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© Copyright 2012, Flávio Marcus da Silva.
Flávio Marcus da Silva
Capa: Kythão
1ª edição
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Todos os direitos reservados.
Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida - em
qualquer meio ou forma -, nem apropriada e estocada sem a expressa
autorização de Flávio Marcus da Silva.
O MISTÉRIO DA
CAIXA-PRETA
E OUTRAS HISTÓRIAS
Virtualbooks
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O soar da Trombeta / 128
ÍNDICE
Quatro / 132
Felizes acima do peso / 05
Iogurte com aveia / 136
Olho gordo / 09
No clube de escritores / 140
Amar Deus / 14
No avesso de mim / 144
Realidade gritante / 19
Subindo na vida / 146
Muito esquisito / 22
Bicho feroz / 149
Pôr do sol no campo / 27
Antes do fim / 153
A pescaria / 31
Felicidade / 36
Descendo do salto / 41
Soberba / 46
Pombos / 50
Flores brancas na noite escura da alma / 54
Labaredas na Escuridão / 60
Na voz de Amália / 66
Partir / 72
Café com ingleses / 77
O mistério da caixa-preta / 84
O sol então brilhou mais forte / 96
Outro caminho / 101
Não foi preciso matar ninguém / 105
Para ter certeza / 111
Das profundezas / 118
Comadre seca / 124
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Felizes acima do peso
Na festinha de aniversário da filha de um conhecido advogado
na cidade, o jovem professor e sua esposa dividem a mesa com
um casal de amigos. Eles não têm filhos, mas vieram assim
mesmo, por vir. Para cumprir o social.
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charme a mais, tornando-o até mais bonito e sexy. Mas sua
mulher não concorda com isso de jeito nenhum. Quer vê-lo
magro, sem barriga, sem bunda, sem coxa, sem aquele
harmonioso preenchimento de gordura que disfarça os ossos
salientes do rosto, tornando sua face mais redonda – e mais
atraente, na opinião das colegas. Quer vê-lo na balança digital
do quarto todos os dias, anotando o peso, calculando o índice
de massa corporal e as calorias ingeridas.
O prato com coxinhas, empadas e canapés acaba de chegar.
As crianças brincam no parquinho longe dos pais, que nas
dezenas de mesas espalhadas pelo enorme salão colorido
conversam ao som de Xuxa e Balão Mágico.
O professor olha para a sua linda e jovem esposa – os cabelos
negros, lisos e brilhantes, a pele clara, de uma palidez de conto
de fadas – e sente no peito uma dor difícil de explicar, porque
não dói: algo como uma nuvem densa e fria, quase gelada,
preenchendo os espaços entre o coração e os pulmões, indo
até a garganta e voltando, indo e voltando, lentamente.
A caminhada é um ritual diário sagrado na vida do casal. Pelo
menos para a mulher. Porque para ele é uma tortura das mais
difíceis de suportar. Ele simplesmente odeia cada segundo
passado na avenida, onde caminham todos os dias, faça chuva,
faça sol, morra parente – morra quem quer que seja –, acabe o
mundo: eles estão lá, no mesmo ritmo, a passos largos,
rápidos, em silêncio. Um silêncio pesado e triste que ele
preenche conversando baixinho consigo mesmo, preparando
aulas, imaginando-se longe dali, em qualquer outro lugar,
comendo um pastel, um crepe ou uma torta de limão.
Mas, como eu disse, o pratinho com coxinhas, empadas e
canapés acaba de chegar.
É a angústia.
A esposa não conversa. Observa os amigos do marido com
desprezo. Não sabe o que está fazendo ali, nem por que está
casada com um professor pobre e acima do peso. Justo ela,
que é tão magra, linda e saudável, e ainda por cima de estirpe
nobre, pois seu pai, embora falido, é tataraneto do Marquês de
Itamaracá.
Na opinião de algumas colegas de trabalho do jovem professor,
aquela barriga levemente inflada esticando a camisa de malha
tamanho M, que a esposa insiste em fazê-lo vestir (quando
está claro para todos que a G é a única possibilidade), é um
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Com um olhar fulminante, a esposa faz o marido se lembrar do
pacto selado entre eles há duas semanas: nada de gordura,
nada de fritura e nada de açúcar. Discretamente ela lhe faz um
sinal com a mão, mostrando-lhe a bolsa de couro que ela traz
no colo, onde duas barras de cereal se encontram sequinhas,
durinhas, com seu gostinho inconfundível de capim seco. Como
é sábado, os nomes dos sabores podem variar: trufa e torta de
morango (mas no fundo é tudo a mesma coisa).
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O combinado era que, quando a fome apertasse, ele pegaria
discretamente uma das barras e se dirigiria ao banheiro para
comê-la. Simples e prático.
Mas nesse momento a nuvem densa e fria que cresce em seu
peito fica mais pesada e escura (de um cinza quase preto),
cheia de ódio e desilusão. E nela surgem raios e relâmpagos,
que aos poucos vão quebrando a crosta que serve de fachada
para esse casamento infeliz, sacudindo a alma faminta de vida
desse jovem quase gordo.
E ele toma uma decisão.
Olha desafiador para a esposa (que o encara com
determinação e frieza) e lentamente pega uma coxinha. Não é
daquelas coxinhas vagabundas, frias e emborrachadas, que
viram uma pasta sem gosto antes mesmo de se misturarem à
saliva. Não. É coxinha frita na hora, firme, sequinha por fora,
com recheio abundante de frango e catupiry.
Ele dá a primeira mordida. Sente seus dentes quebrarem a fina
capa crocante e penetrarem lentamente a maciez tenra da
deliciosa massa recheada. E nesse momento de sublime
deleite, um pouco de catupiry escorre pelo seu queixo. Ele sorri
e passa o dedo no creme, que leva à boca com sofreguidão,
sorvendo tudo com um estalar de língua molhada que faz a
esposa tremer de indignação e ódio no mais íntimo do seu ser.
Os olhos da mulher estão em chamas.
Mas ele continua.
Um canapé inteiro desaparece na sua boca de uma só vez. E
outro. E mais outro. Mais uma coxinha. Uma empada. Um copo
de coca-cola bem gelada (da legítima, com açúcar). E outro. E
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mais outro. E mais uma coxinha. E depois dos parabéns, uma
mão cheia de doces, sob o olhar atônito da esposa (que não
acredita no que vê). Do bolo ele come dois pedaços,
saboreando-os com uma alegria de dar gosto.
O olhar resoluto e frio da esposa diz tudo. Ela se levanta e, sem
se despedir de ninguém, desaparece da festa.
Ao chegar em casa, o professor descobre que a mulher foi
embora levando todas as suas roupas e objetos pessoais. Dois
dias depois ele recebe a visita de um advogado, que lhe explica
todos os detalhes do divórcio. Ele aceita tudo sem reclamar.
Finalmente está livre.
O divórcio deixa-o mais pobre e um pouco mais gordo, mas
muito mais feliz.
Três semanas depois ele começa a namorar a nova professora
de História do colégio, uma mulata linda de morrer, cheia de
carne para pegar e de amor para dar.
Comem de tudo, reservando as guloseimas mais calóricas para
os finais de semana, e exercitam-se na cama quase todas as
noites, o que ajuda a manter o excesso de peso num nível
aceitável.
Ele adora suas ancas largas, sua bunda redonda e volumosa e
até suas celulites.
Formam um casal perfeito...
Acima do peso...
Mas felizes...
Muito felizes.
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E quando elas descobriram o Facebook?
Olho gordo
Ah, o Facebook...
Elas eram amigas, mas morriam de inveja uma da outra. Uma
inveja febril, dolorosa e intensa, mas que elas sabiam disfarçar
muito bem. (É que a maioria das pessoas não consegue
perceber o mal no brilho do olhar).
Como era bom se exibir, colecionar amigos, gente curtindo,
comentando, e a outra assistindo a tudo, morta de inveja.
Eram jovens, lindas e de um nível social elevadíssimo, muito
acima do que os economistas costumam chamar de Classe A:
um mundo à parte, cercado por muralhas, grades, guaritas e
seguranças armados 24 horas.
Na opinião dos psicólogos, quem utiliza esse recurso visando a
criar uma imagem positiva de si para o mundo, embora diga
que o que sente é simplesmente prazer em compartilhar com
os amigos os momentos bons da vida, no fundo o que lhe move
o espírito é um desejo ardente de causar inveja no outro, de se
destacar, de aparecer.
Tinham quase a mesma idade. Eram casadas com dois irmãos
gêmeos, jovens como elas, herdeiros do mesmo império: um
enorme conglomerado de indústrias espalhadas pelo mundo
todo. Era dinheiro que não acabava mais.
Elas eram desse tipo, mas jogavam num nível muito mais alto
que o dos simples mortais.
E a inveja...
Uma inveja que ardia por dentro, apesar dos sorrisos
encantadores, que vinham sempre acompanhados de elogios,
abraços e beijinhos: “Você está linda”, “Que cabelo!”, “Onde
você comprou o vestido?”. Mas por dentro era pura brasa
ardente: fogo azul, frio, queimando, espetando, como farpas
incandescentes.
Elas procuravam sempre dar destaque aos detalhes que
realçavam e valorizavam uma em detrimento da outra: um
vestido, uma viagem, um cabelo, uma festa, uma façanha, e
faziam questão de exibi-los com acinte, sobretudo onde a outra
se encontrava, ou pelo menos fazer a informação chegar a ela
da forma mais ostentosa possível.
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Enquanto nas zonas baixas da arraia-miúda pululavam viagens
a Castelhanos, Rio das Ostras, Cabo Frio e Caldas Novas, na
camada onde as duas navegavam, as fotos revelavam nada
menos que restaurantes sofisticados em Paris, Praga, Genebra
e Nova York; cruzeiros de luxo no Mar Mediterrâneo e no
Caribe; cassinos em Las Vegas e Monte Carlo. E elas postavam
as fotos como jogavam cartas numa partida de poker: “Cubra
essa agora, vagabunda”. “Agora eu quero ver”. E as cartas
eram lançadas na mesa: viagens, festas, jóias e também amigos
importantes curtindo suas futilidades de luxo, como
governadores, ministros, grandes empresários e artistas de
renome: um puxa-saquismo de alto nível, requintado, sem
erros de português. Bastava uma delas postar “Dudu me deu
hoje um relógio cravejado de diamantes” para que um bando
imenso de puxa-sacos curtisse a foto, alguns chegando até a
comentá-la!
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O interessante é que as duas curtiam as postagens uma da
outra. Algumas vezes elas hesitavam, indecisas, os olhos
faiscando de ódio, mas curtiam assim mesmo, para mostrar
amizade. E quando já tinham uma carta guardada na manga,
comentavam felizes as vantagens que a outra contava, mas
sabendo que em breve o jogo viraria.
Até que um dia uma delas postou: “Estou grávida”. Para a
outra, que nunca tinha pensado em ter filhos, foi quase o fim
do mundo. O marido foi convencido naquela noite mesmo a
engravidá-la, porque se para a outra estar grávida era uma
vantagem, ela também tinha que engravidar, mesmo que no
fundo não desejasse isso. Muito mais fácil seria destacar as
inúmeras desvantagens de ter filhos, dizer a verdade: “Eu e
meu marido não queremos ter filhos por isso e aquilo”. Mas
não. Ela optou por engravidar também, com medo das pessoas
acharem que ela afirmava não querer ter filhos porque não
podia ter, por ser estéril.
Nunca, jamais ela poderia ser estéril!
Mas era.
Eles tentaram, tentaram, tentaram e nada. Consultaram um
especialista renomado nos Estados Unidos e receberam o
diagnóstico com lágrimas nos olhos: ambos eram estéreis. O
marido não tinha nenhum espermatozóide aproveitável, e ela
tinha o útero completamente atrofiado e seco.
Enquanto isso a outra postava as fotos de sua bela gravidez
planejada, desejada, esperada. Cada etapa vivida com uma
alegria inexprimível, o marido feliz, junto dela, o quartinho do
bebê sendo montado aos poucos, com tudo do bom e do
melhor, e a barriga crescendo, o corpo se transformando... E
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para ela nada mais importava, nem as fotos que a amiga
colocava diariamente em seu álbum mostrando cenas dela e do
marido escalando montanhas, saltando de paraquedas,
exibindo corpos perfeitos – coisas que uma mulher grávida não
poderia fazer, mas que, para ela, com um filho crescendo na
barriga, plena de uma felicidade que só uma mãe pode sentir,
não tinham a menor importância.
E aquela indiferença da futura mãe fazia com que a inveja
doentia da outra ganhasse proporções terríveis. Brasas em
chamas. Labaredas que ardiam e cresciam, tomando conta dela
toda, saindo pelos olhos em faíscas que brilhavam com
intensidade (mas que pouquíssimas pessoas conseguiam
perceber).
No sétimo mês de gravidez as duas se encontraram numa
festinha boba, na casa de um amigo. Estava lá um rapaz que
não era conhecido de nenhum dos convidados, um professor
particular de matemática que havia conseguido um verdadeiro
milagre na escola com o filho do dono da casa.
Ele estava sentado sozinho no sofá, bebendo uma taça de
vinho tinto, a cabeça vazia de pensamentos, completamente
em paz consigo mesmo. Mas assim que a mulher grávida
entrou no apartamento, ele sentiu uma forte energia negativa
concentrando-se aos poucos no bebê que a jovem carregava
orgulhosa e feliz na barriga.
Ele sentia essas coisas desde pequeno. E quando as sentia,
rezava. Rezava até passar. Tinha muita fé em Santa Teresa de
Ávila. Mas aquilo... Aquilo era demais...
Ele então procurou a fonte da energia e levou um susto ao
perceber um brilho estranho e forte nos olhos da mulher que,
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dentre todas as pessoas que estavam na festa, parecia ser a
mais feliz com a chegada da futura mamãe. Ela sorria e dizia
“Que linda!”, “Que barriga linda!”, mas seus olhos estavam em
chamas e cresciam, cresciam... Ninguém via isso, só ele. E a
felicidade da jovem mãe só fazia aumentar a força do mal que
aos poucos envolvia a sua barriga.
Durante toda a festa, os olhos vivos de carne e sangue da
invejosa poucas vezes se dirigiram à amiga. Mas seus olhos do
espírito, gordos, em chamas, que só o jovem professor
conseguia ver, atravessavam móveis e paredes e não se
desgrudavam da bela barriga cheia de vida nova se fazendo,
surgindo, crescendo.
Até que a mulher grávida não aguentou e caiu no chão, com
fortes dores, gritando. Todos foram até ela para socorrê-la,
inclusive a amiga, que demonstrava preocupação e queria
ajudar – Tragam isso, tragam aquilo, vai ficar tudo bem,
querida. Mas isso na máscara visível, na encenação, porque o
professor estava de olho nela e viu. Viu seus olhos crescerem
quase do tamanho do próprio rosto, e aquela energia escura
(ele viu!), tão densa que ele quase podia tocá-la e enrolá-la no
braço, como um tecido grosso, molhado e frio.
Então ele disse, com as mãos na barriga da mulher caída:
“Todos vocês, rezem comigo”. E de seus lábios saiu uma bela
oração de Santa Teresa de Ávila. Rezou com muita fé, e foi
seguido por todos, até pela invejosa, que aos poucos foi
perdendo a força, seus olhos se encolhendo, voltando para as
órbitas, e a dor na barriga da jovem grávida foi passando,
passando, até desaparecer.
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Amar Deus
Lucas é casado com Sofia, uma jovem alegre e calma, de uma
beleza simples, quase feia. (Mas como brilham seus olhos de
amor e generosidade! Como é iluminada!).
Lucas é professor de Literatura e escreve uma tese sobre
Clarice Lispector. É jovem também, mas tem se descuidado um
pouco de seu aspecto ultimamente, o que o faz parecer mais
velho e também mais feio do que realmente é. Mas é um bom
rapaz, humilde, quase sem ambições, o que faz dele um alvo
privilegiado para as cobranças dos parentes, sempre prontos a
chamá-lo de preguiçoso quando percebem que ainda não
trocou de carro, não viajou para este ou aquele balneário da
moda ou não comprou uma televisão nova (daquelas que todo
o mundo tem, menos ele).
É que Lucas só trabalha em um colégio, no turno da manhã, e
não dá muitas aulas, porque quer se dedicar mais à sua tese e
ao trabalho voluntário que realiza no Hospital do Câncer,
contando histórias para as crianças.
Lucas é apaixonado pela obra de Clarice Lispector, e escreve
uma tese sobre ela por puro prazer, sem nenhuma ambição
intelectual ou vontade de ingressar como professor em uma
universidade.
Na verdade, Lucas quer ser escritor de ficção. Quer escrever
contos e romances de aventura. Já tem algumas histórias
concluídas, mas elas ficam guardadas, em segredo.
Só duas pessoas sabem desse seu desejo: sua esposa Sofia (que
o alimenta com carinho, para que um dia floresça na forma de
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um belo livro publicado) e um jovem chamado Oscar, filho de
um grande amigo seu, um poeta, já falecido.
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Lucas sabe que se não interromper a leitura agora não chegará
a tempo de assistir à apresentação do filho.
Oscar é cego desde os cinco anos. Hoje, aos dezoito, sentado
sozinho na varanda da sua casa, aguarda a chegada de Lucas,
que lê para ele todos os sábados.
Oscar estremece a cada frase lida pelo amigo, tocado pela
força e beleza do texto, que ele sente vibrar fundo em sua
alma. Chora por dentro, segurando junto ao peito o último livro
de poemas do pai, entregue hoje cedo pela editora.
Oscar conhece Braille, que aprendeu ainda criança, e está
sempre ouvindo algum CD com romances e contos gravados,
mas gosta muito das leituras de Lucas, que além de ter uma
presença reconfortante, dá vida aos textos de uma maneira
extraordinária.
(É que Lucas lê com amor, sem querer nada em troca).
Oscar está sozinho com Lucas.
Enquanto lê, Lucas segura a mão gelada e trêmula do amigo,
esforçando-se para não perder a concentração.
A mãe de Oscar disse que chegaria por volta de cinco e quinze,
mas até agora nada.
Oscar é um rapaz solitário e triste. Faz tratamento para
depressão. E segundo o psiquiatra que o trata, as leituras de
Lucas, todos os sábados, fazem muito bem a ele.
Gabriel é filho de Lucas e Sofia. Tem seis anos, é esperto,
inteligente, e hoje está muito feliz porque vai se apresentar no
sarau da escola, onde fará uma homenagem ao pai.
Lucas explicou a ele que não poderia assistir ao início do sarau,
pois estaria na casa de Oscar, mas que chegaria a tempo para
ver a sua apresentação, às dezoito horas.
Lucas está agora na casa de Oscar, sentado numa confortável
poltrona de couro, lendo para ele “A paixão segundo G.H.”, de
Clarice.
Faltam quinze minutos para as dezoito horas.
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Lucas vai à cozinha e tenta ligar para a esposa, sem sucesso.
Com certeza o celular dela está desligado, pois o sarau já
começou. Volta para a sala e recomeça a leitura, ouvindo
dentro de si um apelo mudo para que ele não vá embora, para
que não deixe ali, no silêncio de uma leitura interrompida – de
um livro mágico e perturbador que não permite interrupções –,
um jovem cego, sozinho, mergulhado na escuridão da própria
dor.
E continua...
Sofremos por ter tão pouca fome, embora nossa pequena fome
já dê para sentirmos uma profunda falta do prazer que
teríamos se fôssemos de fome maior. O leite a gente só bebe o
quanto basta ao corpo, e da flor só vemos até onde vão os
olhos e a sua saciedade rasa. Quanto mais precisarmos, mais
Deus existe. Quanto mais pudermos, mais Deus teremos.
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E continua...
Chega em casa às oito da noite, levando um exemplar do
último livro de poemas de Amadeu Rodrigues, seu falecido
amigo: uma bela edição em capa dura, presente de Oscar.
Amadeu... O velho e querido Amadeu... Poeta solitário, homem
simples, que poucos viam e quase ninguém conhecia.
Lucas pensa no amigo com afeto, buscando na memória uma
imagem que o traga de volta, mas tudo que lhe vem é uma
alegria doce que se abre toda num sorriso.
De repente, Gabriel vem correndo do quarto, com os olhos
brilhando de alegria, e lhe dá um abraço apertado.
Sofia aparece logo em seguida e faz um sinal com o dedo,
pedindo silêncio ao marido.
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palco, o seu rosto. O SEU rosto, Lucas! Ele até sorriu e acenou
para o homem... Um desconhecido! Na hora eu achei estranho,
pensei que fosse para mim, mas vi que o homem acenou de
volta, sorrindo... O que foi?
Lucas pega o livro de poemas que está sobre a mesa. Abre-o na
página onde há uma foto do autor e pergunta: É ele? Olhe
bem...
Sim, diz Sofia espantada.Você o conhece?
Lucas sente um arrepio lhe percorrendo o corpo e seus olhos
se enchem de lágrimas – lágrimas de alegria e gratidão.
Este é o Amadeu, Sofia...
O velho e querido Amadeu...
Gabriel volta para o quarto e Sofia explica:
Ele viu você ao meu lado hoje no sarau, durante toda a
apresentação, e depois, no portão, não te encontrando,
perguntou onde você estava. Eu ia dizer que você não tinha ido
ao sarau, quando o homem que estava ao meu lado no
auditório, sentado onde você certamente estaria, apareceu do
nada e disse para o Gabriel, cheio de ternura, que você tinha
ido ajudar um amigo e que nos encontraria em casa. O homem
me olhou sorrindo, e aquele sorriso me calou...
Sofia se aproxima do marido, maravilhada, e continua:
Dá para acreditar, Lucas? O Gabriel viu no rosto daquele
homem simpático, sentado ao meu lado, a poucos metros do
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Realidade gritante
Sozinho em casa o mês inteiro lendo, escrevendo e vendo
filmes de terror. A família de férias no litoral. Nenhum
telefonema. Ninguém chamando no interfone. Solidão perfeita.
Era o que ele queria. Saía só para comprar comida e alugar
filmes. À tarde, por volta de cinco horas, fazia um café bem
forte. E assava pão de queijo. Que ele recheava com queijo
Gorgonzola e presunto de Parma. A televisão ficava ligada o
tempo todo. O som também. Só música clássica e jazz. À noite
ele preparava um talharim ‘al dente’. Cada dia com um molho
diferente, mas sempre com muito azeite. E bebia vinho tinto.
Vinho bom. Comprava garrafas pequenas, porque não
suportava vinho na geladeira. Só na sexta-feira ele abria uma
grande. E tinha que ser uma obra de arte. Categoria três
dígitos. Ou seja: jamais custar menos de cem reais. Comia
sobremesa todos os dias. Torta holandesa. Manjar. Pavê de
chocolate.
Tinha trinta e cinco anos. Saúde perfeita. Bonito. Muito
dinheiro. Era empresário, mas quem tocava o negócio era seu
irmão mais velho, liberando-o para fazer o que ele realmente
gostava: escrever.
Ele escrevia muito bem. Seus contos eram primorosos. A crítica
e o público gostavam.
Um mês inteiro... Que maravilha! Sem filhos. Sem esposa.
Podendo ouvir o seu jazz e comer o que quisesse. Sua mulher
detestava jazz e enchia o seu saco por causa da comida: “Sua
barriga está crescendo. Não está na hora de maneirar um
pouco, querido?”. Mas ele nem ligava. Comia escondido. Fazia
o que queria.
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Um mês sozinho... Puro prazer. Ninguém para amolá-lo.
Andava pela casa de cueca, pelado, do jeito que lhe desse na
telha. Revia seus filmes preferidos: “A Morte do Demônio”, “A
Hora do Espanto”, “Cemitério Maldito”, “O Massacre da Serra
Elétrica”. Lia muito também: Tolstoi, Poe, Agatha Christie,
Stephen King. Ia dormir às cinco da manhã. E quando acordava,
por volta de duas da tarde, a empregada já tinha arrumado
tudo e deixado o almoço prontinho para ele no forno. O
cardápio variava. Salmão grelhado ao molho branco. Lulas.
Camarão. Lagosta. Filé ao molho madeira. Moqueca de peixe.
Foi aí que ele acordou.
O despertador buzinava e piscava insistentemente. Seis da
manhã. Acordou assustado. Olhou para o lado e viu a esposa
dormindo. Uma mulher enorme e feia. Na verdade ela não era
feia. Era descuidada. Desleixada. Por isso ficava feia.
O homem esfregou os olhos remelentos e viu de novo. Colocou
as mãos pesadas na frente do rosto. “Este sou eu”, disse para
crer. A realidade pulsante. Pum, pum, pum... Paredes
descascando. Goteira na sala. Privada entupida. Mulher feia.
Dor nas juntas. Ele não tinha trinta e cinco anos, mas
cinquenta. Tinha que trabalhar para sustentar a família. Era
assistente de não sei o quê numa empresa onde quase
ninguém sabia o seu nome. Se fosse demitido, ninguém nem ia
notar. Mas tinha que estar lá em menos de uma hora. Por isso
o despertador. Seis da manhã. Buzinando, buzinando...
E ele foi se lembrando de tudo. Era diabético. Não podia beber
vinho francês nem comer queijo Gorgonzola. Tinha que estar
sempre fazendo dieta. Mesmo assim era gordo. E feio. Não era
só desleixo. Era feio mesmo. Tinha três filhos adolescentes que
só sabiam cobrar e reclamar. Sobretudo reclamar: “Aqui em
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casa não tem nada”, “Que pobreza”. E ele não estava de férias.
Nem de folga. Era segunda-feira. Mês de março. Chovia muito
lá fora. Os motoristas de ônibus estavam em greve. Ele não
tinha carro.
O despertador continuava buzinando. E o homem sentado na
cama. A barriga enorme. O reumatismo latejando nos joelhos.
A mulher roncava. De repente ela se virou na cama e peidou.
Um peido alto e fedido.
A mulher do sonho era mais nova. Mais bonita. Ele também era
mais bonito. Tinha saúde. Dinheiro. Podia comer e beber o que
quisesse.
Mas a realidade gritava “Acorda, desgraçado”. O despertador
pi, pi, pi, pi, pi...
Ele gostava de ler e escrever. Mas não podia. Tinha que
trabalhar, trabalhar. Um trabalho detestável. Humilhante. Para
pagar as contas. O aluguel. As roupas de marca dos filhos. As
baladas. As festas de aparência.
“E a aposentadoria que não chega, meu Deus!”, suspirou aflito.
A mulher peidou de novo e gritou “Desliga essa merda!”.
Ele se levantou “ai, ai, ai”. Foi ao banheiro, lavou o rosto,
olhou-se no espelho...
E chorou.
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Muito esquisito
A vizinhança não gostava dele. Achava-o muito esquisito. Era
um jovem calado, magro, de olhar mortiço e pele clara. Andava
pelas ruas do bairro quase sempre de mãos dadas com a filha
de seis anos, uma cópia em miniatura do pai, de quem herdara,
além dos traços tristes e o olhar perdido, a timidez e o medo
das pessoas.
A esposa era uma professora primária, e ele, um escritor. Mas
ninguém conhecia seus livros – o que não era de se estranhar
naquela cidade, onde ler, para a maioria dos habitantes, era
considerado uma perda de tempo. Porém, mesmo se houvesse
ali uma cultura literária mais refinada, que não se limitasse
apenas à leitura esporádica de alguns livros de auto-ajuda,
ninguém seria capaz de descobrir as obras daquele misterioso
escritor. Alguns vizinhos chegaram até a vasculhar a sua caixa
de correio, descobriram seu nome completo e pesquisaram na
internet, mas não encontraram nada sobre a sua ocupação.
O que ninguém desconfiava era que aquele jovem excêntrico
havia se tornado, nos últimos anos, um famoso escritor de
livros de terror, que ele publicava em vários países do mundo
com o pseudônimo de Daniel Zafón. Escrevia originalmente em
inglês, mas havia traduções de seus trabalhos em quase todas
as línguas, inclusive em português. Ganhava muito dinheiro,
mas vivia modestamente, numa pequena casa alugada, em um
bairro tranquilo de classe média. Tinha um carro popular bem
conservado, que só saía da garagem nos finais de semana,
quando ia com a mulher e a filha passear pelos pequenos
vilarejos das redondezas, para pescar, acampar e curtir a
natureza. Doava grande parte da sua renda para instituições de
caridade, que cuidavam de crianças e idosos, mas investia
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também em livros (a maioria de terror) e na educação da filha,
que se quisesse, quando completasse 18 anos, poderia estudar
em qualquer universidade do mundo.
Na casa ao lado vivia um casal de aposentados e seu filho
solteiro. O rapaz tinha a mesma idade do escritor, 32 anos, mas
não podia ser mais diferente. A começar pelo tamanho.
Enquanto o escritor era magro, pequeno e de aspecto doentio,
o vizinho era um armário de músculos, mantidos firmes e
fortes com várias horas de academia por semana e, para
minimizar os esforços e o tempo nos aparelhos, com algumas
injeções de hormônio bovino, aplicadas regularmente por um
amigo veterinário. Trabalhava como entregador de móveis
numa loja e vendia cigarros de maconha de vez em quando;
ganhava uma miséria, mas tinha um carro importado e um
guarda-roupa entupido de marcas famosas e caras. Seu
dinheiro era todo queimado em malhação, injeções, roupas,
tênis, parcelas do carro financiado, mulheres e, é claro, nas
latinhas de cerveja dos finais de semana. O resto da despesa
era pago pelos pais, que o tratavam como uma criancinha
mimada, aceitando seus caprichos e violências como algo
normal: “Coisa de homem”, costumava dizer a mãe, sempre
que recebia um soco ou um pontapé do filhinho querido.
Todas as tardes, quando chegava do trabalho, o Bad Boy
colocava uma camiseta que valorizasse bem seus músculos
tatuados, uma bermuda e um tênis, e ia passear na avenida
com Stálin, seu cão Pit Bull, o terror da vizinhança. O animal era
quase uma miniatura do dono, cheio de músculos, com dentes
enormes, e andava pelos passeios sem focinheira, latindo para
todo o mundo.
Quando o escritor e sua filha voltavam da escola, quase sempre
se encontravam com o cão e seu dono a caminho do desfile
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............................
exibicionista na avenida. Pai e filha mudavam de passeio, mas
mesmo assim o animal latia ferozmente para eles, enquanto o
dono, embora segurasse firme a guia, fazia movimentos com o
braço como se ameaçasse soltar o animal, para amedrontar os
dois. A menina tremia de medo, mas o pai não dizia nada.
Segurava-a firme em seus braços e seguia seu caminho, sem
olhar para trás.
Numa sexta-feira à tarde, a cena se repetiu. Só que no
momento em que o rapaz sorria e ameaçava soltar o cão no
escritor e sua filha, uma dor muito forte no seu braço fez com
que ele largasse a guia. Sentindo-se livre, Stálin avançou sobre
a menina, sedento de sangue.
Tudo aconteceu em apenas alguns segundos, mas vou
descrever a cena em câmera lenta, de forma que o leitor possa
visualizar os detalhes.
Como eu dizia, Stálin avançou sobre a pobre criança com a
rapidez de um touro que, enlouquecido, salta de seu cubículo
em direção ao matador no meio da arena. Seu alvo era o frágil
pescoço da menina, que ele queria morder com toda a sua
força e estraçalhá-lo, até transformá-lo numa pasta de carne,
pele e cartilagem moídas.
Enquanto corria, contraindo seus músculos num tiro de alta
potência, Stálin mantinha seus olhos focados naquele pescoço
que, por instinto, ele sabia ser o ponto vital da sua presa.
A menina fechou os olhos, aterrorizada.
Felizmente, ela não sentiu nenhuma dor. E quando abriu os
olhos novamente, num movimento involuntário das pálpebras,
tudo já tinha acabado.
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Dois corpos jaziam sobre o passeio: o do cão e o do dono do
cão.
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Mas a vizinhança continuou não gostando dele.
Realmente, ele era muito esquisito.
Como eu disse, tudo aconteceu em questão de segundos. O
cão enraivecido saltou como um touro sobre a menina, mas
antes de conseguir fechar sua poderosa mandíbula em torno
do seu alvo, duas mãos a seguraram no ar com a rapidez de um
relâmpago e ergueram o animal, que se debatia ferozmente,
sem conseguir se soltar. As mãos daquele pai franzino abriram
a mandíbula de Stálin até seus ossos e cartilagens se
quebrarem, transformando a cabeça do animal num arremedo
de planta carnívora gigante, com suas pétalas cor de sangue
escancaradas, esperando a chegada de um besouro ou de um
pássaro. Um som borbulhante, como um gargarejo, saía do
buraco onde antes estava a boca do animal, cujos membros
continuavam se debatendo violentamente no ar. Foi quando o
escritor começou a morder a barriga de Stálin, puxando para
fora, com os dentes, fígado, rins, estômago, tripas e outras
vísceras. Em seguida, quase ao mesmo tempo, abriu o peito do
animal e arrancou com as mãos coração e pulmões, puxando
também traquéia, esôfago, língua e outras partes difíceis de
identificar.
Os restos mortais de Stálin, espalhados pelo passeio, foram
então pisoteados pelo escritor que, sujo de sangue dos pés à
cabeça, mais parecia um personagem possuído pelo demônio
em uma de suas histórias macabras.
Logo à frente, o dono do cão morria de enfarte assistindo à
cena.
A menina nada sofreu.
O escritor também nada sofreu.
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maturação das plantas, os horários, as misturas corretas das
folhas e a temperatura.
Pôr do sol no campo
Desde que perdeu sua fortuna e teve que vender quase todos
os seus bens para pagar os credores, o velho fazendeiro ceifava
e punha para secar ele mesmo as gramíneas que cresciam ao
redor de sua casa, conduzindo-as, depois de secas, em uma
velha carroça até o curral, onde alimentava com o feno as dez
vacas leiteiras que possuía, seu único sustento naqueles
tempos de crise.
E tudo isso estava pronto naquele domingo – o veneno
guardado na gaveta, à espera –, quando o filho chegou,
reconciliador, disposto a fazer as pazes com o pai depois de
quinze anos, e trazendo, para a alegria da casa, uma esposa
bondosa e uma criança cheia de amor para dar.
Viúvo e solitário, vivendo a trinta quilômetros do arraial mais
próximo, sem nada para ocupar o tempo livre – a não ser os
poucos livros que encomendava a um mascate que passava por
ali de mês em mês, com quem às vezes trocava um dedo de
prosa sobre a política na Corte –, o velho fazendeiro, ao abrir a
janela do seu quarto em uma bela manhã de domingo, no
início do outono de 1828, sentiu seu coração encher-se de
alegria quando viu chegar seu filho Miguel, em uma carroça
puxada por dois cavalos estropiados, trazendo com ele sua
jovem esposa Amália e seu filhinho Amadeu, nascido naqueles
dias.
E lá estava ele, juntando o feno com um garfo ao pôr do sol,
enquanto o filho cuidava das vacas, a nora preparava uma sopa
e o neto brincava com pedrinhas e gravetos embaixo de uma
frondosa árvore de sombra acolhedora.
Cinco anos depois, no final de uma tarde fria de maio,
enquanto colocava o feno numa velha carroça de madeira, o
fazendeiro lembrava-se da chegada do filho como uma benção
de Deus, um milagre que o salvara da morte, expulsando-a de
sua casa no momento em que ela já se erguia, com a foice em
punho, para abatê-lo.
Ele tinha tudo preparado numa das gavetas da cozinha: uma
porção de ervas venenosas, que cresciam no seu jardim, mas
que, para que fossem mortais, tinham que ser preparadas de
uma maneira especial, respeitando-se a época da colheita, a
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Foi o que lhe devolvera a vida.
De repente, um vento forte começou a soprar, vindo de várias
direções, levantando e espalhando o feno que se encontrava
na carroça.
Essa imagem das plantas secas voando para todos os lados fezlhe pensar na sua vida, que, ele sentia, aproximava-se do fim,
às vésperas de completar 75 anos:
Penso que a maior parte do que eu plantei, eu colhi... Veja isto,
velho... Neste feno há gramíneas e leguminosas de diversas
qualidades e tamanhos que, quando não são ingeridas pelas
vacas, são absorvidas pelo solo como adubo, que vai alimentar
outras vidas, nesta e em outras gerações.
Ora, não é assim a própria vida?
Como eu disse, muito do que eu plantei, eu já colhi. A solidão
amarga e triste que eu vivi durante anos só pode ter sido fruto
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do meu egoísmo e da maldade que eu pratiquei na juventude e
nos anos de abastança, guiado pelo meu desejo de poder e
riqueza...
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acreditava, sua família viveria feliz e em paz por muitos e
muitos anos.
Ao outro que me desprezava, eu dei o meu desprezo, plantando
assim o desprezo na minha vida... A humilhação que eu sofri, eu
paguei com a humilhação que eu fiz o outro sofrer, plantando
assim a humilhação na minha vida... Vinganças, traições...
Julguei e espalhei boatos sobre pessoas que eu nem conhecia,
só para prejudicá-las... E se eu estendi a mão a alguém, foi por
puro
interesse...
Maldade,
perversidade,
cinismo,
maledicência... Tudo isso eu plantei...
Mas será que eu já colhi todo o mal que eu fiz?
Não. Eu não colhi tudo... Veja estas folhas e talos que voam ao
vento, velho imbecil... Veja os frutos da sua colheita... Eles vão
alimentar outras vidas, que continuarão depois que os vermes
já tiverem comido toda a sua carne.
Meu filho... Meu neto... O que eles colherão do que eu
plantei?...
Que seja só o bem, meu Deus, só o bem...
E o vento soprava forte, enquanto o sol se punha no horizonte,
numa confusão de azuis, roxos, alaranjados e rosas; e o feno
dourado continuava seu vôo, chegando até onde o pequeno
Amadeu brincava, embaixo da árvore. Ele construía uma
cabana para as suas pedrinhas, que representavam ele, a mãe,
o pai e o avô. E ao perceber o feno que se juntava ao pé da
árvore, quando o vento já se acalmava, ele teve a ideia de usálo como parede e teto para a sua construção, onde, ele
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A pescaria
No sonho ele caminhava por uma trilha estreita no meio do
mato, sentindo um cheiro forte e agradável de esterco de vaca.
Seu avô seguia na frente, com três varas de bambu e uma
latinha de iscas, cantando uma velha canção caipira dos seus
tempos de caixeiro. Os dois iam pescar bagre no córrego, numa
parte funda que quase ninguém conhecia. “O poço é bom, mas
tem que ser de noite”, o avô dizia.
Ele acordou do sonho em plena madrugada sentindo uma paz
tão grande que seus olhos se encheram de lágrimas. Foi como
se todos os instantes de alegria e prazer que ele vivera até
então, nos seus trinta e cinco anos, se concentrassem ali,
naquele acordar, ouvindo a voz distante do avô, seus passos
rápidos sobre as folhas secas, o tilintar das chaves do carro no
seu bolso folgado, respirando um cheiro gostoso de mato
verde e esterco misturado ao ar frio da noite.
Há muito tempo ele não ouvia a voz do seu falecido avô: uma
voz distante, mas cheia de vida, que em ondas suaves
atravessava décadas no espaço da memória até chegar aos
seus ouvidos (não do corpo, mas da alma). E os cheiros... Como
era bom sentir os cheiros do passado!
A mulher e o filho continuavam dormindo. Ela, na cama de
casal, ao seu lado, e o garoto numa velha cama de solteiro,
próximo à janela.
Desde que o médico anunciara que não havia mais o que fazer,
que era só uma questão de tempo, o filho de dez anos
começou a sonhar todas as noites com a morte do pai e a
acordar assustado, aos prantos. (Via o pai esquelético
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desaparecendo na impessoalidade branca e luminosa de um
quarto de hospital, preso a tubos e fios, sofrendo). Só quando
ia para o quarto dos pais ele se acalmava e conseguia dormir.
Por isso a cama extra junto à janela.
Mas isso não acontecia mais. Naquela noite o filho tinha se
deitado na cama de solteiro, ao lado do pai, para assistir a uma
entrevista com um escritor famoso, e adormecera. Ele não
tinha mais pesadelos. Em várias conversas com o pai e a mãe
ele foi aos poucos entendendo que perder alguém que se ama
faz parte da vida, e que no fundo não é uma perda, pois o
espírito não morre, só o corpo. “E eu não vou sofrer”, afirmava
o pai confiante.
Ao se levantar, com a mente ainda inebriada pelos sons e
cheiros do passado, o pai olhou para a esposa e o filho
dormindo e agradeceu a Deus por estar com eles naquele
instante de paz e felicidade: o filho abraçado ao travesseiro,
sereno, e a mulher de barriga para cima, respirando
suavemente a brisa fria que entrava pela janela.
A casa na verdade era um sítio, cercado por muros de pedra,
tudo muito simples e prático, com um quintal enorme cheio de
árvores, flores, frutas, hortaliças e ervas, que a família cuidava
com amor e de onde tirava uma parte do seu sustento.
Ao se levantar, sentiu o cheiro doce e exuberante da dama da
noite, que lhe lembrava a casa da avó nos tempos de infância,
quando a família se reunia para cantar e dançar ao som das
cordas e vozes dos tios músicos.
Ajoelhou-se sobre a cama do filho, com cuidado para não
acordá-lo, e olhou pensativo para o quintal mergulhado no
silêncio escuro da madrugada. Era assim, no meio da noite, que
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ele sentia a natureza em seu estado mais puro: descansando
para morrer e nascer de novo, morrer e renascer... (às vezes
um inseto, um morcego ou uma coruja perturbavam o seu
sono de mãe cansada, mas sem despertá-la, sem se
destacarem dela própria, do seu silêncio grosso, cheio de vida e
morte).
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Fechou os olhos, respirou fundo por alguns minutos e se
levantou num salto, sentindo-se melhor, mais forte. Correu
pelo quintal, e o cheiro de esterco era como se estivesse ali. E a
voz do avô era como estar de volta àquela pescaria, jogando o
anzol no poço fundo daquele córrego, sentindo a fisgada do
bagre e o avô sussurrando “cuidado com o ferrão”.
Foi para a cozinha e fez um café, que sorveu lentamente,
enquanto caminhava descalço pelo quintal, sob a luz fraca de
um poste, observando os insetos, as flores, as folhas, as cascas
das árvores, a terra fria e seca.
Mas naquela hora, no quintal, junto a uma laranjeira carregada
de frutas, o que o avô lhe dizia era “venha comigo”, “venha
comigo”, como se estivesse ali, sua voz suave e vibrante ao
mesmo tempo.
Sentou-se no chão e pegou com as mãos um pouco de terra,
que levou aos lábios, para sentir sua textura, seu cheiro.
O sol nascia entre as árvores e ele continuava de pé, parado,
recebendo a luz morna da manhã que aos poucos ia clareando
tudo ao seu redor: o verde das folhas, os vários tons de
marrom da terra, o vermelho, o amarelo, o branco e o roxo das
flores...
O café o despertara, ele estava lúcido, com os sentidos
aguçados, mas aquilo tudo lhe parecia um sonho. O cheiro de
esterco e a voz do avô lhe chegavam novamente do passado,
mas com uma presença que ele nunca havia sentido: como se
pudesse tocá-los.
Levantou-se devagar, tonto, e abraçou uma árvore à sua
frente, um enorme pé de pequi cheio de flores. Colou o ouvido
no seu tronco áspero e teve a sensação de ouvir o movimento
de alguma coisa lá dentro, um fluxo – de quê? –, como um
riacho, uma nascente, algo profundo, como um gemido
contínuo numa caverna escura e fria.
Deixou-se cair no chão, ao lado da árvore, e ao se esticar,
sentiu a terra em movimento, como se ela viva quisesse
abraçá-lo, absorvê-lo. O cheiro do café... “Eu quero mais café”,
ele dizia, mas não conseguia alcançar a caneca.
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Foi quando ele viu a esposa e o filho sentados no chão, junto
ao pé de pequi. Sentindo-se bem disposto, caminhou na
direção deles, mas logo parou, entendendo tudo. “Esta etapa já
acabou”, pensou feliz. E ao se voltar para a laranjeira viu o avô,
com sua boca desdentada aberta num sorriso cheio de amor e
compreensão.
Deitado entre a esposa e o filho havia um corpo sem vida, que
ele não precisou ver para ter a certeza de que era o seu.
Sob o olhar alegre e sereno do avô, ele acompanhou tudo sem
se aproximar muito: viu como o filho chorava e sorria ao
mesmo tempo, acariciando o rosto e os cabelos do pai; como a
esposa beijou seus lábios secos e sem vida, derramando sobre
eles lágrimas de dor e saudade; como juntos o levaram para a
banheira e lhe deram um banho perfumado com as essências
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das flores que ele mais gostava, ao som de um dos concertos
de Brandenburgo, de Bach...
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“Eles ficarão bem”, disse-lhe o avô, estendendo-lhe a mão
pequena e branca, cheia de sardas.
Ela se chama Das Dores.
Ele sorriu. E de repente tinha dez anos e procurava minhocas
com uma enxada num barro preto, e puxava as traíras e mandis
com a respiração presa de emoção, sentindo seu peso na vara,
seu balançar brilhante e molhado sobre a lagoa escura, e
olhava para o avô, que sorria, sorria sem dentes, e sem dentes
continuava sorrindo ali, ao seu lado, depois de tantos anos...
“Vamos pescar?”. O avô perguntou.
Felicidade
Na verdade Das Dores é como as pessoas a chamam, não sei se
é nome, sobrenome ou apelido.
Está agora debruçada na pia enxaguando os pratos e talheres
do almoço.
É noite.
Hoje é sexta-feira. Jorge vai chegar daqui a pouco e ela está
muito feliz.
“Ah Deus, então é isso...”.
Das Dores está feliz todos os dias, eu não consigo entender por
quê.
E partiram.
Dedico este conto à memória do meu avô, Vicente Batista da Silva, o
“Vicente Fabiano” (1922-1995).
Sua casa é pequena e simples. Não tem máquina de lavar, mas
o Jorge disse que vai comprar uma das grandes para ela, assim
que ele terminar de pagar a televisão. Ela disse a ele não
precisa, Jorge, aqui é pouca roupa, eu dou conta, mas o Jorge
insistiu e ela disse tudo bem, então.
E sorriu.
Das Dores sorri muito.
Lava os pratos e talheres sorrindo.
A água sai pouca da torneira, porque eles moram no alto de um
morro e a pressão é fraca, não tem jeito.
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Das Dores é jovem, não tem nem trinta anos, mas parece que
tem mais. Peitos caídos, cabelo ensebado, pele encardida, está
um pouco acima do peso, mas quando ela se olha no espelho
do guarda-roupa, acha-se bonita. Jorge gosta. Até elogia.
............................
Daqui a pouco o Jorge chega e os dois vão tomar banho.
Toda sexta-feira ela prepara um jantar especial para ela e o
Jorge. Ele traz um vinho tinto suave, docinho, do jeito que ela
gosta. Semana passada ele comprou duas taças no
supermercado e fez uma surpresa para ela: encheu-as de vinho
e foi até o quarto, enquanto ela se penteava, levando também,
além do vinho, um prato com petiscos (salsicha, queijo e
azeitona). Ela disse que loucura, Jorge, você gastou dinheiro
com esses copos chiques, não precisava, mas o Jorge nem
ligou. Foi logo beijando a sua boca, e os dois se jogaram na
cama.
É que o Jorge trabalha no serviço de limpeza urbana,
recolhendo os lixos das casas.
Toda sexta-feira eles fazem amor. É muito bom, ela gosta do
Jorge, ele é carinhoso e fala que ela é bonita. Nunca foram a
um motel, mas o Jorge disse que um dia vai levá-la, e ela fica
imaginando como deve ser.
Ela está agora preparando a lasanha para o jantar. É o prato
que o Jorge mais gosta, e ela também.
Hoje ela decidiu colocar um pouco mais de presunto na lasanha
(na verdade, não é presunto, mas algo parecido, mais barato.
Só que, para ela, é tudo a mesma coisa, então ela prefere
chamar de presunto, que é uma palavra mais bonita.
Presuuunnnto, ela gosta de dizer baixinho, sorrindo, quando
volta para casa com as compras).
O molho está ótimo, ela pensa, enquanto prepara a lasanha
ouvindo “A Hora do Brasil”.
Ela ensaboa o Jorge toda sexta-feira, para tirar o cheiro que fica
grudado na pele dele.
Jorge também é jovem, tem trinta e um anos, mas gosta de se
cuidar, por isso parece ser mais novo do que Das Dores, que é
um pouco desleixada.
Ele é musculoso de tanto levantar sacos de lixo e correr atrás
do caminhão da limpeza pela cidade, mas seu cheiro não é
bom, por isso ela faz questão de ensaboá-lo na sexta-feira e de
passar bastante loção no seu corpo, porque é o dia deles
jantarem juntos e fazerem amor.
Ela prefere “fazer amor”, não gosta das palavras que o Jorge
usa quando estão na cama, vou te comer, vamos trepar, coisas
assim, de animal.
Das Dores não entende nada do que ela ouve na “Hora do
Brasil”.
Não sabe dos gastos milionários do Governo com estádios de
futebol, enquanto os professores estão em greve.
Das Dores nem pensa no seu trabalho, que recomeça segundafeira, pregando solas de sapatos, milhares de solas, nada além
de solas, solas, solas e mais solas, o dia inteiro, até o
crepúsculo.
Ela gosta da palavra crepúsculo.
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Ela leu isso em algum lugar e sua amiga Josefa lhe explicou o
que era: Pôr-do-sol.
Ficou boba.
Depois disso, ao sair da fábrica de sapatos, ela trocou seu
trajeto só para passar por uma rua que lhe permitia ver o pôrdo-sol.
E ela parava e admirava...
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Jorge tem até uma caixa de papelão onde guarda os livros que
ele encontra no lixo, a maioria com um título que Das Dores
acha muito estranho: Tex. O cheiro dos livros é que não é bom,
mas Das Dores nem liga, porque ela adora ver o Jorge feliz, e
quando ele pega um desses livrinhos para ler, ele parece muito
feliz.
Jorge chega com o vinho.
E a surpresa da noite é que o vinho não é de uva, mas de
pêssego, fruta que Das Dores nunca experimentou.
Ela gosta das cores do crepúsculo.
Das Dores sorri e abraça Jorge com carinho. O cheiro dele não
está nada bom.
Ela está agora olhando pela janela.
Noite estrelada, muito calor.
Tomam banho, fazem amor e Das Dores, com uma taça de
vinho de pêssego na mão, coloca a lasanha para assar.
Escuta alguns tiros lá embaixo, mas nem liga.
(Na verdade não é bem um vinho, mas para Das Dores isso não
importa).
Não pensa em nada, vive o instante.
Das Dores estudou na escola pública do bairro, aprendeu a ler,
mas não entende quase nada do que lê, somente avisos bem
simples como Cuidado: chão molhado, Caixa fechado, Seja
bem-vindo à Casa do Senhor, etc. Uma vez tentou ler o resumo
de uma novela, mas só entendeu algumas palavras isoladas,
que ela guardou na memória: luxo, praia, motel, patife,
vagabunda, aborto, drogas.
Jorge liga o rádio e fica olhando as luzes do morro pela janela.
Jorge estudou mais tempo que Das Dores, em uma escola
pública melhor. Jorge até pega livro na Biblioteca. Das Dores
fica impressionada com a inteligência do Jorge. Ele é esperto,
sabe das coisas.
Você também, Jorge.
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Outro tiro.
Ele se assusta, vira para Das Dores e os dois começam a rir.
Você está tão bonita hoje, Das Dores, ele diz.
Acho que já entendi por que Das Dores está feliz todos os dias.
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produzidas, não fazendo qualquer diferença neste processo a
nacionalidade das iguarias presentes nos intestinos.
Descendo do salto
A bela professora universitária entrou na sala de aula como se
estivesse na passarela de um desfile de modas em Paris ou
Milão. Era sexta-feira à noite e, embora já estivesse com o
atestado médico em mãos, assinado por uma prima
ginecologista, ela resolvera, de última hora, abandonar o
marido e os amigos no refinado restaurante francês Le Bistrot e
ir direto para a universidade. Fez isso pelos alunos, que
queriam muito a sua presença durante a realização da
atividade que ela havia preparado para aquela noite, e que
seria aplicada por uma estagiária.
Quando ela entrou na sala, irradiando beleza e simpatia, havia
em seus intestinos meia garrafa de um vinho francês da
Borgogne, já completamente absorvido pelo maravilhoso
Cassoulet que ela havia comido antes de sair. (E ao distribuir os
exercícios aos alunos, ela fez questão de referir-se a esse jantar
requintado, que prosseguia sem a sua presença encantadora
no restaurante mais caro da cidade).
Enquanto ela desfilava pelos corredores da sala, fazendo soar
no piso de madeira o leve toc toc dos seus belos saltos
importados, uma enorme quantidade de bactérias atacava os
carboidratos da mistura de iguarias francesas que se
movimentava no interior de suas tripas. Desse processo de
fermentação é perfeitamente natural que surjam gases, como
o metano, o sulfeto de hidrogênio ou o dióxido de carbono. Se
os componentes da mistura vêm da França, da Alemanha ou do
quintal de um pequeno roceiro do interior de Minas Gerais não
interessa às bactérias que produzem tais gases. E quanto mais
enxofre tiver na mistura, mais fedidas serão as ventosidades
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Enquanto a professora dizia algumas frases decoradas em
francês para impressionar os alunos, tentando imitar os sons
ouvidos no filme Piaf ou em Coco avant Chanel, uma pequena
bolha de gás, contendo uma quantidade considerável de
sulfeto de hidrogênio (rico em enxofre), aumentava de
tamanho entre as paredes do seu intestino grosso. Ela circulava
em torno de um bolo fecal de aspecto uniforme e cor marrom
parda (devido ao ganso presente no Cassoulet) que se
movimentava lentamente em direção ao ânus da mulher.
A bolha aumentava de tamanho a cada minuto, e às vezes a
professora sentia o seu movimento, que se não fosse o
constante toc toc de seus saltos sobre o piso da sala, poderia
ser ouvido até pelo aluno que estivesse mais próximo. E, aos
poucos, outras bolhas vinham se aproximando da bolha maior,
pois no tempo em que esteve no restaurante, antes de
servirem a refeição, a professora conversou muito enquanto
bebia, a maior parte do tempo criticando colegas de trabalho
que ela considerava inferiores, e enquanto ria e falava, uma
enorme quantidade de ar entrava pela sua boca. O ar não
absorvido pelo organismo ou eliminado pelos arrotos
discretíssimos que ela soltava se misturou ao Cassoulet e ao
vinho tinto, e acompanhou a mistura em direção aos
intestinos.
Enquanto isso, alguns ácaros iniciavam uma pequena reação
alérgica nas mucosas nasais da mulher. Um leve corrimento
teve início, o que fez com que ela tirasse do bolso um lenço
bordado a mão por artesãos indianos, comprado na última
viagem que ela havia feito com o marido à Ásia. Levou o lenço
ao nariz e, discretamente, limpou um excesso de mucosidade
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............................
nasal que se acumulava na narina esquerda e que estava
prestes a pingar. Uma leve irritação nos olhos e uma coceira
em ambas as narinas começavam a incomodá-la.
Mesmo assim, a professora continuava o seu desfile pelos
corredores da sala, respondendo às questões feitas pelos
alunos como se ela fosse a maior autoridade em Psicologia
Social do Brasil.
De repente, uma bolha de ar que se movimentava no seu
intestino grosso se juntou a uma pequena bolha de dióxido de
carbono e sulfeto de hidrogênio, produzida por um grupo de
bactérias famintas, o que fez surgir uma bolha muito maior.
Essa bolha forçou a parede do intestino, que pressionava de
um lado, enquanto o bolo fecal pressionava do outro, o que fez
com que ela se deslocasse rapidamente em direção à outra
bolha, a mais fedida de todas, que já se aproximava do ânus da
professora. Ao se encontrarem, as duas bolhas formaram uma
bolha só, de proporções devastadoras.
............................
Imediatamente a mulher parou. Qualquer movimento podia
ser fatal. Um novo espirro seria a tragédia completa. E ali ela
ficou, entre duas fileiras de alunos, quase no meio da sala, à
espera de um milagre, de uma intervenção divina que fizesse
desaparecer todo aquele gás acumulado bem na saída, que ela
trancava com todas as forças que sua bem trabalhada
musculatura glútea e anal permitia.
Enquanto isso, os ácaros não davam trégua e provocavam mais
coceira no nariz da desesperada professora, que já não falava
mais, apenas aguardava, em pânico, o que o destino lhe
reservava.
Foi quando veio o espirro, o mais forte de todos, que vibrou a
abertura anal com a rapidez de um raio: um único segundo, o
tempo de uma pequena piscadela do esfíncter, mas que foi
suficiente para que uma parte dos gases acumulados sob
pressão escapasse com um enorme estrondo, tão alto, que a
tentativa da professora de abafá-lo com o som do espirro foi
em vão.
Um espirro.
Tragédia.
Em pânico, a professora respirou fundo o ar ao seu redor, com
medo de que alguma coisa tivesse escapado. Nada. Nenhum
cheiro desagradável. Ela tinha que sair dali o mais rápido
possível.
Outro espirro, e mais um, e mais outro. A bolha estava quase
lá, a mulher podia sentir, e enquanto caminhava lentamente
em direção à porta, percebeu uma pressão nas paredes do seu
ânus – como um inchaço interno – que só podia significar uma
coisa: uma enorme quantidade de gases já tinha chegado ali e
estava pronta para explodir.
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Todos os alunos escutaram o som e perceberam de imediato
de onde ele tinha vindo e do que se tratava. E os que estavam
mais próximos da professora sentiram um cheiro tão fedido,
que alguns fizeram vômito, e outros chegaram a vomitar no
chão, próximo aos pés da desesperada mulher, que não sabia
onde enfiar a cara. E antes que ela raciocinasse sobre o que
fazer numa situação dessas, um novo espirro, e um novo
estrondo, ainda mais alto e fedido que o primeiro.
O cheiro estava por toda a sala. Alguns alunos pediram licença
e se retiraram. Outros foram para a janela. E a professora ficou
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lá, parada que nem uma estátua, com o pensamento em
branco, sentindo o cheiro dos gases produzidos pelas bactérias
dos seus intestinos: um cheiro de corpo, de carne, de vida e
morte: um cheiro de existir, de ser e estar no mundo, vivendo,
comendo e morrendo, como eu, como você... Como qualquer
um.
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Soberba
Sem mais nem menos, numa fria noite de inverno, cabeças
começaram a explodir.
Não, não era tiro de espingarda cartucheira, nem de revólver
com munição dum dum.
A coisa vinha de dentro do corpo, não sei explicar. A pessoa
podia estar comendo, conversando, dormindo, que o negócio
vinha de repente: PLOFT! – um som abafado, meio oco, que se
abria num PLAFT rápido, molhado: como toalha encharcada
lançada com força na parede.
O interessante é que era só a cabeça.
Em ambientes fechados, a cena era mais ou menos assim:
PLOFT! PLAFT! E o corpo estrebuchava no chão, esguichando
sangue pelo buraco do pescoço, enquanto as partes moles da
cabeça (sangue, miolos) escorriam pelas paredes, e as mais
pesadas (ossos, pele, cartilagens) se espalhavam pelo chão.
Eu mesmo vi dez cabeças explodirem. A primeira foi a de um
sujeito nervoso que esbravejava a plenos pulmões numa
reunião de condomínio, achando-se o dono do mundo. Eu até
pensei na hora que um dos moradores, que era policial, tinha
dado um tiro nele, de tanta raiva, mas não: como eu disse, a
coisa vinha de dentro. O sujeito gritava: “Eu sou isso e aquilo,
sou amigo de fulano e beltrano, tenho muita influência, vocês
vão ver do que eu sou capaz” e PLOFT! PLAFT!
Outra vez foi com uma amiga de mamãe, D. Jandira (a empáfia
em pessoa). Ela tomava café lá em casa e falava do filho dela, o
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Pedrinho ou Carlinhos, não sei, que segundo ela era um gênio,
doutor em não sei o quê, tinha dois apartamentos de luxo na
capital, um carro importado, falava inglês fluente, ia apresentar
a pesquisa dele na Alemanha, na França e na Inglaterra, uma
tese brilhante, muito respeitada nos meios acadêmicos e blá,
blá, blá. E de repente PLOFT! PLAFT!
Mamãe levou um baita susto com a explosão. Arregalou os
olhos, toda respingada de sangue, e começou a passar mal.
Tossia e cuspia pedacinhos de ossos e miolos, que escorriam
pelo seu rosto, enquanto eu tentava socorrê-la.
Algumas profissões eram mais atingidas que outras. Médicos e
advogados, por exemplo, entraram em extinção. Sobraram
poucos na cidade. (Uma prima minha, muito querida, que é
médica, graças a Deus se salvou). Tive notícia de que, durante
uma cirurgia, três cabeças de médicos explodiram juntas em
cima do paciente, e que uma estudante de Medicina, que
assistia ao procedimento, correu e se trancou no banheiro
desesperada, para cinco minutos depois sua cabeça também
explodir.
Vereadores e funcionários do alto escalão da Prefeitura
também foram muito mais atingidos do que o normal. Numa
sessão da Câmara para discutir a má gestão dos recursos
públicos na Saúde, o cinegrafista da TV local filmou nada
menos que quinze cabeças explodindo, uma atrás da outra.
Isso porque, além dos vereadores, havia muitos médicos e
advogados presentes, e também um juiz, que foi o primeiro da
fila. (Foi um choque na cidade a morte desse magistrado, o
velório ficou lotado, mas alguma coisa vinha me dizendo que
aquela cabeça não ia se salvar de jeito nenhum). E segundo o
meu primo Cleber, que estava na Câmara, a coisa aconteceu no
exato momento em que o juiz apontou o dedo para um pobre
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coitado na platéia e perguntou: “Você sabe com quem está
falando?”.
Há cinco meses nenhuma cabeça explode na cidade.
As pessoas estão mais quietas e introspectivas. Lêem mais.
Estão se preocupando menos com o status social, com as
aparências.
Até o famoso jornal de futilidades A City, que era a vitrine da
alta sociedade local, quebrou, porque ninguém mais queria
pagar para ter suas festas de aniversário, casamento, bodas de
prata e de ouro publicadas ali.
Na minha família só cinco cabeças explodiram até agora: três
homens e duas mulheres – “os mais cheios de si”, disse mamãe
um dia, referindo-se a eles.
Quanto a mim, confesso que ainda estou com medo.
Fico a maior parte do tempo sozinho em casa, lendo,
escrevendo, tomando café e ouvindo música.
Ontem foi meu aniversário de 36 anos.
Mamãe me deu de presente um livro de poemas da Florbela
Espanca.
Mamãe gosta muito de ler.
Ela diz que ler torna a gente mais humilde e tolerante. Acho
que ela tem razão.
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Ao nos despedirmos, ela me abraçou e disse, sussurrando:
“Leia o poema da página 36”.
Em casa eu o li, e até grifei o final, que me tocou muito:
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Pombos
Numa ensolarada tarde de sábado, quando voltavam de um
passeio pelo bairro, o jovem professor e sua esposa viram dois
pombos cinzentos se esfregando no telhado de sua nova
residência, bem em cima da garagem. (Naquele dia, o jovem
casal não percebeu a dimensão hitchcockiana do problema que
em breve eles teriam que enfrentar).
Sonho que sou Alguém cá neste mundo...
Aquela de saber vasto e profundo,
Aos pés de quem a terra anda curvada!
E quando mais no céu eu vou sonhando,
E quando mais no alto ando voando,
Acordo do meu sonho...
Dois pombinhos de namorico no telhado de uma casa. Que
problema há nisso?
E não sou nada!...
Concordo que pode até ser agradável receber de vez em
quando a visita de uma dessas aves em casa, ou talvez até tê-la
como hóspede definitivo em algum canto do telhado, onde ela
pode fazer seu ninho e viver em paz com seus filhotes.
(Algumas são até muito bonitas, com suas plumagens em tons
brilhantes de cinza, preto e verde). Se fosse só isso – e para
corrigir o exagero que eu cometi acima ao empregar a palavra
“agradável” – eu diria que seria até suportável. Mas quando o
substantivo é “pombo’, não há na sintaxe do discurso que lhe
serve nenhum espaço para o advérbio “poucos”. Não existe
UM pombo em nenhum telhado do mundo. Se há pombos no
seu ou em qualquer outro telhado, eles são muitos, dezenas,
centenas, e se reproduzem como ratos, e comem e cagam e
fedem como ratos.
Parece que isso nem sequer passou pela cabeça dos dois novos
moradores do bairro, pois ao entrarem pelo portão e notarem
os dois pombinhos num dos cantos do telhado, eles apenas
sorriram um para o outro e entraram na casa, como se
flutuassem no ar. E quem tivesse testemunhado de perto
aqueles sorrisos e soubesse ler o que se escondia por trás
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deles, certamente entenderia o motivo da pouca importância
que os recém-chegados deram à presença ameaçadora de um
casal de pombos em seu telhado – uma imagem que, para
ambos, naquele momento, significou o prenúncio do que eles
próprios planejavam fazer na cama logo em seguida: dois
pombinhos recém-casados, sem filhos e com menos de trinta
anos, quando chegam em casa e têm como recepção dois
outros pombinhos em plena Lua de Mel só podem pensar
mesmo em se empoleirarem na cama e mandarem ver.
Por isso não posso afirmar que o motivo deles não terem
estranhado aquela presença alada no telhado, nem tampouco
olhado um para o outro com aquele olhar característico de
“problema à vista”, fosse a ignorância pura e simples. O mais
provável é que, naquele momento, ambos tenham sido
desviados da razão pelos hormônios do desejo, que, no início
de qualquer casamento convencional, permitem até
associações de imagens românticas – óbvias demais, temos
que concordar –, como aquelas: um casal de pombos
namorando no telhado // um ninho de amor à espera de dois
jovens apaixonados, encantados com o início do casamento.
Na tarde seguinte, porém, a associação de imagens foi outra.
(Se é que podemos chamá-la de associação de imagens. Talvez
melhor seria a percepção de uma semelhança macabra, que
significava, naquele momento, um aviso).
Mas, como eu ia dizendo, na tarde seguinte, o olhar do jovem
professor foi outro – talvez por não estar numa veia romântica
em pleno domingo, com três pacotes de provas para corrigir –,
quando viu, ao entrar, sete pombos se acariciando ao redor da
caixa d’água.
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Aqui cabe um parêntese para explicar que a caixa d’água em
questão foi projetada por uma renomada arquiteta para ser
um elemento de harmonia no conjunto da fachada da casa:
uma combinação de curvas e retas que, no entanto, logo
perdeu a simetria planejada para se tornar um mostruário de
outras peças decorativas (estas inoportunas e invasoras), cujas
características principais, como sabemos, são três: voarem,
defecarem e federem.
Naquele momento, ao ver sete ratos alados se esfregando ao
redor da caixa d’água, o professor resgatou da sua memória
cinematográfica a velha cena do filme “Os Pássaros”, de Alfred
Hitchcock, em que Tippi Hedren observa, aterrorizada, um
bando de corvos empoleirados no parquinho de uma velha
escola americana.
Nenhuma outra cena seria mais apropriada. O prognóstico foi
perfeito: a caixa d’água do professor se tornou, com o passar
dos dias, o ponto de encontro de uma infinidade de pombos,
de várias cores e tamanhos, que ali ficavam horas e horas,
emporcalhando tudo ao redor. Saíam apenas para seus vôos
regulares sobre o bairro ou para alguns passeios estratégicos
pelo telhado da casa, onde verificavam os melhores lugares
para os seus ninhos.
E como é espantosa a capacidade reprodutiva desses
bichinhos! Não preciso nem dizer que as laterais e cantos do
telhado do professor se transformaram num verdadeiro
pombal.
Nesta altura do texto é importante explicar que o jovem
professor não sabia fazer nada que, fora dos planos afetivo e
sexual, um marido de verdade deveria saber, pelo menos na
opinião do senso comum: consertar pia, desentupir privada,
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fazer o carro pegar no tranco, trocar lâmpadas fluorescentes
(daquelas compridas) e, é claro, subir no telhado para
exterminar pombos – com toda a crueldade de macho que o
ato exigia, já que não bastava acabar com os pais, era preciso
também aniquilar os filhos.
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Flores brancas na noite escura da alma
Ele tinha quinze anos.
Era magrelo, feio e triste.
E é mais do que sabido que quando esses pseudo-maridos
precisam pagar outro homem para fazer o serviço, eles adiam a
decisão o máximo possível, talvez por vergonha ou por avareza
(ou as duas coisas juntas), e o problema cresce – no caso dos
pombos, de forma assustadoramente rápida.
Mas sejamos justos: o professor tentou pelo menos acabar
com as orgias na caixa d’água, jogando traques e naftalina no
telhado, o que no final das contas não adiantou grande coisa.
Espingarda de chumbinho? Proibido. Veneno? Proibido. O que
resta, então, ao pobre professor? Conviver com os pombos?
Enlouquecer? Se ele conseguisse ao menos não ter que se
lembrar do filme do Hitchcock toda vez que entrasse pelo
portão da garagem, já estaria satisfeito.
Mas eles estão sempre lá, principalmente à tarde, arrulhando,
cagando, copulando, fedendo, enfim, vivendo suas vidas, mais
ou menos como qualquer outro ser vivo...
Como qualquer um de nós...
Ou quase.
No começo era só o desprezo dos colegas e professores.
Ninguém sabia seu nome nem conversava com ele. Suas notas
eram medíocres, passáveis, indicando inaptidão e falta de
talento, o que o colocava, dentro da classificação estabelecida
informalmente pelos diretores e supervisores, no “ponto
morto”, naquela posição que, embora não representasse um
risco sério para a imagem da escola, não contribuía em nada
para o seu engrandecimento institucional, sempre atrelado ao
ranking dos colégios e aos primeiros lugares nos vestibulares
das grandes universidades de elite.
Ele simplesmente não existia.
Pelo menos até o dia em que, tremendo e suando frio, dirigiuse à mesa da professora, mudo, mas implorando ajuda com o
olhar aflito e desesperado, os dedos inquietos abrindo e
fechando os botões da camisa. E a mulher, concentrada em
alguns trabalhos que corrigia, fingia não tê-lo percebido, como
se ele fosse uma peça decorativa surgida do nada, quase
invisível.
Enquanto isso, os outros alunos mantinham-se em silêncio,
alguns estudando, outros enviando mensagens pelo celular,
desenhando, escrevendo...
Até que, não suportando mais a angustiante espera, ele
estourou. Um uivo de agonia saiu do fundo da sua alma,
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arrancando de seus pulmões e garganta toda a força necessária
para devastar a indiferença dos colegas e da professora – e
junto com esse grito de horror, um caldo escuro de diarréia
explodiu no seu traseiro, marcando com uma enorme mancha
marrom e fétida o tecido claro de sua calça desbotada.
A professora se levantou num salto e agarrou seu braço com
força, puxando-o para fora da sala. No corredor, uma
funcionária da escola repreendeu-o por não ter ido ao
banheiro a tempo, levando-o em seguida para se lavar.
A partir desse dia a indiferença e o desprezo dos colegas se
converteram em crueldade. Ele se transformou no alvo
principal de todas as chacotas e piadinhas de corredores, e
mesmo na sala, durante as aulas, comentários maldosos eram
lançados aqui e ali, levantando risos abafados e silêncios
constrangedores, sempre sob o olhar tranquilo e distante do
professor.
Ele continuou não participando dos trabalhos em grupo e não
encontrando nenhuma alma para conversar com ele no
recreio, mas não era mais um Zé Ninguém, pois os outros o
notavam, olhavam para ele e riam, o que, no entanto, doía
mais, tornando-o cada vez mais amargo e triste.
Festinhas eram organizadas, passeios a fazendas e sítios
aconteciam todos os meses e ele nunca era convidado. Seus
únicos amigos eram os livros, que ele começou a ler também
na escola, durante o recreio, embaixo de um enorme
caramanchão, bem afastado do burburinho incessante dos
outros adolescentes, que brincavam e conversavam em suas
rodinhas.
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Mas mesmo em seu refúgio de solidão, às vezes lhe chegavam
bilhetinhos ofensivos e zombeteiros, quase sempre trazidos
por um garoto vesgo e narigudo, com um leve retardo mental,
mas que havia sido aceito pelos outros como uma espécie de
mascote, sempre pronto a cumprir as ordens dos líderes do
bando ou das menininhas ricas, acostumadas em casa e na
escola com toda a sorte de paparicos e servilismos.
Um dia, o menino vesgo foi ao caramanchão levando uma
pequena caixa de isopor fechada. Disse que era um presente
dele, um pedido de desculpas por todos os bilhetinhos que ele
havia trazido. Deixou-a ali, em suas mãos, e saiu correndo pelo
pátio.
Sua primeira reação foi desprezar a caixa, deixá-la ali mesmo
no caramanchão, fechada, e ir embora. Mas depois de alguns
minutos de reflexão, resolveu abri-la. Não se surpreendeu com
o que viu. Mas diante daquilo – daquela massa repugnante que
parecia lhe dizer, em seu silêncio asqueroso: “Você é a escória
da escória, o estorvo do estorvo” – ele sentiu como se uma
noite escura tomasse conta da sua alma naquele exato
momento: uma sensação penosa: uma dor profunda revirando
as densas sombras do seu ser, que depois se acalmava, para
logo em seguida começar de novo – como uma dor de parto,
mas na alma, no âmago de si, do seu espírito pisado,
massacrado, cuspido.
Deixou ali a caixa cheia de fezes humanas, de diferentes cores
e consistências, e dirigiu-se à saída do colégio, disposto a voltar
só dois dias depois, para a realização do seu único e último ato.
Passou a tarde e a noite sem dormir, sem comer, e o dia
seguinte todo se preparando, se organizando, pensando em
todos os detalhes do seu plano. Só interrompia o trabalho para
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reler Walt Whitman, Tolstoi, Edgar Allan Poe, Willian Burroughs
e Allen Ginsberg, e para recitar em voz alta trechos de seus
poemas preferidos, sobretudo os de Ginsberg em seus
momentos mais sombrios: “A ti, Céu depois da morte, Único
abençoado no Vazio, nem luz nem escuridão, Eternidade Sem
Dias...”. E continuava arquitetando tudo, escritos e rabiscos
jorrando de suas mãos para o papel em jatos contínuos:
orgasmos múltiplos de sangue sem interrupção.
Quando entrou na escola vestindo um pesado casaco de lã em
pleno verão ninguém achou estranho. Na verdade, ninguém
notou nada. Ele sabia que seria assim, por isso não se
preocupou. Entrou no banheiro e se trancou num dos boxes
sanitários, para aguardar o início das aulas.
Oração da Manhã. Avisos.Vozes e passos em tropel pelos
corredores. Silêncio.
Era o momento de agir.
Atravessou o corredor em direção à sua sala com a mão direita
enfiada dentro do casaco. A aula tinha começado havia poucos
minutos. O professor de História continuava seu discurso
pomposo sobre a economia capitalista, citando, como
exemplos, pais de alunos ricos da classe, grandes empresários
da cidade que, juntamente com juizes e políticos, eram ali
reverenciados através de seus filhos (adolescentes arrogantes e
estúpidos, mas dignos de elogios e paparicos simplesmente por
serem filhos de quem eram).
Entrou sem pedir licença e se colocou diante da turma, ao lado
do professor, que emudeceu de susto ao vê-lo se aproximar
vestido daquele jeito, com o ar cansado e sombrio, olhos
avermelhados, o cabelo despenteado, ensebado. Parecia um
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louco. Mas ninguém se moveu. Ficaram ali estatelados,
atônitos, estarrecidos, os olhos esbugalhados de espanto e
medo.
Professor e alunos continuaram mudos e estáticos enquanto
ele tirava de dentro do casaco um enorme maço de folhas,
distribuindo-as, uma a uma, a todos os presentes. Eram
centenas de poemas que ele escrevera nos dois dias anteriores,
sobre amor, amizade, compaixão, generosidade e humildade;
citações bíblicas que mostravam a simplicidade dos
ensinamentos de Cristo: o amor ao próximo, o perdão, o
desapego às coisas materiais; textos que ele mesmo escrevera
sobre a sua própria dor, mas que terminavam sempre com
mensagens de esperança e paz.
Ao entregar seus escritos, andando pelas filas de carteiras
como se dançasse ao som de uma melodia celestial, ele dava
um beijo na testa de cada um de seus colegas, inclusive
daqueles que haviam contribuído com a sua cota de matéria
fecal para o presente na caixa de isopor.
Dali ele saiu para as outras salas, onde também espalhou seus
textos. Pregou-os em todos os murais; lançou-os nos
banheiros, na secretaria, na lanchonete, nas quadras, na sala
de vídeo, nos laboratórios, deixando, ao final do percurso,
depois de tudo distribuído, um manuscrito de trinta páginas, de
sua autoria, embaixo do caramanchão. O velho e solitário
caramanchão... Um lugar de paz e tranquilidade que o acolhera
durante todo o tempo em que ali viveu sua solidão junto aos
livros, e que naquele dia florescia com uma exuberância jamais
vista: cobria-se de flores brancas e ternas que, brilhando ao sol,
pareciam querer ilustrar o título da primeira e última obra
daquele jovem e triste poeta:
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Flores brancas na noite escura da alma
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Labaredas na Escuridão
A casa ficava numa rua estreita e escura do centro histórico da
cidade. Ali, num passado distante, àquela hora da noite,
bêbados e mendigos dividiam as calçadas com prostitutas
desesperadas, que ofereciam seus corpos a qualquer um que
passasse, muitas vezes em troca de um pão bolorento ou de
um prato de sopa.
Naquela noite, porém, ao caminhar pelo passeio à procura do
endereço que eu trazia rabiscado num pedaço de papel, só vi
sacos de lixo rasgados por cães famintos, garrafas quebradas e
um gambá morto em avançado estado de putrefação. O resto
era silêncio e sombras.
Na mochila eu levava um caderno de anotações, uma garrafa
de água e três folhas soltas de um livro há muito desaparecido.
A casa tinha dois andares e parecia abandonada: vidraças
quebradas, pichações, pintura descascada e mofo nas paredes
davam a impressão de que ali eu só encontraria ratos, baratas
e morcegos. Mas o professor Fábio tinha me garantido que o
ex-vereador Alípio e seu filho ainda viviam na casa, e que o
livro que eu procurava, se existisse, provavelmente estaria na
biblioteca.
Na entrada, acima da enorme porta de madeira maciça,
esculpido em pedra sabão e já quase completamente tomado
pelo mofo, o ano 1813. Bati três vezes. Pela fresta vi que uma
luz mortiça, quase imperceptível, iluminou o interior. Logo em
seguida, um grito raivoso ecoou como um trovão pela casa até
os meus ouvidos: “Quem está aí?”. A voz não parecia ser a de
alguém com mais de noventa anos, por isso deduzi que fosse
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do filho. Respondi: “Sou amigo do professor Fábio”. Silêncio. O
homem devia estar decidindo o que fazer – ou simplesmente
amaldiçoando a vida por ter lhe trazido uma visita indesejada
àquela hora, obrigando-o a interromper sua insônia em meio
aos livros, enquanto o pai talvez dormisse o sono artificial dos
doentes terminais, dopado com morfina e tranquilizantes.
A porta se abriu pela metade e o homem que me encarou com
um olhar suspeito, pouco convidativo, não devia ter mais que
50 anos. Era alto, magro, grisalho, com o cabelo cortado bem
curto. Vestia uma camisa branca de algodão e uma calça social
bastante surrada. “O que você quer?”, ele perguntou. Sem
dizer uma palavra, abri minha mochila e tirei uma folha do livro
que eu procurava. Ele a pegou, olhou-a atentamente e sorriu.
“Você só tem isto?”. Tirei as outras duas folhas da mochila e
respondi, mostrando-as: “Só isto”. Ele não quis pegá-las. Abriu
a porta e me convidou para entrar.
O interior da casa não tinha nada a ver com o exterior. O que
do lado de fora parecia desleixo e abandono, no interior se
transformava em aconchego, limpeza e simplicidade.
Ele me indicou um sofá na sala e foi à cozinha preparar um
café.
O que eu sabia sobre o ex-vereador Alípio era só o que minha
mãe tinha me contado uma vez aos sussurros, na mesa de
jantar, enquanto baixávamos uma garrafa de vinho tinto e meu
pai roncava alto no quarto com a televisão ligada.
Ela me dissera que no início da década de 1960 ele era um
vereador combativo, articulado em seus discursos, e que fora
muito perseguido por apoiar o presidente João Goulart na
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cidade, onde a maioria das pessoas era radicalmente contra a
reforma agrária, por razões óbvias.
Defendida pelo presidente Goulart em seus discursos
inflamados na capital do país, a reforma da estrutura fundiária
nacional era também um tema recorrente nos
pronunciamentos do vereador Alípio durante as sessões da
câmara municipal. Por isso – e também por ser contrário à
perpetuação de duas importantes famílias no poder local, com
toda a sua corja de parasitas sugando o dinheiro público sem
trabalhar – ele foi violentamente perseguido: recebia ameaças
de morte todos os dias; pedras eram arremessadas nas
vidraças da sua casa, onde também muros e paredes eram
pichados com palavrões e boatos envolvendo sua esposa e seu
filho: diziam que ele espancava o menino e a mulher sem
piedade e que praticava rituais de magia negra; todos os
sábados, o vigário local organizava passeatas anticomunistas
pelas ruas da cidade, durante as quais a população gritava, com
os punhos erguidos: “Fora Alípio comunista!”, “Fora Alípio
comunista!”.
Os meios de comunicação locais, que pertenciam às duas
famílias que se revezavam no poder, não deixavam passar um
mínimo deslize do vereador, que era apresentado ao público
como um político despreparado, incompetente e louco.
O golpe militar de 1964 encerrou sua carreira definitivamente.
Alípio se recolheu, com a esposa e o filho, à velha casa da
família, construída no início do século XIX, passando a viver
unicamente da sua aposentadoria e do que a mulher ganhava
como costureira.
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Nem para ir ao enterro da esposa, alguns anos depois, ele saiu
de casa. Vivia recluso, juntamente com o filho, em meio a livros
e jornais que ele recebia do mundo inteiro.
“Meu pai era muito amigo do autor deste livro”, disse o filho
do ex-vereador ao me entregar uma xícara de café bem forte e
se sentar no sofá à minha frente. “Na verdade, quem o
escreveu não foi o amigo do meu pai, que, como você deve
saber, era um advogado muito respeitado na cidade. Foi um
jovem estudante de jornalismo, muito talentoso, que foi
contratado por ele para escrever o livro”.
Até ali, nada de novo para mim. Eu sabia também que o
contrato firmado entre os dois obrigava o jovem escritor
fantasma a distribuir um exemplar do livro a todas as pessoas
que fossem ao velório do advogado e a queimar os exemplares
restantes. Foi exatamente isso que ele fez.
O livro causou uma onda de choque muito grande. No próprio
velório, vários exemplares foram rasgados na frente da viúva e
de suas três filhas, inclusive o que tinha sido entregue ao meu
pai, que chegou a gritar um palavrão antes de abandonar o
salão. Quem me contou isso foi minha mãe. Ela estava lá e viu
como as pessoas reagiam à leitura do texto: algumas choravam
pelos cantos, outras gritavam insultos, com os olhos em
chamas, apontando para o caixão. O próprio padre, ao ler
algumas passagens do livro, deixou-o cair aos pés do enorme
crucifixo que dominava uma parte da cena e saiu do velório em
silêncio, sem nem encomendar o corpo. Minha mãe só
observava, e ao ser arrastada pelo meu pai em direção ao
estacionamento, trazia dentro da bolsa o seu exemplar, com a
intenção de lê-lo mais tarde.
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“Você sabe me dizer por que ninguém hoje reconhece ter um
exemplar ou uma cópia do livro, ou ousa falar sobre o que ele
continha?”, perguntei ao homem à minha frente. Ele sorriu e se
esquivou da pergunta dizendo: “Pelo visto você já conhece
muita coisa sobre a história desse livro e está curioso quanto
ao seu conteúdo, não é?”. Eu fiz um sinal afirmativo com a
cabeça. Ele me entregou a folha que eu tinha lhe mostrado na
entrada e perguntou: “A pessoa de que trata esse fragmento é
o seu pai?”. Mais uma vez fiz que sim com a cabeça.
Minha mãe leu o livro no mesmo dia do enterro, trancada no
banheiro. Chorou muito e, depois, tomada de uma emoção
confusa, que ia do ódio à compaixão, arrancou as três únicas
folhas que se referiam ao meu pai e à família dele, dobrou-as
cuidadosamente e guardou-as na biblioteca, dentro de um livro
que ficava numa prateleira bem alta, de difícil acesso: O
emblema vermelho da coragem, de Stephen Crane. Em seguida
ela foi ao quintal e queimou o livro do advogado na
churrasqueira. Meu pai a olhava do andar de cima, com o rosto
pálido e cansado, como se dez anos tivessem se passado
naquele único dia. Seus olhares se cruzaram e ele se afastou
em silêncio: um silêncio que dura até hoje.
Tudo isso ela me contou depois, numa outra rodada de vinho
pela madrugada, após eu ter lhe mostrado as três folhas que
eu tinha encontrado dentro da obra de Crane.
“Meu pai também esteve no velório, como você já deve saber”,
disse o filho do ex-vereador, saboreando seu café.
Eu sabia.
Naquele dia, o ex-vereador Alípio abandonou sua clausura e foi
se despedir do velho amigo. Ao chegar, recebeu das mãos do
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jovem escritor um exemplar do misterioso livro de memórias,
que ele folheou com prazer. Algumas pessoas já tinham lido
um ou outro trecho e se retirado; outros continuavam ali,
parados, tomados pelo espanto, segurando seus exemplares
abertos em alguma página específica. Ninguém nem percebeu
que a chegada do ex-vereador era por si só um fato inusitado,
surreal, depois de tantos anos que ele tinha permanecido
fechado em sua casa, quase sem nenhum contato com o
mundo exterior, a não ser através de livros e jornais.
Cansada do tédio de uma relação que já tinha ido longe
demais, a jovem Melissa terminou com ele no dia 29 de
dezembro, já com as malas prontas para um fim semana na
praia com as amigas. Era para ter sido antes, mas ela não
conseguia falar, com medo de prejudicar o tratamento que ele
seguia contra a depressão.
Mas a indiferença durou só até ele começar a gargalhar, com
seu livro aberto junto ao peito, atraindo para si todos os
olhares: assustados, ferozes, indignados. Seu riso estrondoso
era uma afronta não só à viúva e suas filhas, mas aos presentes
em geral, feridos e humilhados pelas palavras impressas
naquele livrinho que, até hoje, muitos anos depois, nesta sala
sombria onde escrevo este relato, me dá calafrios na espinha.
Um ano havia se passado desde que ele tentara se matar
cortando os pulsos na banheira, numa manhã chuvosa de
segunda-feira. Foi encontrado pela faxineira, inconsciente,
mergulhado na água já completamente tomada pelo vermelho
vivo que brotava de seus pulsos abertos. Foi levado às pressas
pelo caseiro ao hospital, onde se recuperou, preso a tubos e
aparelhos, após uma longa transfusão de sangue.
Estou olhando para ele agora...
Melissa tinha medo de que o término do namoro fosse
mergulhá-lo de novo numa espiral de melancolia profunda que
o levasse mais tarde a uma nova tentativa de suicídio, talvez
bem sucedida. Preferiu ir adiando a conversa até não ter mais
jeito.
Labaredas na Escuridão.
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Na voz de Amália
Foi então que, com a consciência pesada pelas inúmeras
traições e pressionada pelas amigas, ela decidiu terminar o
namoro de uma vez por todas numa quinta-feira à tarde,
quatro dias depois do Natal, enquanto tomavam café numa
lanchonete do centro histórico da cidade.
Ele era funcionário de uma siderúrgica, onde trabalhava no
setor contábil, e morava sozinho numa bela casa de madeira e
vidro, no alto de um morro, cercada por uma floresta
exuberante e assustadora. A casa era herança dos pais,
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falecidos em um acidente de avião quando voltavam de
Portugal, onde tinham ido visitar alguns parentes. Era jovem,
com dupla cidadania, mas nunca tinha saído daquela cidade,
embora conhecesse muito sobre o mundo e o ser humano
através dos livros, que lia com voracidade e prazer. Era dono de
uma biblioteca que, além de relíquias religiosas e místicas, que
iam do espiritismo ao candomblé, possuía uma enorme
variedade de clássicos, entre contos, romances e tratados
filosóficos, em várias línguas (que ele dominava fluentemente,
graças a uma educação de alto nível, recebida em um colégio
de padres franceses).
Na primeira vez que visitou a casa de vidro, numa bela noite
enluarada, a jovem Melissa, que nunca tinha lido um livro na
vida, ficou espantada com a cultura do namorado e pressentiu,
com tristeza, que aquela relação dificilmente daria certo.
Melissa era uma mulher linda. Tinha a pele clara e os olhos de
um azul brilhante e intenso, como duas grandes safiras.
Trabalhava como vendedora em uma boutique. Só gostava de
música sertaneja e tinha como bagagem de leitura apenas o
que seus amigos escreviam no Orkut e no Facebook.
Ele não tinha amigos. Era de pouca conversa, não gostava de
sair, e sempre que um colega de espírito mais generoso se
aproximava dele, era como se um campo de forças os
separasse. O namoro com a bela vendedora exigia dele um
esforço quase sobre-humano, pois ele tinha que sair de casa, ir
a barzinhos, ouvir música sertaneja e, o pior, aguentar os
amigos dela em intermináveis churrascos regados a cerveja nos
finais de semana. Ele simplesmente não tinha assunto nessas
festas, pois não entendia nada de futebol e carros, e detestava
ficar na beira da piscina bebendo e comendo, enquanto o
álcool ia subindo às cabeças daqueles jovens, tornando-os
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ainda mais insuportáveis: eles gritavam, dançavam e posavam
para fotos com as latinhas de cerveja nas mãos, levantando-as
em direção ao céu, às gargalhadas. O que ele sentia não era
preconceito, pois admirava a alegria e a espontaneidade
daquelas pessoas, às vezes até com um pouco de inveja. No
fundo, o que ele experimentava era uma sensação de
inadequação, um estranhamento que beirava a angústia e, às
vezes, o desespero.
Foi em meio a uma crise assim, numa segunda-feira chuvosa,
depois de um longo churrasco no domingo (e com meia garrafa
de vinho tinto na corrente sanguínea), que ele tentou se matar,
após ligar para a namorada dizendo que a amava e que não
queria perdê-la de jeito nenhum. Ela gostava dele, do seu jeito
doce e olhar perdido, mas se incomodava de vê-lo fazer tanta
coisa só para agradá-la, pois sabia que ele detestava sair, ouvir
música sertaneja e estar com os amigos dela. O tempo que ele
tinha para ler e assistir a filmes de arte, saboreando bons
vinhos europeus, ele passava com ela, fazendo o que mais
odiava – exceto sexo, que ambos adoravam, mas que nos
últimos tempos vinha perdendo a energia dos primeiros meses.
Ela, por sua vez, não abria mão do que gostava. Detestava
vinho, queijo gorgonzola, filmes franceses, música clássica e
não tinha nada para conversar sobre livros, pois na vida só
tinha lido um, e, mesmo assim, sem concluí-lo: “A Ilha
Perdida”, de Maria José Dupré.
Não dava para continuar.
O rompimento foi frio e rápido, ela nem quis terminar o suco.
Uma praia ensolarada, homens sarados e muita cerveja a
esperavam. Ele ficou ali, quieto, saboreando um café com
conhaque e pensando na vida que lhe escapava, no tempo que
não voltava mais. Trabalhava oito horas por dia numa empresa
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............................
e numa função que não tinham nada a ver com ele, e, nos
últimos dois anos, tinha amado uma mulher que o fazia deixar
de lado o que ele mais gostava: livros, filmes e, o mais
importante: o sonho de ser escritor.
Levantou-se da mesa com a certeza de que a morte não era a
melhor saída, que a vida podia ser diferente, bastava ele
querer.
A caminho de casa, ligou o rádio numa estação qualquer,
enquanto observava pelo pára-brisa do carro uma tempestade
que se formava sobre a cidade. A música, um fado muito
bonito na voz de Amália Rodrigues, fez com que ele pensasse
no país de seus avós, na cidade onde nascera sua mãe e para
onde seu pai se exilara na juventude para fugir da família e dos
falsos amigos que o sufocavam no Brasil.
Lisboa. Sempre quis conhecer a velha Lisboa, suas ruas e
colinas cheias de história e encanto, seus fados, seus cheiros,
suas texturas e cores...
............................
parte do dia para ler e a outra para procurar emprego em
algum jornal como cronista, revisor ou tradutor.
Alguns meses depois, suas histórias de terror começaram a ser
publicadas em revistas e jornais de Lisboa, Porto e Coimbra,
mas ele recebia muito pouco por elas. Foi quando um
conhecido da pensão, que havia sido livreiro em Paris por mais
de trinta anos, deu-lhe os endereços de algumas editoras e
revistas em Londres, que eram especializadas em histórias de
terror e que, segundo ele, pagariam muito mais pelos seus
contos. “Seus textos são muito bons, não devem ficar restritos
aos jornais portugueses”. O jovem escritor achou a ideia
interessante e começou a escrever em inglês, língua que
dominava desde a infância. (Aos nove anos, quase sem
consultar o dicionário, leu todos os contos do monumental
Grimms’ Fairy Tales, de onde talvez tenha surgido a sua paixão
por bruxas e monstros).
Por que não?
Suas histórias foram muito bem aceitas pelo público inglês, e
como eram escritas numa língua universal, correram o mundo
com uma velocidade espantosa, causando enorme sensação
entre o público e a crítica especializada.
Naquele mesmo dia colocou a casa à venda, pediu demissão do
emprego e comprou uma passagem só de ida para Portugal.
Levou consigo apenas algumas roupas, três manuscritos
esquecidos no fundo de uma gaveta, contendo vinte pequenos
contos de terror (que ele escreveu quando tinha 18 anos), e o
desejo ardente de fazer a vida valer a pena.
Um ano depois de chegar a Lisboa, uma coletânea de seus
contos já tinha sido publicada por uma importante editora
inglesa, que vendia milhões de cópias do livro nos quatro
cantos do mundo, e sua primeira novela de terror já estava no
prelo, sendo aguardada com ansiedade por um público ávido
por tramas inteligentes, mistério e muito sangue.
Em Lisboa, alugou um quarto numa pensão barata, próximo à
estação de metrô Saldanha, na Avenida Almirante Reis.
Comprou um notebook e se pôs a escrever, reservando uma
Porém, ele continuou no anonimato, vivendo na mesma
pensão da Avenida Almirante Reis, tomando o café da manhã
na mesma pastelaria da esquina – onde pedia sempre uma
tosta mista com café Sical –, almoçando no restaurante da
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Biblioteca Nacional e jantando um sanduíche de fiambre na
Casa das Sandes. Publicava seus textos sob o pseudônimo de
Daniel Zafón, e fazia questão de não aparecer (ele até recusou
uma entrevista no programa da Oprah Winfrey, que tinha lido
um comentário elogioso sobre sua coletânea de contos, feito
por ninguém menos que Stephen King, o mestre do macabro).
............................
Partir
O jovem Pierre acordou às três da madrugada, todo molhado
de suor, apesar do frio intenso que invadia o seu quarto pelas
frestas da janela, em rajadas de vento e neve.
Num sábado de primavera, passeando pelas livrarias do
Chiado, ele conheceu a mulher que em menos de seis meses se
tornaria sua esposa, e com quem voltaria para o Brasil. Ela era
angolana e trabalhava como bancária. Não gostava muito de
livros nem de filmes, nem trocava uma cerveja por um vinho,
mas era generosa, e soube naquele momento que ali estava o
homem da sua vida.
Enrolou-se num pesado casaco de lã e foi alimentar o fogo na
lareira.
Foi assim que se conheceram, num café da Rua Garret,
próximo à Praça Luiz de Camões, em Lisboa, onde conversaram
por mais de duas horas, ouvindo, ao fundo, os mais belos fados
portugueses, na inesquecível voz de Amália.
Esfregou vagarosamente as mãos sobre o fogo que ardia e
estalava num dos cantos do quarto, pensando nas expressões
de espanto, desespero, ódio, medo e também de indiferença e
resignação que tantas vezes ele vira nos rostos dos condenados
minutos antes da lâmina da guilhotina cortar fora as suas
cabeças. Algumas rodopiavam no ar antes de cair na cesta de
vime que ficava no chão, próximo ao patíbulo. Outras, maiores,
mais redondas e gordas, caíam como jacas maduras ou
pesados queijos Roquefort, sem muita acrobacia, produzindo,
ao atingir o fundo da cesta, um baque só um pouco mais
audível que o de uma cabeça menor. Outras, porém, devido ao
formato do crânio e da face, ou talvez em decorrência de uma
contração muscular mais forte no pescoço do condenado, além
de rodopiarem várias vezes no ar, saltavam dos troncos com
tanta força, que caíam fora da cesta até dois ou três metros
adiante, para delírio da multidão que se aglomerava ao redor
da guilhotina.
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Às quatro horas ele daria início à limpeza do cadafalso, pois
antes mesmo do nascer do sol haveria uma nova execução,
seguida de outras trinta, naquele dia sombrio de inverno do
ano de 1793, em Paris.
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O que pensavam os infelizes naquela hora? O que passava
pelas suas cabeças nos segundos que antecediam a
decapitação? O que eles sentiam no momento em que a lâmina
ceifava a carne e os ossos dos seus pescoços? E no instante
seguinte, quando a cabeça, já separada do tronco, caía ao
chão?
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tomando muito cuidado para conservar intactos os seus dedos
que, mesmo enluvados, tremiam de frio. Depois começou a
esfregar o chão do estrado, cujas manchas resistiam mais à
escova e ao sabão. Mas foi interrompido pela chegada de um
amigo, que subiu a escada sorrindo, meio cambaleante, como
se acabasse de sair de uma festa.
“Tenho que ir”, disse para si mesmo o jovem Pierre, enquanto
comia um pedaço de queijo e se dirigia à saída, espantando
com o pé esquerdo uma enorme ratazana que seguia
lentamente pelo corredor.
“Olá, Pierre”, disse o amigo.
Lá fora o frio era cortante, mas Pierre estava bem agasalhado;
e também aquele não era o seu primeiro inverno como
trabalhador pobre nas madrugadas escuras e geladas de Paris.
“Pierre, meu caro, não tenho muito tempo para você hoje.
Aliás, em breve não terei tempo para mais nada. Só vim para te
esclarecer uma dúvida que, na última vez que nos
encontramos, neste mesmo cadafalso, você começou a me
explicar, mas não terminou, porque fomos interrompidos pela
chegada da carroça, lembra?”.
Quando ele chegou à praça onde se erguia o cadafalso, o vento
soprava preguiçosamente alguns pequenos flocos de neve,
castigando-lhe a face desprotegida, que ardia e queimava de
frio. Havia neve depositada no chão de terra batida, mas não
em quantidade suficiente para esconder as marcas de sangue
deixadas por algumas cabeças que, como balas de canhão,
tinham sido lançadas ao solo no dia anterior. A lâmina
encontrava-se também com manchas e respingos escuros de
sangue coagulado e congelado, assim como a parte do estrado
que ficava próxima ao local de decapitação.
Seu trabalho era limpar tudo aquilo até a chegada da carroça
que traria o primeiro condenado do dia, juntamente com uma
multidão de curiosos, que se deliciava com cada espetáculo do
Terror.
“Henri!”, respondeu Pierre, levantando-se lentamente e
afastando com o pé o balde e a escova para o amigo passar.
“Claro que me lembro!”, disse Pierre empolgado, com os olhos
pregados no rosto pálido do amigo, que perguntou:
“E então?”.
Em resposta, Pierre reformulou a sua dúvida: “Naquele dia, o
que eu queria saber era se a cabeça, separada do tronco, logo
após o encontro da lâmina com o pescoço, tem consciência de
que ela se encontra decapitada”.
Henri passou a mão direita em seu pescoço nu, seguindo com
os dedos o contorno de uma linha avermelhada e grossa que o
rodeava como um cordão apertado, e respondeu:
Começou a limpeza pela lâmina, que ele esfregou com força
até que todos os resíduos de sangue desaparecessem,
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“Como eu mantive os olhos abertos, pude ver uma parte do
estrado e também a cesta de vime, que ficava ali embaixo. Ouvi
as pessoas gritando e também o assobio da lâmina que descia
veloz. Naquele momento, a única imagem que me veio à
mente foi a do meu filho de dois anos correndo e brincando no
pátio da nossa casa, feliz, enquanto eu lia um livro de M. de
Voltaire. Mas quando a lâmina separou minha cabeça do
tronco, no exato momento do corte, tanto a imagem
reconfortante da memória quanto a da terrível realidade
desapareceram, para no mesmo instante darem lugar a um
turbilhão de imagens confusas, mas que eu pude identificar
como sendo o céu, o sol, as pessoas, os prédios, o chão, tudo
em movimento, girando, girando velozmente, até eu ver, numa
espécie de fixidez instável – como se eu estivesse bêbado –, os
pés de uma enorme multidão”.
............................
Vou me entregar, Pierre... vou partir, como muitos outros
partiram... Partir...”.
Silêncio.
Os dois amigos se olharam, preparando-se para um abraço
fraterno, quando, de repente:
“A carroça”, disse Pierre, levantando os olhos em direção à
avenida. No segundo seguinte, voltando-se novamente para o
amigo:
“Henri...”.
Mas ele já tinha partido.
“Mas e depois?”, perguntou Pierre, os olhos brilhando de
curiosidade.
“Depois, no instante seguinte, eu vi uma luz, uma luz azulada
que brilhava intensamente à minha frente, e eu estava de pé,
com a cabeça de volta ao tronco, sem dor, sem medo, sentindo
uma espécie de chamado, um chamado silencioso, vindo da
luz. Mas eu não queria entrar. Eu lutei, desvencilhei-me
daquele campo de forças com determinação... Gritei que não,
que não... E aqui estou eu: um morto que vaga pela cidade, e
que é visto por alguns, como você, que possuem um dom
especial que eu ainda não sei explicar...”.
Henri fez uma breve pausa, enquanto olhava o vazio, e
continuou:
“Mas como eu disse, não dá mais para ficar. Vou me entregar.
Eles já me procuram, me cercam, tentam uma aproximação...
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Café com ingleses
Meu nome é Lucas, tenho 28 anos e sou escritor. Vivo de criar
e solucionar enigmas, que são publicados em revistas e sites
especializados no mundo inteiro. Trabalho em casa ou em
qualquer outro lugar, desde que haja por perto uma boa
máquina de café expresso, como a que eu tenho na minha
cozinha: uma obra-prima italiana que, se honrada com os grãos
que ela merece, faz um café maravilhoso, com espuma espessa
e aroma intenso – um aroma que entra pelo nariz e atinge a
alma em menos de dois segundos. E a alma em júbilo agradece,
pressentindo, através de suas conexões mágicas com os
sentidos do corpo, o equilíbrio perfeito entre o ácido e o
amargo, entre a vontade de alçar vôo até as portas do Céu e a
de ficar naquele corpo que, embora em putrefação, desfruta
todos os dias aquele líquido misterioso e demoníaco.
Não tenho emprego com carteira assinada e, como eu disse,
não preciso bater ponto em lugar nenhum, louvado seja!
Trabalhei uma vez numa empresa que me prendia num
cubículo de dois metros quadrados por mais de dez horas por
dia e me fazia digitar milhares de cartas e ofícios
desanimadores, que os chefes só assinavam e mandavam
despachar sem nem olhar para mim. E eu pensava: “Será que o
meu futuro é um dia me sentar numa destas cadeiras de couro,
dar ordens, fiscalizar, assinar papéis e ganhar dinheiro para
pagar o apartamento de luxo, o carro importado, as plásticas
da esposa, as férias no resort e os colégios e faculdades
caríssimos dos filhos?”.
Um dia eu tive a certeza: não era aquilo que eu queria para
mim. Por isso, depois de dois anos sendo explorado e
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humilhado por aqueles magnatas do carreirismo, que só
pensavam em competitividade e estratégias disto e daquilo,
resolvi pedir demissão e viajar pelo interior, para pensar um
pouco sobre o que fazer da vida.
Eu era fascinado por histórias de detetive. Quando entrei no
ônibus para Diamantina, numa fria manhã de julho, na mochila
eu levava oito livros dos grandes mestres do romance de
enigma, todos em inglês, língua que eu dominava desde
pequeno (porque meus pais, embora pobres, sempre se
preocuparam com a minha educação). E assim que eu arrumei
o meu primeiro emprego, matriculei-me também em um bom
curso de francês, o que me deu acesso a um outro universo
cultural, sobretudo no campo da literatura e do cinema. E
sozinho em casa, com a ajuda de apostilas e dicionários,
aprendi também o espanhol, porque eu queria ler Marsé, Rulfo
e Vázquez Montalbán no original. (E como é bom ler os grandes
mestres no original!).
No dia seguinte, sentado na mesa de um restaurante com vista
para o belo centro histórico de Diamantina, escrevi, em inglês,
o meu primeiro conto que seria publicado e me renderia algum
dinheiro. Nada espetacular: somente alguns dólares, que me
permitiram comprar os últimos lançamentos internacionais e
me inscrever num clube inglês para escritores iniciantes.
Quando eu trabalhava na firma de advogados, trancafiado lá
dentro como numa jaula, minha criatividade recebia poucos
estímulos. O que eu escrevia todos os dias, nas intermináveis
horas de expediente, era uma simples reprodução de modelos
padronizados, restando pouco tempo para o que eu realmente
gostava: ler, criar e escrever histórias de mistério. À noite,
quando eu chegava em casa, ia direto para o computador,
onde quase sempre encontrava um conto pela metade, e
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escrevia até de madrugada. Outras noites eu me dedicava à
leitura ou ao estudo do inglês, francês ou espanhol, sem saber
aonde aquilo me levaria. Uma vez cheguei até a pensar que
escrever contos de mistério e estudar línguas estrangeiras era
uma grande bobagem. Acabei me matriculando numa
faculdade de Direito, onde estudei por quase um ano, à noite,
ficando esse tempo todo sem fazer o que realmente me
elevava o espírito. Perdi a capacidade de inventar e criar,
tornando-me um robô, pois nessa faculdade o ensino era
péssimo, exigindo dos alunos tão somente a simples
reprodução mecânica de informações: um desperdício da
inteligência humana.
Desisti da faculdade no dia em que fui punido por interpretar
um dispositivo legal de forma contrária à interpretação do
professor. Aquilo para mim foi demais. Na noite seguinte eu já
estava de novo às voltas com meus livros, lendo e escrevendo.
Mas voltemos a Diamantina. Ali estava eu, sem trabalho, só
com o dinheiro do meu acerto e das poucas economias que eu
havia feito durante três ou quatro anos de sofrimento. Naquela
mesa afastada do restaurante, de frente para uma janela de
vidro que se abria para um belo conjunto de sobrados do
século XVIII, escrevi um conto assustador, sobre um livro
misterioso que levava à morte a maioria dos seus leitores.
No dia seguinte, enviei o conto a um famoso site inglês, o
mystery.com, que o aceitou sem nenhuma ressalva. Recebi a
notícia em casa, por e-mail, algumas semanas depois, no
sábado à noite. Minha alegria foi tanta que resolvi abrir um
vinho tinto francês – que me havia custado uma pequena
fortuna –, guardado a sete chaves para o dia da minha
aposentadoria. Não resisti. Liguei a tv no programa Bouillon de
Culture, tirei a roupa e passei duas horas no sofá, feliz da vida,
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assistindo a uma entrevista com a escritora Amélie Nothomb,
enquanto baixava o vinho e comia queijo prato com azeite de
oliva.
Naquela mesma semana recebi um e-mail de um agente
recrutador do mystery.com, um inglês que morava no Brasil,
me convidando para visitá-lo no seu apartamento. Fui sem
pensar duas vezes. Cheguei e encontrei a porta aberta, com um
bilhete me autorizando a entrar. Entrei e chamei. Nenhuma
resposta.
O apartamento parecia ser enorme. Era mobiliado e decorado
como se fosse uma mansão inglesa do século XIX, no melhor
estilo vitoriano: móveis pesados, de jacarandá ou mogno, com
detalhes de madrepérola; paredes cobertas por quadros
retratando belas paisagens do campo inglês; numerosos
candelabros, luminárias e enfeites que lembravam o Oriente na
época do Império; e num canto da sala, sobre um móvel que
devia ter mais de trezentos anos, várias peças do que me
pareceu ser a legítima cerâmica chinesa da Dinastia Song.
Porém, não tive tempo de testar meus conhecimentos de
História da Arte. Ouvi um grito assustador vindo do interior do
apartamento e corri para ver o que tinha acontecido. Ao
empurrar a porta do primeiro quarto, de onde eu supus ter
vindo o grito, deparei-me com uma cena horripilante: um
jovem loiro deitado na cama, tremendo, com as mãos no
pescoço, na altura da garganta, de onde saía, num jorro
contínuo, uma quantidade absurda de sangue. Ele me olhava e
gorgolejava, como se dissesse “Cuidado”. Foi quando me virei e
vi uma velha de camisola, segurando uma faca de açougueiro,
vindo em minha direção. Gritei desesperado e corri em direção
à janela, esquecendo-me de que estávamos no décimo andar.
Foi aí que ouvi as gargalhadas. O rapaz loiro estava de pé na
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cama e a velha tinha se transformado num outro rapaz, talvez
um pouco mais velho que o primeiro, e ambos riam, quase sem
fôlego.
Não gostei da brincadeira, mas relevei. O rapaz loiro se
chamava Nicolas, e o outro, seu namorado, era Alec, dois
ingleses endinheirados que trabalhavam para o site
mystery.com no Brasil.
Recebi deles um convite para integrar a equipe brasileira de
escritores de mistério do mystery.com (que, além de site, era
também editora e promovia uma série de festivais e eventos
relacionados à literatura de enigma no mundo todo,
principalmente na Europa e nos Estados Unidos, onde as
pessoas lêem muito mais do que na América Latina). “Seu
conto ‘Labaredas na Escuridão’ foi muito bem recebido pelos
fãs”, disse-me Nicolas, “e por isso o site quer fazer um teste
com você”.
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o primeiro gole, perguntei: “O que é isso?”. Os dois amigos
sorriram um para o outro, e Alec respondeu: “Um café
expresso, o que mais poderia ser?”. E eu olhava para o café,
para aquela espuma dourada que se prendia na borda interna
da xícara, consciente da pergunta idiota que eu acabara de
fazer, mas ao mesmo tempo enfeitiçado pela novidade daquele
sabor e daquele aroma, que me evocavam recordações de
vidas passadas, além de me aguçarem a lucidez e a criatividade
de uma forma inteiramente nova e inesperada. Nicolas
interrompeu meus pensamentos dizendo que talvez o que eu
queria saber era que tipo de café expresso era aquele. Eu
balancei a cabeça em sinal de afirmação e lentamente sorvi
mais um pouco da bebida, maravilhado com as sensações que
ela me provocava. A resposta não podia ser mais clara: “Esse
café é feito com os melhores grãos que existem no mundo,
numa máquina que, na minha opinião, também é a melhor do
mundo”, disse Nicolas.
Mas voltemos ao teste.
Estávamos sentados num dos enormes sofás da sala de estar,
cercados por obras de arte que deviam valer uma fortuna. Alec
tinha ido preparar um café e se demorava na cozinha. Nicolas
me perguntava sobre a minha vida. Quis saber se eu fazia outra
coisa além de escrever. Eu disse que tinha pedido demissão de
um emprego que me mantinha em baixíssimo nível de ideias e
que agora eu queria me dedicar em tempo integral à literatura.
Nicolas gostou muito do que ouviu e me disse que, se eu
passasse no teste, eles me pagariam quatro mil dólares por
mês para eu escrever um conto por semana.
Terminado o café, Nicolas me explicou que, para ingressar na
equipe de escritores do mystery.com, eu teria que transformar
aquele meu conto “Labaredas na Escuridão” em um romance
de 200 páginas, escrito em inglês, em um prazo de quatro
meses. Eu poderia ficar no apartamento da frente, que
também era deles, “e”, acrescentou Nicolas sorrindo, “você
terá direito a quantos cafés quiser, pois o apartamento
destinado a você está equipado com a mesma máquina que
acaba de fazer esta maravilha aqui”.
“E qual é o teste?”, perguntei animado.
Fiquei sem palavras.
Quando Nicolas ia começar a me responder, Alec entrou na
sala trazendo uma bandeja com três xícaras de café. Ao beber
Os dois jovens me encaravam com olhos cheios de mistério.
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“O que me diz?”, perguntou Nicolas.
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O mistério da caixa-preta
Fui conduzido por um jovem militar fardado até uma sala onde
duas cadeiras e uma mesa constituíam todo o mobiliário, e fui
apresentado a um outro militar, mais velho, talvez com pouco
mais de quarenta anos (embora seu olhar cansado e seus
cabelos grisalhos lhe dessem um ar triste de sexagenário
enfastiado com a vida).
Quando entrei na sala, o militar de meia-idade se encontrava
sentado numa das cadeiras, com as mãos em cima da mesa,
folheando alguns papéis. Ao me ver, fez um gesto quase
imperceptível com a cabeça, indicando-me a outra cadeira.
O militar mais jovem fez uma continência e foi embora,
fechando a porta atrás de si.
Senti que algo muito sério e misterioso pairava no ar, pois ao
me sentar, o militar me fez ler e assinar um termo de sigilo e
confidencialidade, deixando claro para mim que o vazamento
de informações sobre aquele caso complicaria muito a minha
vida. Não questionei nada, pois naquele momento a
curiosidade já tomava conta do meu espírito, fustigando-o,
empurrando-o na direção do medo, como sempre acontecia
quando eu me encontrava prestes a aceitar uma nova missão.
Sou conhecido no mundo inteiro por lidar com o sobrenatural.
Escrevi mais de vinte livros, nos quais analiso casos de arrepiar
os cabelos. Porém, nos meus trinta anos de carreira, lidando
com fenômenos paranormais de vários tipos, aquele foi o
primeiro termo de sigilo que eu fui obrigado a assinar, o que
me surpreendeu, apesar de toda a minha experiência no ramo,
fazendo meu coração disparar de ansiedade.
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O caso era completamente novo para mim:
Um avião bimotor com dez passageiros e três tripulantes a
bordo perdeu contato com os controladores de vôo e
desapareceu do radar às 23:53, no dia sete de junho. Até um
minuto antes, o contato com a torre de controle tinha sido
normal, sem nenhum sinal de alarme ou de tensão entre os
pilotos. Mas, de repente, tudo se apagou. Era uma noite
escura, com céu nublado, mas sem risco de tempestade; nada
indicava uma pane nos instrumentos, e o contato com outros
aviões naquela região mantinha-se normalmente, sem
problemas.
Até aí tudo indicava um grave acidente, cuja causa certamente
seria explicada quando a caixa-preta fosse encontrada em meio
aos destroços.
Só que não havia destroços. O avião foi encontrado, mas
intacto, como se tivesse realizado um pouso suave na pista de
um aeroporto qualquer. Todos os equipamentos funcionavam
perfeitamente, sem nenhum problema.
O que, no entanto, deixou os militares perplexos foi o fato da
aeronave ter sido encontrada no alto de uma montanha, em
uma área de topografia acidentada, cercada por enormes
rochas pontiagudas e árvores, não havendo a menor
possibilidade de ter ocorrido ali um pouso normal de avião.
“Eu estava lá e vi tudo com meus próprios olhos”, disse o
homem à minha frente, tentando disfarçar o espanto. (Ele fazia
parte da equipe de busca que encontrou o avião, no dia
seguinte ao desaparecimento). “Eu estava lá, tirei fotos, mas
até agora não consigo acreditar...”.
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A curiosidade me sufocava, meu corpo todo tremia, mas ao
mesmo tempo eu sentia pena daquele homem desamparado,
que me encarava com lágrimas nos olhos, incapaz de disfarçar
a emoção que aquela narrativa lhe provocava.
“Veja as fotos”, disse ele, estendendo para mim uma pasta de
cor parda, que ele tirou de uma pequena gaveta na mesa.
A primeira foto era do avião visto à distância, cercado de
rochas e árvores, em meio às montanhas. As árvores ao seu
redor, por todos os lados, estavam intactas, com seus galhos
frondosos, cheios de folhas: só isso já provava a
impossibilidade de um pouso naquela área. Mas tudo, TUDO
naquela foto gritava: IMPOSSÍVEL: as pedras, os morros...
Nenhuma marca no chão, nenhum destroço; o trem de pouso
baixado, limpo, impecável, como se tivesse sido acionado para
uma aterrissagem normal.
Outras fotos mostravam detalhes do avião: nada,
absolutamente NADA que indicasse um pouso forçado – na
verdade, nada que indicasse um pouso.
Como teria aquele avião chegado ali? Essa era a primeira
pergunta sem resposta, o primeiro enigma daquele caso
intrigante e assustador.
Mas o pior ainda estava por vir, o fato mais espantoso e
inexplicável de todos, algo que eu nunca tinha visto em toda a
minha vida:
As fotos seguintes mostravam o interior do avião. Na primeira,
em um plano afastado, todos os passageiros apareciam
sentados em suas poltronas, como se prosseguissem viagem.
Mas um detalhe importante saltava aos olhos do observador
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atento: mesmo à distância, era possível perceber em seus
rostos (em todos eles) um sorriso enigmático.
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eu faria tudo para solucionar aquele mistério, por sua família
desaparecida, por ele, por mim...
“Estão todos mortos”, disse o militar, mergulhando o rosto na
mesa, entre os braços cruzados. Consegui ouvi-lo dizer,
balbuciante: “Os laudos das autópsias não revelam nada,
absolutamente nada... Nenhuma causa...”.
Terminada essa troca de silêncios, ele se levantou da cadeira e
abriu a porta da sala, chamando uma mulher que se
encontrava parada no corredor: “Major, por favor, traga a
caixa-preta”.
Olhei as outras fotos: cada rosto individualmente, em close:
cada sorriso, cada olhar... Todos mortos? Não dava para
acreditar... Mas, no entanto, era verdade. Dava para ver que os
sorrisos e os olhares, que me pareciam ser de prazer, de
encantamento, de entrega a um destino almejado por todos,
desenhavam-se em corpos já sem vida, tomados por aquilo que
a interrupção definitiva da existência terrena lhes imprime:
rigidez, palidez... Mas os sorrisos eram vivos: eles transmitiam
uma mensagem que, para mim, naquele momento de emoção
intensa, ainda era confusa, mas que me levava a pensar em
tudo, menos na morte. Nada ali transmitia medo, agonia, dor,
aflição, sofrimento, mas justamente o contrário: naqueles
sorrisos eu via alegria, esperança, satisfação, regozijo, prazer.
A caixa-preta...
O que teria registrado a caixa-preta daquele vôo para a morte?
“Você se acha suficientemente espantado e perplexo?”,
perguntou-me ele, enquanto se acomodava de novo na
cadeira.
Não respondi.
A porta se abriu e uma pasta escura e volumosa foi posta sobre
a mesa por uma militar séria e compenetrada.
“Obrigado”, disse o homem, enquanto a mulher se retirava,
fechando a porta.
O que era aquilo, meu Deus?
O homem levantou o rosto, olhou para mim como se o mundo
desabasse ao seu redor e isso lhe fosse indiferente, apontou
para duas fotos, uma ao lado da outra, e disse: “Minha esposa
e meu filho”.
“Então”, continuou ele. “Você se acha suficientemente
surpreso e intrigado com o que eu lhe contei e mostrei até
agora?”.
Eu não conseguia responder.
Um silêncio profundo tomou conta da sala naquele momento.
Nossos olhares se pregaram um no outro: o dele implorando
uma explicação que o salvasse de si mesmo, resgatando-o do
abismo da dor, do sofrimento; e o meu dizendo que sim, que
87
Ele sorriu e disse, sem disfarçar a dor que dilacerava seu peito:
“Só que o mais espantoso e assustador vem agora... Está
aqui...”.
88
............................
E ele bateu a mão direita três vezes sobre a pasta:
Sem esperar minha resposta, ele tirou de dentro da pasta um
gravador, colocou-o bem perto de mim, apertou um botão
vermelho e se retirou da sala.
............................
Um homem me persegue, eu o vejo se aproximar, caminhando
lentamente pela rua imunda: um homem que fará de tudo para
me destruir. Eu corro, desesperado, mas ele está no meu
encalço. Veste-se com os paramentos, adornos e insígnias de
um oficial bem colocado na hierarquia administrativa da época
(mas que época? Onde?). Entro na multidão de gente suja, que
fala uma língua que eu não conheço (Polonês? Alemão?), e, de
repente, ele está bem na minha frente, olhando para mim: esse
olhar... O olhar do lobo que encontra a sua presa... Vejo-o aqui,
refletido no vidro desta cabine, neste avião: esse olhar que me
chega do passado, abrindo com seu ódio as névoas do tempo.
VOZ DO PILOTO:
Não o vejo mais.
Vou registrar tudo.
Estou agora deitado na grama de um jardim, próximo a um
riacho. Sou um velho e não consigo falar. Da minha boca
escorre uma baba branca, que uma mão feminina limpa com
um lenço bordado, de fino tecido. Não vejo o rosto da moça,
mas sinto a sua presença reconfortante, o seu toque delicado,
e ouço a sua voz dizendo “Obrigada por tudo... Obrigada”. Sou
um idoso que se aproxima da morte; mas não sou aquele rapaz
pobre, de olhar cansado, cinquenta anos mais velho. Sou outra
pessoa, em outro lugar, em outra época – uma época anterior
à que viveu o rapaz. Percebo isso pela minha roupa, pela minha
peruca e pelo som de uma música que me chega de algum
lugar atrás de mim (uma música composta naqueles dias,
sendo tocada ali pela primeira vez). Sou um velho que viveu
uma juventude completamente diferente da que teve aquele
jovem (que também sou eu), embora com a mesma carga de
sofrimento e dor, talvez ainda mais pesada (eu sinto isso).
“Na caixa-preta”.
Nossos olhares se cruzaram de novo e ele me perguntou:
“Está preparado?”.
Vejo à minha frente, pelo vidro da cabine (onde deveria estar
simplesmente a noite escura que nos cerca), um rapaz de olhar
cansado, mas ao mesmo tempo iluminado, cheio de vida. Sou
eu – tenho certeza que esse rapaz sou eu –, mas ele não tem o
meu rosto, o meu cabelo, o meu corpo; talvez o brilho do seu
olhar se pareça um pouco com o meu...– não sei se o brilho,
mas certamente alguma coisa no olhar (ou por trás do olhar...).
Veste-se como um mendigo e está caminhando pelas ruas de
uma cidade suja e fedorenta: eu sinto o cheiro da cidade: um
cheiro de podridão, de fezes e vômito; vejo a sujeira
acumulada na rua sendo pisada por pessoas e cavalos, que
correm de um lado para outro, sem parar. Olho para um prédio
em construção que, com certeza, não é da nossa época, nem
desse país.
Eu olho? Sou eu?
Sou agora uma mulher que, afobada, puxa a sua filha pelas
ruas de uma cidade que não me é estranha. Ouço falarem a
minha língua, sinto cheiros familiares: amendoim torrado,
O que eu faço ali, meu Deus?
89
90
............................
pipoca, canela, pequi. Entro numa casa pobre e subo as
escadas até um quarto onde um grupo de pessoas se reúne em
torno de um moribundo: meu pai. Não o reconheço em meio
aos lençóis imundos, respingados de sangue, mas esse homem
é meu pai, o pai daquela mulher que sou eu. Uma senhora
gorda de meia-idade me abraça, aos prantos, enquanto minha
filha se dirige à cama, chorando, e cai sobre o corpo quase sem
vida do avô. Meu pai, meu pai... Esse homem não é meu pai
(não o pai deste piloto que vos fala). Meu pai morreu jovem, eu
me lembro dele, do seu rosto, do seu sorriso... A menina,
minha filha (mas eu não tenho filha!), abraçada ao avô,
levanta-se e olha para as pessoas ao seu redor: eu vejo as suas
mãos trêmulas, sinto a sua dor, e lá no fundo, bem no fundo da
sua alma, sinto uma presença maligna, um resto de maldade...
Ela precisa de mim, que sou sua mãe; da mesma forma que
aquela jovem do passado precisou do velho que, no final da
vida, recebeu de suas mãos agradecidas os últimos gestos de
reconforto, as últimas carícias.
A senhora gorda me olha e me beija a face. Segura firme as
minhas mãos. Não a conheço, mas sinto que ela está aqui
também, neste avião... Suas mãos são fortes, seu amor é
imenso: eu posso contar com ela, e minha filha também... De
repente sinto um calafrio e lá está ele: o lobo. Ele está próximo
à cama, sério, com o semblante triste; mas de toda a desgraça
que caiu sobre a minha família, eu posso dizer: foi ele o
causador; e sinto, naquele momento, que ainda vou sofrer
muito em suas mãos. Não é mais aquele oficial da magistratura
ou do exército daquela cidade imunda; é um jovem de no
máximo vinte anos, mas que traz na alma uma maldade de
séculos (e eu vejo isso em seu olhar: o mesmo olhar que me
encarou com ódio naquela cidade perdida no tempo e no
espaço, em meio à multidão). Ele está aqui por algum motivo:
aqui, neste quadro de tristeza, de dor e luto: neste quarto
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............................
sombrio e triste que é o do meu pai moribundo; mas também
aqui, neste avião: ele está aqui, entre nós, talvez tendo as
mesmas visões fantasmagóricas e inexplicáveis...
E a minha filha? Eu olho para ela, vestida como uma criança
pobre dos anos 1910 ou 1920 (não sei bem), sem reconhecê-la,
mas sabendo que é minha filha. Aproximo-me dela, trago-a
para junto de mim, e a encaro nos olhos... E vendo agora a
cena (enquanto avançamos rumo ao desconhecido, sem
nenhum contato com o mundo exterior, sem nenhuma chance
de socorro), sinto a presença dela, dessa mesma menina, ao
meu lado, deitada na grama junto ao riacho, limpando a minha
baba de velho, há trezentos anos... O que eu fiz por essa
criança?
E de repente me vejo de novo naquela cidade suja (agora longe
do meu perseguidor), entrando em um barraco de madeira
cercado de lama, com ratos correndo para todos os lados. Ali
dentro está minha mãe doente e faminta. Dou-lhe um pedaço
de pão e leio para ela algumas passagens da Bíblia, o que lhe
alivia um pouco o sofrimento e o cansaço causados pela
tuberculose. Seu corpo treme a cada palavra minha...
Mas não é que elas estão ali também? A minha filha com seu
pranto no quarto do avô moribundo e a jovem ao lado do velho
na grama ouvindo música... A mãe daquele jovem mendigo que
sou eu é a filha daquela mãe desesperada que sou eu e uma
amiga, sobrinha ou mesmo filha daquele velho inválido que sou
eu também! São a mesma pessoa... Não... O mesmo espírito! O
mesmo espírito...
LONGO SILÊNCIO
92
............................
Outras cenas... Outros homens, outras pessoas (jovens e
velhos, mulheres e crianças) que são eu. Vi tudo... Outros
amigos, em vários lugares, em várias épocas, que se repetem,
para me fortalecer, para me ajudar: a senhora gorda aparece
três vezes (e ela está aqui conosco nesta viagem – eu sei que
está –, não como uma velha gorda, mas como um senhor calvo,
de óculos grossos – eu o vi na entrada do avião e sei que é ela,
eu sei...); o lobo faminto (cheio de ódio e maldade) aparece em
todas as cenas para me destruir, mas acaba me fortalecendo
cada vez mais (no riacho ele é um pescador que olha para trás,
erguendo um peixe, e me encara, sentindo prazer por me ver
decrépito e inútil): e ele também está aqui, neste avião, eu sei:
já não carrega mais todo aquele ódio de séculos: já sofreu o
bastante para se corrigir, para se purificar: seus filhos e netos já
sofreram muito por ele...
Todos estão aqui, com outros rostos (eu me lembro deles na
entrada: são eles...).
Olhe para mim, Joel, deixe-me ver seus olhos... É você... Não há
dúvida. No seu último suspiro, o pai daquela mulher que sou eu
abriu os olhos, e você está lá, Joel... Vejo seu olhar naquele
olhar, um brilho apagado e triste, mas é você... E agora te vejo
também em outros rostos... Em outras épocas e lugares...
Você entendeu? Nossa missão acabou... Sinta a recompensa,
Joel... Você está sentindo?
Ele está lá atrás, junto com os outros. Nós conseguimos...
SILÊNCIO
Eu vi, Joel, eu vi o que ele fez. Foi terrível! Nós o ajudamos,
meu amigo... Ele foi salvo e segue agora conosco para uma
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............................
outra missão, livre dos sofrimentos que o atormentaram e
torturaram por séculos. Ele não vai cedo demais (não existe
cedo demais). Ele é jovem (o seu corpo é jovem), mas seu
espírito está pronto para uma outra vida...
Eu o batizei, Joel. Seu pai é meu amigo, um militar digno e
honesto, mas triste, muito triste. Eu o batizei nesta vida e o
acompanhei até aqui, trazendo junto com ele a sua mãe, uma
jovem bondosa e cheia de amor, que nos ajudou várias vezes
no passado (neste e em outros.). E como eu sofri, Joel... Como
eu cresci e me aperfeiçoei nessa grande jornada! Como nos
aperfeiçoamos! Desse garoto eu fui pai, mãe, amigo, filho, por
várias vezes, e agora sou seu padrinho em Cristo, nosso Pai,
que nos conduz de volta, juntos, à sua casa, pois Ele precisa de
nós, neste momento: de nós treze – juntos – para uma nova
missão. E tem que ser agora. Por isso estamos aqui...
Sinta a recompensa, Joel... Não é maravilhoso? Você sente
também... Todos lá atrás estão sentindo a mesma alegria, a
mesma sensação de dever cumprido, o mesmo regozijo, o
mesmo encantamento...
Mas por que temos consciência disso? Por que essa verdade
nos foi revelada? Será que vamos nos esquecer de tudo
quando o avião cair?
SILÊNCIO
Esta música... Você está ouvindo, Joel? É a mesma música que
eu ouvi deitado na grama, no jardim, às margens daquele
riacho, enquanto recebia os cuidados daquele espírito
perturbado que nos fez chegar aonde chegamos (a este avião,
a esta paz, a esta alegria), e que agora está ali atrás, entre os
passageiros, salvo, ao lado da mãe...
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............................
O sol então brilhou mais forte
Esta música, Joel...
Só pode ser obra divina...
O pai não perdia a filha de vista.
Só pode vir dos Céus...
Ela tinha seis anos, cabelos lisos e loiros, pele clara, brilhante, e
um olhar vivo de menina saudável, feliz. Vestia o uniforme da
escola (saia azul e camisa branca), e estava de tênis, porque era
dia de Educação Física.
O PILOTO ASSOBIA UMA MÚSICA POR ALGUNS MINUTOS
FIM DA GRAVAÇÃO
Ela adorava a escola, mas naquele dia não foi à aula.
Fazia frio onde ela estava: um lugar bonito e calmo, com
árvores frondosas, grandes, as folhas balançando ao vento, e
flores, muitas flores: brancas, rosas, vermelhas e roxas,
espalhadas para todo lado.
Mas nem tudo era beleza ali.
Próximo a uma capelinha amarela, na sombra de duas enormes
castanheiras, um grupo de pessoas chorava ao redor de um
buraco no chão – um buraco grande e fundo.
A menina deu uma olhada, curiosa, e saiu correndo.
A mãe e o pai estavam lá, em pé, olhando para dentro do
buraco.
A mãe chorava desconsolada.
O pai parecia triste, mas não chorava.
Ele tinha 35 anos. Era alto, magro, o olhar sereno, calmo.
Estava ao lado da mãe, mas não perdia a menina de vista.
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............................
Quando ela se afastava, ele a chamava: “Vem cá, menina”. Ela
ia, bem devagar, e no seu ouvido ele dizia: “Fica por perto,
viu?”.
............................
“Você melhorou, Tereza”, a menina disse, e Tereza pulava,
cheia de vida.
“Venha, vamos contar ao papai”.
E ela ficava por ali mesmo, lendo as frases talhadas nas pedras
lisas e brilhantes, enormes leitos de pedra, cheios de cruzes e
imagens. Saudade, saudade... Por que aparece tanto a palavra
saudade? Ela queria saber, mas não perguntou ao pai, que
cochichava no ouvido da mãe, abraçando-a com carinho.
Mas o pai levantou o dedo, sério, e disse: “Agora não, filha,
agora não. E leve a Tereza para lá”.
“Tá bom, papai. Vem, Tereza, vem”.
Ao chegarem de carro, minutos antes, ela tinha perguntado:
“Que lugar bonito é esse, papai?”, e ele respondera: “Depois
eu te explico, meu bem. Agora não posso”.
E elas foram, felizes, olhando tudo.
Tinham encontrado a mãe chorando, sentada em um banco de
madeira, ao lado de uma velhinha pequena que, ao ver o pai,
abraçou-o com carinho, e depois olhou para a menina,
sorrindo.
“Olha aqui, Tereza, tem seu nome aqui nesta pedra... Ah, mas é
com ‘s’: Teresa de Jesus, 1934-1999...”.
Mais tarde, junto ao grupo que chorava sob as castanheiras, a
menina viu de novo a velhinha, o rosto meigo, os cabelos
brancos presos num coque alto de bruxa boa, acariciando com
mãos enrugadas e tortas a cabeça da jovem mãe, que soluçava,
cheia de pranto.
Curiosa, ela lia os nomes, as frases...
De repente, no céu frio, de nuvens cinzas e carregadas, o sol
começou a brilhar, e a menina sentiu uma alegria tão grande
que teve vontade de dançar, correr, pular, brincar...
Então ela correu, pulou, dançou, brincou, e Tereza com ela,
latindo, correndo, o rabo abanando de alegria boa, plena.
Lá longe, no buraco, ela viu as pessoas se dispersarem.
Foi quando a menina ouviu o latido de Tereza, sua cadela viralata.
“Vem cá, Tereza, vem cá”, ela gritou, e a cadela veio, abanando
o rabo, feliz.
O pai e a velhinha vieram em sua direção, chamando-a.
“E a mamãe?”, ela perguntou quando os dois chegaram.
Silêncio.
“Como você conseguiu sair do carro?”, ela perguntou, e a
cachorrinha pulava e lambia seus olhos, mãos e lábios.
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Ah!
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Um espanto a arrepiou toda.
............................
Um caminhão desgovernado, carregado de carvão...
Não esperou a resposta. Não precisou.
“Mamãe ficará bem?”, ela perguntou.
Ela sentiu, lá no fundo, que a mãe não ia.
“Vá com a vovó”, disse-lhe o pai, sorrindo.
O pai sorriu. “Sim, meu amor, mamãe ficará bem. Estarei com
ela um pouco, até ela se fortalecer, superar a perda,
entender... Depois nos encontraremos”.
“Posso levar a Tereza?”.
“Papai...”.
“Claro que sim, querida”.
“Sim, querida”.
Ela então abraçou a avó, que ela nem conhecia. Mas não teve
medo. Sentiu-se quente, acolhida, protegida.
“Eu te amo”.
“Eu também te amo, minha vida”.
E chamou Tereza, que veio correndo, os olhos sorrindo, pronta
para partir.
E se abraçaram.
O pai lhe deu um beijo e disse: “Mamãe precisa de mim”.
O sol então brilhou mais forte, e ela se lembrou do pai
chamando-a, logo depois do almoço, ela de uniforme,
chorando, com Tereza nos braços, e ele dizendo: “Ela está
velhinha, doente, não vai viver muito, querida... Mas vamos
tentar ajudá-la”. Eles então entraram no carro e partiram.
Passariam primeiro no veterinário. Depois ela ficaria na escola.
Mas isso não aconteceu.
O acidente...
Ela se lembrou do acidente...
Foi tudo tão rápido...
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............................
na escuridão, de tremer as paredes de toda a vizinhança. Um
estrondo assustador.
Outro caminho
Voltando para casa à noite, depois de uma longa jornada de
trabalho, o jovem professor acelerou o carro na avenida
deserta, e, observando os postes que passavam como
relâmpagos à sua direita, pensou: “É só eu virar o volante um
pouquinho assim e pronto, acabou”.
Mas ele não ouviu nenhum estrondo.
Mas ele não queria isso. Ele amava a vida. Só não suportava
mais ser professor, sofrer (ah como sofria!) nas duas escolas
públicas onde lecionava, recebendo, por quarenta e oito aulas
semanais, um salário miserável, daqueles de obrigar a esposa a
comprar roupa para os filhos no bazar da igreja, a bater ponto
todos os dias na fila do pão com manteiga do restaurante da
criança, e a implorar a ajuda dos pais dela para pagar o aluguel
do apartamento mês sim mês não.
Nenhum barulho de ferros e vidros, só a música...
Era vergonhoso, humilhante, mas isso não lhe tirava a vontade
de viver, de participar da vida dos filhos, de vê-los crescer.
Foi só de brincadeira, para despertar a imaginação, que
naquela noite ele pensou em como seria a sua morte se, em
alta velocidade e sem cinto de segurança, ele virasse o volante
bruscamente, bem em cima de um poste.
No rádio tocava um concerto de Bach. Um dos que ele mais
gostava. Flautas, violinos, oboés e violoncelos que,
enfeitiçados, produziam um som celestial, mágico, fora do
tempo e do espaço: uma música que crescia e brilhava –
enquanto, na sua imaginação, em plena avenida deserta e fria,
o carro se chocava, em câmera lenta, com um enorme poste de
concreto. Um choque daqueles de mergulhar o bairro inteiro
101
Só ouvia a música...
E o carro abraçando o poste, lentamente, quadro a quadro...
E no filme, seu corpo sendo jogado para frente, sua cabeça
indo de encontro ao poste, e um ferro afiado como navalha
rasgando seu ventre com a rapidez e a precisão de um
açougueiro experiente separando os quartos de um porco
gordo e rosado, tudo ao mesmo tempo: a cabeça se abrindo
numa explosão lenta, como o desabrochar de uma rosa
vermelha: o crânio se quebrando, sua massa cinzenta e branca
espalhando-se pelo muro; um dos olhos pulando para fora,
ploc, bem devagar; os dentes lançados para todos os lados, em
meio a ossos quebrados e sangue, muito sangue: como
naquelas cenas de espirro em câmera lenta, só que tudo muito
vermelho e grosso, de uma grossura espessa, viva.
E os violinos vibravam seus tons suaves e luminosos, unindo
num todo harmônico e fecundo a música, o sangue, os ossos,
os dentes, a vida e a morte. E de repente o filme voltou para o
início, para o momento exato da batida, a câmera se
acomodando agora junto aos membros inferiores, esquecidos
na quietude morna do buraco escuro que se abria logo abaixo
do volante. Como num passe de mágica, uma luz branca
iluminou a escuridão daquele espaço e uma lenta sucessão de
imagens começou, como num trilho: as pernas sendo
atravessadas pelas lâminas rasgadas da lataria do carro,
102
............................
enquanto iam de encontro ao painel e se quebravam em vários
pedaços (ossos partidos perfurando a carne e o tecido grosso
da calça de linho barato com suas lascas pontiagudas).
Um médico forense certamente atestaria: “Inverossímil” – “As
pernas não se quebrariam assim, o olho não saltaria para fora”,
diria ele – mas foi essa a cena que o jovem professor imaginou
naquele momento.
E foi assim, de repente, pensando na sua morte em câmera
lenta ao som de Bach, que ele amou a vida como nunca tinha
amado.
Como seria fácil acabar com tudo, meu corpo convertido num
monte de carne, vísceras, ossos e sangue. Depois, sacos
plásticos para reunir os pedaços espalhados por toda parte,
rodo para puxar o sangue, detergente e esfregão para lavar o
muro, empregados da limpeza, da central elétrica e da
funerária realizando mais um trabalho cansativo e fora de
hora...
............................
estressado, corrigindo provas, elaborando exercícios,
preenchendo diários... Para quê? Para quê, meu Deus?
Não. Isso não é vida. Não estudei para isso. Meu tempo é
precioso. Cada instante que eu perco nas salas de aula é um
instante a menos de alegria na minha vida. Vida que pode
terminar a qualquer momento, no primeiro poste que
aparecer, na primeira esquina.
Ele então virou o carro e pegou um outro caminho, mais longo
e estreito, com mais subidas e descidas, mas diferente,
interessante, cheio de casarões antigos, lojas e restaurantes
que ele nunca tinha visto.
E nesse outro caminho, um novo futuro se esboçou... Um novo
trabalho, uma nova rotina... Livros, filmes, atividades com a
família nos finais de semana...
Uma nova vida...
E o cheiro de flores e velas acesas, orações, lágrimas...
E a última pá de terra...
Ele então parou o carro, respirou fundo, encostou a cabeça no
volante e chorou. Chorou copiosamente. E enquanto chorava
reviveu momentos de alegria e prazer junto da família, feliz,
conversando, brincando, comendo; ou sozinho, lendo,
pensando, curtindo a natureza, vivendo o instante... Momentos
raros, raríssimos, vividos nos intervalos cada vez menores entre
o trabalho e a vida. Não se lembrava mais de quando tivera um
sábado livre para a família, para o descanso... Sempre
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104
............................
Não foi preciso matar ninguém
............................
Sandra, que deu a ele a chance de se isolar do mundo por dois
anos só para escrever, o dia inteiro, com quatro refeições,
exercícios físicos moderados e bons livros para ler à noite.
Gerusa vive de escrever. Começou há pouco mais de cinco anos
e já publicou vinte romances de sucesso, todos narrando as
aventuras e desventuras sexuais de uma jovem beldade do
interior na capital. Pornografia pura. Tosca, mas muito popular.
Na verdade o nome dele é Wander, mas todo o mundo o
chama pelo pseudônimo de Gerusa (que aparece sempre
grande, em letras vermelhas e brilhantes, nas capas de seus
livros). Eu mesmo, que o conheço desde moleque, não consigo
mais chamá-lo de Wander. ‘O Wander é escritor’, ‘o Wander
gosta de ler’, ‘o Wander...’. Não, não consigo. É Gerusa e
pronto, não tem jeito.
Mas ele não é gay não. Teve muitas mulheres na vida, todas
loucas por ele. Uma até tentou matá-lo. Paixão doentia. Um
tiro só. Pegou de raspão.
Ele é muito boa pinta, simpático e cheio de gogó. Mas não é só
isso não. Dizem que ele tem um olhar “penetrante”, um sorriso
“encantador”, que “enfeitiça” e “enlouquece” as mulheres,
mas isso eu não sei. O que eu sei é que ele sempre gostou de
ler, e que nas suas cantadas ele usa citações tiradas de
romances cor-de-rosa vagabundos ou de revistinhas de
sacanagem.
Mas hoje ele está firme com Sandra, uma negra cheia de vida,
bonitona, daquelas que andam orgulhosas pela rua com o nariz
empinado, colocando a maioria das mulheres no chinelo.
E se Gerusa conseguiu escrever seus primeiros romances de
sucesso e sair da miséria para o estrelato foi por causa de
105
Antes disso ele até tinha tentado escrever, mas a pressão para
que trabalhasse (no sentido de ganhar dinheiro) era
insuportável. Até a mãe dele o chamava de vagabundo. O pai
dizia que ia limpar a bunda com as porcarias que ele escrevia. E
uma vez a avó de oitenta e dois anos, com Alzheimer em
estado avançado, ao vê-lo se aproximar da sua cama para lhe
pedir a benção, deu-lhe uma bofetada na cara e disse “Vá
trabalhar vagabundo!”.
Depois disso as cobranças aumentaram ainda mais. “É tudo em
cima da coitada da Sandra”, “Ela lava, passa, faz comida e ainda
trabalha fora pra sustentar aquele marmanjo”, “Ele faz o quê,
afinal?”.
Mas Sandra o amava e não cobrava nada dele. Ela lia seus
contos e até dava algumas ideias interessantes, apimentando
as cenas de sexo com um toque especial, só dela. Ela
acreditava nele. “Um dia você vai ser famoso, Wander, e a
gente vai sair dessa miséria”, ela dizia. “Mas como, Sandrinha?
se com o peso dessa miséria nas costas eu nem consigo
escrever direito!”.
Ele se desesperava.
Até que um dia Sandra teve uma ideia.
Conversou com um primo dela, o Orlando, um jovem advogado
inescrupuloso, e com a ajuda dele arquitetou uma trama
diabólica.
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............................
Gerusa ouviu a explicação dos dois com muita atenção,
concordou com tudo, e já na semana seguinte entrou em ação.
Era domingo.
Fazia muito calor.
Sandra tinha combinado de tomar conta da avó de Gerusa,
para que a família fosse passar o dia numa cachoeira da região.
E lá estava Sandra no fogão, preparando um mingau de aveia
para a vovó, quando Gerusa entrou no apartamento com uma
pistola automática na mão, gritando “Vou te matar, sua
desgraçada”, e a vovó, assustada, ouvindo os gritos do neto,
gritou mais alto ainda: “Vagabundo, vagabundo!”.
Um vizinho ouviu tudo e ligou para a polícia, que chegou em
menos de quinze minutos.
Estava armado o circo.
Redes de TV foram informadas e começaram a anunciar:
“Homem de trinta anos invade a casa dos pais e faz esposa e
avó de reféns”.
(A arma ele tinha conseguido com bandidos no morro.
Mercadoria boa. Uso exclusivo das Forças Armadas).
Ele não podia demorar ali dentro, nem ficar na janela dando
sopa para os atiradores de elite. O que ele tinha que fazer era
só chamar a atenção da polícia e se entregar. As instruções de
Orlando e Sandra eram claras nesse sentido.
107
............................
Orlando seria seu advogado. A perspectiva dele era muito boa:
“Não tem como dar errado, Wander. Por esses crimes eu
consigo para você uns quatro anos na penitenciária local (que,
como você sabe, é quase um hotel três estrelas,
principalmente para escritores pé rapados que querem se
isolar do mundo como você). Mas como você vai se comportar
direitinho, não vai pegar mais que dois anos, com certeza. Dois
anos eu te garanto. Vou dar um jeito para você não trabalhar lá
dentro, ficando com o tempo todo livre para ler e escrever. Ah!
E vou te emprestar meu notebook”.
Perfeito.
Ele então se entregou, foi julgado, condenado e levado para a
penitenciária.
Café da manhã, almoço, lanche e jantar, tudo de primeira
qualidade, com nutricionista e tudo. Enfermeira, psicóloga e
assistente social à disposição. E se precisasse de atendimento
médico na cidade, passava na frente de todos que estivessem
na fila (questão de segurança). E o melhor: uma cela só para
ele. Não precisava trabalhar, e ainda tinha autorização para
utilizar o notebook e receber de fora livros variados (diferentes
dos que eram disponibilizados pela biblioteca do presídio),
trazidos por Sandra de quinze em quinze dias: contos de
Rubem Fonseca e Dalton Trevisan, romances policiais de P. D.
James, Dorothy L. Sayers e Agatha Christie, e, é claro, o que
havia de mais obsceno em literatura pornográfica no mundo
(para inspirá-lo em sua faina rumo ao sucesso).
Gerusa escrevia o dia inteiro, todos os dias, quase sem parar,
produzindo intensamente. Seu primeiro romance ficou pronto
em sete meses: “O diário secreto”.
108
............................
Sandra visitou várias editoras oferecendo o manuscrito, até
que, finalmente, uma delas resolveu publicá-lo. As vendas
foram fabulosas. No segundo mês após a publicação, o livro já
estava sendo traduzido para o inglês, francês e espanhol.
............................
E lá estava ela, de óculos escuros, encostada num carrão
importado, toda sorridente. Ao vê-la, Gerusa caminhou feliz
em sua direção, já pensando na vida que levariam a partir
daquele dia: viagens, festas, carros, homenagens...
E logo vieram os dois livros seguintes, que ficaram na lista de
best-sellers por vários meses, chegando até a ultrapassar Paulo
Coelho.
Pois é...
Gerusa não acreditava no que via! Foi tudo tão rápido! Nos
primeiros meses de prisão ela chegou até a pensar em um
plano para voltar depois, caso não conseguisse se tornar um
escritor famoso. “Talvez eu precise de mais tempo”, pensou, “e
para isso o crime tem que ser mais grave, alguma coisa que me
garanta pelo menos cinco anos aqui... Cinco anos... Mas é
claro! Se eu matar um pobre coitado, um Zé ninguém, talvez o
Orlando me consiga uma condenação de no máximo dez ou
quinze anos (que, com as leis deste país, viram cinco na maior
facilidade). Cinco anos... Em cinco anos eu escrevo vinte
romances!”.
Mas não foi preciso matar ninguém. Em dois anos e três
romances, Gerusa tinha se tornado um escritor de grande
sucesso.
Cumprida a pena, na saída do presídio, os fãs se aglomeravam
do lado de fora gritando GE-RU-SA, GE-RU-SA. Até a vovó
estava lá, na cadeira de rodas, rindo, a boca toda ferida de
estomatite, babando horrores. Algumas mulheres exibiam os
seios para ele, tremiam suas línguas sebosas e ofereciam-lhe os
traseiros roliços; mas seus olhos só procuravam uma pessoa:
Sandra.
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Para ter certeza
De certa forma...
Ele sozinho embaixo de uma enorme mangueira: olhos
fechados, braços abertos, o rosto virado para cima, enquanto a
chuva caía em gotas grossas e geladas sobre seu corpo.
Ele fantasiava.
Vivia a cena de um conto que ele lia enquanto aplicava uma
prova na turma de História. E quando acordou do transe, notou
que estava de pé no meio da sala, segurando o livro aberto na
frente dos olhos, cheio de susto. Alguns alunos disfarçavam o
riso, olhando-o meio de lado; outros esperavam de pé junto à
lousa: queriam entregar a prova e assinar a lista de presença,
que ele segurava com a outra mão, o braço ainda estendido.
Ele tinha vivido a cena tão intensamente, que mesmo ao
perceber que estava no meio da sala, cercado de alunos,
continuou sentindo a água escorrendo pelo corpo, os cabelos
molhados, o vento frio e úmido no rosto.
Mas logo passou, e ele se dirigiu à mesa, cabisbaixo.
Ele era assim: quando lia livros de autores tomados de paixão,
escritos com sangue e verdade, ele vivia a trama como se
estivesse lá; e se não havia trama propriamente dita (como nos
livros de Clarice Lispector), ele sentia as dores, alegrias e
inquietações dos personagens como se o espírito do escritor se
apoderasse dele todo, dominando-o e libertando-o do seu
mundo real para jogá-lo numa teia de memórias e sensações
que não eram dele.
Feitiçaria?
Ele era assim...
Até que uma noite ele sentiu algo se movendo no seu ouvido
esquerdo: uma coisa mole e viscosa, muito pequena, que ele
tocou com a ponta do dedo mindinho antes dela desaparecer
dentro da sua cabeça.
Depois disso, o ato de ler transformou-se para ele numa ação
mecânica.
Os livros perderam a magia. Ele não conseguia mais se
transportar no tempo e no espaço, sentir o que os personagens
sentiam e viver as histórias como antes ele vivia.
“O que está acontecendo comigo?”, ele se perguntava,
desesperado, vasculhando as estantes à procura de seus livros
preferidos.
Finalmente sentou-se na escrivaninha e fez um teste que lhe
pareceu definitivo. Abriu o livro “Laços de Família”, de Clarice
Lispector, e releu o conto que mais o tocava: uma história que,
a cada releitura, transportava-o para o interior de um bonde no
Rio de Janeiro, no final dos anos 50, sem ele nunca ter andado
de bonde nem estado no Rio de Janeiro.
Não sentiu nada.
Era como ler um manual de Contabilidade ou de Direito
Tributário: um texto seco e duro, sem vida, sem alma.
Clarice sem alma?
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Ele tinha perdido a imaginação...
Tinha perdido a capacidade de representar imagens...
De criar...
De sentir...
“Meu Deus... Tornei-me um técnico!”, gritou, olhando para as
estantes repletas de livros.
Tentou outros testes, procurando manter a calma. Mas quando
releu “A alma do vinho”, de Baudelaire, e não sentiu nada,
desesperou-se.
Na verdade, aquilo não era desespero. Não era tristeza. Não
era angústia. Era o quê?
E todos na cidade foram ficando assim: frios e sem imaginação,
incapazes de criar, de sonhar.
Suas aulas de História se tornaram objetivas e enfadonhas, só
fatos e datas, datas e fatos. Mas era isso que os alunos
queriam. Era o que eles podiam suportar, incapazes de analisar
e recriar o passado.
Todos os olhos se tornaram opacos e vazios naquela cidade,
como nos retratos de Modigliani. E todas as pessoas que
passavam por lá eram contaminadas pelo que ficou conhecido
como “a praga dos olhos”, mas que parecia mais uma coisa de
espírito, embora nenhum padre, macumbeiro ou médium
tivesse conseguido descobrir do que se tratava.
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............................
Até que um jovem neurologista da capital resolveu levar a sério
os relatos de alguns doentes sobre algo se movendo em seus
ouvidos pouco antes dos primeiros sintomas aparecerem.
Começou examinando-os em seu consultório, onde, com a
ajuda de uma psicóloga, realizou uma série de testes. Depois
de dois meses, conseguiu convencer outros médicos de que a
contaminação só acontecia naquela cidade. Por quê? Não sabia
explicar. Concluiu que aquilo não era transmissível de pessoa
para pessoa, mas originado de uma fonte oculta em algum
lugar na cidade, e que, misteriosamente, só afetava quem
morava ou passava por lá.
Foi quando o nosso professor de História tornou-se cobaia da
equipe formada pelo jovem neurologista da capital, num dos
centros de pesquisa em neurocirurgia mais respeitados do
mundo.
A escolha dele como cobaia se deveu ao fato de que, em raros
momentos, quando tomava café, ele conseguia escrever
versos. E muito bonitos! Uma noite ele escreveu um poema
inteiro, embora, no dia seguinte, mal soletrasse o próprio
nome.
Alguma coisa diferente acontecia com ele. Um mecanismo de
defesa, ativado pela cafeína, parecia reagir de alguma forma ao
torpor do seu espírito, permitindo-o, por alguns minutos,
fantasiar e criar.
E assim foi...
Até que, durante uma cirurgia para estudar um inchaço numa
parte do seu cérebro, um neurocirurgião viu, numa fração de
segundo, um movimento estranho, de uma sutileza quase
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imperceptível, numa área bem específica da superfície de sua
massa encefálica.
............................
Inúmeras análises foram feitas: nos Estados Unidos, na Europa,
no Japão...
Com uma experiência de mais de trinta anos e uma imaginação
acima da média, esse médico disse, com segurança (e para
espanto de todos os presentes):
Conclusão: aquilo não era deste mundo.
“Isso aqui não faz parte do cérebro dele”.
“Seres de outro planeta estão preparando uma invasão. Fazem
testes. Descobriram um canal de comunicação entre o cérebro
e o espírito, e nele estão instalando suas sanguessugas
alienígenas, programadas para destruir a capacidade do
homem de criar, transformando-o num robô, numa máquina
estúpida, fácil de ser dominada. Estão preparando tudo. É só
uma questão de tempo”.
Todos arregalaram os olhos.
“Vejam”.
Mas ninguém via nada.
O jovem neurologista trouxe uma lupa, olhou bem de perto,
com muita atenção, e disse: “Você tem razão, mas como...?”.
E o pânico se instalou:
Mas para o nosso pacato professor isso não importava. Ele não
ligava para essas teorias malucas. Para ele, o que importava era
ter certeza de que a sua imaginação tinha voltado.
“Algo vivo, vindo de fora (um parasita ou sei lá o quê), entrou
de alguma forma na caixa craniana e se instalou aqui. Está bem
aqui. Mas se parece tanto com o cérebro que... Deve ser por
isso que nenhum exame foi capaz de detectá-lo até agora...”.
Então ele fez um café – que saboreou no quintal, olhando a lua
cheia – e dirigiu-se à biblioteca, caminhando lentamente.
“Mas isso existe?”, um outro médico perguntou.
Reuniu alguns livros sobre a mesa, respirou fundo e começou a
ler: Adélia Prado, Baudelaire, Drummond, Pessoa, Goethe, Jack
Kerouac, Rubem Fonseca...
“Está aqui, não está?”.
E ele lia...
E começaram a retirar o misterioso organismo, com muito
cuidado. Era pequeno, mole, achatado e estava grudado na
massa encefálica por meio de pequenas ventosas, como uma
sanguessuga.
Foi difícil, mas conseguiram extraí-lo.
E enquanto lia sentia tudo que era possível sentir...
Imaginava.
Criava.
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E criando escrevia, cheio de dor e paixão, o mistério de si:
longas páginas de luz e sombra...
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Das profundezas
Um mistério barroco.
Vou lhe contar uma história das mais assustadoras:
Mas faltava uma escritora...
Uma vez, um jovem milionário estava à procura de uma
experiência nova que lhe preenchesse o oco do espírito. O
espanto que ele havia sentido quando vira da janela de um
ônibus espacial a Terra azul cercada de luzes e trevas no
silêncio do universo sem fim já não era mais que uma
lembrança fugaz, uma imagem distante, só resgatada das
sombras da memória quando seus olhos percorriam o álbum
514 do seu perfil no Facebook (o que ele já nem fazia mais,
entediado com esse registro antigo de uma experiência velha e
insossa).
Deslumbrado e feliz, foi buscá-la na estante...
Clarice...
Deixou-a por último...
Para ter certeza.
Não, aquilo já era passado. Ele precisava de algo novo,
diferente de tudo que já experimentara: um susto que lhe
permitisse tocar no mistério da vida: algo que lhe desse medo
de verdade, que fosse realmente terrível...
Um risco certo.
De quê?
De morrer, é claro. O que mais lhe faltava experimentar?
A perspectiva difusa da morte ele tivera diversas vezes nos
saltos e escaladas que realizou nos quatro cantos do mundo,
nas ferozes corridas de carro e de moto que competiu em
vários países da Europa e da América, nos mergulhos com
tubarões brancos nas águas frias do sul da África...
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Não era disso que ele precisava naquele momento para sair da
letargia que o tédio lhe provocava, para se arrancar da lama
movediça do enfado que o cercava de vazio. O risco de morte,
para ele, tinha que ser certo. A sua entrada no tenebroso
mistério da vida tinha que ser uma possibilidade precisa,
rigorosa, determinada pela sorte. Como num jogo de dados.
............................
toda vez que realizava uma nova proeza, comprava um novo
brinquedo ou fazia uma nova viagem fantástica, gastando os
bilhões herdados de seu pai.
Mas a morte rápida e vulgar de uma Roleta Russa estava
definitivamente descartada de seus planos. A morte não podia
ser instantânea. Ela tinha que ser rápida o bastante para que o
sofrimento físico não se prolongasse e neutralizasse a dor (ou
júbilo) do espírito que se apaga ou parte rumo ao
desconhecido; mas tinha que ser lenta o suficiente para que
esse mesmo espírito pudesse se ver e se sentir na morte do
corpo, consciente da transformação em curso, da
inevitabilidade do processo. Nada de se prostrar num leito,
como o Ivan Ilitch de Tolstoi, e aguardar um futuro certo, mas
impreciso. Nada de filosofar sobre a vida e a morte enquanto o
corpo é lentamente consumido por um tumor que se espalha
no sangue, como o professor João Maria, do livro de Gustavo
Corção. Mas, também, nada que fosse tão banal e instantâneo
como queimar o cérebro com um balaço na têmpora ou no céu
da boca.
Um de seus inúmeros contatos internacionais lhe trouxe a
resposta em menos de cinco minutos.
Mas ele não queria morrer. O que o fascinava mesmo era a
perspectiva de um perigo real de morte: uma ameaça que
fosse rigorosamente prevista e calculada.
A iguaria era chamada em algumas regiões da Ásia de Balut.
Imagino-a como a última refeição servida às almas danadas no
seu longo percurso rumo ao inferno: ovos de pato incubados
até que os fetos estejam quase formados, com penas, bicos,
olhos e ossos, mortos em água fervente pouco antes de serem
comidos. Nas Filipinas e no Camboja o Balut é vendido nas
ruas, em bancas de ambulantes. Normalmente os fregueses
fazem uma abertura na casca do ovo para beber o caldo, que é
temperado com um pouco de sal e pimenta, para em seguida
abri-lo por inteiro e se deliciarem com o feto, mastigando-o
Mas se ele morresse, que fosse uma morte branca e suave,
sem grandes tormentos, que lhe revelasse o mistério
lentamente, como se no frio de uma noite de outono lhe
fossem abertas as cortinas de um palco e se lhe revelasse o
indefinível e inominável novo, aquilo que o afastaria
definitivamente do tédio mortal que lhe entorpecia a alma
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Mas onde conseguir essa sensação de perigo ou essa morte
ideal?
E em menos de uma hora o nosso jovem e enfastiado
milionário encontrava-se tranquilamente acomodado em seu
jato particular, tomando um Château Latif Rothschild 1787, em
direção a Paris.
Nas dez horas que ele levou para cruzar o Atlântico, uma amiga
francesa se encarregou de lhe conseguir uma vaga num
autêntico festim diabólico, pagando adiantado ao chef
responsável pelo serviço quase um milhão de dólares, para
que, juntamente com mais quatro milionários entediados, ele
corresse o risco de ser contemplado em um sorteio com uma
morte na medida certa, meticulosamente preparada por mãos
de mestre.
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lentamente, com suaves movimentos da língua, para melhor
sentirem a textura, a maciez da carne e o estalejar dos ossinhos
se quebrando nos dentes.
Só que, para o festim do qual participou o nosso jovem
milionário, o chef francês injetou em um dos cinco ovos Balut
servidos como prato principal uma substância venenosa
preparada por ele mesmo, seguindo à risca as instruções de
uma das maiores autoridades em venenos do mundo: um
composto de ervas, raízes e peçonhas que, na dosagem certa,
leva à morte em menos de dez minutos, com pouco sofrimento
ao corpo físico, permitindo assim ao espírito captar cada
instante do desabrochar dessa flor misteriosa que trazemos
plantada em nós desde a primeira encarnação.
O ritual deveria ser seguido rigorosamente. O suco do embrião,
que certamente conteria uma dose fatal de veneno, não
deveria ser bebido no início. Primeiro come-se a cabeça, depois
o pescoço, o peito e, por último, o abdômen, onde estaria
concentrada a dose mortal. Só depois de ingeridas as vísceras
do feto é que os primeiros sinais da morte seriam sentidos
(uma dormência nos lábios e na língua), e só nesse momento é
que deveria ser bebido o caldo reservado no fundo do ovo.
Seguiria-se uma sensação de leveza, como se o corpo flutuasse
no ar, acompanhada de visões fantasmagóricas, relatadas com
detalhes por várias pessoas que se submeteram à experiência.
A morte viria em cerca de dez minutos, com a pessoa
consciente e lúcida até o último segundo.
Foi exatamente isso que aconteceu naquela noite, em um
luxuoso apartamento localizado na Avenue Montaigne, em
Paris, ao som da Lacrimosa de Mozart.
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Os cinco milionários (três homens e duas mulheres) receberam
cada um o seu ovo das mãos de um rapaz alto e magro que,
logo em seguida, retirou-se, dizendo: “Vous connaissez les
règles”.
Só que, minutos depois (cada um dos participantes mastigando
já os últimos resquícios do seu Balut), o vazio sombrio que
castigava por dentro a alma do nosso jovem milionário fez com
que ele saltasse desesperadamente sobre a filha de um
magnata americano, para lhe tomar o caldo do embrião,
quando ela já o levava à boca, depois de todos terem
percebido claramente que ELA tinha sido a sorteada. Foi
impedido por um senhor de feições caninas que se sentava à
sua direita, resignado, e que, logo em seguida, impediu-o
também de se lançar sobre o vômito escuro despejado na
mesa pela jovem, com o objetivo de extrair dali algum resíduo
fatal de veneno que curasse para sempre a dor de sua
existência.
[Silêncio]
Entendeu a história?
Olhe para mim.
Não chore. Abra seu coração para Deus, pois Deus tudo
preenche. Este vazio não existe em Deus... Sua vida sem limites
criou para ti este tormento. Falta humildade, perdão,
compaixão, amor e bondade em sua vida... Falta Deus... Falta
TUDO...
Dê-me sua mão. Abra seu coração e repita comigo:
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Das profundezas a ti clamo, ó Senhor. / Senhor, escuta a minha
voz; sejam os teus ouvidos atentos à voz das minhas súplicas. /
Se tu, Senhor, observares as iniquidades, Senhor, quem
subsistirá? / Mas contigo está o perdão, para que sejas temido.
/ Aguardo ao Senhor; a minha alma o aguarda, e espero na sua
palavra. / A minha alma anseia pelo Senhor, mais do que os
guardas pela manhã, sim, mais do que os guardas pela manhã.
/ Espere Israel no Senhor, porque no Senhor há misericórdia, e
nele há abundante redenção. / E ele remirá Israel de todas as
suas iniquidades. [Salmo 130]
............................
Comadre seca
De três em três meses, os três irmãos gêmeos se reuniam na
casa de um sobrinho, filho de um irmão mais velho deles, já
falecido. Apolinário, Aparício e Aprígio tinham 85 anos. O
sobrinho, Leandro, era um analista de sistemas de 33 anos, que
morava sozinho e passava o dia inteiro no computador
atualizando blogs e inventando games.
No dia marcado para receber os tios, o rapaz preparava o
enorme tabuleiro na mesa de jantar, colocando as peças
exatamente nos mesmos lugares que tinham ficado três meses
antes, após a última partida. O jogo, inventado pelo sobrinho,
chamava-se “Comadre seca”, e era, para os três velhos
jogadores, o maior prazer de suas vidas.
Numa ponta do tabuleiro ficavam três peças representando
cada um dos três jogadores. De cada peça partia um caminho
quadriculado e retilíneo, com dezenas de casas, que ia até a
outra ponta do tabuleiro. Ali, três outras peças eram
posicionadas, cada uma em um caminho, na mesma linha da
peça que ficava do outro lado. Elas representavam três
“comadres secas”: três velhas enrugadas, vestidas de preto e
segurando na mão direita uma enorme foice, pontuda e afiada.
Na verdade, as peças que andavam eram as comadres, e
naquele dia, a comadre que estava à frente era a do Apolinário,
seguida pela do Aprígio e, por último, pela do Aparício. A
comadre que chegasse primeiro à peça representando o seu
jogador dava a vitória a ele.
Como as comadres se movimentavam?
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De três em três meses, na hora marcada para a partida, cada
jogador levava à casa do sobrinho uma pasta contendo vários
exames. Vou citar apenas alguns: Hemograma, Uréia,
Creatinina,
TSH,
Glicemia,
Colesterol,
Triglicérides,
Densitometria óssea, Teste Ergométrico, Ecocardiodoppler,
Exame de Próstata, Ultrassom de abdômen, Medição
Ambulatorial da Pressão Arterial, Urina, Fezes e muitos outros.
De posse de todos os resultados, o sobrinho ia para o
computador e cadastrava as centenas de números e dados
qualitativos em um sistema desenvolvido por ele, onde cada
jogador tinha a sua tela, com vários campos de preenchimento.
Depois de processar os dados de cada irmão, o sistema
estabelecia um número para cada um, que indicava quantas
casas as comadres secas deveriam andar.
Na última partida, devido a um resultado bastante satisfatório
na glicemia do Apolinário (sua glicose foi de 150 para 250), e
também ao fato de terem sido detectados traços de sangue em
suas fezes, sua comadre avançou três casas, enquanto a do
Aprígio avançou duas e a do Aparício só uma. Aparício ficou
muito chateado, pois ele tinha abandonado de vez a
caminhada havia quatro meses, na esperança de que o seu
colesterol atingisse níveis mais altos, o que não aconteceu. Já o
Aprígio havia contado com o aumento do prolapso em uma das
valvas do seu coração, anomalia que tinha um peso muito
grande na contagem dos pontos, o que também não
aconteceu, embora a sua urina estivesse numa situação bem
favorável, com uma coloração turva e cheiro muito forte, o que
acabou colocando a sua comadre em segundo lugar.
Nos três meses que Apolinário ficou na dianteira, os outros
irmãos tiveram que satisfazer uma série de caprichos seus,
conforme determinavam as regras do jogo: levar café na cama
para ele todas as manhãs, ler para ele à noite (a sua visão não
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............................
estava muito boa), esfregá-lo na banheira todas as tardes,
preparar sua comida seguindo um rigoroso cardápio, e muitos
outros. Aprígio, que havia ficado em segundo lugar, pôde
escolher quais caprichos atender, ficando o resto para o
Aparício.
Para o que estava na dianteira, era uma maravilha. Mas mesmo
para os outros dois irmãos, esse período de desvantagem
temporária era divertido, pois eles sempre tinham novas
estratégias para colocar em prática visando a melhorar seus
resultados na próxima partida: fumar mais, exercitar menos,
aumentar a dose diária de cachaça (ou trocar a cachaça de
melhor qualidade por uma mais vagabunda), aumentar o
consumo de doces e gorduras, escolhendo sempre os produtos
mais calóricos, etc.
Naquele dia, os dados foram preenchidos num clima de muito
suspense, pois um irmão não mostrava nem comentava seus
exames com os outros, e a palidez, os olhos fundos e o leve
tremor observado nas mãos do Aprígio pareciam indicar que o
primeiro lugar seria dele. Mas não foi o que aconteceu. A
comadre seca de Apolinário avançou mais três casas e as dos
outros dois somente uma. A glicose continuou pesando no
destino do velho Apolinário, embora já não houvesse nenhum
traço de sangue nas suas fezes. Mas surgiu uma novidade: o
aumento da sua creatinina indicava algum problema grave nos
rins. Apolinário sabia que este seria o seu trunfo, por isso
entrou na casa do sobrinho com um ar superior e arrogante,
como se cantasse vitória antes da hora. E não deu outra: mais
uma vez seus caprichos teriam que ser atendidos pelos irmãos.
Naquela mesma noite, porém, Aparício teve um enfarte
fulminante e morreu no banheiro, enquanto preparava um
banho especial com sais aromáticos para o Apolinário. Dois
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dias depois, Aprígio perdeu o equilíbrio no quintal, enquanto
estendia as cuecas de Apolinário no varal, e bateu a cabeça
numa pedra, vindo a falecer alguns minutos depois.
Apolinário foi morar com o sobrinho, que cuidou muito bem
dele por três anos.
Se o velho morreu? Não. Quem morreu foi o sobrinho, aos 37
anos, atropelado na calçada por um motorista bêbado,
deixando todos os seus bens para o tio, que viveu até os 98
anos, lúcido e feliz.
No dia da partida, a comadre entrou silenciosa e sorrateira no
quarto de Apolinário. Quando o velho sentiu sua presença,
lembrou-se de um belo poema de Mário Quintana e disse,
sorrindo: “Ê comadre... a senhora sempre chega pontualmente
na hora mais incerta... Mas que importa, afinal? Entre... Estou
pronto”.
E partiu.
P. S.: “Comadre seca” era como o grande cineasta italiano Pier Paolo
Pasonili (1922-1975) chamava a morte.
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O soar da Trombeta
A sessão da Câmara que votaria o aumento salarial dos
deputados já estava quase lotada. Enfiados em seus ternos
caros e engomados, os representantes do povo desfilavam
pelos corredores do Congresso acompanhados de seus
assessores, que também esperavam ansiosos o resultado da
votação, já que receberiam, com o aumento de seus chefes,
um rechonchudo quinhão.
Ao final da sessão, marcada por aplausos efusivos e nenhuma
voz discordante, uma turba de deputados saiu, sorridente, pela
porta principal, em direção ao estacionamento. Porém, algo
muito estranho os impediu de ultrapassar o final da rampa:
uma força magnética poderosa, ou algo parecido, que não os
deixava prosseguir seu caminho de volta à abastança, agora
ainda mais farta com o novo aumento salarial.
Os outros deputados e assessores se juntaram aos primeiros e
forçaram a passagem, mas nada que fizessem conseguia
romper aquela barreira invisível que parecia se erguer sobre
todo o prédio, formando uma imensa redoma. Tentaram
outros lugares, outros pontos de fuga, mas nada.
Estavam presos.
Do lado de fora, o povo se aglomerava para tentar entender o
que estava acontecendo com aqueles homens engravatados e
mulheres elegantes parados no final da rampa de acesso ao
estacionamento. Uma senhora idosa se aproximou de um
deputado e perguntou: “Por que o senhor não sai?”. Ele não
respondeu. Tentou mais uma vez dar um passo, mas não
conseguiu. “Não posso”, disse ele por fim, desesperado,
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olhando nos olhos da velha. “Eles não podem sair”, gritou a
velha para a multidão, que crescia cada vez mais em torno da
redoma invisível.
A noite chegou e os deputados continuavam lá, presos. Redes
de TV e rádio se instalaram ao redor do Congresso, registrando
tudo. Sindicatos e movimentos sociais de todo o país
organizaram caravanas de partidários e simpatizantes para
irem à capital testemunhar de perto aquele fato inusitado e
surreal: no dia da aprovação do substancioso aumento salarial
concedido pelos deputados a eles mesmos, uma força
sobrenatural os impedia de sair do local da votação.
“O que você acha que vai acontecer com eles?”, perguntavam
os repórteres às pessoas do lado de fora. “Eu acho que isto é
um castigo de Deus, e que eles vão ficar lá dentro até
apodrecerem”, respondiam alguns mais revoltados, que aos
poucos foram se juntando em torno de um líder barbudo, de
aspecto desleixado.
Três semanas se passaram.
Os deputados já não se encontravam mais de terno e gravata.
Andavam pelo Congresso sem camisa, alguns só de cueca,
calcinha e sutiã, descalços e famintos, pois o ar condicionado
tinha pifado e a comida acabado. Por mais que eles tentassem
desligar ou destruir as câmeras de segurança do interior do
prédio, nada as impedia de continuarem registrando todos os
seus movimentos, que, por um desses milagres da tecnologia,
puderam ser acompanhados em todo o país, em rede nacional.
Milhões de pessoas puderam ver, por exemplo, dois deputados
disputando um pacote de bolachas importadas, sob o olhar
atento de um assessor, que vasculhava o chão à procura de
migalhas; uma deputada gorda agredindo a tapas um colega,
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acusando-o de ter invadido seu gabinete à procura de
chocolates e outras guloseimas; a morte de um deputado
idoso, que implorava a alguém do lado de fora o seu remédio
do coração que, mesmo comprado na farmácia mais próxima,
não passava pelo campo de forças invisível.
Nada passava pela barreira. Parentes e amigos dos
parlamentares tentaram entregar-lhes comida, bebida e água,
mas a redoma jogava tudo para fora novamente, com uma
força descomunal.
Seis meses se passaram.
Quinze deputados tinham morrido, dez deles devorados por
outros parlamentares, que não aguentaram a fome atroz que
os rasgava por dentro, causando dores lancinantes em seus
estômagos vazios. Estavam sujos e fediam, pois não tinham
água há vários dias. Alguns enlouqueceram: pediram perdão a
Deus pelos seus pecados, prometendo que nunca mais
roubariam o povo; olhavam para as câmeras de segurança e,
aos prantos, imploravam misericórdia, reconhecendo que
aquele salário era uma afronta à pobreza da população, uma
indecência, uma injustiça sem tamanho.
Do lado de fora, o líder barbudo gritava insultos e era
acompanhado por uma multidão de seguidores, que mais
parecia um exército infernal pronto para o ataque. No meio do
povo, um jovem negro recitava, aos gritos, trechos de antigos e
quase esquecidos poemas de Vinicius de Moraes: “Senhor!
Tudo é blasfêmia e tudo é lodo. / Vós não vedes, Senhor, não
vedes, todo / Esse povo a sofrer? / Deixai por um momento a
Igreja Santa / A iniqüidade do pecado é tanta / Que Roma vai
morrer!”. A multidão se inflamava e erguia foices, facas,
machados, pás e picaretas, dando mostras de querer
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atravessar a redoma e acabar com aquilo de uma vez por
todas. “Escutai, Senhor Deus, a imensa grita / Da humanidade
sofredora e aflita / Que morre no pavor! / - Dai-lhe a morte no
campo de batalha / Dai-lhe sangue vermelho por mortalha / Dai-lhe a guerra, Senhor!”.
Mas a redoma não se abriu. Não houve carnificina. O fim
chegou lentamente para os deputados.
Só quatro parlamentares sobreviveram. E por isso o povo
passou a acreditar que eles eram os únicos que realmente
tinham a “ficha limpa”. Os quatro se uniram e organizaram um
movimento político no país contra a corrupção, a favor da
justiça, da dignidade e da igualdade que, pela primeira vez na
história, foi um sucesso e mudou radicalmente a política
nacional.
Foi aí que eu acordei.
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Quatro
A jovem dona de casa acorda todos os dias às seis da manhã,
abre a janela do quarto e respira fundo quatro vezes o vento
fresco que, àquela hora, mesmo no inverno, sopra silencioso e
calmo sobre as casas do bairro, trazendo consigo o cheiro
agradável do cerrado selvagem que cerca toda a região.
Da janela, ela vai direto ao banheiro, contando suas passadas
de forma a alcançar a bancada de granito exatamente no
quarto passo.
Vencida essa etapa, ela começa a escovar os dentes, contando
os movimentos da escova de cima pra baixo, de baixo pra cima,
para os lados, pra trás e pra frente, bem devagar, terminando a
escovação somente quando conclui quatro séries de quarenta
e quatro movimentos cada uma (nem mais, nem menos).
Depois, quatro bochechos com água; quatro movimentos com
a mão direita em quatro partes do rosto, limpando a pele com
um chumaço de algodão embebido em um produto importado,
caríssimo; quatro séries de quarenta e quatro exercícios para
os músculos da face, para prevenir rugas precoces; quatro
séries de quatorze contrações musculares na bunda, para
mantê-la durinha e atraente; quatro escovadas no cabelo (em
quatro lugares diferentes do couro cabeludo); quatro sorrisos
encantadores olhando para o espelho, para aumentar a autoestima; quatro movimentos cuidadosos com o papel higiênico
(dobrado quatro vezes) no cu, para limpá-lo, depois das
necessidades feitas... Quatro isso, quatro aquilo...
E ela está agora na cozinha, preparando o seu café, enquanto o
marido se arruma para o trabalho.
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............................
Como está sempre de dieta, ela só usa adoçante: quatro gotas
para o café e quatro para a coalhada. Na xícara, quatro giros da
colher para um lado e quatro para o outro. Quatro minitorradas, quatro pequenos pedaços de melão, e está
terminado o desjejum.
Em seguida, ela abre a geladeira e confere se todos os
alimentos estão organizados em grupos de quatro. Na parte
dos ovos, é preciso sempre deixar um espaço vazio entre cada
quarteto: não pode ser diferente (se sobrar ou faltar ovos, ela
resolve o problema eliminando os que precisam ser
eliminados). Se há só três maçãs, ela coloca uma pêra junto,
para formar um grupo de quatro. Se um produto fica isolado e
não há como agrupá-lo (por exemplo: um iogurte pode entrar
no grupo da coalhada, mas não no da cenoura), ela o joga no
lixo.
O lixo representa para ela o espaço da desordem, da
incoerência, do desvario. As emanações que dali saem têm
para ela um significado aterrador: representam o desarranjo da
vida: a indisciplina e o desalinho da sociedade, em completa
desarmonia com as forças que ordenam os quatro elementos
da natureza: terra, fogo, ar e água. Para ela, o lixo é o que
sobra do seu trabalho de limpeza e organização: é o que
escapa à simetria de sua existência metódica e regular,
devendo ser eliminado todos os dias às quatro da madrugada.
Ela se levanta às 3:50, posiciona-se em frente ao saco cheio de
detritos e diz, baixinho, a palavra FORA quatro vezes. Depois,
carrega o saco até a rua, contando os passos em séries de
quatro (com uma pausa de quatro segundos entre elas), e
deixa-o no passeio. Porém, antes de voltar a dormir, ela lava as
mãos com sabão, esfregando-as quarenta e quatro vezes, para
se purificar.
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............................
O marido finge que respeita as regras da mulher, para não
enfurecê-la e tornar impossível o convívio entre eles. Mas
como ele trabalha o dia inteiro (e quando chega em casa à
noite fica até tarde no escritório adiantando o serviço para o
dia seguinte ou assistindo a vídeos pornográficos), os poucos
momentos de contato com a mulher (quando ele tem que se
mostrar obediente às suas diretivas) não o incomodam. De
quinze em quinze dias, quando se entregam a um rápido
intercurso sexual, ele até se diverte com o padrão que ela se
obriga a seguir: para cada quatro gemidos, um gritinho (“ai”,
“ui”), devendo o número total de gritos ser sempre múltiplo de
quatro. Para ele, a única regra é respeitar o padrão de séries
rápidas de quatro estocadas, com intervalos de quatro
segundos entre elas.
Mas quando ele está só, em casa ou no trabalho, as normas
impostas pela mulher são terminantemente desobedecidas.
Uma noite ela o espia pela janela do escritório e descobre que,
enquanto assiste a vídeos pornográficos na frente do
computador, ele se masturba com dois dedos, e não com
quatro, como ela o ensinou.
E não é só isso. Atenta a todos os movimentos do marido (que
ela passa a observar escondida), descobre inúmeras outras
faltas imperdoáveis, no banheiro, na cozinha, na saída para o
trabalho...
Decide, então, realizar um ritual de limpeza dos mais
importantes:
No dia do seu aniversário de quatro anos de casamento (numa
providencial quarta-feira, dia de Mercúrio), ela termina sua
relação com o marido definitivamente dando-lhe quatro tiros
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............................
no peito, exatamente às quatro da madrugada. Leva o corpo
até o banheiro, onde, com um cutelo, pica-o em 44 pedaços;
divide tudo em quatro sacos de lixo, que ela deixa
serenamente no passeio, com a agradável sensação de missão
cumprida. Fecha os olhos e levanta os braços quatro vezes,
dando boas vindas ao sol que se ergue por trás dos jatobás,
pequis e ipês, trazendo, com seu brilho e calor, a esperança de
uma nova vida.
............................
Iogurte com aveia
O velho escritor sentou-se na privada e suspirou
profundamente, antecipando já as enormes dificuldades que
enfrentaria. Normalmente o mais difícil era vencer os dez
primeiros centímetros. (Não, ele nunca tinha medido. Era só
uma conjectura, baseada na sensação que a coisa lhe
provocava: algo como um torpedo gigante rasgando-o ao meio
len-ta-men-te).
As artérias pulsavam, sua cabeça parecia que ia explodir e sua
visão era ofuscada pelo pipocar de infinitas estrelas. Já nem
sentia mais prazer, como antes, quando se refugiava ali com
seus livros preferidos e se deixava levar pela magia da leitura
até não sentir mais as pernas.
Ali ninguém o incomodava. “Onde ele está?” “Está no
banheiro”. “Ah...”. E ele podia ler em paz, o tempo que fosse,
porque estar no banheiro o desobrigava de qualquer coisa.
Porque não se pode interromper a defecação de ninguém, por
mais lenta que seja. Isso não se faz, é desumano. E ele lia
capítulos inteiros de Dostoievski e Tolstoi, contos de Rubem
Fonseca e Edgar Allan Poe, enquanto seu intestino era
desocupado com ternura e suavidade, sem dor, muito pelo
contrário: com uma sensação maravilhosa de liberdade, de
prazer: um esvaziamento do ser que ultrapassava em muito os
limites do fisiológico, desembaraçando-se também o espírito
de suas escórias. Era como se ali, naquela privada, a vida
passasse a ter sentido: como se finalmente a Natureza lhe
gritasse: “Existir é isso! Devolve-me hoje o que não te serve
mais, mas não se esqueça: estou te aguardando...”.
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Mas já não era mais assim há muito tempo. E a coisa vinha
piorando a cada semana.
Naquele dia ele nem abriu o livro (uma bela edição francesa de
“O Conde de Monte-Cristo”), que ficou no chão, enquanto ele
gemia de dor.
A visita ao proctologista tinha sido adiada pela terceira vez, na
esperança de que a fibra solúvel e o iogurte com aveia que a
esposa lhe preparava finalmente fariam efeito. Mas nada.
Parecia não ter fibra nem iogurte no mundo que fizesse aquilo
ceder mais facilmente.
E naquele dia a sua pressão devia estar muito alta. Sentia uma
dor de cabeça horrível que, mesmo quando ele parava para
respirar, continuava, como se milhares de agulhas lhe
espetassem o crânio por dentro, procurando uma saída.
Até que tudo se apagou.
A esposa encontrou-o caído, de joelhos, com a cabeça no chão
e as nádegas viradas para cima, preso entre o armário e a
privada. Com a morte, a musculatura anal se contraiu e cortou
a ponta daquilo que ele tentava expulsar do corpo a duras
penas: uma massa escura e endurecida que, após o corte, rolou
pela coxa direita e estacionou na borda da privada.
“Deu tudo certo”, pensou a viúva.
Como ele ultimamente vinha deixando a porta do banheiro
destrancada, com medo de passar mal, a mulher (que era
enfermeira) pôde entrar, constatar a morte e ligar
imediatamente para a funerária, esperando agilizar as coisas
para que, no dia seguinte, ao final da tarde, o enterro
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acontecesse e ela pudesse dar início à tomada de posse da
herança milionária do escritor, resultado de quarenta bestsellers traduzidos em quase todas as línguas do mundo.
E enquanto discava o número da funerária, ela já se imaginava
em Miami fazendo compras, livre da sovinice do marido que,
em vida, regrava seus hábitos extravagantes com pulso firme,
sem a menor piedade.
E o melhor era que tudo tinha se resolvido sem que ninguém
desconfiasse de nada, a começar pelo próprio marido, que
tomava todos os dias, misturado ao iogurte com aveia que ela
lhe preparava, um pó extraído da casca de uma árvore da
Amazônia que transformava qualquer tipo de matéria fecal
(por mais rala que fosse) em um verdadeiro bloco de concreto.
E ele nem sonhava que ela substituía seus comprimidos para
pressão por placebos, feitos de farinha e água; nem que uma
grave degeneração dos vasos sanguíneos do seu cérebro
ameaçava-o de morte iminente, pois ela, aproveitando-se da
necessidade que ele tinha de se isolar para terminar o seu
último livro e do seu quase completo desconhecimento da
terminologia médica, disse-lhe calmamente, quando ele lhe
mostrou o resultado do exame: “Acho que não tem nada de
errado aqui, meu amor. Não se preocupe, depois você procura
o Dr. Gustavo”. E ele se tranquilizou, pois, afinal, sua esposa
era enfermeira, devia saber o que estava dizendo.
A equação da morte estava montada: (idade avançada +
sedentarismo + obesidade + pressão alta descontrolada + vasos
sanguíneos gravemente esclerosados) x força descomunal para
expulsar as fezes durante a defecação = derrame cerebral.
Ela ainda teve a sorte dele terminar seu último romance um dia
antes: um calhamaço de mais de mil páginas, repleto de
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aventura e suspense, que a editora aguardava ansiosamente, e
que, com a morte do autor, certamente valeria uma fortuna
fabulosa.
A jovem viúva ficou milionária, casou-se de novo, teve dois
filhos e viveu até os setenta anos, cercada de muito carinho e
afeto.
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No clube de escritores
Este conto será curto porque ele não tem quase nada para
contar. Só uma frase já o preenche todo. Frase gorda e triste:
“No último mês do seu seguro-desemprego, o jovem escritor
tenta desesperadamente terminar a novela, e a angústia lhe
cobre o espírito com seu manto gelado”.
FIM
Só isso.
Fim?
Meu personagem é o jovem escritor desempregado.
Acho que não.
Como ele, sinto-me angustiado.
Para mim, a história dessa assassina, que escapou da justiça
dos homens (como tantos outros bandidos por aí, muitas vezes
amparados pela própria lei) não termina assim.
Mas ele... Ele só tem que terminar a novela.
Agora eu...
Penso que a justiça de Deus é bem diferente da nossa, e que,
para todos nós (nesta ou em outras vidas), continua valendo o
que diz a Bíblia: "O que o homem semear, isso mesmo
colherá". (Gálatas 6:7). E mais: “Tenhamos sempre em mente
que todos os delitos que cometemos não desaparecerão no
silêncio do túmulo, porque a vida prossegue, além da morte,
desdobrando causas e consequências”. (Chico Xavier, no livro
“Leis de Amor”, pelo espírito Emmanuel).
Eu...
No clube de escritores ninguém pode ficar de braços cruzados.
Mas se a palavra não vem. Se o silêncio pesa. Se a dor é tanta
que os dedos tremem e não conseguem segurar o lápis ou
encontrar as letras no teclado...
Hoje meus dedos estão firmes, mas aqui dentro está tudo oco,
vazio: nenhuma frase, nada.
Só dor.
Mas doer também é escrever.
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Da dor a palavra.
E de tudo que me dói lá no fundo – de todas as dores que eu
sinto, a que me deixa mais feliz é a da vontade de escrever sem
saber por quê.
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Terminamos o café e abrimos as geladeiras. São duas e vinte da
madrugada. Ele pega um pedaço de goiabada, uma fatia
grande (com um pouco de mofo na ponta), que ele coloca na
boca de uma vez só.
E eu? O que eu vou comer?
E eu escrevo.
A geladeira aberta e eu olhando.
Se bem ou mal, não me importa.
E o jovem escritor continua parado na frente do computador,
pensando... No quê?
Minha mulher e meus filhos dormem. Largados, soltos, felizes
na sua inconsciência.
O jovem escritor desempregado não tem mulher nem filhos.
Não sei.
Ele se levanta e eu também. Vamos tomar café. Café forte, com
pouco açúcar. Talvez alguma coisa surja daí: uma luz, um
caminho, uma encruzilhada, um pântano, uma floresta escura
boa para se perder... (porque “perder-se também é caminho”,
dizia Clarice).
Ainda bem, porque o seguro-desemprego mal dá para ele
comer.
Ele precisa terminar a novela, publicá-la, ganhar dinheiro.
Mas isso vai ser difícil. Muito difícil.
Uma boa xícara de café faz milagres.
Não gosto desta cidade.
A água ferve. Pó preto, grosso, aroma de deserto. Quente.
É gente demais querendo chegar a algum lugar sempre,
subindo e brilhando, subindo, correndo contra o tempo,
brigando, fingindo, humilhando, dando ordens, se
equivocando, se perdendo, se achando...
O café está bom.
O jovem escritor acende um cigarro. Eu não, porque não fumo.
Aqui são duas da madrugada. No apartamento do jovem
escritor também. Nenhum carro nas avenidas. Das pequenas
janelas das cozinhas (da minha e da dele), a cidade se estende
enorme e apagada. A mesma cidade. Feia, escura, triste, seus
mecanismos desligados – mas não todos.
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Mas as cidades não são todas assim? As pessoas não são
assim?
Milhões de palavras escritas para nada: livros, teses, artigos...
Ordens, gestos e gritos inúteis.
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Milhões de projetos, pautas, reuniões, atas...
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No avesso de mim
Para quê?
Escrever este conto para quê?
Que importância tem esse jovem escritor desempregado?
Que ele coma a sua goiabada mofada e vá dormir. Ou morra.
No clube de escritores a ordem do dia é: um, dois, um, dois,
feijão com arroz.
E eu pensando nela:
Hoje estou pelo avesso e não é feio.
A solidão está na carne aberta viva e não é feia.
A indiferença em mim pelo que é de aparência e artifício está
no meu avesso em grito mudo e não é feia.
Tudo que é parte do que em mim sou eu pelo avesso não é
feio.
Nem belo.
-É
Sou eu pelo avesso o avesso de mim,
que sou mais eu ainda do que o não avesso de mim.
Sou eu na mais pura verdade de mim –
na mais pura solidão escura e vibrante e alegre de mim.
Clarice...
Pensando nela e sendo.
Meu coração dói de ser eu pelo avesso e vivo e sofro.
Sozinho eu sofro
e alegre vivo o ser
que pelo avesso me sou e me faz de mim algo
que dentro de mim sou eu.
No meu silêncio sendo.
Sou eu pelo avesso
quando digo Sim
ao que vem do mais fundo
do avesso em mim:
um grito
uma dor no escuro
uma luz:
Liberdade –
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O não-medo da morte
O não-medo da vida
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Subindo na vida
No quarto escuro do meu avesso de mim
não há planos nem projetos,
nem vitórias nem derrotas
não há nada que não sou eu –
no escuro iluminado e puro de mim
Pulando os degraus de dois em dois, o jovem Teo subia quente
o morro da Penha, onde morava com a mãe e três irmãos
pequenos. Pai ele não tinha. Nem sabia o nome. De vez em
quando aparecia um pretendente, um fodido na vida que se
instalava no barraco com sua tralha, mas só ficava uma ou duas
semanas – tempo mais do que suficiente para ver o tamanho
da encrenca em que se metera e sair, esmurrando portas e
mandando mãe e filhos para as putas que os pariram, para
nunca mais voltar.
Sou pura aceitação de mim no avesso
- Sou
E só
Teo bufava de alegria e cansaço. Parecia um touro satisfeito.
Queria chegar logo em casa para contar o dinheiro. Seiscentas
pratas limpinhas. Ralou muito para conseguir juntar. Lavou
carro, engraxou sapato, vendeu picolé, e todo domingo ia para
a feira ajudar na barraca de acarajé da negra Eulália, uma
baiana que de baiana não tinha nada, nem a roupa, comprada
de segunda mão no bazar das putas, no alto do morro.
Teo entrou correndo em casa. A mãe surrava um dos
moleques, que gritava sem parar, com a bunda já cheia de
vergões vermelhos da vara de marmelo arrancada às pressas
no quintal do vizinho (se é que podemos chamar de quintal
dois metros quadrados de terra encharcada de esgoto fedendo
a merda).
Teo nem ligou. Entrou no quartinho que dividia com os irmãos,
e de dentro de um buraco que ele mesmo havia cavado no
chão de terra batida, atrás do guarda-roupa, tirou um saco
plástico todo amarrotado. Seu dinheiro estava lá, dobradinho.
Cinco notas de cem; às quais, satisfeito, ele acrescentou outra
novinha. Quem trocava para ele era o dono de uma padaria no
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centro. Moedas e notas miúdas por uma nota de cem. Levou
quase dois anos para conseguir as seis. Teria conseguido em
um ano se não tivesse que ajudar nas despesas de casa. Mas...
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Voltou para o barraco, sentindo-se um rei, o dono do pedaço.
Na subida reparou os olhares de respeito e admiração quando
cruzava com amigos e conhecidos. Estava muito feliz.
Mas ali estavam elas. E ele sentia o seu cheiro, tocava-as
levemente com os lábios, acariciava-as, os olhos brilhando de
contentamento.
Ele era importante.
Ele era alguém...
E com a mesma alegria com que subira minutos antes, ele
desceu, correndo, pulando de dois em dois, de três em três, os
degraus imundos e escalavrados do morro da Penha. Nem
sentia que estava no morro. Parecia nas nuvens. E em menos
de meia hora já estava na loja experimentando o tênis.
Era o seu sonho aquele tênis. Todos os dias ele passava ali para
se certificar de que o preço continuava 599 reais. Respirava
aliviado quando via que sim, pois tivera que adiar a compra
duas vezes em um ano por causa dos aumentos. Quando o
Ronaldinho começou a aparecer na televisão usando-o, o preço
pulou de 470 para 550 reais em um dia. Foi um choque para
Teo. “Mas é o Ronaldinho”, pensara ele na época, triste pelos
meses a mais de ralação que aquilo significaria, mas ao mesmo
tempo feliz pelo fato de alguém tão importante para o Brasil
colocar nos pés (e que pés!) o objeto de seus sonhos.
Ficou quarenta minutos se olhando no espelho da loja,
maravilhado. (É que no barraco não tinha espelho de corpo
inteiro e ele queria aproveitar). Enquanto isso o dono da loja
mantinha o dedo encostado no botão do alarme, pronto para
apertá-lo a qualquer momento, se precisasse.
Mas não foi preciso. Teo pagou pelo par de tênis (em dinheiro
e à vista) e foi embora, feliz da vida.
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Bicho feroz
O jovem Ramon caminhava sozinho no meio do mato há pelo
menos uma hora. Ele tinha acordado cedo naquela manhã para
subir a escadaria do Cristo, um exercício que normalmente
aliviava sua melancolia crônica, ajudando-o a suportar melhor
o dia. E lá no alto, olhando a neblina cinza que cobria quase
toda a cidade, ele resolvera embrenhar-se pelas matas da Serra
de Santa Cruz. Não quis voltar pelo mesmo caminho porque
estava muito angustiado. O coração gelava, batendo forte e
apertado no peito. Por isso não quis ver a escada deserta de
novo, os mesmos degraus de cimento escuro, que o levariam
ao mesmo ponto de partida (a cruz de madeira podre), e
depois à mesma rua, à mesma casa, ao mesmo quarto, à
mesma solidão vazia de uma vida que, para ele, não tinha o
menor sentido.
Depois de uma hora no meio do mato, sem medo, o
pensamento ausente como um céu branco infindável, ele
começou a se sentir parte da natureza: um bicho, uma árvore,
uma pedra, um cupim. Isso lhe deu ânimo para continuar.
Enquanto caminhava, enchia os pulmões com o ar frio da
manhã, o coração batendo forte, o corpo ardendo dos
espinhos e capins que lhe rasgavam a pele e a carne, o sangue
escorrendo quente pelas pernas e braços.
De repente, numa pequena clareira, ele parou e viu um urubu.
O bicho o encarava com olhar firme do alto de um enorme pé
de jatobá. Ramon não tirava os olhos da ave, que esticou o
pescoço pelado para frente, o bico fechado, as garras trancadas
com força no galho da árvore, esperando.
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Os olhos do bicho brilhavam e pareciam dizer alguma coisa.
Chamavam. Sim. Alguma coisa dentro de Ramon sentia um
chamado. E ao mesmo tempo, o que sentia o chamado dentro
dele parecia se converter em fogo. Algo rosnando. Um uivo.
Um bicho...
Um bicho que ouvia e entendia o chamado de outro bicho.
Ramon então fugiu desesperado, com medo de viver aquilo, de
ser o que dentro dele ardia em chamas. Corria aflito, abrindo
caminho por entre os arbustos, enquanto a mancha escura do
urubu se movia lentamente acima da neblina espessa,
acompanhando sua presa pela mata.
Um chamado...
De repente, Ramon parou de correr, encostou-se numa árvore
e esperou. O urubu pousou perto dele, em cima de um enorme
cupim, e o encarou com olhos de fogo.
Dentro de Ramon um vulcão extinto acordava. Bicho feroz.
Loucura selvagem.
Soltar esse bicho seria correr o risco de um morticínio em larga
escala, tamanha era a selvageria e a vontade de matar, de
estraçalhar. Mas a descoberta desse bicho (e sabê-lo vivo),
mesmo enjaulado, dava ao rapaz um prazer indescritível. Uma
sensação de plenitude... Uma vontade de viver que ele jamais
tinha sentido.
A partir desse dia, nas reuniões e eventos sociais que ele
normalmente participava por obrigação, para “ganhar a vida”
(como se diz), por trás da cordialidade sombria que era a sua
marca registrada, rosnava o animal selvagem – questionador,
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............................
sarcástico, insolente, irônico, petulante, desafiador das regras –
, e era isso que lhe dava forças para continuar vivendo e sendo
Ramon, o respeitável.
O bicho dentro da jaula via tudo através da máscara da boa
educação, do olhar mortiço e sonso do homem civilizado (esse
homem incapaz de gritar para fora, de matar e trucidar). Mas
por dentro... Por dentro garras e dentes afiados brilhavam e
tremiam ávidos de sangue. E cada vez com mais frequencia, um
uivo aterrador quebrava o silêncio daquele poço sem fundo
que era a alma de Ramon... Um uivo de selvageria, desespero e
nojo... Nojo do artificialismo da sociedade, do seu jogo de
interesses, da hipocrisia, da arrogância estúpida e vazia, da
bajulação, da subserviência, da pobreza de espírito da maioria
das pessoas que cercavam o jovem Ramon em seu mundo
ordeiro e civilizado. Ele próprio, Ramon, muitas vezes foi
mordido por querer ser como os outros... Por querer jogar e
vencer os joguinhos efêmeros dos outros. E mesmo assim ele
continuava... Sangrando por dentro.
............................
Textos incômodos e perturbadores...
Mas isso não passava de uma válvula de escape. Para não
explodir. Não era nada perto do que o animal queria. Nada.
O alimento certo na hora certa...
A hora certa é um mistério.
Mas o alimento é simples:
Bons vinhos, bons livros, bons filmes e boa música.
Ramon não estava mais sozinho.
Mas era só de vez em quando que esse uivo escapava das
trevas interiores de Ramon para o mundo real e civilizado.
Dentro de Ramon ele vibrava forte. Mas do lado de fora, no
contato com a sociedade, a crosta artificial da boa educação
impedia que ele explodisse em ódio real e sanguinário.
Normalmente era assim.
Excepcionalmente, porém, mesmo enjaulado, quando recebia
o alimento certo na hora certa, o bicho soltava um uivo tão
forte que a crosta não resistia.
Uma brecha se abria.
E Ramon escrevia...
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Antes do fim
Setenta anos de idade
sozinho em casa num dia frio e escuro
sentado na privada ele começou a puxar os pêlos do peito e do
saco
a puxar e arrancar os pêlos com raiva
uma raiva que explodiu de repente, assim, sem mais
enquanto o cheiro das fezes se espalhava pelo ar, de dentro
para fora
um cheiro de repolho podre, de carne podre
e os pêlos caíam na água, no chão, na borda da privada
e ele continuava puxando e arrancando com ferocidade –
arrancando –
............................
– chinelos baratos, um deles rachado na frente, sujo
e uma das unhas encravada, trincada, de um marrom pardo
escuro
que doía todos os dias dentro do seu sapato caro de ir ao
centro
de ir cobrar as dívidas
de ir maquinar
e fofocar como ninguém
e matraquear:
‘Como sou bom, como sou honrado, como sou competente
veja como tenho razão
eu só quero o bem, só quero o que é certo: isso é certo, aquilo
é errado
e olha o meu filho, que beleza
ele fala inglês e é o melhor executivo da empresa
foi o melhor aluno da universidade’ –
Até que um pequeno vaso de sangue arrebentou
próximo à virilha
– um vasinho de nada, roxo
que parecia estar preso ao pêlo que ele arrancou do saco
murcho e comprido
– uma artéria pequena, mas que sangrou
e o sangue começou a escorrer, a pingar
a pingar sem parar na água marrom
que ficou mais escura na parte onde pingava
mais escura de um vermelho vivo de sangue ruim
de sangue azedo –
o melhor –
pingando –
E saía de peito erguido pelas ruas
com sua honra e respeitabilidade de chefe de família bem
casado e feliz
– tudo certo, do jeito que tinha que ser:
‘Lá em casa é assim, comigo é desse jeito’
E enquanto pingava ele puxava com mais fúria os pêlos
e olhava as unhas dos pés nos chinelos pretos, que ele só usava
em casa
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E o sangue escorrendo pelo saco murcho, comprido e velho
– os pêlos no chão, na água
pêlos pretos e brancos
– quase todos brancos
contrastando com o cabelo pintado
que o fazia sorrir de orgulho e estufar o peito na frente do
espelho
antes de se enfiar no terno e sair para cobrar e fofocar
matraquear e maquinar
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– uma felicidade embrulhada em papel de seda e fitas de ouro
o dia seguindo o seu curso, tudo planejado desde o início
E enquanto o sangue pingava sem parar
ele pensava no jogo que terminava:
rei, peão, rainha, cavalo, torre e bispo deitados na mesma caixa
na mesma caixa de madeira escura
E a tampa, ah a tampa...
O fim do jogo se aproximava
e só naquele momento, sentado na privada
arrancando os pêlos do peito e do saco
ele se deu conta disso
Continuar para quê?
Onde estava o garotinho que brincava no quintal de casa
cheio de alegria e prazer
vivendo o instante?
Estava no topo, no ápice, aposentado
– mas na ativa, maquinando, maquinando
rico
muito rico
filhos brilhantes
um casamento respeitável
respeitabilíssimo
com uma fachada construída em pedra maciça impenetrável
por onde não passava nem a luz do sol numa manhã quente de
verão:
e a vida era como se o sol não brilhasse
mas respeitável e próspera
de dar inveja
– era isso que importava
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............................
Mas o jogo terminava e ele sentia o seu fim
foi um choque
um tremor súbito que o fez soltar o último tufo de pentelhos
no chão
e esfregar a mão trêmula no peito quase despelado e no saco
quase nu
– triste (uma tristeza pesada e fria)
e ao erguê-la viu o sangue
ah aquele sangue vermelho e quente, escuro
sangue dele
E de repente uma ânsia de beber o próprio sangue lhe tomou o
corpo e o espírito
uma fissura, uma fome de seu próprio corpo, de sua fonte de
vida
uma vontade incontrolável de buscar nela vestígios do seu eu
perdido
de arrancar as cascas, as máscaras
de enfiar as unhas no peito e vasculhar por dentro até
encontrar...
o quê?
onde estava? onde estava?
E sem pensar foi bebendo o sangue
lambendo a mão empapada de vermelho molhado e quente
que voltava ao saco para buscar mais e mais
sangue dele, ácido, com gosto de ferro, de cinza pardo
ferroso
– e mais e mais e mais e mais
E o saco não parava de pingar
e ele bebendo, de olhos fechados
sentindo, sentindo
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............................
e de repente o cheiro podre desapareceu
e a criança voltou gritando ‘Nada importa, nada disso importa’
e do fundo de seu túmulo Fernando Pessoa gritou ‘Fazes falta?
Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti’
E ele também gritou
caiu de joelhos
e começou a arrancar os cabelos da cabeça, dos cílios, das
sobrancelhas
e sentiu sua doença de pele descamando atrás das orelhas
e arrancou as cascas
as placas de casca branca e seca
e na cabeça descobriu uma ferida que também descamava
e que ele coçou
coçou até sangrar
E o saco pingando no chão
formando uma poça escura no piso branco do banheiro
e sua boca vermelha
vermelha do seu próprio sangue
da sua própria vida quente que pulsava fundo
bem fundo
sem ele saber
perdida por trás das crostas secas
das máscaras duras e frias da respeitabilidade
de tudo que tem que ser, de tudo que é certo
E ele gritou de novo, de joelhos
a boca cuspindo sangue num vômito de libertação
e esfregou no corpo o seu próprio vômito, o seu próprio
sangue
e gritou
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‘Meus filhos, meus filhos, venham até mim
venham aqui e me escutem
não sou o que vocês pensam
roubei, humilhei, menti, oh como menti:
muitas dessas pessoas que vocês desprezam
só porque eu as culpei de terem me atacado
a mim, o inocente, o bom
– essas pessoas não são culpadas nem inocentes
o que vocês sabem é o que eu disse, o que tem que ser
o que deve ser dito para sustentar a imagem pura e boa do pai
do senhor
do respeitável
do marido fiel e honrado
do profissional brilhante
pai dos filhos brilhantes’
E a poça de sangue crescia logo abaixo do seu saco
e ele de joelhos gritando ‘Perdão, perdão’
as mãos levantadas em súplica
e uma nova ânsia de vômito lhe tomava o estômago em
espasmos de dor
os músculos se contraindo, apertando, apertando
– espasmos que expeliram uma água rala, vermelha e fétida
de um fedor ardente e seco
E de repente ele se jogou no chão, deitado, com as mãos no
rosto
banhado em sangue, fezes e vômito
imaginando-se na frente do espelho, todo importante
e não havia nada ali
era um espelho vazio
nada
ele não estava ali
E a poça aumentou ainda mais e ele desmaiou
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desmaiou de exaustão e dor, quase sem fôlego de tanto gritar
quase sem vida
mas limpo, purificado...
foi salvo pelo vizinho, que o levou a um hospital
onde os filhos e a esposa o encontraram vivo
mas diferente: um outro homem...
preparado para partir
As peças já estavam na caixa...
‘O jogo acabou’
***
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