- Escola Secundária de Peniche
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Nº5 | 2015 PAIDEIA. Revista da Escola Secundária de Peniche N.º 5/2015 Ficha Técnica: Editor: Escola Secundária de Peniche Diretor: José António Diniz Coordenador: Miguel Dias Santos Capa: Joana Sebastião Impressão: GTO 2000, Lda - Bombarral Depósito Legal: 311254/10 ISSN: 1647-6042 Exemplares: 300 Periodicidade: Anual Notas: Foi respeitada a grafia original dos textos; as afirmações e opiniões são da exclusiva responsabilidade dos seus autores. Paideia, revista da escola secundária de Peniche N.º 5/2015 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) APRESENTAÇÃO «Quando a terra galga o mar». Foi com esta frase algo impressionista mas eloquente que Mariano Calado traçou, com cinzel especial para esta revista, uma síntese que recobre o essencial da história de Peniche. Uma história que tem como marco identitário a relação dos seus habitantes com o mar. O mar que durante séculos lhes aguçou o engenho da sobrevivência – as artes da pesca – foi o mesmo mar que lhe determinou os traços do temperamento, da sua psicologia colectiva; foi o mesmo mar que moldou a sua cultura e as suas crenças. São os ecos desses traços identitários, tecidos sob o jugo de Cronos, que perscrutamos neste número da PAIDEIA, em textos que espreitam, dentro do seu eclectismo, o simbólico e o material com que se matizam as singularidades desse enlace. Percurso individual e colectivo, aqui o revivemos em estudos sobre as pescas e a conserva tradicional, os movimentos sociais e na recolha de memórias. A construção da memória, entendida como recusa de esquecimento, convoca o colectivo para as suas responsabilidades sobre o destino comum. É por isso uma construção social comprometida com as realizações do futuro. Parte dessa construção está agora nas mãos da associação Patrimonium, sob a orientação de antigos alunos desta escola, a quem agradecemos a preciosa colaboração neste número dedicado às pescas. A sua ressurreição, em defesa do património de Peniche, é o reflexo da vitalidade da sociedade civil e do seu esforço para participar activamente na (re)construção da memória colectiva, apresentando alternativas para uma nova antropologia cultural e, porque não, para um economia marítima sustentável. Um agradecimento muito especial a todos os colaboradores da revista, deste número e dos pretéritos, e em especial ao colega e amigo João Luís Moreira, para quem o ensino apaixonado da língua portuguesa não dispensa a construção crítica – a sua em primeiro lugar - de textos e de escritores que servem as suas divagações estéticas e o seu pedagogismo omnipresente. MIGUEL DIAS SANTOS 5 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) QUANDO A TERRA GALGA O MAR… Mariano Calado É assim: foi o mar que cimentou o nascer de Peniche. Mas… ilha que era, dificilmente a terra vivia e progredia, prestando sempre, embora, a necessária assistência a quem, navegando, por aqui passava, procurando provavelmente poder fazer aguada, ou descansar, preparando-se para, no caminho seguido, evitar maus tempos e procurar o abrigo das amplas enseadas que, a norte ou a sul, fosse encontrando. E, pobre embora de recursos e perante a dificuldade em consegui-los, cedo a vontade dos homens foi superando a situação de pobres lusitanos perseguidos pelos exércitos dominadores de Júlio César. Mas bastou ter chegado o momento do abandono da atitude guerreira dos romanos que aqui haviam chegado para que, entretanto, se transformasse o clima de hostilidade em ambiente de convivência e de trabalho, em busca da sobrevivência. E da presença e vivência com os agora pacíficos romanos, terão os lusitanos, senão todos, criado vida na pequena ilha, onde muitos, ou não, terão ficado depois. E nasceu a obra a que o mar, sempre presente, deu vida: uma pequena ilha postada em frente do boqueirão do rio que seria, depois, chamado de S. Domingos e, entretanto, feita encontro de diferentes culturas. E surgiu desenvolvimento na terra rodeada de mar: arquitectam-se fornos, aproveitase o barro e criam-se, com ele, perfeitos trabalhos de olaria, particularmente aqueles que se dirigiam às necessidades do mar. O porto ganha movimento. E os tempos foram rolando… A ilha é, então, palco de aportamento de uma verdadeira esquadra 7 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) de cerca de duzentas embarcações transportando cruzados que se dirigiam à Terra Santa, mas de quem o rei português, entretanto, consegue o apoio para a conquista, com que há muito sonhara, da sarracena Lisboa. Por Phoenix foi identificada pelo cronista (Ranulfo de Granville) que descreveu o empreendimento, corria o ano de 1147. E escreveu esse mesmo cronista que a ilha ficava distante do continente «cerca de oitocentos passos», distância que calculamos entre mil e quinhentos a mil e oitocentos metros, ou seja, mais ou menos até às imediações de Porto de Lobos. Não seria grande tal distância, mas suficiente para dificultar o progredir da povoação que, assim afastada do continente, vivia e dificilmente sobrevivia na antiga ilha… O curioso, porém, ou perturbador, é o testemunho do dito cronista que, não falando em gente, diz, textualmente, que na ilha abundavam os veados e a planta do alcaçuz… Mas, pelos meados do século XV, o rei D. Duarte alerta para os perigos que representava a existência das águas que ainda dominavam o canal existente entre a Consolação e o Baleal, dado que já vários navios ali se tinham perdido nos baixios e, por isso, ordenando que, dali em diante, só poderiam aproximarse do porto de Atouguia os navios que fossem acompanhados de experimentado piloto que, residindo habitualmente na região, fosse para tal aportamento nomeado. Entretanto, se, em frente, cingido às terras continentais, o porto de Atouguia operava em pleno desenvolvimento (transporte de diversas e diferentes mercadorias, como metais, mantimentos, panos estrangeiros, armas, madeiras, peças de mobiliário, vinhos, relevante actividade de pesca, ou caça, de baleias…), e desenvolvia também um excelente trabalho de exploração de sal, chegando a ser considerado como «um dos portos do litoral português mais importantes na vida económica dos primeiros séculos da Nacionalidade», em Peniche não se passava de uma luta inglória com o mar a dificultar-lhe o desenvolvimento, dada a sua insularidade e, para a época, palco de notórias dificuldades. Até que… Pelos finais do século XV dá-se por relativamente concluído (ou melhor: a caminho da conclusão, que ainda levaria bastos anos…) o assoreamento que 8 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) ligaria Peniche às terras de Atouguia: a terra ia galgando o mar, lenta mas progressivamente. E de tal maneira foi importante e decisivo esse acontecimento, permitindo uma fácil, ainda que demorada travessia do espaço entre os dois povoados que, pelo século XVI afora, já Peniche contava com uma densidade populacional bastante maior que a de Atouguia (isto é: em Peniche, perto de oitocentas pessoas; na Atouguia, perto de quinhentas) e, para mais, no dizer de uma exposição dirigida por D. Afonso de Ataíde ao rei D. Manuel, em Peniche «a gemte eh muita, e crece cada dia, e há as vezes aly de fora mil, e quinhemtas, e duas mil pessoas, asy dos da terra aredor, e de lomge, como do Mar». E a existência do istmo, ainda que débil, foi decisivo no desenvolvimento penicheiro, que a existência e exploração de portos naturais para a efectivação dos trabalhos marítimos, a efectivação da construção naval e, de forma natural, a facilidade de deslocação e as permutas comerciais com o continente, passaram a permitir um trabalho até ali praticamente proibido. E não foi em vão que, a par com trocas de sal, cevada, trigo e vinho, se foram superiorizando as vendas de pescado apanhado por barcos penicheiros, chegando a ocupar um porventura inesperado patamar negocial com vendas de peixe, procurado, desde logo, por muitos recoveiros, ou almocreves, não só de toda a região do Oeste como de longínquas regiões, como Elvas, Olivença, Castelo Branco, Aveiro e Porto a até da ainda mais remota paragem de Castela. Quando a terra galga o mar… E, por ter galgado o mar, com o assoreamento acontecido, Peniche chegou a contar, em meados do século passado, com «900 embarcações, sendo perto de 600 da pesca local e as restantes da pesca costeira (das quais aproximadamente 60 traineiras, 20 cercadores e 70 de pesca industrial não associada)» e, quanto ao número de pescadores a trabalhar pela mesma época, contava a antiga Vila com «cerca de 3.000 homens, dos quais um terço em traineiras e os restantes na pesca local, artesanal e industrial não associada». Mas, ganho o mar pela terra, e, naturalmente, provocadas pela constante e reactivada ocupação da pesca (sempre o mar…), foram surgindo ainda, vigorosas e rendosas ao tempo, novas actividades, como várias fábricas de conserva de peixe, trabalhos de congelação, lavagem e salga do peixe, conservação e tratamento de marisco, caixotaria, canastraria, conserto de redes, utensilagem náutica, serralharia, 9 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) construção e electrificação naval e ainda recolha de limos para preparação de adubos agrícolas e farinhas alimentícias. De resto, de lembrar que, para o desenvolver destas novas actividades, existiam ainda, pela mesma altura, «cerca de 30 barcos devidamente aparelhados, cada um deles com uma companha de 6 homens, em média». Quando a terra galga o mar… Todavia, chegado é, inesperadamente (e, queira-o Deus, transitoriamente), um momento em que o mar, certamente com ciúmes da terra, se encontra hoje como que em tempo de triste neblina, esquecendo as centenas e centenas de embarcações que, operárias das suas entranhas e manobradas por intrépidos lavradores das ondas, deram vida e progresso a Peniche, deram vida e progresso à região, deram vida e progresso ao País, apagando ou diminuindo a sua imagem, esquecendo-as, abandonando-as, relegando-as, porventura a troco de prometedoras ilusões, para um limbo inconsciente de não utilidade… E ouvem-se os astros perguntando, intrigados: até quando o mar se negará à terra? 10 ARTIGOS PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) O MAR E O ENSINO DAS CIÊNCIAS - atividades laboratoriais, experimentais e de campo, NO ENSINO SECUNDÁRIO – alguns exemplos Ângela Cunha1 e alunos2 Baía de Peniche (Gâmboa – Baleal). Foto Rita Sarreira (março 2014) Seria inevitável que na Escola Secundária de Peniche, pelo enquadramento geográfico e geológico, o ensino das ciências privilegiasse toda a zona costeira e o mar. Segundo Duarte (2009), as falésias calcárias contam uma história contínua com mais de 200 milhões de anos. Os afloramentos e paisagens de Peniche constituem importantes georrecursos não renováveis e designam-se locais de interesse geológico (LIGs) ou geossítios, tais como: 1 • Horst do arquipélago das Berlengas: planalto de granito rosa da Berlenga e os picos metamórficos dos Farilhões; Professora da Escola Secundária de Peniche, Departamento de Matemática e Ciências Experimentais. Catarina Baptista, Daniel Lourenço, Francisco Romão, Maria João Serrador, Maria Macatrão, Mariana Nunes, Mariana Vala, Patrícia Bandarrinha, Rita Curopos, Rita Sarreira e Tatiana Vitorino. 2 http://geossitios.progeo.pt 13 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) • Campo de Lapiaz do Cabo Carvoeiro-Remédios; • Registo sedimentar da Ponta do Trovão (183 milhões de anos); • Erupção vulcânica da Papoa. A península de Peniche integra-se na Orla Meso-Cenozóica Ocidental de Portugal e assenta sobre rochas carbonatadas do Jurássico Inferior3, que correspondem ao testemunho da fase inicial de enchimento da Bacia Lusitânica. É de destacar ainda, na região, a existência de fragmentos do maciço antigo que constituem o arquipélago das Berlengas, localizados a ocidente da península de Peniche. Neste arquipélago afloram, principalmente, rochas graníticas deformadas, de cor vermelha ou esbranquiçada, com granularidade média e com datação de cerca de 280 milhões de anos. Ainda mais antigas são as rochas metamórficas (micaxistos e gnaisses) que constituem os Farilhões e as Forcadas, a NW da ilha. Ao longo de toda a costa as evidências geológicas revestem-se de um enorme valor científico, educativo e cultural. Estas, revelam-se nas condições excecionais de exposição de afloramentos e fazem com que Peniche seja um importante laboratório natural para atividades de divulgação científica e ideal para a aprendizagem in loco. (Duarte, 2009). Numa abordagem prática, relacionando o mar, a biologia e a geologia, aqui estamos nós, alunos e professora, divulgando o contributo, deste laboratório natural - Peniche, no ensino e aprendizagem das ciências. A aprendizagem das ciências4 envolve a aquisição de conhecimentos de acordo com os conteúdos programáticos, a utilização/aplicação de metodologias de trabalho diversas e a realização/divulgação de trabalhos. A relevância do trabalho prático é expressamente reconhecida na atual revisão curricular do ensino secundário, onde se destacam os princípios da articulação das aprendizagens teórico-práticas e da interação da componente experimental com a componente expositiva (DGIDC, 2003, p.15-16). Jurássico inferior- Na escala do tempo geológico corresponde à Era Mesozóica do Éon Fanerozóico compreendido entre 199 milhões e 600 mil e 175 milhões e 600 mil anos. 3 De acordo com os conteúdos das disciplinas de “ciências” e das aulas práticas realizadas e/ou possíveis de realizar. 4 14 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) A abordagem do trabalho prático inclui o trabalho laboratorial e trabalho de campo. Ambos são realizados pelos alunos, implicam o recurso a procedimentos científicos com características diferentes (observação, formulação de hipóteses, realização de experiências, técnicas manipulativas, elaboração de conclusões, etc.), requerem a utilização de materiais específicos, semelhantes aos usados pelos cientistas, ainda que por vezes simplificados para facilitar a sua utilização; decorrem com frequência em espaços diferentes da aula (laboratório, campo). As atividades laboratoriais são executadas através de um procedimento laboratorial, cedido pelo professor, sugerido pelo manual escolar ou construído pelos grupos de trabalho, como resposta ao problema que se pretende investigar. A aprendizagem da metodologia científica requer a realização de investigações (Hodson, 1990). Estas são atividades de resolução de problemas que exigem que seja o aluno a descobrir uma forma de resolver o problema que lhe foi colocado ou que ele próprio gerou. A capacidade de utilizar metodologia científica, envolve uma grande diversidade de conhecimentos procedimentais. De acordo com De Pro (1998), estes incluem, as capacidades de investigação que têm a ver com aspetos como definição do problema, formulação de hipóteses, planificação de procedimentos, observação, medição, classificação, domínio de técnicas de investigação, tratamento e análise de dados e elaboração das conclusões. O trabalho de campo é realizado ao ar livre onde, geralmente, os acontecimentos ocorrem naturalmente. As fotos que acompanham este artigo, da autoria dos alunos, são disso prova. O Trabalho de Grupo exige regras de funcionamento na planificação do trabalho, com distribuição de tarefas e seu cumprimento, na execução das tarefas, no respeito pela opinião dos outros, (…). Propicia benefícios individuais diversos: sociais, académicos e psicológicos e desvantagens, tais como o surgimento de conflitos que, se devidamente geridos, são condição do desenvolvimento de um trabalho produtivo e de qualidade. O sucesso do trabalho de Grupo depende dos alunos mas também do professor. O professor é o supervisor, isto é, observa, apoia na realização das 15 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) tarefas, nas interações no seio do grupo (estimula o desenvolvimento de atitudes, tais como criatividade, curiosidade, reflexão crítica), ensina competências sociais, incentiva o empenho individual dos alunos nas tarefas de grupo. Atualmente, a disciplina de Biologia e Geologia (10.ºAno e 11.º Ano) possui um bloco letivo semanal de 135 minutos, que permite a realização de trabalhos prático-laboratoriais, e no 12.º Ano, a disciplina de Biologia possui um bloco de 90 minutos. Os conteúdos-alvo incidem nos subsistemas terrestres: Hidrosfera – MAR, Geosfera e Biosfera. Para a sua produção optou-se pela formação de dois grupos: um, constituído por alunos do 12.ºCT1 que trabalhou o conteúdo, A Geologia e o MAR. Este, engloba a génese das rochas sedimentares, ambiente sedimentar e ocupação antrópica da zona costeira. O outro grupo, constituído por alunos do 12.º CT2, trabalhou o conteúdo, A Biologia e o Mar, que privilegia o estudo do ecossistema marinho e preservação/recuperação do património natural. • O Mar e a Geologia Os conteúdos da geologia na disciplina de Biologia e Geologia no 10.º e 11.º Anos incluem a génese das rochas sedimentares (10.ºAno), o ambiente sedimentar e a ocupação antrópica (11.º Ano). Na península de Peniche, segundo Romão, J.M. (2009), afloram sucessões carbonatadas do Jurássico inferior a médio sobre a qual assentam depósitos aluviares, areias de praia e dunas. O registo sedimentar é caracterizado por conjuntos de sucessões de estratos com composição, forma, estrutura e disposição diferenciadas. No âmbito da génese das rochas sedimentares, os alunos de 10.º Ano realizam trabalho de Campo, visitando a praia do Portinho D’Areia Norte e/ ou a praia do Abalo. Estas, localizadas na parte norte da península de Peniche caracterizam-se por arribas, fig. 1, organizadas em estratos sedimentares sobrepostos. São constituídas por alternâncias de calcários intercalados com margas ricas em matéria orgânica (coloração mais escura). Os estratos apresentam abundante conteúdo fossilífero como exemplos, as amonites e as belemenites, fig.3 e 4. 16 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Na produção de trabalhos no âmbito desta saída de campo os alunos podem aplicar os princípios de estratigrafia, construir uma coluna estratigráfica, localizar fósseis e verificar a existência de diferentes características que distinguem os estratos – aprendizagem in loco. Podem ainda recolher areias de diferentes proveniências e observá-las à lupa binocular, fig.2. Fig. 1 - Estratos numa arriba. Portinho D’Areia Foto de Mariana Nunes (2013) Fig. 3 - Fóssil de amonite5 no estrato. Fig.2 – Areias observadas à lupa binocular. Norte - Peniche. Foto de Rita Sarreira (2014) Fig.4- Fóssil de belemenite6 no estrato. Fotos de Catarina Baptista (2013) Amonites, grupo extinto de moluscos cefalópodes, animais marinhos, extintos no final do Cretácico, há 65 milhões de anos (Ma). 5 Belemenites, animais marinhos muito semelhantes às lulas atuais. Viveram no período Cretácico e foram extintas à 65 Ma. 6 17 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) A recolha de fotos, pelos alunos, nas saídas de campo, revelam evidências sobre a génese das rochas sedimentares : meteorização7 → erosão8 → transporte9 → sedimentação10 → diagénese11, como ilustra a sequência de imagens da fig.5. Fig. 5 - Sequência de etapas que ilustram a génese das rochas sedimentares (meteorização, erosão, transporte, sedimentação e diagénese). Composição fotográfica de Catarina Baptista (2014) A erupção vulcânica da Papoa enquadra-se no conteúdo programático, génese das rochas magmáticas e/ou ambiente magmático (10º Ano e/ou no 11º Ano). 7 8 9 Alterações físicas e químicas das rochas Remoção de blocos após meteorização Movimento de “calhaus”/sedimentos pela água, vento, … 10 11 Acumulação de sedimentos numa bacia de sedimentação. Compactação e cimentação de sedimentos, formando rochas consolidadas. 18 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) A brecha vulcânica12, fig.6, localiza-se no istmo13 que efetua a ligação da Papoa com a plafaforma de abrasão marinha14, fig.7, da península de Peniche. As brechas vulcânicas aí existentes são superficiais, caracterizando-se por conter, segundo Romão (2009), fragmentos de rochas da parede de uma chaminé vulcânica. Fig.6 – Brecha Vulcânica – Papoa. Fig. 7 – Plataforma de abrasão – Peniche Fotos de Rita Sarreira (2014) Relativamente ao conteúdo programático ocupação antrópica e ordenamento do território, os alunos efetuam uma Saída de Campo ao Bairro do Visconde – Peniche. Fig.8 e 9. O Bairro do Visconde é uma zona habitacional que se localiza na zona litoral sul de Peniche. É uma zona caracterizada pelo grande risco geológico, fig.8 e 9, queda de blocos da arriba pois encontra-se no topo e limite de arribas calcárias. A meteorização química está presente na drenagem das águas pluviais e a meteorização mecânica, bem evidente na base das arribas, é consequência da ação do mar (fig.8). Brecha vulcânica corresponde a rochas clásticas cujos clastos/sedimentos (de angulosos a arredondados) são maiores de 2 mm. 12 Um istmo é uma porção de terra, estreita, cercado por água dos dois lados e que conecta com duas grandes extensões de terra. 13 14 Plataforma de abrasão marinha, faixa entre o mar e a arriba que fica descoberto na maré baixa. 19 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Fig. 8-Bairro do Visconde, meteorização mecânica. Fig. 9-Bairro do Visconde. Queda de blocos. Erosão – muro de suporte artificial. Fotos Rita Sarreira (2014) A ocupação antrópica corresponde à ocupação de zonas terrestres pelo Homem e a decorrente exploração, segundo as necessidades e as atividades humanas, dos recursos naturais. O ordenamento do território é o conjunto de processos integrados de organização do espaço biofísico, tendo como objetivo a sua ocupação, utilização e transformação de acordo com as capacidades do espaço. As arribas do Bairro do Visconde, são constituídas por um material rochoso consolidado, com uma inclinação acentuada e com pouca ou nenhuma cobertura vegetal.Com a saída de campo ao Bairro do Visconde, os alunos podem identificar e registar, in loco, os riscos geológicos do bairro e reconhecer as contribuições da geologia nas áreas da prevenção de riscos, ordenamento do território, gestão de recursos ambientais e educação ambiental. Nos trabalhos que produzem, os alunos reconhecem, rapidamente, a necessidade de estabilizar as arribas e, pesquisando, descobrem o programa FINISTERRA (Projeto de Intervenção na Orla Costeira Continental) que tem como objetivo prioritário imprimir um novo impulso à execução das medidas propostas e contidas nos POOC (Planos de Ordenamento da Orla Costeira), com intuito de requalificar e reordenar o litoral português, tornando as arribas mais 20 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) perigosas em arribas mais estáveis. Outras atividades: - Visita ao Campo de Lapiaz - Cabo Carvoeiro – Remédios, fig.10. Campo de Lapiaz caracteriza-se por um conjunto de geoformas típicas esculpidas numa plataforma carbonatada. Em Peniche, estende-se ao longo da linha de costa desde o mirador de Frei João até ao Forte de Peniche. (Romão, 2009). Exemplo de paisagem cársica, os lapiaz resultam da ação combinada de fenómenos de carsificação15 e erosão costeira imprimindo na paisagem uma imagem singular no contexto da linha de costa portuguesa (Duarte, 2009). Fig.10 – campo de Lapiaz – Peniche, Remédios. Foto de Rita Sarreira (2014) - Observação à Lupa binocular de areias, fig.2 – estudo da granulometria/dimensão e calibragem/grau de arredondamento. O estudo destas características nas areias permite conhecer a sua proveniência e inferir se tiveram ou não um longo “transporte” – génese das rochas sedimentares. - Análise de parâmetros físicos [transparência das águas, temperatura da água do mar e das poças de maré, velocidade relativa da corrente (poderá ser avaliada pela dimensão dos calhaus que consegue transportar, movimento da areia – quanto maior a energia de transporte maior será dimensão dos calhaus transportados)]; A carsificação é o processo do desenvolvimento da morfologia cársica, em rochas calcárias, que resulta da dissolução e da infiltração subterrânea de água. 15 21 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) - Medição da extensão da praia durante a maré cheia/preia-mar e a maré vazia/baixa-mar; - Análise de parâmetros químicos (determinação do pH, cálculo do doseamento de oxigénio, salinidade, … ); - Importância das dunas na preservação do património natural. Fig.11. No contexto da geologia, no 10.º Ano, as dunas surgem como um exemplo de identificação de uma situação-problema que possibilita aos alunos problematizar e formular hipóteses, testar e validar ideias – conteúdo procedimental – e, no domínio atitudinal, aceitar e discutir diferentes pontos de vista. Podem também ser alvo de estudo no 12.º Ano como se verá mais à frente. Fig 11 - Duna da Praia de Peniche de Cima. Foto de Rita Sarreira (2014) O Inverno de 2014 causou importantes danos nas dunas como comprova a fig.11 relembrando o Homem de que a intervenção na dinâmica do litoral tem de ser feita de forma equilibrada, ou seja, respeitando a dinâmica do litoral. • O Mar e a Biologia Na disciplina de Biologia e Geologia, 10.º Ano, no capítulo 1, Diversidade na Biosfera, no âmbito do conteúdo Diversidade, Organização, Extinção e Conservação, os estudos em ambientes naturais – conteúdo procedimental – concretizado nas Saídas de Campo através do registo sistemático de dados alia-se ao conteúdo conceptual, com o reconhecimento das funções dos diferentes constituintes do ecossistema e ao conteúdo atitudinal pela valorização do trabalho de grupo. Na disciplina de Biologia, 12.º Ano, na Unidade Preservar 22 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) e Recuperar o meio ambiente, analisam-se situações-problema que podem pôr em risco os ecossistemas e a sustentabilidade. No estudo dos ecossistemas enfatiza-se o estudo de um ecossistema marinho, fig.12 e 13 e do ecossistema dunar, fig.11,14 e 15. Fig.12 – Seres vivos marinhos, anémonas, … Fig.13 – ouriços-do-mar, bivalves, … Fotos de Tatiana Vitorino (2013) Um ecossistema é um sistema dinâmico, onde estão em permanente ligação sistémica os fatores abióticos (ambiente ou meio físico-químico) e os fatores bióticos (organismos e as suas interações). Os principais fatores abióticos num ecossistema marinho são: a luz, a temperatura, a água e a salinidade. Estes fatores influenciam a distribuição e a quantidade dos organismos no ecossistema e, quando um determinado fator impede o desenvolvimento de uma espécie, este passa a ser um fator limitante. Os fatores bióticos correspondem às interações que se estabelecem entre os seres vivos. As interações podem ser: intraespecíficas, se os organismos envolvidos forem da mesma espécie, ou interespecíficas, se ocorrerem entre seres vivos de espécies diferentes. No contexto da biologia, a diversidade do ecossistema dunar, no domínio da flora, possibilita a utilização de uma aplicação leafsnap, que permite a respetiva identificação taxonómica, in loco. As dunas formadas a partir de areias secas (geralmente quartzo) transportadas pelo vento depositam-se de acordo com o sentido preferencial do mesmo. À medida que estas se vão acumulando, a vegetação natural instala-se, 23 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) favorecendo a fixação da duna e a acumulação de mais areia. A importância deste ecossistema em Peniche é indiscutível e contribui para a estabilização da linha de costa, impedindo o avanço do mar, fig.11,14 e 15. A importância de preservar e recuperar este ecossistema está reconhecida através da aplicação de medidas regulamentadas no Diário da República16. A pesquisa inerente aos trabalhos que se realizam na visita às dunas permite aos alunos selecionar, organizar e tratar informação, como a registada no Quadro I. Concomitantemente, desenvolvem atitudes e valores – importância da preservação das dunas – e tomam conhecimento de iniciativas locais relacionadas com a preservação dunar, notícia 1. Fig. 14 – Dunas – Peniche. Fig. 15 – Dunas – Peniche. Fotos Ângela Cunha (2014) Quadro I – Classificação das dunas Nome da zona Praia (batida pelas ondas) Exemplos da flora microscópica Microalgas Praia (onde as ondas não chegam) de pequena dimensão Duna secundária ou móvel arbustiva e subarbustiva Duna primária ou inicial 16 Dimensão da vegetação Duna fixa ou ocupada http://www.legislacão.org/tag/dunas 24 espessa de grande dimensão Cardo marítimo e Feno das areias Estorno, Cordeirinho das praias Alfinete das areias, Raízdivina Camarinha PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Notícia 1 Câmara Municipal de Peniche lançou operação de proteção das dunas (28 de abril de 2005) “Construção do Sistema de Estabilização do Cordão Dunar Norte” é a operação ambiental que está em curso na costa de Peniche, numa iniciativa coordenada pelo Departamento de Energia e Ambiente da Câmara Municipal de Peniche. Os trabalhos desenvolvidos pelo município pretendem minimizar a erosão costeira e ocorrem numa extensão de costa de cerca de três quilómetros, mais concretamente entre a Praia de Peniche de Cima e a Praia do Baleal–Campismo. (…). As causas da erosão das dunas no concelho de Peniche passam pelo efeito conjugado da ação das marés, do vento e do caminhar sobre a vegetação, provocando recuos da base e descontinuidades nos taludes da duna primária, com a criação de aberturas de grande extensão, bem como a destruição do coberto vegetal que suporta a duna secundária. Os trabalhos em curso nesta primeira fase do projeto, entre a Praia de Peniche de Cima e a Praia da Cova de Alfarroba, numa extensão de 800 metros, consistem na construção de um sistema de retenção dunar através da colocação de barreiras de canas nas dunas primária e secundária, em fileiras paralelas à linha de costa. (…) Está também prevista a construção de três passadiços sobrelevados em madeira tratada para facilitar o acesso às praias pelos banhistas e para proteção do sistema de retenção dunar. Em breve será construído o passadiço na zona da Praia de Peniche de Cima. Este projeto contempla, também, ao longo do cordão dunar, a promoção do crescimento de espécies vegetais típicas dos sistemas dunares, tais como o estorno, a arméria e a sabina-dapraia, entre outras, para consolidação das dunas. Segundo o Engº Nuno Carvalho, responsável da Divisão de Ambiente e Serviços Urbanos da Câmara Municipal de Peniche, “através da promoção da retenção da areia nas dunas primária e secundária e do crescimento espécies vegetais próprias deste ecossistema, estão a ser dados passos fundamentais para a estabilização e preservação das dunas da costa norte de Peniche, minimizando-se os efeitos da erosão costeira”. http://www.cm-peniche.pt/News/ 25 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Outras atividades: - Observação ao microscópio de seres vivos presentes na água do mar (colhidas em locais diferentes) – atividade laboratorial e/ou observação de preparações definitivas de seres vivos marinhos (diatomáceas, plâncton, …); - Estudo da comunidade planctónica. Usa-se uma “rede de plâncton” e movimenta-se lentamente na água durante 2 a 4 minutos. Coloca-se a amostra colhida em frascos etiquetados, fixando-a com formol. Repete-se a operação em diferentes locais. No laboratório, observam-se ao microscópio. A Terra é hoje um planeta bem diferente de que era há milhares de milhões de anos e as rochas são o arquivo da sua história. Assistimos a uma degradação do ambiente e a sua contaminação põe em causa o futuro do planeta e até o da humanidade. É muito importante refletir e aplicar o conceito sustentabilidade17 para que o património natural seja preservado. O arquipélago das Berlengas (fig.15 e 16) é alvo do interesse das ciências, no que se refere à proteção e preservação do património natural. O mar do arquipélago alberga uma fauna marinha riquíssima, ímpar na costa portuguesa, sendo por isso um dos melhores locais para a prática de atividades subaquáticas. Também a flora é de extrema relevância e diversidade, albergando centenas de espécies botânicas na área. Fig.16 – Berlengas. Gaivota Larus michahellis Fig.17- Berlengas. Fotos Rita Sarreira A sustentabilidade está diretamente relacionada ao desenvolvimento económico e material sem agredir o meio ambiente, usando os recursos naturais de forma inteligente para que eles se mantenham no futuro. 17 26 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) A Reserva Natural das Berlengas é considerada Reserva Mundial da Biosfera pela UNESCO desde 30 de Junho de 2011, pelo que a proteção da biodiversidade e assunção de medidas que visem a reconciliação da conservação da biodiversidade com o seu uso sustentável é fundamental. Também a sua integração na Rede Natura 2000 (rede de áreas designadas que visam a conservação dos habitats e de espécies selvagens raras, ameaçadas ou vulneráveis na União Europeia) nas suas duas diretivas: diretiva Aves (relativa à conservação das aves selvagens) e diretiva Habitats (relativa à proteção dos habitats, da fauna e da flora), veio auxiliar na conservação e na divulgação para a necessidade de valorizar e proteger esta área. Para além disso, o arquipélago integra também a Rede de Reservas Biogenéticas do Conselho da Europa. Alguns exemplos de preservação in loco visam a preservação do património local, tais como a sinalética de encaminhamento dos percursos para uma mais eficaz preservação da fauna e da flora e a proteção dos locais de nidificação das aves locais (falcão peregrino, corvo marinho de crista, airo, pardela de bico amarelo, etc.). No âmbito da Biologia, no 12.º ano, no capítulo A Biologia e os Desafios da Atualidade, no ponto 2, Preservar e Recuperar o Meio Ambiente, os alunos podem explorar o conteúdo A Proteção da Biodiversidade e conhecer projetos relacionados com a monitorização das gaivotas. Um projeto a conhecer relaciona-se com a monitorização das gaivotas em Peniche. O controlo da população de gaivotas em Peniche foi, durante alguns anos e até 2012/2013, assegurado pela autarquia. O Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas (ICNF) é atualmente responsável pelo controlo da população de gaivotas na ilha das Berlengas. De acordo com informações prestadas pela Dra. Maria de Jesus Fernandes, diretora do Departamento de Conservação da Natureza e das Florestas de Lisboa e Vale do Tejo o programa de controlo anual do crescimento populacional da colónia de gaivotas-de-patas-amarelas, Larus michahellis (fig.16 e 17), iniciou-se em 1999 na ilha das Berlengas, tendo sido efetuadas quinze campanhas de controlo de natalidade até ao momento (fevereiro de 2014). O processo utilizado consiste na destruição dos ovos. Na cidade de Peniche, a emulsão em óleo dos ovos de gaivota cria uma película que impede o embrião de respirar 27 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) causando-lhe a morte, sem que seja necessário partir os ovos. Contudo, este processo é mais moroso e só pode ser aplicado em locais com acesso facilitado, bastando uma passagem por cada ninho pois as aves adultas continuam a chocar os ovos, não fazendo, na maioria dos casos, novas posturas. Na ilha das Berlengas, o número de ovos destruídos varia entre os 75 000 e os 55 000, sensivelmente, tendo a população estagnado nos 20 000 indivíduos (valor aproximado), encontrando-se atualmente abaixo deste valor (próximo dos 15 000). Por questões de eficácia custo/resultado, a campanha de destruição de ovos de gaivota é concentrada em três semanas, com intervalos de quinze dias entre si. Esta metodologia tem em conta a capacidade reprodutora da espécie, uma vez que as gaivotas têm a capacidade de repor continuamente ovos caso a ninhada ainda não esteja completa ou caso os ovos sejam destruídos na primeira ou segunda semanas de incubação. A campanha realiza-se entre 15 de maio e 30 de junho (sensivelmente), sendo destruídos todos os ovos, excetuando os das áreas de controlo previamente definidas e que permitem avaliar o sucesso do programa. A monitorização dos ovos de gaivota contribui para a preservação de espécies como o sardão e outras que lhes servem de alimento. Estas são algumas das atividades e projetos que o laboratório natural – Peniche - permite quer através da recolha de evidências, quer pelo estudo e observação in loco. No início deste ano letivo as turmas de Biologia de 12.º Ano, coordenadas pela professora Ângela Cunha, reuniram documentos fotográficos recolhidos ao longo do percurso na escola secundária18, nas disciplinas de Biologia e Geologia (10.º e 11.º Anos) e de Biologia (12.º Ano) e organizaram uma exposição cujo cartaz de divulgação consta da fig. 17. Os documentos expostos foram organizados num portefólio disponibilizado na biblioteca escolar. 18 Anos letivos: 2011/2012, 2012/2013 e primeiro período de 2013/2014. 28 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Fig.17- Foto do Cartaz da Exposição. Rita Sarreira (2013) Da prática docente é possível inferir que o trabalho prático motiva a aprender, ajudando a melhorar ambientes de aprendizagem e contribuindo para veicular imagens adequadas da ciência, dos seus problemas, preocupações e das suas contribuições para a compreensão do mundo em que vivemos. A motivação dos alunos é incrementada e a execução de trabalhos laboratoriais propicia um desenvolvimento positivo das suas atitudes, aumentando o seu interesse. Envolve os alunos em todos os passos do raciocínio científico, dando-lhes oportunidade de trabalhar como um cientista, vivendo e compreendendo os passos dos cientistas (Martins, 2005). O impacto dos trabalhos práticos a nível cognitivo associa-se à capacidade na aprendizagem dos alunos, tornando-a mais eficaz, isto é, maior interesse e curiosidade nas áreas de investigação. Desenvolvem-se competências científicas, ao nível dos procedimentos, das técnicas e da cooperação entre os alunos patente no desenvolvimento das relações interpessoais e no incremento da dinâmica do trabalho entre pares (Jorge, 2007). 29 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Referências Bibliográficas e Webgráficas Brilha, José e Pereira, Paulo. Geossítios a visitor em Portugal. Rochas e fósseis da peninsula de Peniche, p. 69. Porto Editora. 2012 De Pro, A., (1998). Se pueden enseñar contenidos procedimentales en las clases de ciências?. Enseñanza de las Ciencias, 16(1), pp. 22-41 DGIDC (Direcção-Geral de inovação e de Desenvolvimento Curricular) 2003. Documento orientador da Revisão curricular do Ensino Secundário. Lisboa. Ministério da Educação, Abril. Duarte, Luís, Património Geológico de Peniche. Elementos para a sua caracterização. 1ªs Jornadas de Arqueologia e Património da Região de Peniche. 2009. Hodson, D., (1990). A Critical look at practical worck in School. Science Review, 70 (256), 33 a 40 http://geossítios.progeo.pt , acedido em 13 de março de 2014 http://naturlink.sapo.pt/Natureza-e-Ambiente, acedido em 18 de janeiro de 2014 http://penicheseguro.blogspot.com, acedido em 19 de janeiro de 2014 http://pt.wikipedia.org/ , acedido em 18 de fevereiro de 2014 http://recursos.portoeditora.pt/recurso?, acedido em janeiro 2014 http://www.cmpeniche.pt/ , acedido em 18 de fevereiro de 2014. http://www.cm-peniche.pt/ , acedido em 19 de janeiro de 2014 http://www.cm-peniche.pt/, acedido em 14 de janeiro de 2014 http://www.legislacao.org/, acedido em 14 de fevereiro de 2014 http://www.planetazul.pt/ , acedido em 18 de fevereiro de 2014 https://www.google.com/ , acedido em janeiro, fevereiro de 2014 Jorge, (2007). “A emergência dos Trabalhos Práticos de Genética no Ensino das Ciências no Secundário”. Dissertação de Mestrado em Biologia e Geologia para o ensino, Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro. Vila Real. 30 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Lopes, José e Silva, Helena. A Aprendizagem Cooperativa na sala de aula. Um guia prático para o professor. LIDEL. 2009 Marques, E. et al (1999), Técnicas Laboratoriais de Biologia. Bloco I. Porto Editora Marques, Miguel (2007). Uma Breve História da Terra. Biologia e Geologia. Livro do Professor. Ensino Secundário. Edições ASA Martins, E. (2005), Uma perspectiva histórica do ensino das Ciências Experimentais. Revista Bimensal. Edição 13. Motta Lucinda, Viana Maria. (2008). Bioterra - Sustentabilidade na Terra (1ª Edição). Porto Editora. Romão, J. N. (2009), Património geológico no litoral de Peniche: geomonumentos a valorizar e a divulgar. Geonovas, nº 22:21 a 33. 31 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) A PESCA DA SARDINHA EM PENICHE DURANTE O SÉC. XX Élio Ribeiro19 Nota Introdutória: O texto que se segue é um resumo da tese “A pesca da sardinha em Peniche durante o séc. XX” realizada no âmbito do Mestrado em Estudos Integrados dos Oceanos (2007-2010), numa parceria entre a Escola Superior de Tecnologia do Mar e a Universidade dos Açores. Tratou-se de um levantamento bibliográfico e estatístico, no qual se tentou caracterizar a pesca de sardinha local durante o período de 1939-2007, bem como os seus efeitos nos seus principais intervenientes. Para tal começouse por realizar uma colecta de vários tipos de dados estatísticos no Instituto Nacional de Estatísticas (INE). Estes incluíam registos referentes à quantidade de sardinha em quilogramas desembarcada anualmente no porto de Peniche, bem como o valor monetário total obtido pela venda da sardinha em lota. De seguida, tornou-se necessário adquirir o número de traineiras matriculadas em Peniche durante o período acima referido que, juntamente com os valores obtidos do número de tripulantes normalmente a bordo de cada embarcação, permitiu saber o número de mestres, contramestres, motoristas e pescadores que se encontravam matriculados nesta actividade em Peniche. Ao contrário dos valores anteriormente referidos, estes dados não provêm do INE pela simples razão de este não discriminar nas Estatísticas de Pesca anuais quantas embarcações se encontram matriculadas por porto de pesca Licenciado e Mestre em Biologia Marinha - Investigador da Patrimonium, centro de Estudos e Defesa do Património da Região de Peniche. 19 33 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) mas sim apenas por regiões. Após se ter verificado que tanto a Capitania de Peniche como a Direcção Geral de Pesca e Aquicultura (DGPA) e órgãos associados não conseguiam disponibilizar dados tão antigos respeitantes a Peniche, tornou-se assim necessário proceder-se uma recolha destes dados noutras fontes. Este facto não só deu origem a uma recolha de dados em diversas fontes como no OPCENTRO de Peniche, no Grémio dos Armadores da Pesca da Sardinha presentemente armazenado no arquivo da DGPA e também a partir dos valores referidos nos “Apontamentos para a História da Pesca da Sardinha e da Construção Naval em Peniche” (Peixoto,1991); bem como à impossibilidade de se conseguir um registo completo. No entanto, espera-se que tenha trazido alguma elucidação em relação à evolução deste sector primário durante o séc. XX do qual a comunidade local tem vindo a depender e de que futuro se avizinha. Arte de traineira de cercar para bordo em Peniche De acordo com Peixoto (1991), terá sido em 1913 que se iniciou em Peniche a pesca da sardinha por este método com a aquisição da primeira traineira que entrou no seu porto. Comprada em Vigo, Espanha, tratava-se de uma traineira bastante rudimentar para os padrões actuais, sendo movida a remos e à vela (Fig.1). No entanto trazia consigo uma porção de espoletas e ovas de bacalhau para além dos utensílios de bordo para a prática desta arte. Devido ao desconhecimento geral da comunidade piscatória de Peniche acerca desta “nova” arte de pesca da sardinha, juntamente com a embarcação veio um homem ensinar como se pescava por novo processo. 34 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Figura 1 - Traineiras importadas do “tipo Vigo” – 1913/1914 Esta arte tinha basicamente uma rede (Fig.2) que, tendo na parte de cima boias de cortiça e na parte de baixo chumbadas, depois de largada em círculo podia ser fechada por baixo, graças a um conjunto de argolas (anilhas), colocadas a partir da tralha inferior, passando por elas um cabo (retenida) que permite, ao ser puxado para bordo, fechar o fundo da rede, ficando completamente preso o peixe. De seguida vai-se colhendo a rede para bordo até que tenhamos a possível pescaria em condições de ser enxalaviada. Figura 2 – Esquema da arte de cercar pela borda 35 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Para auxiliar a traineira, utiliza-se uma pequena lancha que é lançada ao mar no início da pescaria com a função de segurar a extremidade da rede sendo recolhida pelo pessoal de bordo após completado o cerco. A deslocação da embarcação era feita a remos, utilizando uma rede de fio de algodão com o comprimento de aproximadamente 70 braças, um tamanho pequeno que se justificava pelo facto a rede era fechada e colhida apenas através da utilização de trabalho manual, tratando-se de um processo bastante moroso. No entanto a utilização de ovas de bacalhau como engodo e a utilização de espoletas explosivas como atordoador, permitia à companha ganhar algum tempo e completar a tarefa. Alterações nos cascos e sua monitorização Com a introdução da primeira traineira a remos de Vigo em Peniche em 1913, seguiu-se a importação nos dois anos seguintes de mais de 12 unidades com tamanhos que podiam atingir os 13 metros de comprimento, embora já se tivesse começado a construir-se em Peniche em 1914 a traineira do “tipo Vigo” Em 1924, a primeira grande inovação tecnológica acontece com a motorização da primeira traineira do “tipo Vigo”, seguindo-se a motorização da restante frota de traineiras concluída em 1927, ano em que também foi criado um novo modelo de casco baptizado de “tipo Peniche”. Estes avanços tecnológicos permitiram dar uma mais rápida e maior raio de deslocação e de acção à frota de traineiras, acelerando o processo do cerco aos cardumes bem como permitindo a utilização de redes um pouco maiores (80/90 braças de comprimento com um altura que variava entre os 25/27 braças). Entre 1928/29 foram montados em cascos com um comprimento entre 10-11 metros os primeiros modelos de motores a petróleo, que possuíam um arranque a gasolina, com uma potência entre 15/18 HP e 20/24 HP (Fig.3 e 4). 36 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Figura 3 - Traineira do “tipo Peniche” com motor de petróleo de 20/24 HP instalado – anos 30 Em 1932, a melhoria da frota evidencia-se com a substituição sucessiva de cascos e pela instalação de novos motores, começando-se a notar uma diminuição no emprego da peca como por “engodo” que utilizava ovas de bacalhau, começando-se a dar preferência à pesca do “saltio” e à “ardente”. Nesse mesmo ano inicia-se o processo de instalação de guinchos nas embarcações, processo que dura até 1933, que iriam substituir o trabalho manual de puxar a gereta (Fig.5), para fechar a rede, por uma força mecânica impulsionada pelo próprio motor da traineira, por transmissão aplicada a “guincho”. 37 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Figura 4 - Traineira do “tipo Peniche” na doca – anos 30 Figura 5 – Recolha manual de retenida (gereta) 38 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Dois anos depois, aparecem os primeiros motores a petróleo com uma potência de 30 HP (Fig.6), bem como um aumento das redes com o aparecimento do primeiro motor a gasóleo em 1936. Figura 6 – Traineira do “tipo Peniche” com motor de petróleo de 30 HP instalado – anos 30 A década de 40 é principalmente caracterizada por dois eventos: Devido ao racionamento imposto pela Segunda Guerra Mundial, em 1942 é-se atribuído apenas 50 litros por dia a cada traineira que passariam a ter como obrigação serem abastecidas no porto de matrícula. Tratou-se de uma medida pouco popular entre os armadores de Peniche uma vez que se viram obrigados a comprar óleo de baleia para misturar com o gasoil de modo a proporcionar mais algumas horas de trabalho na exploração da pesca. Anos depois, entre 1947–1948 é-se instalado o primeiro rádio numa traineira que se mostra uma boa alternativa à utilização periódica de pomboscorreios como forma de se ter noticias das embarcações. 39 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Introdução de sondas electrónicas na pesca de cercar para bordo, Novas normas de construção de embarcações Uma nova evolução na pesca da sardinha começou em Dezembro de 1951 com a montagem da primeira sonda “Fishlupe” e sua utilização logo no início de Janeiro do ano seguinte. Seguiu-se a instalação em diversas embarcações de outras sondas electrónicas de pesquisa na perpendicular bem como de registo em papel (Fig.7), um sinal de que a frota local está em plena fase de evolução, destronando os processos de pesquisa visual de cardumes de sardinha adoptados até então, permitindo detectá-los tanto de dia como de noite através de eco-localização, indicando também a natureza do fundo bem como a profundidade. Figura 7 – Registo de sonda electrónica. Pesquisa na perpendicular 40 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) No entanto, com avanço tecnológico tornou-se necessário alterar as dimensões das embarcações que a partir desse momento fossem construídas. Devido a limitações legais, até ao requerimento colocado pelos armadores de Peniche ao Ministério da Marinha em Janeiro de 1954 para aumentar o comprimento do casco em um metro para permitir a construção de um porão frigorífico para o transporte de gelo, as embarcações possuíam um comprimento de 11-13 metros. Após a aceitação desse pedido, passou-se a poder construir cascos maiores e com melhores condições de navegabilidade com a mesma força motriz e já equipados com porão frigorífico, passando-se a encontrar logo nos dois anos seguintes embarcações com comprimento total de 16/17 metros, equipados com motores de 130/170 HP e com redes com cerca de 150 braças de comprimento (Fig.8). Figura 8 – Traineira construída já de acordo com as novas normas de construção As embarcações continuam a aumentar de tamanho de ano para ano e já em 1958/59, encontramos traineiras com 19 metros e motores com 230 HP de potência. Foi também neste período de tempo que se utiliza experimental41 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) mente rede em fibra de nylon. Tratando-se de uma rede levíssima e com maior durabilidade, permitiu o aumento do tamanho das redes (em 1959, emprega-se 80 braças de nylon para se obter uma de 200 braças de comprimento) e diminuir o tempo de fecho do cerco. A popularização desta nova rede condena as redes de algodão a uma gradual extinção. Em 1960, atinge-se o número máximo de traineiras matriculadas em Peniche (83), com a presença de embarcações com 21 metros de comprimento equipados com motores de 300 HP de potência. Já no final da década de 60, assiste-se a mais uma melhoria tecnológica com a instalação de aladores em 1967 (Fig.9) nas traineiras. Figura 9 – Traineira com aladores instalados A introdução de aladores a partir desse momento veio permitir um novo aumento no comprimento das redes. 42 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Anos 70 Após a adopção, ainda em 1969, do novo formato de popa baptizada de “Popa de Painel”, que permite uma maior capacidade num casco do mesmo comprimento bem como uma melhoria nas condições de navegabilidade; torna-se lugar-comum ter matriculado no Porto de Peniche na década de 70, traineiras com cascos de 22 a 25 metros de comprimento com motores ainda mais potentes, com o máximo de 400 HP de potência. A bordo, para além do radar como auxiliar de navegação, encontrava-se guinchos potentes e hidráulicos bem os recentemente introduzidos aladores que permitem a utilização de redes agora totalmente feitas de nylon com 300 braças de comprimento e 50 braças de altura (Fig.10). Com o aumento das dimensões das embarcações também veio associado o aumento das tripulações sendo normal encontrar-se a bordo uma tripulação de 22 homens. Figura 10 – Típica traineira da década de 70 43 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Dos anos 80 à actualidade Chega a década de 80 e com ela o aumento de todo o que pode ser aumentado e o melhoramento de tudo o que poder ser melhorado numa embarcação. Assim, temos traineiras com o comprimento de 25/26 metros, equipada com motores de 400/420 HP e com tripulações de, normalmente, 18 homens. As redes também aumentaram o seu tamanho chegando às 420 braças de comprimento e 84/85 braças de altura o que vai permitir pescar a maiores profundidades. (Fig.11) Figura 11 – Embarcação “Rainha de Peniche”, exemplo claro do tipo de traineira utilizado neste período. A bordo encontram-se guinchos poderosos, aladores aperfeiçoados, bem como sondas electrónicas de pesquisa tanto na perpendicular (Fig.12) como na horizontal (Fig.13) 44 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Figura 12 – Sonda de pesquisa na perpendicular com projecção a cores em ecrã Figura 13 – Pesquisa na horizontal num raio de 1400 metros, numa pesquisa de 180⁰ Também se começa a empregar na pesca um emissor-sonda (Fig.14) que, quando aplicado numa das anilhas da rede indica a velocidade a que a rede se afunda, onde se localiza o cardume e mostra o fundo. O emprego deste aparelho para além de facilitar a pesca irá evitar a perdas de redes em fundos duvidosos. 45 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Figura 14 – Transmissão de um emissor-sonda indicando o percurso do chumbo da rede, a configuração do fundo e a profundidade a que se encontra o peixe. Sistema de remuneração De acordo com Peixoto (1991), em 1938 é estabelecido oficialmente o sistema de renumeração do trabalho que se encontra juntamente com as condições de matrícula para as traineiras no artigo 10 º: “O produto líquido da pesca (após dedução dos encargos com alimentação, gasóleo, redes, impostos, etc.), divide-se da seguinte forma: 14 partes para o proprietário da arte, 4 partes para o mestre, como administrador directo da exploração da pesca, duas para o contra-mestre ou piqueiro, duas e meia para o motorista e uma para cada companheiro e moços.” É de notar que o número de partes que o proprietário recebia foi aumentando ao longo dos anos e assim temos o armador a receber 17 partes a partir de 1943. Na década de 50, no breve período de 1952-1953 é determinado que 46 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) o armador deverá receber mais 3 partes do que recebia 9 anos antes, passando agora a receber 20 partes do produto líquido da pesca. Um ano depois, finalmente estabelece-se que o proprietário passa a receber 48%. Legislação Nacional A formação profissional do sector marítima tem como suporte legislativo de base o Regulamento de Inscrição Marítima (RIM) que data de 1964 (Almeida, J.F. et al., 2000). Trata-se de uma legislação que tem sofrido alterações ao longo dos anos na tentativa de se adaptar à realidade do sector de acordo com as evoluções introduzidas nomeadamente ao nível de tripulação, lotações, categorias de pessoal entre outras. Embora este documento tenha servido de apoio à actividade, já houve muitas tentativas de o substituir de modo a torna-lo mais consentâneo com as disposições constitucionais, mais propriamente na relação de trabalho de que recentemente se tornou autónomo através do Regime Jurídico do Contracto Individual de Trabalho aprovado pela Lei nº15/97, de 31 de Maio que substitui tanto na prática como no direito, o contracto de matrícula. Esta mesma Lei também aconselha um conjunto de medidas que possam preencher lacunas existentes ao nível da contratação individual de trabalho, que data de 1969, tendo-se verificado que têm sido publicados uma série de portarias e regulamentos parcelares. Nesse sentido a Lei nº15/97, de 31 de Maio conseguiu regulamentar situações irregulares bem como institucionalizar os direitos e deveres do trabalhador e da entidade patronal. O contrato individual de Trabalho a Bordo das Embarcações de Pesca é praticamente uma transição do contrato individual de trabalho. Por regra, nas embarcações que se dedicam à pesca do cerco a distribuição do produto líquido da venda do pescado é feita, normalmente, da seguinte forma: 4 partes para o mestre; 2 partes para o contramestre; 2,5 partes para o motorista; 1,5 partes para o ajudante de motorista; 1 parte para a companha de mar (uma por cada elemento). 47 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) No entanto, o facto deste sistema de remuneração por partes, em que os rendimentos dependem apenas dos resultados da venda do pescado captura, mostra ser um inconveniente para o pescador, uma vez que este é Rendimentos de Pesca Um estudo realizado pelo Grémios dos Armadores da Pesca da sardinha em 1965 intitulado “Estudos sobre a evolução da pesca da sardinha relacionadas com a pesca da sardinha - 1965” permitiu-lhes calcular qual a percentagem dos encargos que se traduziam numa subtracção da receita bruta de pesca e discriminá-los em “Encargos fixos” e “Encargos variáveis”. Quadro 1 - Encargos fixos e variáveis suportados pela frota de traineiras durante o período de 1940-1965. Encargos fixos 1) Imposto do Pescado 7,00% 3) Imposto do Selo 0,21% 48 Taxas 2) 4) 5) Imposto Municipal Grémio Mutua 3,00% 1,00% 3,62% PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Encargos variáveis 6) 8) 10) 7) 9) Contribuição Industrial Licença de estabelecimento comercial e industrial 0,37% Diversos 3,05% 0,17% Juntas autónomas 1,00% Previdência Social 1,03% 20,45% Total de encargos O Quadro nº1 demonstra que a actividade suportava encargos na ordem dos 20,45% da receita bruta de pesca efectuada, muito devido ao Imposto do Pescado (7%) e do Municipal (3%), que traduziam quase metade os encargos totais. Tratava-se de um grande encargo principalmente quando se tem em conta que os “Diversos” que incluem manutenção das embarcações e seus apetrechos, alimentação, combustível, redes, etc., são apenas 3,05%. O seguinte quadro foi elaborado através dos dados fornecidos por um armador anónimo de Peniche. Nele encontram-se os “custos e perdas” associadas a uma traineira moderna em tudo semelhante às que entraram em serviço a partir dos anos 80. 49 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Quadro 2 – Custos e perdas suportados pela frota de traineiras no ano de 2009. 50 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) O Quadro nº2 mostra que existe actualmente uma carga financeira muito superior à verificada no período de tempo de 1940-1965. Embora a percentagem correspondente ao pagamento de impostos tenha baixado drasticamente e não esteja referido qualquer pagamento ao Grémio que foi extinto em 1975 (Peixoto, 1991) ou à Mutua, verifica-se que os custos de manutenção da embarcação aumentaram cerca de 10 vezes (de 3,05% para 30,83%) e os gastos sociais quase 16 vezes (15,93% actualmente em comparação com os 1,03% verificados anteriormente). Este aumento dos Custos gerais de 20,45% para 48,80% na prática significa que metade da Receita Bruta que o armador obtém através da venda do pescado em lota será apenas para os pagamentos dos encargos gerais suportado pelo armador sem contar com o pagamento das remunerações à tripulação. Variação do número de traineiras matriculadas no período de tempo entre 1939 e 2007 A seguinte figura mostra a variação do número de traineiras que se dedicava à pesca do cerco matriculadas no porto de Peniche entre 1939 e 2007. Figura 15 – Variação do número de traineiras matriculadas em Peniche durante o periodo de 1939-2007. 51 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Apesar de se tratar de um registo incompleto, tal como foi anteriormente referido, verifica-se que entre 1939 e 1941, houve uma queda no número de traineiras em actividade nos primeiros anos da Segunda Guerra Mundial muito provavelmente devido à instabilidade vivida nos primeiros dois anos da guerra à qual o racionamento de provisões bem como o de combustível no ano seguinte não terá ajudado a situação. No entanto, já em 1943 verifica-se que estão mais 10 traineiras em actividade do que 1941 o que, quando relacionado com uma grande industria conserveira local e uma enorme necessidade de alimentar os soldados aliados com enlatados torna-se compreensível. Não existem registos desde 1944 – 1947 mas tudo leva a crer que nesse período a frota local apresentou crescimento estável uma vez que em 1948 existem 78 traineiras matriculadas em Peniche. Novamente, de 1949 – 1956 os registos são escassos tendo-se obtido dados que em 1957 encontravam-se 74 embarcações em actividade em Peniche e novamente o mesmo número no ano seguinte, indicando que o período anteriormente mencionado poderá terá sido um período relativamente estável no que diz respeito ao número de traineiras matriculadas localmente. Segue-se 1961 em que se atinge o maior número de sempre de traineiras em actividade em Peniche (83), ano a partir do qual se tem verificado um número cada vez menor de embarcações matriculadas tendo-se atingindo em 2007 um mínimo histórico de apenas 15. Variação dos desembarques efectuados em Peniche durante o período de 1939 e 2007 Na seguinte figura elaborou-se um gráfico a partir do dados obtidos dos desembarques de sardinha em Peniche de modo a demonstrar a variação do peso desembarcado porto local entre 1939 e 2007. 52 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Figura 16 – Variação dos desembarques totais (Kg) em Peniche durante o período de 19392007. Constata-se, ao analisar a figura 17, que os primeiros anos da amostragem são caracterizados por ligeiras variações nas quantidades descarregadas de sardinha até ao ano de 1947. Seguiu-se num período de 2 anos, uma queda extrema na ordem das 6.500 toneladas registando-se em 1949 um valor mínimo histórico de apenas 1.096 toneladas desembarcadas. No entanto, é de notar que em apenas 7 anos, em 1954, já se registam desembarques superiores aos de 1947. Este aumento poderá estar relacionado com o provável grande número de traineiras em actividade associado à utilização cada vez mais comum da tecnologia de sondas electrónicas na pesca da sardinha. Também é a partir desse ano que se nota a evidência de um aumento gradual das descargas realizadas na lota local até atingir um pico máximo em 1986 de 22392 toneladas, ano a partir do qual se verifica um decréscimo mais ou menos acentuado até 2007 em que foi descarregado apenas 8.866 toneladas. É de realçar que durante o período 1947-1986 ocorrem dois períodos de tempo que se verificou quedas abruptas nas descargas: entre 1967-1970 e 1974-1977, períodos de tempo em que há muito que se verificava a diminuição 53 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) do número de traineiras na frota local. No entanto após estas crises de 3 anos verifica-se que existe sempre um rápido aumento nas descargas. Ao verificarmos o historial da frota local parece existir quase como que um paralelismo entre os períodos de crise e o melhoramento da frota, ou seja, após um espaço de tempo em que a quantidade descarregada diminui localmente verifica-se o aumento no tamanho das embarcações e o melhoramento dos apetrechos a bordo resultando num aumento rápido dos desembarques nos anos seguintes, verificando-se também em menor grau em 1951. Valores monetários uniformizados de acordo com as variações da taxa de inflação anuais Através da utilização das taxas de variação anuais de inflação, foi possível, após uma rápida conversão de escudos para euros, elaborar o seguinte gráfico que contem os valores inflacionados tanto valor total obtido pela venda da sardinha na lota como do preço a que foi vendida ao quilo. Para se realizar esta uniformização considerou-se que o valor estimado para cada ano seria igual ao valor registado no ano anterior acrescido taxa de inflação desse ano. Figura 17 – Valores totais (€) e Preço/Kg (€) inflacionados de acordo com as taxa de inflação anuais verificadas durante o período de 1939-2007. 54 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) A figura 17 mostra uma tendência (esperada) do aumento progressivo tanto do preço de venda por quilograma de sardinha bem como do valor total obtido pela venda da mesma em lota. Mas é de notar que esse crescimento passa a ser mais acentuado a partir de 1975, atingindo o primeiro pico em 1991. Este aumento parece estar relacionado com os altos níveis de inflação que se registaram entre 1974 e 1985, muito provavelmente devido à instabilidade pós-25 de Abril que se verificou, e que variaram entre os 15,2% e os 29,3%. Entre 1991 e 2007, verificam-se constantes picos e quedas, principalmente dos valores obtidos da venda em lota. Se examinarmos o nível de desembarques durante esses anos (Fig.18) podemos ver que o aparecimento de picos e de crescimento mais acentuado do preço/kg da sardinha é precedido por períodos em que os desembarques estiveram em baixa, havendo uma quedas dos valores assim que os desembarques voltam a aumentar. Trata-se da aplicação directa da “Lei da Oferta e da Procura”:, - em intervalos de tempo com menos oferta (neste caso, uma quebra nos desembarques), o preços tiveram a tendência para aumentar; mas a partir do momento em que passou a existir uma maior oferta, verifica-se uma diminuição dos preços. Figura 18 – Comparação entre a quantidade de sardinha desembarcada (Kg) em Peniche e o valor total (€) observado pela sua venda entre 1976 e 2007. 55 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Embora o emprego desta lei seja mais evidente no período de 16 anos mencionado acima, devido à presença de picos, na figura seguinte em que se considera o período de 1939-1975, em cerca de metade da amostra (34), o preço de venda da sardinha em Peniche mostra influências de algo mais do que a inflação. Figura 19 – Comparação entre a quantidade de sardinha desembarcada (Kg) em Peniche e o valor total (€) observado pela sua venda entre 1939 e 1975. Com algumas excepções, verifica-se que existe um paralelismo entre o aumento do valor obtido da venda do pescado e do nível dos desembarques. Embora isso não queira dizer que a “Lei da Oferta e Procura” não se verificasse neste período, - esta tendência parece indicar não era possível baixar o preço de venda independentemente das quantidades pescadas, pelo contrário parece verificar-se o aumento dos preços quanto mais se pesca. Se considerarmos que, entre 1939 e 1974, ainda se encontrava em vigor o Imposto de Pescado (terminado em 1970), bem como o pagamento ao Grémio dos Armadores da Pesca da Sardinha que se traduzia em 8% dos cerca de 20,5% das despesas, consegue-se entender o porquê desta tendência. 56 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Receitas de Pesca Os seguintes cálculos foram realizados utilizando tanto o Quadro 1 como, e graças à disponibilidade de um armador de Peniche de facultar dados recentes referentes à sua embarcação, o Quadro 2 como referência. De modo a facilitar esses mesmos cálculos bem como a sua compreensão, a amostra foi dividida, como anteriormente, em dois períodos de tempo: 1) 1939 a 1970 – Um período de tempo caracterizado por uma grande carga fiscal pela presença do Imposto do Pescado e pela comissão ao Grémio dos Armadores da Pesca da Sardinha, com um crescente nível de desembarques e pelas maiores inovações na arte da pesca do cerco. 2) 1980 a 2007 – Um período de tempo caracterizado por uma diminuição persistente dos níveis de desembarques a partir do ano de 1986 - em que se atingiu um máximo histórico de um período de tempo anterior com um grande nível de inflação, dos últimos melhoramentos das tecnologias de pesca e do aumento das dimensões das embarcações. 1939 – 1970 Ao analisar-se o Quadro 1 e as ocorrências verificadas durante este período, tem-se que: • • Os encargos fiscais e parafiscais referentes ao Quadro 1 eram pagos pelo armador a partir da Receita Bruta obtida pela venda da sardinha em lota. De 1939 a 1970, esses encargos correspondiam a 20,45% do Lucro Bruto, muito devido à elevada carga fiscal por parte dos Impostos. 57 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) É de referir que, embora à primeira vista, os encargos fiscais e parafiscais não pareçam ser muito elevados, há que ter atenção que estes não incluem o pagamento à tripulação, outro encargo suportado pelo armador e muito menos o Rendimento Líquido que o mesmo obtinha da pesca. Também é de notar que embora o Quadro 1 se refira aos encargos verificados de 1940 a 1965, incluiuse os anos de 1939, 1966 a 1970 por se considerar que não existiram mudanças significativas nas frotas nesses anos. Quadro 3 – Divisão geral da Receita Bruta entre 1939 - 1970 Como anteriormente referido e ao contrário da maior parte dos empregos, o pagamento aos homens a bordo das traineiras não era e continua a não ser fixo mas sim feito através de um sistema de “partes” (Peixoto,1991) cujo número varia conforme a posição hierárquica que cada um ocupa na embarcação, conforme expresso no seguinte quadro: Quadro 4 – Número de “partes” recebidas por cada posição hierárquica a bordo das traineiras no período de 1939 a 1970. 58 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Também incluído no sistema de “partes” encontrava-se o armador cujo número de partes, ao contrário das suas tripulações, foi aumentando ao longo dos anos até 1953, ano em que fica estipulado que passava a receber uma percentagem fixa de 48% (Peixoto,1991). Resumidamente: Quadro 5 – Número de “partes” e percentagem recebida pelo armador durante o período de 1939 a 1970. A bordo das embarcações, o número de tripulantes teve a tendência a ser bastante regular (16), mesmo com as progressivas autorizações de aumentar as dimensões das traineiras e dos apetrechos instalados (Peixoto, 1991). O número de partes que a tripulação recebia, tendo em conta que a bordo existia um mestre, um contra-mestre, um motorista e que os restantes tripulantes eram considerados companha; encontra-se exposto no Quadro 6. Quadro 6 – Número de partes recebidas pelas tripulações a bordo nas traineiras entre 1939 e 1970. 59 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Estes dados permitem o cálculo da percentagem correspondente à remuneração da tripulação em geral e ao armador que seria feita a partir do excedente da Receita Bruta após o pagamento dos encargos (Quadro 7). Quadro 7 – Percentagem correspondente à tripulação e ao armador entre 1939 e 1970. Por fim torna-se interessante examinar as percentagens correspondentes a cada tripulante e ao armador da Receita Bruta e a variação desses valores durante o período de 1939-1970. Através das avaliações anteriormente explicadas em que se calculou a percentagens que correspondia à tripulação num todo e tendo em conta o sistema de partes tanto aplicado às tripulações bem como ao armador obteve-se Quadro 8: Quadro 8 – Percentagem correspondente da Receita Bruta aos membros da tripulação e ao armador entre 1939 e 1970. 60 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Verifica-se que existe entre 1939 e 1953 uma gradual diminuição das percentagens recebidas pelos membros das tripulações embora o inverso aconteça com os armadores. O ocorrido é facilmente explicado quando se tem em conta que nesse período de tempo se tenha verificado uma estagnação do número de partes recebidas pelos membros das tripulações enquanto que o armador ia recebendo um número cada vez mais superior. A partir de 1954 até 1970 com o armador a receber uns constantes 48% dos 79,55% do excedente da Receita, um pouco menos do que recebia entre 1952-1953, verifica-se que os tripulantes sofrem um pequeno aumento embora quase insignificante 1980 – 2007 Utilizando a mesma linha de pensamento que foi usada no espaço de tempo entre 1939-1970, começou-se por expor a divisória inicial da Receita Bruta que se faz entre os encargos fiscais e parafiscais e os pagamentos à tripulação e ao armador. Uma vez que estes encargos são referentes a uma traineira moderna cujas características datam da década de 80, o seguinte quadro foi utilizado como referência para o período de 1980-2007. As percentagens correspondente às remunerações bem como ao armador foram calculadas a partir dos documentos fornecidos pelo armador. Quadro 9 – Divisão geral da Receita Bruta entre 1980 – 2007 61 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Tal como anteriormente, o sistema de pagamento às tripulações por “partes” continua a imperar, podendo-se verificar que a única alteração que existiu entre 1980 – 2007 foi a introdução do “Ajudante de motorista” como parte da tripulação a partir de 1997. Em relação ao número de “partes” recebidas por cada posição hierárquica da tripulação em si, não se verifica qualquer alteração no mesmo período. Ao comparar-se o esquema de pagamentos entre 1980 – 2007 com o utilizado no período 1939 – 2007, verifica-se que são praticamente idênticos demonstrando que, em mais de 60 anos de historial de pesca, nunca houve um único aumento do número de partes recebidas por qualquer membro da tripulação. Resumidamente: Quadro 10 e 11 – Número de “partes” recebidas por cada posição hierárquica a bordo das traineiras no período de 1980 a 1996 e no período de 1997 a 2007. Em relação ao número de tripulantes por traineira, após a década de 70 em que se encontravam a bordo tripulações constituídas por uma média de 22 homens, deu-se o último grande melhoramento da frota no início dos anos 80 com o aumento das dimensões das embarcações bem como das tecnologias a bordo (Peixoto,1991). A partir desse momento, deixou de ser necessário tantos homens a bordo, passando a ser comum pescar-se com apenas 18 tripulantes Isso permite o cálculo do respectivo número de partes que competia a cada tripulação considerando novamente que numa tripulação apenas existe um Mestre, um Contra-mestre, um Motorista e, a partir de 1997, um Ajudante de Motorista sendo os restantes homens pagos como companha: 62 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Quadro 12 – Número de partes recebidas pelas tripulações a bordo nas traineiras entre 1980 a 2007. Novamente e tal como foi feito no período de tempo entre 1939-1970, esta análise será finalizada com um exame das percentagens da Receita Bruta correspondente a cada membro hierárquico da tripulação bem como o armador. Foi utilizado o mesmo tipo de raciocínio que se aplicou anteriormente, tendo-se em conta as percentagens correspondentes à tripulação bem como ao armador e também o número de partes recebidas por cada tripulante. O seguinte quadro foi obtido: Quadro 13 – Percentagem correspondente da Receita Bruta aos membros da tripulação e ao armador entre 1980 e 2007. 63 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Quando comparado estes dados com os do quadro 8 referentes ao período de 1954-1970, verifica-se que todos os intervenientes da pesca da sardinha sofreram uma diminuição da percentagem da Receita Bruta que lhes correspondia. No entanto, nenhuma dessas diminuições foi tão drástica como a do armador que passou a receber menos três vezes do que no intervalo de tempo anteriormente referido, ganhando pouco mais que o dobro que o seu mestre recebe. Verifica-se aumento das despesas relacionadas directa e indirectamente com as embarcações têm sido tal que para além de não permitirem manter as percentagens recebidas anteriormente pelos tripulantes (e muito menos aumentá-las), é extremamente prejudicial para o armador que se vê numa ocupação cada vez menos apelativa com uma grandes responsabilidade e poucos ganhos. Em suma… A pesca da sardinha em Peniche é caracterizada por constantes altos e baixos no nível dos desembarques, sendo possível identificarem-se vários ciclos. Estes ciclos são caracterizados por uma crescente abundância desta espécie na lota local até se atingir um pico máximo a partir do qual se seguem vários anos com valores cada vez menores, os quais não recuperam até que um novo ciclo recomece. O historial da pesca da sardinha torna evidente que o recomeço de um novo ciclo encontra-se relacionado com os melhoramentos que se realizam ao nível da frota, normalmente cerca de 3 anos antes. De facto, anos com rendimentos cada vez menores ou, pelo menos, não tão elevados aos que eram esperados pelos armadores, obriga-os a que, periodicamente, realizassem melhoramentos nas suas embarcações. Estes melhoramentos incluem a introdução da sonda em 1951 ou o aumento das traineiras e da potência dos seus motores na década de 70. Tratando-se de uma solução temporária, os melhoramentos das embarcações permitem a curto prazo mais lucros do que estavam a ter até então, maiores ou menores por traineira conforme o número de elementos da frota, mas a médio e longo prazo verifica-se que anos com grandes lucros de pesca acabam por ser cada vez mais raros. No entanto, é de referir que as razões para fazer estes “upgrades” mudaram ao longo do tempo. De 1940 a 1970, a principal razão de o fazer pa- 64 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) rece tratar-se do Imposto do Pescado que se traduzia em quase metade dos encargos gerais que o armador tinha com a sua embarcação e assim aumentar o potencial de desembarque de peixe era mais uma forma que possuía para o contrariar, para além do aumento do preço de venda. Mas, entre 1980 e 2007, verifica-se que se trata de uma razão completamente diferente. Com a eliminação dos impostos acima referidos, a pesca da sardinha e os preços obtidos pela sua venda passaram a estar bastante dependentes da Lei da Oferta e da Procura, de tal forma que os preços praticados por vezes não compensavam a inflação verificada, restando ao armador tentar desembarcar o máximo possível de modo a conseguir vender o máximo possível a um preço bastante reduzido. Torna-se caricato verificar que a Lei da Oferta e da Procura é aplicada com tal extremismo que, neste período de tempo, os anos mais rentáveis foram aqueles em que se pescou menos. Trata-se da única forma do armador conseguir combater as suas despesas. Com cada melhoramento da frota que deu início a um novo ciclo, verificou-se também um aumento das despesas que cada armador tem com a sua embarcação. De facto, o que antes não passava de 20,45% até 1970, a partir de 1980 passou a 48,80%. Isto trata-se de uma consequência directa da complexidade e das tecnologias envolvidas na pesca do cerco que se tornaram inevitáveis, como anteriormente dito. Para além de ser, aparentemente, a causa principal da diminuição do número de traineiras para valores históricos mínimos, este aumento de despesas também teve consequências directas para os pescadores de sardinha. Assim, verificou-se uma diminuição da percentagem correspondente a cada um dos intervenientes da pesca da sardinha, principalmente ao armador. Se, anteriormente, se verificava que desde 1939 a 1970 este tentara receber cada vez mais do excedente da Receita Bruta após o pagamento dos encargos, chegando a receber 48%, essa tendência inverteu-se a partir do momento em que será a própria embarcação e despesas relacionadas quem “recebe” cerca 48%. Isto traduziu-se obrigatoriamente numa diminuição extrema do que o armador passou a receber (apenas 13,17% da Receita Bruta) e, em menor grau, dos tripulantes, principalmente companha, que desde sempre recebem uma pequena percentagem do rendimento bruto do que vendem. Aliás, verifica-se que os tripulantes têm sido os mais menosprezados 65 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) nesta actividade, não tendo recebido qualquer aumento do número de partes que o seu cargo lhes compete em mais de 60 anos de história, recebendo uma percentagem cada vez menor cada vez que ocorre elementos causadores de despesas como os anteriormente referidos e para além disso estão dependentes de um empregador que se encontra numa profissão que à medida que o tempo passa tornar-se cada vez menos apelativa, com mais responsabilidades e menos lucros. Em 1986 deu-se o último grande pico de desembarques. Como aconteceu anteriormente, desde então que os níveis de sardinha desembarcada na lota de Peniche têm vindo gradualmente a descer, não havendo, desta vez, qualquer indicação de que o ciclo possa repetir-se tão rapidamente ou mesmo se irá repetir-se. Considerando o historial anteriormente descrito nesta discussão, um novo apetrechamento das embarcações iria envolver um novo aumento de despesas que, a longo prazo, se tornariam insuportáveis para o armador. Concluindo… A pesca da sardinha em Peniche encontra-se em crise, uma crise que tem sido adiada constantemente graças às inovações tecnológicas verificadas durante o séc. XX mas que não mais poderá ser evitada. Por um lado, estes empreendedores encontram-se bastante dependentes da extrema influência da Lei da Oferta e da Procura do mercado, o que significa que cada um deles dependerá do insucesso dos seus companheiros de actividade. Para clarificar a situação, um armador que esteja a desembarcar baixas quantidades tem de “esperar” que os restantes armadores não desembarquem em grandes quantidades. Caso isso aconteça, o preço de venda será tão baixo que poderá ter de abandonar a actividade. No entanto, caso um armador esteja a desembarcar quantidades consideráveis de sardinha, também dependerá que os restante armadores não capturem grandes quantidades de forma a ganhar o maior lucro possível com a venda da sardinha em lota devido à baixa oferta. Por outro lado, a possibilidade de fazer melhoramentos tecnológicos às traineiras, de modo a aumentar os desembarques e assim vender a maior quantidade de peixe possível, mesmo que a um preço baixo está aparentemente fora 66 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) de questão. Com cada “upgrade” realizado na frota local veio um aumento de despesas associadas à embarcação e, considerando que o armador actualmente apenas recebe o dobro que o seu mestre, um melhoramento à sua traineira, para além de implicar um investimento de grande risco, também implicaria uma menor fatia dos lucros que provavelmente não iria compensar. Toda esta situação poderá ter consequências sociais locais sérias. Os pescadores que dependem do armador e do rendimento que a sua traineira obtém, são as vítimas directas desta situação. Estes homens, a maior parte com qualificações profissionais baixas, passam a não ter outra alternativa senão aceitar trabalhos na construção civil ou outros empregos igualmente duros e mal remunerados. Trata-se assim de uma situação bastante delicada a que se vive actualmente no panorama da pesca da sardinha em Peniche. Torna-se imperativo desenvolver estratégias, não apenas locais mas, também, nacionais, de modo a impedir que a situação piore ainda mais arranjando alternativas ao implicados nesta indústria e soluções que mostrem ser eficazes para se obter uma pesca da sardinha sustentável e lucrativa a longo prazo. 67 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Bibliografia: Almeida, J.F. et al., 2000. Pescas e pescadores: futuros para os empregos e os recursos, Celta, Oeiras. Borges, M.F.; Santo, A. M. 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Assim, percebemos como as dificuldades da pesca em Portugal estão relacionadas com o desajustamento das tentativas de modernização que não contemplaram as especificidades e a realidade das pescas portuguesas.24 20 Texto apresentado à Faculdade de Ciências Sociais e Humanas – UNIVERSIDADE NOVA DE LISBOA, em 2007. Licenciada em Historia - Investigadora da Patrimonium, centro de Estudos e Defesa do Património da Região de Peniche. 21 O pedido de adesão à CEE foi entregue em 1977 e a partir de 1 de Janeiro de 1986 Portugal foi integrado na comunidade. 22 A política comum de pescas (PCP) foi criada em 1970. Sendo a sobrepesca uma ameaça para o sector da pesca, a PCP procura dentro da CEE uma solução comum e uma forma justa de redução das capturas. 23 Henrique Nogueira Souto, A Pesca em Portugal no novo contexto comunitário: o caso de Peniche, Lisboa, 1990, pp.202-203. 24 69 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) A gestão do sector da pesca no quadro comunitário reveste-se de um elevado grau de complexidade, não só mas também, porque isso significa para cada estado-membro estar em presença de forte concorrência no sector. Sendo a sobrepesca a principal ameaça para a pesca25, num contexto comunitário entendeu-se a emergência em garantir uma pesca sustentável e assegurar o futuro do sector através da preservação dos recursos marinhos. Este é princípio basilar da Política Comum da Pesca, para isso foi criada legislação para a limitação de capturas, a determinação de TAC’s, um sistema de quotas e limitação da malhagem das redes. A respeito da PCP, diz-nos um armador de Peniche e dirigente da Mútua dos pescadores “a PCP foi um desastre para o nosso país. Não foram salvaguardados os interesses de Portugal em matérias como a manutenção da exclusividade das 12 milhas, a manutenção de acordos bilaterais que Portugal tinha, por exemplo, com Marrocos, ou manutenção dos direitos de pesca longínqua que o país detinha. Existe a ideia entre as várias entidades ligadas à pesca de o que governo português é subserviente em relação às políticas que lhe são impostas.”26 Não obstante, no contexto de integração europeia a pesca em Portugal assiste a um conjunto de modificações que se traduziram no relançamento do sector, nomeadamente com a construção de infra-estruturas portuárias27, a recuperação e modernização da frota, o desenvolvimento da capacidade de industrialização do pescado, a adaptação das estruturas administrativas e mobilização de recursos financeiros. Mesmo assim, frota de pesca continua envelhecida e os pescadores revelam-se mal preparados e com dificuldades em acompanhar os novos ritmos. A pesca em Peniche sempre se destacou, no panorama nacional, pelo seu dinamismo e pelo volume de desembarques no seu porto de pesca. Era o segundo porto de pesca mais importante do país e o grande fornecedor do maior centro consumidor de Portugal, a área metropolita de Lisboa. Naquela localidade Por ser a principal causa da diminuição das unidades populacionais de peixe, tem como resultado a redução de capturas, de desembarques e de rendimentos. 25 José António Amador (dir.), Marés, Publicação da Mútua dos Pescadores, nº 26, Outubro/Novembro/Dezembro, Lisboa, 1995, pp. 30. 26 Sobretudo através da criação de condições adequadas de acostagem de navios e reequipamento dos portos de pesca. 27 70 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) o sector desenvolveu-se sobretudo no segmento da pesca costeira28, local e longínqua. Sendo a pesca do cerco a mais importante, destina-se essencialmente à captura de pequenos pelágios: sardinha, carapau e cavala (espécies que desde sempre representaram o maior volume dos desembarques). No ano da adesão, em Peniche a pesca revelava algumas características de atraso e é fortemente marcada pela tradição. Nesta frota envelhecida29, as traineiras e as rapas são o tipo de embarcação predominante. No entanto desde o ano 1975 registou alguns progressos, sobretudo pelo abandono gradual dos métodos de pesca tradicionais. Existe uma especialização no segmento da pesca costeira, onde se regista uma forte componente de frota industrial de cerco (traineiras)30 e de pesca industrial não agremiada (PINA). Em 1986, as traineiras são em madeira, estão equipadas com radar e sonar, contudo não possuem equipamentos de conservação do pescado. No contexto nacional, a frota de traineiras de Peniche é a mais numerosa, a mais jovem e a de maior dimensão, em consequência da evolução que este segmento de pesca teve entre 1977 e 1982, por via das cooperativas que se desenvolveram. As restantes embarcações industriais de Peniche passaram a integrar a pesca costeira. Ainda em 1986, aquele porto possuía a maior frota industrial polivalente do país com 35 embarcações ativas. Por sua vez, a pesca local e a pesca costeira, sobretudo do cerco, estão associadas as embarcações de menores dimensões e encontram-se em declínio (mantendose ao mesmo nível de 1982 a 1989). Em Julho de 1989 estavam registadas na Capitania do Porto de Peniche 1 348 embarcações, das quais 789 se encontravam em actividade, destas apenas 378 possuíam motor.31 São as pequenas embarcações que estão fora da atividade. Por seu lado, as embarcações de maior tonelagem (mais de 100 TAB) revelam maior vitalidade deste sector da frota.32A tendência para a redução da frota, sobretudo das pequenas embarcações, vai ao encontro da política nacional de redução da frota. Relativamente à questão dos fundos estruturais/financiamentos o Sindicato de Peniche questiona as opções dos programas de apoio: “a destruição da frota através dos abates é para con28 29 30 31 Onde está incluída a pesca do cerco. Henrique Nogueira Souto, Op. Cit., pp. 204. As traineiras. TAB (Tonelagem de arqueação bruta). Henrique Matos Nogueira Souto, A Pesca em Portugal no novo contexto comunitário: o caso de Peniche, Lisboa, 1990, pp. 104 e 105. 32 71 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) tinuar?” José Portada responde: “Os abates foram e são uma medida de gestão da frota com a finalidade objectiva de (…) se preservar os recursos e garantir condições de rentabilidade económica às empresas. (…) numa política de gestão dos recursos, se torna necessário adequar a frota aos recursos disponíveis e nessa sequência o abate surge como uma medida estrutural adequada. (…) Só em situações devidamente comprovadas como prioritárias e tendo em consideração nomeadamente a idade das embarcações é que daremos apoio financeiro a estes projectos.”33 No que respeita às formas de exploração comercial das embarcações de pesca, em Peniche, verifica-se uma característica de uma pesca artesanal, onde muitas vezes o proprietário do barco é também o seu mestre ou trabalha numa unidade própria. As restantes formas de exploração correspondem às sociedades cooperativas anónimas.34 O sector da pesca é de grande importância económica para as comunidades localizadas no litoral do país, por ser um fator de fixação de população e por simultaneamente induzir a um conjunto de atividades geradoras de emprego. Sendo as principais atividades: a indústria de construção naval e de apetrechos de pesca e auxiliares, as indústrias de transformação do pescado (indústria das conservas, indústria de congelados, indústria da salga e secagem), assim como, postos de trabalho em serviços administrativos e comerciais. Em Peniche, a pesca é o motor de toda a atividade económica, sendo que a maioria dos pescadores são filhos de pescadores, as suas mulheres trabalhavam em atividades induzidas, nomeadamente, na indústria de conservas, de congelação e de transformação de pescado ou como rendeiras/atadeiras. Para além de outras atividades que se desenvolvem em terra diretamente relacionadas com a pesca: seja ao nível das infraestruturas portuárias ou do comércio de artigos de pesca. Num contexto comunitário de forte concorrência a necessidade de modernização e desenvolvimento é gritante. A comunidade piscatória de Peniche apresenta um ceticismo e hostilidade face às novas medidas emanadas da Comunidade. Em Julho de 1989 estavam matriculados 3042 marítimos na José António Amador (dir.), Suplemento de Marés, Publicação da Mútua dos pescadores, n.º 35/36 Junho, Lisboa, 1999, p.10. 33 34 Henrique Nogueira Souto, Op. cit., p.118. 72 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Capitania do porto de Peniche35. Esta comunidade de pescadores envelhecida apresentava-se pouco preparada profissionalmente, com um nível de instrução muito baixo, fato que condiciona as relações de produção (sendo a maioria trabalhadores por conta de outrem) e ainda dificulta o desenvolvimento da atividade (uma vez que, a compra das embarcações, a modernização e a gestão das empresas, num quadro de recurso ao financiamento, implicam um conhecimento das normas e o preenchimento de documentos).36 A fraca preparação profissional sublinha a importância da formação profissional administrada nos centros de formação profissional para o sector das pescas, como forma de preparar profissionais para competir num quadro de concorrência, capazes de se adaptarem aos novos ritmos. Mas também para a melhoria das condições de trabalho e de segurança das comunidades piscatórias e para a dignificação dos profissionais da pesca, afirmando-se como um instrumento de recuperação do sector. Uma das questões chave de toda a política de pesca foi abordada por várias associações do sector: a Sesibal afirma: “até aqui o recrutamento tem sido assegurado pela sucessão (…). Mas o que se verifica é que o investimento que tem sido feito na formação não se reflecte na entrada de jovens para o sector.” Verifica-se que os mais jovens fogem da pesca devido às condições de trabalho pouco atractivas e pelas baixas remunerações. Uma das questões que preocupam o sector tem a sua expressão na pergunta colocada pelo Sindicato de Peniche: “ O que é que o governo vai fazer para dignificar a profissão de pescador?”, José Apolinário Nunes Portada, Secretário de Estado das Pescas, responde dizendo que “considero que o conteúdo do ensino deve adaptar-se às mudanças em curso no sector. O sector oferece hoje um conjunto de profissões cada vez mais exigentes e qualificadas que vão desde a produção à comercialização de pescado e à aquicultura tradicional (…) além de toda a evolução nas técnicas de melhoria da qualidade de pescado. (…) paralelamente torna-se necessário estudar o sector por forma a encontrar outras vias que incentivem os jovens a aderir à profissão: progressiva aproximação a um salário mínimo; prestações sociais que reforcem a segurança contra doença e os acidentes; uma reforma condigna; limitações na duração do trabalho; melhorias nas condições de trabalho; segurança no traba35 36 Desse total, 279 pertencem à pesca local e 2763 à pesca costeira. E ainda, o ceticismo desta comunidade face às novas medidas para a pesca. 73 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) lho e uma atenção especial para os tempos passados a bordo; melhoria na comercialização por forma a rentabilizar a produção. (…).”37 Quanto à formação profissional administrada nos centros de formação profissional para o sector das pescas, verifica-se um desajuste da formação relativamente às necessidades do sector, embora atualmente os cursos de formação têm tido em conta essas necessidades, diz-nos o Presidente do Sindicato dos Pescadores de Peniche. Foi inaugurado em Peniche um centro de formação do FORPESCAS em 1986, com o objectivo de formar um novo tipo de pescador.38 Em 1989, os 5 cursos leccionados no FORPESCAS eram frequentados por 129 alunos (formação profissional modular para contramestre, aptidão pescas, ajudante de motorista, e ainda, de transformação pelo frio e de redeiro). A partir de Janeiro de 1990 só é possível a inscrição marítima após a conclusão do curso de “Iniciação às Pescas”, ministrado por estes centros, para o acesso era necessário ter idade mínima de 15 anos e a escolaridade obrigatória.39 Também a progressão na carreira passou a exigir formação profissional, de forma a conferir aos marítimos as competências necessárias. A formação destes profissionais contribuiu em certa medida para a melhoria das condições de trabalho e de segurança e para a dignificação dos profissionais da pesca, constituindo um instrumento de recuperação do sector. Esta comunidade verifica-se o regresso de pescadores reformados à faina, porque o valor das suas reformas é muito baixo, mas também porque, apesar da diminuição das embarcações, o número de pescadores e de jovens que ingressam nesta atividade tem vindo a diminuir. A questão da fuga dos jovens desta atividade tem a ver com os riscos e incertezas inerentes a uma profissão que está dependente da “sorte”. Também a falta de uma segurança económica e as crescentes dificuldades em obter cédulas nas Capitanias contribui para esta situação. Com apoio do Instituto do Emprego e Formação Profissional, ao abrigo do «Programa Pessoa», a Associação para o Desenvolvimento de Peniche (criada em 1995) concluiu um estudo em Fevereiro de 1999, sobre a “Política de Recursos Humanos para a Fileira das Pescas em Cenário de Mudança” (MAHRE) 37 38 39 José António Amador (dir.), Op. cit., p.3 e 4. Henrique Nogueira Souto, Op. cit., p.132. Henrique Nogueira Souto, Op. cit. ,p.135. 74 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) iniciado em 1996 e coordenado pelo Prof. Dr. António Brandão Moniz e pelo Dr. Duarte Nuno Vicente. Este estudo procedeu ao levantamento dos problemas que afetam o sector, nomeadamente a estabilidade no emprego, as condições de trabalho e a remuneração dos profissionais da pesca. E, ainda considera que estes problemas tornam a pesca um mercado de trabalho pouco atrativo para os jovens. O estudo revela ainda a existência de dificuldades de competitividade e de inovação do sector.40 A política da comunidade económica europeia para o sector incide sobre a conservação e a gestão dos recursos internos, regulando as condições de acesso aos recursos, a definição de TAC’s41, as quotas nacionais de pesca e as medidas de conservação; as relações internacionais de pesca; regulando também a comercialização dos produtos da pesca, a construção naval e a frota. A regulamentação da organização do mercado incide sobre as normas de comercialização de pescado, regimes de preços e de trocas com o exterior e os apoios às organizações de produtores. Desde 1986 têm sido adotadas as disposições da Organização Comum de Mercado (OCM) dos produtos de pesca. A adesão à Europa traduziu-se na liberalização e diversificação dos fluxos comerciais, quer a nível mundial quer dentro da própria CEE.42 Em Peniche a abertura do seu porto de pesca ao Mercado Comum, deixou-o permeável ao pescado concorrente (nomeadamente de Espanha) o que se traduz na incerteza de que o peixe capturado seja comercializado, é um aspeto negativo da adesão assinalado por esta comunidade piscatória. Pois a globalização do mercado dos produtos da pesca traduz-se um cenário de competitividade e concorrência para o sector da pesca de cada Estado-Membro da comunidade europeia. No que respeita aos subsídios da CEE, apenas beneficiam aqueles que sabem preencher os documentos necessários à obtenção de tais ajudas, sobretudo os donos das embarcações. No balanço da atividade (em 1995) o Comandante Raul Patrício Leitão43 destaca a construção de 10 armazéns para comerciantes de pescado no porto de Peniche, a instalação, reposição e manutenção de defesas e ainda, a concessão da Fábrica e Silo de Gelo e dos 40 41 José António Amador (dir.), Op. Cit., p. 13 e 14. Totais Admissíveis de Capturas (TAC) Manuel Cardoso Leal, «As pescas portuguesas: balanço de 20 anos de integração europeia», in A Economia Portuguesa – 20 anos após a adesão, António Romão (org.), Almedina, Coimbra, 2006, p.180. 42 43 Presidente da Junta Autónoma dos Portos do Centro. 75 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Estaleiros Navais de Peniche44. De acordo com o presidente do Sindicato dos Pescadores de Peniche45, os dirigentes destas organizações de produtores são pouco capazes e pouco preparados para essa tarefa - falta de preparação neste sector é generalizada. E, também por isso, Portugal tem sido um “mau aluno” na gestão do sector da pesca em contexto comunitário, com falta de estruturas e falta de organização. Afirma ainda que, em 1986, com a integração de Portugal na comunidade económica europeia o sector das pescas serviu de moeda de troca relativamente a outros sectores. Ocorreram alterações ao nível da organização do mercado, da comercialização dos produtos de pesca, das estruturas de pesca, da construção naval e sobre a frota de pesca e ao nível das relações internacionais de pesca. Para finalizar concluímos que a europeização das pescas portuguesas traduziu-se num aumento do rigor da regulamentação e da fiscalização na actividade. Em Peniche houve necessidade de adotar novas estruturas para comercialização e conservação de peixe, em conformidade com as novas exigências. Nesta localidade o sector registou algum progresso devido a uma alteração das técnicas, embora mantendo em alguns aspectos uma feição tradicional. A modernização existiu sempre que possível, decorrente da adesão de à Comunidade Económica Europeia, consequência dos novos ritmos, do novo contexto económico e das novas condições de mercado. E os problemas (pré-existentes) que envolvem o sector, apenas se vêm agravados pelo desajustamento das medidas comunitário que não atendem à realidade da pesca em Portugal. Cujos contratos, decorrentes de Concursos Públicos, foram atribuídos a sociedades locais constituídas para o efeito. 44 Entrevista com o Presidente do Sindicato dos pescadores de Peniche, realizada no dia 19 de Janeiro de 2007, em Peniche. 45 76 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) BIBLIOGRAFIA Obras sobre a aproximação de Portugal à Europa MADUREIRA, Nuno Luís (org.) e AMORIM, Inês (coord. volume), História do Trabalho e das ocupações, Vol. II - Sector das pescas, Lisboa, 2001. 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Decreto-Regulamentar nº. 43/87, de 17 de Julho de 1987. Decreto-Lei nº. 399/87, de 31 de Dezembro de 1987. Decreto-Lei nº. 282/88, de 12 de Agosto de 1988. Decreto-Lei nº. 293/89 de 2 de Setembro de 1989. PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) A CONSERVAÇÃO DE PESCADO ATRAVÉS DO SAL (Uma perspectiva diacrónica da realidade local) Luís Rendeiro46 Introdução A importância que o sal teve na conservação dos alimentos e principalmente na independência do Homem em relação à sua própria subsistência alimentar, é tema passível de ser mais extenso do que aquele exposto neste artigo. Trazer à luz das investigações a problemática da conservação do pescado, é apercebermos que longe da realidade dos dias de hoje, onde a existência de uma indústria de congelação e conserveira tão bem estabelecida na conservação de alimentos, a descoberta do sal como fonte vital dessa conservação viria ser motor durante milénios para esse efeito de conservação. Para se perceber toda a importância do sal, na independência alimentar, nas trocas inter-regionais, bem como elemento vital numa economia de zonas costeiras e na indústria das pescas até a meados da 1ª metade do século XX, teremos de retroceder até à génese da sua utilização no quotidiano do Homem. Onde podemos averiguar que desde da sua génese, até bem pouco tempo, o sal foi alvo de cobiça económica, produto por excelência, presente nas vertentes de conservação de carnes e de pescado. O sal vai servir assim de fio condutor, para numa maneira transversal nos apercebermos da sua importância numa sustentabilidade económica em zonas do litoral português. Licenciado em Arqueologia e Mestre em Arqueologia pré-história - Investigador da Patrimonium centro de Estudos e Defesa do Património da Região de Peniche. 46 81 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Os Primórdios A conservação dos alimentos, principalmente aquela onde o sal é utilizado como fonte de conservação, é atestada desde os primórdios da humanidade. Em termos de realidade arqueológica, a utilização de sal na conservação de alimentos, é atestada por aquilo que parece ser a exploração de sal marinho integrado num modelo económico típico dos ambientes estuarinos no Sudoeste da Península Ibérica, (Soares, J. 2013). Assim, nos estudos levados acabo recentemente pela investigadora Joaquina Soares, a mesma confirma que a partir da Revolução dos Produtos Secundários da Criação de Gado no último quartel do IV milénio a.C, a produção de sal tem claras razões para se intensificar. Assumindo algumas problemáticas que à arqueologia dizem respeito, a questão como o da evidência física dessas possíveis redes de troca, é algo relevante explanar. Numa realidade económica, onde o sal seria mercadoria efetiva, as evidências físicas deste produto é impercetível no registo arqueológico. Nesta tentativa de traçar uma realidade do passado, os arqueólogos vão utilizar vestígios que indiretamente se poderão ligar ao comércio do sal. Sendo exemplo disso os fragmentos de conchas marino-estuarinas em contextos arqueológicos situados no interior do país, cujo distância pode atingir mais de 200Km do litoral, (Soares, J. 2013). Que tal como a autora refere, estes alimentos por si só, não teriam a capacidade económica de suportar estas trocas interregionais de longa distancia entre interior e litoral. Seria então uma adição de produto a estes alimentos, neste caso o sal, que assumia uma valência substancial capacitadora de sustentar estas trocas comerciais inter-regionais litoral-interior. Passando este a ter um estatuto de prestígio alimentar das comunidades estuarinas, que poderiam hipoteticamente trocar por cereais e cabeças de gado (idem ibidem). Não podemos reflectir sobre esta questão, sem acrescentar que segundo a autora do estudo, o sal vai acabar por atingir nesta época, um valor acrescentado face à galopante procura. Principalmente com a característica de sustentar as tais rotas inter-regionais entre litoral e interior, e onde os tais “pães de sal” fáceis de transportar sustentavam uma economia alimentar agro-marítima. 82 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) A utilização do sal na conservação e na utilização culinária, parece neste cenário quase prova fidedigna, onde a sua produção acaba por ser mais fácil de comprovar. Através das estruturas de combustão destinadas a moldes cerâmicos e de evaporação de água salgada, que conjuntamente com os abundantes fragmentos de cerâmicos resultantes da quebra intencional dos moldes, que serviriam para o processo de obtenção dos tais “pães de sal”, acabam por ser testemunhos dessa produção. Estas realidades foram já atestadas em alguns contextos pré-históricos, como em Marismilla no paleoestuário do Guadalquivir (Escacena Carrasco, J.L, 1996), Ponta da Passadeira em Setúbal (Soares, J. 2000), Monte da Quinta 2 no estuário do Tejo (Valera, A. et al, 2006). Em todas elas a produção de sal via ígnea é comprovada por produção de salmoura em grandes vasos contentores, aquecidos no forno. E que através da concentração de salmoura e cristalização do sal em recipientes cerâmicos, formando os tais “pães de sal” (Soares, J. pg. 180. 2013). Verifica-se assim que desde os primórdios, o sal e a sua capacidade para conservar alimentos é utilizado pelo Homem, tornando-o numa mercadoria de elevado valor. Acabando por ser o sal uma das bases de conservação alimentar vital, que vai permitir nesse alvorecer da civilização, a independência sazonal dos alimentos. Lvcio Arvénico Rvstico – o garum, e o sal no mundo Romano Nesta importância crescente do sal, como método de conservação por excelência, a diacronia da história repõem-nos para realidades que acabam por ser mais familiares com a nossa vivência local. Se falar em conservação de alimentos, e neste caso específico do pescado, em que o sal acaba por ser a ignição desse método milenar de salgar para conservar, então falar das conservas piscícolas onde o pescado é decomposto numa mistura de sal e água (salmoura) acaba por descrever o aprimorar deste método. 83 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) De facto na antiguidade clássica, estes preparados piscícolas ganham uma nova dimensão. Existem referências escritas do tal garum, que repõem esse produto alimentar para cronologias que remontam ao século V a.C. Essas fontes helénicas falam deste produto como sendo fabricado na cidade de Gades, e cujo população mediterrânea sob influência grega e fenícia, o apreciavam bastante (Bugalhão, J. pg.36. 2001). Mas será no avançar da romanização de toda a Península Ibérica e do mar Mediterrânico, que estes preparados piscícolas à base da conservação através da salmoura, vão tomar grandes proporções na vida económica e comercial destes povos. Caracterizado por ser um produto de excelência à mesa de um qualquer romano cujas suas posses o permitissem, estes preparados, pastas e molhos (Garum). Uma iguaria que temperava os alimentos e condimentava o paladar através do seu sabor forte e extremamente salgado. Este garum ou liquamen era obtido através do esmagamento de vísceras e sangue de peixes (atum, cavala, sardinha e peixes pequenos) que postos em salmoura e expostos à temperatura ambiente durante períodos prolongados, ou então aquecidos para uma maior aceleração do processo, eram lentamente decompostos numa pasta, sobejamente apreciada nesta época por todo o império. Para o transporte deste produto, eram utilizadas as ânforas, contentores por excelência na época. E cujo sua produção, está plenamente representada na nossa localidade, pelo fornos de ânforas do Morraçal da Ajuda. Estes fornos e olaria instalados durante o principado de Augusto, é tida como uma das mais antigas olarias romanas da antiga Lusitânia, (Cardoso, G. et al, 2011). A conferir a qualidade do garum por aqui produzido, estão as evidencias da presença de ânforas produzidas no Morraçal da Ajuda, em locais como Idanha-a-Velha, Beja, Évora, Conimbriga e Braga e para o nordeste da Tarraconense, (idem ibidem). Será então no decorrer desta observação sobre o processo de conservação de produtos piscícolas, principalmente dos achados efetivos dos fornos romanos de produção de ânforas do Morraçal da Ajuda, que a questão de uma “indústria” 84 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) de conservas nascida há mais de 2000 anos acaba por marcar um aspecto mais tradicionalista vincado no quotidiano das populações. E se a realidade aponta para essa importância vital para a economia da ilha de Peniche em épocas romanas, não podemos deixar de perceber a realidade do seu desaparecimento aquando o desmoronar do império, por volta do século V d.C. A diacronia do tempo e a importância efectiva do sal Assim seria lógico que com o desaparecimento do império, e com ele toda uma rede de trocas e comércio que impulsionava efetivamente esta produção de garum, e de preparados piscícolas onde o sal funcionava como elemento vital para a produção do mesmo, desaparecesse. E dai se deduzir que estes produtos piscícolas, e principalmente o uso do sal para a sua conservação, entra-se na esfera das técnicas que desaparecem no findo de uma civilização? Na realidade, esta técnica de conservação de produtos piscícolas através da ação do sal (osmose), embora sofra algumas alterações quanto à obtenção do produto final que os romanos lhe davam (garum), o facto é que findado o império, as populações e os territórios que produziam estes produtos, vão continuar a elaborar as mesmas técnicas de conservação através do sal. Mudando apenas o produto final, assim em vez de produção do garum, as populações utilizam estas técnicas aprimoradas ao longo dos séculos através dos gregos e depois através dos romanos, para conservarem o peixe como produto bruto. A salga de peixe, onde após a sua abertura longitudinal (escalar), e depois de eviscerar (amanhar), este é colocado em tanques, onde são dispostos com camadas de sal. E onde os peixes mais pequenos (sardinhas, cavalas, biqueirão) são introduzidos numa salmoura, a fim de através da acção da água do mar e o sal, o processo acabe por produzir um produto cuja conservação confere-lhe um uso na alimentação para os longos meses de inverno. Assim o nascimento desta característica tão única, não só no litoral português, mas também um pouco pelo litoral mediterrânico, de utilizar o sal 85 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) como elemento essencial na conservação de produtos piscícolas. Vai acabar por elevar o sal a um patamar de produto de excelência nas trocas entre o interior e o litoral. E que como já anteriormente tínhamos verificado, é algo que se inicia nos alvoreceres da nossa civilização, e que ganha novos contornos ao longo dos milénios. Nesta visão diacrónica da utilização do sal na conservação de alimentos, principalmente nos produtos piscícolas, o desaparecimento de uma organização estável e produtiva como o Império romano, e uma reorganização na produção e no comércio, vai acabar por ditar o sal como um dos poucos produtos a se tornarem ainda mais vitais e apetecíveis. Será o sal, cuja sua produção será passível de se obter dividendos para o dono, o senhor das terras e em primeira instancia para o rei, que vai acabar muitas vezes por estabelecer uma forte fonte de rendimento? Havendo já uma tradição bem vincada na salga dos alimentos, e principalmente do peixe, um pouco pelas vilas piscatórias no litoral português, é então fácil de concluir que o sal como condimento essencial nesta preservação de alimentos vai dar aos terrenos onde pode ser produzido, um valor relativamente apetecível. Podemos observar que ainda nos primórdios da reconquista de Lisboa, onde esta começa a tornar-se num centro de comércio vital do jovem reino, os Judeus que na altura se estabeleciam como comerciantes por excelência, iniciam um comércio de especiarias vindas do Levante (plantas medicinais, frutos secos, mel e peles) e daqui sai o sal, peixe e cavalos (Garcia, M.A. 1993). Certamente que se este comércio de sal estava já tão bem implementado numa Lisboa recém-conquistada, então a sua produção certamente se manteve estável e regular. E observando as fontes escritas acerca deste produto, deparamo-nos com o testemunho escrito mais antigo que remonta ao ano de 929 acerca das marinhas do Baixo Vouga (Bastos, M.R. pg.33, 2009), ou o ano de 959 referente às marinhas de Mumabona Dias em Aveiro (Bernardo, H.B.1966) e (Bastos, M.R. 2009). É fácil atestar que mesmo antes do nascimento do nosso reino, a produção de sal, era já algo de efectivo no nosso território. 86 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) No panorama local as primeiras referências a este produto surge no foral de Afonso Henriques concedendo as terras de Touguia a Guilherme de Corni em 1147, faz já constar as divisas a serem pagas pela produção de sal. Bem como mais tarde na confirmação regia no foral de D. Sancho I (1190) e a de D. Afonso II (1218), onde e tal como afirmara categoricamente Pina Leal, as palavras “De marnis (…)” se refere a “De marinhas (…)”. Repondo assim a inevitável produção de sal, uma vez por todas na realidade existente naquela época para este território. (Bernardo, H.B. pg.17, 1966) Embora sem nos dar a certeza de já existirem por cá efetivamente a certeza de existir produção de sal em épocas pré-Guilherme de Corni, o facto que a sua produção foi de imediato alvo de obrigatoriedade de dividendos para a coroa. Não querendo fazer apenas alusão à produção do sal na região de Peniche, até que para tal, a leitura de Hernani de Barros Bernardo e as suas “Marinhas ignoradas da Estremadura – as salinas de Peniche.” São ainda tidas como bastante válidas para os panoramas Medievais a contemporâneos. Pelo menos até novos estudos nesse sentido, ou surgimento de outras realidades arqueológicas que evidenciem outras prespectivas. A realidade que assim podemos observar nas fontes escritas acerca das tais salinas de Atouguia, são aquelas que até hoje nos chegaram as mãos. Como exemplo disso de uma carta expedida de D.Diniz em 1284, onde disponha da sua marinha da Atouguia a favor de Sebastião Pelágio. Ou nos documentos dos ajustes entre a viúva de Fernão Fernandes Cogominho, uma tal D.Joana Dias, e o Mosteiro de Alcobaça (Bernardo, H.B. pg.18, 1966). Referentes ao século XIV, podemos averiguar no diploma de 28 de Setembro de 1340, que há época já Peniche se demonstrava um ponto geoestratégico de um comércio apoiado no mar. Onde se pode ler que um tal mercador Afonso Domingues, possuía em Peniche “casa de pousada e de deposito para madeiras e sal (…)” (Calado, M. pg.85, 1984). Atestando uma vez mais o sal, certamente produzido na região e que encontrava a sua comercialização em rotas marítimas locais. Nesse sentido e muito resumidamente podemos observar que ao longo dos séculos XII, XIII e XIV as produções de sal na região são expostas em alguns documentos dessas épocas. Havendo referências no século XVI, pela mão do Padre Rodrigo Nunes 87 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) que nas suas Memorias das antiguidades concelhias, descreve o abandono de salinas localizadas em Peniche (Bernardo, H.B. pg.32, 1966). Na obra de Pedro Cervantes de 1865, este refere que existia na zona da Pranjeira umas ruinas que ele repõem para umas antigas salinas, bem como fora da contra-escarpa do fosso da praça umas ruinas que continham as inscrições “casas de sal” (Cervantes, P. pg.26, 1865). Também na obra de Pinho Leal de 1873, este autor refere umas ruinas de supostas salinas junto da ponte do Baluarte da Misericórdia, e que o mesmo refere que volvidos 20 anos, já haviam sido soterrados (Pinho Leal, A.S.B. 1873). Estas duas visões de autores contemporâneos entre si, dão-nos a realidade de uma produção salineira inexistente em Peniche. O que nos faz perceber que certamente começa a existir um declínio a partir do século XVI na produção de sal em Peniche, que vai resultar já numa inexistente presença no século XIX. Factor aliás que leva Pedro Cervantes no seu texto “A Industria de Peniche”, na sua descrição da vida económica da vila, a referir que “Em Peniche não há, actualmente marinhas de sal, mas podia, e devia havê-las.” Mostrando que a dependência da indústria pesqueira naquela altura ao sal, era de tal enorme, que a produção de sal na localidade era vista como potencial económico viável. De tal modo que o próprio tinha intenções de construir em Peniche umas salinas, tal era o potencial da produção. Contudo essas salinas nunca chegaram a ser construídas (Cervantes, P. pg.69,1865 appud Bernardo, H.B.pg. 41, 1966). Na realidade outras tentativas houve, pois existe relatos de salinas na zona da Pranjeira nos finais do século XIX. Bem como tentativas de construção também de salinas na zona do fosso, já no inicio do século XX. Havendo mesmo salinas efectivas na zona dos antigos Medões de Peniche de Baixo, por volta de 1944, e que apenas duraram 3 anos em funcionamento, produzindo ainda assim quantidade avultada de sal, e que segundo o autor refere, ser de muito boa qualidade, (Bernardo, H.B.pg. 43, 1966). Uma pequena paragem no tempo, e uma reflexão sobre o Clima Antes de avançar com a realidade actual, e as tradições da conservação de peixe através do sal, que ainda hoje teimam em persistir. Existe ainda espaço para observarmos uma questão pertinente, o clima. 88 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Não querendo entrar por ciências que não estão no meu domínio, a paleoclimatologia (ciência que estuda as variações do clima ao longo dos tempos),dá-nos a perceber a diacronia da história. Tomando conhecimento do artigo “No trilho do sal: Valorização da história da exploração das salinas no âmbito da gestão costeira da laguna de Aveiro” de Maria Rosário Bastos, onde está exposta a questão climática, designada como Pequeno Óptimo Climático (ambiente mais seco, com pouca pluviosidade). Que ocorreu, segundo alguns cientistas, entre o ano 700 ao ano 1200, embora exista a teoria de que esta se deu entre o século X e século XIV, não havendo consenso, e onde as temperaturas seriam mais altas que a actualidade. Este clima teria favorecido o crescimento populacional, bem como outros aspectos da vida económica e territorial da população. Entre as quais, uma sucessão de condições próprias ao nível da metreologia para a exploração salineira, um pouco por todo o litoral, (Bastos, M.R. pg.38, 2009). Que a partir do século XVI, até à metade do século XIX, devido a uma situação climática oposta, a Pequena Idade do Gelo (temperaturas mais baixas), originou a inversão da realidade observada anteriormente. Este aspecto do clima existente nos alvores de Portugal, dão-nos a consciência que por volta do século XII, por esta costa litoral, as zonas ribeirinhas eram abundantes, facilitando uma maior existência de salinas um pouco por todo o litoral. A conservação do Peixe através do sal – a realidade actual Parece-nos hoje um pouco estranho falar numa indústria conserveira onde o sal seja produto essencial usado nessa conservação. Contudo não podemos esquecer que um dos alimentos mais característicos da nossa gastronomia, o Bacalhau, é um produto directo dessa conservação através do sal. Na nossa localidade de Peniche, os indícios do declínio do uso do sal surgem com o aparecimento das primeiras fábricas conserveiras em 1910, a então primeira fábrica de conservas em molhos. E que a partir de 1912 com a aquisição de terrenos por parte de Júdice Fialho, onde construi a Fabrica de conservas – Algarve Exportadora, que começa a laborar em 1916, começa-se a 89 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) assistir um aumento significativo da indústria conserveira em Peniche (Peixoto, L.C. pg.34, 1991) Contudo o chicharro salgado, a sardinha salpicada ou colocada em barricas de salmoura para ser transportada deste porto de Peniche para todo o país, ou simplesmente para serem consumidos no inverno por esta comunidade local. É algo que sempre se foi mantendo activa nesta localidade piscatória. As técnicas de preparação do pescado para uma conservação através do sal, é aliás ainda bem falada em Peniche, pelo menos entre a população mais idosa. O escalar o chicharro para o salgar e coloca-lo depois em pias com salmoura, ou o colocar a sardinha em salmoura em pios, e depois prensa-la a chamada estiva, são termos usados ainda pela população, quando se fala da conservação do pescado efectuada em Peniche. Mas para tal não deveria haver admiração. Pois se por um lado começamos a assistir desde o princípio do seculo XX em Peniche ao surgimento de novas tecnologias, principalmente no que toca à conservação de alimentos, por outro lado verifica-se durante a primeira metade do mesmo seculo, ainda o uso tradicional do sal para esse efeito. O surgimento de latas conservas de sardinha tal como hoje a conhecemos, pode ter a sua remanescência em Peniche na primeira década do século XX, mas o facto é que o seu surgimento na historia da alimentação surge pela primeira vez em 1810, em Nantes, pela mão de Joseph-Pierre Collin, e em meados dos anos 20 desse mesmo século, já na costa atlântica de França. Realidade essa que Portugal viria a conhecer apenas no século seguinte. Embora seja ainda importante referir que a invenção, deste tipo de conservação de alimentos através de molhos e fechados hermeticamente num recipiente, a fim de evitar a sua decomposição, é atribuído a Nicolas Appert, cientista francês que em 1795 inventou este método. Assim, e passado quase 100 anos depois da sua primeira utilização como industria conserveira, o litoral português começa a sua diáspora na implantação de instalações fabris, onde a conserva de sardinha por este método, começa a bordejar um pouco por toda a costa. 90 Em Peniche, como já foi referido, esta realidade começa em 1910. E onde PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) se nota um aumento de instalações destas unidades fabris, principalmente durante a 1ª Guerra Mundial, onde constava já à época 13 unidades fabris. Nesta mecanização na conservação de pescado, onde a salga de peixe e o próprio sal, pouco a pouco vão sendo substituídos. Avança a técnica da conserva de lata, da sardinha e do atum enlatada em azeite, das instalações fabris, e da industrialização da conservação de pescado. De tal modo, que já pela altura da 2ª Guerra Mundial, o sector conserveiro era a sustentabilidade económica da vila de Peniche conjuntamente com a pesca. Juntando a esta inovação, começam a surgir também em Peniche, na década de 30 as fábricas de gelo, que vão directamente substituir o sal na sua função mais básica, a de conservar o pescado até ao seu destino final, (Peixoto,L.C.1991) Agora o pescado deixa de ser salpicado com sal para aguentar a distância necessária para a sua comercialização a longas distâncias, para passar a ser gelado. Consequentemente surge em Peniche a primeira fábrica de congelação, que vem assim, acabar por oferecer outra solução à conservação de pescado, principalmente aquele que tradicionalmente não entrava dentro da esfera dos enlatados. Iniciando assim a fatiga do chicharro escalado e salgado, da sardinha de barrica, ou estivada, diminuem os armazéns especializados nesses produtos, e por consequência diminuem os homens e mulheres que se prestam a essa actividade. O sal começa a sua última e derradeira aparição como suprassumo da conservação de pescado. A última grande reserva de sal é feita em Peniche em 1945, e o ultimo navio carregado de sal, a atracar no porto de Peniche, fê-lo no ano de 1953 (Peixoto, L.C. pg. 85, 1991) Começa assim, o fim de uma economia onde o sal era o principal motor de subsistência. Ao fim de tantos milénios a apurar a técnica de conservação de alimentos, e neste caso específico do pescado, o sal como elemento conservador de alimentos, é relegado para segundo plano, mas nunca sonegado completamente da conservação de alimentos. Aprova da existência, ainda pelos estendais de Peniche, de peixe a secar, das raias, do carapau e do tão apreciado quelme, são a prova viva desta tradição milenar que ainda teima em persistir. 91 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Numa moda que há uns anos a esta parte parece ser viral no panorama cultural do nosso país, e a meu ver, ainda bem. No conjunto das possibilidades patrimoniais de se elevar um património a uma categoria classificativa, talvez seja ideia disparatada de se considerar o peixe-seco como património integrante da cultura de Peniche? Penso que não. A história do sal e da sua importância na conservação nos alimentos e principalmente no pescado, está evidente, bem como evidente é a continuação nas tradições locais, na produção de um produto tão típico de Peniche. O sal e o seu uso para conservação de pescado, passou de ser uma acção desprestigiada e corriqueira, sem muito valor como produto obtido, para nos dias de hoje ser uma actividade exercida de maneira menos continua, e onde as técnicas são diversas, como diversas são as espécies hoje em dia salgadas e secas. Parece então algo de caricato, que considerar hoje em dia o sal, como produto capacitador de fomentar um produto regional e de marca de uma região, como é o caso do peixe-seco. Principalmente quando hoje em dia o conservar, é sinonimo de frescura e rapidez no processo. De facto, o salgar e depois secar é um trabalho tradicional, que produz um produto único e apreciado pelos locais, pelos emigrantes e já adere um grupo crescente de novos apreciadores. Então repensar, tendo em conta todas estas evidências cronológicas relacionadas com a conservação e principalmente o uso do sal como agente conservador, num produto típico e ainda persistente na economia penichense como o peixe-seco, não seja de algum modo caricato. Salgar e secar, a persistência de um testemunho Sendo ainda muito vincado hoje em dia, o uso do sal na conservação de pescado, não poderia acabar esta reflexão sobre o uso do mesmo nas tradições penicheiras, sem trazer à luz deste texto, entre os que ainda hoje protagonizam esta tradição, um testemunho vivo dessa actividade milenar. Não podia, até porque como penicheiro, e como investigador, mas principalmente por afinidade directa, trazer o testemunho de quem uma vida inteira aprimorou esta técnica sobejamente enraizada na localidade, a 92 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) seca de peixe, sendo de extrema importância para perceber este elemento de conservação. De seu nome Olívia Borges vulgo (Ti Olivia Paleca), desde de cedo foi tropeçando pelas lides e da azáfama da venda de peixe de porta-a-porta. Com os seus já avançados 78 anos de idade, a seca de peixe ainda continua a ser rotina nos seus dias. Entre a vida intensa na compra e venda de pescado, a Dona Olivia, ou antes, Ti Olivia como gosta de ser chamada, desde de cedo observou que a salga e seca de peixe seria uma optima forma de rentabilizar a compra do pescado, tal não fosse uma tradição aprendida através da sua avó. Principalmente na época de Inverno, onde o pescado não tinha o escoamento que é normal em épocas de veraneio, a salga e posterior seca desse pescado viria a conservar o mesmo durante um bom tempo. Durante os anos que trabalhou nas lides da venda de pescado, foi aprimorando desde de cedo a técnica da seca de peixe, pois entre tentativas e erros e avanços e recuos, ora o sal não era o mais apropriado e ter-se-ia de encontrado outro de melhor qualidade, ora a salmoura teria de ser feita usando outra técnica, a exposição ao sal seria trabalho árduo de conseguir uma uniformização deste passo consoante o tipo de pescado, e a exposição ao sol e os dias que seriam precisos para a boa secagem do peixe seria outro dos conhecimentos adquiridos ao longo de anos e anos a trabalhar este produto. De facto, toda esta aquisição de competências na secagem de pescado contribui para que a Ti Olivia agarre num produto sobejamente conhecido e trabalhado nas épocas em que se iniciou no mundo do trabalho, e vai elevar uma produção meramente ocasional e fugaz, a uma produção constante e de cariz mais profissional. Certamente que não foi a única pessoa da sua época a secar peixe de maneira constante e mais efectiva, pois com o nascimento do Mercado Municipal na década de 40, a inovação de produtos e a constante venda em lugar fixo motivou a uniformização dos produtos vendidos ao público. Assim a efectividade de produzir um produto básico e de fácil acesso a todos os comerciantes de peixe, a salga e posterior seca, que se traduz na 93 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) produção do peixe-seco, que conjuntamente com toda uma variedade de peixes, molúsculos, crustáceos e bivalves, passam a constar na variedade de pescado numa banca de peixe do Mercado de Peniche. Com a construção de novas instalações do Porto de pesca e a respectiva lota em 1988, o aparecimento de um maior volume de pescado, e maior diversidade (Peixoto, L.C. 1991), vai acabar por alargar o leque de pescado vendido ao público no Mercado de Peniche. Nesse sentido, se a diversidade de pescado fresco vendido ao público cresce, então nada mais logico que a diversidade de peixe-seco acompanhe a mesma tendência. Já não basta o carapau, a raia ou o quelme seco, todo o peixe desde que o preço fosse convidativo ao comprador, ou a sua venda ao público não se realiza-se, passa a ser passível de ser seco. Ainda não há tantas décadas, proliferavam pelo 1º andar do Mercado de Peniche, uma variedade imensa de peixe-seco (carapau, raia, quelmes, pataroxa, safio, moreia, polvo, abróteas, etc) produto do trabalho das várias peixeiras com quem convivi e aprendi algumas histórias de vida, onde o peixe (pescado ou vendido) era mote para recordações de vida. Eram nas bancas dessas peixeiras (Celeste Catraia, Fátinha Paleca, Ti Idaliza) as que já não se encontram entre nós, bem como as peixeiras (Ti Olivia, Fátima Rendeiro, ou Maria Celeste Catraia) que já não exercem a profissão, ou ainda das peixeiras (Zezinha, Arminda, Conceição Travinca ou a Luisa) que ainda hoje teimam em dar vida ao 1º andar do Mercado de Peniche, onde todas as semanas enchem as suas bancas com o mais variado pescado. Que eu fora acostumado a ver a variedade de peixe-seco, e a procura constante de clientes locais, gentes que vinham da parte mais rural do Concelho, ou a abundante vaga de emigrantes, normais na época de Verão, e que procuravam além de outros produtos, o então peixe-seco de Peniche. Neste testemunho vivo, de quem numa vida inteira se dedicou entre outras vendas, à venda do peixe-seco, e como a própria Ti Olivia refere, a um sustento familiar desde da época da sua avó. Esta peixeira de profissão e de alma, conta que nas suas lides, a passagem da técnica da salmoura para o salgar o peixe deuse ainda na infância, quando nos dias de chuva a salmoura não era suficiente para conservar o peixe, e tinha-se de salpicar o peixe com sal grosso para evitar 94 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) a sua putrefação. Nessa observação simples, a sua avó e posteriormente a sua mãe, constataram que a salga seria melhor opção que a salmoura. Assim a técnica da salga em todo o tipo de pescado (exepto do polvo, que ainda hoje se utiliza a salmoura), passa a ser norma na obtenção do então peixe seco. A Ti Olivia crescia nesta adaptação de secagem de peixe, e aprimorou-a ao longo dos anos. Como ela costuma dizer, “na altura da minha mãe, todas vendiam peixeseco em Peniche, iam para os arredores de carroça, para as Caldas da Rainha e Torres Vedras. Na minha altura também íamos, não de carroça, mas agora de carro. Mas para Lisboa? Para Lisboa fui eu a única. Logo a seguir ao 25 de Abril, lá para os fins dos anos 70 comecei a ir a Lisboa vender peixe-seco.”. E de facto, a Ti Olivia levou a venda de Peixe-seco para as ruas de Lisboa. Não que já não existisse peixe-seco à venda pelas ruas do Arsenal, ou no Mercado 24 de Julho e mesmo na Praça da Figueira, mas o peixe-seco de Peniche, com a qualidade que lhe é conhecida, foi esta peixeira que com a sua visão empreendedora levou-o para capital. Começava assim uma longa caminhada de negócio e comércio, onde no crescimento de clientes na capital, onde se poderia escoar então o produto, a necessidade de aquisição de cada vez mais pescado, era uma constante. Conjuntamente com essa necessidade de produto, crescia a necessidade de mão-de-obra. Lembro-me bem das minhas primeiras lides, onde numa mesa de grandes dimensões, se amanhava, escalava e cortava-se toneladas e toneladas de peixe das mais variadas espécies, que seguiam para as dornas de água para se lavar o resto das vísceras, e onde de seguida se salgava em pios, dornas ou diretamente em caixas de madeira. Lembro-me dessa imagem, onde entre mulheres e homens se juntava a essa mesa perto de 20 pessoas, semana após semana e mês após mês. Pode-se então afirmar que com uma extensão de produtividade a esta escala, certamente não se afigura outra personagem como a Ti Olivia mais representativa da tradição do Peixe-Seco como produto típico da cultura de Peniche. Se bem que este foi trazido pelas vagas migratórias do início do século XX pelas populações vindas da Figueira da Foz, Murtosa e Nazaré, o peixe seco rapidamente se tornou parte da tradição alimentar local. Tal como peixe-seco tornou-se sinónimo do nome Ti Olivia Paleca. 95 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Ilações possíveis Nesta temática de conservar alimentos (principalmente pescado) através do sal, tomando o conhecimento da importância deste desde dos primórdios da civilização, a consciência da sua relevância para a economia do litoral português bem como para as trocas de alimentos a nível inter-regional, é assim atestada. Durante a pré-história o uso do sal está actualmente à luz das investigações arqueológicas, a dar evidências da sua utilização na economia destas comunidades. Realidade essa que já nas épocas da Romanização do nosso território está sobejamente atestado. Os fornos do Morraçal da Ajuda e a sua produção de ânforas vem-nos dar as evidências de uma realidade onde a produção de molhos e pastas elaboradas através da conservação de sardinhas ou alguns peixes pequenos da mesma família e a acção do sal, passam a ser parte de uma economia local, perpetrada por esta romanização do território. Com a queda do Império, e novas vagas de outros povos na Península Ibérica, certamente pelas evidências, o sal não perdeu a sua importância na conservação do pescado na costa mediterrânica nem na costa atlântica. A certeza de um produto cuja importância foi ao longo de milénios comprovada na conservação de alimentos, certamente ajudou a esse prolongamento no tempo no uso deste produto. Antecedendo os alvores da nossa Nacionalidade, a produção de sal está atestada através de algumas fontes escritas que nos chegam até hoje. Bem como posteriormente através dos forais e cartas de doação respeitantes a Atouguia, comprova-se a importância do sal nesta região, ainda que tenhamos reservar algumas conclusões sobre a presença de produção de sal realizada nessa época na região. Podemos observar que, por razões de alargamento de território nacional, e estabelecimento constante de populações nesta região, principalmente a partir do século XII, a produção de sal e consequente existência de salinas nesta região, é uma realidade comprovada. E que conjuntamente com os estudos paleoclimaticos conhecidos, apercebemos que o clima e as condições ambientais da época ajudaram à implantação um pouco por todo o litoral português destas salinas. 96 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) A decadência da produção de sal a partir do século XVI parece também ela ser real no panorama local. Decadência essa que é comprovada pelas fontes escritas, pela sua completa ausência em Peniche já nos séculos posteriores. Embora a utilização do sal, na conservação do pescado que diariamente chegava ao porto de Peniche, traduzindo-se numa dependência enorme deste produto. Dependência essa, que nos finais do século XIX tentam minimizar com a construção de algumas salinas, mas sendo efémeras, são instalações que perduram por um curtíssimo tempo. Nunca contribuindo para a independência local deste produto. Esta dependência do sal, só tem aquando das instalações da indústria conserveira em Peniche, em meados da 1ª década do século XX, que numa crescente onda de modernização desta indústria, irá já contar com mais de uma dúzia de fábricas de conserva em épocas da 1ª Guerra Mundial. Contribuindo assim e conjuntamente com a posterior aparição das primeiras fábricas de congelação de pescado já em meados da época de 30 do mesmo século, para o início do fim da dependência do sal para a conservação de pescado. O sal passa a ser, a partir da 2ª metade do século XX, apenas mais um agente que conserva o pescado, e não o único produto capaz de realizar essa conservação. Os produtos obtidos desta condição de salga, salmoura ou seca, passam de ser corriqueiros e elementos básicos de uma economia local e nacional, para passarem a ser produtos típicos de caris tradicional e elaborados apenas por alguns. Permitindo assim um produto único, que ainda persiste, não apenas localmente, mas em algumas zonas do litoral português. O peixe-seco é um dos produtos que ainda sobrevive desta tradição milenar do uso do sal como elemento de conservação, muitos outros existiriam em variadíssimas épocas desta tradição de salgar para conservar, mas perderam-se as técnicas e o gosto alimentar por tais acepipes. A sardinha de estiva, ou o biqueirão salgado, são o exemplo desses produtos tão apreciados não há muito tempo, mas que hoje em dia não são produzidos, sendo o peixe-seco o derradeiro sobrevivente dessa conservação de pescado onde o sal era rei, o ouro branco de tantos e a subsistência de muitos. O peixeseco é apenas hoje uma amostra mais tradicionalista dessa importância do sal, e o vestígio de milénios de uso e evolução da técnica de conservar alimentos. 97 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) BIBLIOGRAFIA: AMORIM, I. (1998) - Da pesca à salga da sardinha: recursos, tecnologia da pesca e tecnologia da conservação, na costa de Aveiro (2ª metade do séc. XVIII a inícios de XIX). Separata do Colóquio – A Industria Portuense em Prespectiva Histórica, Porto. Faculdade de Letras. Centro Leonardo Coimbra. Pp.24-43 BASTOS, M.R. (2009) - No trilho do sal: Valorização da história da exploração das salinas no âmbito da gestão costeira da laguna de Aveiro. Revista da Gestão Costeira Integrada Serie 9, Vol.3. Pp.25-43 BERNARDO, H.B. (1966) – Marinhas ignoradas da Estremadura – as salinas de Peniche. Revista Ethnos.. Lisboa. Instituto Português de Arqueologia Historia e Etnografia Vol.6. p.47 BUGALHÃO, J. (2001) – A indústria romana de transformação e conserva de peixe em Olisipo. Núcleo Arqueológico da Rua dos Correeiros. Trabalhos de Arqueologia, nº15, Lisboa. Instituto Português de Arqueologia. CALADO, M. (1984) – Peniche na História e na Lenda. 3ª ed. Lisboa. CALADO, M. (1996) – Peniche no século XVIII (As Memórias Paroquiais). Edição do Autor. CARDOSO, G.; RODRIGUES, S.; SEPÚLVEDA, E. ; RIBEIRO,I.A (2011) – Vestígios de uma Olaria Romana no Morraçal da Ajuda – Peniche. Revista Paideia. Peniche. Escola Secundária de Peniche. Nº2. pp-47-58 CERVANTES, P. (1865) – A Industria de Peniche. Bibliotheca das Fabricas. Associação Promotora da Industria Fabril. Impressa Nacional de Lisboa. GARCIA, A.G. (1993) – Os Judeus de Belmonte: os caminhos da memória. Instituto de Sociologia e Etnologia das Religiões. Universidade Nova de Lisboa. PEIXOTO, L.C. (1991) – Apontamentos para a História da Pesca da Sardinha e da Construção Naval em Peniche. Camara Municipal de Peniche. PEIXOTO, L.C. (1999) - Casos Lembrados e “Gentes”. Edição do Autor. PINHO LEAL, A.S.A.B. (1873) – Portugal Antigo e Moderno: Diccionario Geográfico, Estatístico, Chorographico, Heráldico, Archeologico, Histórico, Biographico e Etymologico de todas Cidades, Villas e Freguesias de Portugal e de Grande número de Aldeias. Lisboa. Vol.6.pp- 617-654 SOARES, J. (2013) – Sal e conchas na Pré-história portuguesa. O Povoado da Ponta da Passadeira (estuário do Tejo). Pré-História das Zonas Húmidas/ Prehistory of Wetlands. Revista Setúbal Arqueológica. Setúbal. Vol. 14. Pp.171196 98 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) PESCADORES DE PENICHE EM LUTA- A GREVE DE 1975 Adriano Constantino47 Introdução Ao meu pai, grevista de 1975 Assinala-se este ano, os 40 anos da greve dos pescadores de Peniche, a primeira grande greve do pós 25 de Abril realizada pelos marítimos. A origem desta luta, por melhores salários e melhores condições de trabalho, remonta ainda a 1970, ultrapassada então com um acordo entre o Grémio dos Armadores da Pesca da Sardinha e a Casa dos Pescadores de Peniche. Com os ventos de Abril a luta reacende-se e rapidamente tem uma forte adesão da classe piscatória, destacando-se nesta luta a Comissão Pró Sindicato dos Pescadores de Peniche que tem um papel fundamental na greve de 1975. Palavras-chave: Peniche, greve, pescadores, pós 25 de abril, Sindicato dos Pescadores; O período pós 25 de Abril O país: Após a revolução, no período compreendido entre Abril de 1974 e Julho de 1976, Portugal conhece uma complexa alteração política e institucional caracterizada por uma forte agitação social reivindicativa marcada pelo maior surto grevista no século XX. Licenciado em Arqueologia - Investigador da Patrimonium centro de Estudos e Defesa do Património da Região de Peniche. 47 99 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) As greves verificadas, surgiram ora como resultado de movimentos espontâneos dos trabalhadores, ora integradas num plano de organização sindical, tendo também aparecido greves gerais ao nível de sector, como foi o caso das pescas, atingindo todo o país. Em 1975, Portugal está abraços com um “crise nas pescas”. No Algarve, a 29 de Janeiro, cerca de 1500 pescadores da sardinha voltam à greve, reivindicado em Olhão melhores salários a fim de garantir o salário mínimo nacional durante os 12 meses; fixação de 21 tripulantes como mínimo em cada traineira com acostado; retribuição alterada de 15$00 para 18$00 por 1000$00 de pesca; melhoria das pensões diárias para 30$00 e 50$00, consoante o produto da pesca; consagração da caldeirada, indemnização de 150 contos (750 euros) por morte ou inutilização pelo trabalho; rectificação das partes de alguns camaradas com encargos especiais; um mês de férias e subsídios de Natal. (O Século, 17 de Fevereiro). Em Portimão, reivindicava-se 17$00 por conto para barcos com dois acostados ou 18$00 para barcos com um só acostado, mas se o total da venda, no fim do mês não chegar a 3300$00, os pescadores exigem que o armador se comprometa a pagar o resto, para além destas reivindicações exigem 10 quilogramas de peixe para cada pescador, garantia de trabalho por um ano e 150 contos por morte ou invalidez, 150$00 ao dia por trabalhos em terra e que o contrato de trabalho entrasse em vigor a partir do dia 1 de Janeiro. Uma segunda proposta admite em vez de 21 pescadores por traineira seja de 19 pescadores desde que os contramestres recebessem 32$00 por conto em vez de 34$00 (O Século, 19 de Fevereiro). As reivindicações do sindicato não são atendidas por intransigência dos armadores voltando os pescadores ao mar em Março embora as reivindicações tenham-se mantido. Em Vila do Conde e Povoa do Varzim, cerca de cinquenta barcos da pesca artesanal não se fazem ao mar, impedidos pelos armadores que são contra a decisão do Ministério do Trabalho e da Secretaria das Pescas, por estes terem atendido às reivindicações dos pescadores através da Intersindical (O Século, 7 de Fevereiro): o fim da obrigatoriedade para as mulheres e outros familiares dos tripulantes a trabalharem gratuitamente na descarga do peixe; obrigação para os pescadores descarregarem o peixe e safar o aparelho; fiscalização das vendas em lota por um tripulante da embarcação; descanso ao Domingo; proibição dos despedimentos sem justa causa e manutenção do número actual dos 100 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) tripulantes; os pescadores não mestres passam a ter direito a um quilo e meio de peixe da maior quantidade de peixe capturado; nos dias em que ficaram em terra a tratar dos apetrechos de pesca terão direito a 127 escudos; a receita liquida por uma tripulação composta até catorze tripulantes será divida em 20 partes, das quais 7,5 será para o armador (2 para o mestre e o resto para o armador) e 1 parte para cada pescador. (Jornal de Noticias, 21 de Janeiro). A 11 de Abril os pescadores do cerco de Matosinhos regressam ao mar depois um mês de greve. Após reunião na Casa dos Pescadores entre a Comissão dos Pescadores, o Dr. Andrade dos Santos, elemento da Secretaria de Estado das Pescas, Augusto Silva Belchior da Intersindical de Lisboa e de Artur Simões do Ministério do Trabalho, ficou acordado retomar os trabalhos, não trabalhar ao Domingo, manter as condições de trabalho da actividade da pesca com as entidades oficiais e organizações sindicais (O Século, 11 de Abril). Também na pesca industrial ocorrem várias greves, na pesca do bacalhau verifica-se várias greves como por exemplo nas embarcações “Senhora dos Navegantes” e “Luís Ferreira de Carvalho”, em greve desde o fim de Janeiro devido sobretudo aos baixos salários e nos arrastos costeiros do Norte do país em greve em Março. Peniche O porto de pesca de Peniche apresentava-se como um dos principais portos de pesca a nível nacional, com o total de 4000 inscritos marítimos e cerca de 280 embarcações (O Século, 6 de Janeiro de 1975). A actividade principal do porto era sobretudo a pesca da sardinha, sendo também pescados outros pelágios. Segundo Luís Correia Peixoto, nos anos 70 as traineiras atingem 22 a 25 metros e estão equipadas com guinchos hidráulicos e aladores, sondas electrónicas, atingindo os motores 400hp e apresentando a popa em painel, o que representa uma grande mudança na disposição do convés e na forma de largar a rede deixando-se de largar a rede por bombordo passando-se a fazer pela popa. Na década de 70, a frota nacional cercadora fora reduzida drasticamente a metade, aparentemente devido à indisponibilidade prolongada de sardinha o que se verifica também em Peniche. Na edição da Voz do Mar de 6 de Janeiro de 72, surge uma notícia deste decréscimo de traineiras passando de cerca de 80 101 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) traineiras para menos de 50. O total do pescado capturado em 1974 foi de 16 345 956 quilos valendo 134 526, 725 contos, no ano anterior o valor foi mais reduzido, 106 372, 072 contos. (O Século, 6 de Janeiro de 1975) Para além da pesca, a sociedade penicheira estava fortemente ligada a actividades relacionadas com o mar. Em meados da década de 70, laboravam seis fábricas de conservas de peixe empregando, sobretudo, mão-de-obra feminina com salários praticados inferiores aos trabalhadores masculinos, parando a sua produção nos meses de defeso da sardinha; duas fábricas de congelação; cinco estaleiros; e existindo largas dezenas de atadeiras em situação precária sendo só contratadas quando havia trabalho e com ordenados baixos (O Século, 6 de Janeiro de 1975). Neste período, em Peniche, assiste-se à ocupação de várias casas, como é o caso do Bairro de Santa Maria, por famílias de classe mais baixa e com poucos recursos financeiros, este fenómeno é transversal a todo o país estimando-se que cerca de 2000 casas camarárias tenham sido ocupadas em Portugal, (VIEIRA, Joaquim 2000). Os antecedentes A 10 de Maio de 1970, surge uma notícia no jornal local, A Voz do Mar, do regresso ao mar dos barcos de Peniche após o acordo entre a Delegação do Grémio dos Armadores da Sardinha e a Casa dos Pescadores de Peniche sobre os rendimentos da pesca a auferir pelos pescadores, demonstrando o conflito entre armadores (patrões) e pescadores (trabalhadores) existente em Peniche, curiosamente com reminiscências à greve de 1961 que teve como base a luta por melhores salários, ficando acordado o seguinte: “Cláusula 11.ª- Do produto de cada maré de pesca, serão distribuídos para “caldeirada” por cada tripulante: 1) Quando as vendas foram efectuadas em Peniche, 20$00. 2) Quando as vendas forem efectuadas noutros portos, 30$00. Quando o produto da maré não atinja o montante integral das caldeiradas e impostos, será ratado proporcionalmente à sua totalidade, sendo de sua conta o pagamento dos impostos. 102 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Cláusula 12.ª- Quinzenalmente, do rendimento da pesca livre de caldeiradas o armador pagará para distribuir pela companha as seguintes percentagens: Até 50 000$00, 36,4%. De 50 000$00 a 120 000$00, 42%. Mais de 120 000$00, 42%. O valor total destas percentagens será entregue às companhas de 1 a 6 e de 16 a 21 de cada mês terá a seguinte distribuição, no máximo 28 partes: Mestre, 4; Contra mestre, 2; Marinheiro pescador (Max. 5) 1,2; Pescadores, 1; Moços pescadores (14 a 15 anos), ½; Moços pescadores (15 aos 16 anos), ¾; Casa dos Pescadores 1 (Peniche); Guardas, 1 (para todos); Auxiliares das artes d pesca 1. § 3º - Em cada quinzena utilizar-se-á para liquidação a que se refere o corpo deste artigo, apenas uma percentagem, aquela que corresponder à totalidade do rendimento da pesca livre de caldeiradas.” No Inverno de 1973 os pescadores voltam a parar após reunião com o Capitão da Capitania pelo descanso semanal ao domingo, até então o único descanso semanal estava compreendido entre as 17h de Sábado e as 10h da manha de Domingo. Dessa reunião alguns pescadores são intimidados pelo Capitão da Capitania com ordem de prisão caso se verificasse alguma greve embora se tenha conseguido que o descanso semanal fosse prolongado até as 3h da manhã de Segunda-Feira. Na altura do embarque dos pescadores da traineira Boa Fé, às 3 da madrugada para faina, são intimidados com a presença de elementos da PIDEDGS, na zona da Ribeira e área circundante, com metralhadoras em punho. A 23 de Março de 1974 assiste-se a uma nova paralização face à grave situação salarial dos pescadores entrando os pescadores em greve. Curiosamente no dia 25 de Abril há uma tentativa de furar a greve mas o armador da embarcação “Cinco Netos” é abordado pelos militares de Abril na Ribeira ao embarcar a rede e obrigado a recolher a rede no armazém. 103 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Logo após o 25 de Abril, são encetadas negociações entre os pescadores e os armadores alterando então as percentagens dos ganhos sobre a pesca. Os pescadores exigiram 45% sobre o valor total do pescado mais 40 escudos (20 cêntimos actualmente) por irem para o mar, ficando acordado que seria 42% do valor do pescado quando ultrapassasse os 100 contos (quinhentos euros), anteriormente o limite era os 120 contos (600 euros), caso a pesca não ultrapasse os 100 contos ficam com 39,2%, passando a gozar de descanso desde as 5:30 de sábado e as 10h da manhã de Segunda-Feira. (O Século, 6 de Janeiro de 1975). A constituição do Sindicato dos Pescadores de Peniche Logo após a Revolução de Abril, a 7 de Maio, (Viriato Dias 1975) é criada uma Comissão Pró Sindicato dos Pescadores de Peniche, aderindo à Intersindical, sendo Carlos Cordeiro o presidente da Comissão, fazendo ainda parte Arménio Pinto, Júlio Gonçalves de Almeida, João Leitão Viola, Saul da Silva Maia Guincho, Ilídio Jeremias Rosa e Carlos Mota. As reuniões para a formação do sindicato começaram ainda antes do 25 de Abril de forma clandestina, elegendo uma comissão directiva, com conhecimento do Capitão do Porto. Até à data, os interesses dos pescadores eram defendidos pelo presidente da direcção da Casa dos Pescadores, um oficial da Marinha de Guerra que acumulava as funções de Capitão do Porto, sendo a entidade que negociava os contractos de trabalho com os armadores em representação dos pescadores (idem ibidem). As reuniões da Comissão são agendadas sempre para a Casa dos Pescadores pela falta de um espaço físico para o Sindicato. A essas reuniões chegou a assistir o Capitão do Porto sendo alvo de muitas críticas por parte dos pescadores presentes perante a conduta praticada antes do 25 de Abril de repressão e de ataque aos pescadores, mais tarde ocorre a substituição do Capitão do Porto por pressão dos pescadores. A 29 de Outubro de 1974 é agendada uma convocatória aos sócios para se reunirem em Assembleia Geral na Associação de Educação Física Cultural e Recreativa Penichense a 3 de Novembro pelas 21h para com o intuito de informar a actividade desenvolvida pela Comissão; discutir e aprovar os estatutos; eleição da Comissão Pró Sindicato; aprovação de contas da Cooperativa e o seu 104 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) destino. Para além dos sócios e da Comissão esteve presente o Sr. Almirante Silvano Ribeiro, antigo Comandante do Porto de Peniche e membro da Junta da Salvação Nacional. Os estatutos são redigidos, no dia seguinte, na Casa dos Pescadores tendo no total vinte e dois artigos que definem os regulamentos da Comissão, destacando-se: “Artigo 3º - O Sindicato dos Pescadores de Peniche representará todos os pescadores ou auxiliares de pesca, como tal matriculados, que exerçam efectivamente a profissão em barcos registados na Capitania do respectivo porto. Artigo 5º - Para garantir a plena independência do Sindicato em face do patronato, os mestres não serão elegíveis para os corpos gerentes ou para as Secções Sindicais, embora possam inscrever-se como sócios e gozar dos restantes direitos que a estes pertencem. Artigo 6º- O Sindicato dos Pescadores de Peniche será independente e autónomo em relação à Casa dos Pescadores a qual deia de exercer as funções de representação profissional, limitando-se a assegurar localmente as atribuições da Junta Central das Casas dos Pescadores de Peniche em matéria de previdência, abono de família e acção social. Artigo 7º- Enquanto não estiver completado a divisão dos bens do pessoal e dos serviços actuais Casas dos Pescadores entre estas e as associações sindicais que lhes irão suceder nas funções de representação profissional, o sindicato dos Pescadores de Peniche utilizará as instalações, o pessoal, a estrutura administrativa e os recursos técnicos e financeiros da Casa dos Pescadores de Peniche, em termos a estabelecer por acordo com a respectiva Direcção. Artigo 11º - Serão criadas formas descentralizadas (delegados sindicais, etc.) para levar a acção do Sindicato aos barcos e a todos os locais de trabalho” Já no ano seguinte, a 26 de Fevereiro são de novo chamados os associados para debater no dia 3 de Março (Segunda-feira) às 11h, assuntos da classe, desta vez já na sede da Comissão, no edifício da Escola de Pesca. A 5 de Agosto é publicado no Diário da República a criação do Sindicato dos Pescadores do Distrito de Leiria, tendo como sede Peniche. “Os pescadores de Peniche querem um sindicato de base e não de cúpula. Não queremos estar afastados das outras classes como no antigo regime. 105 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Embora, para a união da classe em todo o país queremos sindicato com ligação local com um representante em cada porto, para discussão dos problemas a nível nacionais.” A paralisação do sector O início da greve ocorre após as reivindicações da Comissão Pró Sindicato não serem atendidas pelos armadores. A Comissão reivindicava 15 dias de férias pagas e a institucionalização dos delegados sindicais a bordo, remunerados em ausência por obrigações sindicais, e uma nova distribuição dos valores realizados com a venda do pescado capturado passando os pescadores a auferir 100$00 de imediato e 45% das vendas até 150 contos e 50% a vendas superiores a esse montante, quantia dividida em três partes para o mestre, duas para o contramestre e uma para cada pescador da companha. Curiosamente não surge nenhum dado em relação à categoria de Motorista e de Ajudante de Motorista, embora na altura tenha existido também uma Comissão Pró Sindicato dos Motoristas Marítimos. A 20 de Março, Quinta-feira, reuniram-se às 17h, na Associação de Educação Física e Recreativa e Cultural Penichense a Comissão Pró-Sindicato e os pescadores da pesca da sardinha ficando acordado o início greve, mais tarde, a 31 de Março, aderem os barcos da artesanal após uma reunião realizada no cinema do Club Stella Maris. No dia 21 é posto a circular um comunicado explicativo da Direcção da Comissão do Sindicato com o apoio da Comissão Provisória Directiva da Casa dos Pescadores de Peniche sobre o início da greve referindo-se à necessidade de produzir. A famosa “Batalha da Produção” é travada por todo o país, o próprio secretário das Pescas, o Dr. Mário Ruivo, em entrevista antes de partir, em Abril, para uma conferência internacional em Genebra salienta a importância de produzir no sector da pesca. O porto de Peniche foi o único porto que nunca paralisou o seu trabalho após o 25 de Abril nem aprovou o defeso da sardinha, embora seja praticado desde 15 de Janeiro a 15 de Maio, sendo os barcos obrigados a procurar outras espécies como o carapau no Cerro (pesqueiro a Sudoeste da Berlenga) ou então a encalhar os barcos, com a excepção de um barco que poderia apanhar sardinhas unicamente para ser vendidas como isco para a pesca artesanal, mas mesmo assim sujeito a quotas. 106 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) No comunicado é ainda exposta a intransigência dos armadores em atender às reivindicações propostas, embora a Comissão já tenha feito algumas cedências, sendo levantada a questão pelos armadores em relação à despesa do gasóleo e às oficinas. Por fim, no último ponto surge a criação de piquetes de greve à entrada dos armazéns de redes para não deixar ninguém trabalhar tendo as atadeiras aderido à greve. Com o avançar da greve, a 3 de Abril é convocada para esse dia uma reunião com os pescadores da sardinha, às 21h no Stella Maris, com a presença de um Delegado do Ministério do Trabalho e da Secretaria das Pescas. Entretanto são marcadas mais reuniões entre a Comissão Pró Sindicato e os pescadores da sardinha e da artesanal, muitas delas no Club Stella Maris, desta forma realizam-se reuniões a 7, a 17, a 24 de Abril e a 5, 6 e a 14 e 16 de Maio. Na reunião de 7 de Abril esteve presente cerca de quatrocentos pescadores, tendo-se discutido a situação da greve bem como dos estatutos para o Sindicato dos Pescadores, ficando aprovado por unanimidade o envio de um telegrama ao Primeiro-Ministro, ao ministro do Trabalho, ao conselho de Revolução e à Secretaria das Pescas. (O século 15 de Abril). No dia 16 reúnem-se no Ministério do Trabalho vários elementos que compõem as comissões do sindicato, dos armadores de pesca artesanal e o secretário de Estado Dr. Carvalho Costa. Em Maio no dia 9 os pescadores da pesca da sardinha de Peniche reúnemse em plenário deliberando:“1º- Dar prazo até ao dia 17 de Maio de 1975 aos armadores para satisfazer as reivindicações das cláusulas 15ª e 17ª do contrato de trabalho. 2º - Saneamento imediato dos mestres armadores e mestres não sindicalizados. 3º A partir da data estabelecida os pescadores vão para o mar com mestres escolhidos pelos tripulantes e com uma comissão de gestão escolhida pela mesma. 4º Estas posições foram tomadas em virtude dos mestres armadores e armadores, não terem adiantado as negociações do contrato em referência, causando portanto, prejuízos enormes aos pescadores e à própria economia. “ 107 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) No dia 12 de Maio regressam os barcos da pesca artesanal ao mar (Jornal a Voz do Mar edição de 15-05-1975) terminando a greve para os pescadores da artesanal. A 14 e 16 de Maio assiste-se a novas reuniões com os pescadores da sardinha contando com a presença dos delegados do governo, estando para greve a resolução da greve. Que se vem a verificar no dia 19 com um comunicado: “A Comissão do Sindicato dos Pescadores de Peniche, vem informar os pescadores da sardinha chegaram a acordo com os armadores da mesma arte dando-se por finda a greve que arrastava há cerca de dois meses. A Comissão do sindicato dos Pescadores de Peniche depois de analisar os resultados desta luta dos pescadores, quer da pesca artesanal quer da pesca da sardinha, conclui que mais uma vez a classe piscatória deste porto, devido á sua unidade, elevada consciência de classe e devido à sua consciência sobre a realidade nacional, conseguiu conquistar aos armadores melhores regalias e condições de trabalho.” Os pescadores regressam ao trabalho no dia 20, com os mestres a receber 3 partes em vez das 4 e conquistou-se o descanso semanal de Domingo. Uma vez mais a traineira “Cinco Netos” cruza-se com a História sendo a primeira traineira a ir para o mar na madrugada de Sábado apanhando 253 cabazes de sardinha e a primeira a largar na Segunda-feira após o descanso semanal de Domingo. Muitas outras traineiras seguiram o rumo do “Cinco Netos” e rapidamente se fizeram ao mar, outras fruto da greve, tinham ainda trabalhos de calafetagem e de pintura a fazer a bordo (O Século- 24 de Maio de 1975). Paralelamente à greve, o Sindicato tenta um acordo com os compradores sobre os Carretos (descarga e transporte do peixe pelos pescadores até ao armazém do comprador sendo o comprador obrigado a pagar por esse trabalho) sendo publicado um comunicado por parte da Comissão, a dia 19 de Maio, aos pescadores da sardinha e cercadoras que desde aquela data até dia 18 do próximo mês, cada cabaz vendido deverá ser pago 2$50 e 3$50. 108 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Considerações finais Embora ainda falte consultar alguma documentação relativa à formação do sindicato e das conquistas efectuadas com a greve, bem como a repressão exercida no período anterior ao 25 de Abril sobre as reivindicações da classe piscatória concluiu-se, com os dados consultados até ao momento, que greve dos pescadores de Peniche de 1975 ocorre devido às tensões criadas no período anterior à Revolução entre os armadores e pescadores sobre a repartição dos ganhos da pesca e do descanso semanal, situação análoga a várias comunidades piscatórias nacionais. O período de paralisação para os pescadores da sardinha é cerca de sessenta dias, regressando os barcos ao mar cinco dias depois de ter terminado o defeso. Após ter realizado várias entrevistas a pescadores da altura, incluindo mestres e membros da Comissão Pró Sindicato, no fim da greve havia já muitas dificuldades por parte dos pescadores, o que em parte pode ter permitido o desfecho logo após o fim do defeso. Para além das conquistas por parte dos pescadores da sardinha será importante compreender a extensão às atadeiras e aos pescadores da pesca artesanal para além do papel desempenhado pela Comissão Pró Sindicato dos Motoristas Marítimos. 109 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Bibliografia DIAS, Viriato; PAIVA, Octávio (1975)- Pesca- Peniche o Impasse, Lisboa, O Século Ilustrado, pp. 4-7. VIEIRA, Joaquim (2000)- A Propriedade, in Portugal Século XX Crónicas em Imagem 1970-1980, Circulo de Leitores, Printer Portuguesa, pp. 161-167 Periódicos [s.n.] Os barcos voltam ao mar, in Voz do Mar, 15 de Maio de 1975, Peniche, p.8. [s.n.] Hoje- Seis mil pescadores do bacalhau podem entrar em greve, in Jornal O Século, 10 de Fevereiro de 1975, Lisboa, p. 8. [s.n.] Em Olhão Prossegue a greve dos pescadores de sardinha, in Jornal O Século, 9 de Janeiro de 1975, Lisboa, p. 9. [s.n.] Em Peniche- Pescadores decidem manter a greve, in Jornal O Século, 15 de Abril de 1975, Lisboa, p.4. [s.n.] Greve Geral ameaça a pesca do arrasto, in O Primeiro de Janeiro, 27 de Março de 1975, Porto, p.10. [s.n.] Melhores Proventos auferem os pescadores de Peniche, in Voz do Mar, 10 de Maio de 1970, Peniche, pp 1 e 6. [s.n.] O problema das pescas constitui um elemento extremamente importante no que diz respeito à nossa economia, in Primeiro de Janeiro, 14 de Abril de 1975, Porto, pp. 1 e 2. [s.n.] Os pescadores de Peniche em greve, in Voz do Mar, 3 de Abril de 1975, Peniche, p.8. [s.n.] Peniche: após dois meses de greve, as traineiras regressam ao mar, in Jornal O Século, 21 de Maio de 1975, pp 1 e 5. 110 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) [s.n.] Peniche: Conhecer para transformar, in Jornal O Século, 6 de Janeiro de 1975, Lisboa pp. 1 e 14. [s.n.] Peniche 72 Evolução ou Decadência?, in Voz do Mar, 6 de Janeiro de 1972, Peniche, p. 1. [s.n.] Pesca da sardinha na costa algarvia: greve termina sem êxitos para pescadores, in Expresso, Lisboa, 28 de Março de 1975, p.6. [s.n.] Pescadores Algarvios: Em greve há vinte e dois dias, in Jornal O Século, 19 de Fevereiro de 1975, Lisboa, pp 1 e 7. [s.n.] Pescadores de Peniche mantêm-se firmes na greve, in Expresso, 5 de Abril de 1975, Lisboa, p. 2. [s.n.] Pescadores em greve- Matosinhos: regresso à faina, Peniche: continua o impasse, in Jornal O Século, 11 de Abril de 1975, Lisboa, p.2. [s.n.] Pescadores no Algarve: a greve continua, in Jornal O Século, 17 de Fevereiro de 1975, Lisboa pp. 1 e 7. [s.n.] Sábado de Aleluia- Pescadores querem ser senhores do seu destino, in Jornal O Século, 31 de Março de 1975, Lisboa, p. 3. Arquivo do Sindicato dos Pescadores da Pesca da Sardinha do Distrito de Leiria AAVV (1974); Convocatória de 29 de Outubro de 1974, Peniche, Comissão Pró Sindicato dos Pescadores. AAVV (1974); Bases Estatuárias, Peniche, Comissão Pró Sindicato dos Pescadores, 30 de Outubro. AAVV (1975); Convocatória de 13 de Março de 1975, Peniche, Comissão Pró Sindicato dos Pescadores. AAVV (1975); Convocatória de 19 de Março de 1975, Peniche, Comissão Pró Sindicato dos Pescadores. 111 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) AAVV (1975); Convocatória de 28 de Março de 1975, Peniche, Comissão Pró Sindicato dos Pescadores. AAVV (1975); Convocatória de 3 de Abril de 1975, Peniche, Comissão Pró Sindicato dos Pescadores. AAVV (1975); Convocatória de 7 de Abril de 1975, Peniche, Comissão Pró Sindicato dos Pescadores. AAVV (1975); Convocatória de 17 de Abril de 1975, Peniche, Comissão Pró Sindicato dos Pescadores. AAVV (1975); Convocatória de 24 de Abril de 1975, Peniche, Comissão Pró Sindicato dos Pescadores. AAVV (1975); Convocatória de 5 de Maio de 1975, Peniche, Comissão Pró Sindicato dos Pescadores. AAVV (1975); Convocatória de 6 de Maio de 1975, Peniche, Comissão Pró Sindicato dos Pescadores. AAVV (1975); Comunicado de 10 de Maio de 1975, Peniche, Comissão Pró Sindicato dos Pescadores. AAVV (1975); Convocatória de 14 de Maio de 1975, Peniche, Comissão Pró Sindicato dos Pescadores. AAVV (1975); Convocatória de 16 de Maio de 1975, Peniche, Comissão Pró Sindicato dos Pescadores. AAVV (1975); Convocatória de 19 de Maio de 1975, Peniche, Comissão Pró Sindicato dos Pescadores. Entrevistados: António Catarino; Areolindo Correia Arménio; Pinto Elísio Constantino; João Comboio; Manuel Batalha 112 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) OS PESCADORES, DE RAUL BRANDÃO – ETNOGRAFIA E MEMÓRIA João Luís Moreira48 O meu primeiro contacto com a obra de Raúl Brandão deu-se com a peça O Avejão, pequeno texto dramático que muito me aprouve trabalhar, visto que rapidamente encontrei nele semelhanças com um outro, da autoria de Woody Allen, intitulado “Death knocks”49. Woody Allen, de forma magistral, conduz-nos ao universo satírico e à mordaz ironia com que o povo americano consegue rir de si próprio. No fundo, não é dos americanos que o cineasta se ri, mas sim da “cultura” instituída. Nesta peça, Nat, enquanto lia um jornal, recebe a visita da sua sinistra Morte. Para ganhar tempo e iludi-la, o homem decide o seu destino através de um jogo de gin rummy. A Morte ainda tenta recuperar a si o ar autoritário, sombrio e definitivo que a cultura lhe transmitiu, mas Woody Allen não o permite e esta Morte, desde o primeiro momento em que tropeça num algeroz, ao entrar em casa de Nat até ser enganada por este, está condenada ao ridículo. No caso de O Avejão – episódio dramático (1929), de Raul Brandão, a situação afigura-se outra; o cómico está lá, mas o que constitui o fulcro da peça é o ajuste de contas, como se de um julgamento final se tratasse. A Velha, no final, percebe que não viveu e pede para voltar atrás, mas a irreversibilidade do tempo e da morte, no fundo, não cedem. Enfim, poderá parecer descabida a relação acima entre autores tão distantes, mas foi esta que me levou, ao longo dos anos, a procurar conhecer melhor a obra de Raul Brandão. Este contacto, devo dizê-lo, deu-se de surpre48 Professor da Escola Secundária de Peniche, destacado no Chapitô. O título indicado é o que surge na edição americana de Getting even (1971). Em Portugal, o livro foi publicado com o título Para acabar de vez com a cultura, em 1980. “A morte chama” é o título dado ao texto referido. 49 113 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) sa em surpresa. Depois de rir e refletir com O Avejão, anos mais tarde, viria a familiarizar-me com o autor através de Memórias (volumes I e II), registo em que, creio, melhor se revela, de forma quase comovente, legando-nos a sua visão de um Portugal em convulsão (o país que acabava de acenar à República), mas sentindo-o através da memória que transforma muitos dos seus textos em autênticos documentos históricos, pois poderão servir como porta de entrada a muitas figuras incontornáveis que com ele se cruzaram. Apesar disto, foi com Húmus (1917) – texto publicado em plena turbulência modernista - que Raul Brandão se me revelou na totalidade: pela convergência de influências, pela ousadia, mas, sobretudo pela originalidade que, afinal viria a criar escola, funcionando o autor como epígono de muitos romancistas que se seguiram, cultores de um estilo ficcional mais subversivo50. Os pescadores (1923) vêm colar o autor a uma tendência herdada, talvez, de um certo romantismo chegado a Garrett, levando-o a dar atenção a tudo o que constitui a alma de um Portugal que estava, a seu ver, a desaparecer e que sentia ser merecedor de registo e atenção. Álvaro Manuel Machado, aliás, em relação a esta herança, precisa-a e refere-se a “um romantismo, digamos, voltado para dentro, íntimo e problemático” (Machado, 1984: 14) como cerne da escrita de Raul Brandão. Em Os pescadores não é ao intimismo puro que assistimos, mas sim ao registo de um mundo para melhor compreensão de si mesmo, o que acaba por vir ao encontro da afirmação de Machado. O mesmo se poderá dizer da intenção social da obra do autor, na sua globalidade. Maria João Reynaud, em recensão crítica a Os operários (1984), refere-se a um “projecto de empreender a análise dos vários estratos que formavam a sociedade coeva” (Reynaud, 1985: 102), “uma congeminada “Vida Humilde do Povo Português” (Idem: 101), apontando uma trilogia que planeava publicar e de que, além da colectânea acima referida, fariam parte Os pescadores e uma outra que ficou apenas delineada, intitulada Os lavradores. Os textos que compõem Os pescadores, organizados por locais da costa e, por isso, sem critério de organização por ordem cronológica são profundos, reflexivos, plenos de uma sensibilidade que, por si só, para efeitos de análise estética, dariam um estudo longuíssimo que nos obrigariam a passar por uma série Álvaro Manuel Machado, por exemplo, refere os nomes de José Régio, Miguel Torga, José Rodrigues Miguéis, Agustina Bessa-Luís, Vergílio Ferreira, Augusto Abelaira, Almeida Faria (1984: p. 12). 50 114 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) de tendências estéticas (romantismo, realismo, impressionismo, simbolismo, decadentismo, modernismo…), tal a complexidade da escrita de Raul Brandão. Convém, por isso, que nos detenhamos apenas em algumas linhas de leitura em relação ao estilo e intenção da obra, à pesca e às gentes e aos lugares, nomeadamente à visão que nos transmite de Peniche. Filho e neto de homens ligados ao mar, Raul Brandão não se encontrava, por isso, a ceifar em seara alheia. Daí o realismo e a propriedade com que, nos vários textos que compõem a obra, ora se emociona perante o lirismo da paisagem marítima, pintada sempre de matizes vários e (re)convocando os sentidos, ora se aproxima do registo etnográfico, funcionando como mediador de um grupo profissional detentor de códigos próprios e a reter pela escrita: gíria, arte, comportamentos, rotinas e modo de vida… A dedicatória “à memória do meu avô, morto no mar”, abre a obra e marca o tom: um livro constituído por registos de impressões e memórias, dedicado não só a uma pessoa, o avô, mas, diria, a toda uma classe profissional no seio da qual cresceu e desde cedo se movimentou. “Tomo então apontamentos rápidos – seis linhas – um tipo – uma paisagem. Foi assim que coligi este livro, juntando-lhe algumas páginas de memórias” (Brandão, 1972: p.7). É desta forma que nos dá a seiva deste livro – tipos, paisagens e memórias. Organizado de norte para sul, Os pescadores percorre a costa portuguesa, mas parte de uma série de “linhas de saudade” (Idem, ibidem), sentimento que prevalece: saudade de um tempo, de um espaço e das pessoas. Há uma porta aberta a um mundo comentado pelo autor, que afirma: “O mundo que não existe é o meu verdadeiro mundo” (Idem: 9). Guardo porém a sensação que, neste ponto, não é propriamente o mundo criado pela ficção a que Raul Brandão se está a referir, mas sim o mundo da memória e do passado, que se diluiu no tempo, mas não na memória, que insistentemente o fixa e preserva. Humildemente, o autor refere, ainda em relação à conceção de Os pescadores, que é um livro feito de “nadas que farão sorrir os outros. São efectivamente nadas… E no entanto reconheço que essa foi a melhor parte da minha existência, minuto único de saudade em que a luz se suspende e o universo se entranha para sempre na alma” (Idem: 14). Poderemos deter-nos um pouco, precisamente, nesta osmose entre sujeito e objecto. O que vê passa a fazer parte de si, daí que o texto esteja repleto de registos impressionistas (no sentido esté- 115 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) tico do termo). Os sentidos captam tudo: “luz”, “uma paisagem”, quadrinhos ao ar livre”, “o azul”, “um imenso eco prolongado”, mas o que aqui verdadeiramente impele o escritor, a um nível mais espiritual, é “perceber a grande voz do mar” (Idem: 7). Para todos os efeitos, o que temos em mãos é um texto de 1ª pessoa, que oscila entre o registo diarístico e a memória e que testemunham, para nos servirmos de uma expressão de Paula Morão, os “limites entre a vida e a arte” (Morão, 2011: p. 55) e numa sempre renovada “atração pela alma da paisagem” (Machado, 1984: 14), a que acrescentaríamos: pela alma das gentes e dos lugares. Em relação ao estilo, Maria João Reynaud refere-se à “técnica da descrição itinerante” (Reynaud, 1988: 83), acrescentando ainda algo que nos parece rigoroso e adequado à escrita de Raul Brandão, que é o facto de Impressões e paisagens, Os pescadores e Portugal pequenino constituírem “uma espécie de tríptico da paixão de ver” (idem, ibidem). Mas não esqueçamos o leitor, parte integrante desta “paixão”, por intenção clara do autor. A vivacidade com que as descrições nos chegam, o pormenor desta vida árdua e o lirismo com que a paisagem e as pessoas são tratadas não caem na retórica inocente do simples registo. Para Raul Brandão os leitores, aqueles a quem se destina a obra têm de ter acesso a este mundo aqui apresentado. Aliás, Álvaro Manuel Machado dá conta disso, falando do autor como alguém que se “situou no seu tempo, tornando-o nosso” (Op. Cit: 12). Da Foz do Douro a Sagres, o périplo pela Costa portuguesa vai motivando várias visões e levantando problemas: a angústia da morte e da perda, a vida árdua dos pescadores, a pobreza, a nobreza de carácter das gentes, os comentários sobre uma actividade em declínio, a crítica à sobre-exploração das nossas costas – recordemos que a obra é de 1923 e recolhe textos escritos pelo autor desde 1900 até essa data! Perceções de um homem sobre uma arte que, afinal, nos nossos dias, parece estar a sofrer de alguns males já por si, então, identificados. A “pesca da sardinha”, secção do livro que inclui dois textos, um datado de 1900 e registado na Foz do Douro e outro, datado de Setembro de 1920, registado no Baleal, ganha lugar de destaque. Depois de um breve trecho descritivo, tão típico dos textos que compõem a colectânea, passa aos pormenores da faina, acompanhando a rotina da pesca da sardinha desde o romper do dia até ao final do mesmo: 116 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Os barcos formam círculo para além da baía, entre as Berlengas e a costa: sete, oito, dez, de vela triangular, que se preparam para erguer a armação da sardinha – uma grande rede com um saco -, o copo. A sardinha, ao encontrar no seu caminho a rede, deriva para o saco, tirando-a os pescadores com a chalavara para dentro dos barcos (Brandão, 1972: 55). O cenário impressiona o autor, que se desdobra em impressões sensitivas deixadas pelo “hálito fresco e húmido” do mar, pelos “farrapos de névoa” que pairam sobre as águas, do “dia de chumbo”, pela “onda de prata” que é, afinal, a própria sardinha (Idem:55). Ao descerrar-se a cortina de névoa, eis que surge então o cenário: No fundo Peniche e a formidável cenografia do Carvoeiro, que entra pelo mar dentro; à direita as Berlengas, que pelo recorte e pela cor parecem duas nuvens pousadas no mar; à esquerda as terras cortadas a pique. Uma grande rocha no mar, o Baleal, ligada à terra por um fio de areia, com uma baía a norte e outra ao sul (Idem: 56). As gentes merecem igualmente a atenção do olhar atento do autor, gentes que parecem dividir a sua vida entre a terra e o mar51, refere-se ele à “gente morena de Peniche ou do Ferrel que acumula e que, terminada a vindima, e recolhido o mosto nas cubas, vai, com as mãos ainda tintas do cacho, apanhar a sardinha” (Idem: 56). Há ainda outros pormenores interessantes, como a referência à extinta via-férrea que ligava Peniche à linha do Oeste, por onde saía o produto da faina: Apenas arrematada em Peniche, os almocreves levam a sardinha pela estrada, que atravessa os campos areentos, os salgados, a Atouguia da Baleia, a Serra d’El-Rei até Óbidos e S. Mamede. Nesta época é um vaivém incessante de cargas: o pavimento arruinado cheira a salmoura. Sai pela via férrea (Idem: 57). A observação do poveiro, por exemplo, de que o autor dá conta, constitui talvez o mais completo retrato veiculado nesta colectânea, numa secção intitulada “De caminha à Póvoa”, num texto cuja entrada situa em 20 de Setembro de 1921. A relação deste com o mar, a forma como passa os dias, como se ocupa, a individualidade em relação a outros grupos, a forma como se orienta no mar, como detecta os cardumes, são aspectos que prendem a atenção de Raul Brandão, mas leia-se também a decadência instalada, com gentes desocupadas, sujas, a morrer de tédio, numa Póvoa a desparecer. Aliás, tal como em toda a costa, segundo o autor. 51 117 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Mas, apesar do cenário idílico, com aroma a mar e matizado a “duas tintas”, Raul Brandão comenta o que vê, oscilando a sua escrita entre a descrição apaixonada do viajante que vê e a visão crítica do jornalista que comenta, ou do etnógrafo que procura compreender o objecto de estudo. “Cada vez se inventam mais aperfeiçoados modos de a destruir, redes, aparelhos, armações” (Idem: 57), o que explica a enorme quantidade de pescado que, segundo o autor, caía sobre Lisboa, vinda de Setúbal, do Algarve e de vários outros pontos da costa. Noutro ponto da obra, num texto intitulado “Sardinha! Sardinha!”, refere a quantidade prodigiosa desse peixe que se retirava do mar e os meios de o fazer: “armações valencianas”, o “cerco americano”, a “chavega”, as “netas”, as “redes” (Brandão, 1972: 168). A sardinha, em Olhão, cidade que oferece como exemplo, “enriquece e arruina” (Idem: 169), acrescentando que “nenhum peixe dá mais dinheiro e poucos têm mais préstimo” (Idem, ibidem). Porém, já então, faz notar que “é aos montes que a sardinha é apanhada por essa costa para enriquecer meia dúzia de felizes” (Idem, ibidem), lucro que motiva por parte do autor as mais acesas críticas, com o texto a oferecer-nos, por um lado a fartura, mas, por outro, a delapidação que ela acarreta. Se não, vejamos: Por isso a destruição é enorme e sem folga, dura o ano todo, antes da desova, depois da desova, à rede, a tiro, sem cessar e sem tréguas – uns barcos em terra, outros no mar, uns pescando-a e outros conduzindo-a, com a borda metida na água. Cheira a sardinha (Idem: 170). Porém, acrescenta Raul Brandão, o volume de trabalho era tanto que nem os pescadores existentes eram suficientes, implicando isso que o país tivesse de os ir tirar às terras, com tudo o que isso implica ao nível do equilíbrio entre a exploração agrícola e as outras fontes de rendimento do país, mas o cenário ainda não fica por aqui: O azeite corre como um rio: é preciso importá-lo que não chega. O sal aumentou de preço, porque só este greiro branco permite que o peixe não se estrague. […] Organizam-se companhias a toda a pressa, e de norte a sul a exploração redobra. É uma febre (Idem, ibidem). Mas chamo atenção para a nota de rodapé que preenche quase duas páginas dos mais sérios e conscientes avisos sobre esta febril exploração, com as 118 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) consequências que, se por si na altura adivinhadas, para nós já são claramente visíveis actualmente. A falta do pescado que já se observava, a emigração que, de norte a sul, levava pessoas para as américas, as “criminosas traineiras” que pescavam com dinamite e carboneto, a falta de método e de fiscalização, excessos legais e regulamentos por cumprir… Enfim, a lista é sobejamente conhecida de todos os que, mais ou menos, se mantêm a par do que se passa ainda hoje no país. “Fartem-se enquanto é tempo” (Idem:170), avisa. “Estou farto”, desabafa a determinada altura, comentário a que associa uma nota de rodapé crucial, como disse, para entendermos os problemas que já no primeiro quartel do século XX se observavam e, no fundo minavam a atividade. Refere-se o autor ao facto de que “todos os pescadores de norte a sul se queixam de que o peixe falha” (Idem; 170) – Caminha, Aveiro, Nazaré, Sesimbra, Olhão. Um outro aspeto curioso é o facto de entrar igualmente em pormenores técnicos e de estrutura da própria política de pesca, dando conta de uma atividade económica em mudança rápida (e nem sempre para melhor, como o texto evidencia), também ela a precisar, tal como as restantes áreas, de uma atualização técnica, embora com cautela, evoluir, sim, mas à medida do país. Observa Raul Brandão: -Aperfeiçoamentos técnicos: barcos, aparelhos, estações de pesca, cais, abrigos, etc., mas com cuidado, porque o país é pobre e os resultados seriam escassos. Agora fala-se para aí muito em escolas de pesca, que serviriam apenas para anichar mais algumas dúzias de vadios políticos. A grande escola de pesca é o mar. Alguma coisa se conseguiria porém com exemplos, trabalho e meia dúzia de pessoas dedicadas. Mas pouco – porque afinal estou convencido de que os pescadores sabem mais com os olhos fechados do que os técnico com eles abertos (Idem: 171). Agosto de 1919 marca uma das entradas do livro e a da estadia em Peniche, que terá motivado, também aqui, as sentidas impressões do autor, que oscilam entre o enlevo emprestado pela paisagem e a acutilância com que critica o espaço urbano de Peniche e a forma como a pesca se industrializara. “Peniche é horrível” (Brandão, 1972: 130), com a culpa a ser atribuída “aos homens dos 119 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) municípios” que, segundo o autor, “transformaram terras cheias de carácter em terras incaracterísticas, com edificações banais, avenidas novas e chalés de zinco. Degradaram tudo” (Idem, ibidem). Cruzando os tempos, partindo dos séculos em que Peniche era um forte onde se cruzavam piratas, transportando-nos para um universo de aventura e exotismo, detém-se agora no mau cheiro que assola a vila e explica a sua opinião sobre Peniche: “Mas Peniche é sobretudo horrível para mim, porque é o tipo de pesca industrializada, o barracão, a fábrica de peixe, a caserna da sardinha, onde impera o Fialho do Algarve” (Idem, ibidem). Porém, nem tudo é mau e, por sinal, até esquecemos de imediato a má impressão, porque Raul Brandão, com a sua reconhecida e auto-proclamada (ver Memórias, volume I) capacidade de ver beleza em tudo, transporta-nos para os pequenos tesouros que esta região encerra: a escola de rendeiras, de que fixou “a ingenuidade e a pureza” (Idem: 130-131) das crianças aprendizes, “debruçadas sobre os bilros e os piques” (ibidem); as Berlengas ao longe, que o deixam “cismático”; a “Senhora dos Remédios;” a “mole negra e cenográfica que se esboroa na extremidade, tomando o aspeto estranho de torres medievais […] É o castelo do diabo!” (Idem: 131); a praia do Baleal, que classifica como “a mais linda praia da terra portuguesa (Ibidem); a graça da capelinha de Santo Estevão, na ilha do Baleal; o “recorte delicado das Berlengas” (Idem: 134), que observa com “assombro” – “o monte solitário sai todo vermelho da água verde e grossa como um vidro” (Idem, ibidem); as cavernas misteriosas que evocam passados aventureiros… Enfim, todo um enquadramento que motiva um “sonho misterioso” com cobras de vegetação, braços que o enroscam em verde, fiordes, “arabescos fantásticos” (Idem: 138) que desenham e recortam a ilha. “Passa-se qualquer coisa que pertence antes ao sonho” (Ibidem), daí resumir desta forma a impressão que retira da ilha: “mas já não tenho dúvidas: são as nereidas, filhas da incestuosa Dóris, no seu último domínio” (Idem: 139). Impressiona-o ainda a riqueza das águas da costa de Peniche: sardinha, pargo (o mais delicioso de Portugal), dourada, o atum, a muge, o godilhão, a lagosta, polvos… vida marinha que sustenta a fauna alada que cruza os céus da região: airós, galhetas, gaivotas, patos, pombos cinzentos, maçaricos reais, cisnes negros… Testemunho, tudo isto, de um ecossistema ainda em equilíbrio e generoso para com os habitantes que do mar e da terra sobrevivem, o que con- 120 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) fere ao elemento humano características únicas que Raul Brandão comenta da seguinte forma: “Os homens devem ser felizes diante deste espectáculo sempre igual e sempre renovado” (Idem: 140). A dualidade mar/terra, que impressiona o nosso autor a vários níveis, como já sugeri anteriormente e que se vê na forma como se vive a terra: “Esta nossa terra portuguesa vai pela costa […] Sempre de braços abertos para o mar, estreitando-o amorosamente contra si” (….), ou seja, Portugal existe e subsiste de olhos postos no mar, mas o que a obra deixa transparecer e que se me afigura digno de registo é o efeito que isso deixa nas pessoas. No segmento intitulado “Os pescadores” (páginas 88 a 92), Raul Brandão, embora centrado nos habitantes de Mira, avança perspectivas que poderemos estender a muitas comunidades que vivem do mar, que, no fundo, partilham uma genealogia comum e que vem na sequência do acima se disse: a importância da mulher no bastidor da faina, o carácter sagrado da instituição familiar, a simplicidade e a humildade, embora sem miséria, a convivência diária com a felicidade e com a infelicidade, a consequente religiosidade vincada… Além disso, afirma o autor que o “contacto com a terra obriga o homem a olhar para o chão, o convívio com o mar obriga-o a levantar a cabeça” (Brandão, 1972: 88), o que podemos entender como uma característica da alma da terra e da gente, se Portugal se encontra virado para o Atlântico, as suas gentes reflectem-no e se olham para o céu é porque acreditam em algo superior que assegura a dádiva que é o mar, vivo que dá e tira, ao mesmo tempo, daí a cabeça levantada, que tanto pode sugerir a súplica como o orgulho, devido ao facto de os homens do mar fazerem vida a enfrentar algo que tanto respeito impõe. De outro ponto de vista, a nossa História foi assim escrita; deste eterno confronto entre terra e mar, que foi moldando as gentes até lhes conferir uma alma, nobreza e carácter únicos, tal como única é escrita de Raul Brandão que, obra a obra nos deslumbra com a sua escrita magistral. O convite à sua leitura fica desde já estendido – e não precisam de ler Woody Allen primeiro! 121 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) BIBLIOGRAFIA Brandão, Raul, Os pescadores, Lisboa, Círculo de Leitores, 1972. Machado, Álvaro Manuel, Raul Brandão entre o romantismo e o moderninsmo, Lisboa, Instituto da Cultura e Língua Portuguesa, 1984. Morão, Paula, “Retrato e auto-retrato – Fronteiras e limites”, O secreto e o real – Ensaios sobre Literatura Portuguesa, Lisboa, Campo da Comunicação, 2011, pp. 55-65. Reynaud, Maria João, “Recensão crítica a Os operários, de Raul Brandão”, in Colóquio / Letras, n.º 86, JUL. de 1985, pp. 100-102. Reynaud, Maria João, “Raul Brandão reeditado, crítica a Impressões e paisagens, de Raul Brandão”, in Colóquio / Letras, n.º 106, NOV. de 1988, pp. 82-83. Salema, Álvaro, “Portugal visionado, crítica a Portugal pequenino, de Raul Brandão”, in Colóquio / Letras, n.º 92, JUL. 1986, p. 82. 122 VARIA PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) MEMÓRIAS DA PESCA ENTREVISTA – SR. JOSÉ MARIA MALHEIROS CATIVO52 JF – O Sr. José Maria Malheiros Cativo é o nosso convidado para nos falar sobre a construção naval em Peniche, desde a época dele e dos seus antecessores, que eram familiares. É precisamente aí que nós queríamos começar. Se calhar são os primórdios da construção naval em Peniche... À vontade; uma conversa simples… e espontânea. Não há problema, pode… JM – A ideia da construção naval vem do lado dos meus avós maternos. Já o meu avô, acho que já o meu bisavô era construtor naval porque é uma família que vem de S. Martinho do Porto e S. Martinho do Porto, na altura, onde faziam as caravelas e tudo aquilo era mar… E então aquele bichinho mordeu sempre e eu… MS - Diga-me o nome do seu avô se faz favor. JM – O meu avô era António Fernandes Malheiros. E depois fui aprender o ofício… MS – Com que idade? JM - Com 11 anos. Naquele tempo eramos quatro irmãos: três raparigas e eu era o único rapaz e, naquela altura, os rapazes é que iam estudar iam fazer qualquer coisa. De maneira que vim para a Escola, para a antiga Escola Industrial e Comercial, mas aquele bichinho falava mais alto e acabei por ir para o ofício, até porque os meus tios vários estaleiros, um deles junto da minha casa e então, aos bocadinhos, ia para lá aplainar, cortar, serrar A presente entrevista foi realizada nas instalações da Escola Secundária de Peniche, no dia 7 de novembro de 2013, e conta com três intervenientes: o Sr. José Maria Malheiros Cativo, construtor naval, daqui em diante assinalado no texto com as iniciais JM e os professores João Fernandes (JF) e Miguel Santos (MS), professores da Escola Secundária de Peniche. 52 125 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) MS - Lembra-se quantos estaleiros havia nessa altura? JM – Estaleiros, assim por alto, deviam haver aí uns sete ou oito… JF – O Manel Rapaz… JM – Manel Rapaz, Sá Bandeira, o Carneirinho, três… JF - …Eram feitos nos armazéns, ali no Alto da Vela… JM – O meu avô teve um estaleiro mesmo encostado ao muro da fortaleza. E os meus tios, na altura, tinham três estaleiros: um aqui em Peniche de Cima, um junto da casa dele, ali ao pé do Alto dos Moinhos, ao pé da Nigel, e um ali na Rua da Saudade, ao pé do Capilé - não sei se te lembras… Por acaso, fui o último a trabalhar lá naquele estaleiro, numa reparação. É que os barcos eram construídos mesmo dentro da vila, que é agora cidade… E depois aquilo era engraçado porque iam a baixo puxados por juntas de bois e já se faziam barquitos aí com 10, 11 metros, na altura. Entretanto, as embarcações começaram a mexer… e decidi ir mais para a borda da água por causa do acesso ao bota abaixo e, então, foi por aí que veio, de modo que… Tive o gosto de ter sido quem fez o maior barco em Peniche, uma embarcação com 32 metros, foi para o longo curso. Foi na altura em que eu passei de carpinteiro a mestre, porque eu trabalhava com um tio meu; adoeceu na altura e aquilo ficou-me de um dia para o outro nos braços; ele saiu à noite e de manhã já não apareceu, infelizmente teve uma doença grave. MS - Voltando um bocadinho atrás; quando fala em aprendizagem. Aprendizagem consistia em quê, em ver fazer? JM - Era aprendizes mesmo; porque hoje é… quase tudo vai já com uma idade avançada e para se ir para um ofício como este, tem que se começar de novo… Na altura, recordo-me que rapazes entre os 11 e os 13 anos éramos, só naquele estaleiro, éramos 14. Íamos lá aprender mesmo, ajudar… MS - Mas a primeira arte era a carpintaria… JM - Era a carpintaria; e aquilo começava-se como aprendiz, depois oficial de 3.ª, oficial de 2.ª, oficial de 1.ª. Hoje não, aquilo… por força da idade, vai passando e chega a carpinteiro. Mesmo que não saiba nada de carpintaria, não é? Mas é um carpinteiro. 126 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) JF - Mas a história era mesmo começar… JM - Era mesmo começar, mas era não só, no ofício da construção naval… era serralharia, era mecânico, era pedreiro, era todos aqueles que começavam em rapazes, iam por ali fora… Uns seguiam, outros acabavam por ficar pelo caminho… JF - Os pais chegavam a pagar… JM - Chegavam a pagar para os filhos irem aprender, uma coisa que era para eles. JF - Uns não ganhavam nada… O tempo que roubavam ao formador, vamos chamar-lhe assim, os pais contribuíam com um x… MS - Então vamos ver a história da construção de um barco, desde a origem………., materiais, técnicas, na altura… JF - Eu vou fazer que sou um possível proprietário de barco. Eu quero um barco com 15 metros, para pescar com redes de pescada, por exemplo. JM - Começava-se os preparativos, claro, fazia-se um modelo; há 50, 60 anos, fazia-se o modelo. Hoje não, aparece um projecto já feito por um… JF - Arquiteto naval… JM -… Já traz…naquela altura era o mestre de estaleiro é que fazia o modelo que é isto que está aqui. Cada um tinha o seu gosto e nenhum deles era igual… M - O modelo era uma peça em madeira… JM - Era uma peça em madeira que consiste… JF - Em metade do bordo… JM - … Geralmente era metade… É um bordo, que cada um faz ao seu gosto… Depois, esta parte aqui é a amura, aqui são as alhetas; antigamente as popas não eram de painel, esta é a popa de painel – era uma popa de leque ou uma popa redonda – o João é capaz de ter aí algumas fotografias. A partir daí, fazia-se o modelo, passava-se o modelo… Este está à escala de 1/15, salvo erro, consoante o tamanho da embarcação fazia-se a escala a 1/10, 1/15. Quando eram embarcações já muito grandes, para não se fazer um modelo enorme, fazia-se… depois dali passava-se para o chão, em tamanho natural, tiravam-se os moldes, depois começavam-se os preparativos, de arranjar a madeira, porque nem toda a madeira … 127 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) MS - Que madeiras? JF - O passar para o chão é a grade. JM - Traçá-lo no chão em tamanho natural e depois, dali, tirar uma grade, para depois marcar a madeira e dali é que saía… É assim, são poucas coisas… JF - Estes traços que aqui estão… JM - São as balizas. JF - Isto corresponde… São estes elementos que aqui estão que dão a grade… A grade, não é? JM - Portanto, na grade são marcadas as balizas e é por ali que se traça. JF - Estes vários pontos… JM - São as linhas de água… Que é por aqui que, depois que se traça um… Foi pena não ter o plano geométrico, mas é mais ou menos isto que aqui está… JF - É por aqui que se tira uma grade. A grade acaba por ser isto. É tirada daqui. JM - É o que se põe em cima da madeira JF - E a madeira depois é cortada. JM - Antigamente, quem sabia traçar era mesmo o mestre e era uma coisa que era escondida, o carpinteiro não tinha acesso… Era mesmo escondido; traçavam no ofício e só eles é que sabiam, não passavam… MS - O conhecimento… JM - Os conhecimentos… JF - Só mesmo no final de carreira… JM - Nem isso, não. Havia alguns que levavam com eles… Eu tive a felicidade… MS - Mas era para não serem superados? 128 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) JM - Era para serem mestres mesmo; não fazia sentido ter um carpinteiro ao lado que sabia tanto como o mestre, não é? Eu tive a sorte; a sorte e porque tinha muito gosto também. Ajudava a traçar… Os meus tios, normalmente, levavam sempre os rapazes para ir… Alcança-me isto, alcança aquilo, passa-me os pregos, passa-me o virote… Aquilo depois era traçado com pregos, e eu, como era da família e gostava muito do ofício… E ele cascava-me mais que nos outros… MS - Olhe, e as madeiras? JM - E então ia para lá e aprendi… A madeira depois era escolhida. Aqui há 50 anos não era preciso ir muito longe para arranjar madeira para a construção naval, porque aqui no concelho… MS - Era pinho? JM - Pinho manso, pinho bravo e carvalho, eram normalmente o que se usava. Pinho manso para as balizas, o esqueleto… MS - Era mais flexível? JM - Não, era precisamente o contrário… É mais rijo e tem uma veia totalmente diferente… Se olhar para um pinheiro manso, tem aquelas ramas em cima e as curvas, porque aproveita-se a veia da madeira para fazer as curvas, para não quebrarem… JF - Não é um pau direito… JM - Não é um pau direito… JF - … E depois fazer um torto, tem de se aproveitar a curvatura… JM - E como tem os veios naquela posição, não parte com facilidade. JF - Essa era uma das principais artes de um carpinteiro naval; era saber escolher a madeira… JM - Primeiro saber escolher e normalmente eu, pelo menos, ia sempre ao pinhal escolher a madeira, até pelos feitios; e é engraçado, quando a gente olha para uma árvore já tem a ideia daquilo que vai fazer dela. Esta vai fazer a roda de proa, aquela vai fazer o poço da popa, a proa que será isto… 129 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) JF - Tem de arranjar uma árvore que… JM - …que consiga fazer esta forma. Para além das formas, saber escolher a madeira também; a zona onde é criada, por exemplo. Se for um chão de areia… Eu ia para o pinhal com o madeireiro, ver umas árvores, mas se fosse chão de areia, elas podiam ser muito bonitas, mas eu não queria, porque quanto mais rijo for o chão onde é criada, melhor é a madeira, porque tem uma veia mais apertada, é mais rija. E depois a época de corte. Normalmente, cortamos madeira para a construção naval, ao contrário de uma serração. O melhor corte é do minguante de janeiro, é o melhor corte, ou minguante e agosto, são os dois cortes melhores. Claro que quando tínhamos de cortar noutra época… MS - E há uma explicação? JM - Há, há uma explicação… Cortávamos noutra época, mas geralmente sempre no minguante; e minguante porquê? Porque é quando a árvore deixa de crescer e então aperta as veias e não corre seiva ali dentro e a madeira fica ali… Se cortarmos uma árvore no minguante de janeiro, por hipótese, trazemo-la para o estaleiro e fica lá e cortamos uma árvore, por hipótese, em abril, no minguante de abril também; quando chegar a utilizar a árvore, vamos supor que a utilizávamos em outubro, a árvore de abril, a do corte de abril estava estragada e foi cortada uns meses depois e a árvore do corte de janeiro estava boa. Normalmente, os armadores que acompanhavam a construção gostavam de ir ver o que se estava a fazer e não gostavam muito de ver árvores sangradas… Já devem ter visto num pinhal a sangria, a aproveitar a seiva e não sei quê. Eu cortei muitas mesmo sangradas, o que fazíamos, cortávamos logo o pé, o bocado de sangrar, só para evitar que o armador: “Eh, pá, isto já foram árvores sangradas!”; ficavam com a ideia que a árvore já estava com menos força e não sei quê. É ao contrário, porque a árvore quando é sangrada, na parte do pé, onde tem as bicas, chamamos bicas, tem muito mais força do que uma árvore normal, mas eles não gostavam… E para a gente também era pior, porque custava mais a dar a forma porque a madeira é mais rija e sujeita-se a partir… MS - Quantos homens é que poderiam trabalhar numa encomenda destas, numa embarcação de 15 metros… 130 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) JM - Normalmente, quatro, cinco pessoas. Agora… MS - E quanto tempo demorava? JM - Demorava para aí uns seis meses a fazer um barco, porque era tudo feito à mão, tudo… Para ter uma ideia, só tivemos energia eléctrica a partir de 67, 68; é que começou a aparecer máquinas; aliás, máquinas havia, mas não era tradição de estaleiro, não é? Portanto, era tudo feito à mão. Mesmo os pinheiros de maior dimensão eram cortados no pinhal. Iam para lá os serradores, com serras, braçal, eram mesmo só serradores. Só faziam material para a construção, só serravam para a construção naval, mas toda a forma do barco era toda serrada à mão. Depois é que começou a aparecer umas plainas, uns berbequins, a ajudar, de resto, a furação era todo um trabalho feito à mão, tudo, daí levar bastante tempo, não é? Porque isto implica muita mão-de-obra; para além de mão d’ obra, implica um desperdício de madeira muito grande, porque há muito desperdício, para aproveitar as formas. Aproveitase aquela peça e o resto vai fora. Normalmente, num pinheiro bravo, que era para forro, também tínhamos por hábito, de um pinheiro, aproveitar, claro, se ele tivesse dimensão para isso, quatro tábuas no máximo, e o resto, aproveitava-se, sim, mas era para outras coisas, já não era para aquilo porque já não tem a mesma força que tem a outra árvore… da mesma árvore, mas é diferente, a peça. De maneira que depois ia para o pinhal e então o mestre é que traçava a madeira, marcava e depois lá ia serrar, aplainar… E daí a importância dos aprendizes, que começavam por ajudar a cortar as peças, a pregar, a aplainar, a ver… JF - O serrador era mais ou menos isto: dois cavaletes, a peça em cima, um serrador em cima da peça e outro por baixo… JM – o pau era alinhado… JF - Era uma lâmina, com duas travessas… JM - Chamava-se mesmo uma serra braçal… JF - … uma serra braçal… o risco em cima; eu vi muita vez, ali. 131 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) JM - … Uma linha; era a linha de batida… Marcava-se uma linha, punha-se o pau em cima, por acaso nem era em cima do cavalete; havia uma peça que era chamada burra. Era alta; a frente era alta e depois vinha por baixo, que era para arrastar o pau… pela burra, e depois tinha uns pontais, que era para ter facilidade em manobrar, para mudar os pontais quando era preciso a serra passar para o outro lado. Era um trabalho muito moroso, tinha muita mão-de-obra… era tudo feito à mão. Não é que isto fosse uma… Como é que hei-de dizer? Nunca ninguém fez fortuna na construção naval… MS – Já agora; já voltamos à construção… Disse-me há bocadinho que havia para aí seis, sete, oito… JM - Para ter uma ideia, eu aqui há uns anos, já há uns anos, comecei assim, já depois de eu já ser… já trabalhava… Porque depois um aprendiz começa por vir meter um rombinho numa lancha, fazer uma quilha, pequenas coisas; depois é que vai evoluindo até trabalhos mais complicados; e então, numa altura em que já trabalhava, comecei assim, um dia, a fazer um apanhado e cheguei a 200 homens a trabalhar em Peniche, 200 carpinteiros em Peniche. MS - Isso é fantástico! JM - Para ter uma ideia, quando eu fui para o ofício, o meu tio, os meus tios, que na altura o meu avô já tinha falecido, tinham sessenta homens a trabalhar num estaleiro, num espaço pequeno. MS – Mas a opção do armador, em escolher o estaleiro naval A ou B, tinha que ver com que critérios? JM - Tinha que ver… MS - Com a honestidade, com o preço… JM - O preço às vezes influenciava um bocadinho também, mais a qualidade, depois a amizade também, mais a amizade. Havia armadores que tiveram muitos barcos e sempre com o mesmo construtor. Havia outros que, por vezes, mudavam; ora mandavam fazer aqui, depois voltavam… Mas a amizade também contava muito e a confiança na construção, pronto… Isso era o essencial. Outros optavam pelo prazo 132 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) de entrega, porque se havia um estaleiro que estava com mais trabalho, aquilo era para hoje, não é? Uma pessoa quando encomendava uma embarcação, era para ontem e então, por vezes, optavam por ir a outro estaleiro. Não era que não gostassem daquele, mas era porque aquele entregava-lhe o barco, por hipótese, daqui por seis meses e o outro entregava… Daqui a dois meses podiam ter a embarcação pronta, porque tinha menos que fazer… MS - E porque iam barcos para fora do país, de Peniche, com certeza… JM - De Peniche para todo o país. Os meus tios construíram muito para África, naquele tempo. Muitos barcos. Inglaterra também; chegámos a fazer barcos para Inglaterra. E para as ilhas… Agora para o país, era para todo o país, assim como de Vila do Conde, de Aveiro, Figueira da Foz, também se faziam construções que vinham para Peniche. Como eu disse, tinha muito a ver com os prazos de entrega. Eu deixei de fazer uma traineira com 26 metros, para Sines, porque o armador perdeu o barco. O barco abalroou, com as rochas… Perdeu o barco. Felizmente, não houve vítimas. E então, aquilo, queria um barco logo. Veio de Sines, porque não havia tradição de construção. Veio a Peniche, direito, para eu lhe construir, porque eu já tinha construído barcos para lá… E chegou-me aqui e perguntou-me quanto tempo eu levava para lhes entregar o barco e eu disse: “Eh, pá, uma embarcação destas, um ano.” E o homem ficou assim a olhar para mim. “Eh, pá, então não lhe vá parecer mal, mas eu vou a Vila do Conde”. Na altura, o Samuel tinha muita gente… “Eu vou a Vila do Conde”. “Eh, pá, não me parece nada mal, se ele levar um ano a entregar a embarcação e mandar fazer em Vila do Conde, já me parece um bocadinho mal, agora se ele a entregar… O que é que aconteceu: O homem foi a Vila do Conde e teve o cuidado de, quando veio para baixo, porque ele era de Sines, de passar aqui e ter uma conversa comigo e o homem disse que lhe entregava o barco em seis meses, pronto; é metade do tempo, não é? Ele entregou o barco e, infelizmente, esteve quase dois anos à espera que ele o entregasse e o sofrimento lá. Ia-lhe acontecendo o mesmo que aconteceu ao filho do Campino, do Manel, do Manel não, o irmão, o Alberto, que morreu lá, por causa dos nervos; ia-lhe acontecendo precisamente a mesma coisa. Por isso está a ver como era que as coisas se passavam. Eu nunca fui capaz, para ter uma embarcação, se não fazia aquela, fazia outra. Eh, pá, eu sabia que, à partida, não conseguia fazer o barco naquele espaço de tempo, então nem sequer… 133 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) JF - No meio disto tudo, é que é assim: a mão-de-obra especializada não havia como economistas há agora por aí, não é? E eu não tinha hipótese de dizer: “Vou ali buscar mais sete calafates e consigo fazer isto… Não havia. Tinha aquela mão-deobra e só podia contar com aquilo. JM - Mas como havia muito estaleiro e qualquer deles tinha muita gente… Eu cheguei a contar – e devem-me ter escapado alguns – pelo menos duzentos homens a trabalhar na altura, oficiais. JF - E vocês chegaram a ter quantos barcos armados, semi-armados, a acabar… JM – No tempo do meu tio, já se faziam embarcações até 20 metros… 20, 22 metros, com 26 mais tarde. Mas chegaram a ter seis, sete barcos armados ao mesmo tempo, cinco, seis homens num barco, cinco, seis noutro… Para além disso, tinham que dar todo o apoio à frota que havia – e era muita, não é? Toda a reparação; e havia a tradição de as embarcações pararem quase todas na mesma altura, para reparar. O estaleiro quase que parava para o pessoal se deslocar para fazer a reparação MS - E a reparação era feita no mesmo estaleiro… JM - A reparação era feita no mesmo estaleiro, normalmente, mas num sítio totalmente diferente. Bastante longe até do estaleiro. Além de ser tudo feito à mão, era tudo carregado à mão também. Tudo às costas e tudo a pulso. MS - Então e o que é que se estragava mais… e era dado para reparação? JM - Bordas; substituíam-se algumas tábuas, porque havia desgaste, porque era diferente do que é hoje; as embarcações andavam tudo apertado, para descarregar o peixe, por exemplo, abicavam, carregavam todo aquele peso, apertadas umas com as outras… De maneira que havia tudo isso… MS - Então e voltando às técnicas de construção, tínhamos ficado nas madeiras. JM - Técnicas de construção pouco evoluiu… A forma de construir é quase a mesma de há 500 anos e continua a ser a madeira. O que evoluiu foi a forma das embarcações. Deixou de se fazer a popa de leque e a popa redonda, e foi a popa de painel que veio facilitar em muito o trabalho do carpinteiro, e, para além disso, deu 134 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) outra segurança às embarcações. Veio beneficiar em tudo, a popa de painel, tanto que hoje raramente se faz um barco que não tenha uma popa de painel. E isso veio facilitar bastante, porque eram muito trabalhosas, as outras popas… O resto é tudo quase feito da mesma forma. MS - Os barcos, na altura, já eram a motor. JM - Já eram a motor. MS - Vela, remo… JM - Ainda se fizeram muitos a vela e a remo, embarcações mais pequenas, mas depois começou tudo a ser com motor. E havia muito carpinteiro, porquê, porque as embarcações evoluíram… vamos lá a ver… A forma de construir foi sempre a mesma, mas evoluíram muito porque começou a haver embarcações com maior porte. Um armador hoje manda fazer uma embarcação e fica toda a vida com ela; naquele tempo não, o máximo que tinha uma embarcação era quatro, cinco anos. Depois queriam mandar fazer uma maior, com motor mais forte, com mais força, para levar mais arte. Houve a necessidade de cada vez ir para mais longe; as capturas começaram a ser menos. E então era assim, porque havia muito carpinteiro; quatro, cinco a embarcação. Normalmente iam para o Algarve, que os mares eram mais calmos e sofriam menos; o que não prestava para aqui, era para lá, para o sul. Daí que era constante estarem a fazer embarcações novas: ou porque era maior, ou porque era o motor… O que é engraçado é que nunca havia uma embarcação igual, porque os armadores nunca queriam nada igual. Era quase como a moda, não é? Um vai comprar uma camisa e o outro não quer uma camisa igual, tem que ter alguma diferença, nem que seja só nos botões. E então: “Eu quero um barco, mas não quero igual ao daquele fulano. Quero com mais ½ metro, quero com mais 20 cm, quero com mais um bocadinho de boca ou um bocadinho de pontal… Que é uma coisa que as embarcações também não têm, é largura nem altura. Cá em cima não se fala; é a boca que é a largura e o pontal, que é a altura, não é? MS - Exacto! 135 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) JM - Assim como não têm lado direito nem lado esquerdo, já deve ter ouvido falar em bombordo e estibordo. Quando perguntam: “Que largura tem aquele barco?”. Não respondo. “Não sei”. “Então, não sabe? Então mas o barco…” Não, se me perguntarem “a boca”, eu respondo… Isto por graça, não é? MS - Claro. JM - De modo que depois foi evoluindo, foi evoluindo… Também é engraçado porque quando falávamos de hoje, dos tempos que correm, qualquer um quase que é carpinteiro, não é? Mas não é assim, porque – O João deve ter conhecido um senhor que para além de ser pescador, era o homem dos sete ofícios, o Rogério. E então também foi armador, também teve barcos construídos por ele, inclusive fez um (…) JF - Era um autodidacta. JM - Era um autodidacta. E então o homem, quando fazia lá na… ali em Ribamar… era em Ribamar ou era… JF - Na Atalaia. JM - Na Atalaia, lá no quintal dele. Começava a fazer uma lanchinha ou um barquito e eu recordo-me, era novo, lembro-me de ver aquela cara lá pelo estaleiro, a conversar com os meus tios, e a ver… E um dia, eu estava até a ajudar o meu tio Chico e ele disse: “Ó Sr. Chico, Eh pá, posso fazer-lhe uma pergunta”? “Não, diga lá”. “É que eu estou a fazer uma lanchinha – que era uma coisinha destas – e eu faço as tábuas tão direitinhas, mas não consigo lá pregar nenhuma, que elas partem-se todas”. E o meu tio começou a rir e disse: “Pois é. O problema está em fazer direitas, porque numa construção de um barco não há nenhuma que seja direita. Todas elas são tortas. E então era daí que ele não conseguia pôr, porque não tem uma peça que seja direita, numa embarcação. Por as peças não serem direitas, tenho uma história também engraçada. Aqui há uns quinze anos, catorze, fiz duas traineiras para Sagres, dois barcos com 23 metros. E os homens, depois, havia quem quisesse o cavername em carvalho, porque era o armador também… Lá ao sul gostavam mais do pinho manso, porque era mais leve e não sei quê… E então o homem quis a estrutura em pinho manso e eu andei bastante à procura de pinho manso, porque eram embarcações já grandes. E fui cortar 136 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) madeira ali perto de Alcácer do Sal. O pinho manso, naquela zona, era bem melhor. Ao contrário do pinho bravo, que é bem melhor para a zona do norte. E andava um senhor a cortar, a abater árvores, manso, numa herdade que é a Herdade da Palma, vocês já devem ter passado por lá, aquilo lá perde-se de vista. E eu, na altura, precisava de 200 toneladas de madeira. E falei com o homem e disse que sim senhor, que me arranjava a madeira e eu tinha de ir lá cortar a madeira, para aproveitar precisamente as formas. Aquilo lá eles trabalham ao casal; o homem leva a moto-serra e a mulher é que vai desviando as ramas e aquilo tudo. E o homem - eu cheguei lá de manhã - escalou dois casais: “Olhem, vão aqui com este senhor; a árvore que ele mandar pôr a baixo – pôs-me à-vontade, porque aquilo era madeira para moer - nem que seja para tirar uma peça, pode pôr a árvore a baixo, desde que ela sirva”. O preço que ele me vendia a mim também compensava, que a madeira para a construção naval é sempre muito mais cara do que outra qualquer. E então o homem mandou e aquilo é enorme; e então ia com o casal, a conversar e as senhoras iam atrás e eu: “Olhe, corte aquela árvore”. Eles cortaram, punham a baixo. “Tire-me esta peça, aquela; o resto não me interessa. Olhe, corte-me aquela”. No outro dia – fui lá vários dias. Num dia, íamos assim a andar, à procura de uma árvore, e oiço as senhoras, que iam atrás: “Eh, pá, que confusão que isto me faz; com tanta árvore tão bonita que está aí, e o homem só escolhe as árvores feias, todas tortas, é o que ele quer. Eu não disse nada, mas ficou-me. E entretanto, vinha a Peniche, porque eu vinha sempre ficar a casa. No outro dia eu não fui, para deixar aqui o trabalho mais ou menos alinhavado; e eu fui e levei-lhe o desenho de um barco. E quando estávamos assim…disse-lhe: “Sabe porque é que eu quero as árvores tortas? É para fazer estas peças”. “Ah, pois estava-me a fazer confusão!”. Esta é uma das histórias que ficou… MS - Alguma história marcante que… JM - Havia coisas engraçadas… Há uma história, também, com um biólogo que esteve aqui, no Museu de Peniche, que é o Ivo Lisboa, ele até escreveu já vários livros, um homem que catalogou aqui o S. Pedro de Alcântara, aqui, esteve aqui muito tempo no Museu e ficou muita amizade porque ele adora a construção naval. Aliás, ele até tem um artigo que escreveu… Sobre uma árvore, quando fizemos o Mestre Malheiros. Aquilo para arranjar uma árvore para fazer uma roda de proa, tinha que ser uma árvore já com um porte muito grande, porque era uma embarcação muito 137 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) grande e com uma forma que desse realmente para fazer aquilo, que esta peça não convém ser….ter… Convém ser peça única, não é? Encontrámos um senhor que tinha uma serração e que negociava em madeira e fomos à procura da árvore. Dissemos lá o que queríamos e ele levou-nos a procurar a árvore e andámos quilómetros e quilómetros e quilómetros e vários dias à procura de uma árvore que servisse para a roda de proa, entretanto encontrámos… E o homem tinha uma árvore ao pé da casa dele e essa árvore dava, mas aquela árvore era centenária, já. Não havia dinheiro que pagasse a árvore, mas o homem viu-nos tão aflitos, tão aflitos! Queríamos começar o barco e não tínhamos… não encontrávamos… ele tinha acompanhado lá… “Eh, pá! Em último caso eu corto a árvore, porque vocês não deixam de fazer o barco por causa de não arranjarem a peça”. E procurámos, procurámos, procurámos e encontrámos uma árvore… E, por sinal, essa árvore ainda lá está, nunca foi abatida, ainda continua; e então ele escreveu uma história: “Uma árvore no caminho de Alcobaça”. E qualquer dia vou lá com ele, mostrar-lhe a árvore, que ele já me falou nisso. M - Tiramos uma fotografia à árvore!... JM - E ele quer lá ir ver a árvore e está lá; e sempre que ali passo, olho para lá. O senhor já deve ter morrido, que ele já era com uma certa idade, mas a árvore continua lá e eu fico muito contente de ela não ter sido abatida, porque além de eu precisar da madeira, uma coisa que sentia era quando olhava para uma árvore e a mandava pôr a baixo… Custava-me um bocadinho. Acreditem que me custava. Isto é uma história. E há outra, que é o timoneiro, que teve uma avaria e partiu aqui esta parte, da borda. Isto era uma peça também com uma forma e era uma reparação e era preciso. Lá no estaleiro havia por vezes muita madeira, nem havia para todas as reparações. Também andei com um madeireiro, uma série de dias à procura de uma peça para fazer aquilo; encontrámos uma, realmente, em que o senhor, já de idade, ao fim de muito tempo, pediu-nos para aí o dobro ou o triplo do valor da árvore, que era para não a vender. Mas eu, como estava tão aflito para reparar o barco e aquilo era uma reparação, ao contrário de uma construção, que tem um orçamento e a gente está limitados aos custos, ali era uma reparação, o homem queria era o barco, custasse mais dez ou custasse menos dez, aquilo não interessava. Então a gente foi, o homem pediu o dinheiro e eu assim: “Tá bem, a gente amanhã vem cortar a árvore”. “Vêm, 138 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) mas trazem o dinheiro, e trazem o dinheiro em vivo”. Que as pessoas dantes não aceitavam cheques, tinham muito medo; ainda mais naquela fase pós-25 de Abril, em que toda a gente tinha medo dos cheques. E é engraçado que fomos cortar a árvore e o homem levou a moto-serra só, em cima da carrinha, levou só a motoserra, porque a árvore tinha de ser carregada depois com uma máquina, mas levou a moto-serra já a prever o que ia acontecer… e aconteceu. Chegámos lá, demos o dinheiro ao homem, o homem contou o dinheiro; isto ao pé da árvore. “Pronto, tá aí o dinheiro?”. “Tá”. O homem pôs a moto-serra a trabalhar; aquilo levava um corte e depois levava outro corte, que a gente chama “a cunha”, que é para levar com a árvore dentro e vai tombar. Qual não é o espanto da gente, quando o homem mete a moto-serra a trabalhar, faz a cunha, entretanto, vai para tirar a moto-serra do outro lado, vem de lá a velhota; quase que bate no velhote lá ao pé da gente, de ele ter vendido a árvore. Se não tem a cunha feita, tínhamos ficado sem a árvore. A gente muito encolhidos, não é? Ela ralhou muito, muito com o homem, claro. Mas a gente também sentiu um pouco, fomos mesmo já com a intenção; sabíamos quase que aquilo ia acontecer. Portanto, há várias… há histórias assim… Isto tudo porque é preciso determinadas peças para a construção. M - O momento do lançamento – estou a ver ali uma fotografia – ou do baptismo do barco, era um momento solene ou… JM – Era, era, mas para mim era o pior da construção. Da construção não me metia medo, fosse o que fosse, com mais ou menos dificuldade em arranjar os materiais, o bota-abaixo sim, metia-me muito respeito. E porquê? Porque nunca tivemos condições de fazer um bota-abaixo. Era sempre com o coração nas mãos. Porque aquilo, quando se começava a arrastar - e era por arrasto, por atrito - quando se começasse, não se podia parar, porque não tínhamos hipótese de o voltar a puxar para cima, se houvesse um azar qualquer e o sítio onde trabalhávamos era perda da embarcação, de certeza absoluta. De maneira que aquilo tirava-me o sono, mas muito sono mesmo, porque aquilo era uma responsabilidade terrível. Felizmente, nunca houve problemas de maior. Houve um problema, um susto muito grande com esse barco, com o Mestre Malheiros, precisamente porque tínhamos um ponto fixo… Isso era onde tirávamos os barcos. Aqui, d’um lado é pedra, rocha, do outro lado tinha a muralha e rocha tudo. Só tínhamos aqui um cantinho por onde ele saía. E tinha de sair por ali, porque se 139 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) saísse por aqui, vinha para cima das pedras. O bota-abaixo era feito a acompanhar a maré. Só tínhamos aquele espaço de tempo para arrastar e tínhamos de arrastar a embarcação quase 100 metros. Um barco grande. Aproveitava-se as marés que escoavam mais e à medida que a maré ia andando, é que íamos andando com a embarcação, de maneira que quando a maré escoasse, pronto, desse a baixa-mar, a embarcação estivesse… E depois, quando vinha… E depois, à medida que ela vinha enchendo, é que a embarcação era puxada para fora. De maneira que aquilo era um trabalho… Era um risco mesmo! Era de tal forma que tínhamos muita gente que ia assistir ao bota-abaixo, para a praia, para ver. Normalmente, fazíamos o bota-abaixo da madrugada para o dia, nessa maré, que era para a embarcação poder sair à tarde, durante o dia, para não ter a noite, precisamente, pelo risco. E então aquilo tínhamos o que chamamos um ficho, tínhamos um ferro chumbado na rocha, onde se fazia o retorno, para depois fazer o arrasto, uma talha, porque aquilo era complicado e aquilo tirou dezenas ou centenas de embarcações; e no dia do bota-abaixo do Mestre Malheiros, com o barco a meio da praia, o barco ficou e arrancou o ficho. Agora, vocês não imaginam o que aquilo é, a aflição que foi porque tínhamos que arranjar um ficho, passámos um cabo de aço à volta de uma rocha e quando ligámos aquilo tudo; entretanto, perdeu-se muito tempo e a maré não perdoa, não é? Perdeu-se muito tempo, quando estava tudo a jeito, voltou a fazer-se o mesmo trabalho; guarnir uma tralha, com várias voltas, para desmultiplicar a força e o barco ficou e a rocha cortou, o cabo d’aço cortou a rocha e tivemos de voltar a fazer tudo de novo. Passámos então já com água pelos peitos e eram os carpinteiros que faziam o bota-abaixo. Há lá uma pedra que é a Geraldeira, que por sorte aguentou e o barco lá saiu. Mas aquilo correu… No fundo, não correu nada bem, porque aí já tínhamos em cima de um berço e o barco era equilibrado… portanto, o barco… JF – Tinha uma estrutura… JM – Assim, em cima de um berço e tinha aqui uma estrutura de madeira, que era para não tombar, nem para um lado nem para o outro. Mas quando chegávamos com a embarcação em seco, já não ia fazer movimento nenhum, tirávamos tudo, aquela madeira ficava só lá a base, a segurar todo o travamento. Tirávamos que era para ele depois, com a maré, sair, para o barco poder flutuar. Por pouca sorte, o mar 140 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) mexia um bocadinho e, quando mexia, trazia força; o barco deu um bocadinho de si à almofada – chamamos almofada ao suporte. Saiu e, quando a maré encheu, foi abaixo. O barco adornou todo. Toda a gente gritava que a embarcação se ia virar. Felizmente, já tinha água suficiente para ele não se ter virado. Mas isso era o pior! O bota-abaixo era o pior! A maior festa que havia, por tradição, era quando se punha a quilha ao estaleiro. MS- A quilha? JM- A quilha. Quando se lançava a quilha, por tradição, os armadores normalmente faziam quando se fazia este trabalho. Aqui é que normalmente o armador… JF – Pagava uns copos. JM- Levava, quando se punha assim… Quando se levantava a quilha, que a gente dizia “pôr a quilha ao estaleiro”, para começar a construção, é que o armador normalmente levava… Não era grande coisa: às vezes umas azeitonas, um pão, um garrafão de vinho, naquele tempo… Tinha depois, também, quando o barco ia abaixo, depois já do bota-abaixo, fazerem uma missa, que era tradição… JF – O baptismo. JM – O baptismo do barco. E a maior parte das vezes faziam uma adiafa, aí já um almoço, normalmente caldeirada… Arranjar um barracão, um armazém e fazer um almoço, depois da missa para a tripulação… JF – Familiares e carpinteiros. JM- Familiares nem sempre. JF – Pois, mas… electricistas, mecânicos… JM – Os carpinteiros, todas as pessoas que tinham colaborado na construção: eletricistas, carpinteiros. E então faziam. Infelizmente, isso acabou por se perder; as adiafas começaram a ser caras. Os meus tios também tiveram por hábito, durante muito tempo, em que o meu tio Manel tinha por hábito, quando o barco ia abaixo, fazer um almoço para o pessoal. Deixou de fazer e eu lembro-me desse almoço. Foi ali na casa dele, no armazém, que era o estaleiro em que ele fez o almoço. Era baca141 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) lhau com batatas e grão, que era o que dava mais jeito, menos trabalho. E houve, na altura um carpinteiro que quando veio comer para as mesas, que aquilo eram mesas corridas em cima de cavaletes… E ele meteu uma série de postas de bacalhau em cima do prato. Aquilo chocou tanto, tanto o meu tio que ele disse que nunca mais fazia e nunca mais fez. Não é por ele ter… Ele até comer o dobro, foi pela acção que ele fez. E aquilo chocou-o muito e ele nunca mais fez. Mas também chegou a haver essa tradição. MS – E ensinamento, ensinou muitos aprendizes? JM – Ensinei, ensinei alguns. E ao contrário daquilo que se passava com outros mestres, noutro tempo, eu, sempre que riscava um barco, puxava-os para irem lá ver e ensinar como era. Infelizmente, não queriam saber, não queriam responsabilidade. Tinha duas pessoas unicamente, naquele conjunto de pessoas, que sabiam traçar, mas também não queriam assumir a responsabilidade de traçar, não era? Mas que sabiam. De resto, nunca ninguém quis aprender. Dei formação depois, num curso, aqui em Peniche, no Forpescas, daqueles cursos que houve, de formação. Também ensinei, mas aquilo… Vocês são professores aqui na Escola e sabem como é que as coisas se passavam; e ainda por cima com rapazes que não tinham querido andar na escola, com idades de 16, 17, 18 anos, naquelas fases da vida… E eu tinha o último… O horário era à última hora, que era bem pior, porque eles já estavam fartos de escola, mas felizmente nunca tive problemas nenhuns com eles, ficaram… Ainda andam por aí 2 ou 3 carpinteiros, desta malta nova, com 35, 37 anos, que saíram desse curso… De resto, deixou de haver estaleiros. MS – E hoje, reformado, continua a fazer alguma coisa? JM – Dei formação em Angola, também, convidaram-me para um projecto em Angola em que dei formação; e gostei muito. Serviu-me… Foi uma experiência de que gostei muito, não estava habituado. O que mais me custou foi meterem-me numa sala de aula, sem experiência, sem nada que me acompanhasse, para além do conversar, e era um estaleiro, de vez em quando. Mas foi uma experiência muito boa, muito boa que tive. Agora, reformado, não, não faço nada. 142 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) MS – Estas miniaturas… JM – Não, nem isso sequer… MS – Foram feitas em Peniche? JM – São… E há pessoas que fazem isso, mas eu não. A única coisa que faço agora, ainda ligada à construção, ou à pesca, faço é inspecções anuais às embarcações de madeira, faço as vistorias anuais como se faz aos carros… Colaboro com a Capitania nesse aspeto. Fui, durante muitos anos, também perito numa companhia de seguros, que era a Mútua, da pesca da sardinha. Fui perito da Mútua durante 16 anos, também, era mais um extra que vinha, não é? Dava muito dissabor, mas tudo o que vinha para além do vencimento servia, mas agora não, a construção naval… se voltasse atrás, voltava a ter o mesmo, voltava a fazer a mesma coisa, mas fiquei muito cansado e muito desiludido, até, com algumas pessoas. Porque isto, na construção naval, como na maior parte das coisas, as pessoas só têm valor enquanto são precisas, depois: “Eh pá, fulano foi… trabalhou nisto, foi bom… mas não passa disso”. Não se dá valor àquilo que a pessoa realmente foi, não se olha como devia. Não que eu quisesse que me fizessem… JF – Alguma estátua… JM – Felizmente, já fui homenageado, no dia do pescador, aqui pela Câmara Municipal, mas… não… Já fui convidado uma vez ou duas a ir fazer… falar, como estou aqui, através desse livro, também com pouca experiência, como deve calcular, não é? A única coisa que tenho é a prática de construção. Fiz a 1.ª classe, o 1.º ano e nem sequer o acabei. Perdi o ano por faltas e, para verem aquilo que eu gostava da construção naval, tive faltas a Português, tive faltas a várias disciplinas e não tive uma única falta a Trabalhos Manuais… Perdi o ano por faltas, porque naquele tempo não se justificava, os meus pais….. Também não me interessava nem Industrial nem Comercial, que era o que havia. Trabalhei naquilo que gostei. Não me arrependo nem um bocadinho e, como lhe digo, voltava a fazer o mesmo se as coisas voltassem atrás. Não voltava a fazer algumas coisas, porque isso, a gente vai aprendendo, não é? Ou voltava a fazer, mas de maneira diferente, mas voltava a ser construtor. 143 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) JF – Uma situação complexa num arranjo de um barco, uma coisa assim… JM – Tive uma. Tive uma situação que me trouxe também… Como é que heide dizer? Que me deu um gozo e um prazer terrível. Foi uma embarcação com 30 metros. Tinha sido construída em Vila do Conde, de Sesimbra. Que andava na pesca e que se afundou em Sesimbra. Estava preparado para sair para pesca, mas caiu muito temporal e ainda não havia o abrigo que há agora e a embarcação afundou-se e, com o mar, ficou quase totalmente destruída por baixo. Na obra viva, porque a embarcação tem as obras vivas, será aquela que anda debaixo de água e à que está fora d’água chamamos obra morta. Toda esta zona desapareceu e o barco, depois, subiram-no em Sesimbra, em Setúbal e aquilo ninguém queria fazer a reparação …. Houve um armador, na altura, foi na força da pesca, ali da lagosta, em Marrocos e, aquilo, aproveitavam tudo e mais alguma coisa para ir para lá… O homem, para aproveitar a licença do barco, quis reparar a embarcação e levou-me a Setúbal, se eu a reparava. Eu olhei para aquilo e disse que sim senhor, que lhe recuperava o barco. O barco para Peniche com 350 bidons metidos no que restava do barco, para ele poder flutuar. Subimos na embarcação. Ele vinha todo torcido. Não o consegui subir no estaleiro onde eu trabalhava. Não dava para subir, devido àquele ingueiro e as condições para subir… Subia-o lá, onde hoje é a praia. MS - Esse ingueiro… JM – O ingueiro… O ingueiro é aquilo que fica entre as rochas, onde passa a água, quando seca, chamamos o ingueiro… de modo que subia-o lá e fui para lá começar a reparar aquilo. Ao lado havia o estaleiro de um senhor já de idade, que era o Pompílio, na altura, que era o mestre que cá havia; e em que ele olhou para embarcação, chamou-me e disse que eu era doido em ir reparar aquilo. O trabalho era pouco, na altura, e aquilo era uma reparação e eu fui fazer aquilo. Há uma peça naquela embarcação… Isto tudo tinha desaparecido. E é esta peça que a gente chama “o cadasto” e como é mais larga nesta zona, mais grossa, que é o sítio que a gente chama a “viola”, que é onde trabalha a hélice. Para substituir, precisava essa peça, a parte de cima da embarcação teria de ser totalmente desmontada, para substituir e peça. Mas eu precisava de a substituir e ia olhando, largava o trabalho, nunca vinha para casa, ficava a olhar e a pensar, de noite, como é que se fazia… E vieram dizer-me como é que havia de fazer a peça. Tirou-se os moldes à peça e 144 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) tudo aquilo, o estaleiro era do outro lado, ali em frente ao Marché e eu reparava do outro lado, onde está o barzinho agora. O barco estava aí para reparar. Mandei tirar o molde, fiz a peça, no estaleiro, mesmo os homens que estavam lá a trabalhar, os carpinteiros, perguntavam-se e perguntaram-me como é que eu ia meter a peça sem desmanchar as cambotas e sem tirar aquilo tudo cá de cima. E eu fiz a peça toda, nunca disse a ninguém. Já tinha pensado como é que a ia meter, mas nunca disse a ninguém… JF – Coisa de mestre! JM – Inclusive o Pompílio, que era um homem experiente e tinha o dobro da minha idade, na altura, um homem já em fim de carreira e toda a vida ligado à construção naval também, farto de construir. Eu era um rapaz ainda novo, na altura… E quando a peça está pronta para ir para o lugar, o Pompílio disse-me: “Olha lá, pá. Então como é que tu agora vais meter a peça no lugar sem tirares as cambotas e sem desmanchares aquilo tudo”? E precisamente com a peça ao lado; trabalhava-se na praia, assim como é, e os homens, carpinteiros que trabalhavam comigo: “Zé, então e agora a peça? Temos de começar a desmanchar aquilo? Como é que a gente põe a peça”? “Faz um buraco na areia e depois puxas a peça para cima”. O Pompílio olhou para mim: “Nunca tinha pensado nisso! E perguntava.me a mim como é que tu ias meter a peça no lugar sem desmanchar as cambotas”. Que ele não me via desmanchar nada. Aquilo depois tinha a abertura, tinha tirado a velha, não é? Eu mandei fazer um buraco, que a peça ainda tinha quase 4 metros e tal, quase 5 metros. Aquilo era praia; ainda apanhámos água no fundo, mas como a embarcação, depois, também subia até cá acima, mandei fazer um furo na areia. Depois levou uma pecinha aparafusada cá em cima e cá de cima puxámos a peça. E o homem deu-me os parabéns… Ninguém tinha pensado nisso, por incrível que pareça. Tinha sido eu a única pessoa e isto porquê, por estar muito tempo lá a olhar como é que ia substituir a peça. Portanto, é uma história… Realmente, é muito fácil. De maneira que há histórias assim. JF – E principalmente um rapaz novo! JM – É que eu era o mais novo construtor que havia na altura. Metido ali… JF – No meio daqueles dinossáurios, não é? 145 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) JM – Era o mais novo e o maior estaleiro que havia era o nosso, não é? De maneira que aquilo, a reparação daquele barco acarretou uma fortuna, trouxe uma fortuna grande. Para mim, o meu ganho foi o meu ordenado e mais nada. O dinheiro não sobrava, nunca chegava. Mas o dinheiro também não é tudo e, felizmente, ficou uma amizade grande com as pessoas e aquilo trouxe-me… JF – Projeção. JM – Foi. Depois fiz barcos precisamente porque as pessoas acreditavam. Era um rapaz novo e eles eram uns homens experientes e não sei quê, eu era um carpinteiro. E havia aquele… JF – Não sei se acredito, se não… JM – Pois… Os outros eram mais experientes, pessoas já com provas dadas e eu era um novato. Como carpinteiro sabia trabalhar. De maneira que aquilo, depois, na altura, me trouxe assim, um… MS – Inovou. JM – Projetou… E mesmo a nível nacional. Comecei a ser conhecido em Vila do Conde, Maia, na Figueira. “Eh, pá! Quem é que é o fulano que fez isto”? “Foi fulano”. E o nome do estaleiro começou a ser conhecido no meio. E trouxe-me um bocado mais porque chegou-me um dia aos ouvidos, logo quando o meu tio adoeceu, acabamos o Mestre Malheiros e aquela fase de trabalho escasseou. Houve pouco que fazer, muito pouco. Não havia os financiamentos que começou a haver, o trabalho escasseou muito e eramos ainda 20 homens ali a trabalhar e havia pouco que fazer, mas não era só o nosso estaleiro que não tinha trabalho ou encomendas, eram todos. MS – E em que período é que houve essa crise? JM – Essa crise maior foi em 80 e… Ela começou logo em 77, 78, porque os armadores todos se retraíram, não é? “Como é que isto vai ficar”? Havia aquele papão em que os comunistas iam tirar tudo às pessoas e não sei quê. E aquilo parou, esteve muito mau, tanto que eu estive para embarcar como carpinteiro de bordo, que os navios tinham carpinteiros e eu estive mesmo para embarcar. Tirei uma carta de carpinteiro, que aliás era a única que havia em Peniche. Foi tirada em Peniche, 146 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) a minha, depois. Havia carpinteiros de Peniche, mas que tinham tirado as cédulas deles em… Com a categoria de carpinteiro… E eu estive mesmo para embarcar em 76, precisamente naquela fase em havia pouco que fazer. Ainda eram os meus tios e foi a partir daí, em 77, que formamos a Cooperativa e ficou um dos meus tios à frente, como mestre. Não havia ninguém habilitado. Não havia. Por bons carpinteiros que tivéssemos, mas habilitado a ser Mestre e a dirigir não havia, não é? E ele, que já tinha idade, que já tinha 70 e tal anos, na altura, comprometeu-se a ficar com a gente, mas na dúvida se ia haver ou não trabalho. Foi quando fizemos o “Fruto da Liberdade”. Foi o primeiro barco. Uma das primeiras cooperativas que se formou; tiveram financiamento, acreditaram na gente porque estava lá o meu tio. O estaleiro era um dos melhores estaleiros do país. E a partir daí é que começou a evoluir. Depois houve toda aquela evolução de Cooperativas de pesca de cerco e houve muito, muito, muito trabalho. Depois, a partir ali de 86, 87 em diante, começou a cair. E isto para dizer… Eu por acaso tinha uma encomenda, um barco de 15 metros que foi o “Vila de Peniche”, um rapaz que acreditou em mim, porque já não havia o meu tio. Disse: “Não. Vais-me fazer um barco”. Mas isto, conversa com os dois, enquanto se tratava da papelada e, no estaleiro, ninguém sabia e apareceu aquele barquito do Patalavaca, foi para ali para o Ramiro, fazer, e eles disseram que o Ramiro ia fazer um barquito, por sinal até era mais pequeno que aquele que eu fiz, que era de 15 metros e o deles era de 11… E houve um, chegou-me aos ouvidos. Ele diz que é mentira, mas eu acredito que tivesse sido verdade: “Ah, a gente não arranja nenhum barco para fazer porque o mestre é fraco”. Isto era o que havia. E depois, com o andar dos anos, acabei por lhe dizer um dia, numa reunião, que eramos uma Cooperativa, e eu tive o azar de ter de ficar à frente da Cooperativa, para além de mestre, como… MS – Administrador. JM – Era… Tive que ficar sempre, durante 12 anos. Bons carpinteiros; tivemos sempre pessoal para trabalhar que era uma maravilha, mas outra coisa ninguém queria. Responsabilidades ninguém queria. Queriam fazer, mas tinha que lhes dizer: “Fazes assim”. Tanto que eu marcava tudo, tudo, tudo. Então, um dia, chegou-me aos ouvidos; isto já passados uns anos, já o estaleiro construía muito… Já o mestre era… 147 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) JF – Conceituado. JM – Já o mestre era bom e que nunca ninguém teve a coragem de dizer: “Dáse mais qualquer coisa ao mestre”. Em termos de vencimento, o que me chocou também um bocado, na altura, porque tive que ser eu a dizer: “Ou a partir de agora ganho como mestre, ou…”; que a responsabilidade que tem é completamente diferente. Eles reconheceram. Eu pedi mais alguma coisa e eles, depois, nem me aqueceu nada, e eu nem quis: “Ah, para pedires isso, mais valia estares calado”! Portanto reconheciam que que devia ter ganho mais, mas até ali… E nessa altura eu disse a essa pessoa: “Tu uma vez disseste isto assim, assim…”. “Ah, mentira! Nunca disse isso, nem nunca dizia”. Mas disse, que eu acredito que tivesse dito. De modo que hoje não tenho… Gosto muito de construir. A qualquer sítio onde vou, adoro barcos e… MS – Mas há só um estaleiro em Peniche, não é? JM – Agora só há um estaleiro... JF – E já não faz construção. JM – Construção não. Faz alguma reparação, muito pouca. JF – Os carpinteiros navais que lá estão fazem basicamente reparações. JM – Alguma e quando é alguma mais complicada, já têm de pedir ajuda a alguém que lhes dê uma indicação. De resto, não fazem mais nada. Eu ainda sou accionista daquele estaleiro. Infelizmente, nunca mais… JF – Ah, pois, porque aquilo houve uma união… JM – Fui convidado dezenas de vezes a ir para lá, ser mestre lá, com vencimento bastante superior àquele que eu tinha. Nunca me arrependi. Podia estar melhor financeiramente, mas profissionalmente, depois da volta que aquilo deu. Como digo, tinha sido diferente, acredito, mas nunca me arrependi. MS – Então e de que é que se fazem os barcos. 148 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) JM – Em madeira, agora não, praticamente não se fazem. Fazem-se os de fibra, alumínio, aço e pouco mais. Pouco mais e é fácil de fazer, porque não tem nada que ver com a construção de madeira. A construção de madeira é uma arte. M – Já não se faz em Peniche e já não se faz no país. JM – Praticamente não. As pessoas acabaram e foram envelhecendo e ninguém… Mesmo ninguém procura agora um armador. Primeiro porque não há, segundo porque é mais fácil, é mais rápido. Se calhar os custos de construção também são menos. JF – A manutenção é… JM – A manutenção é um bocadinho diferente também. De qualquer modo, há muito pescador antigo que gosta mais da madeira, de andar ao mar num barco de madeira do que num barco de fibra d’aço ou outro qualquer. A embarcação é mais segura, em termos de estabilidade. JF – Tem um desenho de águas mortas completamente diferente. JM – Tive um engenheiro de construção naval que também adorava a construção. Formou-se, mas aprendeu muito comigo também, algumas coisas, porque a prática depois é que vai ensinando e eu acho que a maior parte das pessoas deviam, na prática, passar por vários sítios, para depois verem as coisas de maneira diferente. E ele vinha muitas vezes a Peniche. E o sonho dele era a construção em cimento. Era o sonho daquele homem e aquilo tinha ido para a frente, na altura. Às pessoas fazia-lhes muita confusão, uma embarcação de cimento. Eu, por acaso, a primeira vez que vi uma embarcação em cimento foi em Luanda, porque eu fiz o serviço militar em Luanda, não fiz em Angola, porque nunca saí de Luanda. E já tinha o bichinho de ir aos estaleiros e vi. Era um draga-minas e era em cimento. E depois comecei a ver algumas embarcações de cimento. Vinha aqui, inclusivamente, uma de recreio que toda a gente pensava que era fibra e era cimento. Quando estive a dar formação em Moçâmedes, tinha uma embarcação-escola, para dar aulas práticas, que era uma embarcação em cimento, feita em Cuba, linda. Também ninguém dizia que era que era cimento… E o homem, o sonho dele, era o cimento. 149 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Também tenho uma história, por causa do cimento, muito engraçada. Fizemos a obra a um barco. Antigamente cortava-se muita vez a popa de painel e depois acrescentava-se e fazia-se uma popa, ou seja, modificava-se a embarcação, em vez de se construir de novo. E a gente fez uma obra ali onde era o Chinês velho. E depois da obra feita, tivemos que fazer uma prova de estabilidade. E a prova de estabilidade é com diversos pesos, com o barco adornado a um lado, adornado ao outro, para ver a inclinação… o ângulo… para saber… JF – Se adornar de mais, o barco reprova. JM – Está reprovado. E então, fomos fazer uma prova e os pesos, para ser mais fácil, não havia equipamentos, era com bidons de água: punham seis bidons a um bordo, enchiam-se de água, depois despejavam-se, para passar os níveis para outro bordo e era assim que se fazia a prova, não era? De maneira que fizemos a prova toda… As provas eram feitas dentro de água, claro. E para ajudar na manobra dos bidons e isso, o mestre do barco pediu a dois moços para irem ajudar e eles foram ao sábado e então veio o engenheiro Conceição e veio esse tal engenheiro dos barcos de madeira, vieram três ou quatro rapazes mais novos para irem aprendendo também. Foi a um sábado. De maneira que, depois daquilo feito, mandaram tirar um balde de água, metia-se um densímetro para ver a densidade da água, para fazer os cálculos, não é? De modo que o engenheiro pediu ao mestre: “Mestre, peça aí para tirar um balde de água, se faz favor”. O homem tirou um balde de água, a prova foi feita na bóia, ali ao pé do Molhe Leste. O homem tirou um balde de água, meteu-se o balde em cima do bidon, meteu o densímetro dentro de água; eles olharam uns para os outros: “Não pode ser… Importa-se de tirar outro balde de água”? O homem tirou outro balde de água, mete… “ Isto é mesmo verdade”! E virou-se para a gente e disse assim: “Eh, pá, isto não pode ser. Esta água é muito salgada”! Do que eles conheciam, era a água mais salgada do país. Naquela zona, porque se for junto à muralha, a densidade era menos. Entretanto, o homem disse aquilo. As pessoas ouviram, não disseram nada e começou-se a falar então das embarcações de cimento e quando se começa a falar das embarcações de cimento é que os homens… Um morreu até há pouco tempo, o Carlos, diz assim para o Zé maria, o mestre do barco, a gente chamava o Chinês: “Já viu Mestre, estão aqui a enfiar o barrete às pessoas. Primeiro, que a água era muito 150 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) salgada, agora é com os barcos de cimento”. Nunca tinham ouvido numa embarcação de cimento. Aquilo foi uma confusão muito grande. Mas o que é facto é que a gente, aqui, tinha a água mais salgada do país. Ali, à boca do porto, era muito mais salgada do que junto à muralha; a densidade era muito maior. De maneira que… Eu também pensava que a água era salgada, mas a densidade dela é totalmente diferente em determinadas zonas… de maneira que a história é assim. MS – Muito bem, para terminar, retomava só uma questão anterior. A questão da aprendizagem… Digo isto porque já tive na mão, já li, manuais de construção naval, que já existiam no século XVI, a explicar aquilo que o Senhor explicou. JM – Mas muito pouco; há muito pouco sobre construção naval… MS – Sim, sim, mas naquela altura, já ensinavam o que o senhor explicou aqui. É engraçado; eu conhecia de ler o manual: a forma como escolhiam a árvore, o tipo de árvore… Isto para dizer, enfim, que as técnicas mantiveram-se durante 500 anos inalteradas. JM – Na madeira mantém-se… JF – Os entalhes, as uniões… JM – E depois hoje… hoje não, já há alguns anos, um rapaz ia aprender e, conforme ia crescendo, ia avançando na profissão. Mesmo que pouco soubesse ou nada. Um oficial de 1.ª, de 2.ª e 3.ª, os vencimentos alteravam-se e os trabalhos também, não é? O oficial de 1.ª fazia coisas que não faziam o de 2.ª ou de 3.ª e havia a necessidade. E eu para chegar a 1.ª, tive que fazer um exame que havia. E então uma das perguntas, ou um dos trabalhos que tinha que desenvolver era: uma embarcação sofria um rombo e portanto era dada ao carpinteiro uma tábua para tapar o rombo. Normalmente, a tábua tinha um bocadinho mais de comprimento, mas não tinha largura do rombo, dava para tapar parte do rombo e o carpinteiro tinha de tapar o rombo. Dava para tapar parte do rombo e o carpinteiro tinha de tapar o rombo, se não a maré vinha e o barco ia para o fundo. E para passar para 1.ª, tinha de saber como resolver aquela situação. Uma pessoa fica assim… Eu também fiquei, também tiveram de fazer o trabalho por mim. E então, também, lá está: é muito fácil. Corta-se a madeira em cruz e, depois, o bocado que tem a mais, corre e ela ganha na largura. Mas isto também… Isto prova que há aquelas coisas que nem todos os carpinteiros sabiam fazer, porque podia alguma situação daquelas aparecer e a madeira não dar… 151 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) MS – Muito obrigado. Estávamos realmente aqui muito mais tempo, se fosse necessário. JM – Para vos dar determinados… A fundação era feita com calafete; aí é que nasce a profissão de calafate, que era no fim da construção, tapar as juntas todas com uma estopa ou linho e a profissão de calafate fazia o calafete, fazia a furação toda que fosse para além de 5/8. A partir de 5/8, quanto mais grosso, já era feita por um calafate e não por um carpinteiro; e depois fazia outra coisa que a maior parte dos carpinteiros em Peniche, os carpinteiros navais, que aprenderam como eu, de pequeninos - e que não se falava - eram as cavilhas, que faz a ….. de uma junta. Faz-se um furo, depois mete-se um torno – que a gente chama uma cavilha, que é para a água não passar, nem para um lado nem para o outro. Isso é o essencial, numa construção. É fazer aplicar uma cavilha, a que normalmente se dá o nome de cavilha d’água. Dá-se na gíria, porque o nome daquilo é cavilha de entalhar. Mas se disser a muitos carpinteiros: “Olha, vai ali pôr uma cavilha de entalhar”, ele não sabe o que é. MS – Já agora, e os acabamentos, isso depois levava alguma tinta… JM – Os acabamentos interiores eram o carpinteiro naval também que fazia, porque havia um carpinteiro de limpos que fizesse forragem interior, assim como camarotes, armários e tudo. Aqui em Peniche, nunca houve essa tradição. Devia haver os pintores também, mas o carpinteiro naval aqui era polivalente, fazia tudo. Normalmente, ficavam na pintura, aqueles que não tinham jeito para carpintaria. Para os arranjos interiores, iam aqueles que não tinham jeito para aqueles trabalhos mais bonitos. Tinha sempre o cuidado de escolher as pessoas. As tintas evoluíram muito, porque aqui há muito ano, não havia as chamadas tintas de fundo, os anti-vegetativos não existiam; era dada uma crena com alcatrão e verniz quente, que era outro trabalho que as embarcações, de vez em quando, tinham de vir a seco, para raspar aquilo, para não ganharem as algas e aquilo tudo. Hoje há um anti-vegetativo que uma embarcação… São caras, mas são muito boas; em que a embarcação aguenta um ano dentro de água, sem vir a seco para limpar, se não agarra aquelas algas. Naquela altura não, de mês a mês, dois meses, tinha que vir a seco e aquilo era um trabalho que era feito pelo carpinteiro, que era dar crena, que era verniz e alcatrão, juntos. Depois levava petróleo, uma quantidade de petróleo para poder … em que aquilo, o barco vinha a seco, era queimado, davam calor para tirar aquelas algas… Raspava alguma que lá tinha limo e depois voltar a dar. Era feito por um carpinteiro. 152 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Era um trabalho tremendo. Depois começaram a aparecer outros. Há tintas muito boas, já. Há um diluente anti-vegetativo, que a gente chama o Peacock, que… JF – Alguns desses anti-vegetativos estão proibidos. JM – Estão proibidos… São só para embarcações de alto mar, para não poluírem os portos. A gente aplica aqui, parte dele. Enfim, tintas muito caras, mas muito boas. JF – Cinco litros daquilo custam cento e tal euros. JM – Cento e tal euros, cinco litros! Eu já comprei… O último latão de Peacock: 110 contos. Um latão de 20 litros, 110 contos, na época. Agora, se fores comprar um anti-vegetativo bom, pagas aí 8, 10 contos; 50, 60, 80 Euros por um quilo de Peacock. MS – Muito bem. Alguma coisa para terminar? JM – Só agradecer a disponibilidade. FOTOS DE MODELO DE BARCO Modelo de barco, pormenor. Autor: José Maria. Fotografia de João Fernandes. 153 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Modelo de barco, pormenor. Autor: José Maria Modelo de barco, pormenor. Autor: José Maria. Fotografia de João Fernandes. 154 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Modelo de barco, pormenor. Autor: José Maria. Fotografia de João Fernandes. Modelo de barco, pormenor. Autor: José Maria. Fotografia de João Fernandes. 155 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) MEMÓRIAS DA PESCA ENTREVISTA AO SR. JOÃO COMBOIO [JOÃO PACHECO LEITÃO]53 JF – Hoje começamos com uma entrevista a um pescador, pescador e armador mais conhecido por João Comboio, que nos vai contar experiências de pesca, experiências de vida, relativas essencialmente à pesca da sardinha. MS – Muito bem. JC – Começo por me apresentar. Já está dito o meu nome. Fiz a 4.ª classe, naquela altura era o exame de admissão, era para ir para a Escola Comercial e Industrial de Peniche. Naquela altura já tinha o bichinho do mar e então, com onze anos, fui trabalhar com o meu pai, que já tinha uma traineira. Comecei no armazém das redes, em 1956, com 11 anos, pois os jovens, naquela altura, iniciavam-se assim: ou iam para os armazéns das redes, ou para as oficinas, ou para os estaleiros ou para as fábricas. O barco era de família, pertencia metade ao meu pai e a outra a um tio, irmão da minha mãe, por isso o bichinho de ir para o mar era muito forte. Comecei como ajudante de motorista e os primeiros dias foram uma tristeza e uma esperança, pois queria sair lá de baixo, onde o cheiro a gasóleo era muito forte. Havia então os camaradas, que recebiam uma parte e os moços, que recebiam uma parte e meia, como agora. Assim que surgiu uma vaga, passei de ajudante de motorista a moço. Depois de um ano surgiu a oportunidade de mudar para o Gamboa, e por convite de um primo, que tinha como contramestre um cunhado, tornei-me contramestre aos 15 anos. Eu por exemplo tive quase efectivos, perto de 45 anos de mar e tive aí três ou quatro anos em que não fui encarregado. Comecei logo com15 anos a governar barcos. A presente entrevista foi realizada no porto de pesca de Peniche e o armazém de João Comboio, no dia ��������� 15������� de novembro de 2013, e conta com três intervenientes: o Sr. João Pacheco Leitão, mestre e proprietário de barco, daqui em diante assinalado no texto com as iniciais JC [João Comboio] e os professores João Fernandes (JF) e Miguel Santos (MS), professores da Escola Secundária de Peniche. 53 157 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) MS – E quais eram as funções do contramestre? JC - O contramestre é quem governa o barco. O mestre dá as ordens, ele é quem leva o barco, traz o barco, é quem governa o leme, é abaixo do mestre, chama-se contramestre. Entretanto, como o meu pai que Deus tem tinha a traineira, o meu tio adoeceu, meu primo já tinha sido contramestre, e o meu irmão também foi ser contramestre. Mas o meu irmão queira mais. Tinha um tio na Ericeira que tinha um arrastão e o meu irmão que Deus tem foi logo ser mestre de redes, com 17 anos, de um arrastão. Entretanto eu fui ser contramestre do meu pai que Deus tem, andei ali sete ou oito meses, foi uma história engraçada porque eu saí do meu primo, como contramestre. É engraçado porque a gente hoje fala no respeito mas eu, naquela altura, tinha lá homens que tinham idade para ser meus avós e respeitava todos. Mas eu não gostava de ver pessoas ladrões. O que são ladrões? É estar a cegar os outros, é estar a roubar o peixe. Isto explica porque é que eu saí do meu primo que Deus tem. Uma vez na Ericeira apanhámos dez ou doze cabazes de lulas, misturadas com sardinha, chegámos à terra o meu primo disse «olha, depois as lulas é para dividir pela companha toda». Mas o homem que estava nas cavernas, tinha um cesto muito grande, e timba, timba, encheu o cesto e conseguiu passar para terra, mas eu não vi nada. Mas um camarada veio ter comigo e disse-me: «João olha que fulano assim e assim, olha que não faças conta com o quinhão para ele, olha que o cesto dele levou ali mais de 20 quilos de lulas, e já passou o cesto». Entretanto, fez-se a descarga, distribuiu-se as lulas todas e o colega «então e o meu quinhão?» - «O quinhão, caraças, então você não tem vergonha, já levou?». - «Quem foi que disse?» - «Não interessa. Onde é que está o seu cesto? O seu cesto já leva». O homem tinha idade para ser meu avô e quase nos pegámos um ao outro, mas disse: «Não façam quinhão para ele». Descarregámos e fui para casa e disse para a minha mãe que Deus tem: «olha já não vou ao mar». - «Então?» - «Passou-se isto assim e assim, não. Já viste agora aturar isto? Para ganhar um pão, ganho em qualquer lado». O meu primo que Deus tem perguntou-me e eu contei-lhe o que se passou e disse-lhe que já não ia para o mar. Foi então que fui ser contramestre do meu pai que Deus tem. O meu pai que Deus tem foi sempre uma pessoa sem dinheiro, mas de ideias, a ver futuro, para amanhã, e conseguiu fazer uma traineira nova sem dinheiro, de 5 metros. Entretanto o 5 metros fez-se para o lugar da Praia Formosa, mas ele não vendeu o Praia Formosa, foi para a rede a pescada. O barco era para os filhos, o 158 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) meu irmão era mais velho do que eu dois anos, fazíamos anos de diferença de dois dias. Andámos muitos anos a fazer anos no mesmo dia mas era mentira. Foi a minha irmã que Deus tem, de certeza, que no dia 8 de junho, pôs 6, andei até no bilhete de identidade com o dia 6. Até que uns anos mais tarde quando foi para casar, «ah, não você faz anos no dia 8». No bilhete de identidade, ainda hoje está, no nome da minha mãe – é uma história engraçada que não tem nada a ver com a pesca, mas é um parêntesis – o pai do Octávio chama-se Joaquim Leitão Farto, e as minhas irmãs são Maria Guilhermina, Maria do Rosário Farto Leitão, e como o meu irmão que Deus tem ficava Joaquim Farto Leitão «ah, os nomes são iguais» e então o que é que puseram? Pacheco. Joaquim Pacheco Leitão e eu nasci João Pacheco Leitão mas a minha mãe chama-se Lídia Farto. Ainda hoje o meu bilhete de identidade tem Lídia Pacheco e o nome da minha mãe é Lídia Farto. É uma estória engraçada que me lembrou neste momento. Mas entretanto, o barco do mau pai que Deus tem, era em 1966, dizendo que era o barco para os filhos, mas ele ainda era um homem novo, tinha 56 anos, ainda queria experimentar. E como eu não podia ir para o mar, eu perceba bem disto, como um homem que é acostumado nisto, nas redes, e então eu fiquei a ganhar um quinhão e meio. Fazia as duas coisas: chamava a companha e era atador. Ganhava quinhão e meio. Entretanto aquilo correu mal ao meu pai que Deus tem, e o meu irmão ficou como mestre e eu contramestre. Entretanto o meu pai, antes do 25 de abril, isto em 1972, talvez, 71 ou 72, comprou, não comprou, havia uma abertura para fazer barcos e fez o barco Papôa. Chamava-se Papôa. E disse assim: «Bem, um fica para o meu Xico governar, e o outro para o João. Para os meus filhos». Entretanto ele, coitado, faleceu, o barco estava pronto, só faltavam uns acabamentos, o dinheiro fazia a gente naquela altura, veio o 25 de abril, as cooperativas. O barco tinha gasto na altura mil e tal euros, ou mil e tal contos, as cooperativas eram quatro mil contos, «eh, quatro mil contos é um problema». O meu pai já tinha falecido, os meus cunhados…., vendeuse o barco, ficámos sem ele. Olhe morreu nos Açores, esse barco morreu nos Açores. Entretanto nessa altura ficámos com o 5 metros, apanhei uma doença que me impedia de andar, ficava parado, de uma perna. Fiquei em terra, fui ao médico, fui operado às amígdalas, lá em Lisboa, porque me disseram que a inflamação das amígdalas não era bom para a coluna. Entretanto os médicos disseram-me «você tem lá uma coisa boa na sua terra, vai apanhar uns banhos de sol na coluna, experimente. Ora fui apanhar uns banhos de sol para a coluna e o que é que a companha disse? Nessa altu159 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) ra, ganhávamos todos uns para os outos e quando alguém estava doente ganhávamos … E os meus camaradas: «então ele anda com a toalha às costas». Mas só deus sabe como eu andava, às vezes queria-me levantar e não conseguia, mas pronto fazia o que o médico mandou. O meu irmão chamou-me um dia e disse-me «passa-se isto assim e assim». E eu – «não há problema, eu saio do barco e depois quando estiver bom…» E pronto, saí do barco, na altura em que eu mais precisava, ainda parece que estou a ver pelo Natal desse ano, tinha tanto dinheiro como está aqui [estende a mão vazia]. Queríamos dar uma prenda à minha filha, que é casa com o professor Mário, e lá conseguimos arranjar para dar um bonequinho esse ano. Estou a contar esta estória porque ela tem influência no que se passa… já lá vou [João comboio foi curado por um médico na Ericeira]. Entretanto depois já não fui para o barco. Apareceu-me um armador para ir governar um barco, tinha 26 anos, e fui governar o Napoleão. Ela daquelas coisas antigas, fracote, eu estava acostumado ao 5 metros, não tinha as condições, e eu gostava muito de trabalhar e via que aquilo não tinha condições. Entretanto entreguei o porque não tinha condições financeiras. Tinha vindo, entretanto, um barco da Figueira, que era o Mestre de Avis, o homem veio ter comigo e fui governar o barco. Aquele tinha peso a mais, ao contrário. Como eu estava acostumado a trabalhar no 5 metros, com 14, 15 braças, escapava sempre do fundo, porque não havia os aparelhos de fundo nas redes como há hoje, para acusar onde está a rede; vou largar a rede cá fora, na Ericeira, a terceira viagem, ou a quarta, Mestre de Avis, perto de 40 braças de água, que andam à volta de sessenta e tal metros, setenta metros, eu estava a fechar a rede devagarinho, o rapaz que era motorista na altura, tinha estado na Figueira, diz-me, «João», estava calminha branca, «estás a fechar a rede muito devagar, olha que a rede vai até ao fundo…». – «oh, pá, não me digas, num altura destas… e estava a rede no fundo, ficámos sem alguns doze talhões de chumbo. Fui ter com o homem, «oh senhor António, desculpe lá, mas não sei trabalhar…já viu, com quarenta braças de água…não consigo fazer a vida a que estava acostumado com uma rede destas…». - «Você fique lá com o barco, arranje um mestre». E saí do barco. Entretanto no 25 de abril os mestres ganhavam quatro quinhões, o contramestre dois, o motorista dois e meio, os moços parte e meia e os camaradas um quinhão. Isto é assim como os jogadores de futebol, há sempre quem ganhe mais e quem 160 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) ganhe menos. O meu irmão que Deus tem disse, «eu fico no barco…». Ele ganhava quatro e ficava a ganhar cinco, foram ter com ele para fazer sociedade, «mas hão de me dar mais um quinhão». Os meus cunhados disseram que cada devia ganhar aquilo a que tinha direito e ele foi-se embora. Foi quando apareceu o António Gaivota e ele foi governar o Intrujão. Fui eu governar o barco, o 5 metros e revolução. Foi logo ali em 15 dias, 15 dias a andar ao mar, os companha «não pode ser, os mestres devem baixar para três quinhões», os barcos todos parados. Um dia estava em casa, fui lá… aquelas coisas dos sindicatos e disse «podem dizer lá que se a nossa companha quiser ir para o mar eu vou por três quinhões, queiram-se matar os mestres: «Estás parvo…». Veio cá não sei que jornal foi, que ainda lá tenho em casa, foram com a gente de manhã e apanhamos 300 cabazes de sardinha. A partir daí foi toda a gente para o mar ganhar três quinhões. Entretanto o cinco metros precisava de um arranjo grande também, demos a parte aos meus cunhados e o barco ficou para mim só e para o meu irmão que Deus tem. O barco tinha uma avaria grande, precisava de um arranjo grande e os estaleiros, naquela altura estavam a fazer-se as cooperativas, não tinham mãos a medir. Então falei com o meu irmão e vendi-lhe a minha parte do 5 metros e fiz uma sociedade com o António Gaivota, um cunhado dele, o meu irmão e eu. O barco era o S. Julião, um dos melhores barcos da altura e a coisa correu sempre bem. Ao fim de alguns anos, uns seis ou sete, tive um azar, as febres de malta, estive a morrer, o contramestre foi para o mar e perdeu meia rede… a empresa estava tão boa, ficou…, a empresa, como outros sócios, tinha mais dois barcos e aquilo não tinha condições. Fizemos uma reunião e o António disse «João temos que vender o barco, o barco não tem condições para se manter…». Só havia uma maneira de manter o barco e eu andar já andava devagarinho, mas para subir…. Eu tinha estado na Cruz Vermelha, se não tivesse lá tinha morrido. Ali o Mário, que me emprestou 400 contos, não era nada à minha filha, sem o pai e a mãe saber, era o dinheiro que ele tinha no banco. A minha mulher pediu aqui e acolá, 1200 contos, e foram dois meses e tal que eu lá estive. Eu ainda devia 80 contos para acabar aquela casa que estava a fazer na Atouguia. A Mila vai ao Banco Ultramarino que lhe diz que não pode ser…ela lá conseguiu, ao irmão, à prima, ao futuro genro, ela lá conseguiu arranjar o dinheiro. E eu estou aqui. Aquilo só havia uma solução. Saíram dois homens, o barco não andava a pescar 161 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) nada, as partes que se dava à companha, fazem-se as mesmas e as duas revertem a favor do patrão a ver se a gente alivia isto. Pronto é uma ajuda e vamos experimentar assim. Fez-se uma reunião no armazém, o nosso escrivão era o Carlos Chicharrinho, tudo muito bem, era uma ajuda para a empresa. Dois saíram do armazém e começaram logo com o sindicato «eh pá você não faça uma coisa dessas». Eu não sei o que faria no lugar deles, não condeno ninguém. O António Gaivota disse no outro dia o que se passou e eu disse que o melhor era parar o barco. Parámos o barco, perguntaram-me se eu queria ficar com ele, mas este devia sete mil e tal contos e eu ainda estava empenhado. Apesar das dificuldades, fui para o mar. Tinham que me carregar para subir e para descer do barco. Ainda andei durante três semanas assim. Mas estávamos a pescar tão bem e fazíamos a apresentação de contas de dois em dois meses. Agora um parenteses. Uma vez a minha filha foi à pesca numa lancha, tinha doze anos, pesca à murraça, só mais tarde é que vieram os geradores e aquilo ficava ali durante a noite. Ia juntando a comedoria e puxava cá acima, o peixe vinha cá acima e era assim que se trabalhava. Mas numa das noites, estávamos ali, lua brada, com lua era mais difícil vir cá acima, estava calminha branca e eu não tinha sonar, deixei a lancha ancorada. No dia anterior, estávamos quatro barcos, os outros três apanharam cherne e eu não apanhei nada. «Ah sim, não vais à terra». Mandámos vir pão, enviámos chicharro a um barco para fazer caldeirada, e ficámos lá. Estava calminha branca, uma hora depois do sol se pôr, fui dar uma volta com a sonda, naquela altura não havia sonar, e assim por fora da bardada, os barcos estavam todos ancorados pela bardada, ainda havia uma série de barcos, marcou-me um traço de peixe, um traço de 10 braças, e eu disse «sim senhora, calminha branca, os barcos parados e eu vim para aqui largar rede e nem um peixe, não sei que qualidade de peixe […] quando de repente, isto é cavala, cavala moura, e enchemos o barco de cavala. Quando começamos e encher começou uma aragenzinha de norte e os barcos começaram todos a arrancar para a terra depois cada vez mais vento, mais vento, o barco estava assim um bocadinho caído a estibordo e eu mandei meter dois xalavares e foi a nossa sorte, o barco tinha 500 cavalos mas não saía do mesmo sítio, e eu «ai nossa senhora», o peixe todo a desenvasar e eu «ai nossa senhora»; o começou depois a virar para bombardo e a malta aflita queria atirar-se ao mar e eu sem saber como chegar à lancha, mandei a malta para estibordo e o barco endireitou um bocado. Como o barco estava assim a bombordo, comecei a por a chata dentro, para 162 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) o barco ficar direito. «e agora a lancha, como é que vou chegar à lancha?» o rapaz [da lanha] achou estranho e começou a remar por aí a baixo mas nunca mais chegava, «temos que ir apanhar a lancha». Lá consegui dar a volta e andar devagarinho, devagarinho, demorámos mais de meia hora para ir buscar a lancha, ele para cá a remar e nós para lá devagarinho. Apanhámos a lancha, atámos o cabo à mura da ré, o rapaz saltou para dentro, mas o barco não conseguia fazer rumo direito a Peniche, o mar passava por cima, e não conseguia: «faz rumo a Santa Cruz, olha». Mas na parte terra do cerco, chama-se o sarangue, aquilo faz ali uma côncava, e passando ali pronto. O contramestre estava muito preocupado, […] eu comecei a dar um pouco mais de força e de repente avistámos a Areia Branca, meti no remanso das Berlengas e percebi que não havia problema. Ainda assim apanhámos 1700 cabazes de cavala, devíamos ter tido mais de dois mil. Esta é uma passagem, e eu tive várias, que ilustra as dificuldades encontradas, em especial para entrar e sair em algumas barras. Mas o que eu tinha mais medo no mar era o nevoeiro. MS – Há alguma história assim fantástica….mais grave. JC – A barra da Figueira, vai lá vai. Uma vez, tive um problema na barra da Figueira da Foz. Antigamente usavam-se redes de algodão e fazia-se a muda das redes mais ou menos de três em três semanas, por isso é que havia sete ou oito rapazitos no armazém com os atadores a aprender a atar rede. A rede era atada à mão depois era encascada e posta ao sol, onde agora é o Pingo Doce, na época era um juncal. E então, naquela altura era o senhor Rui Ramos que levava as redes para a Figueira da Foz, parece que a estou a ver, em frente ao tribunal, e a rede foi colocada no barco à força toda. Os barcos saíam na zona de Buarcos e ficavam à cala, na calma à espera, só para não sair na baixa-mar, que o mar não deixava. A saída do rio fazia ali um embate. Entretanto, os homens da Estrela do Ocidente chegaram ao pé do meu pai dizendo que tinham ficado em terra, se podiam ir connosco. O meu pai disselhes «saltem». Chegámos à entrada da barra, está vem está, buuumm, a gente ali a aguentar mares partidos. A maré como estava a vazar, o barco sem querer ia sempre um bocadinho descaído para o rebentar. O meu pai disse ao contramestre, que era o Joaquim, o pai dele era o Octávio, «volta para dentro» e quando ele ia a dar a volta formou-se uma volta de mar, o barco ficou cheio de água e a nossa sorte foi que o meu primo deu força e o barco saiu, saiu e aguentou o embate do mar. Quando veio o outro mar já não rebentou. Ficou tudo parvo, a olhar uns para os outros, fomos 163 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) devagarinho, ninguém era capaz de se mexer, o meu pai que Deus tem…. eu estava armado em parvo com uma navalha na mão, uma navalha de cortar boça da chata. Era eu de um lado e o Guilherme de Ávila do outro lado, para cortarmos as boças da chata e nos agarrarmos à chata. Deitámos a chata ao mar, que era para pôr os homens do Estrela do Ocidente, que estava lá ancorado, e estivemos ali uns seis ou sete minutos que os homens não conseguiam saltar. Há tantos anos que andamos aqui e nunca apanhámos um susto maior na nossa vida. Os homens queriam saltar para a chata e não eram capazes. São passagens, não é. Indo ao resto, que era… JF- O nevoreiro. JC – O nevoeiro. O meu irmão que Deus tem foi sempre um bocado atrevido, eu não tinha nada a ver com ele em questão de atrevimento, largar à borda de água com folas, com nevoeiro e sempre à força. Uma vez, já no Cinco Netos, vínhamos da Ericeira, tínhamos radar mas estava avariado, a gente sai do porto, hoje também se faz, olha para o relógio – naquela altura fazia-se mais – abria-se a sonda, para a gente conhecer o fundo, víamos onde se largava a rede para saber o tempo que levava a contar; e havia nevoeiro, e tal. A certa altura disse para o meu irmão que Deus tem: «olha que estamos quase a chegar a terra, não queres pôr mais devagar?» Falar com ele era a mesma coisa que falar para uma parede, deu-lhe mais força, e de repente gritámos «Ah, a fortaleza!», conforme ia avante pôs à ré, não saltou o tubo de escape porque não calhou. JF – E era a fortaleza. JC - E era a fortaleza. Isto também vai daquelas pessoas que são afoitas. Lembrome de uma passagem que o meu primo contava, foi na Praia Formosa, vinham da Nazaré e iam para a Ericeira – já naquela altura passavam aqui duas carreiras de navios entre as Berlengas e o Cabo Carvoeiro, e por fora passavam mais duas ou três – o meu primo vinha ao leme, topezinho aceso, sentado, e quando ele olha assim para o lado vê um navio passar, diz ele a quê, a seis ou sete metros. Diz que não morreu porque não calhou. O nevoeiro para mim foi sempre das coisas… pois… Eu quando passei a ter os aparelhos bons, primeiro radar e depois o GPS, estava nevoeiro e ninguém ia para o mar, o que é que largava a rede em fundos à vontade, não largava em cima da pedra, 164 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) largava a rede e a cortiça, largava a chata e ia a ver a chata e a cortiça, ia a ver tudo, era um espectáculo de radar. Uma vez, no tempo da lula, vínhamos do Porto Novo, com sardinha, e aqui mais ou menos perto da Consolação, estava nevoeiro, eu vinha ao radar, e aquilo marcava tudo, até marcava as bóias, eu não ia sempre a olhar, esperava um bocadinho e depois olhava outra vez [para o radar] e não marcou nada. Aquilo foi Deus que não quis, um cocozinho, com um homenzito lá dentro, que era o homenzito que ajudava o Joaquim Trator, esse homenzinho, o queixo da proa fezlhe assim [a desviar-se do barco] e foi por pouco, eu disse-lhe «então você não tem vergonha, com um coizinho, vá lá não virou, vem para aqui!....». As pessoas não se apercebem. Eu não tenho medo, mas não se brinca com o mar. JF – Eu não tenho medo do mar, eu respeito é o mar. a história é um bocado essa. O meu pai dizia, «eu não tenho medo do mar, tem é que se ter respeito. No mar não se pode brincar. Nem se pode fechar o olho. O meu avô dizia ao meu pai: «o homem que dorme no mar quer morrer». JC - Fez-me a pergunta sobre o haver menos sardinhas e menos peixe. Eu voulhe dizer uma coisa. As pessoas quando veem estas aparelhagens, estas modificações, dizem que agora é que é tudo bom, porque antigamente era tudo manual, levar a rede à mão, para a gente não se aperceber que aquilo custava tanto, havia um que dava ao ponto, e começava «Ai leva ou leva»; e os outros respondiam «Ai leva ou leva»; depois de uma hora e tal, na hora de levar o peixe, tinha de se levar o peixe à vara, em bordões, enfiados em cabazes, era tudo manual; as redes ao sol… mas nessa altura havia muito peixe, graças a Deus, dava para todos. Entretanto, eu o que eu estava a contar, era uma reserva que faziam, aproveitavam quando a sardinha estava ovada para desovar naquele espaço de tempo enquanto se faziam as reparações aos barcos e as fábricas também faziam as reparações. Eu lembro-me que quando eu ia para a zona de Matosinhos, na Praia Formosa, naquela altura havia naquela zona perto de 400 fábricas de conserva. E se calhar hoje há lá uma. Uma ou duas. Entretanto as coisas foram modificando, as novas aparelhagens, foi havendo menos peixe. Mas há aí peixe para dar e vender. Começou-se a ir ao mar sempre, apanhar sardinha, ovada, desovada, apanha-se tudo; outros dizem que as águas agora estão contaminadas, por causa dos esgotos, etc. Os antigos diziam assim «ano de chuva, ano de sardinha», vinham aquelas coisas, naturais, que eram postas nas fazendas, os estrumes, limbos, pilados. Entretanto as coisas estão diferentes, com os 165 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) pesticidas, e essas coisas todas que metem. Pode ter um bocadinho de influência, mas também não é toda. Também tem influência o que vem lá de cima cá para baixo. Eu lembro-me que a nossa costa portuguesa estava cheia de limo de correia, por todo o lado. E isso despareceu a nível nacional. Agora a sardinha, uma opinião minha, como isto está, e aos anos que nós temos tido aqui o decréscimo de sardinha, nós precisávamos agora aqui de pelo menos dois anos sem apanhar sardinha, aqui na nossa costa. Que esta sardinha, eu cheguei a fazer oito dias no barco que faz a pesquisa da sardinha, e onde foram encontrar a encontrar a sardinha, a sardinha com mais idade, na Noruega. Encontraram sardinha aqui na nossa zona com cinco, seis anos, e eles diziam que esta sardinha era criada aqui e morria aqui. Esta sardinha fazia o percurso entre o norte da Ericeira e o cabo Carvoeiro, encostava-se à costa, porque a nossa costa tem muita pedra e era ali que ia fazer o abrigozinho dela. Ora a gente se quisesse ter sardinha dessa, estou a falar em dois anos, ainda se podia matar aquela que temos agora, que nesta altura está toda ovada. As paragens deviam ser feitas por pessoas que têm conhecimentos, mas nesta altura eu já não sei dizer nada, porque há tão pouca sardinha. Qualquer sardinha que apareça, não interessa se é ovada ou desovada, as pessoas precisam e apanham tudo. Agora era uma boa altura para fazer o defeso. Porque a desova não é toda igual na costa portuguesa, na mesma altura, no Algarve é mais cedo e no centro e norte é depois. Agora no algarve não se apanha, durante mês, mês e meio, sardinha, para a desova. Depois no centro e no norte, sucessivamente. MS – Voltando umas décadas para trás, que peixes é que pescavam em maior quantidade? JC - Quando fui para o mar, o peixe que se pescava em maior quantidade era o chicharro. Chamavam-lhe o peixe dos pobres. Aquilo era impressionante, ganhavase muito poucochinho. Chegava-se a trazer 700, 800 cabazes de chicharro só por conta do carreto. Por cada cabaz ganhava-se um x, que agora não me lembro, e aquilo era dividido pelos dias. Em Peniche havia muitas tabernas e geralmente dividiam o dinheiro nessas tabernas. Chegava a vender-se o cabaz de chicharro a dois e meio, três escudos e, não tenho bem a certeza, mas creio que o carreto era 15 tostões por cabaz e muitas famílias viviam com esse rendimento. Na detecção do chicharro usava-se a sonda, mas sabíamos que no mês de novembro ele vinha mais para a terra. Uma vez, estava muito vento, era o dia da Nossa senhora da Conceição, e o 166 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) meu pai que Deus tem deu ordens de ir para o mar, eram quatro homens – eu tinha a procissão e fiquei em terra – e já fora da baía largaram a rede. Diz que nunca viram chicharro assim. Sé em pescadas eram 70 ou 80, estavam a boiar, e puseram 70 cabazes de chicharro dentro. O peixe partiu a rede toda, que naquela altura era mais fraca, quando vinham à cava viram-se e desejaram-se para chegar a terra. Se têm posto o peixe todo, morriam todos, iam para o fundo. Foi a setenta escudos o cabaz, nunca mais me pode esquecer. Era muito dinheiro naquele tempo. Mas a maior força do chicharro que se apanhava era com as luas. Quanto à sardinha, naquela altura tínhamos sardinha até à festa da Nossa Senhora da Boa Viagem. Depois vinham aqueles corsos, aquilo era impressionante. Como é que 400 traineiras, aquilo largava tudo, e havia peixe para carregar os barcos todos. Vinham aqueles corsos do cabo norte, da França, depois pela Espanha, era matemático, todos os anos, e depois deixou de haver. Depois ficavam estes restos todos pela nossa costa toda. Depois deixou de acontecer isso. Porque aconteceu isso? Aquilo antes era como as estações: Primavera, Verão, Outono e Inverno. As estações eram matemáticas, não falhavam. Hoje só há duas: é Inverno e Verão. Eu cheguei uma vez a ver em filme a passagem da sardinha, o combate que levavam com aqueles peixes grandes, era tanto peixe que não tínhamos rede para trabalhar ao pé dos homens. Naquela altura tínhamos 40 homens, naquelas traineiras, e tínhamos redes que faziam três das nossas, três. JF- Qual é o tamanho, o perímetro que as redes, estas normais, fazem? JC - Estes barcos grandes têm redes com 24 talhões vezes 20, têm perto de mil metros de perímetro, a cortiça, e depois por baixo tem mais, o talhão tem duas varas de chumbo a mais… JF – Faz uma semiesfera e por baixo é mais larga.. JC – Tem mais rabo para cair mais, tem mais que é para fazer a rabeira para ir lá abaixo. E de altura devem ter aí, sei lá, há quem tenha aí de 130, 140 metros de altura. JF – E o que é a Pina? É uma das coisas que ainda me faz confusão, não sei distinguir entre rede de cerco e rede de pina, rede das rapas… Qual é a diferença? JC – A pina, eles antigamente chamavam os barcos da rapa, antigamente os bar167 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) cos da rapa não podiam apanhar sardinha, só faziam aquele tempo ali nas pedras. Quando o meu irmão que Deus tem….entretanto saiu uma lei e já se podia apanhar sardinha. Já havia o Sol Neve que andava aqui só à sardinha. Quando o meu irmão comprou o Anacleto começou a fazer a vida da sardinha também aqui. Entretanto, passado um ano, comprei o Poema do Mar e só quando não havia sardinha é que ia lá fora. A pina era uma licença que permitia aos barcos ir ao aparelho, licença de redes de malhar e licença de cerco. JF – E as redes, o tamanho delas era de acordo com os barcos. JC – Exactamente. Podem fazer aquilo que fazes: agora meto a rede em terra e vou ao aparelho. JF – E isso era uma licença a que chamavam a pina. JC – Exacto. JF – Nós chamamos rapa porque normalmente só andam ao cerco. Não fazem as três áreas. JC – Nós começamos a chamar rapa porquê? o que é uma rapa? JF – Rapar é ir aos cantinhos. JC – Exactamente, por isso tem que ter uma rede pequenininha, para rapar, por isso é que tem o nome rapa. Antigamente acontecia apanharem aqueles robalos e aqueles peixes que estavam naqueles cantinhos, e iam lá com a ratinha, «a rede cabe aqui para trabalhar», rapa, 10, 12 cavados. Por isso é que tem o nome de rapa. Uma rede de traineira, está bem está… JF- As jogadas que vocês fazem, vamos chamar-lhe jogadas, a forma de trabalhar. Estão três ou quatro traineiras, todas elas marcam o peixe, aquilo quem larga primeiro a chata tem preferência sobre o outro? JC – Aquilo, antigamente havia setenta e tal traineiras, quando eu fui ser mestre, e quando nós íamos em cima do carapau, por exemplo, o carapau é engraçado, porque andava agarrado ao fundo. Mas havia uma hora, um momento, em que ele subia um bocadinho, e o primeiro que acendesse a largada era o primeiro. Se outro avançasse, mostrávamos a largada acesa e às vezes cercávamos o barco. JF- E passarem por cima das redes uns dos outros, isso acontecia com alguma 168 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) frequência… JC - Quando era contramestre do meu pai, uma vez, parece mentira como é que eu cortei a rede do Berbicacho, o chicharrinho que Deus tem, de dia, na Ericeira. O homem tinha uma rede de um barcalhão enorme, o saco que a rede fazia estava a mais de 30 metros, a planagem da cortiça estava a mais de trinta metros, o fundo era baixinho, e eu vou a passar, que é isto? e fomos a reboque dela, como a rede tinha muita folga e eu passei ali… depois queriam-me matar… MS - As políticas europeias para as pescas, nomeadamente os benefícios financeiros para abate de barcos, em Portugal, isso notou-se aqui em Peniche? JC - Vou-lhe dizer uma coisa que é verdadeira: o Estado estragou metade disto tudo. As fábricas não tinham condições para receber tanto peixe e então chegava-se aqui e mandava-se peixe fora. Vínhamos com o barco cheio de sardinha e chegávamos ao molhe e mandava-se ao mar. E o Estado pagava uma percentagem sobre aquilo. Mas nós entidades patronais evitávamos isso porque só recebíamos esse dinheiro ao fim de um ano. A Nicopesca, por exemplo, recebia à quinzena. Havia um barco, que não interessa identificar, que todos os dias vendia cem cabazes e mais nada. Eu disse-lhe uma vez que se estava a fazer um crime, que se ameaçava o futuro dos nossos filhos. O proprietário disse-me «quem vier que feche a porta». Isto porque o Estado estava a dar dinheiro para ele se matar. Em vez do abate devia fazer-se o defeso. Eu fui 20 anos vice-presidente da ANOP, e uma vez fomos visitados por técnicos da pesca que, durante um almoço, sugeriam investimentos em novas tecnologias. Eu disse-lhes então que se estava a querer construir a casa pelo telhado, pois antes de mais devíamos formar jovens para o mar. Nessa altura já se tinham tirado quinhentas e tal cédulas e tinham ido par o mar um ou dois. JF- O marítimo vive sempre na incerteza, das dificuldades do ambiente, dos ganhos e a própria vivência no mar não é agradável. É uma vida complicada e difícil. Eu lembro-me dos pescadores irem para o mar de botas de alças, as condições nos barcos eram completamente diferentes. Hoje vão quase de fato e gravata e chegam lá, têm o seu cacifo, tiram o seu impermeável, calçam as suas botas, é tudo diferente. JC- Por isso é que eu considero que o homem do mar tem de ser um homem de 169 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) fé. Os antigos ensinaram a gente a viver, nós é que estragámos isto tudo. Quando se fazia o defeso, antes do barco começar a faina, fazia-se uma missa de companha com as famílias para pedir a Deus que nos ajudasse a ter um anozinho bom de pesca. Hoje, há uns anos para cá, ninguém faz isso. Hoje, é como tu dizes, o pescador é um doutor. Não lhe falta nada. Os barcos grandes têm chuveiros a bordo. Vão para o mar em calções. Mas o pescador esquece-se de Deus e o homem do mar, para mim, tem que ser um homem de fé. Tem que ser um homem de fé em todos os momentos, num vendaval… JF- não é só a fé de ir apanhar, mas está aí uma ligação. JC - Eu tive uma vez uma passagem, apanhei duzentos e tal cabazes de lata, tratam mal da pesca, já tinham apanhado seis ou sete barcos e eu fui dos primeiros a ir para a linha. A gente não sabe o que é melhor para a gente, Deus é que sabe. Podem dizer que aconteceu por acaso. Começou o barco a andar à banda e credo… Isto tem alguma coisa a ver? Para mim tem, para outras pessoas foi por acaso. Já tenho dito que hoje não conseguia ser encarregado e fui encarregado quarenta anos, desde que fui contramestre, porque hoje há uma falta de respeito muito grande. MS- Quando é que deixou de ser encarregado? Quando é que se reformou? Deixou de ir ao mar? JC- Há nove anos. Actualmente não vou ao mar, estou apenas no armazém. Há um ano atrás regressei ao mar, durante um mês, porque o contramestre foi operado. MS- Pescador uma vez, pescador toda a vida. JF- Ter alguém no armazém que saiba preparar uma arte é uma grande estrada para que o mestre do barco consiga fazer uma boa figura, digamos assim. JC- Como em tudo na vida. E nós tivemos a prova com os barcos que mais pescavam. Só não tivemos a prova com as cooperativas. É uma tristeza muito grande. As pessoas são todas iguais por fora. O meu irmão que Deus tem, o Alfredo, ambos falecidos, e eu tínhamos um aparelho e só nós os três é que falávamos. Tínhamos um canal e só nós é que falávamos. Porquê, porque tínhamos uma maneira diferente de trabalhar. Nós acabávamos de descarregar e combinávamos ir até à Ericeira ou à Nazaré. Os barcos estavam na bóia e de repente apareciam ao pé de nós. Como era 170 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) possível, se tínhamos um aparelho só para nós? Às vezes acontecia o barco estar sobre a Ericeira, de madrugada, e lá vinha eu a esgalhar, vinha aqui já a Sul do cabo, os barcos a saírem. Vinham atrás de nós. Colocavam o projector e diziam «vai aqui o senhor Simões». Estão a dormir quando nós andamos toda a noite à procura de peixe e depois aproveitavam. Alguém tinha melhores condições que aqueles barcos? Barcos novos, redes novas, se fizessem pela vida pescavam como nós. Admite-se ao fim do ano fazerem metade daquilo que nós fazíamos? Tem que se fazer pela vida. Como hoje, tem que se fazer pela vida. JF- Eu lembro-me de uma história, a propósito do chegar ali ao cabo e virar para fora, o Santana chegava a ir de luzes apagadas. JC- Eu aprendi a passar algumas rasteiras com os mestres… As pessoas hoje não sabem dar valor ao que têm. Na descarga, nós tínhamos um cantinho para setenta e tal traineiras, e um bocadinho de rampa. O que a gente sofria ali. Hoje têm aqui um hotel de estrelas, para a descarga. JF- O porto não tinha condições nenhumas. Quando havia um vendaval era uma tragédia. As traineiras davam à costa aqui na praia. Isto aqui [na zona dos armazéns] era uma praia. Eu cheguei a ver 17 ou 18 barcos em seco, encalhados na praia. JC- Antigamente tirava-se o limo com os picoques e isso fazia-se na praia. A propósito de vendavais, eu lembro-me de estar três e quatro dias a bordo do barco, como moço, dentro do bradal, com ferro, e comia-se a bordo do barco, motorista, contramestre e moços. Estávamos três e quatro dias sem vir a terra, o mar passava por cima do molhe e não fazia caso de ninguém. JF- Não havia horários de trabalho…. JC- Antes íamos para o mar todos os dias, sábados e domingos e não havia horário de trabalho. Mais tarde deu bronca quando se começou a ir ao mar ao domingo, à tarde, depois da bola, do futebol; depois passou para as dez da noite e depois para a meia-noite. Houve uma altura em que foram três ou quatro presos por causa da PIDE, dizendo que para o mar só iam na segunda-feira. O zé Pata foi um dos que defenderam a segunda-feira. Quando foi a segunda fase do molho leste, perguntaram se alguém do mar queria 171 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) dar um parecer, e o Zé Pata foi e, numa reunião, tentou explicar que «isto vai partir aqui», e apontou para a maquete. Responderam-lhe: «Ó mestre Zé, engenheiros temos cá». O homem levantou-se e foi-se embora. Pediram a opinião e não o deixaram abrir a boca. E onde ele disse que ia partir, partiu. A experiência do homem não prestou para nada. JF- O mesmo acontece com os homens que estão nos gabinetes e hoje governam as pescas em Portugal. JC- Eu lembro-me que quando andávamos no armazém, a aprender a deitar rede, quando o barco apanhava peixe ganhava-se um cisco de peixe; mais tarde começouse a ganhar meio cabaz; quando já sabíamos trabalhar mais ou menos ganhava-se um quarto, depois meio quinhão, depois três quartos para chegar ao quinhão. E era a própria companha que dizia quanto ganhávamos, que via o nosso trabalho. O quinhão era a parte do rendimento do peixe que era dividida por todos. Ganhava-se por exemplo 100 contos e dividia-se, por exemplo, o mestre ganhava quatro partes e assim até ao quinhão. Às vezes queríamos cinco tostões, dez tostões, e o barco não apanhava nada, vínhamos cá baixo, uma rasa de chicharros, havia aqueles putos que andavam a roubar o chicharro, malta que andava com um pauzinho na mão, e íamos vender chicharro a tostão. MS- E no inverno, como se ocupavam os pescadores? JC- No Inverno, não tínhamos dinheiro, cá em Peniche, mas tínhamos o melhor vinho de Portugal, íamos para o Manuel Viela e uma lata de conserva dava para dez ou doze. E jogava-se futebol em frente à escola secundária. E íamos ao futebol aos domingos, antes de voltar ao mar. Voltando às pescas, nós trabalhávamos muito no ensejo, aquele período antes do sol nascer, entre acabar a noite e começar o dia, nós chamamos «o ensejo estica», a água fica cega, a gente larga a rede e o peixe não vê a rede. E à tarde a mesma coisa, quando o sol se está a meter e vira a noite, a água começa a picar, chama-se a isso os iças. JF- Antigamente apanhava-se peixe à hora do ensejo e hoje apanha-se sardinha 172 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) às duas da tarde… JC- Uma rede de hoje faz dez daquelas antigas. Uma rede antiga tinha cento e tal braças, cerca de duzentos metros, com vinte braças de altura. Hoje têm cerca de um quilómetro e cerca de 120, 140 braças de altura. Por isso é que apanham muito peixe… Esses barcos que andam à cavala, andam de dia, estão sempre com o sonar dentro da rede, estão sempre a ver o peixe. Quando ele vem direito às abertas para fugir, eles têm ali sempre uma dorna de pedra e estão sempre sete ou oito homens a largar pedra para o peixe fugir. Porque eles hoje estão sempre a ver o peixe. Antigamente não tínhamos aparelho para ver isso e eles hoje estão sempre a ver o peixe dentro da rede. JF- Eu realmente lembro-me de ver as chatas irem ao Porto da Areia carregar pedra e eu achava estranho e afinal era para fazer uma cortina. JC- Antigamente, na pesca da sardinha iam três traineiras, era uma ao lado da cornuda, uma à proa e outra à ré. O mestre, como só tinha sonda, mandava largar os piparotes, umas coisas em cimento e argola, com sete a oito braças, que se utilizavam para fazer o peixe voltar para trás. O peixe andava à volta da rede. MS- a pesca era especializada ou os barcos pescavam o que encontravam? JC- Havia aqueles barcos mais afoitos a pescar nos fundos. Naquela época, o peixe mais caro era o carapau. Não o chicharro, o carapau. Iam para a zona da Foz do Arelho, dos Farilhões, Santa Cruz, Canele, que realmente tinham sempre carapaus, mas quando não havia nada apanhavam outros peixes. Hoje que é que fazem as traineiras? Ali há sardinha e vão todas para lá. Antigamente havia quem desgarrasse mais facilmente e fugisse da confusão. Mas também havia mais peixe para apanhar. Hoje vão as traineiras todas para o cerco à sardinha e por vezes ninguém apanha nada. Antigamente não. Não sei se alguma vez aconteceu o porto de Peniche não ter peixe um dia. Hoje acontece muitas vezes porque vão todos para o mesmo sítio e quando um não apanha os outros não apanham. E hoje têm meios que nós não tínhamos. O sonar pode apanhar cerca de 400 metros, duzentos para cada lado. Como vão todos juntos, basta um abrir o sonar. A exploração de hoje não tem nada a ver com a daquele tempo. Naquele tempo o que dava mais dinheiro é que se procurava. Se um dia dava o chicharro, apanhava-se chicharro, outra dia cavala. 173 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) JF- E também havia zonas do mar onde era mais provável apanhar carapau, outras cavala, e outras sardinha. E apanhava-se tudo com a mesma rede. Hoje não é assim. Antigamente apanhava-se cavala na borda de água, hoje não é assim. JC- Hoje, se não houver sardinha, os barcos também vão lá. Mas hoje é diferente por causa das comedorias. Em cima da pedra está o cril, o alimento dos peixes, como o camarãozinho, e esse alimento é o forte da cavala, do carapau e do chicharro. Enquanto a Sardinha se alimenta de plâncton, é diferente. A alimentação tem muito a ver com as zonas de peixe. Esse Plâncton, em forma de granulado, acumulava-se nos limos de correia. Infelizmente, esses limos desapareceram, pois alimentavam vários peixes, para além da sardinha, como os sarrões e as margotas. Com uma caninha, à borda da água, toda agente apanhava dez, doze sarrões, gostava tanto daquilo frito. MS- Ouvi dizer que faz uns versos, umas quadras. Podíamos terminar com umas quadras. No mar comecei com treze anos Desde então sempre muito gostei É uma profissão sempre em risco Que hoje na reforma sempre adorei Com os colegas, bons e maus momentos passámos É uma profissão sempre em risco Trabalho rude e por vezes nos chateámos Pouco tempo passado estava tudo bem, tudo visto Ao senhor pedia sempre Boa viagem e peixinho Pois hoje ainda me lembro Como eu pedia com fé e carinho 174 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Em momentos de temporal No meio da imensidão do mar Fazia da casa do leme uma catedral Janela aberta, olhando o céu onde entrava o ar Quantas vezes acontecia Dois e três dias sem pescarmos Mas lá vinha uma que valia Pelo sofrimento que passámos JOÃO COMBOIO 175 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) HÁ MAR E MAR HÁ VIR E FICAR Rural da montanha na raia interior, vivo agora no litoral, junto ao mar que distou quase sempre uma eternidade do meu quotidiano. De tal modo que, das primeiras experiências pessoais de mar, restam-me pouco mais do que fotografias e um insuspeito testemunho recebido da minha mãe. Aconteceram na chiquérrima praia da Figueira da Foz, em 1936 e 1937, no passado século, tinha eu entre dois e três anos, incompletos, de existência. O meu companheiro desses folguedos balneares, que viria a ser o prestigiado historiador Oliveira Marques -nessa época o Tó Rico, de António Henrique-, voltou para junto do mar, aqui no Oeste, com umas boas décadas de avanço sobre mim. De facto, pelo início dos anos 70, já ele assinava alguns prefácios de reedições de obras na sua casa de Serra d’El Rei. Entretanto, morreu. Depois, esfumou-se-me por alguns anos a vaga e residual memória do mar. Foi então o tempo da escola e dos primeiros contactos com a cultura organizada onde a temática marítima abundava. E falo tanto da cultura oficial como da clandestina. Aprendíamos na escola os hinos regulamentares: o Nacional, o da Mocidade Portuguesa e o da Restauração. Desde os heróis do mar até às armas sobre o dito, apontava-nos o primeiro deles o nosso passado, talvez como profecia para um inevitável destino ainda por cumprir... A verdade é que vibrávamos, a sério, nessas infantis marés de nacionalismo. 177 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) mar! Mar! mar! Mar! - em página inteira, tal bradava um gaiato no alto da falésia, de braços erguidos em saudação e espanto, perante o tranquilo mar azul com barcos e gente sobre a praia. E era assim, logo no início da alfabetização, que o livro único nos ensinava ortografia e paisagística. Na página seguinte, logo ali ao lado, um pescador, de remos ao ombro, conduzia os filhos (ou seriam os netos!?) a caminho do seu batel, todos descalços e trajados a tradicional e folclórico rigor, à moda nazarena: a maré, ir ao mar e remar, remar! Porém, não era aquilo um mar de rosas. Mais adiante, já nos textos corridos, sabíamos que a Mãe tem chorado hoje muito. Às vezes, ri-se para mim, mas eu vejo que ela anda aflita. Bem sei. O Paizinho saiu há três dias para a pesca, no mar alto, e ainda não voltou. Tem estado tanto vento, as ondas vão tão alto! Ainda hoje não sei como terminou aquela dramática expectativa, que então solidariamente nos fazia sofrer. O texto O Pescador era sádico, pois deixavanos num intolerável “suspense”: Se ele morre, quem me há-de dar o pão e a roupa, os livros e os brinquedos?! Seguindo pela escolaridade adiante, a nossa colectiva iniciação ao mar ganhava contornos poéticos e patrióticos, entre os obrigatórios manuais de leitura e de história. Os poetas oficiosos do regime, António Correia de Oliveira, Afonso Lopes Vieira, Moreira da Neves, Adolfo Portela e outros, diziam-nos coisas melodramáticas e messiânicas sobre os desafios oceânicos. Por outro lado, era Tomás de Barros, cronista oficial da corte de então, quem nos apresentava os heróis das descobertas de quinhentos, com o Infante de Sagres à cabeça, rodeado de datas e de navegadores, ondas e marés, padrões, adamastores, bússolas e sextantes, sítios, naufrágios, missionários, mapas e tempestades, gengibre, canela e demais especiarias incluindo a pimenta, em épicas viagens trágicomarítimas, transatlânticas, transíndicas, transpacíficas... A Nau Catrineta, paradigmática lengalenga que chegávamos então a dizer de cor e salteado, era para nós uma simples historieta, de aventuras pelo mar afora. Creio hoje que é muito mais do que isso, na sua dramática descrição de tentações entre Deus e o Diabo, entre o Céu e o Inferno, tradução trágico-marítima da nossa realidade, sempre balanceada entre o ir e o ficar, entre o querer e 178 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) o odiar, entre a certeza absoluta e a dúvida sistemática. É afinal, perdido e logo achado, um retrato a la minuta do Portugal eterno. A clandestinidade do tempo era a dos “censuráveis” e mesmo proibidos quadradinhos, que a sabedoria familiar nunca me furtou, bem pelo contrário. E aí encontrei um mar muito mais atraente que o dos enfadonhos livros escolares, nele vivendo fascinantes aventuras, com o Tintin mais o capitão Haddock, o Gavião dos Mares e as fantásticas adaptações em banda desenhada de obras de Júlio Verne e de Emílio Salgari, onde os oceanos eram cenário privilegiado para a evasão e o sonho. No Diabrete e n’O Mosquito aprendi mais sobre o mar que nas páginas dos manuais -confesso!- em companhia do Capitão Morgan e do Sandokan, piratas avant la lettre em relação aos etíopes, do Capitão Nemo, cientista, ou dos pequenos náufragos dos Dois Anos de Férias. Ah! já quase esquecia o Robinson Crusoé e o Sexta-Feira! Nunca mais perdi a grata memória da obra máxima nessa temática, O Caminho do Oriente, n’O Mosquito, pela inspiração de Eduardo Teixeira Coelho -desenho- e de Raúl Correia -texto-, onde nos foi relatada, durante dois anos bem contados (de 1946 a 1948), a primeira viagem de Vasco da Gama à Índia. Assente no Roteiro de Álvaro Velho e protagonizada por um puto como nós, o irrequieto Simão Infante, aquela gesta revelava-nos, semana a semana, sucessivos episódios vividos num mar calmo ou violento, em oceanos sulcados pelas caravelas e dominados pelos anónimos marujos de quinhentos, ali quase de carne e osso, de sangue e raiva. O meu regresso efectivo ao mar aconteceu pelos 13 anos. Foi durante as férias passadas em casa de uma tia-avó, junto ao Porto, que fui em certo dia de Agosto à Foz do Douro. Daqui, tenho não só uma efectiva e viva lembrança, como também um concreto “certificado” na pequena cicatriz que a base do polegar da mão esquerda ostentará para sempre. Incauto “caçador” de renitentes lapas e ignorante das normas básicas de segurança, calculei mal o uso do canivete, cuja lâmina ficaria ali cravada... A idade do Liceu acarretou-me uma nova dimensão de mar, quer pela literatura oficial, na exacta medida do alargamento das propostas curriculares, quer pela literatura dos lazeres, na irresistível atracção dos grandes clássicos. 179 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Dali ficaram-me as histórias trágico-marítimas e o imortal poema de Camões, embora neste a implacável divisão das orações, saltitando estrofes, ou a charadística classificação conjuncional dos ques e dos porques submergissem a épica narrativa, ainda por cima expurgada do seu “inconveniente” Canto Nono. Mas ainda de Os Lusíadas sobrariam suficiente mar e o Adamastor, mostrengo que Fernando Pessoa se encarregaria de reforçar no nosso assombrado imaginário. Li então tudo quanto pude e o mar também aí estava, inundando de sal as páginas dos grandes clássicos. Resisto à tentação de uma longa lista e reduzo-a a dois títulos carismáticos nessa imensa panóplia então “devorada”: Mau Tempo no Canal, do inspirado ilhéu Vitorino Nemésio e O Velho e o Mar, desse trota-mundos que se chamou Ernest Hemingway. De ambas as obras me surgiram, bem distintos mas incontornáveis, os mares deste universo e do outro, o nacional e o das estranjas. As veleidades culturais da juventude do meu tempo não se limitaram à literatura. Com a malta do inesquecível grupo juvenil portalegrense Amicitia também me interessaram outras sabedorias, onde aprendi passos essenciais da música, do cinema e da pintura. E estava também aí o mar. O Couraçado Potemkin, um eterno clássico, ou Revolta na Bounty mostravam-no como contexto de outros dramas, na tela; da galeria dos sons feitos arte ficaram-me sobretudo os Interlúdios de Benjamin Britten mais a fabulosa e onomatopaica sinfonia La Mer, de Claude Débussy; entre os traços e as manchas coloridas organizados sobre telas destacaram-se as delicadas e românticas paisagens marinhas de William Turner ou -nunca mais a esqueci- a dramática e teatral interpretação plástica que Géricault nos deixou do histórico naufrágio da real fragata Medusa. A tropa levar-me-ia depois para junto de um mar distante, ainda não carregado da sua posterior e fortíssima atracção turística, nos Algarves. Por caminhos entre salinas, nessa Tavira mourisca de meados dos anos cinquenta, chegávamos até ao mar e à ilha. Mas não dava então para os gozar, mar e ilha, porque as marchas mais a carreira de tiro ou os penosos obstáculos a cumprir sobrepunham-se-lhes. Por obrigatória ordem de serviço. 180 Gozei-os mais tarde, já casado e com filhos, quando em cada Verão percor- PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) ríamos as intermináveis estradas pré-comunitárias que nos separavam dessas praias do Sul e do Sol, para sucessivas e cíclicas temporadas balneares. Aprofundavam-se em mim, então, as preocupações e ocupações culturais, tornadas mais adultas nas suas opções, incluindo as “marítimas”. Simbolicamente, de forma abrangente, posso contê-las na passagem de Haddock, patético e velho lobo do mar, para o jovem e aventuroso marinheiro Corto Maltese, na mudança dos tranquilos mares de Carvão no Porão para a agitada Balada do Mar Salgado. Outra fase posterior -ainda mais interessante e pragmática- do meu contacto pessoal com o mar é a das vivências turísticas, pelo mundo fora. De algum modo, com uma inegável carga simbólica, aconteceram-me algumas “reconstituições” de passados marítimos virtuais, quando numa ida a Cuba consegui “reencontrar” o velho pescador de Hemingway nos mares caribenhos (ainda que sem o espadarte), quando por diversas vezes, entre o Faial e o Pico, naveguei pelo canal de Nemésio. Sempre com bom tempo, anote-se! Fora isso, pude viver andanças pelos sete mares, em diversos continentes, de Talin a Helsínquia, num ferry, de Macau a Hong Kong, num turbojet, de São Vicente a Santo Antão, num cargueiro, pelas dunas e ondas de Genipabu, em Natal, num buggy. Tudo mais ou menos calmo, sem sobressaltos de maior, apesar da tempestade desfeita em pleno Báltico, do nevoeiro cerradíssimo sobre os mares da China, dos ameaços de enjoo nas tranquilas águas de Cabo Verde, ou das velocidades e da força centrífuga nas praias e espumas do Rio Grande do Norte. Porém, a minha mais saudosa e épica travessia dos mares aconteceu num turístico cruzeiro de não sei já quantos intermináveis dias, entre Lisboa e Recife, com escalas pela Madeira, Canárias e Cabo Verde, e depois por Salvador da Baía, Rio de Janeiro e Santos. Consolou-me saber que muito mais tempo tinham demorado Cabral e os seus marinheiros a percorrer rotas semelhantes. E em muito maior risco, sem motores a bordo. [prefiro aqui passar em claro a passagem pessoal pelo impávido Mar Morto, porque o mar por definição está vivo, e bem vivo, passando e perpassando sem cessar, apenas salgado q.b. e não em excesso] 181 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Tenho portanto uma conta pessoal de mar bastante preenchida, sem ser marinheiro nem sequer possuir para tanto qualquer especial vocação. A actualização que o mar me merece é sobretudo mediática, na impressionante qualidade -e quantidade!- dos efeitos especiais, para além de toda a verosimilhança, que o cinema moderno nos oferece, em filmes como Tubarão, Tempestade Perfeita, Titanic, O Pirata das Caraíbas (outro!), A História de Pi... E poderia nesta oportunidade esquecer as sugestivas interpretações do mar, na bela poesia contada e cantada pelo Fausto Bordalo Dias ou pelo Pedro Barroso? Ao vivo, e desde há um quarto de século, descobri algumas das melhores praias deste mundo, aqui em Peniche, onde coloco -sem qualquer favor- o Baleal à cabeça. Corrijo assim, e de forma implacável, um tal Ramalho Ortigão que em 1876 desta se esqueceu, entre a Ericeira e a Nazareth, no seu Guia do Banhista e do Viajante intitulado As Praias de Portugal. * Quando abro agora a minha varanda penichense, em terra firme, não encontro a acácia de Régio nem a cidade cercada de serras, ventos, penhascos, oliveiras e sobreiros. Destes atributos só reconheço o vento, e redobrado, centuplicado, salgado e húmido. Em troca, tenho a amplidão de um horizonte sem obstáculos, feito de imenso céu e de mar sem fim. O mar é um fascínio, sempre foi, para o rural montanhês da raia interior que incontornavelmente sou e serei. A familiar moldura da minha montanha natal era mais conservadora. E mais estática. Apenas mudava ao sabor das horas que a iluminavam e sombreavam de diversos ângulos ou ao ritmo das estações do ano que lhe retocavam, apenas um pouco, as cores dominantes. 182 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Aqui, o mar é mais dinâmico pois, embora mudando com os horários e as estações (parece um manual de instruções ferroviárias!), altera-se sobretudo em função dos seus próprios e imprevisíveis caprichos. Orla-se de arrendada espuma (não são daqui os bilros?) ou carrega-se de impetuosas vagas, entre transparentes tons de azul celeste ou quase negros e densos verdes profundos. Faz soar uma lenta cadência de suaves ritmos ou atroa os ares, poderoso e cavo, lembrando monstros de tenebrosas e antigas lendas. Como as do Adamastor. Alimenta e devora os seus servidores, em cruel ritual que se repete. Desde sempre. Para sempre. Mas eu, que corri os sete mares, nunca fui à Berlenga! Pecado maior, e talvez mortal, enquanto o não redimir em gostosa penitência cuja oportunidade aguardo com alguma ansiedade. Provavelmente para depois a repetir, em cíclica peregrinação, como por promessa nunca cumprida ou por dever de gratidão jamais retribuída em plenitude. É que aqui há mar e, apesar da saudade, eu vim para ficar. António Martinó de Azevedo Coutinho Peniche, no Inverno de 2014 183 CONTO A Filha do Polícia, Paula Rego PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) A vida é como um abajur Era uma vez uma rapariga, com pouco mais de 8 anos, que vivia infeliz, não por lhe faltar comida na mesa, ou por não ter um teto onde se abrigar, ou uma cama confortável onde descansar, mas infeliz pois o seu pai, que era polícia, não lhe dava muita atenção devido ao trabalho que ocupava maior parte do seu tempo. Ela nunca havia conhecido a sua mãe, uma vez que esta fugira, deixando-a encarregue ao pai. Maria era o nome da rapariga infeliz, com olhos castanhos, cabelo escuro, quase que parecia preto, apesar de não o ser, mas o que mais se destacava no seu rosto era o seu olhar triste de quem já passara por muita coisa, apesar da sua idade. Num dia chuvoso de inverno, enquanto o seu pai estava, como era habitual, a trabalhar, ela decidiu fugir de casa e procurar alguém que lhe desse aquilo que ela mais queria e que não tinha: amor e carinho. E assim foi, pegou nas botas que o pai tinha deixado em casa e saiu de casa sem olhar para trás. No seu caminho, Maria, cruzou-se com várias pessoas e todas lhe perguntavam o porquê de ela ter abandonado o pai, quando esta lhes contava a sua história, pois ninguém percebia porque é que tendo tudo aquilo que muitos não tinham possibilidades de comprar tomou aquela atitude. Quando lhe perguntavam isto, Maria não conseguia responder e limitava-se a ficar em silêncio, evitando estabelecer contacto visual com quem quer que fosse. Ainda na sua busca por alguém que lhe desse atenção, a rapariga cada vez mais infeliz, encontrou um gato completamente preto, a não ser os olhos que eram brancos como a neve. O gato seguia-a para onde quer que ela fosse e assim foi durante os 12 anos que a menina caminhou em busca de amor e atenção. 187 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Já com 20 anos, a Maria arranjou um emprego que, tal como o emprego do pai, lhe ocupava grande parte do tempo, e juntou dinheiro suficiente para poder comprar uma casa, sem grandes luxos, onde vivia apenas com o gato. Nada sabia acerca do pai, e julgando-o morto, Maria chorou rios de lágrimas, porque agora percebia que o pai apenas queria dar-lhe tudo aquilo que ele não tivera e por isso trabalhava para que ela pudesse ter uma vida melhor. O gato era como um filho para Maria, e apesar de terem passado tanto tempo juntos, o gato passava agora os dias sozinho, tal como ela passava os dias sozinha quando vivia com o pai. Arrependida da decisão que tomou ao abandonar o pai e sentindo a falta deste, sem nunca ter tido a oportunidade de se despedir, todas as noites quando chegava do trabalho, Maria sentava-se na cozinha, à janela, com o seu gato que olhava o luar, e limpava a única recordação que tinha do pai, as botas. Maria aprendeu a dar valor às coisas que tinha, por muito insignificantes que essas coisas pudessem parecer, pois ela aprendeu que devemos dar valor e aproveitar aquilo que temos porque um dia pode já ser tarde de mais. Alberto Rodrigues, 10º CT1 188 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Um mergulho de sonho A notícia atingira-o como um murro no estômago e André, apanhado de surpresa, nem acreditava. Um barco de pesca, daqueles que encalham na prainha do Baleal, tinha-se virado no mar e diziam que um homem havia morrido. Afogado. Que cena, meu, no Baleal? Ali onde ele e os amigos iam apanhar umas ondas quando o mar de Peniche de Cima, o seu lugar habitual de aventuras, estava flat, um morto?, e as histórias sucediam-se, contadas por um aqui, outro ali, e cada uma acrescentava mais pormenores, alguns contraditórios…, o que seria verdade em tudo aquilo? Era um dia de Outono, e o vento, violento, agitava as árvores todas do parque em frente à escola secundária, que nem apetecia andar por ali com o skate, nem nada, muito menos fazer-se às ondas. E aqueles, lá no Baleal, a fazerem-se ao mar, com aquele tempo, deviam era ser malucos. André, já fora ao mar umas quantas vezes, no barco em que andava o primo. O mestre até o deixara ir ao leme; bué da fixe, o mestre, se bem que um bocado bruto com os camaradas. Mas com ele, o miúdo, como ele dizia, era bacano o velho, e o André, todo importante, na casa do leme, sentia-se a comandar a corveta da marinha que vem todos os anos à festa. Mas isso era com bom tempo, nas férias do Verão, e o miúdo já não era miúdo, andava no 9º ano; qualquer dia ia começar a trabalhar, só não sabia o que 189 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) queria ser; andar ao mar, talvez, como o primo, o pai, o avô, todos a dar opiniões sobre o que ele deveria ser. O que André queria mesmo era andar ao limo, lá é que se ganhava bom dinheiro, mas era só no Verão. Então vestia o fato de surf e de espingarda ia apanhar um choco em Peniche de Cima e deixava para mais tarde estas preocupações todas que realmente pouco o preocupavam. Nessa noite, ao jantar, a conversa começara sobre o Baleal, e o pai e o avô recordavam histórias de antigamente; e falavam do afundamento do “Trinitá” que estava a pescar ao aparelho lá para as bandas do Porto Santo, na Madeira; tinha sido em 2006 e havia morrido um homem. Os camaradas refugiaram-se numa balsa salva-vidas e transidos de medos e de frio esperaram que o socorro chegasse; o patrulha da Marinha e um avião já andavam à sua procura e lá foram recolhidos, os que se salvaram; o pobre do Ludgero, esse é que ainda era recordado com saudade por todos eles. É dura, mesmo, a vida do mar, dizia o avô, mas a gente só dá conta disso quando nos bate à porta a desgraça. Então e quando o “Benito” encalhou, disse o avô, isso é que foi um caso sério, mesmo muito sério, que os rapazes da sua idade nunca esqueceriam. Os rapazes que andavam agora pelos 60 ou 70 anos de idade, os reformados que há muito não iam ao mar e saíam nas suas lanchinhas de vez em quando, para ir à lula e pouco mais; que agora já nem temos o portinho do revés para amarrar a lancha, lamentava o avô… Mas não era tempo de falar disso. Avô e pai recordavam histórias passadas e André bebia as suas palavras que traziam memórias de velhos tempos. Entretanto, sem deixar de ouvir os velhos, sacou do computador e foi ao Google buscar naufrágios, peniche, benito... e foi isco que apanhou peixe, havia coisas do tal “Benito” na net. 190 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) “Vai para 32 anos, naquela noite de nevoeiro de 30 de Setembro de 1977”, ora deixa cá ver, em 2014, fazia as contas André: 36 anos! “pelas 22 horas, o Benito vinha com peixe, as buzinas do Cabo estavam avariadas, quando se aperceberam, estavam em frente das rochas da Sª dos Remédios, foi uma noite de aflição, lembro-me muito bem, recordava o narrador do blog. Deste naufrágio, dos 18 homens que compunham a tripulação, 7 perderam a vida. Vicente Cativo, António Serpa, Laureano Serpa, Joaquim Borrego, Antonio Batista, Felix Azevedo e Américo Pedro.” Olha, se queres saber mais do encalhe do “Benito”, disse-lhe o pai, porque não passas amanhã pela biblioteca e procuras na “Voz do mar”, de certeza que vais encontrar a notícia. É isso, pai, é que vou mesmo, mas antes vasculho aqui na net, é que está cá tudo, sabias? Procura também na “Lenda de Peniche”, disse-lhe ainda o avô, vai lá buscá-lo à prateleira. “Lenda de Peniche”, o que é isso? O livro do Mariano Calado, então?, respondeu o velho, aborrecido com a ignorância dos mais novos; estes miúdos andam na escola e não aprendem nada, e arengava que no tempo dele, que mal fez a 4ª classe e sabia os rios e as estações de comboio todas, apeadeiros e tudo, isto no tempo em que havia comboios, que agora nem Linha do Oeste nem Mestre Combóio, a traineira que encalhou ainda há poucos anos lá para a Consolação. E riam a bom rir os três homens, com a graçola do avô. Afinal não era nenhuma lenda de Peniche, era antes sim o “Peniche na História e na Lenda” que o escritor e poeta Mariano Calado havia escrito e editado em 1962 e o avô, orgulhoso de ter uma primeira edição, que na altura 191 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) tinha sido vendida em fascículos, havia mais de 50 anos, passado todo este tempo, como quase toda a gente, ainda não atinava com o nome do livro que havia ficado para sempre como “A lenda de Peniche”. E lá, André, encontrou muitos mais naufrágios. O “S. Pedro de Alcântara”, o “City of Dublin”, O “Roumania”, O “Dorunda”, o “Cuiabá”, o “Fernando Ybarra”, estes eram alguns vapores que encontrou desfolhando ao acaso as páginas do velho livro. E há ainda o “Inglandope”, um paquete enorme que encalhara no Farilhão em 1930 que afinal era o navio “Highland Hope”, da Nelson Line, que com mais de 500 pessoas a bordo, com mar chão e denso nevoeiro, veio a encalhar do lado de fora do Farilhão Grande, num lugar que muito a propósito os pescadores conhecem como as “Bailadeiras”, pela agitação que o mar ali frequentemente tem e faz bailar os barcos, um lugar que é um verdadeiro cemitério de navios e onde, para além do “Highland Hope”, ali ficaram para sempre o “El Dorado”, O Cyprian Prince”, o “Cap Blanc”, e o “Rio Grande”, numa amálgama de ferros retorcidos de navios em certos sítios sobrepostos uns em cima dos outros, em que nem os mergulhadores que lá se aventuram conseguem distinguir onde começa um e acaba o outro. Quem sabia deles todos era o falecido Humberto das Cabacinhas que tinha uma taberna, hoje desaparecida, ali na rua 1º de Dezembro, disse o avô, e também o Humberto Faustino, o “Bébé”, da “Electrónica Naval, que ainda hoje existe. Pois o Humberto Faustino, um dos precursores do mergulho desportivo em Peniche, até havia fundado um grupo ligado ao Museu da Fortaleza, para explorar esses navios todos, um velho sonho de visionário que ainda está por realizar. Nessa noite, André mal pregara olho. Navios naufragados, tesouros perdidos, antigos registos escritos no balcão de uma taberna, ainda com nódoas de vinho tinto derramado, mergulhos no fundo do mar, a Berlenga, os Farilhões, o mar enfim. a vida de André mudara nesse dia. 192 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Percebeu que o eco desses dias havia permanecido na memória dos mais velhos, que de história em história, de avô para pai e de pai para filho, a recordação do passado perdurara, às vezes recordações que remontavam a décadas e séculos mesmo, como a do navio da armada espanhola, o “San Pedro d’Alcantara” que naufragou na Papoa. Vinha do Peru para Cadiz, carregado de preciosidades e encalhou mesmo em frente ao Linho do Mar, na Papoa; uns mergulhadores arqueólogos tinham, durante anos, andado a escavar o sítio e também num cemitério que se improvizou na época em frente à praia do Porto da Areia, para enterrar as dezenas de mortos que haviam dado à costa naquela noite de 1786. André começava a entender que o verdadeiro tesouro era a riqueza da memória das gentes que viveram antes de nós; é graças a ela que somos hoje o que somos, e se quisermos escavá-la temos de, primeiramente, ir falar com a gente que se lembra desse passado, dessa memória colectiva a que chamamos tradição oral, a documentação transmitida de avô para neto, como ele havia experimentado naquele dia. Mas também temos de ir às bibliotecas e aos arquivos buscar os outros documentos, os escritos, que registaram os factos sucedidos. E, é claro que também na net encontramos montes de informação. Encontramos sites especializados em naufrágios com muita informação de Peniche, blogs de gente da terra desejosa de partilhar informação, páginas e páginas pdf, relatórios, foruns, tudo ali, à nossa espera. Finalmente, podemos também ir à procura do navio náufrago, que no fundo do mar, parece esperar que o vamos descobrir. Disseram-lhe do navio que está afundado em frente à capelinha de Santo Estevão, no Baleal, em frente à Casa das Marés, e André descobriu que era o “Leven”, vapor inglês de 5000 toneladas, construído em 1889, pertencente ao armador “C. Ropner and Company” de West Hartlepool, na Grã Bretanha, que saía de Cardiff, carregado de carvão, com destino à Ilha de Malta, no Mediterrâneo; descobriu ainda que o capitão se chamava C. Hard e que o navio trazia 23 tripulantes e se salvaram todos porque o mar estava calmo e os escaleres 193 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) os trouxeram a terra firme sem problema de maior, a não ser o grande susto porque haviam passado. Um dia, André pegou no fato de surf, nas barbatanas e na máscara e foi até à praia dos barcos do Baleal, a tal onde encalhava a lanchinha que desencadeara tudo isto. Entrou na água confiante. Ia ver o seu primeiro navio afundado. Só então se lembrou que podia ter trazido a espingarda de caça submarina; mas também estava bem assim, que o peixe que ia visitar era bem maior, e mais velho que qualquer sargo que apanhasse. Peniche, Março 2014 Luís Fonseca e Susana Maia [email protected] 194 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) O BALEAL 54 É simples a vista da presente gravura, porque não avultam ali, com elegante ou soberba perspectiva, fachadas de sumptuosos templos consagrados à di vindade pela fé; ou altas colunas de majestosos paços para morada de reis; nem coroados frontões cortando a cimalha de extensos palácios, destinados à nobreza ou à opulência pelo fausto luxuoso ou jactancia vaidosa; por isso o observador que a olhar unicamente como amador de arquitectura, não encon trará pedra ferida pelo gume do sopro, nem cimento modelado pela arte, que represente alguma das suas ordens ou ornatos. Mas a todas essas vangloriosas edificações, de que se nutre o orgulho dos homens, com que superioridades In Archivo Pittoresco. Semanário Illustrado, nº 6, 1863, Lisboa, Editores proprietários Castro e Irmão, Cª, pp. 177179. 54 195 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) se não avantajam as ondas que ali vemos na sua extensão e profundidade55, e os alcantis e criptas dos rochedos, como porções da grande obra da criação, instantaneamente formadas pelo Fial de Deus no meio das trevas56, onde as gran dezas se encerram na harmonia de imensas produções, que, já como segredos vedados á compreensão humana, já como prodigiosas maravilhas que a extasiam, claramente lhe demonstram a omnipotência do seu autor! Que de história não encerram essas pequenas ilhas, como paginas rasgadas em eras que já vão longe, pela ígnea força das erupções, onde lemos a sucessão de tantas vidas, de tantos acontecimentos belicosos e domésticos ali passados, que nos provam bem quão impermanentes são as coisas do mundo.57 Deixarei agora os pontos mais distantes que vemos na estampa ergueremse através do horizonte, e que, separados pelo dedo de Deus58, me pareciam oscilar sobre as ondas quando as sulquei, para me ocupar do que mais próximo de nós veio dar á costa59, e fazer o extremo do continente ocidental60. Que lenda encontro nesta bronca penedia, ou que narração me faz em tácita linguagem analogiando o omnia possui do Criador? Dois factos respeitáveis para o geógrafo e para o cristão: história e religião. Será pois sob este aspecto que escreverei a crónica noticiosa da parte principal da gravura. Historia. A ilha do Baleal, como vulgarmente a denominam61, é uma península ao nordeste da praça de Peniche, d’onde, por uma praia semicircular, distará 6 quilómetros. O Oceano Atlântico é um dos maiores mares do globo. Entre Peniche e as Berlengas, onde chamam a meia-via, foi-me dito pelos práticos dar a sonda 25 linhas, ou 1:400 metros de profundidade 55 56 Dirilque: Final firmamentum: el fercil Deus firmamentum. Et tenera erant super fariem abyssi. Genesis, cap. I. Para corroborar o que acabo de dizer, citarei as eloquentes palavras de um dos mais nobres e respeitáveis talentos da nossa tribuna parlamentar, o Sr. Casal Ribeiro, no discurso proferido em 3 de fevereiro último na camara dos deputados «… do que valem na boca do homem esses jactanciosos para sempre!... Não, senhores: não há para sempre no mundo. Para sempre só Deus.» Tomo VI 1812?? 57 Quam videbo calos et terram opera digitorum tuorum. Pª. VIII. Il separa la lem e séche d’avec les eaux qui y élvient melées.- Royammont. 58 59 60 Estra frase de que me servi alude á nota 7, que vai adiante Donde a terra se acaba e o mar começa. Camões cant. VIII. Não será de todo impróprio chamar-lhe assim, porque, se não é ilha continuamente, é periodicamente, razão pela qual com esse nome se vê em alguns mapas, como no Perrichon, no Theatrum Orlis Terrarum, e outros 61 196 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Esta península, como uma umbreira, deita-se sobre o mar com a extensão de quase 2 quilómetros de norte a sul, e fica n’este lado presa ao continente por um istmo que lhe dá ingresso com área de 300 passos em quadro; o qual istmo, abaixando-se nas extremidades a pequena altura do nível do mar, é coberto pelas ondas algumas vezes no ano, submersão de poucas horas, e que sucede com mais frequência nos solstícios, em algumas conjunções lunares, e nas ocasiões de procelosas tempestades. O sítio do Baleal, assimilando a cumeeira de uma serra, sobre a qual assenta uma planura de terra pouco funda, é formado de uma massa compacta de pedra circundada da mais viva e escabrosa rocha; estas pedras, compostas de Lages com diferentes grossuras, guardam singularmente suas dimensões regulares em toda a extensão da península, bem como sua colocação vertical, com pouco pendor ao ocidente, posição muito geral nas grandes serranias, observada por um célebre viajante. 62 Estas Lages, que a força indómita das ondas tem cortado em várias partes, são de natureza calcares, de que muito abunda o nosso reino63; e em parte de um amarelo pouco vivo (amarelo jalde), que em algumas superfícies ganha uma cor alvacenta, e bastante rigidez. Por entre estas camadas metem-se de permeio outras de natureza argilácea, cinzenta64, que se pulveriza com as emanações salinas e a acção atmosférica, deixando então aparecer naquelas um conjunto de litófitos, entre um fibroso tecido de substâncias naturais e animaea, cujos dendrites, em partes cristalizados, tornam duvidosa sua causa primitiva; junto d’estas transformações, salienta a concreção de diferentes crustáceos e cactáceos, que todavia, em estado fóssil, entre alguns que o verdadeiro zoólogo conhecerá, muito perfeitamente se distinguem, o argonauta (nautile, voilier, et comètes ou trompetés de mer et cornes d’Ammon); as estrelas (caput Médusa; étoile esculente de belon; escargot raye); os berbigões e ameijoas (Boucardes) e outros65. Não se encontra ali essa coquillage ou aglomeração de conchas, de que tanto abundam as imediações de Lisboa e Outra-banda, e que se encontram até 62 Tournefort: Voyag. Au Levant, tom. M, liv. 19. Um escritor francês, que historiou Geografia Física de Portugal, diz: «La pierre calcaire forme une suite de montagnes entre Lisbonne et Coimbra: quoique sa couleur soit différente, il fait cependant partie des montagnes primitives et contient du schiste micacé.» 63 64 65 Argila communis, coerulescens. Linneo. Vid. Histoir. natur. Des pétrifications, par B… 197 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) nas mais altas serras da Europa, como nos Alpes, Pireneus, Andas, Apeninos e Araraltres66, que muitos escritores consideram como remoções ou produções de antigos cataclismos por que o globo tem passado67. Ora considerando estas rochas co-irmãs das do continente vizinho, deveríamos, na direcção que já atrás indiquei, achar vestígios da sua continuidade, que já se não encontra, mas sim uma planície de 7 quilómetros até á antiga vila da Atouguia, onde começam a aparecer alguns bancos de pedra, mas de natureza diferente; bem como as mais próximas e fronteiras ao sitio onde menos confraternidade se nota, por serem compostas de uma argila rubra, entre recifes de pedra arenácea, humorosa e falcosa. Falto de conhecimentos geológicos, mas pondo a par da historia geográfica as considerações que expus, nascidas de minhas observações, julgo o sitio do Baleal estranho ao primitivo continente, ou que dele, como hoje, no fez parte antigamente: n’esta hipótese, creio ali a sua colocação, como arremessado por alguma d’essas erupções vulcânicas, de que falam antigos escritores68, e que fez parte da antiga e grande ilha Eritrea, de que outros falam69, de cujos alguns muito razoavelmente supõem como resto as Berlengas70. Religião. A lenda religiosa do Baleal, que a tradição e alguns escritores nos transmitiram71, é um d’esses padrões em que o crente apoia sua fé, sempre recompensada pelo Filho da Virgem, quando Ela pede pelos pecadores72. Tem o Baleal uma capelinha da invocação de N. S. das Mercês e Santo Estevão, cujas imagens, de sofrível escultura, formam um retábulo muito singelo. Esta capella, de construção simples, não apresenta indícios de remota antiguidade, devido talvez à sua boa conservação; é interiormente revestida de azulejos; e no tecto de madeira, entre enramados traços no gosto do seculo XV, figuram alguns emblemas com que a santa igreja louva a Virgem Maria, como o sol, a lua, as estrelas, a torre, etc73. 66 67 68 69 70 71 72 73 Vid. Obras de José António Sá. Histoire des Revolutions de l’Orbe terrestre, cap.XXN. Pomponio Mella Plinio, Estrabão, Ellenon, Ray, e outros. Fr. Bernardino da Silva, o padre Marianno, José Joaquim Soares de Barros, etc. And. Resen. Lib. 1º Historia dos Terremotos, pág. 7. Fr. Agostinho de Santa Maria. O padre L. Cardoso Sem os rogos de Maria, nada alcançam os mortais. S. Bernardo. Sol justitiae, Pulchra est luna. Stella matutina, Turris eburnea, etc. 198 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Há na frente d’esta capela um cruzeiro, que, como folha enrugada e carcomida pelos anos, será o livro que traduza a sua edificação, e o sucesso que vou narrar. Conta-se que, em tempos antigos, um ermitão, a que a voz tradicional dá o nome de Maruta, deixara o Ferrel, sua pátria, e para ali viera fazer vida penitente, n’uma casa junto à ermida, casa que ainda existe com a mesma aplicação. Uma noite grande estrepito alterou o usual sossego daquele ermo. O anacoreta acordou, e conhecendo ser na igreja, possui-se de medo, e foge para uma gruta próxima às ondas, a qual ainda hoje conserva o nome de cova do ermitão. Ali permaneceu até despontar a aurora; quando volta à capela para conhecer a novidade, eis que vê pelo clarão espalhados os ornamentos do altar, e a santa imagem roubada. Confuso, corre à capela sem a encontrar; busca-a até pelo exterior, quando, por acaso, olhando para o mar, vê um pequeno batel dirigir-se a uma nau, que, ancorada, o espera e recolhe, conhecendo ser de moiros. Volta inconsolável, chorando a falta da sua protectora companheira, julgando ter de chorar esta ausência o resto dos seus anos. Passam dias que perfazem meses, quando, n’este espaço, um cativo em Argel, filho de Peniche, vê chegar aquele presidio a embarcação que conduz a roubada imagem por ele conhecida. Este homem, que então começava a respirar o ar da liberdade, propõe resgate da Virgem, que se lhe concede a peso de prata; mas ele, que unicamente possuía uma pataca, sabendo que a imagem é de mármore, e de três palmos de altura, conhece a impossibilidade de aceitar contrato, e volta cheio de tristeza ao seu aposento, maldizendo a pobreza em que se achava. Passando a noite em pensativa vigília e atormentado, uma inspiração divina o resolve a ir reconhecer peso da imagem. Chega a tardia manhã, volta o cativo a casa do senhor da preza, que mantem a sua palavra; pede-lhe que ponha a imagem n’uma balança, e deita na concha oposta a sua pataca, a qual imediatamente a rebaixa com peso superior, e grande admiração do infiel agareno. Apossa-se do invariável tesouro, e prestes se embarca com ele para a sua pátria. Logo que chega, a conduz à sua antiga capela, contando o prodigioso acontecimento, que enche de assombro a todos os circunstantes. 199 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Esta lenda tem feito até ao presente o principal incentivo da devoção que o povo tem naquela efigie da rainha do céu, com o título de Senhora das Mercês. O Baleal, segundo conjeturo, é assim denominado, pela frequência com que o mar tem arrojado às suas praias diferentes baleias, duas das quais em poucos anos eu vi; ou daquela celebre e monstruosa que, em 1526, deu apelido à vila da Atouguia. Este sítio ainda há poucos anos apenas tinha duas barracas de pescadores, e hoje conta dezasseis moradas de famílias das circunvizinhanças, entre as quais, as melhores, pertencem aos Srs. Pereira Caldas, das Caldas da Rainha; Marques, da Atouguia; Pinto Ferreira, de Ferrel; Neves, do Peral; e Sequeira, de Traz do Oiteiro: isto em consequência da bondade das suas águas para banhos de mar, e pela excelente praia, que, sem exageração, será a melhor do nosso reino, pela nivelação e solidez, rodando sobre ela um carro quase sem deixar vestígios. No mais alto dos rochedos, e onde na estampa se vê um ponto geodésico, foi em 1808 edificado pelos franceses um pequeno forte, que está bastante deteriorado; e junto á praia da entrada se fez, há dois anos, um forno, que produz sofrível cal. Onde actualmente se acham as propriedades, e em suas imediações, encontram-se bastantes alicerces antigos, pelos quais se conjectura haver sido ali o lugar de Ferrel, hoje pouco distante. Não há aqui arbustos; é quase nula a vegetação; todavia o terreno dá saldanella, ou brazia marinha; jusquiamo, erva-divina, perrexil, e outras plantas próprias das vizinhanças do mar74. São estas praias abundantes de peixe e mariscos, e nelas se encontram esponjas e coralina branca (musgo marinho), e há poucos anos uns pescadores que ali há, tiraram do alto mar uma árvore de coral, como o melhor do porto de Bone75. 74 Vid. Reflexos Metódico-Dotanicas, de fr. Cristóvão dos Reis Fr. Cristóvão dos Reis, falando na citada obra sobre o coral, diz: Muitas vezes se tem este tirado do mar nas costas de Setúbal e Peniche. 75 200 PAIDEIA, REVISTA DA ESCOLA SECUNDÁRIA DE PENICHE, N.º 5: PESCAS (2015) Não tem este sítio água dentro em si, pelo que se vai buscar ao Camarção, onde um benemérito cidadão, que de Lisboa ali foi a banhos com sua família, mandou há dois anos fazer uma fonte76. O sítio do Baleal é actualmente muito concorrido no tempo dos banhos, onde mil coisas fazem os seus encantos e divertimentos; não esquecerei a passagem do mar sobre o istmo nas marés da canícula, tornando então o sitio um arquipélago de cinco ilhéus agrupados: o embate das ondas sobre as rochas que o cercam em forma de escadas, que ora fazem brancos lenções de espuma, ora altas catadupas e elevadas colunas de água; o portinho que a natureza, providente, lhe fez no canto das penhas, para refúgio e estação dos barquinhos; os búzios e delicadíssimas conchinhas de variegadas formas e cores; os corados e finos liminhos; os polidos seixinhos, donde o ano passado eu trouxe uma sanguínea-amarela para um anel, a que os lapidários chamaram uma verdadeira agatha. Quem visitar o Baleal, conduzido por certo às situações mais favoritas e concorridas, como o forte, a varanda dos namorados, o rasto de Neptuno, e as pedras, achará fiel o quadro que tenho esboçado. No centro da gravura vê-se ao longe a ilha das Berlengas com seu farol no cimo, da qual hei de falar em artigo especial com estampa; à esquerda os últimos rochedos do norte da praça de Peniche, antigo cabo Carvoeiro, onde, no século passado, naufragou a nau de S. Pedro, ou dos Quintos, e com ela se perderam imensas riquezas; e onde igual fim teve há poucos anos o vapor da carreira do Porto; e do lado direito os pontiagudos farilhões, que parecem uma grande nau, no meio do vasto Oceano. P. de C. e Sequeira. 76 O Sr. José Joaquim Soares de Faria 201 ÍNDICE SANTOS, Miguel Dias, Apresentação......................................................................................5 CALADO, Mariano, Quando a terra galga o mar................................................................7 CUNHA, Ângela, et alli, O MAR E O ENSINO DAS CIÊNCIAS - atividades laboratoriais, experimentais e de campo, NO ENSINO SECUNDÁRIO – alguns exemplos................................................................................................................... 13 RIBEIRO, Élio, A pesca da sardinha em Peniche durante o séc. XX ......................... 33 LOURENÇO, Inês Grandela, A pesca em Peniche – impactos da adesão de Portugal à CEE (1986-1996)....................................................................................... 69 RENDEIRO, Luís, A conservação de pescado através do sal (Uma perspectiva diacrónica da realidade local)................................................ 81 CONSTANTINO, Adriano, Pescadores de Peniche em luta - a greve de 1975 ............................................................................................................. 99 MOREIRA, João Luís, Os pescadores, de Raul Brandão – etnografia e memória.............................................................................................. 113 MEMÓRIAS DA PESCA. Entrevista – sr. José Maria Malheiros Cativo................ 125 MEMÓRIAS DE PESCA . Entrevista - sr. João Comboio. [joão pacheco leitão] ............................................................................................................. 157 COUTINHO, António Martinó de Azevedo, Há mar e mar há vir e ficar, .......... 177 RODRIGUES, Alberto, A vida é como um abajur.......................................................... 185 FONSECA, Luís, MAIA, Susana, Um mergulho de sonho........................................... 189 O Baleal......................................................................................................................................... 195