CHANTAL RAYES Os amigos de Daniel Keith Ludwig, bilionário

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CHANTAL RAYES Os amigos de Daniel Keith Ludwig, bilionário
POR UM REAL
A MAIS
CHANTAL RAYES
Os amigos de Daniel Keith Ludwig, bilionário americano, disseram que ele seria louco de se aventurar na
Amazônia. Ele apostou com os amigos, e perdeu. O
Brasil o humilhou. Jari foi seu único fracasso.
J
amais um homem havia se lançado até então em um
empreendimento de tamanha envergadura. Mas a incrível epopeia brasileira do bilionário americano Daniel
K. Ludwig teria um rápido fim na margem esquerda do
Rio Amazonas.
Em 1982, Daniel K. Ludwig deixou o Brasil se desfazendo de
Jari, o gigantesco complexo agroindustrial construído por ele
em plena Amazônia a partir de 1967. Os nacionalistas, tanto
de direita como de esquerda, estavam em festa. O “imperialismo americano” perdera. Mas se Daniel K. Ludwig partiu; o
ainda hoje chamado “projeto Jari” sobreviveu. Certamente,
o silêncio recaiu sobre um dos empreendimentos mais denegridos da história recente da Amazônia, mas Jari e seu
demiurgo ainda mexem com os sentimentos. Ludwig, vítima
do Brasil ou predador? Jari, aposta louca de um visionário ou
delírio colonialista?
Em 1967, Daniel K. Ludwig, ainda que pouco conhecido do
grande público, era um dos homens mais ricos da América.
Recluso, “até misantropo”, diz Lucio Flavio Pinto, um dos raros
jornalistas brasileiros a tê-lo conhecido, o timoneiro à frente
da National Bulk Carriers – empresa de transporte marítimo
e a fina flor de seu império – fugia das coisas mundanas,
guardava com ciúmes o segredo sobre sua vida e seus negócios. Ele foi uma das raras personalidades, entre as setenta
e duas mil que aparecem na quadragésima edição da Who’s
Who in America, a ter se negado a
fornecer até mesmo os detalhes mais
insossos de sua biografia. Sua fortuna continua difícil de ser avaliada.
Uns falam em quinhentos milhões de
dólares, outros, de 3,5 ou até cinco
bilhões, o que o colocaria automaticamente entre os mais ricos de sua
época. Este self-made man, nascido
em 1987 em Michigan, enriqueceu
durante a Segunda Guerra Mundial.
Frente à forte demanda de navios,
ele teve uma ideia de gênio: em vez
de montar as peças dos navios, ele
decidiu soldá-las, reduzindo substancialmente os prazos de entrega. Mais
tarde, ele seria o pioneiro do supertanque, o petroleiro gigante.
Ludwig possuía também minas de
carvão na Austrália, canteiros navais
no Japão, criações na Venezuela,
hotéis no Caribe, bens imobiliários
na Flórida... Com setenta anos, ele
poderia ter se aposentado. O que
pode fazer um homem no esplendor
de seu sucesso e já com uma idade
avançada se lançar em plena selva?
Esta pergunta intrigou os brasileiros e
alimentou os mais bizarros rumores. A
Amazônia – que se estende por sete
países, entre os quais o Brasil, que
detém 70% de sua superfície – inspira
um poderoso nacionalismo, e o gringo, “o estrangeiro” que lá se aventura,
uma grande desconfiança.
Melhor dizendo: americana. Nos
anos sessenta, as suspeitas são alimentadas por um estudo publicado
na época pelo Instituo Hudson, uma
arma intelectual americana, que previa a construção de grandes lagos na
Amazônia para explorar melhor suas
riquezas.
O regime decide então intervir invocando o slogan “Integrar para não entregar”, “integrar” a floresta ao restante
do Brasil para não cedê-la aos apetites
estrangeiros, e decide colonizar seu
deserto verde abrindo passagem para
os deserdados do nordeste, assolados
pela seca. É a época da construção da
transamazônica, a estrada que rasgará
a Amazônia, vai expor a uma destruição desenfreada e terminará por transformá-la em um vale-tudo. Pedaços
de terra são distribuídos aos colonos
(“a terra sem homens para os homens
sem terra”, proclamava a propaganda
oficial), isenções fiscais são oferecidas
às empresas para a abertura de minas
e pastos, ou ainda para o corte da madeira.
Mas desenvolver uma região tão grande
quanto a Europa Ocidental não é uma
tarefa fácil, e Brasília decide recorrer ao
capital estrangeiro, uma questão sempre delicada no Brasil. Os emissários
são enviados à Europa e aos Estados
Unidos, as multinacionais desembarcam na Amazônia.
Até o boom da borracha (entre 1850 e Daniel K. Ludwig faz parte, portanto,
1910), a atividade econômica na região dos homens que responderam ao
se resumia à caça e à colheita de produ- chamado do Estado brasileiro, o mestos da floresta. Tudo muda sob a ditadura mo que acabará, segundo seus partimilitar, entre 1964 e 1985. Os generais dários, a empurrá-lo para a saída.
que tomam o poder temem o vazio. Euclides Reckziegel trabalhou para
Imensa (pouco mais de cinco milhões ele. Na época, um jovem engenheide quilômetros quadrados somente na ro florestal recém-chegado do sul do
parte brasileira, que
Brasil, ele se lemperfazem 59% do
bra de ter apertado
Os generais que
território nacional),
a mão do patrão
mas pouco povoada
uma ou duas vezes,
assumiram o poder
e quase desprovida
“um homem simde qualquer presen- tinham medo do vazio ples, que não tinha
ça governamental, a
jato privado” e viajafloresta, com seus abundantes recursos va em classe econômica.
naturais, é vista como um ponto vulnerá- Várias vezes por anos, o patrão fazia
vel a uma suposta ameaça internacional. a viagem de Monte Dourado, o centro
NOVELA – OUTONO 2011
^ Todas as ilustrações
deste artigo são de
Anne-Lise Boutin.
urbano que ele havia construído pedaço por pedaço na floresta e onde
sua empresa, a Jari Florestal e Agropecuária, montou seu quartel general.
Euclides Reckziegel o defende ardentemente. A indignação trespassa sua
voz: “seus amigos do clube de
PAUSA SOBRE...
golfe que ele frequentava em
CHANTAL REYES
Nova York lhe repetiam que ele
Desde 2002 Chantal Reyes
D
seria louco de se aventurar na
é correspondente do Jornal
Libération e de mais dois outros
Amazônia. Ele fez uma aposta
jornais europeus no Brasil, Le
com eles. Ele perdeu. O Brasil o
Soir, de Bruxelas e Le Temps,
de Genebra. Sua base fica
humilhou. Jari foi seu único fraem São Paulo. Anteriormente
casso”.
trabalhou como correspondente
no Líbano.
No entanto, tudo havia começado bem. Em 1967, Ludwig prevê uma
futura falta de celulose (utilizada na
fabricação de papel) e de produtos
alimentícios. Ele coloca na cabeça
que vai dominar o mercado mundial,
nada mais. No Brasil a terra é tão fértil
que dá duas colheitas por ano. Mas
as ditaduras não apetecem os fluxos
de capital. O magnata americano vê
nisso, ao contrário, uma garantia de
“estabilidade”. Daniel K. Ludwig adquire, por três milhões de dólares, a empresa Jari Indústria e Comércio, dedi1
Jari, toda a verdade
cada então ao comércio de madeira
sobre o projeto de
Ludwig, Marco Zero, e castanha do Pará. Entre os ativos
1986. da empresa, uma terra do tamanho
de meia Bélgica: 1,6 milhão de hectares perdidos na floresta. Dizem que
na virada do século XX, estas terras
haviam sido tomadas do domínio público por um coronel de brutalidade
lendária, José Júlio de Andrade. Elas
se situam ao longo do rio Jari (na
fronteira dos estados do Pará e do
Amapá), uma localização estratégica para os desejos de Ludwig: como
afluente do rio amazonas, este rio facilitava a exportação para a Europa e
Estados Unidos.
Ali, no meio do nada, Daniel k. Ludwig
abre perto de cinco mil quilômetros de
estradas, setenta quilômetros de ferrovias, um porto e um aeroporto. Ele
funda assim Monte Dourado, onde vivem seus oito mil empregados e seus
familiares. Com suas casas térreas de
madeira, o local tem ares de subúrbio
americano. Dotado de uma infraestrutura completa, é uma perfeita cidade.
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POR UM REAL A MAIS
Água corrente, redes de esgoto e eletricidade, coleta de lixo, escolas, hospital: Ludwig não economiza nos gastos.
Ele age como o poder público, contratando até agentes de transito privados!
O complexo agroindustrial de Jari
compreende plantações de gmelina
arborea – uma das espécies a partir
das quais a celulose é obtida – arrozais ultramodernos conectados a uma
usina de embalagem de arroz, manadas de búfalos e uma mina de caulim
descoberta no local. Monte Dourado é
concluído em 1979, com a espetacular
fábrica flutuante de massa para papel,
vinda diretamente do Japão por mar,
em uma travessia que teria durado oitenta e quatro dias. A plataforma (que
contava ainda com uma usina elétrica)
chega a Jari em 28 de abril, sob o olhar
incrédulo e maravilhado dos habitantes.
“Em Brasília, Daniel K. Ludwig dispunha de um lobby influente que lhe
havia garantido mais privilégios que
qualquer outra empresa, brasileira ou
não, conta o jornalista amazônico Lucio Flavio Pinto, autor de uma obra de
referência sobre Jari1. Ele era amigo
íntimo do homem forte do regime, o
general Golbery do Couto e Silva. Ludwig havia se ligado também aos serviços do ex-capitão Heitor de Aquino
Ferreira, o discreto, porém poderoso
secretário da presidência da República, transformado em seguida em gerente do projeto Jari.
O Estado brasileiro havia aceitado
ser o fiador seus empréstimos e até
mesmo – contrariamente às leis protecionistas – isentá-lo das taxas sobre
a importação de sua usina, enquanto
a indústria brasileira poderia fornecer equipamentos equivalentes. Para
justificar este tratamento favorável, o
governo havia invocado o interesse
nacional: Jari deveria gerar divisas.
Isso não aconteceu. As decepções
não tardaram a chegar.
Aos setenta anos, Daniel K. Ludwig tinha pressa. “Ele não queria morrer antes de ver seu projeto se concretizar”,
relembra Euclides Reckziegel. Mas
“em sua ânsia, ele multiplicou os erros,
detalha Lucio Flavio Pinto. Ainda mais
por que ele decidia tudo sozinho”.
A floresta virgem é tombada – com
escavadeiras, ainda por cima – o que
empobrece o solo. A gmelina arbórea,
espécie asiática de crescimento rápido e alto rendimento de celulose não
se adapta bem ao solo amazônico. A
árvore não demora a ser substituída
pelo eucalipto e pelos pinhos, que tiram toda a vantagem competitiva de
Jari. A cultura do arroz – “com fertilizantes químicos em vez do aproveitamento da riqueza das planícies aluviais do rio amazonas”, critica ainda o
jornalista – é um fracasso total. Nas
portas do complexo, a catástrofe social ameaça: os imigrantes sem recursos, atraídos pela promessa de um
Eldorado, não param de chegar e se
amontoam em condições deploráveis
na favela do Beiradão.
Em 1979, é a agonia. “A segunda crise do petróleo fez explodir o preço do
bruto e as taxas de juros, prossegue
Lucio Flavio Pinto. Ludwig havia cometido dois erros: ele havia contraído
dívidas pesadas para levantar Jari e
havia também baseado seu projeto
em uma tecnologia muito dependente
do petróleo”. Enquanto isso, não só por
que o governo parecia dividido pela
questão, o vento começava a virar em
Brasília, onde o apoio ao homem de
negócios americano se tonara insustentável. Quando o regime implanta
uma política de “abertura” em prelúdio
a um retorno gradual à democracia,
NOVELA – OUTONO 2011
as pessoas começam a falar. Para a
oposição de esquerda, Jari é o alvo
ideal. Ela enxerga no projeto o símbolo da abertura da Amazônia ao
capital estrangeiro, “uma ameaça à
soberania nacional”. A oposição atinge o governo por meio de Jari. Ele
não concedeu privilégios a uma empresa que monopoliza grandes áreas
em um país onde – ainda hoje – a
reforma agrária não foi feita? Quem
desmatou nada mais que cento e
vinte mil hectares? Quem utilizou intermediários obscuros, eles mesmos
acusados de empregar ilegalmente e
explorar vergonhosamente a mão de
obra sazonal (cinco mil homens empregados nas tarefas de preparação
da terra)? Pior, Ludwig confessava
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POR UM REAL A MAIS
claramente não ter nada a ver com o
Beiradão. No entanto, de 10% a 15%
de seus empregados ali se encontravam por causa da falta de acomodações suficientes em Monte Dourado.
O blackout midiática não ajuda em
nada. Daniel Ludwig não gostava da
imprensa. Jari recusa a se comunicar,
dando liberdade aos rumores mais
insanos. Esta campanha “difamatória”, exalta-se Euclides Reckziegel, de
tom xenofóbico, é orquestrada pela
esquerda, mas também pela corrente
ultranacionalista do exército assombrada pela “internacionalização” da
Amazônia.
Ludwig apareceria então como um
traficante de ouro de madeiras nobres, um “pirata”. E Jari, onde numerosos cargos são ocupados por americanos, seria um “cisto cultural”, um
“enclave imperialista” que abrigaria
até um campo de treinamento de soldados americanos! Resumindo, uma
ameaça à segurança nacional. Os
serviços secretos infiltram um agente que se faz passar por engenheiro
agrônomo. Os oficiais do exercitam
multiplicam as incursões. Eles não
achariam nada, apenas uma bandeira brasileira hasteada no aeroporto
de Monte Dourado, o que lhes confortaria em suas suspeitas...
Em 1980 a sorte de Daniel K. Ludwig
estava selada. O Estado cria o Gebam (Grupo executivo para o baixo
Amazonas) para afirmar oficialmente
sua presença na região (na verdade,
para pressionar Jari). Sua primeira
medida, aliás, não tem outra função
que a de questionar a validade do título das terras da empresa. O chefe
do Gebam, o contra-almirante Roberto Gama e Silva, é um radical do
exército. Gama e Silva não esconde
isso de ninguém: ele não quer empresas estrangeiras nesta região “estratégica” situada perto de fronteiras
internacionais (com o Suriname e a
Guiana Francesa). O contra-almirante está certo de sua motivação:
a região, repete incessantemente, é
ameaçada há muito tempo. Ela teria
sido até cogitada para a implantação
do estado de Israel...
Outrora bastante acolhedora, Brasília
adota a postura de não atender às demandas de seu antigo protegido. Não
à construção de uma central hidroelétrica, embora necessária para reduzir a fatura energética de Jari. Não
à importação sem impostos de uma
segunda usina de celulose – para dobrar a produção e tentar assim rentabilizar o negócio. Não à exploração de
uma mina de bauxita na região. O governo se recusa igualmente a assumir
os custos com infraestrutura em Jari,
dos quais Ludwig não consegue mais
dar conta. “‘Mas você não disse que
faria tudo sozinho?’ lhe responderam”
conta Euclides Reckziegel.
Eis o Brasil preso na armadilha de
suas próprias contradições. Pois,
além de sua nacionalidade, é porque
ele havia feito tudo sozinho durante
treze anos que Ludwig não inspirava
confiança. “As empresas estrangeiras
inquietavam menos que as pessoas
físicas, explica Lucio Flavio Pinto. Ludwig era uma pessoa física e, além de
tudo, instalado na foz do Amazonas...
as autoridades brasileiras tinham dificuldade em acreditar que um único
homem, por mais rico que fosse, pudesse levantar um projeto de tamanha
amplitude. Eles viam a mão de Washington, e até mesmo da CIA por trás
de Ludwig, tantos contatos ele tinha
no mundo da política. Após a derrota do Japão, o general MacArthur lhe
havia cedido canteiros navais no país”.
Um observador que exigiu anonimato
transmite outra explicação: “A Amazônia é pobre, ressalta. Assim, quando
uma grande empresa lá se instala, os
poderes locais tentam criar dificuldades para obrigá-la a pagar. Ludwig
recusou a se submeter à corrupção,
isso contribuiu para sua diabolização”.
Em 1982, Daniel K. Ludwig jogou a
tolha. Nesta etapa, ele já havia enterrado setecentos e cinquenta milhões
de dólares na Amazônia, sendo 60%
de seu próprio bolso. “Ele não queria mais investir em fundos perdidos,
conta Euclides Reckziegel. O governo
lhe havia atado as mãos não aprovando os projetos que poderiam tornar
Jari viável”. Lucio Flavio Pinto se recusa em vê-lo no papel de vítima.
“Ludwig era um homem astuto, ressalta o jornalista. Depois da segunda
crise do petróleo ele viu que sua dívida se tornara impagável. Ele procurou
lavar as mãos reclamando
novos privilégios que sabia Mas você
que não seriam aceitos”.
disse que
Com sua partida, o Brasil,
que havia sido fiador de sozinho?
seus empréstimos, teve que
assumir por aproximadamente 300
milhões de dólares de dívida. “Mesmo
seu próprio país não teria consentido”,
acrescenta Pinto. Em troca, Ludwig
partiu sem ganhar um centavo. Ele
morreu em 1992, deixando o resto de
sua fortuna ao instituto de luta contra
o câncer que leva seu nome, em Zurique.
Daniel K. Ludwig não foi o primeiro
americano a se aventurar na Amazônia. No começo dos anos trinta,
Henry Ford abriu, naquilo que ficaria
conhecido como Fordlândia, no Pará,
plantações de seringueiras para garantir seu abastecimento de borracha.
O caso também acabou em fracasso.
“Jari, como a Fordlândia, resultaram
de uma falta de conhecimento da
Amazônia, retoma Lucio Flavio Pinto.
Havia ali uma visão colonialista segundo a qual com capital e tecnologia
era possível domar a floresta”.
Brasília não queria mais uma Fordlândia, abandonada após a partida de
seu fundador e retomada pela floresta. “Isso levaria a pensar que a política
de desenvolvimento da Amazônia era
um fracasso”. Argumenta o ministro do
plano na época, Antonio Delfim Netto.
Além disso, o que fazer daqueles que
dependiam, diretamente ou não, das
atividades de Jari? Não optando pela
nacionalização, temendo o clientelismo
e a corrupção, o governo obrigou um
NOVELA – OUTONO 2011
grupo de patrões brasileiros a retomar
Jari, em nome do “interesse nacional”.
Sem resultado. A administração brasileira não conseguiu reerguer o negócio.
não
faria tudo
Em 2000, Sergio Amoroso, chefe do
grupo Orsa, compra o projeto de Daniel K. Ludwig (“a melhor infraestrutura de toda a Amazônia”, justificaria então) por um real simbólico. Em troca,
assume uma dívida que crescera no
entretempo e atingia quatrocentos e
quinze milhões de dólares.
O sucessor de Ludwig ambicionava
reescrever a história de Jari. Sergio
Amoroso afirma já ter investido duzentos e cinquenta milhões de dólares nesta tentativa de ressurreição e
conta dobrar o investimento para se
tornar competitivo. Porque, apesar a
indulgência de seus credores – essencialmente bancos públicos – que
consentiram aliviar a dívida quase
pela metade, a empreendimento ainda não é rentável. Mas o industrial
paulista não tem pressa: “na Amazônia, o capital precisa ser paciente”.
A falta de infraestrutura encarece
custos de produção. A mítica
Na Amazônia, o os
usina de massa para papel ainda
capital precisa ser está lá, sustentada por suas quapaciente renta mil estacas de madeira, mas
ela envelheceu. A fatura de energia (novamente ela) é muito pesada. Trinta anos após Daniel K. Ludwig,
o estado acaba de dar seu aval, em
junho de 2011, para a construção da
central hidroelétrica... Por outro lado,
por razões “ideológicas”, acusa Amoroso, a propriedade da terra ainda não
Duzentos e vinte mil
euros.
está totalmente regularizada. “É como
se não pudesse haver propriedades
tão grandes”. Sem dúvida uma alusão
à esquerda que hoje governa o Brasil.
Sergio Amoroso se toma por um industrial esclarecido. Ele apresenta
Jari como “o maior laboratório ambiental e social do mundo”. “No tempo
de Ludwig, havia a cultura do desmatamento, explica. Hoje, tentamos realizar negócios preservando a floresta e
nos preocupando com o destino das
comunidades locais”.
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POR UM REAL A MAIS
O grupo Orsa pratica a silvicultura
sobre a metade dos 1,1 milhões de
hectares de floresta virgem preservados pelo pioneiro americano e planta
o eucalipto (para produção de celulose) em uma parte dos cento e vinte mil
hectares que ele havia desmatado. O
empreendimento obteve o certificado
de desenvolvimento durável do Forest Stewardship council, prezado por
seus principais mercados de exportação, a Europa e os Estados Unidos. “O
mundo deve nos ajudar a preservar a
Amazônia pagando um preço justo pelos produtos ecologicamente corretos
provenientes da floresta, prega Amoroso. Caso contrário, desaparecerá”.
A Orsa, por sua vez, tenta contribuir
ajudando as populações rurais que vivem na floresta do Jari a aumentarem
sua renda, para dissuadi-las de cortar
as árvores. A empresa ensina a estas famílias, que vivem da colheita de
produtos florestais ou de culturas de
alimentos, a aumentarem sua produtividade e compra sua produção principalmente para seu restaurante, que
serve seis mil refeições por dia a seus
três mil e quinhentos empregados.
O programa teria multiplicado por dez a
renda mensal dos beneficiários. O objetivo é estendê-lo ao conjunto de 15 mil
trabalhadores rurais da região. A Orsa
encontra mais dificuldades em Laranjal
do Jari, o antigo Beiradão. Se Laranjal
tornou-se um município completo, ele
continua sendo um polo de pobreza e
prostituição infantil. “Nós tentamos uma
parceria social com a prefeitura, mas
ela não fez a sua parte do trabalho,
suspira Amoroso. Investimos quinhentos mil reais2 para nada”. O empresário
lamenta que os poderes públicos da
região, assim como a população local
vejam nele apenas uma “caixa registradora”. “Ludwig criou esta cultura de injetar muito dinheiro, diz Amoroso. Então
as pessoas pensam que nós devemos
garantir tudo: saúde, saneamento básico, educação... isso é tarefa do Estado,
um Estado infelizmente muito ausente.
Nenhuma empresa pode resolver sozinha os problemas sociais”.
Para Roberto Smeraldi, diretor da an- disseminar o progresso, constata: “os
tena brasileira da ONG Os amigos da militares só desenvolveram enclaves,
terra, o balanço social da Orsa é “um sobretudo ligados aos interesses esdos melhores exemplos que temos na trangeiros aos quais diziam se opor. O
Amazônia, sobretudo no que tange polo de Carajás é dedicado ao minério
a realidade da região”,
de ferro, o de Barcarena,
marcada pelo desmataao alumínio, mas é fora
mento que já consumiu
Brasil que estes proA Amazônia é o do
mais de 15% da parte
dutos de base são transbrasileira da floresta. lugar para onde o formados e que se cria a
“A Amazônia é o lugar Brasil envia seus mais-valia”. Em volta despara onde o Brasil mantes enclaves que formam
pobres
da seus pobres, retoma.
os territórios das empreEles permanecem posas, é só desolação. “Sebres porque nunca há
jam privados ou públicos,
uma política de desenvolvimento re- os grandes projetos que se estabelegional” para atender as necessidades cem na Amazônia produzem impactos
de uma população de vinte e quatro consideráveis que não são levados em
milhões de habitantes e especialmen- consideração”, Continua Roberto Smete dos aproximadamente oito milhões raldi: o afluxo de imigrantes pobres a
que vivem na floresta. O especialista regiões desprovidas de serviços púdefende um modelo em que a pes- blicos, favelização, disputas por terriquisa esteja a serviço da uma explo- tórios, acerto de contas... Como Jari
ração sustentável da biodiversidade na sua época, com o Beiradão. Como
local, a mais rica do mundo, em vez Jirau hoje, a barragem que a GDFda extração e das culturas predadoras -Suez constrói no estado de Rondônia.
de matérias-primas (madeira, soja, E como será amanhã sem dúvida em
bauxita...) em curso atualmente. Con- Belo Monte, outra barragem polêmica
sagrado pela ditadura, o modelo atual – um projeto herdado dos militares –
destruiu ecossistemas, violou os direi- que o governo de Dilma Rousseff, do
tos ancestrais dos índios, deslocou mi- partido dos trabalhadores, apressa-se
lhares de ribeirinhos... Sem conseguir a construir sobre o rio Xingu.
1978 – 1912
1927 – 1944
George Earl Church
Projeto iniciado em 1878,
concluído em 1912.
OS GRANDES CEMITÉRIOS
A VIA DA BORRACHA
1967 –
Henry Ford
Projeto iniciado em 1927,
abandonado em 1944.
1970 –
Daniel K. Ludwig
Projeto iniciado em 1967,
ainda em atividade.
Exército brasileiro
Projeto iniciado em 1970 pelo regime
militar, atualmente abandonado.
INDUSTRIAIS
FORDLÂNDIA
O PROJETO JARI
A TRANSAMAZÔNICA
Estrada de ferro na Amazônia.
Produção de borracha.
Produção de celulose e arroz.
Estrada que atravessa o Brasil de leste a oeste.
A Europa e os Estados Unidos continuam fazendo sua
revolução industrial. Eles precisam de borracha. Uma das
maiores regiões produtoras se encontra do outro lado do
mundo, no fundo do Brasil, perto da fronteira boliviana. Para
levar o produto até uma via navegável, é preciso atravessar
400 quilômetros de floresta amazônica. Um ex-coronel
americano se lança na empreitada. O projeto é interrompido
ao fim de 18 meses e já carrega profundas marcas de
fracasso: 500 mortos para 7 quilômetros de estrada de ferro,
1 navio perdido, e operários desaparecidos. No entanto, a
construção é retomada em 1907. A organização paramilitar
não impede que a morte apareça em uma região em que
a natureza e os índios se mostram particularmente nãohospitaleiros. Mas a estrada de ferro é concluída, apesar de
tudo, em 1912. Tarde demais. No meio tempo, um cientista
britânico conseguira enviar clandestinamente cerca de 70.000
sementes de seringueira ao Kew Gardens de Londres. Os
brotos são reproduzidos e, depois de alguns esforços, as
árvores se adaptaram ao clima asiático. A corrida da borracha
sul-americana desmorona. A estrada de ferro nunca utilizada.
A borracha asiática (malaia) está monopolizada. Os
britânicos fixam os preços. Henry Ford, exaltado, lembrase que a seringueira é proveniente da floresta amazônica.
Ele compra um imenso terreno de mais de 10.000km2 e
instala o sonho americano sobre um solo pobre: casas,
igrejas, golfe, lanchonetes de hambúrgueres, tudo, sem
álcool e sem tabaco. Algumas revoltas surgirão desse
paternalismo civilizador: “nós queremos carne seca e
viradinho!” gritam os operários. A alguns quilômetros, a
“ilha da inocência” fora da proibição fordiana, acolhe os
insatisfeitos. O regime alimentar muda, mas a produção
de borracha permanece fraca. As seringueiras, plantadas
muito próximas umas das outras são vítimas de uma
doença, a dothidela ulei. Em 1945, Ford abandona sua
cidade no momento em que os Estados Unidos resolvem
relançar a borracha brasileira – com os japoneses
controlando o mercado asiático.
Autodidata tão discreto quanto megalomaníaco, Daniel
K. Ludwig prevê nos anos cinquenta que faltarão papel e
alimento no mundo. Incentivado por militares brasileiros,
ele compra às margens do rio Jari um território do tamanho
de meia Bélgica. O empresário traz do Japão uma central
termoelétrica e uma usina flutuante de massa para papel.
Constrói 5.000 quilômetros de estradas, 70 quilômetros
de estradas de ferro, um porto e um aeroporto; derruba as
árvores, planta arroz, inaugura uma serraria, criações de
boi; constrói estradas e caminhos de ferro. O projeto é um
fracasso. Ludwig é expulso por uma campanha nacionalista
e capitula, mas Jari tornara-se muito grande para ser
abandonada. Após ser vendido para um consórcio brasileiro,
o grupo Orsa compra Jari por um real simbólico. Segundo
o Jornalista Ricardo Uztarroz, “Jari parece confirmar a lei
segundo a qual a Amazônia é exuberante, contanto que o
homem não se intrometa”.
Dominar a Amazônia é um velho sonho dos militares
brasileiros. Fronteira da América do Sul, é preciso conquistar
e domar essa “terra sem homens para os homens sem
terra”. Mas na época, faltam recursos. A maioria dos 5.700
quilômetros não é asfaltada. Na estação das chuvas, de
outubro a março, passa-se uma semana sem que se veja
um veículo. Algumas crateras podem engolir um caminhão.
Perto de Itaituba, em pleno coração da Amazônia, o que
sobra da estrada está reduzido a 2 metros de largura.
Não entanto, a floresta não a retomou. De vez em quando
algumas de suas partes são reformadas e nos trechos
transitáveis o homem se instala e a floresta recua. Sem
dúvidas ainda serão precisas algumas décadas antes que
a transamazônica mereça seu nome. No momento, ela
pertence aos aventureiros.
“A vida de um homem colocada em
dormentes”, segunda a lenda, nenhum trem
chegou a circular na estrada de ferro.
4 cerca de 20 bilhões de dólares. 750
toneladas de borracha por 10 anos de
esforços.
um terreno comprado por 3 milhões
de dólares e vendido por um real
simbólico.
4 milhões de dólares investidos por um
projeto abandonado.
CUSTO
CUSTO
CUSTO
CUSTO
MEGALOMANIA
MEGALOMANIA
MEGALOMANIA
MEGALOMANIA
IMPACTO
AMBIENTAL
IMPACTO
AMBIENTAL
IMPACTO
AMBIENTAL
IMPACTO
AMBIENTAL
“Nós vamos mostrar um pouco do que é a floresta virgem, os rios gigantes, o mato, a selva, o sol,
os trópicos, o homem branco que desembarca nisso tudo, doma a região e a transforma em sua nova pátria.”
Blaise Cendrars, Trop c’est Trop

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