, that a physicalist conceptual scheme, purporting to talk about external objects, offers great advantages in simplifying our overall reports. By bringing together scattered senses events and treating them as perceptions of one object, we reduce the complexity of our stream of experience to a manageable conceptual simplicity. The rule of simplicity is indeed our guiding maxim in assigning sense data to objects: we associate an earlier and a later round sensum with the same so-called penny, or with two different so-called pennies, in obedience to the demands of maximum simplicity in our total world-picture.‘ 54 Quine pondera sobre os esquemas conceituais rivais, fenomenalista e fisicalista, explicando que cada um, a seu modo, contempla sua simplicidade específica; cada um, também é fundamental embora em sentidos diferentes: um epistemologicamente outro fisicamente, devendo, portanto ser desenvolvidos. No entanto, volta-se, novamente para o fisicalismo e salienta que: O esquema conceitual físico simplifica nossa consideração da experiência em virtude da maneira como inúmeros eventos sensíveis dispersos passam a ser associados aos chamados objetos singulares; e mais, não é nada verossímil que toda sentença a respeito de objetos físicos possa efetivamente ser traduzida, nem mesmo de modo tortuoso e complexo, na linguagem fenomenalista. Objetos físicos são entidades postuladas que uniformizam e simplificam nossa consideração do fluxo da experiência, assim como a 78 introdução dos números irracionais simplifica as leis da aritmética . Com efeito, após comparar esses esquemas conceituais, Quine reafirma seu posicionamento acerca do fisicalismo, visto que este conceito adapta-se a sua teoria sobre objetos, uma vez que o esquema conceitual físico simplifica, em suas palavras, nossa relação com a experiência. Desse modo, falar uma linguagem é falar sobre objetos físicos cujas entidades postuladas simplificam e uniformizam o fluxo da experiência. No entanto, Quine, ao final de sua reflexão sobre ontologia, aponta cautela a respeito da escolha de uma vertente, aconselhando tolerância e espírito experimental. Em suas palavras: ‗Mas a questão de saber que ontologia efetivamente adotar, permanece ainda aberta, e o conselho óbvio é tolerância e espírito experimental‘. 79 2.6 Resumo Este capítulo privilegiou apontar o conceito de linguagem na perspectiva pragmatista de Quine, conforme afirma ele, a linguagem acontece na comunidade de falantes, nas trocas abertas e sociais, ou seja, públicas. Ademais, reitera seu posicionamento quanto ao aprendizado da língua-mãe a partir de outras pessoas 78 Id. Ibid. p.17. ‗The physical conceptual scheme simplifies our account of experience because of the way myriad scattered sense events come to be associated with single so-called objects; still there is no likelihood that each sentence about physical objects can actually be translated, however deviously and complexly, into the phenomenalistic language. Physical objects are postulated entities which round out to simplify our account of the flux of experience, just as the introduction of irrational numbers simplifies laws of arithmetic.’ 79 Id. Ibid. p. 18. ‘But the question what ontology actually to adopt still stands open, and the obvious counsel is tolerance and an experimental spirit.’ 55 mediante ‗proferimentos observáveis de palavras sob circunstâncias intersubjetivas perceptíveis‘. Em vista disso, qualquer linguagem, efetivamente falada, acontece no espaço público, em situações compartilhadas e seu aprendizado em trocas observáveis; por outro lado, refutando a linguagem privada e significados ‗na mente‘. Paralelamente, nesta etapa da tese, houve a discussão acerca da tradução radical. Em síntese, Quine conclui que o comportamento linguístico de assentimento ou discordância não basta para discriminar a diferença de tradução. Toda tradução depende de ‗uma teoria de fundo‘ ou de um esquema conceitual de fundo. Daí se segue que linguistas diferentes, situados diante das mesmas observações, podem elaborar traduções diferentes. A conclusão de Quine é que não há a tradução exata. Todo tradutor parte de um conjunto de hipóteses analíticas: diferentes conjuntos de hipóteses sobre o modo como analisar a linguagem que se vai traduzir podem dar resultados diferentes, todos compatíveis com a mesma evidência empírica. Toda tradução depende, então, do esquema conceitual que se utiliza ao traduzir. Uma diversidade nas traduções não implica que um manual esteja necessariamente errado; dois manuais podem ser ambos adequados aos dados empíricos. Além disso, tratamos da controversa tese da indeterminação da tradução que se posiciona contra a semântica clássica (mentalista) a qual postula que dada duas linguagens, apenas uma tradução correta entre elas seria possível e que duas frases expressariam a mesma proposição (sentido) somente se uma fosse a tradução da outra. A tese da indeterminação derruba esse postulado, mostrando como várias traduções corretas são possíveis, embora incompatíveis e atingindo, assim, por inerência, a própria ideia de ‗proposição‘ ou ‗sentido‘, sustentada pelo postulado da existência de uma e só uma tradução correta entre linguagens. Salientamos ainda, nesta parte, que a tese da inescrutabilidade da referência significa que a referência de uma palavra não é determinada por fatos, mas é relativa ao aparato de individuação de nossa escolha, isto é, a ontologia construída no nosso manual de tradução. Essa teoria aponta que nenhum dado empírico relevante para a interpretação das elocuções de um locutor pode servir para decidir entre as diversas maneiras alternativas e incompatíveis de atribuir referentes às palavras usadas. 56 Dessa maneira, percebemos que estamos tanto perante uma situação de tradução, e, portanto, de inescrutabilidade da referência (os termos denotam coisas diferentes se traduzirmos ‗gavagai‘ por ‗coelho‘, ou por ‗complemento cósmico de coelho‘), como de relatividade ontológica; podemos adotar uma função de substituição que reinterprete cada objeto de uma ontologia fisicalista em um objeto de uma ontologia de complementos cósmicos. Esse último tipo de consideração parece ser a razão que encorajou Quine a não estabelecer uma diferença substancial entre relatividade ontológica e inescrutabilidade da referência. Finalmente, tratamos de alguns aspectos do fisicalismo, quando Quine reafirma seu posicionamento acerca do fisicalismo, visto que este conceito adapta-se a sua teoria sobre objetos, uma vez que o esquema conceitual físico simplifica, em suas palavras, nossa relação com a experiência. Desse modo, falar uma linguagem é falar sobre objetos físicos cujas entidades postuladas simplificam e uniformizam o fluxo da experiência. No entanto, Quine, ao final de sua reflexão sobre ontologia, aponta cautela a respeito da escolha de uma vertente, aconselhando tolerância e espírito experimental. 57 3 LINGUAGEM: EMPIRISMO E BEHAVIORISMO Meaning is essence divorced from the thing and wedded to the word. (Vagaries of definition, p.51) Este capítulo procurará enfatizar novamente o contexto, a comunidade de falantes, mais ou menos adequada à experiência, e não necessariamente universal, mas sempre falível, corrigível e transformável, sobretudo pelos padrões da experiência. Desse modo, salientar os atos sociais ratificados, a pressão por objetividade, assim como a referência entre o eu e a aceitação social. Por conseguinte, trazer a concepção do behaviorismo quineano, assim como referência a Skinner. Além disso, discutir o empirismo que, em essência, na concepção quineana, encontra-se atrelado à palavra, a saber, ao significado. 3.1 O behaviorismo quineano I do consider myself as behavioristic as anyone in his right mind could be. (LP, p. 57) Neste momento, para entender a filosofia quineana, é necessário buscar sua fundamentação. Assim, a conceituação de behaviorismo é um marco integrante deste quadro teórico relacionado ao posicionamento de Quine acerca da linguagem, por conseguinte, serão explicitados alguns aspectos relevantes no que diz respeito a ele. Conforme explicitado por ele próprio, sobretudo, na epígrafe acima, ele se posiciona como um behaviorista, indubitavelmente. Em suas próprias palavras,80 80 QUINE, W. O. Pursuit of Truth. ―In psychology one may or may not be a behaviorist, but in linguistics one has no choice. Each of us learns his language by observing other people’s verbal behavior and having his own faltering verbal behavior observed and reinforced or corrected by others. We depend strictly on overt behavior in observable situations. As long as our command of our language fits all external checkpoints, where our utterance or our reaction to someone’s utterance can be appraised in the light of some shared situation, so long all is well. Our mental life between checkpoints is indifferent to our rating as a master of the language. There is nothing in linguistics meaning beyond what is to be gleaned from overt behavior in observable circumstances.‖ 1990, p. 37-8. 58 Em psicologia se pode ou não ser um behaviorista, mas em linguística não se tem escolha. Cada um de nós aprende sua linguagem pela observação do comportamento verbal de outras pessoas, assim como, tendo seu próprio comportamento verbal hesitante observado e reforçado ou corrigido por outros. Nós dependemos estritamente do comportamento manifesto em situações observáveis. Enquanto que nosso comando de nossa língua se encaixa em todas as barreiras, em que nosso enunciado ou nossa reação à elocução de alguém possam avaliados em função de alguma situação compartilhada [...]. Nossa vida mental entre barreiras é indiferente à nossa classificação como mestre da língua. Não há nada no significado linguístico, além do que deve ser percebido a partir do comportamento manifesto em circunstâncias observáveis. Por conseguinte, ressalta Quine, que em relação à linguagem não há meio termo, não há escolha em ser ou não behaviorista; seu posicionamento indica que há só um caminho a seguir – ser behaviorista. Além disso, referindo-se à aprendizagem da língua materna, salienta que esta acontece por meio da observação do comportamento verbal de outros; por outro lado, ter o próprio comportamento verbal observado, reforçado ou corrigido pelos outros. De modo geral, behaviorismo é uma atitude; rigorosamente, é uma doutrina, conforme afirma Green.81 Como doutrina é comprometida em seu sentido mais completo e detalhado com a verdade, a saber: III. A psicologia é a ciência do comportamento; não é a ciência da mente. IV. O comportamento pode ser descrito e explicado sem fazer referência aos eventos mentais ou a processos psicológicos internos. As fontes do comportamento são externas (no meio ambiente), não internas (na mente). A partir da teoria do desenvolvimento em psicologia, se, de alguma forma, termos ou conceitos mentais conceitos são desdobrados para descrever ou explicar comportamentos, então ou (a) esses termos ou conceitos devem ser eliminados e substituídos por termos comportamentais, ou (b) eles podem e devem ser traduzidos, ou parafraseados em conceitos comportamentais. Os três posicionamentos a seguir são logicamente distintos. Além disso, tomados de forma independente, cada um constitui um tipo de behaviorismo; (i) behaviorismo ‗metodológico‘; (ii) behaviorismo ‗psicológico‘; (iii) por fim, behaviorismo 81 GREEN, Graham. Behaviorism. http://plato.stanford.edu/ First published Fri May 26, 2000; substantive revision Mon Jul 30, 2007. 59 ‗analítico‘ (também chamado de behaviorismo ‗filosófico‘ ou ‗lógico‘). Isso implica que termos ou conceitos mentais podem e devem ser traduzidos em conceitos comportamentais. É este último enfoque de behaviorismo (iii) que será destacado neste trabalho. Outra nomenclatura é, às vezes, utilizada para classificar o behaviorismo. Georges Rey82, por exemplo, considera o behaviorismo como metodológico, analítico e radical –, radical é o termo cunhado por Rey para o behaviorismo psicológico usado por Green. Este esclarece que reserva o termo radical para o behaviorismo psicológico de B.F.Skinner. Skinner emprega a expressão behaviorismo radical para descrever seu tipo de behaviorismo ou sua filosofia behaviorista.83 O behaviorismo radical de Skinner assume a continuidade entre a psicologia animal e a humana, mas fundamenta-se em noções mais elaboradas que a do comportamento respondente e da psicologia do estímulo resposta. A partir da ideia fundamental contida na Lei do Efeito, formulada por E. L. Thorndike84. Uma das principais inovações conceituais de Skinner está na noção de comportamento operante. Conforme Murcho85, para Skinner, o comportamento operante é emitido pelo organismo, e não produzido ou nele provocado pelo ambiente, e o que modela o comportamento são suas consequências premiadoras e também punitivas. Quando o organismo responde a um estímulo ambiental e as consequências de sua resposta são premiadoras, aumenta a probabilidade de ocorrer respostas similares; e quando as conseqüências de tal resposta são punitivas, diminui tal probabilidade. É, desse modo, que as variáveis ambientais modelam o comportamento dos indivíduos, em um processo de condicionamento operante. Behaviorismo lógico ou analítico é uma teoria pertencente à filosofia que trata do significado ou semântica de temos mentais ou conceitos. Assevera que a própria ideia de um estado mental ou condição é a ideia de uma disposição comportamental ou família de tendências comportamentais. Quando se atribui uma crença, por exemplo, a alguém, não se está afirmando que o sujeito encontre-se em um 82 REY, G. Contemporary Philosophy of Mind: A Contentiously Classical Approach. Oxford: Blackwell, 1997. 83 Ver SKINNER, B. F. About Behaviorism. New York: Vintage, 1974, p. 18. 84 ―Segundo a qual, quando uma resposta do organismo é premiada, aumenta a probabilidade de respostas similares‖. BRANQUINHO, João et al. Enciclopédia de termos lógico-filosóficos. S. Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 116-117. 85 Id. Ibid. p. 117. 60 estado ou condição interna particular. Em vez disso, está se caracterizando a pessoa em temos do que ela poderia fazer em situações particulares ou interações ambientais. O behaviorismo analítico pode ser encontrado, entre outros, no trabalho de Gilbert Ryle86, que apresentava o behaviorismo como a melhor resposta ao mito cartesiano do ‗fantasma na máquina‘, e no segundo Wittgenstein.87 O behaviorismo analítico originou-se do movimento filosófico denominado Positivismo Lógico88. O Positivismo Lógico propõe que o significado de sentenças usadas na ciência seja entendido em termos de condições experimentais ou observações que verificam sua verdade. Essa doutrina é conhecida como verificacionismo. Em psicologia, o verificacionismo sustenta ou fundamenta o behaviorismo analítico, a saber, a afirmação de que os conceitos mentais referem-se a tendências comportamentais e, assim, devem ser traduzidos em termos comportamentais. De acordo com uma versão dessa perspectiva, os significados das sentenças são dados pelos procedimentos usados para descobrir se eles são verdadeiros. Supunha-se que, dessa maneira, fosse possível eliminar significados como entidades ocultas, e colocar a questão em um equilíbrio científico. A ideia fundamental subjacente às teses do behaviorismo lógico é a de que o sentido de uma expressão é dado pelo seu método de verificação. O método de verificação, por sua vez, é constituído pelo conjunto de processos que é necessário levar a efeito para determinar se a expressão em causa é verdadeira ou falsa. Dada a postulação de que esses processos tenham de ter um caráter subjetivo, o behaviorismo lógico considera que o único modo pelo qual é possível determinar se dada expressão que atribui a alguém a ocorrência de estados ou processos mentais é verdadeira ou falsa é a observação do comportamento e dos estados físicos da pessoa em questão. A expressão com conteúdo mental não seria, assim, mais do que uma abreviatura complicada descrição fisiológico-comportamental. 86 Ver RYLE, G. The Concept of Mind. London: Hutchinson, 1949. (The central exposition of analytical behaviorism). 87 Ver WITTGENSTEIN, L. Philosophical Investigations. trans. G. E. M. Anscombe. Oxford: Basil Blackwell, 1953/1968. 88 Ver SMITH, L. Behaviorism and Logical Positivism: A Reassessment of Their Alliance. California: Stanford, 1986. 61 Nesse sentido, enquanto o empirismo tradicional considerava que a relação existente entre um estado ou processo mental M e o comportamento C, que normalmente o acompanha, era empírica; o behaviorismo lógico considera que a única relação que na realidade existe nesse contexto é a relação linguística entre uma expressão mentalista M e uma expressão fisiológico-comportamental. Com efeito, para o empirismo tradicional, a relação entre o comportamento C e o estado mental M consistia em que a ocorrência do fenômeno observável C era considerada um efeito da ocorrência prévia do fenômeno inobservável M, o qual seria, assim, a causa de C. Para o behaviorismo lógico, tal relação causal é simplesmente inexistente: tanto a expressão mental como a expressão fisiológico-comportamental referem o mesmo fenômeno, que é de natureza fisiológico-comportamental. 3.2 Algumas objeções acerca da visão behaviorista Assim como outras doutrinas reducionistas, o behaviorismo não conseguiu oferecer análises úteis, nomeadamente devido ao holismo do mental, isto é, devido ao fato de o modo como uma pessoa se comporta não ser uma função de uma crença ou de um desejo, mas antes de tudo um conjunto ou rede de crenças e de desejos. A modificação operada para dar conta desses aspectos transforma o behaviorismo no seu sucessor moderno mais popular, o funcionalismo.89 Há várias objeções quanto ao behaviorismo lógico. A primeira delas, segundo Braddon-Mitchell90, consiste em que alguns estados mentais poderiam não ter consequências comportamentais. Desse modo, suponha que alguém adore sorvete, mas sinta-se tão envergonhado a respeito disso que resolva nunca comê-lo; e seja bem-sucedido em nunca manifestar de nenhuma forma a dificuldade que isso lhe causa. É possível constatar, nesse momento, um contraexemplo ao behaviorismo. O behaviorista, então, conta com duas opções: (i) afirmar que se esse suposto desejo não tem impacto em absoluto - digamos, em estimular minhas glândulas salivares quando vejo figuras de sorvete cremoso e gelado, e assim por diante –, então, 89 Ver PUTNAM, Hilary. Mind, Language, and Reality,1975; SELLARS,Wilfrid. Empiricism and the Philosophy of Mind, 1956. 90 BRADDON-MITCHELL,David. Analytic Behaviorism. Routledge Encyclopedia. New York: Routledge, 1998. vol 1, p.689-93. 62 na verdade, não tenho tal desejo. (ii) ressaltar que há um caso de resolução de conflito de desejos aqui: o que desejo em geral – para evitar constrangimento – é manifestado no comportamento, e a conexão analítica entre desejos considerados sobre coisas e comportamento é mantida. Uma versão forte para essa objeção envolve estados mentais, cuja expressão é de alguma forma bloqueada. Assim, suponha que alguém possa estar sentindo dor, mas porque pode controlá-la de diversas maneiras, não a expressa. Um cérebro sem corpo poderia ser um caso extremo. Aqui o behaviorista analítico deve recorrer à disposição (disposition) de estar lá, mas estar bloqueado. Disposições são tendências de comportar-se em circunstâncias normais. Outra dificuldade do behaviorismo é explicar a consciência. Não há, até hoje, uma explicação convincente e satisfatória do que seja a ‗natureza‘ da consciência. Behavioristas comprometidos por sua doutrina recusam-se a aprovar estados mentais internos, restando-lhes, então, três alternativas: (i) aceitar estados de consciência, mas afirmar que não são mentais; (ii) refutar que a consciência exista em absoluto; e (iii) identificar consciência com comportamento ou disposição (disposition) comportamental. A segunda alternativa parece prevalecer entre as demais, mesmo assim com dificuldade. A última objeção ao behaviorismo analítico, conforme Braddon-Mitchell,91 consiste em ser ele o ponto de partida para inúmeras abordagens que o substituíram. Uma vez percebido que a análise fornece acesso linguístico indireto a coisas internas desconhecidas – por exemplo, não importa o que está dentro dos corpos das pessoas que as está aniquilando – pode-se aceitar o que é correto a respeito do behaviorismo analítico e, ainda, adotar os estados internos. Apesar de os estados mentais constituírem-se em comportamento ou grupos (clusters) de comportamento, eles podem ser analisados como estados que são tipicamente causados de várias formas, que tipicamente causam grupos de comportamento. Essa abordagem conduz ao funcionalismo, já mencionado. Quine não restringe o termo ‗behaviorismo‘ (grifo do autor) a um esquema psicológico específico de resposta condicionada, apesar de a resposta condicionada 91 Id. ib. p. 692. 63 desempenhar um papel-chave no aprendizado da língua.92 Ele interpreta o termo de forma ampla, não o definindo em termos de resposta condicionada: Quando eu desconsidero a definição de behaviorismo limitado à resposta condicionada, estou simplesmente estendendo o termo para incluir qualquer um? Bem, realmente, penso nisso incluindo todos os homens sensatos. O que importa, da maneira como vejo a questão, é apenas a insistência em expressar todos os critérios em termos de observação. Por termos de observação, quero dizer, termos que são ou podem ser ensinados por ostensão, cuja aplicação em cada caso particular pode, por conseguinte, ser verificado intersubjetivamente. Não sofismando sobre a palavra ‗behaviorismo‘, talvez, o uso corrente se adaptasse melhor referindo a essa orientação à observação, simplesmente, como empirismo; mas empirismo em um sentido distintamente moderno, porque rejeita o mentalismo ingênuo que tipificava o velho empirismo. Ele, na verdade, ainda tolera o recurso à introspecção que Chomsky é favorável, mas, tolera esse recurso como um meio de chegar a conjecturas ou conclusões somente na medida em que eles podem, finalmente, ser entendidos em termos de 93 observação externa. Resta saber, assim, qual o tipo distintamente moderno de empirismo a que Quine alude, Empirismo do tipo moderno, ou behaviorismo amplamente chamado, provém do velho empirismo a partir de uma drástica externalização. O velho empirista olhava o interior sobre suas ideias; o novo empirista olha para o exterior sobre a instituição social da linguagem. Ideias reduzem-se a significados, vistas como acessórios de palavras. Os velhos empiristas voltados para o interior – Hobbes, Gassendi, Locke e seus seguidores – tinham, necessariamente, de formular seus padrões empíricos para referir a ideias; assim o faziam exaltando as impressões dos sentidos e explorando ideias inatas. Quando o empirismo é externalizado, por outro lado, a própria ideia torna-se desacreditada; falar de ideias passa a ser considerado como insatisfatório, exceto na medida em que possa ser parafraseado em termos de disposições de comportamento 94 observável. 92 QUINE, W. V. Linguistics and Philosophy. In: The Ways of Paradox and Other Essays. Rev. and expanded ed. Cambridge: Harvard University Press, 1976, p. 56-8.‘[...] for I see no interest in restricting the term ‘behaviorism’ to a specific psychological schematism of conditioned response. […] Conditioned response does retain a key role in language learning’. p. 57. 93 Id. ib. p.58 ‗When I dismiss a definition of behaviorism that limits it to conditioned response, am I simply extending the term to cover everyone? Well, I do think of it as covering all reasonable men. What matters, as I see it, is just the insistence upon couching all criteria in observation terms. By observation terms I mean terms that are or can be taught by ostension, and whose application in each particular case can therefore be checked inter-subjectively. Not to cavil over the word ‘behaviorism’, perhaps current usage would be best suited by referring to this orientation to observation simply as empiricism; but it is empiricism in a distinctly modern sense, for it rejects the naïve mentalism that typified the old empiricism. It does still condone the recourse to introspection that Chomsky has spoken in favor of, but it condones it as a means of arriving at conjectures or conclusions only insofar as these can eventually be made sense of in terms of external observation’. 94 Id.ib.p.58. ‗Empiricism of this modern sort, or behaviorism broadly so called, comes of the old empiricism by a drastic externalization. The old empiricist looked inward upon his ideas; the new empiricist looks outward upon the social institution of language. Ideas dwindle to meanings, seen as adjuncts of words. The old inner-directed empiricists – Hobbes, Gassendi, Locke and their followers – had perforce to formulate their empiricist standard by reference to ideas; and they did so by exalting sense impressions 64 Ora, para Quine, o novo empirismo é direcionado para o mundo exterior, para ‗a instituição social da linguagem‘, para as disposições de comportamento observável; diferentemente do velho empirismo que se voltava para o interior, exaltando as impressões dos sentidos e explorando ideias inatas. Por conseguinte, vale ressaltar que é este enfoque do novo empirismo que é mostrado neste trabalho. A linguagem em Quine encontra-se embasada nesse contexto social de práticas e estimulações compartilhadas; contrariamente ao velho empirismo que salientava o interior e suas instâncias, a saber, as impressões dos sentidos e a exploração das ideias inatas. No que concerne ao aprendizado da linguagem, é esta norma que permite ao aprendiz estabelecer distinções entre, por exemplo, o que deve nomear cadeira, banco, poltrona ou outro objeto com a mesma função. Esta inferência representa um complexo ultrapassar dos dados objetivos, justificando-se em função de certos acordos derivados de nossas teorias de mundo compartilhadas. Constata-se, assim, que, mesmo na fase aparentemente mais mecânica do aprendizado da linguagem, quando se responde à ação direta de estímulos físicos sobre nossas terminações nervosas, já se percebe uma transcendência do discurso em relação aos dados empíricos95. 3.3 A crítica de Quine aos dogmas analítico-sintético 3.3.1 Divisão entre verdades analíticas e verdades sintéticas Quine observa em seu texto Two Dogmas of Empiricism96 que o empirismo moderno foi influenciado por dois dogmas importantes. Um deles, afirma, é a crença em certa divisão fundamental entre verdades ‘analíticas’, ou fundadas em significados independentemente de questões de fato, e verdades ‘sintéticas’, ou fundadas em fatos. É sobre esta dicotomia que se pretende também discorrer neste capítulo. Para and scouting innate ideas. When empiricism is externalized, on the other hand, the idea itself passes under a cloud; talk of ideas comes to count as unsatisfactory except insofar as it can be paraphrased into terms of dispositions to observable behavior’. 95 VIDAL, Vera. Principia 7 (1-2). Florianópolis, June-December, 2003, p. 205-228. 96 Id. Ibid. p. 20. ‗Modern empiricism has been conditioned en large part by two dogmas. One is a belief in some fundamental cleavage between truths which are ’analytic, or grounded in meanings independently of matters of fact, and truths which are ‘synthetic’, or grounded in fact.’ 65 fundamentar seu argumento, Quine amplia, buscando os primeiros filósofos que discutiram sobre esses conceitos, ou como ele próprio declara, seu pano de fundo (background). Nesse sentido, cita Kant, cuja divisão entre verdades analíticas e sintéticas já se encontravam em Hume e sua distinção entre relações de idéias e questões de fato, e Leibniz com sua distinção entre verdades de razão e verdades de fato. Para Leibniz, as verdades de razão são aquelas que não poderiam, de modo algum, ser falsas. Na acepção de Kant, um enunciado analítico constituía-se naquele que atribuía a seu sujeito nada mais do que já conceitualmente contido no próprio sujeito. Desse modo, aponta Quine duas deficiências nessa formulação: I) limita-se a enunciados do tipo sujeito-predicado; II) vale-se da noção de um estar contido que é deixado em um nível metafórico. Reformula-a, então, da seguinte maneira: um enunciado é analítico quando verdadeiro em virtude de significados e independente de fatos97, passando, em seguida, a examinar o conceito de significado98 pressuposto. Por conseguinte, Quine lembra que significar não deve ser identificado com nomear. Os exemplos de Frege de ‗Estrela Vespertina‘ e ‘Estrela Matutina‘, e o de Russel de ‗Scott‘ e ‗o autor de Waverley‘ mostram que os termos podem nomear a mesma coisa e diferir em significado. No que diz respeito a termos abstratos, a distinção não é menos importante, por exemplo, os termos ‗9‘ e ‗o número dos planetas‘ nomeiam a mesma entidade abstrata, contudo, presume-se que devam ser considerados dessemelhantes em significado, visto que foi necessária a observação astronômica, e não apenas a reflexão para determinar que os dois termos referem-se à mesma coisa. Os exemplos citados dizem respeito a termos singulares concretos e abstratos, no que tange aos termos gerais, ou predicados a situação é de alguma forma diferente, mas paralela, segundo Quine. Além disso, ressalta que enquanto um termo singular pretende nomear uma entidade, abstrata ou concreta, isso não acontece com o 97 98 Id. Ibid. p. 21. [...] a statement is analytic when it is true by virtue of meaning independently of fact. Grifo do autor. 66 termo geral; entretanto, um termo geral é ‘verdadeiro’ de uma entidade, ou de muitas tomadas uma a uma, ou nenhuma.99 Por isso, extensão100 do termo, para Quine, refere-se à classe de todas as entidades das quais um termo geral é verdadeiro. Para distinguir-se entre o significado de um termo e sua extensão, exemplifica com os termos gerais ‗criaturas com coração‘ e ‗criaturas com rins‘ que, segundo ele, talvez, sejam iguais em extensão, todavia diferentes em significado. Confundir o significado com a extensão, nos termos gerais, é menos comum do que a confusão do significado com o nomeado, no caso dos termos singulares. É de fato um lugar-comum na filosofia opor-se intensão (ou significado) a extensão, ou num vocabulário diverso, conotação e denotação, 101 adverte Quine. Nesse contexto, a precursora da noção moderna de significado, na visão de Quine, foi a noção aristotélica de essência. Segundo Aristóteles, era essencial ao homem ser racional, acidental ter duas pernas. Pode-se afirmar que no significado da palavra ‗homem‘ esteja contida a racionalidade, enquanto ter duas pernas não. Ao mesmo tempo, ter duas pernas pode estar contido no significado de ‗bípede‘, enquanto racionalidade não. Conclui ele que, desse modo, do ponto de vista da doutrina do significado, não faz sentido dizer, do indivíduo real, que é, ao mesmo tempo, homem e bípede, que sua racionalidade é essencial e o ter pernas é acidental, ou vice-versa102. Para Aristóteles, as coisas tinham essências, mas apenas as formas linguísticas continham significados, lembra Quine. Assim, o significado é aquilo em que a essência se transforma quando, divorciada do objeto de referência, é vinculada à palavra103. Um questionamento relevante, na visão de Quine, para a teoria do significado é a da natureza de seus objetos. Que tipo de coisa são os significados? Possivelmente, a percepção de que significado e referência são coisas distintas, ao 99 Id. Ibid. p. 21. [...] Whereas a singular term purports to name an entity, abstract or concrete, a general term does not; but a general term is ‘true’ of an entity or of each of many, or of none. 100 Grifo do autor. 101 Id. Ibid. p. 21. [...] is less common than confusion of meaning with naming in the case of singular terms it is indeed a commonplace in philosophy to oppose intension (or meaning) to extension, or in a variant vocabulary, connotation to denotation. 102 Id. Ibid. p. 22. ‗[...] Thus from this point of view of the doctrine of meaning it makes no sense to say of the actual individual, who is at once a man and a biped, that his rationality is essential and his twoleggedness accidental or vice versa.‘ 103 Id. Ibid. p. 22. ‗[...] Meaning is what essence becomes when it is divorced from the object of reference and wedded to the word.‘ 67 separar a teoria do significado da teoria da referência, resultou no reconhecimento de como primeiro objeto da teoria do significado simplesmente a sinonímia das formas linguísticas e a analiticidade dos enunciados; os próprios significados, como obscuras entidades intermediárias, podem ser abandonados. 104 3.3.2 Problema da analiticidade Passa-se, então, ao problema da analiticidade. Os enunciados analíticos dividem-se em duas classes: os logicamente verdadeiros: I. Nenhum homem que não casou (unmarried) é casado. Sua principal característica é que não só é verdadeiro como se apresenta, como também permanece verdadeiro sob toda e qualquer interpretação de ‗homem‘ e ‗casado‘; mesmo supondo um inventário prévio de partículas lógicas compreendendo: ‗nenhum‘, ‗in-‗, ‗não‘, ‗se‘, ‗então‘, ‗e‘, etc. Portanto, geralmente, uma verdade lógica é um enunciado que é verdadeiro e permanece verdadeiro sob todas as reinterpretações de seus outros componentes que não as partículas lógicas105. Observe-se a segunda classe: II. Nenhum solteiro (bachelor) é casado. Caracteriza-se por poder ser transformado em verdade lógica, por meio da substituição dos sinônimos ‗solteiro‘ por ‗homem que não casou‘. Quine admite a falta de uma caracterização apropriada da segunda classe de enunciados analíticos, por isso, baseou-se em uma noção de sinonímia106 que, assim como a analiticidade, necessita elucidação. Nesse sentido, Quine remete a Carnap para explicar a analiticidade, que o último denomina de ‗descrições de estado‘ (state-descriptions), conforme o que segue: Uma descrição de estado é uma atribuição exaustiva qualquer de valores de verdade aos enunciados atômicos ou não compostos da linguagem. Todos os demais enunciados da linguagem são construídos com suas cláusulas 104 Id. Ibid. p. 22. ‗[...] as the primary business of the theory of meaning simply the synonymy of linguistic forms and the analyticity of statements; meaning themselves, as obscure intermediary entities, may well be abandoned.‘ 105 Id. Ibid. p. 22. ‗[…] a logical truth is a statement which is true and remains true under all reinterpretations of its components other than the logical particles.‘ 106 Grifo do autor. 68 componentes por meio de expedientes lógicos familiares, de tal modo que o valor de verdade de qualquer enunciado complexo é fixado para cada descrição de estado por leis lógicas especificáveis. Um enunciado é então explicado como 107 analítico quando resulta verdadeiro sob qualquer descrição de estado . Dessa maneira, Quine aponta que essa explicação é uma adaptação baseada no conceito leibniziano ‗verdadeiro em todos os mundos possíveis‘, servindo somente aos propósitos a que se destina, se os enunciados atômicos da linguagem forem, ao contrário de ‗João é casado‘ e ‗João é solteiro‘ mutuamente independentes. Caso contrário, afirma ele, haveria uma descrição de estado que atribuiria verdade a ‗João é solteiro‘ e ‗João é casado‘, consequentemente, ‗Nenhum solteiro é casado‘ resultaria analítico neste critério proposto. Dessa forma, declara Carnap o critério de analiticidade em termos de descrição de estado serve apenas a linguagens desprovidas de pares de sinônimos extralógicos, tais como ‗solteiro‘ e ‗homem que não casou‘ – pares de sinônimos do tipo dos que dão origem à ‗segunda classe‘ de enunciados analíticos. O critério em termos de descrições de estado é, na melhor das hipóteses, uma reconstrução da verdade lógica, não 108 da analiticidade. Após mostrar os pressupostos de Carnap, Quine afirma que a linguagemmodelo simplificada daquele, assim como suas descrições de estado visa não ao problema geral da analiticidade, mas à clarificação da probabilidade da indução. Ressalta, portanto, que o problema a ser enfrentado refere-se à analiticidade, cuja maior dificuldade encontra-se não na primeira classe de enunciados analíticos, as verdades lógicas, mas na segunda classe, que depende da noção de sinonímia. Ao iniciar a seção sobre definição, Quine reporta-se aos que pensam que os enunciados analíticos de segunda ordem podem se reduzir aos da primeira, as verdades lógicas, por meio de definições109; ‗solteiro‘ é definido como homem que não casou. Então, questiona como se chega a essa conclusão, quem assim o definiu e 107 CARNAP, R. Meaning and Necessity. p 9. (apud QUINE, op. cit. p. 23). ‗[…] A state-description is any exhaustive assignment of truth values to the atomic, or non compound, statements of the language. All other statements are built up of their component clauses by means of the familiar logical devices, in such a way that the truth value of any complex statement is fixed for each state-description by specifiable logical laws. A statement is then explained as analytic when it comes out true under every state description.‘. 108 Id. Ibid. p. 23-4 [...] the criterion of analyticity in terms of state-descriptions serves only for languages devoid of extra-logical synonym-pairs, such as ‘bachelor’ and ‘unmarried man’ – synonym-pairs of the type which give rise to the ‘second class’ of analytic statements. The criterion in terms of state-descriptions is a reconstruction at best of logical truth, not of analyticity. 109 Grifo do autor. 69 quando, se é necessário recorrer ao dicionário e aceitar como lei a formulação do lexicógrafo. Além disso, a definição não é uma atividade exclusiva dos lexicógrafos, filósofos e cientistas utilizam-se de paráfrases para, muitas vezes, ‗definir‘ algum termo obscuro. Para ele, não está claro como se pode afirmar a sinonímia, em que consistem as interconexões necessárias e suficientes para que duas formas linguísticas possam ser, com propriedade, descritas como sinônimas; mas , o que quer que sejam, estas interconexões são ordinariamente baseadas no uso. Definições relatando exemplos selecionados de sinonímia aparecem então como informes sobre o uso 110. Apesar de não saber afirmar exatamente em que consiste a sinonímia, Quine expõe seu pressuposto afirmando que não importa o que ela seja, as interconexões estão baseadas no uso. Conforme aponta, a noção de sinonímia pressuposta deve ser esclarecida, presumivelmente, em termos de comportamento linguístico, isto é, em observações de uso do termo. Quine busca em Carnap um tipo de atividade alternativa que não se sustenta apenas no relato de sinonímias pré-existentes, que é explicação111. Ressalta que na explicação o objetivo não é meramente parafrasear o definiendum em termos de um sinônimo direto, mas de fato aperfeiçoar o definiendum refinando ou suplementando seu significado112. Entretanto, conclui que mesmo a explicação baseia-se em outras sinonímias pré-existentes. Assim, propõe uma questão da seguinte maneira: para cada palavra que merece explicação, existem alguns contextos, os quais, tomados cada um como um todo, são suficientemente claros e precisos para ser úteis;e o propósito da explicação é preservar o uso destes contextos privilegiados, acurando, ao mesmo tempo, o uso de outros contextos. A fim de que uma dada definição seja adequada aos propósitos da explicação, portanto, o que se requer não é que o definiendum em seu uso anterior seja sinônimo do definiens, mas apenas que cada um dos contextos privilegiados do definiendum, tomado como um todo em seu uso antecedente seja sinônimo do 113 contexto correspondente do definiens. 110 Id. Ibid. p. 24–5. [...] what the interconnections may be which are necessary and sufficient in order that two linguistic forms be properly describable as synonymous, is far from clear; but, whatever these interconnections may be, ordinarily are grounded in usage. Definitions reporting selected instances of synonymy come then as reports upon usage. 111 Grifo do autor. 112 Id. Ibid. p. 25. [...] the purpose is not merely to paraphrase the definiendum into an outright synonym, but actually to improve upon the definiendum by refining or supplementing its meaning. 113 Id. Ibid. p. 25 [...] Any word worth explicating has some contexts which, as wholes, are clear and precise enough to be useful; and the purpose of explication is to preserve the usage of these favored contexts while sharpening the usage of other contexts. In order that a given definition is suitable for purposes of explication, therefore, what is required is not that the definiendum in its antecedent usage is 70 Entretanto, podemos encontrar dois definientia de mesma adequação a uma dada tarefa de explicação e ainda assim não se constituírem sinônimos, podendo convergir em contextos privilegiados, e divergir em outros contextos. Uma definição de tipo explicativa, aliada a um dos dois definientia, opera, segundo Quine, por decreto, uma relação de sinonímia entre definiendum e definiens não existente anteriormente. Vale enfatizar que tal definição deve sua função explicativa a sinonímias pré-existentes, conforme abordado. Assim, o conhecimento da linguagem e o conhecimento do mundo não podem ser nitidamente separados, entre os enunciados que podem ser verdadeiros ou falsos em virtude de seu significado – enunciados ‗analíticos‘ tais como: ―um solteiro é um homem que não casou‖ ou ―um coelho é um lagomorfe saltitante com orelhas compridas‖ – e aqueles que são verdadeiros ou falsos em virtude dos fatos empíricos – enunciados sintéticos, tais como: ―Pedro é um solteiro‖, ou ―um coelho acabou de pular por aqui‖. Quine afirma que não se pode classificar asserções claramente em termos do que as fazem verdadeiras, a linguagem ou o mundo. Seu argumento tenta mostrar que não há nenhum julgamento que seja verdadeiro unicamente em razão da linguagem, ou de convenções linguísticas; e não há julgamento algum que seja verdadeiro somente em virtude do mundo empírico, a saber, de fatos experenciados sem a mediação da linguagem. Na perspectiva de Quine, todos os enunciados têm tanto um componente linguístico quanto um empírico; e embora um desses componentes possa predominar sobre o outro, não há possibilidade de o componente linguístico ou o empírico ser nulos, respectivamente. O conhecimento de significado, segundo o filósofo, apresenta um componente empírico inevitável, assim como o conhecimento do mundo conta com um componente linguístico inevitável. Logo, as proposições não podem ser divididas em duas classes separadas: de um lado as analíticas, cuja verdade depende do significado e, do outro, as sintéticas, cuja verdade depende dos fatos. Todo enunciado depende, ao mesmo tempo – embora em diferente medida –, da linguagem e dos fatos. synonymous with the definiens, but just that each of these favored contexts of the definiendum, taken as a whole in its antecedent usage, is synonymous with the corresponding context of the definiens. 71 Não se pode separar componente linguístico e componente factual na verdade de um enunciado, aponta Medina114. Finaliza Medina, salientando que Por um lado, não posso dizer ter aprendido o significado do termo ‗coelho‘ a menos que eu tenha certa crença empírica verdadeira a respeito de coelhos. Por outro lado, eu não posso ter conhecimento algum de coelhos, a não ser que eu tenha ao menos uma compreensão particular do que significa ‗coelho‘. O que ‗coelho‘ significa e o que um ‗coelho‘ é são questões que não podem ser divididas; elas são de fato dois lados da mesma questão. Daí, a interdependência inevitável que existe entre crença e significado: necessitamos estar aptos a identificar o significado expresso por palavras enquanto, ao 115 mesmo tempo, identificamos crenças expressas por asserções. 3.3.3 Em relação ao segundo dogma Na concepção de Stein116 o segundo dogma do movimento empirista seria, segundo Quine, a crença de que é possível reduzir qualquer enunciado de uma linguagem significativa a enunciados sobre experiências sensoriais, a saber, traduzir enunciados altamente teóricos em enunciados que descrevem sensações. Como alternativa a esse empirismo com dogmas, Quine propõe um empirismo moderado, sem dogmas, um empirismo que continua acreditando que o tribunal de qualquer sistema teórico é a experiência, porém que vê esses sistemas se defrontando como um todo com a experiência. Em vista disso, defende Stein117 que não há, segundo Quine, como dividir a totalidade dos enunciados de uma linguagem em enunciados verdadeiros ou falsos devido à experiência (sintéticos a posteriori) e enunciados necessariamente verdadeiros (analíticos a priori). Qualquer enunciado, segundo ele, pode ter que ser revisado, ou seu valor de verdade alterado, devido a fatos empíricos, porém não isoladamente, mas, sim, em conjunto com outros enunciados de uma teoria ou universo linguístico. Diante disso, enfatiza a autora que essa tese leva Quine a concluir que inclusive os enunciados da lógica poderiam, não sem certa resistência, por serem 114 MEDINA, José. Linguagem: conceitos-chave em Filosofia. Porto Alegre: Artmed, 2007, p.79. 115 Id. Ibid. p. 79. 116 STEIN, Sofia I. A. Empirismo e fisicalismo: características do holismo epistemológico de Willard Quine. Philósophos 8 (1): 69-78, jan./jun. 2003. 117 Id. Ibid. 72 enunciados muito teóricos e, em geral, pressupostos pela maioria dos outros enunciados de sistemas teóricos dos quais participam, ser revisados em seu valor de verdade devido a motivos empíricos. Apenas enunciados por ele chamados de observacionais poderiam ser determinados verdadeiros ou falsos isoladamente. Podemos perceber, segundo alguns críticos, essa ressalva de Quine como um resquício da crença empirista de que há enunciados sobre experiências sensoriais cuja verdade ou falsidade é mais fácil de determinar e menos dubitável que a de outros enunciados. Essa tese de Quine de que os universos linguísticos enfrentam o tribunal da experiência como um todo é chamada por Hilary Putnam de holismo do significado. Quine salienta que ao repudiar a fronteira entre o analítico e o sintético esposa um pragmatismo mais completo. Dessa maneira, aponta ele que a cada homem é dada uma herança científica mais uma barragem contínua de estimulação sensorial; e as considerações que o guiam na urdidura de sua herança científica para ajustar suas contínuas incitações sensoriais são, 118 quando racionais, pragmáticas. Nesse contexto, Quine corrobora seu pensamento acerca do pragmatismo que sustenta que ao homem é dado estímulos sensoriais por meio dos quais mantém contato com o mundo como um todo. Com efeito, a herança científica presente nesses ajustes das contínuas incitações sensoriais, confirmando-se racionais, é, portanto, pragmática. 3.4 A relevância do holismo Our statements about external world face the tribunal of sense experience not individually but only as a corporate body. (FLPV, P.41) 3.4.1 A tese Duhem-Quine O trabalho de Duhem tornou-se importante para os membros do Círculo de Viena, incluindo Otto Neurath e Philipp Frank, assim como Ernst Mach. Apesar de 118 QUINE, W.O. From a Logical Point of View. ‗Each man is given a scientific heritage plus a continuing barrage of sensory stimulation; and the considerations which guide him in warping his scientific heritage to fit his continuing sensory promptings are, when rational, pragmatic’ 1953, p. 46. 73 suas crenças conservadoras, seu trabalho também foi acolhido pelos participantes da cena política vienense, tais como Friedrich Adler, que traduziu La théorie physique para o alemão em 1908. A tese de Duhem surgiu de maneira ampla na filosofia angloamericana, nos anos 50, a partir do trabalho de Quine. No livro The Aim and Structure of Physical Theory119, Duhem formulou vários problemas de subdeterminação científica de maneira compreensível e convincente, embora ele próprio tenha argumentado que esses problemas representavam desafios sérios para nossos esforços em confirmar teorias em física. Na metade do século XX, Quine sugeriu que tais desafios aplicavamse não somente à confirmação de todos os tipos de teorias científicas, mas a qualquer tipo de conhecimento. Desse modo, sua incorporação e maior desenvolvimento desses, problemas, como parte de uma explicação geral do conhecimento humano, foi um dos mais significantes desenvolvimentos da epistemologia do século XX. Mas nem Duhem tampouco Quine tiveram o cuidado distinguir sistematicamente muitas das linhas fundamentalmente distintas de pensar acerca da subdeterminação que pode ser discernidos em seus trabalhos. Talvez a mais importante seja a divisão entre o que poderíamos denominar de formas holistas e formas contrastivas de subdeterminação. Nesse contexto, o segundo dogma em ‗Two Dogmas of Empiricism’, para Quine, é o reducionismo, cuja crença reside em que ‗todo enunciado significativo é equivalente a algum construto lógico sobre termos que se referem à experiência imediata‘120. Quine argumenta que o reducionismo é um dogma mal fundamentado, afirmando que embora o reducionismo tenha deixado de aparecer nas ideias dos empiristas, permanece uma forma mais sutil de reducionismo que afirma que cada enunciado tomado de maneira isolada pode admitir confirmação ou refutação. Nesse contexto, a tese Duhem-Quine consiste em que a unidade de confirmação empírica de uma teoria não é o enunciado isolado, mas a teoria em sua totalidade. 119 DUHEM, P. The Aim and Structure of Physical Theory, trans. from 2nd ed. by P. W. Wiener; originally published as La Théorie Physique: Son Objet et sa Structure (Paris: Marcel Riviera & Cie.), Princeton, NJ: Princeton University Press, 1914. 120 QUINE, W. From a Logical Point of View. ( ‗[…] The other dogma is reductionism: the belief that each meaningful statement is equivalent to some logical construct upon terms which refer to immediate experience.’ 1953, p. 20. 74 Na concepção de Ariew121, Quine posiciona-se contra este dogma sugerindo que ‗nossos enunciados sobre o mundo exterior enfrentam o tribunal da experiência sensível não individualmente, mas apenas como corpo organizado‘ 122, indicando, no texto em nota de rodapé, que essa doutrina foi fundamentada em Duhem. Quine prossegue detalhando um ‗empirismo sem dogmas‘, no qual o conhecimento pode ser comparado a um campo de força em que ‗um conflito com a experiência, na periferia, ocasiona reajustes no interior do campo‘123, e ‗qualquer enunciado pode ser considerado verdadeiro aconteça o que acontecer, se realizarmos ajustes suficientemente drásticos em outra parte do sistema‘.124 Sendo assim, não é verdade que o significado de um enunciado seja sua verificação empírica, dada isoladamente de outros enunciados, como se cada enunciado isolado tivesse necessidade de uma confirmação empírica individual. Pelo contrário, todo enunciado de uma teoria científica depende estritamente dos enunciados da mesma teoria. Desse modo, uma teoria científica não é um mero conjunto de enunciados verdadeiros, mas um conjunto de enunciados verdadeiros que se sustentam entre si. Nesse sentido, uma teoria é como um campo de forças no qual tudo se liga de maneira sistemática. Portanto, apenas a periferia está conectada diretamente ao mundo da experiência (com enunciados sujeitos à observação), enquanto o núcleo da teoria é composto por enunciados teóricos. É óbvio para Quine, que a verdade depende tanto da linguagem como dos fatos, no entanto, dessa obviedade não deve descender a existência de dois distintos componentes – factual e linguístico – tais que alguns enunciados sejam verdadeiros em virtude de um componente, e outros em virtude do outro. A distinção é questão de graus, e de maior ou menor propensão a abandonar o que se considere verdadeiro. Em virtude da referência de Quine a Duhem, a tese, formada de duas subteses, a saber: (i) visto que enunciados empíricos são interconectados, não podem 121 ARIEW, Roger. http//:plato.stanford.edu. QUINE, W. From a Logical Point of View. ‗[…] our statements about the external world face the tribunal of sense experience not individually but only as a corporate body.’ 1953, p. 41. 123 Id.Ibid. p. 42. ‗A conflict with experience at the periphery occasions readjustments in the interior of the field.’ 124 Id. Ibid. p. 43. ‗Any statement can be held true come what may, if we make drastic enough adjustments elsewhere in the system.‘ 122 75 ser simplesmente refutados; e (ii) se quisermos considerar um enunciado particular verdadeiro, podemos sempre ajustar outro enunciado; tornou-se conhecida como a tese Duhem-Quine. Quine atribui somente subtese (i) a Duhem; o último teria reconhecido subtese (i) como de sua autoria, mas não concordou plenamente com a formulada por Quine. Duhem não afirma que quando há algum conflito com a experiência, podemos sempre fazer ajustes em algum lugar no sistema. Sua afirmação é mais fraca, também limitada de outras formas, mas que poderia ser equivalente a: quando há algum conflito com a experiência, o que é refutado, é, necessariamente, ambíguo. A formulação de Duhem para sua tese de não falseabilidade consiste em: ‗se o fenômeno previsto não é produzido não só é colocada em dúvida a proposição questionada, mas também todo o arcabouço teórico usado pelo físico‘.125 Além disso, Duhem não leva em consideração o segundo passo de Quine que aponta que qualquer enunciado pode ser considerado verdadeiro aconteça o que acontecer, no entanto, afirma ―a única coisa que o experimento nos ensina é que, entre todas as proposições usadas para predizer o fenômeno e verificar que não foi produzido, há pelo menos um erro; mas onde o erro se encontra o experimento não nos diz‖ 126 . Nesse contexto, ele se refere a dois modos possíveis de proceder quando um experimento contradiz as consequências de uma teoria: (i) um cientista tímido pode desejar salvaguardar certas hipóteses fundamentais e tentar complicar o assunto, invocando vários casos de erro e multiplicando as correções; enquanto que um cientista mais audacioso pode resolver mudar algumas das suposições essenciais, sustentando todo o sistema. Desse modo, o cientista não tem garantia de sucesso: ―Se ambos são bem-sucedidos em satisfazer os requerimentos do experimento, a cada um é logicamente permitido declarar-se contente com o trabalho que realizou‖.127 125 DUHEM, Pierre. The Aim and Structure of Physical Theory. ‗[...] if the predicted phenomenon is not produced, not only is the questioned proposition put into doubt, but also the whole theoretical scaffolding used by the physicist’ . 1914, 281; 1954, 185. 126 Op. cit. ‗[…] the only thing the experiment teaches us is that, among all the propositions used to predict the phenomenon and to verify that it has not been produced, there is at least one error; but where the error lies is just what the experiment does not tell us’ (1914, 281; 1954, 185). 127 Op. cit. ‘If they both succeed in satisfying the requirements of the experiment, each is logically permitted to declare himself content with the work he has accomplished’ .1914, 330; 1954, 217. 76 Por conseguinte, Duhem não argumenta diretamente pela tese da não falseabilidade; ele parece considerá-la como um corolário óbvio de outra tese, que poderia ser chamada de tese da não separabilidade, que aponta que o físico nunca submeter uma hipótese isolada a um teste experimental: ‗procurar separar cada uma das hipóteses da teoria física de outras suposições sobre as quais esta ciência se embasa, a fim de mantê-la em isolamento para o controle da observação, é perseguir uma quimera‘.128 A tese de Duhem geralmente aparece no contexto da sua crítica ao método indutivo (também chamado de método newtoniano), que rejeita qualquer hipótese acerca de corpos imperceptíveis e movimentos ocultos, e admite somente leis gerais conhecidas por indução da observação. Duhem acusa esse método de ser incontrolável; ele afirma que uma ciência pode somente seguir o método newtoniano quando seus meios de conhecer são aqueles do senso comum: ‗Quando a ciência não mais observa os fatos diretamente, mas os substitui por suas medidas, fornecidas por instrumentos, de magnitudes que a teoria matemática por si só define, a indução não pode mais ser praticada na maneira que requer o método newtoniano.‘129 Portanto, Duhem claramente indica que algumas ciências podem usar o método newtoniano, assim como derivar seus princípios por indução da observação e refutá-los como testes de justificação. Desse modo, o que Duhem pensa que há de errado com o indutivismo é que não pode ser usado por todas as ciências. Para ele, a tese da não falseabilidade é uma consequência da tese da não separabilidade que, por sua vez, é uma tese empírica que depende de fatores que não governam todas as ciências. Para não abandonar certas verdades da teoria, um enunciado que se configurasse como falso poderia ser salvo modificando outros enunciados da mesma teoria, ou revendo certos pressupostos não claros. Isso aconteceu – como observou 128 Op. cit. ‗To seek to separate each of the hypotheses of theoretical physics from the other assumptions upon which this science rests, in order to subject it in isolation to the control of observation, is to pursue a chimera’ (1914, 303; 1954, 199-200). 129 DUHEM, P. Liste des Publications de P. Duhem and Notice sur les travaux scientifiques de Duhem. Mémoires de la Société des Sciences Physiques et Naturelles de Bordeaux. 7: 41–169. English translation of Parts 2 and 3 of Notice in Duhem, 1996. ‘When science no longer observes facts directly but substitutes for them measurements, given by instruments, of magnitudes that mathematical theory alone defines, induction can no longer be practiced in the manner that the Newtonian method requires’ (1917, 153; 1996, 234). 77 Duhem – com a teoria newtoniana, quando se constatou que a órbita de Plutão não era totalmente elíptica. Essa observação deveria ter desmentido a teoria, entretanto, aconteceu o contrário, ensejou uma nova descoberta – a presença de Netuno, que provocava um desvio da órbita de Plutão, assim, a descoberta permitiu que a teoria se tornasse mais coerente. Em vista disso, podemos aduzir que aquilo que vale para uma teoria não vale para uma linguagem, que é apenas um componente de uma teoria científica. Por outro lado, podemos também sustentar que uma linguagem natural é um modo de estruturar o mundo e contém em si uma teoria implícita. Portanto, a tese de Quine a propósito das teorias científicas pode ser estendida, como ele também o fará, à linguagem em geral. Se não é possível separar o conhecimento baseado na linguagem das crenças empíricas sobre o mundo, é, no fim das contas, necessário aceitar o fato de que não apenas nosso conhecimento, mas também o significado de nossos enunciados é dado por uma rede de crenças, na qual informações linguísticas conceituais e dados empíricos ou factuais estão inseparavelmente ligados. Ainda que uma linguagem possa produzir enunciados verdadeiros e falsos (e contribuir para formar teorias, a saber, conjuntos de enunciados verdadeiros); não se poderão mais distinguir em uma linguagem os enunciados constitutivos do significado (‗os solteiros são adultos não casados‘) e os enunciados que não são tais (‗os solteiros são pessoas disponíveis‘) ou (‗há três solteiros no meu palácio‘). Com efeito, é fácil abandonar o enunciado ‗há três solteiros no meu palácio‘, caso sejamos informados sobre o matrimônio deles, enquanto é difícil abandonar o enunciado ‗os solteiros são adultos não casados‘. Assim, é importante ressaltar que o holismo semântico é uma tese segundo a qual o sentido de uma expressão depende da totalidade ou de uma parte significativa da linguagem a que pertence. Ademais, convém lembrar que a unidade de confirmação empírica de uma teoria não é o enunciado isolado, mas uma teoria em sua totalidade, também chamada de tese Duhem-Quine. Logo, percebe-se que Quine aponta para a relevância do todo, da rede de significados ou crenças no que concerne a sua teoria acerca da linguagem natural. 78 3.5 Percepção do compromisso ontológico na teoria da linguagem Existence is what existential quantification expresses. (OR, p.97) To be is to be the valuable of a variable. (FLPV, p.15) No sentido quineano do termo, uma teoria acerca de determinado segmento da realidade ou da experiência consiste em uma coleção consistente de crenças ou afirmações, expressas em determinada linguagem, a respeito desse segmento. Essa teoria será verdadeira se todas as crenças que a compõem, e, logo, todas as consequências lógicas dessas crenças, forem verdadeiras. Os objetos com os quais uma teoria está ontologicamente comprometida são precisamente aqueles cuja existência é assumida, de forma explícita ou implícita, pela teoria; tais objetos formam a ontologia – ou ainda, uma das ontologias – da teoria: um conjunto de entidades cuja existência teria como consequência a falsidade da teoria.130 Uma das propostas de Quine consiste em um processo para determinar com que objetos, ou com que classes ou categorias de objetos, esta dada teoria é ontologicamente comprometida. Note-se que o processo não nos permite determinar o que há, ou o que existe, simpliciter. Não nos permite determinar, por exemplo, se há ou não entidades supostamente controversas, talvez em virtude de serem abstratas, como: números, classes, propriedades ou proposições. O processo é relativo a uma teoria: apenas nos permite verificar o que há, ou o que existe, para dada teoria. Uma questão importante e substantiva é a de determinar com que objetos, e com que categorias de objetos, está ontologicamente comprometido o nosso sistema de crenças, a nossa melhor teoria total da experiência. Como resultado, a essência desse processo é captada pelo famoso slogan: ‗Ser é ser o valor de uma variável ligada‘, mencionada na epígrafe. Sua aplicação a uma teoria pressupõe, assim, de modo crucial, que a teoria – ou a linguagem na qual ela está expressa – esteja logicamente regimentada; e essa exigência de regimentação é, grosso modo, a de que as frases ou afirmações da teoria sejam de alguma maneira parafraseáveis (ou traduzíveis) naquilo que Quine considera 130 BRANQUINHO, João. Compromisso Ontológico. In: Enciclopédia de Termos Lógicos – Filosóficos. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 153. 79 ser uma notação canônica, isto é, uma notação adequada para acomodar qualquer disciplina cientificamente respeitável: a linguagem formal da lógica de primeira ordem. Com efeito, o processo sugerido por Quine, conhecido como critério de compromisso ontológico (CO), é basicamente o seguinte: uma teoria (regimentada) T está ontologicamente comprometida com determinado objeto o, respectivamente com objetos de determinada categoria C, se, e somente se, uma condição necessária para T ser verdadeira é que o objeto o, respectivamente pelo menos um objeto da categoria C, esteja entre os valores das variáveis quantificadas de T. Dito de outro modo, T seria uma teoria falsa se o objeto o não existisse, a saber, se não fosse o valor de uma variável ligada da teoria; ou se a categoria C fosse vazia, ou seja, se nenhum dos membros de C fosse o valor de uma variável ligada da teoria. Dessa maneira, afirma Quine: ‗uma teoria está comprometida com aquelas e apenas com aquelas entidades a que as variáveis ligadas da teoria devem ser capazes de se referir a fim de que as afirmações feitas na teoria sejam verdadeiras‘.131 Por conseguinte, uma teoria pode estar associada a um par de ontologias mutuamente exclusivas, como se pode perceber a partir de um exemplo de Quine: Podemos dizer, por exemplo, que alguns cães são brancos e nem por isso nos comprometemos a reconhecer ou a canidade ou a brancura como entidades. 132 ‗Alguns cães são brancos‘ diz que algumas coisas que são cães são brancas; e, a fim de que esse enunciado seja verdadeiro, as coisas que a variável ‗algo‘ abrange devem incluir alguns cães brancos, mas não precisam incluir a canidade ou a brancura. Porquanto, se uma teoria contém, ou implica logicamente, uma afirmação da forma E (quantificador existencial) x Cão x, e logo que está ontologicamente comprometida com cães. Conforme explica Branquinho133, ‗um universo que (entre outras coisas) inclua vira-latas e exclua pastores alemães é tanto uma ontologia dessa teoria quanto o é um universo que (entre outras coisas) inclua pastores alemães e exclua vira-latas‘. 131 QUINE, W. O. On What There Is. ‗A theory is committed to those and only those entities to which the bound variables of the theory must be capable of referring in order that the affirmation made in the theory be true’. p. 13. 132 Id. ibid. p.13. ‗ We may say, for example, that some dogs are white and not thereby commit ourselves to recognizing either doghood or whiteness as entities. ‘Some dogs are white’ says that some things that are dogs are white; and, in order that this statement be true, the things over which the bound variable ‘something’ ranges must include some white dogs, but need not include doghood or whiteness’. 133 BRANQUINHO, João. Compromisso Ontológico. In: Enciclopédia de Termos Lógicos – Filosóficos. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 153. 80 ‘A única maneira de nos envolvermos em compromissos ontológicos é pelo uso de variáveis ligadas‘, enfatiza Quine.134 Além disso, esclarece que Tudo quanto dizemos com o auxílio de nomes, pode ser dito numa linguagem que os dispense totalmente. Ser assumido como entidade é, pura e simplesmente, ser reconhecido como o valor de uma variável. Em termos das categorias da gramática tradicional, isso equivale aproximadamente a dizer que ser é estar no domínio de referência de um pronome. Pronomes são os meios básicos de referência: os substantivos, melhor seria chamá-los de 135 propronomes. (grifo nosso). Assim, consideramos as variáveis ligadas, não para descobrir o que há, mas para definir com clareza o que certa teoria afirma que existe. Por conseguinte, para uma teoria ontológica existe tudo aquilo sobre o que estamos dispostos a quantificar ou, segundo Quine, ‗ser é ser o valor de uma variável ligada‘.136 Ressalta, ainda, que atentamos a variáveis ligadas relacionadas à ontologia não a fim de saber o que há, mas para saber o que uma dada afirmação ou doutrina, nossa ou de outrem, diz que há; enquanto tal, esse é propriamente um problema que diz 137 respeito à linguagem. Mas o que há, é outra questão. Essa frase de efeito de Quine não resolve as controvérsias ontológicas, entretanto, é um auxílio inegável para o esclarecimento da discussão. Nesse sentido, as controvérsias ontológicas tenderão, assim, a ser traduzidas em controvérsias linguísticas. Desse modo, aceitar uma ontologia significa aceitar um esquema conceitual, uma teoria implícita, um modo de falar, conforme se pode perceber do discurso de Quine. Como resultado, nosso modo de falar cotidiano normalmente quantifica sobre objetos de dimensões médias que estão ao nosso redor. Para esclarecer os desacordos ontológicos devemos esclarecer os desacordos de esquemas conceituais ou teorias implícitas que usamos. Quine define esse processo como ‗controvérsia 134 Id. ibid. p. 12. ‗But this is, essentially, the only way we can involve ourselves in ontological commitments: by our use of bound variables.‘ 135 Id. Ibid. p. 13. ‗Whatever we say with the help of names can be said in a language which shuns names altogether. To be assumed as an entity is, purely and simply, to be reckoned as the value of a variable. In terms of the categories of traditional grammar, this amounts roughly to saying that to be is to be in the range of reference of a pronoun. Pronouns are the basic media of reference; nouns might better have been named propronouns.’ 136 Id. Ibid. p. 15. ‗To be is to be the value of bound variables.‘ 137 Id. Ibid. p.16. ‗We look to bound variables in connection with ontology not in order to know what there is, but in order to know what a given remark or doctrine, ours or someone else’s says there is; and this much is quite properly a problem involving language. But what there is, is another question.‘ 81 semântica‘138, assim, a discussão sobre o que são os objetos transforma-se em uma discussão sobre o modo como falamos de objetos. Isso não quer dizer que a ontologia seja mera questão de palavras, nem que o problema semântico seja apenas um problema linguístico, mas, simplesmente, que se pode auxiliar a discussão ontológica mediante o esclarecimento das várias teorias implícitas usadas ao discutir sobre o que existe, ou esclarecendo a forma lógica dos enunciados com que nos propomos a descrever o mundo ou a falar sobre objetos. Com base nisso, percebemos a relevância da ontologia para entender-se a linguagem em Quine, a saber, a compatibilidade e consistência que deve haver a respeito das teorias e esquemas conceituais que usamos ao falar sobre o que são os objetos. 3.6 Características da epistemologia naturalizada em Quine I am a physical object sitting in a physical world. Some of the forces of this physical world impinge on my surface. Light rays strike my retinas; molecules bombard my eardrums and fingertips. I strike back, emanating concentric air waves. These waves take the form of a torrent of discourse about tables, people, molecules, light rays, retinas, air waves, prime numbers, infinite classes, joy and sorrow, good and evil. 139 (SLC, p.228) Ressalto que a teoria do conhecimento de Quine é importante nesta investigação a fim de se possa melhor entender como Quine apresenta a proposta de um método filosófico para a epistemologia que podemos chamar, seguindo a terminologia usada por Roger Gibson140, comentador de Quine, de naturalistabehaviorista. A teoria do conhecimento, segundo Quine, não deve pretender fundar as 138 Id. Ibid. p. 16. ‗In so far as our basic controversy over ontology can be translated upward into a semantical controversy about words and what to do with them […].‘ 139 QUINE, W. O. The Scope and Language of Science. In: The Ways of Paradox and Other Essays. 7 ed. Cambridge: Harvard University Press, 1997. ‗Eu sou um objeto físico situado num mundo físico. Algumas das forças deste mundo físico atuam em minha superfície. Raios luminosos atingem minhas retinas: moléculas bombardeiam meus ouvidos e pontas dos dedos. Eu revido, emanando ondas de ar concêntricas. Essas ondas tomam a forma de uma torrente de discurso sobre mesas, pessoas, moléculas, raios luminosos, retinas, ondas de ar, números primos, classes infinitas, alegria e tristeza, bem e mal‘. 140 GIBSON, JR. Roger F. The Philosophy of W. V. Quine: an expository essay. Tampa: University of South Florida, 1982, p. 63. 82 outras ciências, logo, não deve pretender ser a ciência primeira. A teoria do conhecimento deve contentar-se, com o auxílio de ciências empíricas como a psicologia empírica (behaviorista), em tentar explicar como o homem conhece, ou, dito de outra maneira, como o homem estrutura linguisticamente e transmite conhecimentos, conforme assevera Stein141. Com efeito, Quine referiu-se desse modo à sua teoria do conhecimento: Vemos, então, uma estratégia para investigar a relação de suporte evidencial, entre a observação e teoria científica. Podemos adotar uma abordagem genética, estudando como a linguagem teórica é aprendida. Porque a relação evidencial é praticamente decretada, ao que parece, na aprendizagem. Essa estratégia genética é atraente porque o aprendizado da língua acontece no mundo e está aberto ao estudo científico. É uma estratégia para o estudo científico do método científico e evidência. Temos aqui uma boa razão para 142 considerar a teoria da linguagem como vital para a teoria do conhecimento . Retomemos a última frase da citação de Quine, ‗temos aqui uma boa razão para considerar a teoria da linguagem como vital para a teoria do conhecimento‘, daí a razão por que essa proposta quineana é trazida para esta investigação; a saber, tentar explicar como o homem estrutura linguisticamente e transmite conhecimentos, como corrobora Stein. Em vista disso, a epistemologia naturalizada em Quine teve como projeto estudar os processos reais de formação do conhecimento dos seres humanos, sem ter a aspiração de certificar a racionalidade desses processos, sua resistência ao ceticismo ou sua adequação para produzir a verdade. Nesse sentido, combina-se com a psicologia da aprendizagem e com o estudo dos episódios de história da ciência. Nessa tese, diminui-se o alcance do tipo de reflexão ‗externa‘ ou filosófica, que pode resultar no ceticismo ou na sua refutação. O problema do conhecimento do mundo externo é posto tradicionalmente da seguinte maneira: como alguém, com estados mentais particulares, consegue ter 141 142 ghiraldelli.files.wordpress.com/2008/07/sofia_quine. pdf - Similares, acesso em 19/06/2011. QUINE, W. O. The Nature of Natural Knowledge. In: Mind and Language, edited by Samuel Guttenpaln. Oxford: Clarendon Press. ‗ We see, then, a strategy for investigating the relation of evidential support, between observation and scientific theory. We can adopt a genetic approach, studying how theoretical language is learned. For the evidential relation is virtually enacted, it would seem, in the learning. This genetic strategy is attractive because the learning of language goes on in the world and is open to scientific study. It is a strategy for the scientific study of scientific method and evidence. We have here a good reason to regard the theory of language as vital to the theory of knowledge.‘ 1975, pp. 67 – 81. 83 conhecimento do mundo externo. Em sua formulação tradicional o problema coloca-se em como, começando com a ‗experiência‘ na forma de impressões imediatamente dadas ou dados dos sentidos (sense-data) justificamos nossas pretensões de conhecer objetos como mesas, cadeiras ou moléculas. A posição estratégica (vantage point) era que de uma filosofia primeira, pretendida como fornecendo uma base de certeza para as ciências por permanecer fora delas, legitimasse suas realizações. Quine rejeita essa formulação. Sua epistemologia naturalizada restabelece o problema de como aprendemos a falar sobre ou referir a objetos (comuns ou científicos). Surgem a partir daí, questionamentos tais como: quais são as condições que conduzem à referência? Como o discurso científico é possível? Quine, conforme epígrafe, aponta a resposta de forma naturalista. O homem é um objeto físico situado em um mundo físico em constante interação. O que há pode ser conhecido, sem que se tenha a aspiração de certificar a racionalidade desses processos, sua resistência ao ceticismo ou sua adequação para produzir a verdade. A epistemologia naturalizada tem, assim, de combinar-se com a psicologia da aprendizagem e com o estudo dos episódios de história da ciência. Nesse projeto, diminui-se o alcance daquele tipo de reflexão ‗externa‘ ou filosófica, que pode resultar no ceticismo ou na sua refutação. 3.6.1 O espírito científico da epistemologia naturalizada A epistemologia naturalizada é conduzida segundo um espírito científico, sendo o objeto da investigação a relação existente nos seres humanos entre os dados de entrada (inputs) da experiência e os dados de saída (outputs) da crença. Quine conclui que o esforço tradicional para responder ao ceticismo fracassou e recomenda o que, na superfície, parece ser o abandono total da epistemologia. Aparentemente pensa que o fracasso desse tipo de fundacionalismo mostra que a epistemologia é impossível. Ele argumenta que a epistemologia deveria ser agregada à psicologia. A estimulação dos receptores sensoriais constituiu, em última análise, toda a evidência que cada um poderá basear-se para chegar à sua imagem do mundo. 84 Por que não ver simplesmente como essa construção realmente se processa? 143 Por que não ficar com a psicologia? Quine, ainda, parece recomendar o abandono do esforço de mostrar que nós, de fato, temos conhecimento, e, ao invés disso, estudar as maneiras pelas quais formamos crenças. Sua proposta consiste no estudo dos processos psicológicos que nos conduzem das estimulações sensórias a crenças sobre o mundo. Essa ideia está formulada da seguinte maneira: A epistemologia, ou algo que a ela se assemelhe, encontra seu lugar simplesmente como um capítulo da psicologia e, portanto, da ciência natural. Ela estuda um fenômeno natural, a saber, um sujeito humano físico. Concedese que esse sujeito humano recebe certa entrada experimentalmente controlada – certos padrões de irradiação em variadas frequências, por exemplo – e no devido tempo o sujeito fornece como saída uma descrição do mundo externo e tridimensional e sua história. A relação entre a magra entrada e a saída torrencial é a relação que nos sentimos estimulados a estudar tanto pelas mesmas razões que sempre serviram de estímulo para a epistemologia; ou seja, a fim de ver como a evidência relaciona-se à teoria e de quais maneiras as nossas teorias da natureza transcendem qualquer evidência disponível [...] Mas uma visível diferença entre a antiga epistemologia e o empreendimento epistemológico dentro desse novo quadro psicológico é que 144 agora podemos usar livremente a psicologia empírica. Como enfatiza Kim145, há outra diferença visível entre a epistemologia tradicional e a apregoada por Quine, a saber, elas debruçam-se sobre tópicos marcadamente diversos. A antiga epistemologia estava interessada em questões sobre racionalidade, justificação e conhecimento. As questões centrais a respeito de se uma relação de sustentação epistêmica – uma relação justificada – sustenta-se entre nossa evidência básica e nossas crenças sobre o mundo. Análises de alguns dos argumentos 143 QUINE, W. O. Ontological Relativity & Other Essays. New York: Columbia University Press, 1969, p.75. ‗The stimulation of his sensory receptors is all the evidence anybody has had to go on, ultimately, in arriving at his picture of the world. Why not just see how this construction really proceeds? Why not settle for psychology?’ 144 Id. ibid. p.82-3. ‗Epistemology, or something like it, simply falls into place as a chapter of psychology and hence of natural science. It studies a natural phenomenon, viz., a physical human subject. This human subject is accorded a certain experimentally controlled input – certain patterns of irradiation in assorted frequencies, for instance – and in the fullness of time the subject delivers as output a description of the three-dimensional external world and its history. The relation between the meager input and the torrential output is a relation that we are prompted to study for somewhat the same reasons that always prompted epistemology: namely, in order to see how evidence relates to theory, and in what ways one's theory of nature transcends any available evidence [...] But a conspicuous difference between old epistemology and the epistemological enterprise in this new psychological setting is that we can now make free use of empirical psychology.’ 145 nd KIM, Jaegwon. What is Naturalized Epistemology? In: Philosophical Perspectives, 2 ed. by James E. Tomberlin, Asascadero, CA: Ridgeview Publishing Co, 1988, p. 381- 406. 85 para o ceticismo revelam que eles dependem do critério que nossa evidência sustenta nossas crenças somente se nossas crenças são deduzidas daquela evidência. Muitos epistemologistas são, assim, atraídos a investigar outras explicações consoantes à relação de sustentação epistêmica, elas permitem a possibilidade de que nossas crenças sobre o mundo sejam bem sustentadas pela nossa evidência sensória, mesmo que não sejam rigorosamente derivadas daquela evidência. Quine, segundo Kim, propôs ignorar essas questões sobre sustentação epistêmica, e, em vez disso, investigar as conexões causais entre nossa evidência sensorial e nossas crenças sobre o mundo. Portanto, conforme a recomendação quineana, estudaremos no mesmo relata – nossa evidência básica e nossas crenças sobre o mundo; e uma possível relação diferente. No caso original, buscamos ver se há uma relação de sustentação epistêmica entre os dados e as crenças. Na nova perspectiva, buscamos ver a natureza da conexão causal entre eles. Conforme Feldman146, a perspectiva quineana de que deveríamos abandonar a epistemologia pela psicologia não é amplamente aceita pelos naturalistas contemporâneos em epistemologia147; mesmo o posicionamento de Quine em seus últimos trabalhos, já estava mais moderado148. Talvez isso aconteça em razão de que as questões sobre a qualidade de nossas razões para nossas crenças sobre o mundo atinjam mesmo os naturalistas, questões que merecem investigação e análise. Ainda, aponta Feldman, talvez seja porque novas teorias sobre a natureza do conhecimento e justificação sustentem que essas questões exijam o uso de processos e métodos que de maneira confiável conduzam à verdade em vez de reconhecidamente boas razões. O filósofo questiona se, de fato, são usados tais processos e métodos; de qualquer modo, afirma que o naturalismo substituto (Replacement Naturalism) de Quine, atualmente, encontra poucos apoiadores, dentre eles, aponta Kornblith.149 Percebemos, pela própria defesa de Quine, no que diz respeito à teoria do conhecimento, a relevância que há em buscar mostrar neste estudo que a teoria da 146 FELDMAN, R. Naturalized Epistemology. Stanford Encyclopedia of Philosophy. http://plato.stanford.edu/ First published Thu Jul 5, 2001. 147 Ver ALMEDER, 1998; BONJOUR, 1994; FOLEY, 1994; FUMERTON, 1994. 148 QUINE, W.V.O. Norms and Aims. In: The Pursuit of Truth. Cambridge: Harvard University Press, 1990, p. 19 - 21. 149 Ver KORNBLITH, 1994; 1999. 86 linguagem é vital para a teoria do conhecimento, ou seja, a tentativa de explicar de que maneira o homem estrutura linguisticamente e transmite conhecimentos, conforme já mencionado. 3.7 A relevância das frases observacionais no aporte teórico quineano Para melhor entendimento deste estudo, é importante salientar a relevância das sentenças observacionais na perspectiva de Quine, a fim de que se possa falar do significado de conjunto de sentenças. Por conseguinte, só é possível falar do significado de conjuntos de sentenças, ao se analisar as sentenças observacionais que podem derivar desses conjuntos; no entanto, não há condições de determinar o significado de cada sentença não observacional individualmente. Desse modo, é imprescindível que se desenvolva seus principais preceitos. Com efeito, percebemos que central à abordagem naturalista de Quine do conhecimento é a ideia de que todo o conhecimento é de alguma maneira baseado em estímulos de nossos nervos sensitivos. Para a maior parte de nosso conhecimento, a relação é bastante indireta e remota, assim, a sentença dada é aceita porque é parte de um sistema global de conhecimento que, tomado com um todo, permite-nos lidar melhor com a experiência sensorial. No caso da maioria das frases que chegamos a conhecer, nossa disposição a aceitá-las não é claramente baseada de forma direta a estímulos de terminações nervosas. De tal sorte que a ligação passa por outras frases, e pode ser bastante indireta e remota; essa é uma maneira de expressar o holismo presente na construção do significado. Então, deve haver presumivelmente algumas partes da nossa língua que incorporam o conhecimento que estão diretamente relacionadas a estímulos. Desse modo, esse é o papel que as frases observacionais representam no pensamento de Quine; atos de proferimentos de tais frases ou concordar com elas quando proferidas por outros são respostas compartilhadas ao estímulo. Com efeito, é um sinal da abordagem naturalista de Quine, conforme Hylton150, que sua explicação sobre a ideia 150 HYLTON, Peter. Willard van Orman Quine. http://plato.stanford.edu/ First published Fri Apr 9, 2010; substantive revision Fri Apr 30, 2010. 87 fundamental de uma resposta compartilhada ao estímulo aplica-se tanto a animais quanto a pessoas. Nesse sentido, frases observacionais, no contexto quineano, dizem respeito a frases de ocasião cujo significado por estímulo é relativamente invariável sob a influência de informação colateral. Desse modo, salienta Quine151 que Frases de ocasião cujos significados por estímulo não variam sob a influência de informação colateral podem naturalmente ser chamadas frases de observação, e seus significados-estímulos podem, sem medo de contradição, fazer plena justiça a seus significados. As implicações tradicionais da conexão entre ‗experiência‘ e nosso conhecimento variam das concepções mentais, como encontradas em Hume, em que todas as nossas ideias são cópias de impressões dos sentidos, às formulações linguísticas mais neutras, em que alegações cognitivas devem ser traduzidas em sentenças observacionais. Na explicação holística de Quine, não se pode lidar com o conteúdo empírico das sentenças, muito menos de termos – correlatos linguísticos de ideias – um a um, nem via definição, tradução ou algum outro tipo de conexão (linkage). Estudar a relação de conhecimento e ciência para as frases observacionais (observation sentences) é traçar o desenvolvimento psicológico e linguístico do conhecedor (knower), isto é, o usuário potencial da linguagem científica. Frases observacionais servem tanto como ponto de partida (starting point) para o aprendizado humano da linguagem quanto nos fundamentos empíricos para a ciência. O problema do conhecimento agora é como, a partir de frases observacionais, é possível a seguir falar de mesas, cadeiras, moléculas, neutrinos, conjuntos e números. No contexto do mundo externo, Quine aponta que o que se quer das frases observacionais, ‗é que elas sejam as que estão na mais íntima proximidade causal com os receptores causais‘152. Para avaliar essa proximidade, apresenta a ideia, assim: Frases observacionais são frases que, quando adquirimos linguagem, são condicionadas mais fortemente a uma estimulação sensorial concomitante do 151 QUINE, W.V.O. Word and Object. 1960, p. 42. ‗Occasion sentences whose stimulus meaning vary none under the influence of collateral information may naturally be called observation sentences, and their stimulus meaning may without fear of contradiction be said to do full justice o their meanings.’ 152 QUINE, W. O. Epistemology Naturalized. ‗Vaguely speaking, what we want of observation sentences is that they be the ones in closest causal proximity to the sensory receptors.’p. 85. 88 que a uma informação colateral estocada. Assim, imaginemos que a respeito de uma frase seja pedido o nosso veredito, quanto a ela ser verdadeira ou falsa, que nos seja pedido assentimento ou dissentimento. A frase em causa será uma frase observacional se nosso veredito depender apenas da estimulação 153 sensorial presente nesse momento. Em outros termos, as frases observacionais representam um papel relevante na aquisição da linguagem na presença de estímulos observáveis. Quine afirma que há grande estocagem de informação neste momento, sem essa informação não haveria condições de pronunciar vereditos sobre frases, por mais observacionais que fossem. Dessa forma, reformula, de forma menos rígida, a definição de frase observacional: [...] uma frase é uma frase observacional se todos os vereditos a seu respeito apoiam-se na estimulação sensorial presente e não se apoiam em nenhuma 154 outra informação estocada além da envolvida na compreensão dessa frase. Ao formular essa questão, Quine percebe o surgimento de outro problema, que consiste na distinção da informação envolvida na compreensão de uma frase com a que vai além dessas demarcações. Retoma a rejeição à analiticidade, sinalizando que, Esse é o problema da distinção entre verdade analítica, que emerge a partir de meros significados das palavras, e verdade sintética, que se apoia não somente sobre significados. Ora, sustentei longamente que essa distinção é ilusória. Todavia, há um modo de encaminhá-la que na verdade faz sentido: seria de se esperar que uma frase verdadeira em virtude dos meros significados das palavras fosse subscrita por todos os membros que falam fluentemente a língua da comunidade. Talvez possamos, na nossa definição de frase observacional, dispensar a noção controvertida de analiticidade em favor desse atributo direto 155 da aceitação pela comunidade inteira. Assim sendo, Quine enfatiza sua rejeição à analiticidade ‗na recusa de traçar uma linha que separe o que é envolvido na mera compreensão das frase de uma 153 Id. ibid. […] observations sentences are sentences which, as we learn language, are most strongly conditioned to concurrent sensory stimulation rather than to stored collateral information. Thus let us imagine a sentence queried for our verdict as to whether it is true or false; queried for our assent or dissent. Then the sentence is an observation sentence if our verdict depends only on the sensory stimulation present at the time.’ p. 85. 154 Id. ibid. p. 86. ‗A sentence is an observation sentence if all verdicts on it depend on present sensory stimulation and on no stored information beyond what goes into understanding the sentence.’ 155 Id. ibid. p. 86. ‗This is the problem of distinguishing between analytic truth, which issues from the mere meanings of words, and synthetic truth, which depends on more than meanings. Now I have long maintained that this distinction is illusory. There is one step toward such a distinction, however, which does make sense: a sentence that is true by mere meanings of words should be expected, at least if it is simple, to be subscribed to by all fluent speakers in the community. Perhaps the controversial notion of analyticity can be dispensed with, in our definition of observation sentence, in favor of this straightforward attribute of community-wide acceptance.’ 89 língua, de tudo aquilo mais que a comunidade encara com os mesmos olhos‘ 156. Desse modo, compartilhamento de significados no interior de uma comunidade linguística de falantes fluentes diante da mesma estimulação é uma definição de frase observacional. Acrescenta ele, ‗uma frase observacional é uma frase sobre a qual todos os que falam a língua pronunciam, o mesmo veredito, quando é dada a mesma estimulação concomitante‘.157 A frase observacional, na visão de Quine, é fundamental em dois aspectos, conforme já ressaltado, o da doutrina e do conceito, entre saber o que uma frase significa e saber se ela é verdadeira. Observe-se como ele aponta sua relevância: A frase observacional é básica para os dois empreendimentos. Sua relação para com a doutrina, para como o nosso conhecimento do que é verdadeiro é, em grande parte, a tradicional: frase observacionais são o repositório de evidência para as hipóteses científicas. Sua relação com o significado também é fundamental, dado que são elas as primeiras que, na nossa condição, aprendemos a compreender, como crianças e como linguistas em pesquisa de campo. Pois as frases observacionais são precisamente aquelas que podemos correlacionar a circunstâncias observáveis da ocasião da elocução ou de assentimento, independentemente de variações nas histórias passadas dos indivíduos informantes. Elas são a única via de acesso a uma língua. A frase observacional é a pedra angular da semântica [...] é fundamental para a 158 aprendizagem do significado [...] é onde o significado é mais firme. Em suma, frases observacionais ou frases de observação consistem em frases ocasionais cujo valor de verdade é completamente determinado pelas circunstâncias observáveis e que são, inicialmente, traduzidas de modo holofrástico, isto é, como um todo. Uma das razões para fazer epistemologia, estudando as raízes da referência, é simplesmente o fracasso do programa tradicional empírico antes mencionado. Outra razão é que permite prescindir de ideias, mentalistas tais como, 156 Id. ibid. p. 86.‘[...] my rejection of the analyticity notion just means drawing no line between what goes into the mere understanding of the sentences of a language and what else the community sees eye-toeye.’ 157 Id. ibid. p. 86 -7. ‗[...] an observation sentence is one on which all the speakers of the language give the same verdict when given the same concurrent stimulation.‘ 158 Id. ibid. p. 88.’The observation sentence is basic to both enterprises. Its relation to doctrine, to our knowledge of what is true, is very much the traditional one: observations sentences are the repository of evidence for scientific hypotheses. Its relation to meaning is fundamental too, since observation sentences are the ones we are in a position to learn to understand first, both as children and as field linguists. For observation sentences are precisely the ones that we can correlate with observable circumstances of the occasion of utterance or assent, independently of variations in the past histories of individual informants. They afford the only entry to a language. The observation sentence is the cornerstone of semantics […] it is fundamental to the learning of meaning […] it is where meaning is firmest.’ 90 ‗experiência‘ ou ‗observação‘. Em vez disso, confia-se, em dois componentes que já fazem parte de uma ontologia naturalista: a ocorrência física nos terminais nervosos, o input neural ou estímulo; e a entidade linguística, a frase observacional. Esses dois servem como substitutos naturalistas para ‗experiência‘ e ‗observação‘. De acordo com a explicação empirista e behaviorista de Quine, as frase observacionais são aquelas que podem ser aprendidas independentemente de outra aquisição de linguagem. São frases que podem ser aprendidas tão-somente por ostensão e como tais são causalmente mais próximas ao estímulo. Essa explicação não é vulnerável a ataques em relação à ideia de observação como dependente das teorias que se sustenta, já que frases observacionais são aquelas que são aprendidas sem nenhuma informação prévia (background information). Outro ponto, de diferença com os empiristas, diz respeito à suposta certeza ou incorrigibilidade da observação, ressalta Orenstein159. Embora as frases observacionais de Quine estejam assentadas num mínimo de informação prévia e, então, incluídas entre aquelas sentenças menos prováveis de ser revisadas, elas não são, em princípio, imunes de revisão. Então, frases de observação ou sentenças observacionais consistem no ponto de partida para aquisição de conhecimento, assim como a entrada da criança na linguagem cognitiva. Ademais, essas frases são evidencialmente básicas; o que as ajusta para representar ambos os papéis é que elas são independentes de outras partes de nossa linguagem. Desse modo, elas podem ser dominadas por uma criança sem competência linguística e podem ser conhecidas sem pressupor outras partes dessa teoria. Logo, a sentença observacional pode, dessa maneira, ser definida como aquela sobre a qual todos os falantes de uma mesma língua concordam, quando estão sob o mesmo estímulo. É, portanto, uma sentença cuja verdade repousa na concordância intersubjetiva. Para comparar uma sentença observacional entre línguas diferentes é preciso uma generalização empírica que faça uma identificação na qual os falantes de ambas as línguas concordam sobre o domínio dos estímulos o qual estão 159 ORENSTEIN, Alex. Epistemology Naturalized. Routledge.Encyclopedia. New York: Routledge, 1998, vol….. p. 5-6. 91 sendo traduzidas as sentenças observacionais, do ponto de vista de cada um dos idiomas. Só, assim, a epistemologia pode lançar mão das ciências naturais, a fim de complementar as limitações de um domínio específico e se naturalizar de vez. Todos esses aspectos auxiliam a melhor entender a linguagem em Quine, razão deste estudo, a fim de fundamentar sua abordagem baseada no empirismo, behaviorismo e pragmatismo. Nesse sentido, esse trinômio mostra a convicção de Quine sobre a linguagem, sua perspectiva teórica sobre o aprendizado e aquisição da linguagem. Ao contrário da epistemologia tradicional, a epistemologia quineana é naturalista: não podemos permanecer isolados de nosso lugar como parte da natureza e fazer juízos filosóficos. Isso quer dizer que a filosofia é um continuum da ciência, a ciência constituindo-se parte da natureza mais adequada para conhecer a si mesma. Dessa maneira, afirma Quine: O filósofo naturalista inicia sua argumentação dentro da teoria do mundo herdado como um negócio próspero. Ele cautelosamente acredita em tudo, mas também acredita que algumas porções não identificadas estão erradas. Ele 160 tenta melhorar, esclarecer e entender o sistema de dentro dele. Fogelin161 argumenta que para Quine, a epistemologia não fornece um ponto de vista independente para validar a ciência empírica, ao invés disso, a ciência empírica fornece a estrutura para entender o conhecimento empírico, inclusive o conhecimento empírico fornecido pela ciência empírica. Essa inversão representa o núcleo revolucionário da concepção quineana da epistemologia naturalizada, salienta Fogelin. Para explicar seu ponto de vista, Quine apresenta uma elaborada comparação entre sua abordagem naturalista consoante à epistemologia e resultado de pesquisas no século XX sobre fundamentos da matemática, conforme segue: Os estudos relativos aos fundamentos da matemática dividem-se simetricamente em dois grupos, os conceituais e os doutrinais. Os estudos 160 QUINE, W. V. Theories and Things. Cambridge: Harvard University Press, 1981, p.72. ‗The naturalistic philosopher begins by reasoning within the inherited world theory as a going concern. He tentatively believes all of it, but believes also that some unidentified portions are wrong. He tries to improve, clarify and understand the system from within’. 161 FOGELIN, Robert J. Aspects of Quine’s Naturalized Epistemology. In: The Cambridge Companion to Quine. ed. GIBSON, Roger F. Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p. 19. ’For Quine, epistemology does not provide an independent standpoint for validating empirical science; instead, empirical science provides the framework for understanding empirical knowledge, including the empirical knowledge provided by empirical science’. 92 conceituais interessam-se pelo significado, os doutrinais, pela verdade. Os estudos conceituais tratam de esclarecer conceitos, definindo-os, uns em termos de outros. Os estudos doutrinais tratam de estabelecer leis, provandoas, umas à base de outras. Idealmente, os conceitos mais obscuros seriam definidos em termos dos mais claros, de modo a maximizar a clareza, e as leis menos óbvias seriam provadas a partir das mais óbvias, de modo a maximizar a certeza. Idealmente, as definições gerariam todos os conceitos a partir de ideias claras e distintas, e as provas gerariam todos os teoremas a partir de verdades 162 por si mesmas evidentes. Por conseguinte, o programa logicista constituiu-se em uma tentativa, no lado conceitual, para reduzir os conceitos da matemática a conceitos de lógica, e então, no doutrinal, exibir todas as verdades da matemática como verdades da lógica, conforme afirma Fogelin163. Tal redução, se levada a cabo, seria um triunfo para a epistemologia, porque as verdades da lógica parecem epistemicamente seguras, e a redução da matemática à lógica tornaria o edifício da matemática epistemicamente seguro também. Quine argumenta, então, sobre o paralelo na bifurcação na teoria dos conceitos ou do significado e teoria da doutrina ou da verdade, que ele denomina de ‗epistemologia do conhecimento natural‘: O paralelo é como segue. Assim como a matemática é redutível à lógica, ou à lógica e teoria dos conjuntos, assim o conhecimento natural será baseado, de algum modo, na experiência sensível. Isso significa explicar a noção de corpo em termos sensoriais; eis o aspecto conceitual. E significa justificar o nosso conhecimento de verdade da natureza também em termos sensoriais; eis o 164 aspecto doutrinal da bifurcação. 162 QUINE, W. O. Ontological Relativity & Other Essays. New York: Columbia University Press, 1969, p.69-70. ‗Studies in the foundations of mathematics divide symmetrically into two sorts, conceptual and doctrinal. The conceptual studies are concerned with meaning, the doctrinal with truth. The conceptual studies are concerned with clarifying concepts by defining them, some in terms of others. The doctrinal studies are concerned with establishing laws by proving them, some on the basis of the other. Ideally the obscurer concepts would be defined in terms of the clearer ones so as to maximize clarity, and the less obvious laws would be proved from the more obvious ones so as to maximize certainty. Ideally the definitions would generate all the concepts from clear and distinct ideas, and the proofs would generate all the theorems from self-evident truths’. 163 Op. cit. p. 20. 164 QUINE, op.cit. p. 71. ‗The parallel is as follows. Just as mathematics is to be reduced to logic, or logic and set theory, so natural knowledge is to be based somehow on sense experience. This means explaining the notion of body in sensory terms; here is the conceptual side. And it means justifying our knowledge of truths of nature in sensory terms; here is the doctrinal side of the bifurcation’. 93 3.8 Resumo Este capítulo iniciou com a apresentação de alguns aspectos do behaviorismo, principais autores e objeções, assim como o posicionamento do próprio Quine a esse respeito. Seguindo com a crítica contundente de Quine aos dogmas analítico-sintético. Em suma, como alternativa a esse empirismo com dogmas, Quine propõe um empirismo moderado, sem dogmas, um empirismo que continua acreditando que o tribunal de qualquer sistema teórico é a experiência, porém que vê esses sistemas se defrontando como um todo com a experiência. Não há, segundo Quine, como dividir a totalidade dos enunciados de uma linguagem em enunciados verdadeiros ou falsos devido à experiência (sintéticos a posteriori) e enunciados necessariamente verdadeiros (analíticos a priori). Qualquer enunciado, segundo ele, pode ter que ser revisado, ou seu valor de verdade alterado, devido a fatos empíricos, porém não isoladamente, mas, sim, em conjunto com outros enunciados de uma teoria ou universo linguístico. Essa tese leva Quine a concluir que inclusive os enunciados da lógica poderiam, não sem certa resistência, por serem enunciados muito teóricos e, em geral, pressupostos pela maioria dos outros enunciados de sistemas teóricos dos quais participam, ser revisados em seu valor de verdade devido a motivos empíricos. Apenas enunciados por ele chamados de observacionais poderiam ser determinados verdadeiros ou falsos isoladamente. Por sua vez, o holismo foi destacado, visto que consiste em uma tese segundo a qual o sentido de uma expressão depende da totalidade ou de uma parte significativa da linguagem a que pertence. Ademais, convém lembrar que a unidade de confirmação empírica de uma teoria não é o enunciado isolado, mas uma teoria em sua totalidade, também chamada de tese Duhem-Quine. Logo, percebe-se que Quine aponta para a relevância do todo, da rede de significados ou crenças no que concerne a sua teoria acerca da linguagem natural. Ademais, apresentamos a tese do compromisso ontológico, segundo o termo quineano, é uma teoria acerca de determinado segmento da realidade ou da experiência, consiste em uma coleção consistente de crenças ou afirmações, expressas em determinada linguagem, a respeito desse segmento. Essa teoria será verdadeira se 94 todas as crenças que a compõem, e, logo, todas as consequências lógicas dessas crenças, forem verdadeiras. Como resultado, nosso modo de falar cotidiano normalmente quantifica sobre objetos de dimensões médias que estão ao nosso redor. Para esclarecer os desacordos ontológicos devemos esclarecer os desacordos de esquemas conceituais ou teorias implícitas que usamos. Quine define esse processo como ‗controvérsia semântica‘, assim, a discussão sobre o que são os objetos transforma-se em uma discussão sobre o modo como falamos de objetos. Isso não quer dizer que a ontologia seja mera questão de palavras, nem que o problema semântico seja apenas um problema linguístico, mas, simplesmente, que se pode auxiliar a discussão ontológica mediante o esclarecimento das várias teorias implícitas usadas ao discutir sobre o que existe, ou esclarecendo a forma lógica dos enunciados com que nos propomos a descrever o mundo ou a falar sobre objetos. Ainda, foi mostrado que a epistemologia naturalizada em Quine teve como projeto estudar os processos reais de formação do conhecimento dos seres humanos, sem ter a aspiração de certificar a racionalidade desses processos, sua resistência ao ceticismo ou sua adequação para produzir a verdade. Nesse sentido, combina-se com a psicologia da aprendizagem e com o estudo dos episódios de história da ciência. Nessa tese, diminui-se o alcance do tipo de reflexão ‗externa‘ ou filosófica, que pode resultar no ceticismo ou na sua refutação. Por fim, mostramos as frases de observação ou sentenças observacionais que consistem no ponto de partida para aquisição de conhecimento, assim como a entrada da criança na linguagem cognitiva. Ademais, essas sentenças são evidencialmente básicas; o que as ajusta para representar ambos os papéis é que elas são independentes de outras partes de nossa linguagem. Desse modo, elas podem ser dominadas por uma criança sem competência linguística e podem ser conhecidas sem pressupor outras partes dessa teoria. 95 CONSIDERAÇÕES FINAIS A abrangência da discussão acerca da linguagem é ampla e sempre está presente em todas as discussões filosóficas ou não, já que o ser humano se constitui por meio dela. Em vista disso, teorias foram e são construídas tentando dar conta desse universo tão amplo, complexo e controverso. Nesse sentido, esta tese privilegiou investigar a concepção de Quine a respeito da teoria da aprendizagem e aquisição da linguagem, já que se percebeu um campo de estudos relevante, pois seu sistema filosófico persiste sendo pesquisado e investigado em virtude da riqueza de sua concepção. Diante disso, este estudo pretendeu provar que a concepção de Quine a respeito da linguagem, seu aprendizado e aquisição estão alicerçados no tripé do empirismo, levando em consideração o behaviorismo e o pragmatismo. Além disso, ampliar a compreensão acerca de seu posicionamento quanto a esse tema. Nesse contexto, foi necessário num primeiro momento contextualizar; trazer à tona os pensadores que auxiliaram Quine, sobretudo Dewey, cuja influência é indubitável, na construção de seu sistema filosófico, ou que de uma maneira ou outra ampliaram sua visão no que tange à linguagem que é a discussão deste estudo. Com efeito, procurou trazer a visão de Dewey quanto à linguagem e sua perspectiva a partir do naturalismo. Paralelamente, o segundo capítulo tratou da indeterminação, a saber, o compromisso ontológico propalado por Quine no que tange a seus conceitos sobre relatividade ontológica, inescrutabilidade ou indeterminação da referência, compromisso ontológico, tradução radical e fisicalismo. Todos esses conceitos são referenciados, explanados para mostrar sua estreita ligação com a elaboração do arcabouço teórico de Quine em relação à linguagem. Outro aspecto considerado de extrema relevância, mostrado no capítulo 3, foi a apresentação do behaviorismo, que acredito é o fio condutor deste trabalho. O behaviorismo de Quine também serve para unir suas doutrinas e teses em uma filosofia sistemática, uma vez que nessa estrutura Quine pode argumentar, por exemplo, 96 segundo a percepção de Gibson165, que o significado é indeterminado; a referência é inescrutável; as terias são subdeterminadas pela experiência em princípio; o valor de verdade de qualquer frase ou declaração [sentence, statement] pode ser revisado. Assim como, não há significados, proposições, atributos, relações, números, sinonímia, fatos, verdades analíticas e assim por diante. Comprovo, assim, juntamente com Gibson, que o sistema filosófico quineano é essencialmente behaviorista, que em sua teoria concernente à linguagem permeia esse viés. Desse modo, o questionamento e o objetivo deste estudo foram alcançados a partir desta confirmação que perpassa todos os capítulos. Por conseguinte, esse compromisso de Quine ao behaviorismo pode ser ao mesmo tempo seu maior mérito, quanto seu calcanhar de Aquiles, segundo Gibson166, visto que, se em algum tempo no futuro, o behaviorismo (no sentido quineano) for abandonado, digamos, em favor de alguma forma de mentalismo, então uma grande maioria das doutrinas e teses fundamentais de Quine serão deixadas sem qualquer firme e óbvio apoio e, portanto, colocadas em dúvida. Por sua vez, foi também citada a influência de Skinner no que diz respeito à perspectiva estímulo-resposta em relação ao aprendizado e aquisição da linguagem. Ainda na primeira etapa, foi buscado embasamento quanto ao pragmatismo, mencionando, sobretudo, James e Pierce. Nesse contexto, Word and Object (1960) apresenta seu programa behaviorista da linguagem, que permanece em muitos outros ensaios e livros posteriores. Além disso, é nessa obra que a indeterminação da tradução radical assume, pela primeira vez, o papel principal. Na nossa visão, Quine adota uma perspectiva contundente sobre a natureza da linguagem com a qual atribuímos pensamentos e crenças a nós mesmos e aos outros. Convém ressaltar que Word and Object é um marco, o fio condutor do sistema quineano, a partir desse eixo outras obras são desenvolvidas e desdobradas, dentre elas pode-se citar Ontological Relativity and Other Essays (1969); The Web of Belief (1970); The Roots of Reference (1974), Theories and Things (1981), Pursuit of 165 GIBSON, JR., Roger F. The Philosophy of W.V. Quine: an expository essay. Tampa: University Press of Florida, 1982, p. xx. 166 Id. Ibid. p.xx. ‗if, at some time in the future, behaviorism (in Quine’s sense of term) is abandoned, say, in favor of some form of mentalism, then an overwhelming majority of Quine’s cardinal doctrines and theses would be left without any obvious firm support and, therefore, cast into doubt. 97 Truth (1990). Desse modo, sem menosprezar suas publicações, visto que todas são relevantes de uma forma ou outra, são essas que nortearam a fundamentação desta tese. Esta tese procurou apontar, por conseguinte, que permeia na filosofia de Quine um posicionamento de cunho empírico como também behaviorista, permeado pelo pragmatismo em que a linguagem é concebida como estímulos sensoriais compartilhados, que acontecem a partir de atos sociais, cujo foco principal é a pressão por objetividade, que privilegia o embate físico de uma comunidade de falantes no que tange à comunicação, à questão da busca do significado. Além disso, apresentou o sentido quineano a respeito do compromisso ontológico, que aponta que uma teoria acerca de determinado segmento da realidade ou da experiência é simplesmente uma coleção consistente de crenças ou afirmações, expressas em determinada linguagem. Por conseguinte, apontou a linguagem, behaviorismo e empirismo, discutindo a crítica de Quine aos dogmas analítico-sintético; a relevância do holismo, trazendo a tese Duhem-Quine. Com efeito, a pertinência do compromisso ontológico e seus desdobramentos, como também a epistemologia naturalizada, finalizando com as frases observacionais. Por isso, os conceitos, tendências e perspectivas, aqui apresentados permitiram mapear, como também determinar que tipo de teoria subjaz ao pensamento de Quine no que tange à linguagem. Assim, neste estudo, defendi a concepção empirista além de behaviorista, trazendo também a pragmática da linguagem no sistema filosófico de Quine, visto que essa perspectiva permanece ao longo de seus trabalhos, a partir desse posicionamento procurei demonstrar por meio dos textos já mencionados e outros relevantes, apontados no decorrer da pesquisa. Portanto, acredito que o estudo realizado no que concerne a esse campo do conhecimento possa ampliar a discussão, assim como a perspectiva em relação à pertinência deste enfoque. Em suma, as controvérsias pertinentes às teses discutidas consistiram no núcleo duro da tese, assim como a intenção de provocar discussões para ampliar o conhecimento no que tange ao sistema filosófico quineano. Logo, pretendi expandir com este estudo a retomada dos estudos em Quine, por sua pertinência no mundo acadêmico. Assim, sabemos que a extensão do trabalho não 98 contempla todas as nuances do trabalho de Quine referente à linguagem, assim como há sempre lacunas que não são preenchidas. Enfim, o conhecimento é inesgotável, e esta investigação pretende constituir-se em mais uma ferramenta na pesquisa dos meandros do universo quineano acerca da teoria da linguagem. 99 REFERÊNCIAS ALMEDER, Robert. Harmless Naturalism: The Limits of Science and the Nature of Philosophy. Illinois: Open Court, 1998. 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