Sonhadas palavras

Transcrição

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SONHADAS PALAVRAS
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SONHADAS PALAVRAS
ÂNGELO OCHÔA
COPYRIGHT ATELIER DE
APARTADO
PRODUÇÃO EDITORIAL
562, 4764-901 V. N. DE FAMALICÃO,
ÂNGELO OCHÔA
CAPA E DESIGN GRÁFICO: ANGELA ANDRADE
IMPRESSÃO: PAPELMUNDE, SMG, LDA
ACABAMENTO: INFORSETE
- AG, LDA
1ª EDIÇÃO: DEZEMBRO 2005
DEPÓSITO LEGAL:??????????????
ISBN:
www.doimpensavel.pt
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Ângelo Ochôa
SONHADAS PALAVRAS
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Às 3 únicas Graças!
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Um Novo Milénio
Redonda como um ovo,
fermosa lua,
repousando no zénite,
ao horizonte.
Presa ao corrimão da escada,
a bicicleta do sonho;
nela galgo degraus e patins,
milhentos andares.
Mesa,
onde a água, o quente café;
repouso a movimento;
pra versos motivo.
Cinzeiro
com cinzas, fumos;
enche-se do sobejo ar.
Radiozinho,
sons, vozes, luas;
ósculos a ouvidos,
qu’auscultam.
Esferográfica,
riscando o plano,
desliza; verdade
a preencher a luz.
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Moedas esquecidas,
um troco distante;
porque jazem aí,
se ao mundo devidas?
Gentes,
irrompendo,
a entrada perpassam;
anelam p’lo dia,
por enquanto incerto.
A hora entreaberta,
tangem-se plenitudes.
A planta,
escondida, subindo húmus;
pouco, mas tanto, a teimar crescer.
A espada,
o espírito, a palavra inflamada;
recolhidos os versos, relê-se o transcrito;
confluem para a vida os desvairados trajectos.
Da porta
a passagem…
Ora o coração.
Maria o Filho nos dá;
com Ela sonhamos.
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Envolvente capote
o corpo me abriga;
agasalha-me a alma;
veste-me o dia.
Seja véspera
da maior novidade,
encete-se partida.
Ramerrão,
automóveis
por insondável desvio.
Retorno ao pão,
à palavra, à paz,
ao terreno sabor.
Óculos pra ver perto
Luzentes evidências
a mim se imprimam,
alegrem-me ânimos.
Olhos pra ver longe,
opacas barreiras
fazei desmoronarem-se;
envolvem-vos distâncias.
Sonhos ar
do meu olhar
deixam nuvens abandonadas.
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Botas d’encantamento,
a corridas novas
com solas gastas.
Os atacadores
não se desapertam.
Isqueiro, breve chama,
disparada pela chispa;
repentina crispa
baça luz ao transeunte ver;
ateie-se jubilosa labareda.
Volante cachecol,
aos vagalhões eólicos,
aconchega-me a voz,
e, improviso, me guardes.
Fio d’óculos,
liberta-me à lonjura;
as lentes suspende;
também quanto pese.
Relógio fixo a pulso e desalento,
faz com que pronto esqueça
ao mostrador os inexoráveis traços;
e cale teu pungente colorido;
mas alerta-me a que levante mãos.
Minha cruz,
contentamento,
pra o alargado amanhã.
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À janela,
estou dentro
e fora.
Família,
dos mais fortes laços,
fundamentos para ponte.
Lugares do curso
Bensaúde: Aquática memória.
Estevais: À fraga, o alto tojo.
San Martino: De los raros cangarêgos.
Freixo de Espada-à-Cinta: Inacessível romança.
Barcelos: Embarques tímidos versos, sereníssimo Cávado.
Braga: À praça nos convocas.
Lisboa: Caravelas te deixaram fumo e nada.
Setúbal: Prisão refúgio, gozosa liberdade.
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Dos Sonhos os Poemas
Relato
Um rapaz, com uma maçã a custo equilibrada sobre o ombro,
fez, sem fumo nem dinheiro nem bilhete,
o percurso errado o dia todo.
Acabou por pagar o máximo que o multibanco permitia,
quando, já noitinha, chegou à praça municipal da sua terra.
Vemos Camus;
ceamos num recanto do teatro;
seguimos atentos o depoimento, filmado em vida do autor,
reclamando-nos, a portugueses e espanhóis,
descendentes d’incertos carniceiros,
e etc. etc., e da importância do mais do que debatido bife bovino;
mal reparamos que o actor usa bigode;
rimo-nos muito, quando se supõe não ter graça;
não percebemos patavina do que ali acontece;
desliza o palco para a rua, e continuamos a peça;
fazemos que nos cumprimentamos, e não dizemos nada.
‘Um dia, pra Deus, mil anos; mil anos, pra Deus, um dia.’
111333 milénios volvidos, o sobejamente conhecido poeta,
um humano, e divino, dentre muitos filhos de Abraham,
sic dixit: Já correu o lapso de tempo, que demorou
a extinguir-se a débil luzinha, provinda da mais longínqua estrela.
Tenhamos, agora, revivida consciência do nosso verdadeiro destino.
Entretanto, os miúdos aprendizes
confundiam, na cartilha, o nome, impresso, do vate,
em tudo igual aos demais comuns nomes,
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com o do avô lá de casa, ou o da andorinha gémea,
facto que não constituía, para as superiores instâncias,
motivo para preocupação;
em qualquer parte, nos conhecidos planetas,
não escasseava aos bambinos
tempo e tempo pra brincar.
Hoje em dia, pouco ou nada sabemos
quanto aos pormenores relevantes
das vidas esquecidas dos artistas.
No respeitante àquele de quem nos ocupávamos, há a anotar
que passou por banais constrangimentos:
Por não ter escrito nenhum soneto,
ou por não ter abraçado, a sério, a carreira diplomática.
Com ambas as mãos pegando o aberto livro,
a jovem mulher mãe relê a história firmada.
Perpassa, com coração, as linhas do eterno texto,
que voz divina ditou.
O livro inclui os nomes todos.
Tal lapso demora imensurável, terna eternidade.
À leitora donzela esclarece a claridade.
Pungente entristecer p’la minha terra
Subíamos a cimo a rua para a casa da mulher amada.
Dos nossos passos, sob os pés, despegava-se palha enlameada.
Casara, tinha marido e filhos.
Beijávamos a prima,
que, com as tias, se encaminhava à oração da tarde.
O pai dobrava-se, ao fundo, na encosta, sobre uns bacelos.
Estávamos pra retomar o rumo pedregoso, mai’las santas mulheres.
De amores idos rasto vão.
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Dizem ‘Senhor, Senhor’ e não vencem o Reino.
Com a só amorosa medida vos sopesarão.
Registe-se, in fine, que ’stávamos numa terra, e acordámos noutra.
Jamais acabaremos de explicitar o claro dia.
Seu pai divorciara-se, e vivia em Faro.
Ele ia seguindo por toda a parte a João Paulo II.
Incompatibilizara-se com um tio seu,
com quem se cruzava frequentemente.
Como encetariam qualquer forma de diálogo?
Não era que se ralasse, sentia-se magoado.
Não só as catedrais encantam o esparzido olhar,
também o que em nós vive e não se diz.
Quanto começou com Feuerbach
Revolvido o livro, assinalou-se com uma cruz dúbia passagem:
Os filhos da terra arrebatavam, para si, a eterna escritura:
Chegara o tempo, cada gesto era inaugural:
Submersa, continuou a subterrânea oração:
Houvera, em campo aberto, peleja desigual:
E o humano Cristo fez-se ao terrestre sentido.
Mudança
Lá fomos ver o lugar de destino,
que era maior do que a princípio nos parecera.
Trama, e complicação, de termos, pra mudar,
mais coisas do que calculávamos.
Até os filtros, do fumo, sobrecarregam bagagem,
como a brancura ordenadora do PC.
Quando remexemos nos haveres
ficamos com a impressão de que muitos nos faltam,
até porque deles nos não damos fé, com a normal prossecução.
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‘Projecto de sucessão’
Continuar de pé até que as pombas dos meus olhos voem.
Continuar dormindo até se me regelarem os dedos.
Continuar rezando até que o tempo finde.
Continuar esperando antes que o café feche.
Continuar despido até que o colchão navegue.
Continuar escrevendo até que o papel acabe.
Continuar apaixonado até que o mundo acorde.
Continuar sonhando até que morto durma.
Continuar delirando até se incendiarem as órbitas.
Continuar ladainhas até que o cérebro estale.
Continuar a acompanhar o derrube dos tiranos.
Continuar iluminado até que a maluqueira passe.
Continuar chorando por um miosótis encarnado.
Continuar teimando no trevo das quatro folhas.
Continuar a seguir a rota da estrela cadente.
Continuar contando uma a uma as cintilações natalícias.
Continuar procurando um piolho-estrelinha
na cabeça tonta de l’Enfant Jesú.
Continuar a apostar no vermelho e no branco.
Continuar sangrando até que se esgote a água.
Continuar boiando até que o sangue estanque.
Continuar a coçar uma jubilosa ferida.
Continuar a lançar-se sob gélido chuveiro.
Continuar a adorar a mulher artimanha.
Continuar a andar sobre escombros da lua.
Continuar sentado até que os pés à cadeira s’enraízem.
Continuar a dar corda a relógios que ninguém olha.
Continuar escutando uma espécie de música.
Continuar a elucubrar linguagens indecifráveis.
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Continuar a cantarolar o milagre da vida.
Isto, e muito mais, até que o papá evapore.
Isto, e muito mais, até que a paz floresça.
O super-criativo dramaturgo
dos entremezes modernos misturou dinheiro com borboletas,
entenda-se máquinas pra papel-moeda,
actores falhados, recém-saídos do Conservatório,
alimentando milhentas ilusões, que ele próprio filmou,
misturando Benigni, Fellini, Kafka, Saramago e Dario Fo.
Ilusionista, minimalista, sensacionalista,
fez as desdentadas personagens comer montes de erva,
sacando-as à insídia tabagista.
Enfim reconhecido por Hollywood e sua Academia,
que tais momos macacos reabilitou.
Outrora, p’lo foro médico, declarado somente esquizofrénico-paranóide,
dum discurso ilógico e alucinatório,
ao lhe perguntarem se ouvia vozes, respondia sempre:
Não, não, infelizmente não ouço!
Montou, explicávamos, enorme super-espectáculo exótico:
Arranjou uma carrinha, com articulações bizarras,
e foi conquistando mundo, pelo Leste dentro,
enquanto Sua Santidade o Papa
conseguia avanços diplomáticos,
e progressivamente contribuía para sucessivos degelos,
entre fundamentalistas ortodoxos,
pra não mencionar dinossauros marxistas;
estrondoso êxito entre bárbaros eslavos,
autêntica festa, misto dum sonho e loucuras delirantes:
Estrelas decadentes, luzeiros, fogo soprado, sobremaneira comoventes
para as instâncias do bom Deus pasmado.
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Achou um jeito bem animista para tratar luzes, cores, odores, sabores,
super-atletas, estruturas, marcações, actores,
desdobrando-se todos em formidáveis contorcionismos,
improvisos, e malabarismos.
Não que fosse propriamente circo ou ópera bailada.
Mas inédito, completo festival.
Havia de obter forçosamente universal aplauso,
porque movia quanto mais primitivo há
no humano fenómeno.
A óbvia reacção colectiva teria de ser um choro em coro d’alegria.
Autêntico pultriqueiro, dito autor-actor-realizador-encenador-malabar,
alongou devaneios após devaneios, por decénios após decénios,
impropriamente designados pós modernidade.
Acabou por colher os louros possíveis,
as áureas estatuetas, e até o Pulitzer, e o Nobel.
Pobre criança, que mais não desejava senão lograr ouvir os pássaros,
p’la manhã, num louvor a Deus, por nascer o sol.
Haja sol desde arrebol; haja Deus, e haja sol.
Jogue-se, a céu aberto, infindável futebol.
Seja imenso o estádio, estrondosamente iluminado.
Indefinidamente prolongada festa.
Todos os canais televisivos a dêem em directo.
Jamais acabem, na noite, as boas horas.
Canto da mulher em Aoxa
Em Aoxa sou feliz, pois vivo com quem eu quero.
Todos os dias trabalho, com o meu burrinho, transportando víveres.
Podem filmar para a Euronews, que em Aoxa sou feliz.
Digam que é vida menor a paisagem dos meus dias.
Digam que isto é um recanto onde não passou o tempo.
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Que em Aoxa sou feliz.
Vem, burrinho amigo, não trates com os humanos.
Passaste um dia carregado, mas já regressou o dono.
Recolhamo-nos à casa.
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Loquaz Gratuitidade
Ninguém vai a lado nenhum.
Porque isto é muito bom.
J’aquim, antes queres ferrar ou ser ferrado?
Cá por mim antes quero ferrar.
Então ferra-me aqui as ventas no olho do cu!
O professor Campos
comprou garagem no prédio ao lado
na mira de por lá dar azo ao seu fraquinho por pesca submarina.
Bilinguismo
Bom dia, un petit café noir.
Desculpe,
se bem entendi,
no ar não lho adrego,
mas na chávena.
A vereadora da cultura
incrementa notável iniciativa:
A do balão.
O descalço de Évora,
roto, mas podre de rico,
chega, à tarde, ao Arcada.
Logo o garçon o atira prà rua.
Mas o dono vai buscá-lo.
Ele, acomodando, exclama:
Senta-te, meu dinheiro.
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Padan a Sul
Donzelas roxas poncítias desmaiam,
mas basta o sol, num ténue raio, e reanima-se a rua.
Se não tivéssemos bolsos, as mãos despedaçavam-se-nos.
Saltitam avezinhas p’lo empedrado, ensaiando uns tímidos devaneios.
Gaivotas pairam voos altos; brancuras rompem, na manhã, entre neblina.
Rafeiros vão perdidos, numa remanescente ruína, antes noite petrificada.
Salpicando relva, estremece uma límpida água musical, que purifica.
Aos negrilhos, em fila prolongando a avenida, parecem ascender,
aos olhos sonhadores do poeta, as folhas, amarelento matiz.
Gotículas, só orvalho, à clara luz refervidas, cristalizam lacrimosas.
Aéreas flâmulas transmitem morse, vento, murmúrios libertários.
Na nogueira o estorninho o bico afiado desfaz em açúcar ao pissitar.
Caudaloso a fluir, o alto júbilo o dia grita, co’as portas escancaradas.
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Périplo
‘Mira-me, Miguel,
com’stou bem bonitinha,
saia do burel,
camisinha da estopinha…’
Dá-me teu corpo, a mão, qu’imos a bailia.
P’lo Marão
Apertadas curvas, remansosas nascentes.
Amarante, Ponte Velha
Passos refazendo o poeta, o santo absorto.
Bragança, ao Fervença,
bicicletas e patins, sobre frágil gelo.
Mirandela,
deslumbres, alturas outras, outro hossana.
Pocinho,
barrenta a cor cansada à terra, mansidão ensolarada.
À Ermida da Senhora dos Montes Ermos,
ladainhas, ecos secos, num percurso árduo.
Cerejais, directa emoção, limpos pardais;
seu ’terno canto é flor conta sussurrada.
Espantados na cor,
corremos do todo a intimidade.
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Alcácer,
p’lo ar vagando a voo.
Palmela, ao castelo, ao fundo o Sado
Sob fogoso sol, serena baía.
Évora
A cal refresca farpas ao clarear.
Grândola, jardins
Largueza airada, e um povo bom.
Reguengos
Assentados entendemos rendilhada fala, antiga gesta.
Tomar, baptistério de S. João
Enlevo para o Pai, desce a Pomba, o Amor, sobre o Filho nu.
Entroncamento
Encruzilhadas, errantes passos, qualquer incerta pista.
Atalaia
O que morre escuro sono, sob cripta.
Delongo
Concavidades, degredado divagar, florações silvestres.
Santarém, portas do sol
O Tejo transborda o Vaso Graal.
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Alte
Dos amendoais a flor
cimos atapeta.
Fuzeta
Bordado em água devaneante carreiro.
Canteiros por janelas…
Uma acácia nos sacode.
Albufeira
Ocre pólen, flor fibrosa,
esfarelada rocha.
Olhão,
ou o só cozido peixe.
Angra do Heroísmo
Arquitectural filigrana.
Fogo
Vazio populoso, gente diversa,
comunhão do sol.
Pico
’Inda um baleeiro.
S. Miguel
Éden ajardinado, com vista.
Fão
Areal com bruma, névoa rasa.
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Musgos,
heras, líquenes, frinchas, voracidade,
o perpassar.
Ao Bom Jesus do Monte,
no bosque, equilibrada égloga.
Santa Luzia
Morres-me
sonhos cheios.
Vila do Conde
Belo e Régio te cantaram,
mas o encanto é contemplar-te.
Póvoa do Varzim,
alma d’Anto jogral eternizou teus pescadores, gorros à banda.
Régua
Vinhedos coloram a maravilha única.
Porto
Escorrerem lágrimas por escadarias:
Cai estrela!
Cidade Rodrigo
Inúmeros relógios compactados.
Trancoso
Dum dia pra o outro árvores engalanadas.
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Los Angeles
Luz por sobre a escrita e lá por fora.
Santo Domingo
Pombas em bandos até à sombra.
Foz Côa,
rupestre baçal geometria.
A S. Bento, à Rua das Francesinhas,
será que ecoa o que oco?
Aristides Sousa Mendes:
Chamas-te Manuel, podes partir,
voo refazer.
Fátima,
mirabile visu a multidão na cor do Adeus, lenços do fervor.
Málaga
Desmaiam embalos adormentados mastros das embarcações.
Concílio
Transluz correspondido afecto à face;
que imprevistos despoletar, burgo mordaz?
Mealhada
Chanfana, enguias, o leitão, carrascão, mel, melancólico restaurante.
Tocha
Raras tardes estivais, desolação saudosa.
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Beja
Andadas vastidões na noite, na altura viajávamos à boleia,
ficámo-nos nos BV.
Guarda
Devaneios ar ligeiros, amoras, silvas, cardos, neve repleta.
Por Seia,
ao primeiro pão quente, acodem-nos operários intuitos.
República ai ó linda
Prò WC mandam caloiro
berrar Camões.
Contra ferocidade contumaz,
caminhamos, as mãos dadas.
Cáceres
Sobre pedra
teimam chuvas.
Sevilha
Um mergulho ao pé dum jorro, com libelinhas, nenúfares,
vida inteira.
Vila Verde
Raríssimos livros soletradamente veneramos.
Cultivar
a cenoura, gosto telúrico.
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Teatro Sousa Bastos
O delirante psicólogo vê o filme neo-realista, a libido manifesta.
La Coruña, por 63
Nevoenta antemanhã, encantados Juan, Ramón, Jiménez,
Platero, e eu.
Sintra
Áleas: Plátanos, negrilhos, pinhos, noite dentro.
Lisboa, Príncipe Real
Vai e vem, César Monteiro! Boceja, canta, louco d’asilo, assustado.
Bornes
Augusto mundo meu dos altos, onde pairo, boquiaberto prò divino.
1, e 2, e 3,
era uma vez um soldadinho,
que nem foi à guerra nem voltou à terra,
andou caminho.
No tempo da eira fazia poeira.
Disparada entre tantas a estrelinha,
a que da cerca surpreendemos giro.
Lagoa
Libelinha, a pique, num ápice fulmina.
Monte Agudo
Pombas p’lo ar clareado.
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Valença
Rafeiro fugitivas presas investiga,
a raro faro.
Curvaceiras
Rumorejarem folhas;
madureza para o ver.
Bonfim
mói calmas.
Tomar, Travessa da Misericórdia, 14, 1º, Esqº.
Da janela para o empedrado sinistro pulo.
Portugal, em fogo,
coração cinza devorado.
Vila Viçosa
da ressurreição.
Irmã Lúcia,
tudo, no meio de nós.
Missa sobre o mundo,
renascendo a madrugada.
S. Martinho do Bispo
Ao adro grama, hera, musgo.
Santa Cita
doravante habitamos.
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A mansa pombinha
bicou na palma da mão.
Volta da Pedra,
inaugurais carreiros a ar livre.
Vale da Vilariça
Terra d’alegria, estreitas-me d’apertado laço.
Bencanta
Sótão a alumbramentos;
atentado premeditado contra Isaac Rabin;
Mãe, como desculpas!
Português marinheiro
Eu nasci num país plantado no mar,
gaivotas guiam-me o leme
estafadinho a rumar.
Cultivo
Camponesa, cara rasgada, escava duro ardor, melhor do que nada.
Do snooker
a partida imprevisível.
Missão,
a cada hora.
Bordel,
e mofo.
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Meu velho,
devaneando, p’la Idade Média, tuas certezas?
Sinfónicos policromáticos chilreios…
Anda, e ouve, Messiaen!
Domingo único,
açucenas, pombas, calmas.
Monsaraz
Ante isto, nada és, casto vate.
Comporta
Maresia, ondulações,
sargaço, lodo.
Ser-se
sem peso.
Ilha do Arcanjo
Suja vereda torta toada, árido verso livre.
Porto Formoso
Coração do verde chá.
Faial
Abalo ou convulsão,
céu estrelado, às lavas.
Da Horta à Madalena
Vela enfunada leva-me o branco nada.
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Pico revisto
Vides, penhas, um entrecho basáltico.
Capelinhos
Gravar teu nome, à flor cinza,
na costa do relevo.
P’lo Canal
Frágil veleiro
vai lieiro.
A Senhora da Guia
voo me acompanhe à vivaz luz.
Flamengos
Bodes, asininos, bois…
Quando não agrícola empresa,
familiar gestão.
Angra, ao museu
Decifrar línguas d’arrulho
a cúmplices pombos,
num vagaroso sono,
sob céu nítido.
Jardim Duque da Terceira
Nuvens, às farripas, como pétalas.
De Angra à Praia da Vitória
Pelos olhos dentro
excessivas lindezas.
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Luz demasiada rota da alegria;
maternal coração timidez vencida.
A tentação maior,
dum extremo avistando-se o ilimite:
‘Tudo terás, se…’
Biscoitos
Num qualquer terraço ajardinados vasos.
Feteira:
Um chafariz, uma inscrição, um toldo.
Beata Zdenka Cecília Schelingová
Quantos comunistas sorriem contigo
p’lo perdão que lhes deste?
João Paulo I
Larga estrada, caminho a Roma,
até abraçar-te Tua mãe.
Santa Cecília
Embalem celestiais polifonias.
Clara
fins clareia.
Clotilde
constrói forte.
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Seldon,
teu milagre é obra.
Madalena
P’lo sussurro da voz O conheceste:
Não era o hortelão.
Rabboni!, ’xclamaste.
Ele pediu-te que não O detivesses.
Craveirinha,
judeu preto devaneador,
sob que torrentes acenas?
Nelson Mandela,
torturado faminto do melhor,
porque demasiado te doeu
o coração amplamente franqueaste.
Ai saudade.
Flor nossa, Évora,
a Além Tejo transplantada, em morna dança indolência.
Sacada ao fresco
Estremecerem em estilhaços espelhos no fugidio elemento.
Poemeto
Duras pedras demoradas quisera meus versos; essência da luz saudosos;
a embalo de ouvi-los morreria p’la memória que dormem animados;
na praça única os saboreei divinos, mel no céu da boca dum bambino.
Perdão
devolvendo liberdade.
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João Cabeçadas
Cruzar mares a todo o risco, e fitar a enseada chegando.
Laertes e Inês Vieira
A arrumados sons, pautas, instrumentos o exercício.
Daniel Pires,
qual ‘entrada’ acrescentar ao caos burguês?
Eusébio, o calafate,
dedilha guitarra sublime, entoando trivial trova.
Carrapatoso, declaradamente ateu,
enquanto vai degustando sardinhas sadinas,
engenha um Glória.
Manuel Bola,
bem calçado, voadores sapatos, sustenta surpreendentes actos.
Asdrúbal,
a voz cava, mói abisso.
Portugal Silveira
pretexta subliminar evento pra atirar, a ácidos nacos, carónica.
Luíz Pacheco
filma, com subsídio, Setúbal acontecida.
João Calceteiro,
vate porteiro reformado, intervala elaboradas oitavas
com orientações a estacionamento.
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Se, amor, pra conquistar-te,
eu tivesse que morrer,
para ser teu desde agora
nem nado quisera ser.
Como não hei-de te amar?
Favo loiro, meu tesoiro,
sonho claro a despontar.
Achamo-nos, um Domingo de Páscoa, numa terra desconhecida.
Em casa estranha acolhidos, assavam-nos um peixe no lume do chão
pra celebrar o dia.
Consigo ligar ao pai e à família distante acertando incrivelmente
num número p’lo telemóvel.
Acabamos enfim por reunir-nos, ignoremos
embora o quanto rondará no cômputo a despesa.
Acidentada viagem nos trouxe nossa irmã,
no Expresso, passando por vales e ravinas.
Livro de horas
Tarde é o copo que bebes cheio ar,
noite o sono que dormes amado nada,
antemanhã a espera na maior certeza,
já a manhã os olhos te devolve.
Amacia o coração roupa ajustada,
acaricia mãos água lavada,
ameiga a face o ar da rua,
amansa temores a plena lua.
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Crê,
é manhã,
os cotovelos
rijos à janela.
Num qualquer recanto
soa o ser.
Meu céu
a hora entrada,
minha rosa
chaga aberta,
riso ruivo o gergelim.
Estremadura
Seca aragem,
campestre paisagem;
um bicho, calmo,
não cabe em si.
Carmelo de Lisieux
Teresinha do Menino Jesus ter lido Voltaire livre pensador
terá influído decisivamente na actual distribuição
dos santos no calendário católico.
Bocage
Doída eternidade, doido coração, és minha!
Zoilos, tremei! Abraça-me a Rainha!
Granja
Devora noites milenares
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o meigo monstro jacente
sobre liteira enorme no fundo oceano.
Burga
Temíveis raios.
Nazo
Feira, estrondo, pó, dinheiro grosso.
Torrão,
Nem uma folha
bulindo.
Cabo dos Cabos
Vontade de explorar aventuroso
interior a assoalhada.
Estádio, em Braga
Asas a rasgar céu,
arrojados golpes à pedra,
a escancarar alma.
Nem fiz guerra nem sei guerra.
Ave-Maria.
Sertã,
sobre água límpida corrente.
O indizível
completar-se
por toda a parte até.
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’Stou cá,
óbvio sobre o solo.
Que mais sacar aos bolsos
senão calor?
José Viana,
à tua morte, dou comigo a rezar cantigas genta.
Vale Manso
A completude a olhos dada:
Sobre zêzere miragem.
Sardoal, ao alto templo,
soltam-se aleluias.
Na Herdade do Esporão,
sobre o relvado, à sombrinha.
Por Janeiro, junquilhos no balseiro;
cedinho, ao aclarar, galhos ao lilás desbastar.
Lisboa vista da ponte
Tantas casas, com tanta vida,
que não é a minha.
Vouzela
Povo inúmero, imensa alma, fibras doloridas.
Alexandrina, para o Cristo Eucarístico:
O certo é que viesTe ter comigo.
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As pedras da minha rua
desenham-me uns sonhos bailarinos,
amanhecendo a anil os melhores céus.
Enlaçados,
deuses irmãos, exalçamo-nos à soberana alegria.
Alvorecerem as flores
ténue, fulminante fascínio.
Findo meu erro comigo,
durmo um sono antigo sob o grande mar.
Não ligues, amor,
que vou perdido na distância a florir.
Em Manteigas, um repuxo,
sob dependentes chorões,
esparze desmaios,
enquanto luz indeciso matiz.
Gouveia, largo de S. Pedro
Água diluindo borrões ao vislumbrar.
Belmonte,
das rosas o absoluto.
Fugirem ruas
a conversas ciciadas.
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A cor
orquídea
nos livra.
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Episódicos Circunstanciais
Sinfonia
José controla colossal guindaste, a carregar terra a céus.
Uma, duas, três, vinte, vinte e quatro velas ardidas.
Ficou, impregnando o ar, em torno à Senhora das Dores, um cheiro
[a cera.
Prolongando-se, mecanicamente murmurada, a consumida oração.
O bruto avantajado cão do prédio
devaneia entre caóticos destroços e estruturas.
Falho em motivos poéticos, aceno-lhe, a querer conquistá-lo amigo.
Alça vidrados olhos, abana a cauda, faz que ladra, depois dá uma volta.
Afanado-me à ligeira empresa
de enrolar novo cigarro
venço algum tempo ao tempo,
neste obscuro afazer.
Por certo venço algum tempo
ao tempo que me é dado.
Enquanto enrolo com o tabaco
a dita mortalha, não fumo, por ora,
o fumável cigarro.
Se me fui fumando a vida toda.
Por outras palavras Pessoa disse.
Morro-me, a instantes lentos,
o devaneio, do vagar
de ir, mas devagar, divagando
às paisagens ausentes, do invisível.
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Até que pare de subir a água no poço da canção,
essa força, esse anelo, esse êlan,
esse alento, essa verdade.
E se fixe de vez na final estação,
esse comboio de corda, brinquedo, coração.
Abrindo a Bíblia
Quem um lugar ler
sente Iahweh providente.
‘Então vistes as brechas
na cidade de David.’
Em extremo atenta à leitura,
a jovem musa aluna corrige
ao texto a excessiva veemência,
reduzindo à normalidade
exacerbados clamores.
Diogo, motorista,
concentradamente distraído,
dirige com precisão.
De eléctrico até à Foz
Reatam-se-me diálogos d’entre banho e praia.
‘Quereis outro achamento
além dessas ventanias
tão tristes tão alegrias?’
É como se voltasse ao Norte a passar férias.
Ida ao IPO
Inveterado fumador, tais exames o obrigavam a fazer,
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pra despistar prováveis lesões, que, num repente,
largou ao empedrado o cigarro pouco antes aceso.
Glorioso tempo do desporto
Resplendem, apolíneo equilíbrio,
os atletas na ofuscante luminosidade.
Inquietações por um golo invalidado,
pois nem tudo vagueia em alegrias.
Há que ajustar, dentro do sono,
a que seria a ideal trajectória;
ou rever, realiter, o lance fatal.
Prenúncio de Outono
Moinho da Dona Brites
com folhas desmaiadas;
muita sorte gaivotas, andorinhas,
pombos o não acossarem na entristecida estação.
CEE
Prestes a desposar
uma psicóloga nórdica,
o computador vomitou-lhe
despachos sobre despachos.
Os que vêm da dor directamente
trazem raso o olhar na mais firme certeza.
Sagrados da verdade, feridos do ver, magoados heróis.
Seu fito é o além: Desde a madrugada se arrebatam.
Balões, balões! Prò menino, e prà menina!
Terna anciã, distribuis ilusões a pataco,
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dás, p’lo fio, às pequeninas mãozinhas,
os balões; dá-me também um a mim,
bem colorido, para que o solte.
João Cabral de Melo Neto
Passas já o letal rio.
Que bagagem levas?
Versos água, versos faca.
Alcoolismo e contradições da dependência
Após forte estremeção, Dionísio, o novo entusiasta,
fã da cerveja sem álcool com amendoim torrado,
cigarro farmacêutico no beiço, só erva inofensiva,
arrazoava, ufano, discursos sobre discursos,
em sua íntima convicção profiláctica:
Não dispensava o Lorenin/2,5, quando o frio transtornava
e brancas vigílias na noite vagabunda
o obrigavam a retemperar o embrenhado ócio.
Para embarcar naus, sonhos, sereias
bastava-lhe ouvir uns acordes a violas ou violetas.
Aos dezanove dias do mês de Dezembro,
do ano de mil novecentos e noventa e nove,
o último dia português da nobilíssima Cidade
do Santo Nome de Deus de Macau,
aportadas a cais últimas embarcações,
ficaste a ti entregue, povo bom na Fé,
roído por ancestral fome:
O sonho absoluto te magoou;
mastigas, sem palavras,
uns grãos do arroz trazido na derradeira barca:
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Ainda a natal saudade te corrói, a boa parte;
agora que tens por pátria a nesga que ao céu alcanças.
SOS
A vizinha perdeu o gato, mas que disparate.
Fugiu de casa, pra não mais voltar.
Porque te sumiste sub-reptício, malvado gato?
Seu nome é Rom-Rom.
Avisa-se a cidade, publica-se anúncio, alvíssaras a quem o achar.
Se alguém o vir, chame-o p’lo nome, e dê-lhe Kitekat.
Por onde andas a esta hora da noite, famigerado vadio?
É preto, luzidio, usa coleira vermelha anti-pulgas,
e só vê do olho esquerdo.
Mas é meiguinho, asseadinho, garante a vizinha, e faz imensa falta.
Não vamos contar a história dele, que dava um longo romance.
Por ora trata-se de recuperá-lo.
Oxalá não seja já um composto indiscriminado na barriga dalgum chinês.
A vizinha, inconsolável, obriga-me a enviar este urgentíssimo SOS
[para a Net:
DESCUBRAM ROM-ROM!
Amores difíceis
Verdes entrançados, nylon, estruturas d’andaimes separam Caramelo
da amada gata, do prédio em obra:
Bem tenta ela a aproximação:
Os arredores rodeia, e estuda, enquanto Caramelo,
dependurado à janela, como estátua imobiliza e freme:
Mutuamente se suspeitam, mas, p’la aluada noite, a distância entre
[ambos,
praticamente intransponível, tece-se com sonhos impossíveis.
O peso nocturno passa, suspenso no peitoril marmóreo.
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Regressado ao interior fofo aconchego, à carpete, uis fundos dá,
frio gemer, dolorido miar.
Lapsos depois à estratégica postura torna, já a amada gatita debandara.
Remove agora o pescoço para todos os lados,
atarantado p’lo diamantino satélite em redonda fase.
A incrível bailarina, meu par,
desafia-me a versejar os de ambos sonhados passos valsa.
Perplexo, que lhe dizer?
Que em registo vídeo estão indelevelmente gravados
esses exóticos passos voadores,
subliminarmente gravados, sob as aluadas pedrinhas flores,
na comum praceta.
Estuário das leves ondulações,
encantos, golfinhos, gaivotas,
à aquática superfície em alva espuma.
P’lo que ante vagueamos.
Com seu gri-gri insistente,
um grilo na casa-de-banho trespassa desesperanças.
Escrivaninha das horas quietas:
Estou absolutamente morto para o que não seja.
O Diabo tem cornos?
Ele nunca foi casado.
Usa forquilha?
Ele nunca trabalhou.
Diabo e Ana Pandilha tramaram abrupto filhote, que não tinha coração.
Disto, Dom Diabo interpela Bom Deus:
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Vais mesmo deixar nosso filhote vir a mundos sem coração?
Desliga Bom do Deus, sem troco dar.
Nasce, e cresce, e se faz algo o cornudo cachopo descorçoado.
Num baque dos Seus, Bom Deus ao estranho petiz vai notificar:
Rabino Moço, sabes, dentre sideral espaço, que minha bondade
[administra,
dum astro a que chamaram Terra?
Queres ir pra lá?
Promete portares-te bem e cuidares vidinha.
Prometo, prometo, corresponde à prédica o enfeitado rebento.
De quejando diálogo resultou aqui cair o famoso filho do Diabo.
A que chegou sinistra criaturinha trevas e mentira?
Oh, este mundo dividido!
A todas as horas, por praças, ruas, ecrãs,
surpreendemos sequazes bastos do mofino.
Esse insidioso gajo montou singular busílis:
Gerir porco tasco em bem frequentada esquina.
Quando o castanheiro do quintal floriu,
antiga angústia desvaneceu.
O carteiro Candeias,
mais conhecido por flaviense, conversador, ou vagaroso,
apregoa a todo o mundo as maravilhas do presunto de Chaves,
desde que por lá passou uma ocasião uns oito dias.
Raúl, o negro soba,
na pedonal Rua Vasco da Gama desterrado,
áfricas e índias fuma, em acabrunhado delírio.
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Campos da bola
Grupo Desportivo de Bragança: Longa era a marcha até lá,
amplo o descampado.
Adelino Ribeiro Novo, do Gilinho:Ynjai atinava nos cantos directos.
Antigo 28 de Maio: Convivas abancados, sobre pedra,
torcíamos cada um por seu Sporting.
Associação Académica de Coimbra: Dentre capas e batinas,
exultávamos com Rochinha.
Ginásio de Alcobaça: Para alguns, poucos, o resultado
acabava por dar certo:
De tantas paragens vindos, saboreávamos, reunindo-nos,
quase destino, o ar domingueiro.
S. Luís: Procurava Aparício repor a verdade nos descontos,
mas os passes, para a grande área,
não resultavam como queríamos.
Bonfim, Setúbal: Ao vitorioso disparo do Henriques até o sol explodiu.
Habitadas casas
Cerejais: A graça e a luz: Beethoven por telhados aluados.
Trindade: Horror ao escuro, cultivos, ledos campos;
a escola, paredes-meias à casa;
jovens criadas, bambas cadeiras, luxúria, um crucifixo.
São Salvador: Brinquedos destroçados, nevões, a largo.
Vimioso: Nasce-nos um irmão: Lavagens, toalhas, azáfama, água morna.
Alfândega da Fé: Leituras nas longas tardes.
Escadarias, sobrados esfregados, tralha acumulada nos pátios,
velhos trastes, empenados gradeamentos.
Coimbra: Sótão pra ideias, escritos a esmo,
duro afã, desalento, e reerguermo-nos.
Braga: A desoras a voz da bela explicadora.
Cardanha: Sob cobertores-de-papa.
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Manuel Ângelo, ainda lês? Apaga a luz e dorme!
Os pascoais Belo e À Minha Alma.
Lisboa: Clara nuínha no banho: Baques infantes: Deleitoso encantamento.
Cem Soldos: Ecoa hora o relógio antigo; inaugural sorriso, p’la manhã.
Quarteira: Abertas à luz janelas, e varandas.
Leiria: Nocturno revolver versículos;
risos, e ledices.
Viagens
Tua a Bragança: Vinhedos, fragas, urzes, giestas, estevas, monte,
o Taunus verde torneando curvas.
Porto a Barca d’Alva: Acompanhávamos o curso d’oiro.
Coimbra a Lisboa: Por entre férreas estruturas revolvemos poemas.
Setúbal a Faro: Se por demais sobrecarregados,
lançávamos janelas fora olhares emocionados.
Copenhaga a Malmöe: Deslocada, sinica poesia.
P’lo Vale da Vilariça: Os mesmos sítios, as mesmas histórias, vezes
[incontáveis.
Até ao Bois de Bologne: Pra trás ficou o vão tremor.
Portela/Zurique: Enquanto nos entretemos com a refeição,
eternos se nos fazem os gestos lentos.
Funchal/Portela: Rectângulos sob relâmpagos, mondriânicas extensões.
Caído a solo alado pé, devolvíamos ao deserto local peregrinos traumas.
Então, muito bom dia.
E ninguém responde.
Os bons dias estão mesmo p’la hora da morte.
Ainda se fossem as boas noites, estou como diz o outro.
Não será por ter chovido muito ultimamente?
É caso pra perguntar.
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A uns sapatos luva que meu pai me comprou
Por onde andastes ou por onde não andastes dissestes-nos.
Reina gran confusão no estaminé:
Bufa o gato, espartiça-se o copo, tropeça a padeirinha.
Pois é, qualquer dia parte um pé!
O crava Rogélio,
desvivendo cintilações a quase ido milénio do pasmo,
em anti-diplomáticas abordagens,
a mim consegue palmar-me um por semana.
Vai contando com desvelado aconselhamento anímico
de gentis, humaníssimas psicólogas:
O fi de puta!
A intempestiva hora entra no Caffè,
ante o primeiro cliente especa,
e boçal dispara:
‘Posso pedir-le um cigarrinho?’
Pesquisadores da anedota
Selectas bocas ouvem até descortinarem a última.
Tarde e a más horas entram a estúdio os porreirais artistas.
Após triviais palmadinhas em costas camaradas,
ao maestro a mandam.
Padeiro Moreira sabe bem a história da 4ª classe.
Não esqueceu nenhum cognome a antigos reis:
D. Pedro I, o justiceiro:
Vingou Inês, matada p’lo facínora Pêro Coelho,
ao qual mandou arrancar o coração p’las costas.
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Aquela cientista viveu, anos sessenta, no Quénia selvagem,
rodeada por tigres, chitas, leões, feros felinos.
Um leopardo rebelde, a quem intimamente temia,
embora predilecto pra jogos, deglutiu-a.
Após chuva,
encherem o ar gorjeios,
luz nua, cheiro a algas, maresia.
Neuza
Já há onze anos que a raquete não arruma.
Teima agressiva a fere na peleja.
Aos treinos dedica boas horas.
Vejo-a adejar no court um, ao CTS.
Rodeou já o mundo todo:
Santiago do Chile lembra, alturas únicas.
Pra Miraflores mais um dia vai, despedindo-se de mim,
tal uma qualquer rapariga sem nada que se lhe diga.
Bucólica
Sussurra ventanias uivo inóspito,
reverdece linguagens
farta relva.
Para Einstein,
a humana parvoíce dá ideia do Infinito.
Puxou o autoclismo?
Não ouviu, por acaso?
Aquele autoclismo deve andar mesmo silencioso.
Praza a Deus que esqueça,
suspenso p’lo madrugar aclarado.
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Domingo passado,
surpreendemos o conservador municipal,
abancado com a sua senhora, na esplanada
duma geladaria da baixa, devorando,
a colheradas, bruto, envergonhado gelado.
O Silva contador não suporta vozearia.
A tarde toda passou em demoradas leituras prà EDP.
O rock, a nicotina, a cafeína, com garotas, a outra leva curte.
Carros roubados, outros com portas ou rodas arrancadas,
jipes desviados, depois desagregados, tudo a noite calou.
Até termos connosco o guarda-nocturno,
que perpassa minúcias, a pente fino.
Impertinente saudade
És tu a garota de Ipanema,
que vens bamboleando-te azougada p’lo Vieux Port?
Oh, esta saudade, o vago, o distante,
sonhando música nos teus passos, enredosa fantasia.
Que longe a orla dourada da pátria claridade.
Canto à Empresa Carlos Costa
a obra vai pra uma década começada,
porque a acompanhei com vida,
dia após dia subindo ante a janela
aberta ao sonho do meu nada.
Ao raiar a clara madrugada,
o operário arremete a Ernesto o tasco.
Pão quotidiano, vulgo carcaças, se demanda.
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Café é elemento comum amanhecido.
A qualquer hora que fosse,
que me fumasse pensativo,
debruçando-me sobre o alpendre perto,
pacíficos agentes nua evidência levantavam.
À força de pás os lixos removidos,
guindaste a topo alçando torpe matéria,
descidas e subidas ensaiando, terraço, escadaria,
sótão, revestimento, azulejos, andaimes,
uns infindos afãs, que acompanhei.
Falou Leandro que um ano à obra falta.
O andar-modelo propõe que sonde esplendoroso.
Erguida a céus a torre bloco do melhor sol rouba,
que em Acapulco alguém devera me prover,
pra atenuar exílios, em que há tempos ando,
nuns versos soterrado.
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Luta Infame
Nomes
Anne Frank: Amesterdão: A clarabóia, num sórdido sótão,
dava para as nuvens, substância sonhada.
O’Neill: Viciosa, indolente existência, anelos da fraternidade.
Lima: Povoaste com figuras aladas, bailarins, trapezistas
o horto amargurado.
Hölderlin: Fundura alemã, sopro criador,
vinho divino, ancestral angústia.
Vian: Ligeireza, plumas, golpes dum clarim,
despedaça-se o verde coração.
Pagnol: Térrea tua saga, moura, francesa e ociosa.
Duval: Cantavas; havia sorrisos, que atravessavam a rua.
Machado de Assis: Excelente tabelião do idioma.
Brel: Golpeados os fios que moviam a marioneta,
eis-te em fuga ante ti mesmo.
Junqueiro: Luz mariana e flor d’urze,
em torno ao simplicíssimo burrico companheiro.
Teilhard: Anteviste, no coração, a criação, a voz, o grande Deus.
Eça: Burilaste a tal ponto o tema,
que nem das palavras precisavas prà maravilha.
Bilac: Abraço trouxeste a lado atlântico, reuniste o inseparável.
Senghor: Salmos da África, tambores eclodindo antiquíssimos ritmos.
Pessoa: À leitaria a copos, à literatura a golpes d’asa.
Rilke: Soturnos anjos a acolhida noite indiciavam carinhos?
Camilo Castelo Branco: O Verbo esfarelaste, nosso banquete.
Simone Weil: 3 da manhã, grutas ao metro, em Londres,
com O Cristo Transeunte acamaradaste.
Bresson: Intimamente, o sentimento.
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Kazan: América, os sublimes jogos d’azar.
Antero: Limpidez, a ideia nova, traída por insanos.
Agustina: Reerguendo, em painéis, a casa arruinada.
Jiménez: Moguer tuyo, tu Platero; New York, tu mujer.
Virgílio: A felicidade pela agricultura, áurea mediocridade,
excepcional opção.
Manoel: Filmaste a cor e luz um Douro duradouro.
Dante: Ante Amor ’stás, ‘pastor d’estrelas’.
Cervantes: Nosso Quixote visionário arremeterá amanhã.
Teresa d’Ávila: Dizer-te é dizer Deus; e só Deus basta.
Carlos de Oliveira: Trabalho infindo, infindo verso.
Florbela: Mulher, a estremecimentos êxtases, só mulher.
Char: Teia teceste, enoitando insecto.
Bellow: Àquele que conquistou o mundo que baque angustiante lhe diz
que algo lhe falta?
Camões: Rezaste o amor excelente.
Pascoaes: Peregrino saüdoso, que freme em teu olhar
entornado na paisagem?
Kafka: Real o ver irreal. Hoje, a teu pé, a noite perturbada.
Beckett: Absurdo, gratuito grito.
Federico: Solto sol, areia, folhagem.
Aragão: Não é que o Cristo-Rei se entretem com jogos malabares,
lançando e aparando no céu banquinhos de assento?
Dostoievski: Universal envergadura eterna, eslavos actores.
Böll: Cataclismos, desumanidade; entreteceres carambolantes prosas.
Sophia: A perder pra lá a vista,
na areia a brancura espuma, a onda iluminada.
Serpa: O que não vias disseste puro, livre.
Matos e Sá: Perda tua, puríssima perda.
Saint-Ex.: O principezinho voa agora com aviões-correio.
Rosalia: Sar teu rio, Galiza tua pátria, saudade, portuguesa dor.
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Cinatti: Nem chegaste a explicitar umas certas coisas:
Desde o Reino em Timor ao engate da garota inglesinha em Sintra.
António Maria Lisboa: O exactamente especioso.
Ruy: O dia a dia, os mil nadas.
Aleixandre, Vicente: Espanhol camarada, o pó ao volante pé cantaste.
Al berto: Chagadíssimo clown, algo dói.
Rimbaud: As vogais: Luzinhas flébeis, embriaguez vadia.
Green: Levaste a extremo a precisa descrição, sinistra gesta, acossado.
João XXIII: Entranhas misericordiosas geraram tua simplicidade gorda.
Brandão: Fundo humo teu drama, porque recôndito bicho metafísico.
António Machado: Declives e ermos píncaros, rios, riachos e ribeiras,
tu Castilla.
Sena: Nome de rio o teu, migrante, o riso amaro.
Régio: Realeza, cumes, dor, abismo, ferida. Deus se te amercie.
Aquilino: Beirão e lusitano íntegro te quiseste;
em retalhada escritura te demonstras.
Pessanha: Ópios dormentes, Oriente, dolentes infusões.
Torga: Humano só foste, mas humano.
Cesário: Delineaste os perfis das nossas ruas;
percorreste-as, em televisiva reportagem.
Mozart: Troca as asas aos anjos e executa os imbricados scherzos.
Negreiros: A cor cantaste a Lisboa navegante.
Caeiro: Respigaste, na pastorícia, fotográfico arrepio.
Husserl: O que ante esteve, disseste.
Reis, Ricardo: Jesuítico tu? Vernáculo, castigado, pagão, indiferente.
Campos, Álvaro: Roldanas, mecanismos, válvulas, engrenagens.
Shakespeare: Tramas múltiplas, abismos, paixões,
porque complicados nos sabias.
Jesú: Hoje me abraça o olhar o mundo inteiro.
J. J. Rousseau: Sente e rumura a água corrente?
G. Bernanos: Daimons, rigor, graça, sombra, luz.
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Trindade Coelho: Regatos, encantatórias fábulas,
ah, a infância!
Espinosa: Teu Deus, sive substância, viste.
Paredes, Carlos: Desfiar lágrimas mel um povo a sul.
Renoir: As armadilhas, e as artimanhas.
Afonso Duarte: Montanhês na planura, lavraste versos.
Neruda: Canto universal, somente humano.
Joyce: Irlandês completo, aos intrincados labirintos.
Natália: Perpassaste as mãos por papel rugoso,
pousaste um rascunho sobre nada.
Bernardim: Doce tristura, saudosa mágoa,
alguém a quem terno amor abandonou.
Eluard: A precisa palavra liberdade.
Stockhausen: Roem-se sons.
Sati: Pontilha-se cada tecla.
Sebastião, da Arrábida: Mudavas de camisola, saltitando dum barco
[para outro,
apertavas atacadores, trocavas na lapela a flor, abraçavas ar, água,
[montanha.
Pound: Da única gesta itálica universal o melhor fabro.
Paulo: Tombado a conversão, arrasaram-te o arroubo, o testemunho,
[a bênção.
Pablo: Com rabiscos arquitectaste múltipla completude.
Chagall: Menino sempre em aldeola, à Rússia dos czares.
Goethe: Diamante lapidado tua Dichtung.
George Braque: Interiores iguais a ontem, a voo pairado a cegonha.
Cecília: Clássico nos teces o fluir fruído, ingénuo encanto.
Neto: Preciso de ir para casa, mas daqui já não sei caminho;
dá-me a mão, querida.
Miguel Ângelo: O humano percurso resumiste na cor, para o ver
[itinerante.
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Vergílio Ferreira: Sobraram escritos, mas não falhou a originária
[palavra.
Queridas graças,
tudo de bom pra vocês,
que quero dum amor
tamanho como o ar.
‘A estrela de Belém,
hoje ainda,
é uma estrela na noite escura.’
Dissipe-se,
com o transluzir cimeiro à gruta,
a vã angústia.
Quando o Reino de Deus
chegar de vez,
os padres ficarão desempregados,
o Papa entreter-se-á,
num tempo imenso,
a fazer bolinhas de sabão.
Multidão dos meninos,
ao rasgado coração;
céus das melhores vidas.
O cobrador de quotas do Clube de Campismo da Gambia
há uns bons vinte anos que a más horas chega indesejado.
Das prestações os últimos trimestres
me crava em euros novos à socapa.
Dava-me, entrementes, ao costumado ioga espanhol.
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Retirado o bigodado gajo,
em vão leito retomo,
revoltando-me para outro lado.
A urdidura do fio libérrimo já não reato.
A rapariguinha
do dancing,
entre copos solícita,
nutre dorido idílio.
Tarefas para o partido
Só quando desceu
para ir à reunião,
esperavam-no,
deu conta de que enfiara,
à última da hora,
o pulôver americano.
Boi exausto
os cornos investe
a delir ideais.
Filha,
que
a Sírio tua
fulja.
Uma boa noite,
cheiinha
de pontinhos,
e luas.
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Para que quero eu a manhã que vem?
Para amar sem muros.
Pedrinhas da calçada desenhadas,
por onde, solas gastas,
os sapatos, a seus arrojos, me mandam.
Abrigam-se-me, sob elas,
visões, submergidas p’la dura chuva.
Yolanda,
a fresca hora, rompe meia dormida a porta,
ainda apertando o cinto, à mansão do Café.
Um seu poema me pede, mas demoro-me a pari-lo pra papel,
ruminante fatal duns versos múltiplos, pra acertar contas a sorrisos.
Se tanto a cansa se vestir, porque não pernoita na praceta,
aconchegada p’las ignoradas estrelas?
Traseiras do liceu, 4 da manhã
Como habitualmente, um, dois padeiros distribuindo,
pão por pão, por cestos, sacos e carrinhas.
Mas eis que há novidade:
Chegou o grande dia da viagem dos finalistas a Espanha.
Uns primeiros pais esperam já, mais seu menino,
p’lo autopulman contratado.
Mas o menino está nervoso, e mal dormido.
Desloca-se muito de um lado pra outro, não sabe que fazer dos pés.
Mais pais, mais pais, mais pais e mais paizinhos:
E mais meninos e meninas.
Já não há onde arrumar mochilas, sacos e malinhas.
Basbaques uns, e umas, outros, e outras, fumando,
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ou disfarçando pasmos com beijinhos.
Será que telefono ao Ilídio, para aviar pequenos-almoços?
Boa antemanhã para o Zé guarda-nocturno:
Se está entregue a praceta, pode ir mais cedo para casa.
Cândido Guerreiro,
bardo patriarca, por caiada aldeola,
regatos, limos, florações, amêndoa.
Rua Infante Santo
Que modorra vai o tempo!
Alvuras tingindo o vórtice do dia.
Preguiçosas doçuras alastrando.
Alguém grita dentre silêncio.
Estores, secos estampidos;
a um veículo na via algum cão ladra.
Moçoila,
à sombra, com o companheiro, no arroxeado poente,
caída sobre a rugosa terra, descansadinha;
nutres com sonhos meus devaneios turvos;
acompanhas-me na prolongada estada;
dás azo à música que soa por dizeres rimados;
és substância carnal pra loucuras que me mantêm.
De ir corrigindo versos
Que ignorada palavra espera ainda, ao dobrar a linha?
Que renovo som remexerá o surdo ouvido?
Que melodia não transcrita?
Que extraordinária correnteza ou novidade?
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O arrumador dos tabacos na máquina automática,
meticuloso discriminador de moedinhas,
relata idos com um famoso ‘manguchi’ independentista.
Lembras-te
de quando floriram
as nossas túlipas?
Chegando a fim jorna,
suas pétalas cerravam.
Razão balançada ao suceder
O escriba do olhar abrangente
resolvera acabar as letrinhas,
e abismar-se.
Com as mãos seguro, o livro
a aluna lê, a resolver-nos.
Na noite dos planetas alinhados,
sinto-me bem
a enumerar
domésticos, bons fantasmas.
‘Er sieht nur Sterne, Sterne!’
Sob o chão!
A pomba do Santo ’Spríto
voa-nos da lapela ao meio-dia em ponto.
Linguagens a melros e demais aves estuda,
regressando depois ao lugar da partida.
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Está cá um encantamento por aqui!
Do menor dos ponteiros loucos trajectos.
Puxaram p’lo sol todo pra baixo?
Ou o sol anda só p’lo outro lado?
Criança palestiniana fardada a kamikaze
Até onde a desumanidade!
Podem as entranhas do Misericordioso
com semelhante vómito?
A quem se não afigura o horror?
A quem se não revolve o coração?
Ante isto haverá algo a dizer?
A que extremo chegou a atrocidade!
Pergunte-se cada um se tem limpas as mãos.
Regresso às hortênsias descoloridas,
sob fumo, névoa, vil cansaço;
da luz a excitação como se anula;
Agosto algo chuvoso se aproxima.
Com a Clara Pinto Correia e o escritor mirandês
revelação de nome exótico, laborando
ilustrados romances, sexo promíscuo,
espectacular invasão a um vulgar canal…
À pergunta porque era o Messias, em Eboli,
distinto do que seu, o mirandês
opina para as câmaras:
O povo é cruel, e adora vísceras.
Cigarra canta,
toda olvido.
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Tu outra vez, fatal Pessoa?
Nacional obsessão, contumaz pilhéria,
a que nos reduz teu vicioso ciclo alcoolizado.
Era só o que vias este sol?
Ou, mais pra lá do que disseste,
ou nos subscritos selados nos deixaste,
não haverá rua, lua, alma, sonho, praia,
monte, voo, luz, quê, imensidade?
Qu’o hoje não é toda a Lisboa.
O que me dão:
O doce Cristo, desnatado embora.
Foste mesmo um menino,
aos tombos p’lo cais da vida.
Dulcinea del Toboso
y Quijote de la Mancha
celebram prolongados festejos nupciais.
Pra quê inventar novo término
para o mais famoso romance?
A noite alonga-se.
Rio-me alarvemente
de gaffe têvêvista do Prof. Marcelo Rebelo de Sousa.
Onde param a esta hora esconsa os meus óculos?
Reza o entendido eclesiástico que quanto impacte
os telejornais transmitiram
derivou de azeda pesquisa.
Ciganos violinos traduzindo o Danúbio fotográfico,
trapezistas kafkianos, vagabundos artistas.
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Devastada, imensa alma eslava; aí vás peregrino.
Labirínticos, atapetados recantos, confuso chá, altaneiras tâmaras.
Enormíssima musical litania, samba, mescla santa.
Cordilheiras, píncaros, mansas enseadas,
virgens florestas, verde folhagem,
morrinha, encantatórios desertos ermos.
Soberana voz, amordaçada, cantando pra bailico.
Voláteis engenhocas obrigando-nos a baixarmo-nos,
inclinadas ervas, dunas ondulantes, percorridos ventos.
Que rumoreja o Sena? Quem chora em Notre-Dame?
Quando a cadelinha se estendia ao sol,
no lençol da rua,
era bom sinal.
Árvores, espreguiçando-se,
acordam dum escuro sono.
O lugar em que estás,
o mais distante.
Os poetas sentaram-se.
Ao mesmo tempo
tiveram a mesmíssima inspiração:
O ventinho que soprava
era a grande paz,
que franqueava portas.
Poesia, tratasse-te por tu,
e tudo acabaria puro e nu.
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Sento-me na casa.
E parece nada haver a fazer
com emoção.
O Eterno Pater,
no último dos sete dias,
dá-Se conta do reconfortante resultado.
Assim o poeta, no declive vivido, ao reformar cultivos.
Saudosa pátria…
Os pássaros entoam
imortais gestas.
Antiquíssima história, velha como obrar
Ao primeiro Sábado,
rejubilou o bom Deus:
Era pura e plena, boa, a criação.
Adão e Filhos Limitada,
no imperativo de dominar a terra,
a conspurcaram.
Novo Adão, flébil espírito, quisera,
no oportuno tempo,
reconstruir a arrasada casa.
Bem sopra onde quer um vento novo Paráclito.
Bem chora a boa Mãe.
Bué estopada.
Tudo pior do que estragado.
Mysteria Lucis
Com João no Jordão,
Água, e Espírito,
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a’O que És regressasTe.
A Canãã fosTe vinho divino,
pra noivos, e convivas,
a rogo dA que Te amou.
Com Moisés e Elias,
no Tabor, transfigurasTe-Te.
Montando jumentinha paz,
à Jerusalém Celeste,
chegou-Te A Completa Aclamação:
‘Hossana ao Filho do Rei!’
Grunhe porco,
não que lhe falte bolota.
Cócórócas, galaroz?
Esganam-te, no gasganete.
Arrulha pomba
o ’Spríto.
Zurras, burro?
Masca urtiga.
Busca, rafeiro,
filas rubi.
Pula, macaco,
achas galho.
Alça nariz girafa,
quanto quesita cata.
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Orca tonta,
esguichas?
Forças voo, cegonha?
Pra descanso pára.
Rato anafado
o sujo o ceva.
Lebre saltadora
nem topa.
Borboleta cega,
luz te turba.
Vaca leiteira
pasta, verdadeira.
Insecto seco,
areia espessa.
Formiga,
em retirada.
Poeira,
por interstício.
Água, bolbo,
antenas arame.
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Pardal
p’lo bico destila mel.
Macieiras,
bordado edénico.
Resfolgas, coelhito?
Te dão catatau.
‘A saudade saudadinha
diz-se nada no Faial.’
S’em ti voasse, saudade,
era meu o Portugal.
A amiga saudade
é viúva, noiva, e tem
por irmã a manhãzinha,
a noite é sua também.
Fui menino, sou menino,
porque me deste um bolinho.
Não chores, madrinha,
que o menino voltou para ao pé de ti,
pra revolver o sol p’la casa toda,
e brincar com os casulos dos teus bichos da seda.
Teu retrato, pai, no coração do mundo;
não partiste, esperaste; o abraço demorou.
Geométrico tecer
truculentas ramagens a girassóis.
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Aquela clareira
inteirinha, em luz,
acabou por nos livrar.
Da indecisão
à luz melhor
te perquirires.
Meus encantos:
Olhos abertos.
Minha raiva:
Punhos cerrados.
Minhas asas:
Mãos a céus.
Minha mágoa:
Do passado.
Minha prece:
Livro a ler.
Esperança:
Nome gravado.
Minha fúria:
Querer pão.
Tua luta:
Teu bordado.
Minha vida:
Tu a dizes,
meiga rosa,
verde prado.
Minha morte,
estar vivo.
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A palavra:
Ai pesado.
Isto dito,
eis retrato
esboçado.
Durmo, velo,
’s’sperado.
Fujo, fico,
a teu lado.
Voo, tombo,
atordoado.
Amo, espero,
arrojado.
Só por flores
aluado.
Esta paz,
lago habitado.
Meu canto:
Chilreado,
alma, voz, som,
sopro alado.
Paira noite,
chão chovido.
Abre o dia,
fim datado.
Abre a luz,
dou-me ’leado.
Se me abriga,
céu e fado.
Se me ama,
bondade
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demasiada.
Já não lembra
meu pecado.
Todo o choro
já chorou.
Já vigia
os dedos
na rescrita.
Margem,
água,
poesia,
onde desce
uma pétala.
Põe os olhos
em mim.
Pois me quer,
também me tem.
Gozo infindo,
seu regaço.
Mãe,
mulher,
calhandra,
senha, recado.
Baixinho
sussurra-me
ao ouvido.
Sacia-me com mel,
manjar sagrado.
Sonha-me
um sonho,
sobre
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meu ombro
reclinada.
Meu tu,
meu tudo,
asa, porta,
ave,
cofre
dos cheiros,
Maria.
Olha
o desfeito ar
acolhido.
Libérrima
rebentação
na fonte
das moçoilas.
Goza-o
pra lá
das gazelas
na nascente.
Minha Ise
a o invisível
amará o subtil quê.
Lua cheia,
monte, céu.
Mãos vazias
voos dobrados.
Mais vale
lembrar
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a infância,
jeito a festa,
mistério,
abrupta pedra.
Prà ’qui a noite boa, quente no Inverno,
povoada por luzeiros altos, e memórias de alegria.
Prà ’qui resolve-se o poema ao rítmico bater dos corações.
Prà ’qui habita o ar vazio, e raro,
trazido da montanha, transido p’lo infinito.
Prà ’qui tudo dorme a noite ancestral, remota,
e morta da saudade, complexa fantasia.
Prà ’qui me foge a vida, precário ’stou, a extinto lume sublevado,
dócil a musicantes tarefas.
Prà ’qui o amor bom, o vinho tinto, o verso cheio,
o abrasado deslumbre na terna boda.
Porta dentro,
o filho errante a casa torna.
Do pai,
que sempre o esperou,
o abraço,
e o perdão,
bondoso quanto tudo.
O nosso coveiro
prefere taça
a campo.
Jornalismo
Enquanto cristãos, budistas, judeus, muçulmanos
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clamam paz,
tenebroso repórter, aviadas trouxas, engenhos prontos,
vai pra noticiar, in loco, artilharia.
A seu recanto fugida uma criança enlevos teima,
fazendo terços com cruzinhas, aramezinhos, e missangas.
Dia após dia, burocratas abancados, ao inóspito café,
mobilizamos fúrias imperturbáveis, ante imprensa,
a inquirir o terror.
Réstia florida,
no cinzento
cimento,
a alface,
carícia
a exilado.
Após decepcionantes ilusões,
retorno a um sabor vivido,
antes ardilosamente sonegado.
A minha luta é esta:
Dar-me às manhãs,
crescendo na magoada saudade;
dar-me aos caminhos
aclarados p’lo teu olhar;
dar-me à poesia, a flor irmã.
Animal ferido,
a guerra
deixou-te só,
mas alentaste-te,
ao descansares.
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Ancilla Domini
Dócil à vontade maior,
acolhesTe
o sopro fecundante.
Pobre cristão,
Te frequente escola;
e Te imite,
em rota até O Pórtico.
Saciado com a flor da farinha
e o mel dos rochedos,
livre,
como um passarinho,
me quereria.
Hoje é Sábado, ou Domingo?
Aéreas pedras, árvores, aves
soltam envolvente oração.
Quem ficará indiferente
ante tal eclosão, divino amor?
Uma rosa arde,
no coração do mundo;
boca para palavra,
desflora intocável completude.
Não, nada dizer, antes ser:
Se evolar alma.
O eterno dorme no verso,
que rima com Maria Mãe de Mim.
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Caleidoscópio
Opunha uma tal resistência à propaganda
que se qualquer produto surpreendesse publicitado
já não o comprava.
Melomania
Hábil decifrador dos desertos,
a só linguagem musical lhe dizia algo.
Passou a vida inteira a sonhar, encostado ao fundo som.
Do sonho, em que se tomou, absorto,
só despertou quando tombou morto.
Diotima:
Porque pousaste em mim o subtil beijo da beleza,
resta-me, com isto, acabar.
Elementar, meu caro Watson!
Desde que acordou e se vestiu, até que se deitou,
decorreu para ele um dia mais.
Catorze horas se afez a inúmeros dicas,
não pertinentes para as referenciarmos.
Uma tesoura de mola na sequência infindável.
Dum tombo cai o professor, um tinteiro vazando-se.
Ossos doídos, a uma faca d’espaços.
Finos fios, frios, fundando sulcos.
Uma rapariga a andar com rosas rubras.
Um som apenas som, a repetidas canções.
Pensamentos tecidos na vacuidade.
Ansiamos por um dia bom, desde manhã à noite.
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No balanço
o cavalinho em madeira galga irrealidades;
relincha, salta, retouça, estrebucha, e detém-se.
As só palavras fazem o poema, moram nele dentro, serenidade
[construtora.
Aparentemente neutras, entranhada pólvora da paz, tudo fecundam.
Delas se resolve a trama, o segredo, qu’impregnam:
Sobem à tona e dizem a arquitectura a erguer-se.
Será sua finalidade única o emerso hoje?
Gershwin, um americano em Paris,
nenhum tom omisso na universal carpete.
Elogio do sono
Porque nos retemperas manchas, arqueada ponte através,
como ausentes, albergamo-nos nas altaneiras moradas.
Porque descuidado
não deixas parar os olhos,
admirando às rosas
a essência?
Nas íngremes encostas batidas ao sol,
às oliveiras, por grossas mãos varejadas, tombavam
para o chão, em extensas lonas, rebuscados frutos.
Ao calor, no lagar, prensas esmagavam, as esteiras
chorando, gorda espessura com pegajoso suco.
Caroços, já em desfeita baga, ardiam no lume:
Pra fundas talhas corria fluido fio loiro.
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A mulher, na meia-idade, reduz a pó, por acinte percepção,
as tontarias esgrouviadas do companheiro;
à mesa, à cama, a o trivial o remete.
Veleiros
vão, não ao sabor de ventos e marés,
ágeis mãos lhes moderando as velas.
O sonho interpela-nos,
mas transcende-nos,
prolongamento indefinido.
Aranhinha,
a tecer teia…
Aos saltos,
quais ágeis galgos,
folguem pujantes arlequins!
Sebastião, poeta moço,
enquanto estiveste connosco
viveste lindo sonho.
Ao romper a mansa aurora,
vou buscar, nas florinhas
esquecidas à tua serra-mãi,
a canção que és, num redivivo eco.
A uma hora destas,
dependurando-se do cigarrinho,
em plena burocracia…
Desfaça-se da porcaria,
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descontraia,
respire fundo,
rasgue o farto dia.
Prà rede,
prà barca, prà canastra,
prà grelha, prà mesa
a miudinha sardinha;
com salada, pimentos, batata,
ou embebendo pão;
ou a temperar com fino azeite.
Uma meia dúzia enche travessa.
Jardins d’água e flores,
onde retinem em chilreios múltiplas avezinhas;
a vendedora das ditas, canoras, diminutas criaturas,
achou maneira de, embora ainda aqui, emigrar de vez.
Tal fuga lhe admiro, sempre que lá passo,
apressando a redutora sequência dos sincopados segundos.
E se com ela estabelecesse sociedade?
Que um outro, melhor poeta, aceite a sugestão.
‘Mas onde, aonde, essa Lua, essa Estrela, essa Chymera?’
Simples demais; depois da esquina, passado o arco, ao CCB, Loja 6.
Dá gosto ver correr o azeite.
Velhos, ranho farto, pés nos socos, meias de lã,
tossem fundo, e inspiram demorado rapé.
Cai em meus braços,
cabecita louca,
que logo te dou secreto mel.
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A barba por fazer, quatro cafés bebidos,
quatro rascunhos, raiando o dia,
quatro rascunhos não,
com este cinco.
Contigo, pomba minha,
os violentos arrebatamentos.
Os pobres, à inópia das cidades,
com os pés chagados,
mal conseguem andar;
por onde vás te assaltam.
Queres ver?
E segurava, entre os dedos, o anel.
Quotidiano puro, e evasão,
comigo, entretanto, esquecido.
‘L’art pour quelques-uns,
le livre pour quelques-uns nous est inutile.
Est-ce vrai ou pas vrai?’
Versos bizarros naveguem insuspeita água,
e cheguem onde lhes respondam,
recolham aos ‘peixes’ as mínimas mexidas;
regressem, com o escriba, à mesa do tempo.
Abria o livrinho,
que trazia para os tempos mortos,
abria-o, e lia-o, sem detença.
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Fazia uma dobra ao canto na página,
fechava-o, e partia.
Cobras
apareciam esventradas por veredas, crescendo lua.
Comer da mão de Deus
Radiante diafaneidade, na tarda tarde.
O estádio, borbulhando o ansiado prélio:
Um prolongado bru-ah-ah ambiente.
Desprendem-se modeladas vozes.
Premir teclas,
intuir associações, moer lembrança.
Acrescendo sentidos a reapreciadas palavras,
continuamos atidos ao que perto;
folinho fofo, assopra!
Outubro/1917
A todos deu o nervoso com o sol, uns iam tombar.
Parecia flores d’amendoeira, baloiçando-se o chão.
O astro maior deu aquele salto.
Tremíamos como varas verdes.
Perguntavam aos miúdos pastores:
Não têm medo?
Não, respondem,
Deus Nosso Senhor livra a gente.
Gata em telhado em zinco
Se não caças ratos, que fazes aí bárbara gata?
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Mimas-me com lânguida descontracção.
Pra que insciente te admire boquiaberta relaxas.
Ao lustroso pêlo repões lambido brilho.
Por soez desfaçatez, actriz, exibes da noite pura cor.
Não vá o sol matinal despertar-te a letargia.
Bicheza, imponderável sussurres meu poema.
Registo a olhar feliz, ressoe, cantata pra vazio.
Miúdas formiguinhas, as letrinhas se encaminham.
Grossos óculos terão de ser os do leitor pra discerni-las.
Quietinhas, linha a linha, contornam sucessivos sinais,
até irem, uma por uma, ordeiras sorver o inesgotável ponto.
Sons associam-se,
e expandem-se, como música;
truque alto, de prestidigitação,
fazê-los bulhar das aliterações;
em bem distribui-los
consiste arte.
Pórtico
Cruel régulo islamita a seu castro
as noivas cristãs, por lei e uso, reclama.
Simples fiéis, o Feminino Nome
lhes aflorando à boca em intérmina oração,
moços rijos, armam-se a combate
pra resgatar suas apaixonadas.
Refrega crudelíssima se trava.
Aos que mortos celeste bálsamo marial mão derrama.
Revivendo, chacinam árabe milícia.
Sangue ruim para ver, estrepitosos gritos.
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Albergou, desde essa hora, a Vila gente cristã,
que A Fé proclama, a nome excelente.
Tragédia
O homem empalhado abanca no estádio,
à espera do pontapé-de-saída.
Notícia poema registo de última hora
Fim, imenso fim,
em grande mão emerso, um dia mais a conhecer manhã;
na divina luz expanda e a longe soe a acrescida música;
flua pura invenção.
Reúnam-se as palavras
e corram consoantes.
Nenhum arrepio
a seu murmúrio hajam.
Ondas a quebrarem,
depondo-se,
conclusa harmonia.
Palmeira,
desgrenhada,
a chuva, revoltas, ventania.
O lobo-do-mar,
investindo largos passos
na marginal, à distância vai,
olhos ao farol.
Qual seixo interminamente rolado,
vezes sem conta batido pelas vagas, o que aí…
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As pedras iluminadas…
Se tropeço distraído,
o poema interrompe-se.
Róseas velhas,
em água benta,
ventres cheios,
à apanha
da amêndoa.
Pudesse ser controlador aéreo,
pra determinar aterragens e descolagens.
Magnos voos escapam porém a meu sondar;
até porque sempre há mais ar do que ar.
Platão, Cristo, Paulo
A Atenas, o socrático sábio
o etéreo, à Ideia, apontava.
Dias idos, p’la Judeia,
o Amigo ânimos demove.
Donde vindo o arrasado tarseo
no areópago eleva voz libérrima.
Agostinho
A abismos cai em desnorte: Mãe Mónica
em instante prece o silencioso Deus atende.
À doce paz converso já confia:
Inquieto, insatisfeito o coração vagueia errante;
repouso não logra senão quando em Ti descansa.
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O de Assis pai
Doirado sonho, de restaurar Madre Igreja,
o move a novo dia.
Pobre se torna o que é, em Deus mantido.
A natureza ama,
que o conforta de frio e indigência, com’a irmão.
Arrastando-se nu, por cru desterro, louva.
O discípulo António destaca,
para pregar a arca e o saber.
Seu desígnio é dar, nada ter, mas esperar.
Morte amiga o conhece, exalça, abraça;
à flor humo subido, um outro Cristo.
Maximiliano Kolbe
À Imaculada ‘os cartuchos’ distribui, a milagrosa medalha.
Até a confins a Miriam esplendente leva o gran sinal.
A terminal medida sem azedume cumpre:
À cinza se dá, pra que um amigo, depois, com os seus, viva.
Henrique Navegador
A cruz templária, no pano-cru das velas,
às barcaças soltas mãos esboçam;
terras, céus, sopros, marés com rigor
se analisam, especulam, estudam;
a ousada navegação, os rumos definidos,
vãs conjecturas vai desvanecendo;
do Infante obrigados, uns seus
inauguram Padrão de Fé, com areais atinando.
Tenho ali um docinho para ti!
Avó madrinha demandava-me à parte à quermesse
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a desvelos em seda;
hoje me atrai ainda,
desarmando-me completa com os favos.
Mário Soares
Se algum argumento ainda te faltasse
pra no pátrio jardim seres um dono senhor achá-lo-ias.
Bento XVI
Sob sombra amiga dO Misericordioso, orientas, Pedro, a barca.
Quantos te pesam, e nenhum estranho.
Nevões
ou amendoais florescentes.
Calma pescaria
Barbos, pargos, bogas,
sáveis, da água doce, cativos.
No golfe,
Neves tacadas rigorosas mede.
Lógica do sonho
Terá Freud previsto relacionarem-se os ovnis e os fósseis?
No quarto,
um visionário Cristo o alentava.
Outra manhã
chilreio intérmino
inicia.
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Meio-dia,
a sol esparzido, enxergar oiro.
Meia tarde,
odor a corpo, sob pingos.
Artérias
adentram fogo.
Na canoa,
a esforço, contra morna anomia.
Montanhismo
Trepo cumes a que me incluo.
Tijolo a tijolo sobre o solo,
encho com sólido sol o livro;
andaimes venço à exaustão.
Arcanos do coração
alquebram-se-me p’la cidade
ao deparar com as varredoras das batas verdes;
cedo alindam as ruas,
já nupciais passadeiras pra brisas aladas.
Hipismo
Transpor obstáculo após obstáculo;
chegar a repouso à pradaria;
e os sobressaltos findam.
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Que graça terá
cegar touro contra o vermelhão e lhe desferir ’stocada?
Por Asa-Delta alçado,
quase me esquece que terei que descer.
Esqui
No nevado relance me deslizo.
O amante dos dicionários
flutuações esmiúça.
Voleibol de praia
Tu cá tu lá com a bola,
bola, não bola, aquém, além rede;
tomba, ao suster puxanço, um bronzeado corpo.
Nascer e morrer o claro
as aves sentem.
O espeleólogo
desce p’lo sono.
P’lo bar
As líricas jovenzinhas,
os comuns dias, elásticas pastilhas, cafezinhos,
jogos d’azar, mesa à janela, saudável pasmaceira
regional, nacional, internacional,
conhecem-me melhor do que os consabidos folhetinistas
da acomodada escrita.
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Gaivotas bicam peixe à flor da água,
enquanto o Sado azula ondulações.
A amplo espaço abre-se o olhar,
que à fera novidade se esvai.
Arquitectura
Vítreas, férreas, pétreas estruturas,
a aureolar hora fabuladas.
Boxe
Directos, defesa, ataque, golpes,
contagem decrescente até soar desfecho.
Um tomba exausto a nu tapete;
a outro, cambaleante, o braço lhe erguem.
Pardalito, meu irmão, vem cair na minha mão.
Pardalito, meu irmão, aquenta-te na minha mão.
Pardalito, meu irmão, aconchega-te na covinha da minha mão.
Pardalito, meu irmão, debica, nas franjas unhas, as grainhas da romã.
Aux Alpes
Suspenso ao ar lavado, a amplo aspiro o poema
sobre a terra, pacífica extensão da eternidade,
réstia possuída, sopro, asa a estremecer.
‘Meus amigos, que tristeza nascer em Portugal!’
Boi da Paciência, que sempre reencontro,
amo-te e detesto-te, até ao vómito.
Quisesse afagar-te os vis corninhos,
e ririas melífluo, como quem padece coceguinhas.
Conheço-te bem demais, engenhoso atávico ruminante!
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Conheço, e reconheço, teu minucioso e porco ritual.
E ainda aí estás, a ti igual. Anos 0, anos 60.
Marras agora, como já antes marravas,
ao tempo em que te detectaram sagazes O’Neill e Ramos Rosa.
Pronto regougas, desmaias,
fazes que desfaleces;
como em derriço;
como se te sorrisse um incisivo.
Deixa-me que te diga: Com os meus 60, que conto na passagem,
já não estou pra ti virado.
Mas, se é esse o teu gozo, envolve-me em blandícias,
revolve-me no teu bandulho.
Estou farto.
A qualquer hora me desafias a que nem a relance te suspeite.
Tal nojo me mete a tua baba.
Tais emboscadas tramas ao poético transporte, meu tesouro.
Os dentes cerre firme, Cego A Alta Luz.
Que aspiras ’inda, mansarrão?
Abre os olhos, e vê: Estes não são já os melhores dias.
Continuas, boi boizinho?
Ateimas ’inda?
Ouve cá:
Realmente só sumirás, quando, por minha vez, me der o fora.
Pertinaz aderente, espera, que vou ali e já morro.
Sabujo cara de pá, mijado salazarento.
Podes morrer, que o sol continuará resplendendo,
ondas desdobrando-se sobre areia,
pálida lua ciclicamente plenificando-se,
montes, os lombos ermos, maravilhados,
niñas flores espreguiçando-se,
vozes do vento, prenhes memórias.
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Lei de talião
Perpetuam-se réplicas
a ofensas;
impossível deslindar
quem começou.
Mandamento Novo
Um gesto,
nascido num coração frolido,
inaugura a liberdade
dos filhos de Deus.
Onde o destino dos poetas é tão só,
bem mortos, dar nome a esconsa rua…
‘Seja o da Quintarola o Zé ou o Chico Doutor,
ó meu Amor, antes fosses peca salamurda!’
Que caíste indefesa no rectângulo das cínicas facadas,
sorte madrasta, vómito ritual.
Prodígio fatimida, o sol resplende.
Que não o comercializam em embalagens?
Tejo,
limpidez a olhos água.
Abelha, p’las flores sardinheiras,
colorida mantença.
Vinho,
cristalizações da ternura.
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Leite,
alvura, desde úberes.
Queijo,
térreo rigor.
Iogurte,
remoída azedeza.
Devaneio trivial
Pelas traseiras, na praceta, passavam a cismar uns vultos sós.
Lembro que nossas filhas andavam longe:
A arquitecta p’lo Mar Vermelho, a actriz por Barcelona.
Minha mãe partira um braço na Costa Nova,
quando arrancava flores.
Isto por inícios de aulas, vaguejava o papa p’la Arménia.
Acabávamos de ver O Carteiro de Pablo Neruda.
E escrevia algum verso sonhado:
‘Cuidas meus transes, companheira!’
Vexata quaestio
Pra uns febre do pecúlio,
pra outros desígnio alevantado.
Pra uns móbil terrestre, pra outros fé.
Quando acabará por perspectivar-se história?
Sólida árvore
meu coração,
sólido ar
o teu olhar,
sólida ternura
o meu amor.
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‘Restauremos a poesia em Cristo!’
Estremecimentos, meiguice,
o todo se nos morre.
Só nos somos divinos
na medida em que contemplamos
o corpo do Cristo,
adaga até à alma.
Poetar é rezar,
elevar a céus e terra
versos magoados,
animada ciência
de ver Deus,
sentido para quem abrasa a só candura;
a música, a luz, a linguagem da criação
supõem intérprete;
denote-se quanta fecundidade
aí se impregna.
Portalegre, museu da tapeçaria
A caligrafia poética consiste em complexa teia,
dia a dia tecida, com os nós em lã das todas as cores que há,
por onde perpassam exangues gotículas.
‘O justo viverá pela fé.’
Como não cantar aquele a quem Deus basta?
Homem, palavra e amor, novo inteiro,
que olhos rasos abre à vida aqui.
Fé e decisão projectadas às alturas, a amanhã.
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Por ventura lhe falta algum quê?
Não, supomos, a não ser transpor extremo fim.
Tudo tem, porque em Deus vive exaltante plenitude.
Novos céus e terra proclame exuberante.
Seu canto plenifique a vertical beleza a que hoje emerge.
É o homem completo, a quem não falta nenhum bem.
Que tens no Algarve,
que estás sempre pra lá?
Uma janela.
Tropeças nos sinais
do Deus Invisível,
que S’esconde, e Se dá.
Templo de Milreu,
sob sombra abrigados, ficar.
Vou para Casa
Irrequieto sapato novo
do actor avô,
entretém pra pasmar.
Acompanhando-o tremendo
enternecemo-nos
mais do que mortos.
Todos os anos
lembramos os abalados.
O pó irmão nos é igual;
respiramo-lo.
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Fátima, Rainha,
teus somos filhos muitos,
indivíduos, desgarrados;
reúnas-nos.
Louvor da luz
Luz da diferente alegria,
chave aranha, alma para a poesia.
Quem da pompa incomparável
vai engalanando os ociosos lírios?
Com saudades repleto eterniza-se o entardecer.
Ao plátano a folha cai,
chilreia num raminho um pardalito.
Perto, vagueando, perdem-se uns meninos.
A sonhar, em bicicletas loucas, pedalam moças.
Nuvens, cor a café com leite, imobilizam.
Folhagem d’árvores bailando ao quê da luz do sul.
Jovens devaneando, no clima ameno, tudo renovam com fulgurações.
O dia acorda esplêndido, expandindo-se a apelativos recantos.
Branco esfuziante a nascente;
quase nos faltam olhos,
tamanho é o milagre.
Que cogitam pardos patos
enquanto nadam?
Barcos atracados, cordeiros pascendo;
ondas sobre ondas renovando-se por grãos d’areia, à edénica orla.
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Das giestas
a amarelidão surpreender.
Rumo vão
por aragem.
‘El mar del corazón late despacio,
en una calma que parece eterna.’
Com o pasmo se alonga o meu olhar,
pra perder-se na tranquila lisura, no horizonte.
Sejam plenos, fundos, os dias.
Na leveza imersos encham alma.
Transportem onde nasce o encantamento.
‘Por cada flor estrangulada
há milhões de sementes a florir.’
Ergue-te, novo sol,
companheiro dos heróis,
a lourecer o canto.
‘As estrelas mortas apagam-se aos molhos.
Vem, lume perdido, florir-nos os olhos.’
Recreiam-se florações a lonjuras.
Reacendem-se, após doença,
relances enamorados.
‘Bénie sois-tu, âpre Matière,
glèbe stérile, dur rocher!’
Constranges-nos a refazermos
a cósmica comunhão.
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Um último raio de sol sumido,
no mar ficou um agarrado encanto.
A claridade plenificando-se,
imbricando suavidade.
‘Sol nulo dos dias vãos,
cheios de lida e calma.’
Contudo aqueces as mãos,
contudo animas a alma,
contudo, abrindo à nudez,
frémitos reacendes.
Lobo em covil, o coiraçado poeta,
fugidias imagens perpassando-lhe a retina,
alucinantes incêndios versifica.
Gris e ocre a paisagem, cenário dos dias,
vazio imenso e borbulhante,
vinho divino para o olhar metralhado.
Talvez por lá tenhamos andado ao sol e água,
ao pleno fogo estival, por essas Ilhas Comores.
Ou talvez lá tenhamos deixado o olhar extasiado com tamanha plenitude.
Ou um breve relance lançado ao mar, grande voo a sonhos soltos,
ligeiras asas, acalmia, velas, a uma curva, nalguma estrada
rente ao oceano mais do que pacífico,
por onde, alheado enamoramento, tenhamos derivado.
Ou talvez que, desfeita mortal tenda, por lá continuemos o
[deslumbramento.
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Hoje, à plenitude do espírito,
deixe imprimirem-se em mim as paisagens intocáveis.
Tua calada presença constrange a que coloque final no relato a suceder.
Louve quanta maravilha indizível explode na claridade.
Reciclagem
Por força maior até aos vãos do íntimo Deus,
ecos se acumulam, porções epopeia, admirável ganho.
Olha árvores
florindo nos passeios.
Que tentes precisas interpretações.
Imprime Tu em meu poema Teu não tempo.
Pra que sobeje à flor o tónus.
De hoje em diante
se aclare,
etérea rede enredada,
o alvorecer milénio novo.
A morte de Empédocles
Ó terno eleito jovem,
como ninguém vagueaste.
Porque te encadeou o devaneio,
abismo desceste, pura perda.
O todo envolvente eterno,
onde os olhos abrasam,
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o coração estremece,
o verso escrevo.
Deus se lê,
ossos florescem,
gorjeios ecoam,
paz acontece,
aos pássaros música.
O filme dos dias,
morte, erva tenra,
forte esperança.
Ladainhas se rezam,
línguas apontam,
devaneios espreitam.
O sonho mora,
o claro desenrola
o eterno nado.
Onde descanso afã,
alço-me a estrelas,
das flores vou indo.
Brinco menino,
cavalgo infante,
homem me levanto,
velho assento.
Entrementes,
morro,
redigo,
cinza, pó,
alento, rua,
ante o ténue,
mudo.
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O gato brinca amanhecendo à luz,
o pássaro vagueia afundando luz,
a flor suspende alvíssima alegria íntima à viva luz.
Antemanhã,
deserto branco, acesos focos, a afogar mágoa.
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Cantos de Intervenção
Pragmático afã em pôr malvados na ordem,
uns novos cow boys dão em escalavrar o caos, no recente balcânico
[conflito.
Quando trocam o gatilho do acerto errado p’la ternura do coração
[nas mãos?
O miolo do pão
Bem se afadigam lavradores, a sol escaldante,
lançando na rasgada terra suas sementes.
Bem se dão incansáveis ceifeiras,
com golpes certos, à seara.
Malha-se na eira,
destrinçando na palha loiras espigas e nas loiras espigas fino grão.
Mós se movem,
pra esmagar a que será terna farinha.
Afanam-se aclarando a noite empoados padeiros:
Amassadas, a forno levam sucessivas fornadas.
Inquietam-se motoristas, e ajudantes:
Em carrinhas brancas trazem a bênção à alta antemanhã.
Cuidam comerciantes em abrir portas
pra dar, a dinheiro, o desejado pão.
Ocupam-se eleitos governantes planificando a produção.
Cristãos, rezamos, aO Pai, para o pão quotidiano nos dar hoje,
porém no planeta da fome distribuem-se armas, e falta a muitos o
bem pedido.
Homem com boa vontade, olha o pão.
Quando o partires, julgues tu que ninguém ouve,
diz obrigado.
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Talvez, um dia, num coração magoado nasça do cereal um grãozinho,
[que multiplique
até aos irmãos desesperados, com o gostoso companheirismo, a
[recôndita alegria.
Zeca
Na tarde lenta, recostavas-te p’los bancos corridos à CGD, à Luísa
[Todi,
esperando, em magra conta, alguma pensão ou tença das usualmente
[concedidas
a famintos de paz.
Ar acossado, anónimo kosovar recém-refugiado, a quem deram
[roupas lavadas,
sabonetes, pasta pra dentes, toalhas, desodorizantes, ousaras soltar
[teu grito:
Um rio de sangue do peito aberto sai!
Pague-se-te já agora a importância certa:
Se ao fim caíste, faça-se-te no teu talhão
florescer as vivas flores vermelhas da madrugada, vulgo cravos.
Pra que nasça a mesmíssima canção, da chã certeza.
Cada vez mais perto do fim,
sem professores e sem mim.
‘Feliz gente: Com duas realidades.
E eu sem ter nenhuma.’
Então, Zé, em que ficamos?
Na sequência dos dias.
O caso é simples:
Cá estamos.
Mas não somos de cá.
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Onde vamos?
Não sabemos.
A que viemos?
A entendermo-nos por palavras.
O que conta?
A inteira verdade.
Boutade ou angústia, de quanto escreveste concluo:
Nem terra, porque perdidos no grande encontramento.
Nem céu, porque cegos para a tenuidade.
Nosso também devera ser teu gozo.
Acabámos não dando com a clareza.
‘Viver estranho e isolado
num mundo que se pretendia
habitado e harmonioso
é viver suicidado,
viver morto vivo,
num mundo de nado-mortos.’
Se os jornais não dizem o Reino de Deus:
Nas prisões que ninguém sabe onde,
nos lugares sem policiamento,
no cansaço daqueles que não querem armas,
em quantos suam o pão parco sem palavras,
no esquecido nidificar do amor,
no indetível irromper da Nova Face,
no Circo Universal.
Vitor Baptista
Foste mesmo o maior na voragem:
O coveiro te olhou sublime, autêntico, camarada;
sob cinzenta farda, nó cego na gravata,
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ao padre-nosso murmurado do cura,
te reconheceu, no íntimo, como és, seu e meu irmão;
lançou-te então boa pazada.
Tiveste uma vez a tua mãe.
Quando vinda manhã, por Sesimbra do sol,
o Jaguar estacionavas, junto ao bar,
pra beberes, co’a malta, os derradeiros copos.
Vitória Futebol Clube,
Lisboa e Benfica,
Desportivo Estrelas do Faralhão,
concitou-se maralha, feliz sociedade.
Jornais vomitaram teu nome em caixa alta,
com a verdadeira foto, na primeira página, quando atiras duro para
[golo.
Achavas já o adereço da orelha.
Olha, olha, louco varrido, quanto baste polido,
p’lo Bonfim galgas, deus Apolo sobre cavalo,
outro, enorme, enquanto clareia além.
‘Remorso, comigo mesmo, Portugal.’
Ilusão madrasta que me mata,
condição em que morres o lugar.
Aproximaste a irreal cadeira
a que me acomodasse.
Diluíste, monotonizaste o fervor.
Era fado reencontrá-lo, tropeçar nele,
o remorso, teu corpo irmão jactado ali, à vala.
No deserto tóxico, na infestação, no desastre
clareava teimosamente a fina tonalidade,
da quase mediterrânica, feiticeira luz.
Umas mil vezes tombei ébrio desse quê.
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Quando chegará a tua festa fraternal?
Essa aurora em que te ergas gingando jovem louca.
Quando em teus íntimos ritmos
celebrarás o perdão do amor com lágrimas e alegria?
A humanidade te abrace, pátria irmã.
Do escuro, que ’inda dura, aconteça realçar-se
teu sonho demasiadamente adiado.
Ao calor dum novo sol, te rebrilhe, no esplendor, a negra tez;
na festa t’envolvas, no pó, em veraz luz, à clara paz ascendas;
reencontres um novo amor,
e exultes, alma angolana,
chagado coração da África.
Meu tão fundo país!
Tua sadia franqueza
minando-se à raiz.
Ilusões sanguíneas,
ante a singeleza de,
sem óbvias razões,
seres feliz.
Cada pedra sobre cada pedra
Será que ressurgiu Ceausescu,
escudado em razões com vil cifrão,
mais cinzenta, esperta, sinistra camarilha?
Clowns, clonados, sem rosto, implacáveis
calculando a nota verde.
Qual dentre eles se lembrou,
ou todos à uma se lembraram,
mãos empapadas no pastoso dinheiro,
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de atirar à cidade que desconhecem a ferocíssima ideia
de determinar arrasar o Estádio do Bonfim?
Mas pergunto:
Quereis então demolir a aérea varanda?
Não serão vossos cálculos ao haver só pura infâmia,
ante a limpidez amanhecida verde relva?
Acuso-vos; e convoco jornais, emissoras, Tv.:
Apontem, um por um, os desalmados, e seus tenebrosos planos.
E desafio:
Esmaguem, ou mandem outros esmagar, destroçar,
destruir armações, colunas, estruturas, alicerces, cabinas, camarotes,
luminárias, vigas, cobertos, e bancadas.
Que não alcatifam os sorrisos às crianças,
nem aos jovens atletas, ou aos anónimos adeptos,
tão pouco o nimbado sol vivo nos olhos novos das gentes,
esplendor que converte.
Ainda te contemplo, ponte acolhedora abalançando as emoções.
Queiramos nós, homens povo, e os tais senhores, das congeminações,
[não passarão.
Alçado a estrelas, qual catedral da rua, sustentado equilíbrio.
Covardia
Após ter revisto um documentário,
sobre o Dalai Lama,
e as atrocidades contra o povo tibetano,
acabou por afossar-se, no edredão, engolido,
meticulosamente ponderado, 1/10 dum Nozinan/25.
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As Cidades de Israel
Ruir o interior dos ouvidos - tabiques - areia - cal - sons esquecidos.
Pedras sobre pedras, os dias asfixia - as palavras iguais sob o ruído.
Abismo das folhas - Março ou Abril - o Jardim Botânico.
Todo o peso do rosto nas costas das mãos.
Rombos sombra - o retrato repete a abrupteza.
Velas - borrões - gente - quatro quilómetros pela barra.
Do mundo dos meses - telhas - papoilas - grades - tenazes.
Telhas - côncavas - convexas - convexas - côncavas.
Vertigem, fontes desmemoriadas - tudo - súbito.
A raiz dos ouvidos - árvores - ontem - candeeiros - sinos.
Exaustão - urzes onde os nervos verdes.
Uma vez um olhar - jogo água - as cordas febris - o violino.
Tijolos - estores - redes - andares de casas - espaço escuro ante a
[parede abrupta.
Aereza - torpor surdo no cérebro - o ruído das sílabas dentro de mim.
Triângulos - trapézios - Mozart. Montes - lamas - dorsos - dromedários.
Tons - Klee - the musician!
Estes versos torpes - malmequeres - muros - vento - mudez.
O coração bater num cubo fechado - corredores sob corredores dor.
Horas trevas - objectos limite - descenso dos sons num poço sem fundo três vezes Z cinzento.
Luzes facetando-se - um clown, incólume, num arame cortante quase nada - infinitamente.
Os dias seguidos - agudezas - dedos - losangos - vidros.
Crueza - grãos poeira - partículas caspa - caracteres tipográficos.
O soalho - agulhas - sons opacos os nomes, das pessoas conhecidas nas paredes.
Os nós dos ossos dos dedos - o peso dos ombros.
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Roseiras - barro - lájeas - garagens - ouvidos ar.
Os cabelos soltos - a nuca - nunca - sim - hoje.
Verde a relva, verde a relva, verde.
I know your name.Your name, Is. I know.You know. I know.
Os ferros - os muros - eu sei - não sei - onde as horas lembradas
[- deslumbradas.
D’átomos átomos - constelações de constelações.
Obsessão dos sons - os cotovelos roendo-se nas janelas.
A manhã - a cidade - larga, a avenida.
O telhado - da chaminé a cal - o beiral de lata - a lonjura branca - a
[gelosia.
O ângulo da mesa - o azul e…
Flamingos - lagos - voos - cortinas - dedos - unhas.
A pouco e pouco o poema trabalho.
Braços - tijolos - redes - mínimas gotículas - duma criança a fala.
Estradas - bicicletas - letras.
Tectos - estantes - portas - carris - lápis - estrela.
Escusado dizer noite.
Na areia o sol por entre os ramos d’ar.
Escadas - chuva - resto dum rio que vi.
As mãos - o alcatrão - um operário.
O corpo - a sombra - um cigarro.
Ferros - tábuas - inexistência. Ponte - longe, perto vultos - areal.
As palavras que faltavam - as palavras que faltavam:
Maria - Manuel - Deus connosco.
Rapariga - rosto - olhar - uma vez, sempre.
Cândido Portinari Cândido - duma cor doutra - uma cor noutra
[- neutra.
Ouvi meu canto - ouvi meu canto - ouvi.
Irrepetíveis voos - um número indefinido de versos desiguais.
Canaviais - juncos - vento - vimes. Òòa - aòr - o terraço.
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Esguios choupos no ar nublado.
A instantes existo e o azul - a terra barrenta além - a pele.
O poema acontece sob estrelas.
Restolho - fragas - estevas. O vasto negrume, a extensa noite.
Aéreos, suspensos lapsos.
Ausência, montes, o poema quarto. Os sapatos - os óculos - os anjos.
Um naco suado, o pão. Ámen.
O tempo - pra Deus o tempo. Esse tempo - este tempo. Kz-kv-z.
[Oh!
Seguindo o casario,
qual lençol, o rio deslizante.
The white clown Miró.
‘MA JOIE!’
Ora a cidade raramente igual,
as pessoas voltadas dos empregos.
Donde me ocorre aquele R.
Os dias repetidos, abismados.
Gotas de água nos vidros fixas.
Plúmbeo, a vermelho raiado, o céu.
Semblantes escondidos
sob chapéus-de-chuva.
Se tudo ruiu,
ficou a existência
inconsequente.
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Repetidamente,
a paragem do carro eléctrico,
imagem repassada,
sonho nada.
O mundo tumultuoso do sangue,
vibração luz, corda esgarçada.
Madame Maar,
olhos tortos esgotando-se;
sons prolongando-se ao redor;
um rosto maior do que um livro;
uma torneira ininterrupta.
A contemplação aborrecida
P’lo tempo revolvido docemente no olvido,
contarei as loucuras possíveis, os enredos;
p’los teus dedos, sim, p’los teus dedos lã;
ficarmos os dois, os sons, os ossos;
em arco abrindo-se-nos os braços.
Ah, teu devastado olhar
fixa o demorado mar,
revolto o vento.
Os jogos infinitos,
borboletas adejando
vãs tonturas.
Teia de aranha
na parede esburacada,
um canto, desperdícios,
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uma aldeia em Trás-os-Montes.
As bicicletas não andam,
a humildade é um verme familiar.
Com cerveja e fadiga perspectivamos viagens.
Sombra intocada
num papel sem nada - as bermas à luz falsa as costelas partidas - a publicação a se7e cores à cegueira enternecida teu sorriso bombardeado.
Nem o abandono inútil,
os pés adormecidos ao peso,
a desolação imensamente plana,
a apatia sem nenhuma saída,
o travesseiro,
os bons dias muito obrigados,
os dedos em queda, os tectos para o pavor;
as crianças não têm culpa
de darem pra cabecear num fundo sono.
Os palhaços aos empurrões,
gente con el corazón en la cabeza a periferia, os tubos, e um peixe os círculos fechados - o ateado cristal.
Para a mulher povo, que não é notícia,
queria uma canção com as mãos dadas.
Quem me trouxe à esfera dos planetas azedeza?
Deixassem-me ignorante, saberia uma canção.
Sem nome uma canção, braços, ancinhos,
enxadas, gadanhas, e arados em riste.
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Acontece-me
ficar sentado a tarde toda,
a repetir os gestos
gastos desde as horas.
Páscoa do morrer dormindo.
Ecoa o vão das grandes casas;
a morte em flores.
Sons abrem janelas,
guitarras entrecortando o aclarar.
Mulher,
levei toda a manhã a sonhar
com a tua viagem;
tu és o meu poema.
Ao redor da vogal O
Dorme
sereno
no fundo plano
do lago
o sono brando
do Outono
o abandono.
Perdeu o nome a existência, disco rolando.
Na aguarela, a praia em ébria insolação.
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Digo-te
crianças, terraços,
buzinas, a espaços.
Tarde nua no jardim
Folhagens, amarelas transparências,
agitando-se incansável ballet.
É tua a praça,
toma-a, Senhor,
onde morrem os poetas,
mãos a arder.
Alegria d’amar
Os noivos na madrugada deitaram fora os poemas:
Tinham resolvido o amor e as janelas rasgadas:
Resolveram, decididamente resolveram.
Os olhos ventoinha denunciam a terra.
Não faz bem às pessoas certas ver a nudez.
Morderiam as bocas de todos os dias.
Encontraram-se a primeira vez
sós num espaço.
Eu, na rua B. Sequeira,
secadeira,
estendido à solapa,
a recozer medula.
Na cidade fechada,
o olhar roer a flor.
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Anne,
falavas docemente a teu amigo
da verdade desejada.
Dizes não sei que,
deixas flores às braçadas.
Verdes anos
Nem sei bem o que era:
Ver, rever, sorrir, dizer:
Aí éramos nós.
Da festa lembram sons.
Desperta,
rompe-me, em neve, vinho, pão,
os olhos, minha terra.
Manhã dum pároco
A aldeia em pensamento;
a que distância
as casas mais próximas da sua.
A angustiada voz desperta;
e a rapariguinha, o prado adiante;
pedrinhas da calçada a desinquietarem infância.
Vou a um outro dia,
com pernas para a frescura.
A vaguear por fora, longe do canto,
esqueci, desde há muito, a humilhação estética.
Diluí-me em abraço, no povo mais do que na letra,
e evado-me ao que me nega.
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Vou esquecer-me de emendar a poesia;
seguir, à raiz da árvore, p’lo colorido do dia.
Nome é dizer mar, é dizer ar, e nomear,
dizer estar, e estar em toda a parte e aqui,
no início, no fim, no meio e na palavra.
É o serviço de cada…
Historiando vou o afazer obscuro.
Outro, que não eu, trará mais pura força.
Cidade de teu cais,
luzes, ruas, jardins,
largos onde descansam olhos,
claridade nítida para pequenos nadas,
tais como fumo, água, café,
que intervalam caminhadas, pesos, lutas e surpresas.
Para lutar há não só praças, escolas, recintos, fábricas,
casas cheias com memória,
mas uma vontade grande de ver teu corpo limpo,
crianças pisando-te despreocupadas,
operários erguendo não já o que lhes pese.
Plantas dos pés assentes sobre este pedaço de terra,
paisagem dum sonho pacífico doutra esfera,
os olhos desenham-me, a cores, a imagem sem guerra,
que dentro dum O se encerra.
Chão, carpete ou azulejo?
Chão destes dias, fechados aos trajectos ínvios do desejo.
Estou inteiro e nu, suspenso da escrita possível, anseio voo,
que a morte levará pra lá de mim.
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Aqui medito a condição humana e a estatura:
Terra dura.
Um som através esboça a meus ouvidos o cenário do papel:
Desperto sonhar a música a me revelar.
Deixo-vos recado:
Nação estrangeira, pacífico bocado aqui vivi.
Vou à margem.
Não são horas pra variáveis devaneios.
Só cães, ratos, insectos, uivos na noite que me cobre.
Parábola
Emérito mui digno, Monsieur Albeniz foi empurrado por um bandido,
[à Paris.
Vi o filme das suas mãos, pombas que voavam: Paz, irmãos!
Quase que o matavam.
Falava com as mãos, pombas que voavam: Solidariedade, irmãos!
E os insultos gelavam.
Era um colóquio importante para Monsieur Albeniz,
que estava no pleno uso da palavra, à Paris.
Logo interrompido e inquietado, o certo porém é que Monsieur
[Albeniz
falou, e bem, de paz e bem, à Paris.
Os alados
Despertos nas antemanhãs,
lembram a paz, a calamidade, a dor ou a redenção?
Lêem o livro interminável.
Umas mil vezes lêem, e relêem, para lá, o escrito.
Porque lhes apraz estão de pé.
Cada criança ferem com essa força que nasce coração.
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Será que os anjos realmente pisam a terra do pão fluindo no vento?
Se pisam, é assim como se voassem, com sua espécie de ar.
Constam de quê? Sopro? Âmago trémulo? Ou só leveza?
Velando, solícitos, insondáveis subtilezas indiciam.
Guia-te o sonho ao desassombro,
aladas presenças sobre pálpebras;
com salivado pão te reconheces.
Folhas tremulantes,
em círculos do vento…
Que esperas ainda?
Faz-se café.
Crianças gritam dos fundos.
Árvores magras
renovam-se nos passeios
a quem passa.
Freme folhagem, sobre a borda, junto à ponte.
Há uma circulação imensa sobre pneus.
Flores coloram as bermas aos carreiros.
Passam uns trabalhadores,
com suas calças azuis, suas camisas garridas.
Moças, com suas batas, enfermeiras, colegiais.
Algazarra, cores, arruído.
Outro dia.
Que esperas?
Tempo dum novo amanhecer.
Não sentes um vagaroso apelo?
Desafogueia-te, anda.
Há jornais, livros, pão, palavras.
Lança-te à rua.
Não guardes nada nos bolsos.
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Já as cegonhas se postavam em seus ninhos,
por sobre olmos.
Enquanto as águias planavam,
a plena altura.
Findava a Primavera.
Concluídas as aulas, comboios regurgitavam
com os que regressavam a férias.
Motociclos dobravam esquinas.
Felicidade espreitava dentre choupos.
Os galhos das nespereiras agitavam-se à aragem.
Muito ainda a que lançar mão.
Acordarias?
Deixarias, sombra remota, as paredes do teu quarto?
Darias os passos necessários?
No olmo
da frondosa copa, no jardim público,
aos bandos cantarolantes, os pardais;
com fisgas, as borrachas esticando, seixos arrojávamos.
Os melhores damascos do mundo
davam-se-nos do quintal.
Os beijos das coradas raparigas,
o primeiro vinho a fingir alegria.
A grafonola Amália, dos anos 50, repetia.
Amontoam-se os livros, as caixas, os isqueiros.
Para a gaveta ficar arrumada há que fechá-la.
Calcetam-se pavimentos, plantam-se árvores
de flores resplandecentes p’lo deserto cimento.
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Ouve-se um ruído a alguém a riscar ferro.
Cafés às moscas.
Passam autocarros, regularmente certos.
Estores caídos, nas largas janelas.
Computadores desligados, camas vazias.
Alunos em salas fechadas.
Motos, ruídos, cães, ratos, automóveis.
Agressão?
Estranheza?
Apaziguamento?
Se saísse tombava apavorado.
As voltas que dê
regresso a casa
onde diluo afincos.
Transparências:
Insectos em desvario:
Desequilibra-se e cai
o regente da orquestra.
Vem de bem longe,
e está à porta, o homem,
cabelos brancos,
rugas cavadas, testa alta.
Traz paz o homem.
Deixem-no a seu caminho
muito pra lá da porta.
Escurecendo a cidade
exaustamente,
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sente-se um desejo instante
de viver;
as ruas, os prédios desolados,
arrefecem os olhos,
enquanto se tornam maiores
as pedras.
Caminhos,
a que as botas não descobrem o afago.
O mesmo sabor amargura devassado.
No eterno entranhados
nos movemos!
Mordi um dos teus cabelos.
Foi vento?
Sim, porque a noite,
sim, porque a manhã.
Éramos os dois
jovens quaisquer,
e os carris precisamente.
O mar nos ouvidos,
durmo;
se entretanto acordo…
Brando ser,
poema pleno, à flor da água,
pra lá de monte e mar.
O meu coração mora nas terras altas.
Montes dormentes,
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giestas dobrando-se na ventania;
uma fonte na neve; a imensa urze;
castanheiros, ouriços carregados.
À janela não assomas;
choram, ridículos, uns cómicos;
dedos entrecruzados, como a rezar.
Passava através do parque, pensando apenas vê-la;
atravessava a ponte, com um rectângulo debaixo do braço;
acompanhava as águas do Mondego descendo.
Turvo, nenhum,
torces, quebrantas, dizes:
Eu morra se não há árvores magras
no teu sono.
Uma vaga saudade,
por vezes, fantasia
coisas intangíveis,
sóis ou lá o quê,
longe dos momentos.
Dá trabalho ter a casa em dia.
Até correr cada compartimento,
e ver cada coisa em seu lugar.
Há sempre um papel a jogar fora.
Tua casa esteja em ordem.
Arruma-a, cada vez que precise.
Tenhas lá um recanto onde medites.
Livros, palavras, cores,
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para as horas mais longas.
Que o mundo se restabeleça,
ao contacto fresco com as paredes da paz.
Mantenhas a porta entreaberta.
Entretecido nas pequenas rotinas,
tais como barba, banho, café,
retomo o fio da quotidiana sequência.
O afazer igual consome-me.
Ocorre, de quando em vez,
um ritual diferente a me repor.
Regresso às horas transparentes,
aquando a canseira.
Não esqueças as ruas prà praceta.
Aí a tua vida, réstia, sombra, fim.
Paradoxos resolvem-se a teus pés.
Trouxeste sabor a mel
a meus momentos desolados.
Devolveste-me ternura ao olhar magoado.
Obrigado!
Se algo te dei, num breve trocar palavras, ou em jeito atrapalhado,
guarda-o para ti, como eu guardo a graça, que deixaste, e nem sei dizer.
Os passeios que dávamos, antes da doença de existir exausto…
Ao repetir teu nome sei, trazidas de volta, as frementes, gloriosas
[primaveras.
Foi bom rever-te.
Pra sempre regressaste à cidade plana, repleta com o eloquente azul no
[teu olhar.
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Também das horas os nomes surgem mensageiros,
que somos, corpo a corpo, como deuses inteiros.
Ao manancial imemorial,
na fortaleza de abraçar-te nos meus braços,
comigo estavas, não te esqueci, enviada.
Eras força estabelecida sob o ângulo da nossa casa com uvas.
Assim renasceste comigo para a ilusão do nada,
com lágrimas, sorrisos, perdas redimidas,
na alegria feroz das horas, companheira.
A maior alegria de Isiéli,
a trapezista triste, está em saltar impossíveis,
pra lá da cobertura, dum arame ténue, até pairar,
alta, por entre cintilantes estrelas.
A maior alegria de Isiéli, a trapezista triste,
está em ir, sequer em sonho, até pra lá da lona,
entre fios e cintilações, pra voltar ao chão,
e andar somente, ligeira como se voasse.
Isiéli caminha, p’los seus afazeres, como em pleno voo, no trapézio,
em busca da paisagem única,
que lhe apresenta o limite
do estrelejado céu.
É-lhe necessário bem ponderar fraquezas e forças
em pleno salto.
Lembrar-te ainda na varanda,
atravessando-nos a hora da despedida,
me faz romper a mudez, entre montes perdido:
Pra falar do memorial no coração
gravado, em golpes fulgentes, à espada,
a dura antemanhã do 4 de Janeiro de 1970:
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Abundante pão pra todos os meninos;
a singular mulher O Livro perpassando à deriva da vida;
um fragor, um tronco, furor irrompendo.
Branco / versus / Castanho
A Mulher-Mãe ama-nos e redime-nos,
pois em seus braços nos estreita.
Seu Filho ressuscita do chão das baionetas.
Senhor do Bonfim
Aí acima estás, erguido à cruz, no Teu lugar de dor:
Dura dor Tua dor, que é dor de morte vida,
d’estares aí assim morto e trespassado.
Mas contigo arrebatasTe todos até a Teu tão alto aterro.
Em dúvida a Ti venho, faminto da Esperança
que ficou da Tua vitória sobre o fim.
DesTe ao bom ladrão lugar cimeiro,
à direita imensa dO Pai.
Vá conTigo também meu coração.
A verdade far-vos-á livres!
Libertará aqueles cujos nomes constam do grande livro da vida,
os que sofreram a tribulação: Suas túnicas, agora branqueadas
no Sangue do Cordeiro, antes torturados, gaseados, cremados,
cinzas, à vala comum, dispersas por ignomínia, reviverão.
Crês isto, contra senãos e desesperança?
‘Adeus, príncipe, pela primeira vez encontrei um homem!’
A ti, sentinela, constituo vigilante da Israel Família.
Não te escuses repetindo: Acaso respondo p’lo irmão?
Se não o alertares, e ele cair, com ele cairás.
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Se não fizeres soar a trombeta, o toque, haverá ruína na casa;
a ti se pedirão contas. Se não proclamares o aviso em tempo,
às profundas pagarás pelos teus porque não vigiaste.
Se fizeres soar o som, o pequenino seixo branco, que seguras no punho,
te encherá, com redobrada alegria, transbordando paz.
Que A Rocha te não destrua; aponta-A.
Ela será o bem mais precioso,
o tesouro escondido, por que tudo deixaste.
Senhor, eu não sou digno de que repartas o pão comigo
e descanses sob meu tecto,
mas, a uma palavra Tua, ou a um aceno Teu, eu serei outro.
Forte, subterrânea convulsão, repentino estrondo surdo.
Em sua força íntima, brusca, uma árvore se eleva do chão.
O anjo, com a espada, desce a confins, transportando à devastação
a ira e o furor justos.
Seu escuro olhar fita o dormente mortal,
que, num estremecido susto,
se fere da estranha, benévola mágoa.
O filho do homem, esplêndida nudez trespassada, abraça,
num vaso transbordante, inúmeros meninos abortados,
derramando leite, mel, um doce pão a saciar-lhes a morte.
O pão é dor do homem vivo!
Flanco ferido, sanguíneo vinho, tortura que vitima o que anuncia paz.
Logo desperta, enxugando lágrimas, o peregrino regressado aos seus.
O livro a jovem mãe relê enlevada, decifração última,
a um milésimo eterno de segundo.
De ora em diante, José,
a ternura, o esforço, o Abril nítido, repetido.
Até quando, íntimo sonho,
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acordar a realidade enigma que somos.
Enquanto ouvimos alguém chamando-nos p’lo próprio nome.
O zelo de querer-te,
crianças dormindo a clara noite;
olho as breves luzes pontilhadas.
Alegria profunda,
eis a verdade, um menino,
a descansar contra a parede.
Som ante a mesa,
lisa frieza.
Manhã jornal,
povo espaço
a percorrer-se.
O amante dos tapetes
vive na noite.
O apaixonado das águas
ressona profundamente.
Adormecida
a longa tarde,
na chinfrineira
do bar onde me afundo.
Alargam-se-me os montes,
pesadelo acordado,
lugares da alimária.
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Através do Largo de Jesus, à chuva do Verão,
distanciando-se a pequena mão da menininha,
a acenar ao pai, que, de si pra si,
resolve um pasmo estremecido.
Pena
que a agenda registe voltas,
contínuo divertimento,
mas não a determinação.
Chanson des vieux amants
Enquanto desliza o tardo sol, pelo afogueado Ribatejo da CP,
antes alheia, te dás, e me acompanhas, prece ensonada,
coração doente: Vivemos, lentamente, o que em disfarce nos foge,
tanto quanto a ânsia alcança: Na aventura, a viagem, quando os bravos
pinheiros deixam antever o azul, a melodia morre-se-nos tal,
que os gestos se desvanecem.
Solo de trompete
Poesia insinuas,
se é o horror
que te domina?
Terra,
deixaste-me criança:
Dias incompreendidos:
Um povo sem cinema.
Uma, duas flores lilás,
o retrato da infância,
a carteira de trazer,
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a lâmpada incidindo,
a cara entalada,
a sombra tornando
sobre a mesa,
o segmento talhado rigorosamente,
o aparo, à amarga indiferença;
a nuca é um ponto sensível,
disse, e voltou-se, o amigo;
os braços doem,
o psiquiatra é um senhor envergonhado.
He was a friend of mine.
He never knew my name.
Ir a outros dias,
sinos tangendo,
chilrar dúbio
à madrugada,
seguir a teimar paz.
Chiarem
alpercatas
por ginásios.
Baloiçar, em corda, em U,
teu mundo de ir mundo,
nu estertor.
Lembrar
inacessíveis companheiros;
lembrarmo-nos igualmente, varados p’la Primavera.
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Um bocado de lua
Malgré sua amarga verdade,
vai p’la montanha longe.
À Biblioteca Babel,
deparando-se com erros sintácticos,
sem se importar com a testa, e sem literatura,
o último poeta evidentemente escreve.
Meu país, morto sol, pão exangue,
poema exílio, dolorida mágoa,
fúria térrea, doido amor;
neve ardendo nas mãos estafadas.
À sombra d’árvore alguém descansa;
bambinos sumindo-se p’lo verdume.
Capela
Episódios, por azulejos, dos evangelhos.
Erguido à cruz o Homem, dá vez a Dimas.
Cercanias
Sobre saibro,
dos sapatos os trajectos,
fuga à torreira.
Dentro ouço e sento-me;
retoma-se, a gestos espaçados, a alegria da mesa.
No coração, que Deus conhece,
em sonhos fiz o poema da minha vida,
de que sobejou um incompleto dizer.
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A tarde toda o avô contava histórias.
Aturdidos, ensonados, na infância dos sonhos,
devorávamos o mel da narrativa, que sempre concluía:
’Inda além vai a raposa, a correr a sete pés!
O avô apontava para um longe.
Meus olhos espantados arregalavam-se para o mais pra lá,
à abrasada varanda.
Habitando ausência, a vastidão deixava-me suspenso.
Eram montes sobre montes, insolados, quentes, graves dorsos,
arrasando-os maravilhada aridez.
À flor nua
o ecrã
desenrola
anti-enredos.
Fina aragem
aproxima-me brandos acalantos;
tudo dorme
amargores ausentes;
resmungando um dissabor
o gato súbito.
Dedilhados
sobre larguíssimo teclado;
pára a tarde;
é a felicidade,
ou uma vontade de chorar?
Deitados na palha,
na eira,
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ao bafo quente daquele Verão,
olhos ao céu estrelado,
rumávamos a amotinados lumes.
Fazemos uma grande concha, dedos entrecruzados.
Os pescadores, por perto, perguntam-nos coisas,
cobrem-nos com as redes a tristeza,
trazem-nos os raros caranguejos.
Onde és,
além teu lugar
que te não vê;
nem pensando,
como abalada.
Cinza a cinza,
resquícios,
e uma dor a não ir.
Porque
as rosas brancas
beijam-nos
com inesperada doçura.
Tanto enlevo
termina nos teus dedos.
Somente que teu olhar irradia dia.
Chuva no alcatrão, alma latejante.
Descobri contigo a excepcional prossecução.
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A moça me espera, é tirar o poema;
senhor na tipografia, vou levá-la a passear;
que palavras não contam, conta é viver;
senhor na tipografia, não atrase o poema.
Sair.
Sucederem-se
abruptas,
subitâneas
esquinas.
No tempo das suaves raparigas,
rostos queimando-se por mil vidas.
Querer bem aos luminosos aranhões
lentos no ofício do vagabundar roubassem-nos a casa, ficava o luar chato é o piolho e o cogitar.
Manhã serena, Stockhausen debaixo da cama,
o céu, igual a uma mulher amodorrada,
qual cadela c’o cio.
Tenho para ti que o cinamomo tronco, tusa, árvore de declinação dificílima - te escondes estelar talvez sim - ou talvez sim - tenho para ti que os concertados gestos…
Bilhar às três tabelas
Minha menina pintora,
como está, mais a sua má consciência comunista?
Agora acordada?
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Desenterrada da cama?
Tome nota de que
a sua segunda-feira laboral poderá começar bem.
Por favor, apresente muito respeitosos cumprimentos ao Nosso
[Inspector.
Cortinados no vento
da lonjura.
Linda pra morrer
tua face
me desanuvia.
A pátria a terra,
a terra a paz,
paz da palavra,
pão ao coração.
Ágapê
Crianças e virgens entoam salmos, hinos ou cânticos espirituais.
O diácono pega no copo e dá-o; fará partir também o quente pão.
Todos clamam os ternos cantares transbordando alegria:
Alléluia, c’est-à-dire, nous louons
Celui qui a fondé le monde par Sa Seul Parole.
A cal das paredes pés dormidos - imensa desolação - apatia sem saída - sonhos doentes brancura horizontal - imobilidade lua - brutal esmagamento raízes podridas - os dedos quebrados - paralisia - os astros apagados enredos - as loucuras visíveis - pardais irrequietos - gestos vigiados fantasias roendo-se disformes - bilhete perdido não se sabe onde.
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Il y a
des choses roses,
des couleurs fleur.
‘Tu a única e eu - outro que não eu - ouço as ervas do teu riso.’
Aturdidos, damo-nos conta do que somos, aquém escrito,
e de as embalagens dos cigarros não trazerem imprimidos poemas.
Embarcações, montes, Viena, Praga, fumo, névoa.
A confusão ocorre ao explicar
como morro enfermo nos teus braços.
Percorres ruas,
tristes alegrias resignadas,
com os jornais diariamente
à procura do pão.
Sonos dormidos
com os pés no mar,
o pescoço estremecido nas dunas,
as bocas a apararem meteoritos.
Relera Joyce, no terraço.
Cinzento, meu amor, cinzento e fundo,
íntimo e fundo em mim, teu amor é-me.
‘Não evoques mais os dias encantados!
Não te cansaram já os ardentes caminhos?’
O ser vem à cor:
Verde olival, dum escuro pardo;
rubras papoilas, dum vivo tom sanguíneo;
seara ondulante, dum amarelo-torrado-quente.
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Antigo problema o analfabetismo a objecção de consciência - o conferencista - o nome cristão a não-violência - o astrólogo encarado durante o tenebroso enterro.
Jarra da roxa luz,
cortina, recolhimento;
brancura sobre a branda madeira,
na enorme mesa da enredada renda.
Na vidraça,
a chuva,
compassando
sonoridades.
Talho poemas com blocos de pedra,
inscreveu Fernandes,
que não se sabe morto.
Os terraços, os montes, a amplidão,
azul, igual, o céu,
as rodas, arame p’las varandas,
uns putos, em correria.
Não vou dizer-te quanto te amo.
Sabe-lo bem, doutro dia,
outra ’strada, outra hora.
Pessoas seguiam juntas,
e cambiavam cem mil palavras.
Só nós nada dizíamos.
Vadiávamos por sendas e atalhos.
Havia pó, fúria, alegria.
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A esperança de ver-te, se der por isso.
Étaix, Sábado noite, circo, ou rumor duns pombos.
Saltamos c’os saltimbancos prà tromba do elefante anedótico.
Sós as árvores não constam.
Pedis-me um abraço, não sei, isto é cansaço.
Antes de atravessares a praça com um sorriso perseguido.
Josef K.
Pasmo, ou, certas vezes, além limite,
as vidraças, as salas, as janelas,
escusos recantos, paredes semelhando o fim;
dentre sombras apertadas por edifícios, ainda lâmpadas,
ainda a chuva, ainda a azul estreiteza pintada ao fundo.
Ao lado da criada velha,
o escuro contra o tecto, cerrava pálpebras,
e estrelas, às miríades, com incandescências, o arrebatavam.
Que os pobres trabalham cedo algum poeta escreveu.
Se manhã, já dia, é belo, no trabalho não entendem.
O trabalho, os braços, os braços, o futuro.
Esperança, alegria, alegria, esperança.
O pão dos pobres é duro.
Duro pão o que trabalham.
Tanta lágrima lavrando.
Quando é que o sol se reparte
neste profundo alçapão?
Os pobres trabalham cedo.
Terão sol por aqui, no ermo cego.
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Aujourd’hui je suis loin, mais je reviendrai un jour.
Raparigas dançando nuns confins; noivos a um comboio determinado.
Hulot,
contendo-se-lhe os reflexos, p’lo incerto arame.
Mesma quietude a dos pulmões do fim para o princípio rescrever até chegar a além - não mais senão
a esperança num sorriso breve um dia outro, gemer o violão, aldeias demasiadas para um só cantar pássaros e nuvens nos olhos fontes alheamento mórbido - um corpo prà rua atirado um sono dormido inteiro em tuas mãos terra irrompendo em carne brônzea desdobrando-se p’los levantes lado outro sem margens - leves tangendo sinos - chilrear dúbio a manhã - o alegre vaguear - inerte vacuidade - brisas - e ilimitação aves - voos - um seguir versos - repouso a cansaços vãos a solidão - porque não morres mundos soando pra lá o encantamento e o furor - noite gelo tranquila a medo - mar expandindo linguagens dos arbustos vergando-se ruas em seu quê ao cismar paz - só a mesma mesa no café acaso sem história duns bons dias - a neve se suspende as árvores a florir - enquanto paredes descansam
algo que se interrompe ou uma indetível vontade indefinida múltiplos enredos - e restar - aquém - o só intermédio gélidas ’strelas dormidas ou agras urtigas topar num relance como as pessoas se escapam.
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Como se estivéssemos nus,
sentimo-nos pertinho de Ti.
Teu brando olhar fende
a recôndita claridade.
Ruir interior,
tabiques, areia, cal,
ecos sumidos;
andorinhas, valados, voos;
alcatrão, óleo;
clarear-se o sem fim.
No obscuro quarto,
os amorosos beijos
transtornados.
Da usina
azedo silvo;
um borrão negro
sobre a boca.
Mesmo ali um rapaz,
que, desde cedo,
andou lidando
com pás e com areia.
Meu louco amor,
teus olhos,
buracos deslumbrados,
irrompem dum bocado de mudez.
Não precisamos de olhar
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pra cima ou pra baixo,
mas pra diante.
Delineamos
sinistro e rotineiro filme diário,
personagens apagadas porque inúmeras,
uma câmara sobre a cabeça,
outra sobre o coração.
Ossos quebrados
dos dedos,
super-esquisitos devaneios,
sono inteiro,
em tuas mãos vazias.
Dos cerdeiros
a rama
a baloiçar.
Era anjo ou lua?
Terra ou céu?
Caminho ou rua?
Terra e céu, à minha rua.
Vestia branco, ou vestia lua?
Anjo branco, ou mulher nua?
A espada caída, ira justa.
O vaso a transbordar,
excelsa oferenda.
O livro, nas mãos,
processual resolução.
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Mel,
baba d’abelha;
esparso fumo;
maná imemorial.
A avenida subvertida
por monocórdico arrulho.
Eis que estou morto,
ante a barbárie.
Ar
Porque lês a trémula lindeza,
concluis as fulgurações…
‘O teu sorriso
leva-me sempre para junto ao mar.’
Ventre magnífico, noite genetriz,
onde tudo acaba e principia,
onde ocorre o claro dia.
Algo avoluma distâncias,
dá relevo à montanha, olhos de ver.
Que haverá, longe ou perto,
que destrua o exílio?
Paredes em pedra, invólucros pra solidão sonhada.
António, o poeta louco,
ditou-me os seus últimos versos:
O governador dos céus estava ali,
e um livro para ascender à pátria verdadeira.
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Árvores dançando p’lo ar.
Pescadores chegam em romagem
pra beijar a mão à Senhora das Naves,
que embala ao colo o doce Filho.
Pássaros nidificam onde abre a flor
frágil à donzela.
Quero que haja no pequeno reino paz.
Quando acontecer a boa esperança.
As várias palavras por estantes debatendo-se,
quais medicamentos, com química pra sonos.
Vivaldi,
destroçados momentos,
apocalípticas encenações.
Frescas, redondas,
simples, tais quais,
coisas a estudar sempre,
coisas aí mesmo à mente;
fáceis, difíceis, certas,
as sonhadas palavras.
Sortes
Fui padrinho do Zeferino, e minha irmã madrinha.
Com nossos verdes anos sentíamo-nos investidos.
Hoje meu afilhado é engenheiro na Câmara.
Minha irmã partiu sem jeito, dum tumor no cérebro.
Por mim aguardo o que vier, pra que conste poeta.
Perto de Coimbra,
um missionário polaco deu-me uma boleia
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e, na despedida, um ícone muito especial,
que guardei comigo.
Tinha uma oração para o coração;
dizendo-a adormecia e acordava,
numa repetição contínua.
Era como esperar um golo no minuto último.
Conviemos
em que o falar descambava;
concordámos em passar p’las brasas;
quanto ao que tivéssemos a acrescentar
já nada importava.
Em Teu passo aéreo
não Te custa caminhar;
vem ao pobre sofredor.
A rede balança
na seiva, na árvore,
no vento, na dança,
na erva, na aragem,
no corpo sovado;
sémen, sangue, nervos
ritmados.
O bom papa João,
ante o interlocutor,
pesava quanto dissesse.
Pipilarem
negras andorinhas
cristalino fascínio.
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Caímos à entrada.
Era a noite quente
como as alimárias.
Tocou-nos o clarão.
Joga-se ténis;
baterem-se bolas,
a ecos espaçados;
nenhum telefonema nas imediações;
portas fechadas contra a rua;
provisões, com os vizinhos,
nos elevadores;
televisão desligada;
resto campestre da paisagem;
máquina da escrita arrumada;
o inenarrável antigamente dum andar.
É possível que às pessoas enquanto tais os gestos não contem,
mas que, palavras duma palavra, povo emergindo,
noutro astro, sem qualquer prazo, juntos, acampemos.
Necessário consumir o violento grito:
Atentados, torturas os poemas clamam,
poemas que não perderam o sentido.
Paulo VI ofereceu tabaco a Podgorni, em reunião à mesma mesa.
Mas há o Vietname, electricidade, guerra química, marés negras,
refugiados, desalojados, perseguidos, deslocados, napalm,
genocídio, carbono, bombas, estátuas, dias sem sono, minas,
pessoas detidas por ideias.
Ter que passar, entretanto, por doença ansiosa
resulta entretenimento, a compensar o silêncio.
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De cansados
fomos ao jardinzinho;
estavas bonita;
um raro sol resplendia.
Ode final
Se os sábios O calarem, ou os políticos O omitirem,
as pedras e os meninos O gritarão.
Loucura para o mundo, sabedoria para os simples, Única Medida.
Ser-vos-á servida quantidade acubulada, a transbordar:
Fará com que vos senteis à Sua mesa, preparará refeição,
e vos atenderá, caso sejais vigilantes, dias, noites, cingidos rins,
revestidos com rigorosíssimo traje, e compunção.
O sol imenso se deu resplendendo, as boas e as más horas,
igual pra justos e injustos.
Não criastes, artistas, filósofos, economistas,
estudiosos da praxis, sociólogos, um mundo ao avesso,
sufocados p’la absoluta cultura, em que Sim e Não equivalem?
Que é dos que tratastes por menos que humanos?
Um Brot, um Brot, um Brot!
De profundis clamavi!
Donde o vosso estranhamento ante a morte,
outro tempo, natural como respirar.
Miguel, O da espada flamejante, trará Nove Coortes:
Anjos, Arcanjos, Principados, Virtudes, Potestades,
Dominações, Tronos, Querubins, Serafins.
Pedi que a Hora não dê convosco em viagem.
Alcançareis A Antiga Palavra:
Venenos, espancamentos, pestes, serpentes não temereis.
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Trânsito, e vidas esquecidas.
Trabalhava, num lugar frequentado por argelinos e indianos.
O alojamento ficava perto da fábrica.
O sol batia a jorros.
A cidade, confusão, ruído, fumos, radiante néon, jardins, amenidade
[sossegada.
Travou amizade com Dubsveck, um eslavo com a infância amargurada.
Regressou depois, fazendo paragem em Marselha,
com o Vieux Port, o cais, a marina, a ampla Cannebière.
A lua lindíssima sobre água.
Tabiques, esbatido reflexo, o melhor tempo,
serenidade, ondulações marinhas, suave orla.
Labirintos, santuários, arquivos, luzeiros, instâncias, fascínio
Novos sonhos habitariam desenlaces em esboço romanceado.
P’las vertentes do pastoreio.
A cara em óleo,
um operário,
dentre ferventes motores.
Escondida na margem do Sabor,
uma rosa ousa o absoluto rubor.
Rememorando o Menino das linguagens e das ubiquidades,
que, brincalhão travesso, se fez um homenzinho bem comportado,
inominável, igual ao Pai, peregrino da eternidade, que entregou, à
[vida em flor,
a contemplação mais pura, despojada, a melhor parte que nos coube,
enquanto gastos arrojamos a comum miséria calada e quotidiana:
Aniquilou-se até ao mínimo ponto.
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Senhor do viçoso coração da Mãe,
guardou-nos os vivos motivos da alegria:
Do alvor, a água, o pão, o vinho, o amor, a paz,
os amigos, o bom ar, os estimulantes caminhos…
Achamo-nos cá em quase trevas;
se falamos sabemo-nos iguais;
fogo que se ateia em convulsão,
é onde quer que o Espírito sopra.
Largos gestos
sem rasto.
Carlo e Dora
Embrenhado em fumos o café.
Carlo rascunhava uns desenhos.
Afinal gostavam ambos de cinema, flores, iogurtes…
Estavam a despedir-se.
Ela levava para o quarto a tela toda azul.
Chegara, manhã cedo.
Sua terra,
entre estranha e sagrada,
abraçando.
Estava a casa vazia, o quarto nu,
o tijolo argamassado, a janela afundada no desconhecido;
avistava-se o céu somente, sem nada a ensombrá-lo.
O dinheiro contado.
A mala pesada.
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A muda de quarto.
Paredes que se apertam.
Um cão lá fora.
Abjecção, náusea.
Hora de alçar.
Zunido insistente,
escuro dentro.
Quilómetros até romper manhã.
‘Eu Sou A Imaculada Conceição!’
Figura iluminada por lanterna, ao portal, num solar.
Pode sair!
No Jardim da Estrela cisnes desmaiando estagnada eternidade.
As laranjadas bebidas, a Cantina, o Quartel, por Campolide.
Quando nadavam monstros nas funduras da Tv.
Celeste tomara conta da sua vida
como se duma verdade total se tratasse.
Restavam-lhe sonhos:
Em margens livres, esvoaçavam aves feridas;
deslizavam férreos comboios;
irrompiam às altas penedias claras cascatas a precipitar-se,
e labirintos, cidades nunca vistas, destroçadas, onde se perdia e
[encontrava,
cataclismos, desabamentos, conflagrações,
reuniões, debates, árias, políticas quezílias,
confusões, discussões familiares temperando doridos tédios,
distantes dramas pessoais a outra luz sondados,
escritos evocados, elaborados mentalmente, surtos ecos repentinos,
esquecidos inéditos, rascunhos, precisões subtis,
ardilosas provações, extáticos horizontes, piscinas, plenitude;
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até balbuciar O Amoroso Nome.
No transístor as canções resultavam irreais,
mesclando-se com boçais tiradas a que a locutora se aplicava.
O entardecer nas árvores
Suavidade, chinfrim, pássaros,
interminável, angelical melodia precipitando saudades.
Num bar tirado a algum livro do Pratolini
uma jovem mulher ingeria limonada.
Passara tempo sobre tempo;
altura para dizer era uma vez, e arrumar o que passou.
Pastorinha veio às flores,
encontrou elefantes, malmequeres,
papoilas, borboletas,
a pastorinha da cara preta.
Lua, mar, sonho estar contigo,
penso em teu amor por mim…
Gosto da noite escura
por sobre aço e automóveis
orvalhada.
O bom Deus
está com cada um
quando cada um
está com o bom Deus.
Scherzo
Dêem-me a água e o negro café após sono,
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dêem-me música, que m’intervale goles bebidos e baforadas de fumo,
que entrementes se me engolfam pulmões dentro.
Café, água, música, cigarros e, claro está, a minha mesa do canto.
Por favor, com este calor, não se esqueçam de ligar a ventoinha.
Aqui respiro o meu ar, com o ar do meu cigarro,
raízes minhas, que também vivo no pó.
Oh, o egoísmo de ser-se como vento ou chuva, de fruir-se pura e
[simplesmente.
Não me puxem pra trás a cadeira enquanto me sento, convenhamos
[em que
tais brincadeiras - dum péssimo mau gosto - só cabem em certas fitas.
O resto está certo
como a morte, ou a força da vida, como a liberdade, o amor, ou a graça.
As contas ficam em dia logo que termine a leitura no pasquim,
e desembolse as exactas moedinhas, com um óbvio obrigado p’lo serviço.
Embebida no sangue dos inumeráveis mártires, a última bandeira
esvoaça ao vento que brame após recentes bombardeamentos,
nas mãos sobreviventes das crianças,
iluminada como Maria, alta até aos Cimos;
alçam-se-lhe lá desenhadas a Estrela Davídica,
o Vaso Graal, Coração, e Amor.
Balbúrdia de crianças,
perturbadora moínha.
Senhora do grande livro,
esclarece-nos os indecisos intuitos.
Desmaiada lua, não aclares meu rosto até à cinza que morte é;
deixa-me a sonhar o abraço da terra, amante fidelíssima.
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Árvores magríssimas,
arranhões, crueza, fome; impossível cantar senão após árdua jornada.
À geral indiferença
um nome abominado numa montra.
Que não esqueço aqueles amigos desconhecidos;
vieram a nossa casa fazer um telefonema,
a uma hora a que os cafés fechavam;
que queriam pagar;
e entraram e saíram;
mas guardem vosso dinheiro.
Sei tanto sítio onde vermo-nos,
porque ante o mesmo portão,
às mesmas canções ausência,
tua ausência, ou inexistência,
ou os muros, onde crianças
vadias grafitam a palavra PIÃO
com as letras ao contrário: OÃIP,
as brincadeiras da incomunicabilidade,
um trabalho que cansa antes de fazer-se,
inúmeras barracas, horizonte abismado,
portadas, janelas, brancuras mar,
aborrecedores holofotes.
Um fim de tarde, na praia,
uma mulher falou-lhe,
o cântaro descansado na anca,
a exagerar a sua postura,
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tristemente;
uma ideia por vezes atormenta;
um compartimento
a média luz,
um divã,
num qualquer canto.
Lembrar-te a rua,
corridas pedras;
saberes-te um,
borboletas ziguezagueantes.
Estrada fora,
trauteava Granados,
num plangente solo.
Era bom ter tempo livre,
não ter que pensar.
Que mais queria?
Luz esbatendo-se.
Entre cerveja e sonido,
tanto nada.
Tal Ruy, poeta amável,
sofro o imenso tempo gasto.
Pareça embora absurdo,
gosta-se do tempo gasto.
Uma saudade,
um apelo para a lonjura,
montanha,
ar, lua, ou ribeira.
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A Oriente, a Estrela.
Seguem-na uns pastores,
até ao recém-nascido,
na palha com bosta e mansas bestas
do perdido curral auriluzido.
Absoluta plenitude e solidão,
os enlevos se embrenham;
plena fadiga na meia tarde.
A poesia da relva,
onde se distendem corpos enlaçados.
Corre o vento, e vem até aqui
Corre o vento, e fica dentro em mim.
Bem podes correr, vento da minha não aventura.
Bem podes anunciar-me o lugar.
Pois aqui sopras, à precária estadia.
Abro-te todas as portas, ar que a vida me dá.
Nenhum obstáculo te detém.
Transportas-me, nuvem, à praça onde sonho.
Lá a casa me frequentas, aragem destes dias.
Vento dos ligeiros sustos, pudesse achar em ti o meu poema.
Que longes varres agora, verdadeira liberdade?
Tarda a morte me aconteça,
como a um mais dos que, enfados vencidos, a alcançam.
D. Sebastião, ínclito demandante do Graal,
quando voltará, pó, revoada, a alas e frentes, tua hoste?
Do sonho, à névoa, reergas, uno e muitos, o Portugal.
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Oxalá
alguma vez
saboreemos
o suave nome.
Prà ’qui
respiro Deus.
Tarde sentada,
folheiam-se a in-fólios
amarelentas páginas.
Mãos a erguer,
fazer por isso.
1º de Maio,
rosas
com suor.
Do sonho
o desvelar.
Sei a estrela
a que acedi na infância.
Sei a palavra
que me deste,
polpa e fruto.
Construo o poema
confiante,
submerso p’lo zunzum fluente.
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Sussurro divino
por ervas.
Astronomia
As estrelas dão-se-nos
espelhos.
Somos,
conTigo,
parte dO Corpo Glorioso;
deixes Tua beleza preencher nossos desertos.
Raciocínios
curto-circuitados,
ou, diversamente, divagar.
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Estações do Peregrino
Estações
Bat Yam: Acordaram-nos os olhos pó,
às portas da Terra Prometida.
Cesareia: Romanos, lusos, ameríndios, indianos, etíopes,
nipónicos, arianos, eslavos, arménios, croatas, chinos, africanos, gregos,
esquimós, hebreus, árabes,
à cor irreal,
pasmámos.
Monte Carmelo: Fremindo o sopro.
Stella Maris: Que era d’Iahweh a voz que move.
A longe nos levava.
Tiberíades: Da faina, na pesca, nos erguemos: Passavas, e seguimos-Te.
Bem Aventuranças: Nova palavra jorrava, estremecia.
Cafarnaúm: Connosco continuavas.
Mar da Galileia: Nas lidas escondidas nos calámos.
Dabourieh: Suspenso em ar, ’inda Te erguias.
Tabor: Até tangermos nosso o inominável.
Canaã: Água e vinho,Teu sangue aurido, convivas da santíssima alegria.
Nazareth: Quotidiano escondido, o aí estares.
Jericó: Onde o estranho era irmão.
Jerusalém: Um palestiniano, passeando, e assoando-se,
à diurna luz, a última paz.
Até que nos achássemos definitivamente no templo.
Muro das Lamentações: Pesada era a memória, a prova da memória.
Sant’Ana: Acudas-nos Ana, mãe da nossa mãe.
Piscina Probática: Esquecidos no pesado pecado,
largos anos esperámos que nos soerguesses.
Via-sacra: Marcados p’la Tua dor, em Ti morremos.
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Santo Sepulcro: Pra conTigo a fundo descermos, e renascermos.
Monte das Oliveiras: ConTigo chorámos em agonia o desígnio dUm
[Pai.
Local da Ascensão: RegressásTe até a donde viesTe.
Pai-Nosso: Éramos agora outros ao olhar o Outro.
Dominus Flevit: Estávamos protegidos, e amados.
Agonia: Na prova, desentranhavas o amor maior.
Horto de Getsemani: Porque anteviste a vitória dos Teus, Te deixasTe
[matar.
Monte Sião: Para reacender as madrugadas.
Cenáculo: Juntos com Maria demo-nos ao Enlevo Consolador.
Túmulo do Rei David: Novo incenso, entre sombra e luz.
Dormição: Toda a tua morte, Maria, alumbras nA Palavra.
Belém: Era tão só crer, a’o cintilar a estrela.
Yad Vashen: Donde se fez memória, e caímos em nós.
Até ter cor manhã.
Estações revisitadas
Tel Aviv: Afazeres, à pátria universal.
Que consta no teu passaporte?
Cesareia: Quando nos sentámos, a ver que dava, partiam,
regressando, adereços aviados, saltimbancos.
Haifa: A aberta imensidade, a maior grandeza, alma a olhos dada.
O fundo envolve-nos, devolvidos ao claro sonho.
Ao Monte Carmelo, subterrânea Eucaristia.
S. João de Acre: Largo era o voo entre Haifa e Líbano,
onde o cedro no caminho.
Tíberíades: Descalços pisamos pedras húmidas,
perto o manso lago, dormente dorso em vagas,
as embarcações atravessadas por longuíssimo antanho.
Monte das Bem-Aventuranças: Ressoa, nossa e Tua, a divina Palavra.
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A Cafarnaúm: RezasTe, porque previsTe ruína.
Do Primado: Pedro, Pedra, e Companheiros, por seus pés,
seguem primeiros o Amigo com a Notícia.
Galileia, a Lago ou Mar, despreocupação, distensão e acalmia.
Amainada a tempestade, pairámos.
Tabor: Sonambulissimamente divagávamos,
absortos discorríamos deslumbrando-nos
o repleto da Luz, um dia aclarada sobre a Terra,
mal acomodados nas próprias tendas.
Gruta da Anunciação: Verbo caro factum est.
Pra alentar-nos.
Do Anjo a irradiação a Ti descida, começo, para começos, bem fecundo.
Jericó: Porque ofereceste boleia ao desfigurado,
o Cristo Te sarará também das tuas chagas.
Das Tentações: Acossados, superamos ancestral desespero.
A Jerusalém, cidade das acolhedoras portas sempre abertas,
por próprio pé, acedemos jubilosos.
Sant’Ana, Mãe da Mãe da Paz, ouve o louvor dos nossos cantos.
Cenáculo: Raiz, pão e vinho compartidos, plenitude, mãos,
estremecermos na passagem.
Getsemani: Fundos ais chorasTe sobre a arrasada cidade.
Via-sacra, Basílica da Agonia: Um furco perto do Seu pé sangrando,
a soldadesca entrega-se a mesquinho passatempo,
sobre rabiscos no lajedo, com mínimas pedrinhas.
Com a Cruz: Bem quis ajudar-Te o de Cirene.
Tu lhe desTe a ele Tua Vida.
Sepulcro: Morremos, conTigo, pra, conversos, nos acharmos.
Ein Karen: Miriam, sabias, com o coração,
toda a distância compreendida.
Dormição, conTigo, Nossa Senhora da Ternura.
Pai-nosso: Iguais, Teus co-herdeiros.
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Geena: Medonha, horrenda, dantesca, hiante, sem fim desolação.
El Aqsa: Em tonto sono voaram-nos as ideias.
Sob a cúpula doirada, o templo,
os anéis com os versículos aO Misericordioso.
Yad Vashen e Tumba de Lázaro: Após ignóbil tragédia,
reconhecemo-nos.
Aeroporto: Na bagagem, terra declarada.
Não refizéramos, nem na ínfima parte, o percurso;
mas ficámos, na pura verdade vagando, tratando, respirando,
conTigo, ó Cristo, pomba, fogo, vertigem,
evangélica loucura, inenarrável libertação.
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Simples Orações
Anunciação
Descia a tarde, e arrumavas a casinha em Nazareth.
Cenário admirável Gabriel vê,
quando irrompe p’la porta cerrada.
Pára o voo às Tuas mãos na entretecida paz.
Teu coração balbuciou que sim.
Fátima
Arrancada a mundo novo:
Nova Jerusalém. Novos céus. Nova terra.
Suave açucena. Noiva ataviada. Anho pacífico.
Meiga gazela. Tenuíssima apaixonada.
Nós te louvamos e bendizemos, Imaculada,
porque trouxesTe O Excelso,
AQUELE QUE É vivida Redenção.
Aclara-nos caminho,
sempre connosco vás,
conduz-nos por Tua mão.
Boníssima, infundi em nós o puro Verbo Pleno Amor.
Dá-nos discernimento pra bem agir,
faz-nos firmes os passos.
Bendita, sempre flor, Eucaristia,
Pão do Céu, que, Graça, Se dá em alimento.
Exaltado seja O Santo Rosto.
ApresenTe-Se-nos favorável.
Ilumine-Se-nos: Sobre cada um resplandeça.
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António, Clara, repeti, connosco, o canto ao irmão sol,
à irmã lua, às estrelas preclaras, belas.
Porque desde há milénios Natal,
se cultive, cante-se, soe,
acompanhando o coro dos levíssimos entes,
da felicíssima meia-noite de Bethlehem
a imorredoura alegria.
Mereçamos, na Paixão do Cristo,
a Bondade.
Porque o cedro foi arrancado.
Afastarei de teu seio os orgulhosos fanfarrões.
Um povo pobre e humilde
procurará sossego no nome de Iahweh.
Não nos pesem angústias passadas.
Nossas acolhas acções de graças.
Festa da Casa de Israel, atribulada, não vencida,
humilhada, não abatida, vexada, não subjugada.
Teus, inabalavelmente até aos remotos fins,
nada mais vivamos do que um reflexo nA Imensa Luz.
Tão verdade é estares connosco, Expectante.
O que desejas Te foi dado antes.
Estrela da Manhã, Guia Seguro,
Teus Olhos sondam o melhor.
Por isso pranteias descaminhos.
Refúgio nosso, Te dás; nada nos falta;
formosa és; nos vês, nos tens; o resto cale.
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‘Em que espelho ficou perdida a minha face?’
Tens nosso nada, um nome,
que é tudo o que transportamos, um nome cristão.
Tens nossa fraqueza, e dás-nos Tua força,
que abre todas as portas.
Tens nosso silêncio; torna-lo repleta palavra,
amplidão na noite coração.
Um fio nos firma a Ti.
Em Ti nascemos, somos,
e passamos.
Os pais dos teus pais levam-te Deus dentro.
Fixa-se-te o sorriso na fotografia.
Os netos dos teus netos abraçar-te-ão.
Kyrie
Anunciação: Faça-se a Tua vontade.
Visitação: Miriam, de abalada.
Natal: O Verbo, encarnado.
Apresentação: Cumpre-se o resgate e a purificação.
Encontro: Transborda sabedoria O Menino.
Agonia: O Filho de Homem, suando, sangrando, diz sim.
Flagelação: O manso Cordeiro deixa-se torturar.
Espinhos: Eis o humaníssimo Rei.
Cruz: Consigo nos toma.
Morte: Todo Se entrega, e nos redime.
Ressurreição: O Primeiro Domingo Eternidade.
Ascensão: O Filho abraça-se aO Pai.
Descenso: O tudo em todos.
Assunção: Ave, Aia Eleita.
Coroação: Salve, Operária Incansável.
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‘Não deixeis emudecer a boca dos que Te louvam.’
Louvores, glórias sempiternas a Teu Nome.
Ante Ti se dobre todo o joelho.
Voem os pés aos promotores da paz.
Exultem os humílimos.
Jorrem águas aos rochedos.
Frutifiquem campos desolados.
Soltem-se murmúrios a pequeninos,
a quem as mães ainda amamentam.
IHS
É o corpo próximo humano.
Um corpo um.
Une-me
aos dispersos excluídos,
porque diferentes.
‘Se não fosse esta certeza,
que nem sei donde me vem.’
Escondidinho, agarra-me,
que te passo à porta.
O cabo da boa esperança é lindo,
mas a paciência tem limites.
Rita de Cássia, dai cova onde morra.
Vede como se amam.
Pois se dão o coração quebrado.
O mandamento novo refaz a humanidade
dum Deus descido.
Jamais estrangeiros,
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em verdade família uns dos outros.
Quais do voo querendo-se, se encaminham.
Dizei se tal amor não vale a vida.
Em assim se ser,
firmíssima, se expande a aventura.
Porque esse o modo humano melhor.
’Inda o anterior canto
Trate linguagens ou domine meandros,
se não me move Amor, mas puro Amor,
como Paulo escreveu, eu nada sou.
Sonhos, génio d’esforçados dias,
tudo passará, excepto a caridade.
Espírito Divino,
acode-me, que, mísero, morro.
Pó, alento, liberdade,
dói-me não cantar a alegria.
Tanto me machucaram as feridas vivas.
Infernos tive que sofrer.
Já assumpto em mim,
nem sei contar os golpes cometidos.
Oswiecins tive no caminho,
mas, ante os novíssimos,
espero, creio e amo,
pois Maria graça é, e poesia.
‘Maria Imaculada,
Estrela da Manhã, que dissipas as trevas da noite…’
Abre-nos caminho pra bom lugar.
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Olho, porque me olhas.
Meu nada calas.
Baste-me esse tanto.
Aqui estás inteiro,
em corpo inteiro.
Revejo-Te,
tal quando percorrias,
mais os teus,
a celeste Galileia.
A plenitude
é em Ti;
das suavíssimas entranhas
dA Sempre Virgem
Oferta Maior,
que as nossas manchas branqueias.
Jesus,
inspecciona-me a que ande em Tua luz.
Volte de novo a comportar-me como menino.
Nada perca da graça que me dás.
Respire louvor a oração, em que brota o meu discorrer.
Cada palpitação minha Te seja aprazível oblação.
Dê-me à vida inteira cada manhã,
envolva-me a bondade infinita a clarear.
Tarde toda, Te acompanhe na Paixão que salva.
Noite, repouse na calma do Teu ombro.
Flua a cada transe a inteireza do Teu amor.
Nesse amor se prolongue o curso dos meus dias.
Todo me dê a Teu Coração.
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Em Ti viva, louve, espere, e ame.
A Ti regresse, Sem Fim Bem-Aventurança.
Amar o grande mar!
Amar-te deveras verde mar!
Amar-te, do mel amor, ó mar maior!
Maria,
alcance subir a pulso a Escadinha das Rosas.
Sê minha boa mãe, e eu cale quanto não Te bendiga.
Não canse de mostrar-me grato p’lo que me dás, meu tudo:
A alegria de filho Teu.
Por acréscimo, desculpa-me asnear.
Dê o mafarrico em minha não vida desajustadas voltas.
Não será ele parvo chapado?
Pudesses Tu com o seu desnorte.
Consegue que esse dos embustes a milhas suma.
Prende-me a Teu olhar sem mácula, Divina Mãe.
Porque na Fé de Avós
educados e encaminhados,
na Fé renascemos até ao Pai,
com o Filho, no Amor,
sustentados por mão da Mãe.
Santo António, meu terrível,
move, às moças, os baques cordiais,
a que me dêem água p’las frescas bilhas.
Fecha-se o livro, solta-se louvor.
Enchem o Orbe as tuas maravilhas, Santo, Bom Senhor.
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Criaturas aladas, louvai.
Névoas, neblinas, regatos, ribeiras,
anjos e meninos, bendizei.
Santos e Mártires do Senhor, louvai.
Irmãos sofridos, cantai.
Poetas, aedos, bailarins e músicos
expressem minuciosas belezas inumeráveis.
Seja desmesuradamente prolongado o saltério
aOs Celestes Prodígios.
Arquitectos, artistas, dramaturgos, cinéfilos,
informáticos, jornalistas Te proclamem.
Urzes, giestas, estevas, tílias, margaridas, lilases,
fremi a única alegria.
Aragens, brisas, fogueiras anunciem O Pleno.
Relâmpagos, raios, tempestades, gritai.
Répteis, peixes, batráquios, fugitivos animais, calai.
Luz matinal, aclama O Que Em Ti.
Pedras, terras, orlas, brisas, explodi um canto novo.
Flores, verduras e florestas,
mares e nuvens, esplendei.
Luzeiros, astros, sóis, estrelas,
clareiras e galáxias, ecoai.
Abraça teu povo na paz, Consolador.
Em Teu Nome houvemos força.
A exemplo do pai Francisco,
onde houver peso nos toque
a incólume leveza
do Teu sorriso violentado.
A que, nas provas, resulte,
no peregrino, renascido ardor.
A que não esqueça Lázaro.
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Tenha para ele abertas as portas à choupana.
Filho de David,
reencontra as reses desgarradas.
Traz a teu redil quantos desatinam,
Te magoam o Rosto.
Teu entranhado Enlevo seja bênção
até para os que se esquivam.
Como algodão hidrófilo, Teu jugo;
pacientíssima, até aos fins,
Tua expectativa quanto a nós.
Deixemos na raiz da Tua cruz angústias e alegrias.
Entreguemos injustiças, tribulações.
Dá a cada um quanto lhe falte, provê o melhor bem.
A rodos derrames consolação.
Aos agradabilíssimos Átrios,
elevemos diferente Louvor.
A que nos salves.
Transborde o Vaso Pleno Teu Coração.
AcompanhasTe-nos,
no Egipto vivido.
SaciasTe-nos à Terra Verdadeira.
EndireitasTe-nos os ossos.
Que mais pedir, Companheira?
Acolhas os filhos, em ódios transviados.
Amem eles a paz, e o céu lhes trará
a mais linda e inexplicável cor.
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Também Através da Poesia se Constrói a Paz
Dos entrechos a dois,
milagre quotidiano,
simples, familiar,
ao reduto intacto,
não bombardeado,
na plenitude da neve.
Da eterna novidade
Todos os dias, nautas planetários,
refizemos o inimaginável.
No fundo bolso esquecido o roteiro,
com o que sobejou dum raminho de oliveira.
Despojos outros da gesta - brônzea rosa verdade! deixámo-los por álbuns familiares.
Do inelutável quotidiano
Invariavelmente
pelas sete menos cinco da manhã
a sexagenária empregada da limpeza
descia sozinha do autocarro que adrede parava
mesmo ao chegar à praceta.
Era uma princesa,
que me atirava o seu bom dia para a janela,
onde alheado poetava.
E prosseguia adiante
o seu caminho duns curtos passos,
carregando dois sacos fundos,
um a cada mão,
dois sacos cheios de paz.
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Estamos no mesmo barco:
O estrangeiro é o mais próximo.
‘Eu ainda menino’
Uma casa térrea, a bacia, da água, em alumínio,
sol esbatendo-se sobre sobrado;
íngreme ruela, que vai da escola primária ao quintal do Gouveia,
que Deus haja.
A vida deu comigo até Lousa, aldeia num planalto; donde as iluminações:
Uma queda dum cavalo:
Houvemos, por sorte, de cair em terra verde, ali escassíssima.
Uma foto tirada quase noitinha, eu num pijama de flanela,
num corredor que dá até à fraga.
Também a neve!
Os passos, sobre ela distanciando-se, eram os do meu pai,
que ia, a mais uma semana, ao serviço, à Vila.
A mãe, e as sopas, cebola, nabiça, alho, ou milho, amargurando ceias.
Bombos, e pandeiretas, gaiteiros, dia fabuloso, cabeçudos, gigantones,
Zés Pereiras, pertinho a uma varanda nossa, quiçá num 2º andar.
Na Senhora da Assunção, em Vilas Boas, estoiravam foguetes com
[lágrimas.
Na noite deslumbrada, pela aérea leveza insuflada,
caía devagarinho a Madona Branca.
Por San Martino:
‘Lo rapazo d’la professora anda a la ’scola, la rapaza nó.’
O forte bradar: Gaitas de foles, piruetas festivas, saltimbancos.
A ciganita a toda a hora choramingava:
‘Uma codinha, e danço!’
Os pulos loucos, os paulitos:
‘Mirandum se fui a la guerra.
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Num sei quando benerá.
Se benerá pula Páscua se pur la Trenidá.’
Minha primeira comunhão:
Um ar aborrido, rezingão, a posar ao eterno retrato.
Na ribeira, sombra mansa, decadentes chorões.
Cegonhas a amplo voo.
Por tortuosos caminhos os fontanários, água borbulhante.
Longas peregrinações, vadiagem, até ao pôr-do-sol, por leiras.
Vozes limpas, ancestrais, cantarolai-me La Çarandilhera.
Belém, velas girando, à varanda, moinhos em papel,
o vento na azulada viela, estúrdia, noite de Santo António.
Cerra-se compacta negridão sobre a murada cidade.
Que é dos alunos? E os poetas aluados?
A já antemanhã é uma prenhe certeza.
Trindade Coelho, ansiavas p’lo Reino…
Está por aí.
‘O espectáculo mais bonito de ver,
na Terra alcançada do Espaço,
são os homens a trabalhar.’
Por mim, contenta-me, inteira alegria,
a obra do prédio aqui ao lado.
Observo-a a avançar a cada hora.
Em longas lidas com que vai, sofridas,
não me foi dado surpreender,
a qualquer operário seu, um movimento errado.
‘Disse-to pelas nuvens, pelas árvores do mar,
pela noite bebida, pela janela aberta,
toda a carícia, toda a confiança sobrevivem.’
Forçoso cantar, pétala por pétala, os sonetos que decorei.
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‘O homem não existe em si, mas para Deus.’
Dom António, a longe olhavas.
A morte do homem, que t’inquietava, fede.
Há que esperar um novo mundo.
Imensa Mesa, Imensa Alegria
Sabei, homens, quanto vale viver a Paz,
a insondável riqueza, a Diferença, o vosso irmão,
o Intangível Sagrado, que encerra a Consciência daquele que discorda,
quantas vidas se salvam por um Acordo, selado com um simples
[cumprimento,
o valor que é o Outro, e quanto bem é dardes,
a esse Outro, o espaço vosso devido.
Sabei também quanto a vossa terra merece que a deixeis frutificar,
à luz da imensa alegria.
Se tal souberdes, dareis mãos confiantes,
alegrar-vos-eis, com os demais convivas,
no Comum Banquete da Palavra,
num invencível amor;
saudareis, com à vontade, cada homem,
em língua a nenhum estrangeira;
em qualquer parte do habitado planeta
vos sentireis como em vossa própria casa;
abrireis janelas amplas a cada novo alvorecer:
Cada manhã será a manhã dum novo homem.
Sabereis o que é o vosso chão e o vosso pão,
o peso e a leveza da sã consciência solidária,
a dignidade de estardes vivos.
Tereis o vosso tempo, e todo o tempo será vosso;
inaugurareis um novíssimo milénio, com concórdia e liberdade.
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Serão o Ar, o Pão e a Água, distribuídos com a Poesia,
abundante parte à Mesa dos Humanos,
elevados que sejais à Verdadeira Harmonia.
O alto e claro Sol vosso será, e partilhado.
Um Deus será Um Comum Pai, Uma Única Mãe,
possibilidade de ser invocado
p’los Seus mais desvairados nomes,
presença, jamais ausente, na mais pequenina flor.
Até vós descerá, e, em mão, vos terá à paz movidos.
Chegará, com toda a Sua Ternura, aos vossos mais íntimos sonhos,
e iluminará sorrisos em todos os meninos.
Dêem-me pão que baste a minha fome,
água que baste a minha sede, verdades que comungue.
Forte abraço, do tamanho do mundo, que me abrace.
Das mãos nasça doce paz, que se alargue ao total mundo,
em que quisera sem fim andarilhar.
Fotografa, mãe, teu filho só, pois quase esquece.
Nunca agradeceremos bastante
o dom inestimável da paz.
Paloma colombina,
vê se os humanos atinam.
Des maisons à cigarettes et à musique…
Eclodirem os risos claros, nos comuns dias.
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Lidos Clássicos
Porque vivemos os emparedados, sem árvores,
emparedados ou localizados, aquém nós mesmos,
que, mesmo que supostos transpostos, nos detemos
os passos, deparando com inúmeras portas no caos.
‘’Té Santa Clara, além ar.’
A graça faz-nos ver.
Seus anjos súbitos, as antemanhãs.
Obstinar-se a todos os rumos.
Investir, olhos pra amanhã, os instantes sentidos.
As horas de ponta na cidade:
Mergulhar o humano, corpo ascendendo em pó,
em direcção ao poente, a clamar dos escombros.
Forçoso arrancar ao grisu férreo os bairros tristes.
‘Tiram ouro do nariz os poetas.’
Atraem pra suas janelas ar puro a remotas paisagens:
A plenos pulmões, inspiram ares himalaicos:
Soletram o desconhecido:
Constrange-os a humana miséria
e por p’los próprios versos a não verem resolvida:
Dizem sempre paz,
por condoídas, estranhíssimas expressões.
Auto-retrato em glosa ao do Bocage
Olhos castanhos, gordo, agreste cara; meio bronco nos pés; alta postura;
aspeito incerto; dado a alegria ou a tristura; nariz dobrado a meio,
[feroz, torto;
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ânimo vário, mas mais brando agora; co’a idade inclinado a mover-se-lhe
o coração ferido; com álcool não, mas p’los cafés matando os dias;
a sorrisos gentis não insensível, digo, a cândidas musas feminis;
quase só p’lo confesso suportando os padres, eis Ochôa:
Talento, à borla, asas lhe abriu, desta, a devaneio.
Num sonho todo feito de incerteza,
silêncio, luz branda, amenidade, senti essa presença,
essa leveza, que nos conduzem daqui à infinidade.
Era a alma das pombas, ou a mesma toalha na mesa, imensidade.
Céu sem nuvem nem véu nem sombra escura:
A íntima e afável comunhão:
Contacto imo a imo, amparo na incerteza:
A escorrer o luminoso tempo.
O segredo dum sorriso. E assim descer, directo,
até achar a mão, que, na mão, ajuda a caminhada.
Elle est retrouvée. Quoi? L’Éternité.
A imagem banal do terror, a ’squina, as pessoas paradas…
Porque acordei no país durmo com os mortos às centenas
especados a meu lado.
‘‘Minha mesa de café.
Quero-lhe tanto, a garrida.
Toda da pedra brunida.
Que linda e fresca que é!’
Lá tempero a solidão, com o café do costume.
Do cigarro, que acendo, não mais se lhe apaga o lume.
Falhados, todos temos poesia, morte, instantes.
Boa é a pedra, que esconde, sob ela, o poeta anónimo,
que escreve e rescreve para o esquecimento da vida.
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E se a patroa se despe?
E se o cliente vomita?
E se o cinzeiro se espalha?
‘Tratem do governo,
do mundo e da monarquia;
que, enquanto ocupo os dias,
pão do forno e manteiguinha.’
Que tem o castrado gato a ver com a política?
P’la janela réstia de espaço arborizado.
Soltam-se bocas desconexas:
Misérias e raivas por esse mundo fora.
Foi a sortes, e ficou livre.
Ver, condoer-se, estar perto, erguer mãos.
Pairar, nuvem de calças, sobre-realidade.
‘A vida é feita de nadas,
de grandes serras paradas,
à espera de movimento.’
Fadigas, cantares, gestos de entrega,
mãos afagando, cismar fascinada solidão,
manso pastar das alimárias,
zelos e cuidados desmedidos, lidas esquecidas;
aligeirar-se o olhar ao espaço aberto;
colher, flor na haste, o tempo dado.
‘Co’a calma, as aves passam p’la lonjura.’
Elevam-se sobre a planura.
Enlevam-me, e desvanecem-se, p’lo ar alado.
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Deixam-me saudoso do seu voado voo,
melhor do que sonhado.
‘Não era o vulgar brilho da beleza,
era outra luz, outra suavidade.’
Que me não esqueça;
irmã comigo vá;
envolva-me inteira;
acolha-me meiga;
abrigue-me, escura noite.
‘P’la acção do Espírito
a vossa esperança transborde.’
Porque imensamente forte nos enches,
nos demos; e, onde quer que ânsia roa natura,
bebamos por transbordante malga.
Entre las flores
P’lo horto da esposa, o apeado cavaleiro
prossegue, à meiga luz, o lugar donde.
Saudoso ama e em arroubo sonha
pátria por que, em exílio, sempre suspirou.
Esmorece, frágil desmaia;
o novo odor ao amado corpo pleno o realenta.
Dia alto acorda flores,
anelando p’la jamais olvidada garça.
‘Sôbolos rios que vão,
por Babilónia, me achei.’
Onde, achado em confusão,
chorei por Sião.
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‘Yo solo vivo
dentro de la Primavera!
Los que veis por fuera
qué sabéis de su centro?’
Se o eclodir solar me desvanece,
no pleno dia me fundo.
‘O silêncio é tão longo
que os cães enlouquecem nas ruas.
E as noites ficarão imensas.’
Do Jorge de Lima o povoado trecho em eco,
transcendendo plausíveis glosas, nua verdade,
duns cães, uns gatos, uns uivos, uns automóveis,
por fins do nortenho Junho, entre fantasmagorias.
O vento mia,
o vento mia, que irá no mar?
Temporal desabrido,
que afoga a barquinha ganha-pão
sob onda desalmada.
Até à alfândega da fé
Eu cantarei d’amor tão docemente,
em uns termos em si tão concertados,
que os distantes ais rememorados
não deverão já mais nos ser presentes;
olhos, mãos, vozes às claras madrugadas
lançando-se, repetindo-se, nos darão
enlevos de quem vive saudoso, ausente;
oásis indiciam brandos esgares…
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Céu carinha, continuemos demanda!
Só d’amor feridos, doem-se-nos esquecidos
pousos a advir; aos quais alheios, vagabundamos tidos na palidez da ideia
até a luminosa estada; a final movidos,
p’lo livre acto refeitos, nos alongamos.
Ai verde rio.
Ai fresca rama.
Ai neve flor.
Ai doce ar.
As aves todas
chilreiam amor.
Fale português o Oriente da vida!
Maravilha fatal da nossa idade,
irrompas, cavaleiro.
Verdes ilusões à peleja única arrebates.
Conquiste-se o orbe a nova hora havido:
A ti se obrigue a submetido íntimo.
A cada infante teu firmemente motive
a sobre-humana simplesa.
O império quinto vá tremeluzindo.
‘Quero por força ir de burro.’
Donde, aperrado à albarda,
ainda que morto, me levante.
‘Vi uma noiva entrar num automóvel.’
Seu esguio corpo arrancando-me
desta minha quase crónica depressão.
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Sant’António, meu santinho,
sábio santo dos doutores,
ensina-me sã doutrina,
aceita meus louvores.
Acodes nas aflições;
ama o meu coraçãozinho,
ensina-lhe orações.
Vi o Menino brincar,
nos braços do Sant’António;
taumaturgo popular,
mata em mim o ruim demónio.
Sant’António, meus Amores,
que eu ame minha mulher;
dou-te guirnaldas de flores,
seja o que Deus quiser.
Fique claro o ar,
mas pra pasmar,
Natércia cara,
lírio carnal,
íntimo éden.
Que choras,
amiga,
à fonte fria?
Amores hei.
Alba vai lieiro.
Que pranteias,
amiga,
à fria fonte?
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De amores só.
Alba vai levaando.
Amores empeçados
sem sonhar sua fim,
choro a mim.
Alba asinha.
Amores amados,
mas findos em vão.
Alba vera nova!
Ah, o Camilo!
O das olheiras chorosas, o poeta, místico e músico.
‘Só, incessante, um som de flauta chora.’
Antiga tristura, que lágrimas a fio me devoras,
o sol há vasto tempo erguido, porque não foste embora?
‘E, no longe, os barcos das flores?’
Pétalas leves sobr’alma derramadas.
Será que morro exausto, cumprida a faina, e finda?
Ou é que o pranto sara, e o pavoroso tremor extingue?
Quem sonha alto agora?
Astros alcança?
Por vãos silêncios mora?
‘Adeus, eu vou com as aves!’
Com as aves vou onde nem sei.
Onde, ausentando-se embora,
a alma se compraz.
‘Aquela triste e leda madrugada,
enquanto houver no mundo saudade’
quero que fique sempre demorada
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a meus olhos abertos porque nada.
Campos verdes, na clara luz banhados,
arvoredos, automóveis, idos passantes pasmados,
roucos sons, cães, a os dos pássaros acordados mistos.
E rosas, e aromas, e tons, e amores dos meus amores.
Porque não cantar se o dia nasce à mesma hora que a flor?
E a neve é o véu das bodas, sobrevoando.
Ó madrugada rompante nos meus dias,
inclines minha alma a jubiloso fervor.
Devaneios acenam voos de asas p’lo monte.
Pascoaes
Poeta, irmão da pedra e da saudade, meigamente rezavas:
‘Sem esta terra funda e fundo rio, que ergue as asas e sobe,
em claro voo; sem estes ermos montes e arvoredos
eu não era o que sou.’
‘Se não me lembrar de ti,
Jerusalém das minhas alegrias!...’
Leveza,
alados pés,
ternura,
brando olhar,
o dentro das tuas portas,
revolto, diferente esplendor.
Íntimo anelo.
Subida a topo.
Desde já empeçada eternidade.
‘Quando de minhas mágoas a comprida
maginação dos olhos me adormece,
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em sonhos meu tudo me aparece,
felicidade, ou sonho, desta vida.’
Só sonhada ventura me conforte
da vivida desventura;
sonhe enfim, e infinda vida frua,
ternura que a vida me negou.
Donzelas mil, flores só sonhadas,
indícios foram meus d’idílios mil,
p’los tempos que aqui tive,
dos quais não vi senão enganos.
Seja eu só teu, Maria,
donzela das donzelas.
‘Sedia-m’eu en San Simion...’
Acercam-se-m’ ondas,
que grandes son.
Ondas m’emparedan,
eu sin rum’ ô guia.
Ondas s’m’engolfam,
eu cerrad’ a’ dia.
Madre, qu’ondas altas
contra mim vêm.
Madre, qu’ m’envoltan,
e eu prà ’qui sin pé.
Os maus vi sempre nadar
em mar de contentamento.
O mentiroso exaltado
com festança e honraria;
para o pobre homem honrado
um tropeço cada dia.
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Larga auto-estrada prò ímpio;
íngreme ruela pra justo.
Insano mundo este nosso,
pois quem paga é quem padece.
Estrelinha perdida num céu,
frágil barquinha num alto mar,
frustre borboleta ao vento adejando,
assim eras no vasto mundo, meu amor.
‘Gato que brincas na rua
como quem brinca na cama,
invejo a sorte que é tua,
porque nem sorte se chama.’
Vá pois dormir descansado
num canto terra perdido;
ache-se sempre a meu lado
frolida ausência e sentido;
seja meu corpo chagado
só plenitude e olvido;
a cada instante moldado,
o poema seja vivo:
Todo o tempo decorrido
num existir amigo:
Pra reviver convertido
o disperso derivar.
Continuamos vendo novidades,
cabriolando-nos a cambalhotas a esperança,
dos males ficam as mágoas na lembrança,
e do bem, se algum houve, as saudades.
Desses lisos, corridos versos,
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em que encetaste sussurrar
fantasmagorias íntimas,
agasalho na manhã, que me acalenta,
o retinido registo nítido da vida.
Quase delida é a fim da tarde.
Versos muitos releio meio insone.
Abre-se-me último o sol rubro
ao fundo da janela do poente.
Reacendem-se-me clarins, gozo
que minha alma alada sente.
Lidas rimas vão sumindo aos olhos
o percurso, passo a passo ausente.
Morto é o passado, no entanto vivo,
ido o só instante, a débil felicidade.
Dormindo um sono em água me dissolvo.
Paráfrase a Jorge de Sena
Sem conta elucubrando
as impossíveis linguagens,
uma pequenina luz,
intérmino gorjeio,
teima rebrilhar.
Regresso às minhas plantinhas,
desmaiada a névoa aereza;
fermentando luz mui tenuemente,
prestíssimo passou o mês de Agosto.
Já os mortos se apartam deslumbrados,
deixando-nos bens aqui colhidos.
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Sinto próximo demais o dia certo
pra deixar pender a chão maduro fruto.
Mais e mais me agarra a vida,
a desfrutar do terno amor que te devoto.
Eterno reinício, acto incerto,
fogo d’o teu corpo amar por fado;
como eterno meu devotamento,
à anímica raiz, teu puro indício.
Seja o desenlace a hora boa,
que a vivaz luz persigo
em quanto transo.
Oitava
Tarde te descobri, Montanha Arrábida,
onde está pra minh’alma todo o enlevo.
Tarde te descobri, mas ainda a tempo
de o teu abraço gozar, divino enleio.
Branda me desfrutes, íris do olhar,
branda m’enlaces, sonho realidade.
Luz, ave, flor, um eterno meio-dia,
arqueada saudade, sem ocaso clarear.
Na luz dissolvo o olhar.
Na água nado nada.
Aura da hora envolve-me alma.
Vou no verso a mim diverso.
Tal graça meço, início imenso.
Das profundas clamei
não haver paz.
Não conseguirmos abraçar
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a terra da boa paz.
Não nos darmos
à inteira vida.
Não procurarmos
Tua Justiça.
Das lágrimas ao riso
Uma grande luz cai sobre a terra:
Alta noite aclarada a alegria,
Humaníssimo Amor já nos habita:
Do sonho exultando,
levantam-se uns pastores,
até à belenense estrelinha.
Madre, meu amigo
noiva me tem.
Hora é, moça,
já vais alteada.
Hora que vivas
bem querida.
Amiga sua sou,
com ele vou.
Amada ando,
no amor maior.
Flor santa pobreza,
comigo durmas,
a boa hora amada.
Esposa te dês meiga,
do Cristo rainha.
Paixão do povorelo,
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que saboreou teu sábio corpo,
odor humilde, bondoso, casto.
Proclamada paz
vera, radiosa,
insondável luzeiro.
Sacratíssima face
cuspida,
ensanguentada.
Eis-me no meu melhor:
Fundo, em minha vida.
Forte, em minha morte.
Lento, para lá do tempo.
Longe, em minha trama.
Amiga minha cara, muito obrigado.
‘Aqui dos largos males breve história.’
Dura dor, brando sussurro,
crua mágoa, temperada rima,
fera cegueira, deslumbrada luz,
idas memórias, agora vida,
pouca vista, aberto mar aos olhos,
ardido fogo, renascido ardor,
fugaz amor, vivaz luzeiro,
sobressaltos, astros, fastos,
descaminho, caminho a final
porto remoto amado,
certo ao o pensar presente,
pois Maria porta é,
prometida,
e tida,
porque sempre.
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Comunhão
Tempo pleno,
poema da vida a que nada falta.
Hoje inteiro, o dia abriga completude.
Saudoso embarque, solidário.
Voe até a ponto igual a onde estou,
como em retorno a meu mais dentro.
Donde vim e vou sou,
esclarecendo o olhar,
derramado, cada lance;
indizível sabor,
clara verdade.
Enquanto risca o vidro,
no voo curvo,
a ave.
Outra vez acendera um cigarro.
Outra vez à janela.
Outra vez pensara nela, e na hora da morte.
Outra vez engolira o meio comprimido.
Na véspera, fora festa rija;
incendiou-se o dividido fuel.
O mundo tornava-se incomportável.
Como sair do beco?
Se não restavam senão ilusórias seguranças.
Tais como janela, cigarro,
dvd achado,
água no jarro a filtros purificada,
ar, que ventava,
de que ignorado lugarejo?
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Donde infamemente renovava?
Respirar, agasalhar, vestir,
aguardar a alba.
O instante idealizado.
A amarga indiferença.
E não ter que pesar,
ao esclarecer soalheiro,
o silêncio,
a brandura,
o sentimento.
Despertar a maravilha,
olhos crescendo,
barba feita,
cara crua a dar,
pobreza, abandono,
remotíssimo tesouro,
a fome,
a divinização,
a água,
o pão,
o vinho,
a mudez.
Noite ante dia,
lidas, rotinas,
paradoxalmente
até à liberdade;
febre,
suor frio,
esparguete,
fim roído,
beijos sumidos,
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miudinha chuva
sobre a chapa do carro.
Até logo.
Cor barrenta;
a rampa,
o convento,
com a cerca,
campo semeado,
irmãzinhas afadigadas:
Tudo lento,
pleno,
na memória.
Evasão, ilusão,
perpetuar
o que sublime divino,
paisagens arruinadas,
p’lo claro batidas.
O deslizar a esferográfica
na completude,
a remar a vento agreste,
a ondas e marés do sol,
estridentando sons.
Gola puxada à gabardina,
um nó na cintura,
e Celeste,
igual a si,
nos dias das emboscadas,
resina dos instantes.
A Leste do Paraíso,
lembras-te?
Do filme não,
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o livro li há muito tempo.
‘Jesus is a soul man!’
O mais violento e manso
dos humanos.
O coração vazio, a alegria.
Fugir para a cidade.
Que é ainda teu,
que, entre casa e rua,
se não tivesse estragado?
Dizes ainda O Meu Anjo?
Teus beijos, colombina.
Sorrisos, reencontro…
Blue-jeans rafadas, sonido.
Já as flores alumiam,
engrinaldam-se trepadeiras,
pássaros muitos cantam
o raiar a alegria quente.
Cresce o só sinal.
Um Te perguntou
se eras rei,
Tu o disseste,
respondesTe,
a memória longínqua,
devassada,
à Jerusalém Final,
na evocação
mais pura
dO Teu Nome…
Subo escadas.
E ouço:
Nega-te!
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Ama-Me!
Dum dia pra outro o coração.
Matar com sono obsessões.
‘Um silêncio com estrelas aparece.’
Dentro da desolação.
…
Um anjo desagrilhoou Pedro;
luzeiro violento o abalou.
O ondeante azul
as aves todas sabem,
que vagueiam sobre o castelo claro,
onde um derradeiro verso expande a sua aérea luminosidade,
alongando-se, indefinidamente, até ao obscuro coração materno,
alento a pobre.
Uma intensa alegria
percorrer
as manhãs esperadas.
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Ângelo Ochôa
publicou
poema um - 1965,
poema 2 - 1966,
poema - 1967, folhetos;
as cidades de Israel - 1970,
(poesia escrita de 1959 a 1975) - 1976, livros;
poema do íntimo afã - 1983, folheto;
do memorial de Pedro - e uns poemas” - 1990,
desolação saudosa - 1992,
22 POEMAS - 1996,
os 363 poemas - 1999, livros;
Poesia dita pelo próprio - 2001, gravação.
http://angeloochoa.pt.to/
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Índice
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15
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16
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Um Novo Milénio
Redonda como um ovo,
Presa ao corrimão da escada,
Mesa,
Cinzeiro
Radiozinho,
Esferográfica,
Moedas esquecidas,
Gentes,
A hora entreaberta,
A planta,
A espada,
Da porta
Maria o Filho nos dá;
Envolvente capote
Seja véspera
Ramerrão,
Retorno ao pão,
Óculos pra ver perto
Olhos pra ver longe,
Sonhos ar
Botas d’encantamento,
Isqueiro, breve chama,
Volante cachecol,
Fio d’óculos,
Relógio fixo a pulso e desalento,
Minha cruz,
À janela,
Família,
Lugares do curso
Dos Sonhos os Poemas
Relato
Vemos Camus;
‘Um dia, pra Deus, mil anos; mil anos, pra Deus, um dia.’
Com ambas as mãos pegando o aberto livro,
Pungente entristecer p’la minha terra
Jamais acabaremos de explicitar o claro dia.
Quanto começou com Feuerbach
Mudança
‘Projecto de sucessão’
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O super-criativo dramaturgo
Haja sol desde arrebol; haja Deus, e haja sol.
Canto da mulher em Aoxa
Loquaz Gratuitidade
Ninguém vai a lado nenhum.
J’aquim, antes queres ferrar ou ser ferrado?
O professor Campos
Bilinguismo
A vereadora da cultura
O descalço de Évora,
Padan a Sul
Donzelas roxas poncítias desmaiam,
Périplo
‘Mira-me, Miguel,
P’lo Marão
Amarante, PonteVelha
Bragança, ao Fervença,
Mirandela,
Pocinho,
À Ermida da Senhora dos Montes Ermos,
Cerejais, directa emoção, limpos pardais;
Espantados na cor,
Alcácer,
Palmela, ao castelo, ao fundo o Sado
Évora
Grândola, jardins
Reguengos
Tomar, baptistério de S. João
Entroncamento
Atalaia
Delongo
Santarém, portas do sol
Alte
Fuzeta
Canteiros por janelas…
Albufeira
Olhão,
Angra do Heroísmo
Fogo
Pico
S. Miguel
Fão
Musgos,
Ao Bom Jesus do Monte,
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Santa Luzia
Vila do Conde
Póvoa doVarzim,
Régua
Porto
Cidade Rodrigo
Trancoso
Los Angeles
Santo Domingo
Foz Côa,
A S. Bento, à Rua das Francesinhas,
Aristides Sousa Mendes:
Fátima,
Málaga
Concílio
Mealhada
Tocha
Beja
Guarda
Por Seia,
República ai ó linda
Contra ferocidade contumaz,
Cáceres
Sevilha
VilaVerde
Cultivar
Teatro Sousa Bastos
La Coruña, por 63
Sintra
Lisboa, Príncipe Real
Bornes
1, e 2, e 3,
No tempo da eira fazia poeira.
Lagoa
Monte Agudo
Valença
Curvaceiras
Bonfim
Tomar,Travessa da Misericórdia, 14, 1º, Esqº.
Portugal, em fogo,
VilaViçosa
Irmã Lúcia,
Missa sobre o mundo,
S. Martinho do Bispo
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Santa Cita
A mansa pombinha
Volta da Pedra,
Vale daVilariça
Bencanta
Português marinheiro
Cultivo
Do snooker
Missão,
Bordel,
Meu velho,
Sinfónicos policromáticos chilreios…
Domingo único,
Monsaraz
Comporta
Ser-se
Ilha do Arcanjo
Porto Formoso
Faial
Da Horta à Madalena
Pico revisto
Capelinhos
P’lo Canal
A Senhora da Guia
Flamengos
Angra, ao museu
Jardim Duque da Terceira
De Angra à Praia daVitória
Luz demasiada rota da alegria;
A tentação maior,
Biscoitos
Feteira:
Beata Zdenka Cecília Schelingová
João Paulo I
Santa Cecília
Clara
Clotilde
Seldon,
Madalena
Craveirinha,
Nelson Mandela,
Ai saudade.
Sacada ao fresco
Poemeto
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Perdão
João Cabeçadas
Laertes e InêsVieira
Daniel Pires,
Eusébio, o calafate,
Carrapatoso, declaradamente ateu,
Manuel Bola,
Asdrúbal,
Portugal Silveira
Luíz Pacheco
João Calceteiro,
Se, amor, pra conquistar-te,
Achamo-nos, um Domingo de Páscoa, numa terra desconhecida.
Livro de horas
Amacia o coração roupa ajustada,
Crê,
Num qualquer recanto
Meu céu
Estremadura
Carmelo de Lisieux
Bocage
Granja
Burga
Nazo
Torrão,
Cabo dos Cabos
Estádio, em Braga
Nem fiz guerra nem sei guerra.
Sertã,
O indizível
’Stou cá,
Que mais sacar aos bolsos
JoséViana,
Vale Manso
Sardoal, ao alto templo,
Na Herdade do Esporão,
Por Janeiro, junquilhos no balseiro;
Lisboa vista da ponte
Vouzela
Alexandrina, para o Cristo Eucarístico:
As pedras da minha rua
Enlaçados,
Alvorecerem as flores
Findo meu erro comigo,
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Não ligues, amor,
Em Manteigas, um repuxo,
Gouveia, largo de S. Pedro
Belmonte,
Fugirem ruas
A cor
Episódicos Circunstanciais
Sinfonia
Uma, duas, três, vinte, vinte e quatro velas ardidas.
O bruto avantajado cão do prédio
Afanado-me à ligeira empresa
Abrindo a Bíblia
Em extremo atenta à leitura,
Diogo, motorista,
De eléctrico até à Foz
Ida ao IPO
Glorioso tempo do desporto
Prenúncio de Outono
CEE
Os que vêm da dor directamente
Balões, balões! Prò menino, e prà menina!
João Cabral de Melo Neto
Alcoolismo e contradições da dependência
Aos dezanove dias do mês de Dezembro,
SOS
Amores difíceis
A incrível bailarina, meu par,
Estuário das leves ondulações,
Com seu gri-gri insistente,
Escrivaninha das horas quietas:
O Diabo tem cornos?
Quando o castanheiro do quintal floriu,
O carteiro Candeias,
Raúl, o negro soba,
Campos da bola
Habitadas casas
Viagens
Então, muito bom dia.
A uns sapatos luva que meu pai me comprou
Reina gran confusão no estaminé:
O crava Rogélio,
Pesquisadores da anedota
Padeiro Moreira sabe bem a história da 4ª classe.
Aquela cientista viveu, anos sessenta, no Quénia selvagem,
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Após chuva,
Neuza
Bucólica
Para Einstein,
Domingo passado,
O Silva contador não suporta vozearia.
Carros roubados, outros com portas ou rodas arrancadas,
Impertinente saudade
Canto à Empresa Carlos Costa
Luta Infame
Nomes
Queridas graças,
‘A estrela de Belém,
Quando o Reino de Deus
Multidão dos meninos,
O cobrador de quotas do Clube de Campismo da Gambia
A rapariguinha
Tarefas para o partido
Boi exausto
Filha,
Uma boa noite,
Para que quero eu a manhã que vem?
Pedrinhas da calçada desenhadas,
Yolanda,
Traseiras do liceu, 4 da manhã
Cândido Guerreiro,
Rua Infante Santo
Alguém grita dentre silêncio.
Moçoila,
De ir corrigindo versos
Lembras-te
Razão balançada ao suceder
Com as mãos seguro, o livro
Na noite dos planetas alinhados,
‘Er sieht nur Sterne, Sterne!’
A pomba do Santo ’Spríto
Está cá um encantamento por aqui!
Criança palestiniana fardada a kamikaze
Regresso às hortênsias descoloridas,
Com a Clara Pinto Correia e o escritor mirandês
Cigarra canta,
Tu outra vez, fatal Pessoa?
O que me dão:
Foste mesmo um menino,
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Dulcinea del Toboso
Ciganos violinos traduzindo o Danúbio fotográfico,
Quando a cadelinha se estendia ao sol,
Árvores, espreguiçando-se,
O lugar em que estás,
Os poetas sentaram-se.
Poesia, tratasse-te por tu,
Sento-me na casa.
O Eterno Pater,
Saudosa pátria…
Antiquíssima história, velha como obrar
Mysteria Lucis
Grunhe porco,
Cócórócas, galaroz?
Arrulha pomba
Zurras, burro?
Busca, rafeiro,
Pula, macaco,
Alça nariz girafa,
Orca tonta,
Forças voo, cegonha?
Rato anafado
Lebre saltadora
Borboleta cega,
Vaca leiteira
Insecto seco,
Formiga,
Poeira,
Água, bolbo,
Pardal
Macieiras,
Resfolgas, coelhito?
‘A saudade saudadinha
A amiga saudade
Fui menino, sou menino,
Não chores, madrinha,
Teu retrato, pai, no coração do mundo;
Geométrico tecer
Aquela clareira
Da indecisão
Meus encantos:
Olha
Lua cheia,
Mais vale
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Prà ’qui a noite boa, quente no Inverno,
Porta dentro,
O nosso coveiro
Jornalismo
Réstia florida,
Após decepcionantes ilusões,
A minha luta é esta:
Animal ferido,
Ancilla Domini
Saciado com a flor da farinha
Hoje é Sábado, ou Domingo?
Caleidoscópio
Opunha uma tal resistência à propaganda
Melomania
Diotima:
Elementar, meu caroWatson!
Uma tesoura de mola na sequência infindável.
No balanço
As só palavras fazem o poema, moram nele dentro, serenidade
Gershwin, um americano em Paris,
Elogio do sono
Porque descuidado
Nas íngremes encostas batidas ao sol,
A mulher, na meia-idade, reduz a pó, por acinte percepção,
Veleiros
O sonho interpela-nos,
Aranhinha,
Sebastião, poeta moço,
A uma hora destas,
Prà rede,
Jardins d’água e flores,
Dá gosto ver correr o azeite.
Cai em meus braços,
A barba por fazer, quatro cafés bebidos,
Contigo, pomba minha,
Os pobres, à inópia das cidades,
Queres ver?
Quotidiano puro, e evasão,
‘L’art pour quelques-uns,
Abria o livrinho,
Cobras
Comer da mão de Deus
Premir teclas,
Acrescendo sentidos a reapreciadas palavras,
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Outubro/1917
Gata em telhado em zinco
Miúdas formiguinhas, as letrinhas se encaminham.
Sons associam-se,
Pórtico
Tragédia
Notícia poema registo de última hora
Reúnam-se as palavras
Palmeira,
O lobo-do-mar,
Qual seixo interminamente rolado,
As pedras iluminadas…
Róseas velhas,
Pudesse ser controlador aéreo,
Platão, Cristo, Paulo
Agostinho
O de Assis pai
Maximiliano Kolbe
Henrique Navegador
Tenho ali um docinho para ti!
Mário Soares
Bento XVI
Nevões
Calma pescaria
No golfe,
Lógica do sonho
No quarto,
Outra manhã
Meio-dia,
Meia tarde,
Artérias
Na canoa,
Montanhismo
Tijolo a tijolo sobre o solo,
Arcanos do coração
Hipismo
Que graça terá
Por Asa-Delta alçado,
Esqui
O amante dos dicionários
Voleibol de praia
Nascer e morrer o claro
O espeleólogo
P’lo bar
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Gaivotas bicam peixe à flor da água,
Arquitectura
Boxe
Pardalito, meu irmão, vem cair na minha mão.
Aux Alpes
‘Meus amigos, que tristeza nascer em Portugal!’
Podes morrer, que o sol continuará resplendendo,
Lei de talião
Mandamento Novo
Onde o destino dos poetas é tão só,
Tejo,
Abelha, p’las flores sardinheiras,
Vinho,
Leite,
Queijo,
Iogurte,
Devaneio trivial
Vexata quaestio
Sólida árvore
‘Restauremos a poesia em Cristo!’
Poetar é rezar,
Portalegre, museu da tapeçaria
‘O justo viverá pela fé.’
Que tens no Algarve,
Tropeças nos sinais
Templo de Milreu,
Vou para Casa
Todos os anos
Fátima, Rainha,
Louvor da luz
Quem da pompa incomparável
Com saudades repleto eterniza-se o entardecer.
Folhagem d’árvores bailando ao quê da luz do sul.
Branco esfuziante a nascente;
Que cogitam pardos patos
Barcos atracados, cordeiros pascendo;
Das giestas
Rumo vão
‘El mar del corazón late despacio,
‘Por cada flor estrangulada
‘As estrelas mortas apagam-se aos molhos.
‘Bénie sois-tu, âpre Matière,
Um último raio de sol sumido,
A claridade plenificando-se,
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‘Sol nulo dos dias vãos,
Lobo em covil, o coiraçado poeta,
Gris e ocre a paisagem, cenário dos dias,
Talvez por lá tenhamos andado ao sol e água,
Hoje, à plenitude do espírito,
Reciclagem
Olha árvores
Imprime Tu em meu poema Teu não tempo.
De hoje em diante
A morte de Empédocles
O todo envolvente eterno,
O gato brinca amanhecendo à luz,
Antemanhã,
Cantos de Intervenção
Pragmático afã em pôr malvados na ordem,
O miolo do pão
Zeca
Cada vez mais perto do fim,
‘Feliz gente: Com duas realidades.
‘Viver estranho e isolado
Vitor Baptista
‘Remorso, comigo mesmo, Portugal.’
Quando chegará a tua festa fraternal?
Meu tão fundo país!
Cada pedra sobre cada pedra
Covardia
As Cidades de Israel
Ruir o interior dos ouvidos - tabiques - areia - cal - sons esquecidos.
Seguindo o casario,
Ora a cidade raramente igual,
Donde me ocorre aquele R.
Gotas de água nos vidros fixas.
Semblantes escondidos
Se tudo ruiu,
Repetidamente,
O mundo tumultuoso do sangue,
Madame Maar,
A contemplação aborrecida
Ah, teu devastado olhar
Os jogos infinitos,
Teia de aranha
Sombra intocada
Nem o abandono inútil,
Os palhaços aos empurrões,
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Para a mulher povo, que não é notícia,
Acontece-me
Páscoa do morrer dormindo.
Sons abrem janelas,
Mulher,
Ao redor da vogal O
Perdeu o nome a existência, disco rolando.
Digo-te
Tarde nua no jardim
É tua a praça,
Alegria d’amar
Eu, na rua B. Sequeira,
Na cidade fechada,
Anne,
Dizes não sei que,
Verdes anos
Desperta,
Manhã dum pároco
Vou a um outro dia,
Nome é dizer mar, é dizer ar, e nomear,
É o serviço de cada…
Cidade de teu cais,
Plantas dos pés assentes sobre este pedaço de terra,
Parábola
Os alados
Será que os anjos realmente pisam a terra do pão fluindo no vento?
Guia-te o sonho ao desassombro,
Folhas tremulantes,
Já as cegonhas se postavam em seus ninhos,
No olmo
Os melhores damascos do mundo
Amontoam-se os livros, as caixas, os isqueiros.
As voltas que dê
Transparências:
Vem de bem longe,
Escurecendo a cidade
Caminhos,
Mordi um dos teus cabelos.
O mar nos ouvidos,
Brando ser,
O meu coração mora nas terras altas.
À janela não assomas;
Passava através do parque, pensando apenas vê-la;
Turvo, nenhum,
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Uma vaga saudade,
Dá trabalho ter a casa em dia.
Entretecido nas pequenas rotinas,
Não esqueças as ruas prà praceta.
Trouxeste sabor a mel
Também das horas os nomes surgem mensageiros,
A maior alegria de Isiéli,
Lembrar-te ainda na varanda,
Branco / versus / Castanho
Senhor do Bonfim
A verdade far-vos-á livres!
A ti, sentinela, constituo vigilante da Israel Família.
Forte, subterrânea convulsão, repentino estrondo surdo.
De ora em diante, José,
O zelo de querer-te,
Alegria profunda,
Som ante a mesa,
O amante dos tapetes
Adormecida
Alargam-se-me os montes,
Através do Largo de Jesus, à chuva doVerão,
Pena
Chanson des vieux amants
Solo de trompete
Terra,
Uma, duas flores lilás,
He was a friend of mine.
Chiarem
Baloiçar, em corda, em U,
Lembrar
Um bocado de lua
À Biblioteca Babel,
Meu país, morto sol, pão exangue,
À sombra d’árvore alguém descansa;
Capela
Cercanias
Dentro ouço e sento-me;
No coração, que Deus conhece,
A tarde toda o avô contava histórias.
À flor nua
Fina aragem
Dedilhados
Deitados na palha,
Fazemos uma grande concha, dedos entrecruzados.
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Onde és,
Cinza a cinza,
Porque
Tanto enlevo
Chuva no alcatrão, alma latejante.
A moça me espera, é tirar o poema;
Sair.
No tempo das suaves raparigas,
Querer bem aos luminosos aranhões
Manhã serena, Stockhausen debaixo da cama,
Tenho para ti que o cinamomo Bilhar às três tabelas
Cortinados no vento
Linda pra morrer
A pátria a terra,
Ágapê
A cal das paredes Il y a
‘Tu a única e eu - outro que não eu - ouço as ervas do teu riso.’
Percorres ruas,
Sonos dormidos
Relera Joyce, no terraço.
O ser vem à cor:
Antigo problema o analfabetismo Jarra da roxa luz,
Na vidraça,
Talho poemas com blocos de pedra,
Os terraços, os montes, a amplidão,
Não vou dizer-te quanto te amo.
A esperança de ver-te, se der por isso.
Josef K.
Ao lado da criada velha,
Que os pobres trabalham cedo algum poeta escreveu.
Aujourd’hui je suis loin, mais je reviendrai un jour.
Hulot,
Mesma quietude a dos pulmões Como se estivéssemos nus,
Ruir interior,
No obscuro quarto,
Da usina
Mesmo ali um rapaz,
Meu louco amor,
Ossos quebrados
Dos cerdeiros
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Era anjo ou lua?
A espada caída, ira justa.
Mel,
A avenida subvertida
Eis que estou morto,
Ar
‘O teu sorriso
Algo avoluma distâncias,
António, o poeta louco,
As várias palavras por estantes debatendo-se,
Vivaldi,
Frescas, redondas,
Sortes
Perto de Coimbra,
Conviemos
Em Teu passo aéreo
A rede balança
O bom papa João,
Pipilarem
Caímos à entrada.
Joga-se ténis;
É possível que às pessoas enquanto tais os gestos não contem,
De cansados
Ode final
Trânsito, e vidas esquecidas.
Labirintos, santuários, arquivos, luzeiros, instâncias, fascínio
A cara em óleo,
Escondida na margem do Sabor,
Rememorando o Menino das linguagens e das ubiquidades,
Achamo-nos cá em quase trevas;
Largos gestos
Carlo e Dora
Chegara, manhã cedo.
Estava a casa vazia, o quarto nu,
O dinheiro contado.
Pode sair!
Celeste tomara conta da sua vida
O entardecer nas árvores
Pastorinha veio às flores,
Lua, mar, sonho estar contigo,
Gosto da noite escura
O bom Deus
Scherzo
Embebida no sangue dos inumeráveis mártires, a última bandeira
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Balbúrdia de crianças,
Senhora do grande livro,
Desmaiada lua, não aclares meu rosto até à cinza que morte é;
Árvores magríssimas,
À geral indiferença
Que não esqueço aqueles amigos desconhecidos;
Sei tanto sítio onde vermo-nos,
Um fim de tarde, na praia,
Lembrar-te a rua,
Estrada fora,
Luz esbatendo-se.
A Oriente, a Estrela.
Absoluta plenitude e solidão,
A poesia da relva,
Corre o vento, e vem até aqui
Tarda a morte me aconteça,
D. Sebastião, ínclito demandante do Graal,
Oxalá
Prà ’qui
Tarde sentada,
Mãos a erguer,
1º de Maio,
Do sonho
Sei a estrela
Sussurro divino
Astronomia
Somos,
Raciocínios
Estações do Peregrino
Estações
Estações revisitadas
Simples Orações
Anunciação
Fátima
Nós te louvamos e bendizemos, Imaculada,
Bendita, sempre flor, Eucaristia,
Exaltado seja O Santo Rosto.
António, Clara, repeti, connosco, o canto ao irmão sol,
Porque desde há milénios Natal,
Mereçamos, na Paixão do Cristo,
Porque o cedro foi arrancado.
Teus, inabalavelmente até aos remotos fins,
‘Em que espelho ficou perdida a minha face?’
Os pais dos teus pais levam-te Deus dentro.
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Kyrie
‘Não deixeis emudecer a boca dos que Te louvam.’
IHS
‘Se não fosse esta certeza,
Vede como se amam.
’Inda o anterior canto
Espírito Divino,
Tanto me machucaram as feridas vivas.
‘Maria Imaculada,
Aqui estás inteiro,
A plenitude
Jesus,
Amar o grande mar!
Maria,
Porque na Fé de Avós
Santo António, meu terrível,
Fecha-se o livro, solta-se louvor.
Que mais pedir, Companheira?
Também Através da Poesia se Constrói a Paz
Dos entrechos a dois,
Da eterna novidade
Do inelutável quotidiano
Estamos no mesmo barco:
‘Eu ainda menino’
‘O espectáculo mais bonito de ver,
‘Disse-to pelas nuvens, pelas árvores do mar,
‘O homem não existe em si, mas para Deus.’
Imensa Mesa, Imensa Alegria
Dêem-me pão que baste a minha fome,
Nunca agradeceremos bastante
Paloma colombina,
Des maisons à cigarettes et à musique…
Lidos Clássicos
Porque vivemos os emparedados, sem árvores,
‘’Té Santa Clara, além ar.’
‘Tiram ouro do nariz os poetas.’
Auto-retrato em glosa ao do Bocage
Num sonho todo feito de incerteza,
Elle est retrouvée. Quoi? L’Éternité.
‘‘Minha mesa de café.
‘Tratem do governo,
P’la janela réstia de espaço arborizado.
Ver, condoer-se, estar perto, erguer mãos.
‘A vida é feita de nadas,
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‘Co’a calma, as aves passam p’la lonjura.’
‘Não era o vulgar brilho da beleza,
‘P’la acção do Espírito
Entre las flores
‘Sôbolos rios que vão,
‘Yo solo vivo
‘O silêncio é tão longo
O vento mia,
Até à alfândega da fé
Ai verde rio.
Fale português o Oriente da vida!
‘Quero por força ir de burro.’
‘Vi uma noiva entrar num automóvel.’
Sant’António, meu santinho,
Fique claro o ar,
Que choras,
Ah, o Camilo!
‘Adeus, eu vou com as aves!’
‘Aquela triste e leda madrugada,
Pascoaes
‘Se não me lembrar de ti,
‘Quando de minhas mágoas a comprida
‘Sedia-m’eu en San Simion...’
Os maus vi sempre nadar
Estrelinha perdida num céu,
‘Gato que brincas na rua
Continuamos vendo novidades,
Quase delida é a fim da tarde.
Paráfrase a Jorge de Sena
Regresso às minhas plantinhas,
Já os mortos se apartam deslumbrados,
Oitava
Na luz dissolvo o olhar.
Das profundas clamei
Das lágrimas ao riso
Madre, meu amigo
Flor santa pobreza,
Eis-me no meu melhor:
‘Aqui dos largos males breve história.’
Comunhão
Outra vez acendera um cigarro.
O ondeante azul
Uma intensa alegria
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