Autoridade, Solidariedade e Formação dos

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Autoridade, Solidariedade e Formação dos
Autoridade, Solidariedade e Formação dos Estados Nacionais: as
abordagens de Reinhard Bendix e Charles Tilly
Luciana Teixeira de Souza Leão 1
Resumo
Este artigo busca realizar uma síntese das abordagens de Reinhard Bendix e
Charles Tilly sobre a emergência dos Estados nacionais na Europa, com atenção
especial para a forma com que os autores exploram a interação entre autoridade e
solidariedade. Além disso, apresenta as principais características da linha da
sociologia política na qual os autores estão inseridos, qual seja, a sociologia
histórico-comparada, destacando a interseção entre teoria e história e o foco dado
aos processos de mudança social de longa duração que pautam as preocupações
dos estudiosos deste campo. Por fim, conclui com uma breve discussão sobre a
relevância desses estudos para a compreensão das dinâmicas sociais do mundo
contemporâneo.
Palavras-chave: autoridade, solidariedade, Estados nacionais, sociologia histórica.
Authority, Solidarity and State-Making: Reinhard Bendix and Charles Tilly’s
approaches
Abstract
This paper intends to analyze Reinhard Bendix and Charles Tilly’s approaches to the
state-making process in Europe, with a special focus on the way that these authors
explore the intersection between authority and solidarity. Also, it presents the main
characteristics of historical-comparative sociology, the field of political sociology
that these authors are affiliated to, highlighting the intersection between theory and
history, and the focus on large social change processes that guide the efforts of
scholars in this field. Finally, it finishes with a discussion about the relevance of
these studies to understand the social dynamics of the contemporary world.
Keywords: authority, solidarity, national states, historical sociology.
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Mestranda em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia e
Antropologia (PPGSA/IFCS/UFRJ).
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Introdução
Os cientistas sociais, quando questionados sobre como é possível que uma
infinidade de atores independentes, com interesses e motivações diferentes,
possam interagir de formas múltiplas e ainda produzir algo próximo de uma ordem
social,
tendem
a
basear
suas
respostas
em
modelos
que
simplificam
a
complexidade da realidade social. Conforme aprendemos com Weber (2001), a
infinitude da vida cultural requer um recorte analítico por parte do observador para
que este possa ter qualquer pretensão de interpretação do mundo social. Nesse
sentido, as categorias de Estado, sociedade e mercado, e os seus respectivos
princípios orientadores – autoridade, solidariedade e interesse – representam uma
das tentativas que os cientistas sociais utilizam para pensar a questão da ordem
social nas sociedades modernas (Wolfe, 1989; Streeck & Schimitter, 1985).
A
sociologia
política,
em
especial,
por
conferir
centralidade
ao
entrelaçamento das formas de organização política com as relações sociais,
apresenta diferentes modelos de interação entre as três categorias. Ainda que as
interpretações divirjam em relação à centralidade analítica que atribuem para cada
uma das categorias, ou em relação à ênfase nas complementaridades ou nos
conflitos entre elas, os autores, em sua maioria, utilizam o Estado-nação como
unidade de análise básica para estudar a ordem social moderna. A peculiaridade
deste modelo reside na equação entre Estado e nação ou, em outras palavras, na
sobreposição das fronteiras do Estado às da sociedade. O Estado nacional, contudo,
não deve ser confundido com uma forma acabada de organização social, e deve ser
interpretado apenas na medida em que se refere a um processo contínuo, sempre
condicionado pelas singularidades históricas (Reis, 1998).
Nesta linha, o objetivo do presente trabalho é realizar uma síntese das
abordagens de Reinhard Bendix e Charles Tilly sobre a emergência dos Estados
nacionais na Europa, com atenção especial para a forma com que os autores
exploram a interação entre autoridade e solidariedade. Para tanto, inicialmente,
apresento as principais características da linha da sociologia política na qual os
autores estão inseridos, qual seja, a sociologia histórico-comparada. Procuro
ilustrar a interseção entre teoria e história e o foco dado aos processos de mudança
social de longa duração que pautam as preocupações dos estudiosos deste campo.
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A partir desta exposição, perscruto a abordagem de Charles Tilly sobre a
formação dos Estados nacionais na Europa. Demonstro que este autor prioriza a
análise da construção da autoridade e vincula o desenvolvimento da cidadania aos
encargos que os soberanos assumiram para custear os esforços de guerra. Em
seguida,
apresento
a
formulação
elaborada
por
Bendix,
salientando
as
proximidades e os distanciamentos em relação à perspectiva de Tilly. Abordo, em
especial, a importância que este autor atribui à dimensão ideológica e ao
entrelaçamento das categorias de autoridade e de solidariedade na emergência do
Estado-nação.
Por fim, realizo uma breve discussão sobre a relevância destes estudos para
a compreensão das dinâmicas sociais do mundo contemporâneo.
Sociologia Macro-histórica Comparada – a interseção entre teoria e história
Desde o seu alvorecer no início do século XIX a produção sociológica é
marcada pela preocupação com as causas e as consequências das grandes
transformações sociais que moldam o momento histórico em que estão inseridos os
cientistas sociais. Os sociólogos clássicos – Weber, Marx e Durkheim – por
exemplo, concentraram grande parte dos seus esforços analíticos na compreensão
dos
processos
de
crescente
burocratização,
industrialização
e
urbanização
característicos de suas épocas (Abrams, 1980). De forma semelhante, estudos
relacionados ao desenvolvimento e à modernização dominaram a sociologia
brasileira nas décadas de 50 e 60, período em que os impactos do projeto
desenvolvimentista do Estado brasileiro já podiam ser plenamente observados
(Villas Bôas, 2006).
Tal constatação não é surpreendente se considerarmos que toda a
construção de conhecimento das ciências sociais é historicamente condicionada. Em
outras palavras, os cientistas sociais inspiram-se em experiências históricas
concretas para estabelecer conceitos e generalizações, assim como os objetos e os
problemas sociológicos são sempre históricos, pois são determinados pela realidade
empírica na qual os autores estão inseridos (Reis, 1998). Portanto, como o universo
social é inexaurível e está constantemente em mutação, todo o arcabouço teórico
das ciências sociais está sujeito a reinterpretações e alterações, e depende de
contextualizações históricas e culturais.
Em dissonância com esta perspectiva, durante parte do século XX os
cientistas sociais procuraram desatrelar-se de suas considerações históricas, e
passaram
a
postular
teorias
e
conceitos
com
pretensões
universalistas,
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desassociadas de tempo e espaço específicos, com o intuito de legitimar a
sociologia como uma verdadeira ciência. Particularmente, a sociologia norteamericana das décadas de 50 e 60, liderada pelo funcionalismo estrutural de
Parsons e pelo encantamento inicial com as técnicas de survey, foi invadida por
aspirações aistóricas (Monsma, 1985). Neste contexto, a explicação para os amplos
processos de mudança social passou a se restringir, por exemplo, a enumerar todas
as condições que precisariam existir para que um Estado nacional emergisse,
negligenciando o processo histórico típico de sua formação.
No mesmo período, o debate acerca da modernização era dominado por
teorias que traçavam trajetórias e etapas necessárias de mudanças políticas e
econômicas para a superação da ordem social tradicional. Os estudos, em sua
maioria, descreviam correlações entre variáveis, através das quais pré-requisitos
eram estabelecidos, os quais, uma vez alcançados, levariam inevitavelmente à
modernização, sem explicitarem nenhuma preocupação com o timing e com as
sequências históricas características dos processos de mudança social (Bendix,
1996).
As abordagens evolucionistas de modernização pautavam o modelo ideal de
“moderno” e de desenvolvimento na experiência da Europa ocidental, descrevendo
o caso europeu como um processo contínuo de racionalização do governo,
ampliação da participação política e pacificação das massas. Modernização,
portanto, passou muitas vezes a ser confundida com ocidentalização e a ser vista
como um processo inevitável pelo qual todas as sociedades passariam, e não como
um resultado contingente de fatores históricos que não se repetiriam (Tilly, 1975).
Como reação a essas tendências, autores como Reinhard Bendix e Charles Tilly,
entre outros, buscaram resgatar a importância da perspectiva histórica para a
explicação dos processos e das estruturas sociais de longa duração.
Segundo Skocpol (2004), os estudos sociológicos pautados na abordagem
histórica apresentam as seguintes características: (i) levantam questões sobre
estruturas e processos sociais situados concretamente no tempo e no espaço; (ii)
priorizam as sequências históricas para explicar os resultados dos processos, ou
seja, consideram que a ordem em que ocorrem os eventos afeta os seus
resultados; (iii) atentam para a inter-relação de ações significativas e contextos
estruturais para explicitar os resultados intencionais e não-intencionais das ações
individuais e das transformações sociais; (iv) interessam-se pelas diferenças
culturais e sociais das estruturas que analisam; e (v) não veem o passado como
uma história com um único desenvolvimento possível ou um conjunto de
sequências padronizadas, mas o compreendem como o resultado de um conjunto
contingente de fatores.
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Além destas características, o método comparativo configura-se como um
aspecto marcante dos estudos da sociologia macro-histórica. Bendix (1996), por
exemplo, defende o uso de comparações para a compreensão de uma estrutura
pelo contraste com outra, e por lançar luz sobre as dimensões históricas e sociais
singulares de cada sociedade. O autor, contudo, ressalta que, ao fazer comparações
e
contrastes
entre
fenômenos
semelhantes
que
ocorreram
em
diferentes
sociedades, o sociólogo não deve se esquecer da artificialidade das distinções
conceituais e sempre deve confrontar os tipos-ideais com as evidências empíricas.
De forma semelhante, Tilly (1984) propõe que amplas estruturas e
processos sociais devem ser estudados através de grandes comparações e atenta
para os cuidados necessários com esta opção metodológica. Segundo o autor, o
pesquisador precisa focar em estruturas e processos específicos de um determinado
sistema mundial e propor generalizações baseadas em considerações históricas
destes sistemas. Com a intenção de encontrar regularidades nesses processos e
estruturas específicos, o pesquisador deve atentar para um número pequeno de
casos, observá-los cuidadosamente e certificar-se de que está comparando a
mesma unidade de análise no tempo.
O método comparativo pode ser usado para diferentes finalidades, variando
conforme a relação entre evidência histórica e teoria que cada autor queira
estabelecer. Tilly (1984) distingue quatro estratégias possíveis. Primeiro, a
comparação abre a possibilidade de ressaltar a singularidade de cada estrutura
histórica e sugerir o alcance limitado da teoria. Esta seria a estratégia adotada por
Bendix. Em contraste, o objetivo da comparação pode ser encontrar uniformidades
entre as unidades analisadas e, portanto, sugerir elaborações teóricas. Em terceiro
lugar, o pesquisador pode contrastar a ocorrência de um fenômeno em diferentes
estruturas em busca de padrões de variação. O estudo de Barrington Moore se
encaixaria neste tipo, pois propõe uma teoria inspirada nas singularidades de cada
caso para explicar por que algumas sociedades se tornaram ditaduras e outras,
democracias. Por fim, a comparação pode ser totalizante, com a finalidade de
contrastar a função de diferentes partes de um sistema para compreender o seu
funcionamento global.
Em suma, o esforço teórico-comparativo usado pela sociologia macrohistórica é oportuno tanto para buscar explicações teóricas e lançar luz sobre as
particularidades históricas, como para estabelecer, a partir dos casos singulares,
generalizações (Reis, 1998).
Apresentadas as principais formulações propostas pela sociologia macrohistórica comparada, nas próximas seções explorarei os trabalhos clássicos sobre a
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formação dos Estados nacionais europeus de Charles Tilly e Reinhard Bendix, dois
autores expoentes neste campo.
A formação dos Estados nacionais a partir da ótica de Charles Tilly
A principal característica dos estudos de Charles Tilly sobre a formação dos
Estados nacionais é a prioridade atribuída ao papel que as guerras e os
preparativos para as guerras tiveram no processo de state-making na Europa. Toda
a argumentação deste autor sobre a natureza e a estrutura dos Estados nacionais
deriva do tipo de aliança formada entre os governantes e as classes dominantes, e
do caráter da resistência dos cidadãos comuns à extração de recursos por parte do
Estado para a organização do monopólio dos meios de coerção. Conforme
demonstrarei a seguir, Tilly não concebe a construção do Estado e a da nação como
processos concomitantes, e relaciona o desenrolar do segundo processo como
consequência do primeiro.
Tilly (1975, 1996) adota uma visão prospectiva para interpretar a formação
dos Estados europeus, a qual consiste em eleger um ponto arbitrário de referência
no tempo, no seu caso 1500 d.C., para, a partir das condições sócio-históricas
específicas desta data, definir os fatores que levaram alguns estados a desaparecer
e outros a se consolidar como Estados nacionais. O mérito desta abordagem é
atentar para as formas alternativas de organização política possíveis naquele
momento – como as cidades-estados, as federações e os impérios – e explicar
porque o Estado nacional tornou-se a estrutura política dominante.
Segundo o autor (1975), o território europeu em 1500 apresentava algumas
condições comuns que permitiram que o processo de formação do Estado no
continente fosse bastante uniforme. Em primeiro lugar, os europeus desfrutavam
de uma relativa homogeneidade cultural, resultante da convergência de idiomas,
leis, religiões, práticas administrativas e agrárias estabelecidas previamente pelo
Império Romano. A homogeneidade da população súdita facilitou a unificação dos
modelos organizacionais, a promoção da lealdade e da solidariedade entre os
diferentes grupos populacionais e a implementação de um sistema de comunicação
único, reduzindo os custos de construção do Estado.
Segundo, o continente europeu era constituído por uma base camponesa
desintegrada, submetida aos senhores de terras, responsáveis por fazerem a
mediação entre a população agrária e o soberano. A fragmentação do campo
obrigou os governantes a estabelecerem coalizões e a solucionarem conflitos com
os senhores de terras, os quais se responsabilizavam por exercer coerção e
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dominação sobre os camponeses. Além do mais, a riqueza produzida no mundo
agrário permitiu o desenvolvimento de cidades especializadas no comércio, com
grande concentração e acumulação de capital, fator que seria de importância
fundamental para a emergência dos Estados nacionais.
Por fim, a estrutura política descentralizada e uniforme obrigou os soberanos
a subordinarem ou a destruírem resistências políticas locais para firmar o seu poder
central. O autor destaca dois atores principais que se opuseram à formação dos
Estados nacionais: as assembléias deliberativas das aldeias e diferentes setores da
população, como pessoas insatisfeitas com as imposições tributárias, autoridades
que foram forçadas a dividir ou a abrir mão de seus poderes, e os demais
pretendentes ao poder soberano, como outros príncipes, bispos e cidades livres.
Dadas as condições comuns do território europeu, Tilly questiona o que
levou ao estabelecimento de uma organização política centralizada, controladora de
um território bem-definido e detentora do monopólio dos instrumentos de coerção.
Em outras palavras, quais as razões para que os estados europeus tenham
convergido para variantes do Estado nacional e não para outras formas alternativas
de governo?
Segundo o autor (1996), é necessário compreender a interação entre a
dinâmica do capital e a da coerção para responder a esta questão. Na Europa de
1500, a situação de guerra era permanente. Os governantes ou tentavam expandir
seus territórios e aumentar a faixa da população e de recursos sob o seu comando,
ou buscavam proteger suas terras de ataques militares de outros Estados. Guerras,
no entanto, exigem a mobilização de amplos recursos para serem empreendidas e,
por conseguinte, demandam eficientes mecanismos de extração de recursos da
população. Assim, preparar-se para guerras também significava construir uma
infraestrutura de tributação, abastecimento e administração para garantir recursos
para os empreendimentos militares. Igualmente, caso o soberano fosse bemsucedido nas batalhas, a conquista de territórios implicava a administração das
novas terras, ou seja, na extensão da extração de recursos, na distribuição de bens
e serviços e até no julgamento de disputas para as novas populações súditas.
Nesse sentido, Tilly constata que as estruturas organizacionais centrais dos
Estados nacionais foram criadas como externalidades das práticas extrativas, isto é,
o autor indica que não houve esforços deliberados e intencionais de implementação
de um aparato estatal, mas que este foi constituído como uma consequência nãoplanejada da necessidade de recursos para as guerras.
Os Estados nacionais conseguiram reunir em uma única instituição central as
organizações administrativas, extrativas e militares. Outras formas de estados
priorizaram apenas os esforços de guerra e negligenciaram a administração dos
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territórios ou, no outro extremo, empenharam-se nas atividades comerciais e
financeiras sem se preocuparem com a necessidade de formação de exércitos e a
preparação para as guerras. Assim, não conseguiram centralizar a autoridade em
um território bem-definido da mesma forma que os Estados nacionais.
Conforme a escala das guerras aumentava, os recursos essenciais –
homens, armas, provisões, e dinheiro – necessários para custeá-las multiplicaramse e os esforços extrativos não eram suficientes para cobrir todos os gastos. Por
conseguinte, os governantes que tinham a possibilidade de tomar empréstimos de
capitalistas conseguiram concentrar os meios de coerção em maior grau do que os
soberanos que dependiam apenas da extração de recursos de suas próprias
populações. Assim, Estados que possuíam cidades mercantis em seus territórios,
com alta concentração e acumulação de capital, tinham maior disponibilidade de
crédito e levaram vantagem na formação de exércitos e, consequentemente, nas
guerras.
É importante notar que o autor não trata esse processo como algo planejado
ou inevitável, mas propõe uma explicação probabilística e explora as alternativas
políticas para os Estados nacionais. Segundo Tilly, “é cômodo demais estudar a
formação dos Estados como se fosse uma espécie de engenharia, onde os reis e
seus ministros seriam os engenheiros projetistas” (1996:74), e lista quatro fatores
que impossibilitariam tal “projeto”.
Primeiro, os governantes não tinham em mente nenhum modelo de Estado
específico, apenas vislumbravam manter e ampliar seus domínios. Segundo, os
soberanos não planejaram a criação dos instrumentos organizacionais centrais dos
Estados, estes surgiram como produtos secundários das necessidades mais
imediatas relacionadas à guerra. Terceiro, o sistema internacional de Estados
influenciou a trajetória dos Estados particulares, fator fora do controle dos
soberanos. Por fim, o autor evidencia como a luta e a negociação com as classes
sociais moldaram de forma significativa a forma dos Estados que finalmente
emergiram.
Neste ponto, parece fundamental explicitar como Tilly concebe a interação
entre a estrutura de classes sociais e as suas relações com o Estado. Segundo o
autor, a organização das forças militares, a cobrança de impostos, o policiamento,
o controle da oferta de alimentos e a formação de pessoal técnico consistiram em
atividades difíceis, onerosas e rejeitadas pela maior parte da população. A
resistência a essas atividades aumentou conforme os esforços de guerra e a
subsequente necessidade de recursos foram ampliados, o que obrigou os
governantes a negociarem com a população para controlar a crescente oposição
aos seus governos.
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Daí o autor concluir que as atividades do Estado e as guerras tiveram
profundas implicações para os interesses da população, para a ação coletiva e para
os direitos dos cidadãos:
A intervenção do Estado na vida cotidiana suscitou a ação coletiva
popular, frequentemente sob a forma de resistência ao Estado, mas
algumas vezes assumindo o caráter de novas reivindicações. Quando as
autoridades do Estado tentaram obter recursos e aquiescência, elas, os
outros detentores de poder e grupos de cidadãos comuns negociaram
novos acordos sobre as condições em que o Estado podia extrair ou
controlar, e os tipos de exigências que os detentores de poder ou o povo
comum podiam fazer ao Estado (Tilly, 1996:161).
Observa-se, portanto, que a negociação pelos direitos de cidadania deriva
dos impactos dos esforços de guerra. Segundo Tilly, o governante foi compelido a
negociar com a população para conseguir manter suas atividades militares e, no
processo, os direitos e os deveres dos cidadãos, assim como os do Estado, foram
estabelecidos. O mesmo argumento que o autor utiliza para explicitar os
mecanismos que estabeleceram o aparelho administrativo estatal é aplicado para
explicar a instituição da cidadania: “O núcleo do que hoje denominamos ‘cidadania’,
na verdade, consiste de múltiplas negociações elaboradas pelos governantes e
estabelecidas no curso de suas lutas pelos meios de ação do Estado, principalmente
a guerra” (Tilly, 1996:164). Em outras palavras, Tilly descreve a obtenção dos
direitos de cidadania como encargos não-planejados que os governantes tiveram
que assumir para manter e aumentar a empresa da guerra.
Similarmente, o autor ilustra a passagem do governo indireto, característico
das sociedades tradicionais, para o governo direto, típico dos Estados nacionais, a
partir dos esforços de concentração da coerção. Segundo Tilly, um dos fortes
incentivos que os soberanos tiveram para estabelecer governos diretos teria sido a
necessidade de formar exércitos permanentes recrutados entre a população
nacional. O recrutamento doméstico, alternativo à contratação de mercenários,
seria uma estratégia para reduzir os custos militares. Igualmente, como os poderes
intermediários dificultavam as atividades do Estado e estabeleciam limites ao
volume de recursos extraíveis das populações subordinadas, os governantes
procuraram eliminar as esferas autônomas de poder para estabelecer uma relação
direta com seus súditos.
O processo de instalação do governo direto foi acompanhado por esforços de
homogeneização da população. A expulsão de minorias culturais e a imposição de
um único idioma são exemplos de ações dos governantes nesse sentido. Segundo
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Tilly, as tentativas de homogeneizar a população foram tomadas para facilitar que
os cidadãos comuns se identificassem com os seus governantes e porque estes
perceberam que a unidade cultural aumentaria as probabilidades de as pessoas se
unirem contra as ameaças externas por terem uma identidade comum. Assim, a
construção da identidade nacional esteve atrelada aos contrastes estabelecidos com
os inimigos externos, razão pela qual o autor se refere a um processo de
homogeneização dentro dos Estados e de diferenciação entre Estados característico
da construção do Estado nacional.
A relação direta entre o Estado e a população implicou que os governantes
passassem a ser responsáveis por uma série de provisões para o povo – como
moradia, alimentos, educação e justiça – que antes eram de responsabilidade das
esferas locais e privadas. Este fato, adicionado às negociações com a população
pelos direitos de extração de recursos, levou, conforme já mencionado, os
governantes a se comprometerem com uma série de obrigações e provisões de
bens públicos, além de garantir direitos individuais e instituições representativas.
Nota-se, portanto, que para Tilly a construção do Estado precede a
construção da nação. Segundo este autor, inicialmente, o processo de consolidação
do controle territorial, diferenciação do governo em relação a outras formas de
organizações, centralização e coordenação interna, constituiu os Estados. A
construção nacional surgiu apenas pela necessidade de o Estado angariar o
consentimento de seus membros para uma extração mais intensa de recursos que,
por sua vez, colaborou para a emergência dos Estados nacionais.
Na próxima seção, apresentarei a tese de Reinhard Bendix sobre a formação
dos Estados nacionais. Para tanto, após uma exposição inicial das ideias deste
autor, adotarei uma estratégia comparativa de suas proposições com as de Tilly
para, a partir das divergências e das semelhanças entre os autores, tornar a
proposta de Bendix mais clara.
Reinhard Bendix e a Construção Nacional – proximidades e distanciamentos
em relação à formulação de Charles Tilly
Em Construção Nacional e Cidadania, Reinhard Bendix combina um
detalhado esquema conceitual com considerações históricas para explicar o
processo pelo qual autoridade e solidariedade se entrelaçam na construção do
Estado-nação. De forma similar a Tilly, este autor concentra-se no processo através
do qual uma ordem política fragmentada e dispersa, característica das sociedades
medievais, é gradualmente transformada em uma organização política centralizada.
No entanto, seu estudo é pautado pela preocupação em evidenciar como a
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centralização e burocratização da autoridade pública e a extensão da cidadania
configuraram-se como movimentos concomitantes e interdependentes (Reis, 1996).
Neste ponto, sua explanação afasta-se daquela proposta por Tilly, que não
considera os dois processos como simultâneos.
Os conceitos utilizados por Bendix para explicar a formação do Estado-nação
têm forte inspiração em Weber. O autor utiliza a distinção weberiana entre
autoridade, como categoria que se refere a relações de mando e obediência – o
poder formalmente instaurado pelo Estado – de solidariedade, ou associações,
como
categoria
que
envolve
afinidade
de
interesses
e
reciprocidade
de
expectativas. Defende, por conseguinte, que “do ponto de vista analítico, a
autoridade e a associação constituem esferas de pensamento e de ação
interdependentes, mas autônomas, que coexistem de uma forma ou de outra em
todas as sociedades” (1996:51). A partir desta distinção, o autor sugere que uma
ordem dura enquanto sua legitimidade for compartilhada por aqueles que exercem
a autoridade e aqueles que estão subordinados a ela e, portanto, depende das
relações sociais derivadas da esfera da união de interesses.
Com o respaldo deste quadro teórico, Bendix inicialmente examina o
processo de construção da nação a partir da ótica da expansão da cidadania para
as classes mais baixas. Segundo o autor, nas sociedades pré-modernas, a
autoridade era baseada em uma forma de dominação pautada na posição
hereditária e espiritual. Esta atribuição de status, que determinava o controle da
terra e a participação nos negócios públicos, excluía grande parte da população da
vida política e econômica. Além disso, na ordem tradicional, as relações de
autoridade entre a aristocracia e seus subordinados eram sustentadas pelo senso
de responsabilidade com os súditos, assim como pela obediência e a lealdade
destes à classe dominante.
O processo de formação dos Estados nacionais é marcado pelo surgimento
de uma ordem pautada em novas reciprocidades de direitos e obrigações e
inspirada
pela
disseminação
de
ideias
igualitárias
e
pelo
processo
de
industrialização. Na ordem moderna, as relações de classe passaram a ser
orientadas por um tipo de “autoridade individualista”, baseada em vínculos
impessoais e na lógica meritocrática.
A nova ideologia somada à crença nas forças invisíveis do mercado
determinou, em um primeiro momento, que apenas aqueles bem-sucedidos
economicamente
poderiam
ter
acesso
aos
direitos
de
cidadania.
Com
o
desenvolvimento da economia de mercado e da indústria, a percepção de alienação
política da classe trabalhadora aumentou, levando as classes baixas a reivindicarem
o seu reconhecimento na comunidade política. Nesse sentido, a construção da
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nação esteve atrelada aos processos políticos através dos quais a codificação dos
direitos e dos deveres dos membros considerados cidadãos foi gradualmente
estendida às classes inferiores.
É interessante notar a relação entre igualdade de cidadania e desigualdade
econômica e social proposta por Bendix. Na medida em que a igualdade formal
perante a lei não levou em consideração as grandes desigualdades sociais que
existem em todas as sociedades, diferentes classes possuíam maior ou menor
possibilidade de usufruir dos direitos cívicos. Como tentativa de corrigir essa
desigualdade, os indivíduos associaram-se aos seus semelhantes a fim de
apresentarem suas reivindicações da forma mais efetiva possível. A ironia está no
fato de que a formação dessas várias associações tendeu a repercutir e a
intensificar as desigualdades da estrutura social, ou seja, Bendix constata que a
busca pela igualdade formalmente instituída deu origem, ou trouxe à tona, novas
desigualdades.
Concomitantemente à extensão da cidadania, a burocratização da autoridade
pública moldou a emergência dos Estados europeus. Segundo Bendix, esse
processo é marcado pela substituição de uma autoridade governamental, ligada ao
poder hereditário e à propriedade, por uma burocracia estatal moderna, fundada
nos
princípios
de
hierarquia,
impessoalidade
e
regulamentação
legal
e
administrativa. Nesse novo contexto, o exercício político não é mais atrelado às
disputas pela distribuição de poder soberano, como na ordem tradicional, e passa a
ser relacionado às lutas pela divisão do produto nacional e pela influência sobre as
políticas públicas que afetam essa divisão.
Segundo o autor, o acesso crescente ao emprego púbico e as tentativas de
interferência sobre a implementação das políticas governamentais, características
típicas da burocracia pública moderna, são uma contrapartida para a extensão da
cidadania. Isso porque, como todos os cidadãos são iguais perante a lei, as
qualificações educacionais devem ser o único critério de diferenciação da
possibilidade de emprego público. Similarmente, com a conquista do direito de
associação e a ampliação da atuação do Estado, os indivíduos procuram organizarse em “grupos de interesse” para tentar influenciar a distribuição dos recursos
públicos.
Desta forma, na visão de Bendix, por um lado, a concessão dos direitos de
cidadania compensa os indivíduos pelo consentimento em serem governados pelas
leis impessoais da comunidade política nacional e, assim, serve de base para a
legitimidade do exercício da autoridade moderna. Por outro, a burocracia pública
impessoal e hierárquica reflete os efeitos da expansão da cidadania e da estrutura
moderna de classes. Os dois processos são indissociáveis e se determinam
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mutuamente. Conforme já mencionado, esta concepção é diferente daquela
proposta por Tilly, que concebe a construção do Estado e da nação como processos
separados.
Um segundo ponto de divergência entre as formulações destes autores diz
respeito ao tratamento que concedem ao exercício e à formação da autoridade dos
Estados nacionais. De acordo com Tilly, a acumulação e a concentração dos meios
de coerção nas mãos dos governantes e a centralização da estrutura administrativa
são os dois processos centrais que caracterizam a mudança para a estrutura de
poder típica dos Estados modernos. Em seu caso, o exercício da autoridade é
analisado, prioritariamente, pela capacidade de uso da força que os governantes
adquiriram, ou perderam, no processo de state-making.
Bendix, por sua vez, atenta para o poder formalmente instaurado, mas
prioriza a necessidade de legitimar esse poder. Em Kings or People, livro dedicado
ao estudo dos padrões de autoridade, Bendix relaciona autoridade não apenas à
capacidade de exercer coerção, mas também às justificativas que buscam tornar o
uso da força legítimo. Assim, por exemplo, a autoridade dos reis estaria relacionada
não somente ao monopólio dos meios de coerção em seus territórios, mas
principalmente à crença na inviolabilidade de seus poderes e na legitimidade
sagrada de suas posições. De forma similar, a legitimidade dos mandatos
populares, típica dos Estados nacionais, teria sido alcançada através do apelo a
construções
simbólicas,
como
“nação”
e
“soberania
do
povo”,
e
pelo
estabelecimento de uma identidade nacional politizada que legitimou o controle civil
dos órgãos do Estado.
Acredito que a diferença entre o foco nos meios de coerção, característico
dos estudos de Tilly, e na necessidade da legitimidade da autoridade, questão
prioritária para Bendix, deriva de uma terceira divergência entre os autores: a
relevância analítica dada às ideias e aos interesses para interpretar as ações
humanas e as transformações sociais.
No esquema conceitual elaborado por Bendix, é a dimensão ideológica que
viabiliza a constituição da comunidade política ao exercer uma função legitimadora
e atribuidora de sentido. Dois exemplos de argumentos de sua obra ajudam a
explicitar a importância da ideologia no pensamento de Bendix.
O primeiro diz respeito à interpretação da construção da nação na formação
dos Estados europeus. Para Bendix, o principal fator catalisador que permitiu o
desenvolvimento da cidadania foi a disseminação da ideologia igualitária. Segundo
o autor, as ideias são essenciais porque norteiam a ação dos indivíduos e a
reciprocidade de expectativas em uma ordem social. Nesse sentido, a legitimidade
da autoridade tradicional só passou a ser questionada quando a disseminação das
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ideias iluministas levou a população a pôr em xeque a reciprocidade entre direitos e
obrigações da ordem aristocrática. A substituição dos laços tradicionais pelas
identidades nacionais, atreladas aos direitos de cidadania, foi o que viabilizou a
legitimidade da ordem política moderna.
Cabe notar que, na concepção de Bendix, a industrialização é relevante mais
porque facilita a difusão das ideias igualitárias do que pelos seus efeitos
econômicos. Segundo o autor (1996:99), o modo de produção industrial está
relacionado à “alfabetização dos trabalhadores, à divulgação de material impresso
entre eles, à concentração física do trabalho, à maior mobilidade geográfica, e à
despersonalização do emprego”, fatores que, sob a influência das ideias de
igualdade, incitam a mobilização da população. Bendix, dessa forma, afasta-se das
teorias de transformação política que qualificam a comunidade política moderna
como resultado direto das mudanças econômicas nos modos de produção
capitalista.
O segundo exemplo pode ser observado em Kings or People. Nesta obra,
Bendix parte dos diferentes sistemas de crenças para explicitar as bases e as
justificações
do
poder
legítimo
em
cada
civilização.
O
autor
recorre
aos
fundamentos do Cristianismo, do Confucionismo e do Islamismo para interpretar as
diferenças entre as estruturas de autoridade na Europa, na China e no mundo
muçulmano. Demonstra que as três tradições políticas recorrem ao apelo a uma
ordem superior para legitimar o exercício da autoridade, e que a diferença entre
elas decorre de interpretações distintas da relação entre poder transcendental e
autoridade, as obrigações dos súditos e as ideias de poder superior.
Segundo o autor, é importante compreender as cosmologias religiosas nas
quais se legitimou a autoridade política, pois elas afetam todo o desenvolvimento
da estrutura de autoridade posterior, ou seja, a compreensão dos fundamentos da
legitimidade política que caracterizam uma sociedade em determinada época é
fundamental
para
interpretar
a
ação
dos
indivíduos
e
compreender
as
transformações sociais subsequentes.
Tilly (1984:87-96) é bastante crítico quanto à prioridade dada por Bendix às
ideiass e às crenças para explicar o processo de emergência dos Estados nacionais
e as diferentes estruturas de autoridade. De acordo com este autor, com tal escolha
analítica Bendix negligencia atributos fundamentais da formação dos Estados
europeus, como os problemas relacionados com guerras, orçamentos, impostos e
reconciliação de interesses conflitantes que os governos tiveram que enfrentar e
que afetaram a estrutura de poder resultante. Em particular, quanto ao livro Kings
or People, no qual Bendix analisa as mudanças políticas a partir da ótica das classes
dominantes, Tilly critica a negligência com os impactos das ideologias sobre a ação
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e a mobilização de pessoas comuns que, segundo o autor, foram de importância
central para os padrões de autoridade estabelecidos.
Não obstante as diferenças expostas acima, os estudos de Tilly e Bendix
compartilham de muitas características em comum. A mais evidente é a prioridade
atribuída à perspectiva histórica. Aproximam-se também na medida em que
identificam que a peculiaridade dos Estados nacionais europeus reside na
combinação de uma dominação burocrática com o consentimento social baseado na
cidadania. Assim, embora os autores proponham percursos distintos para o
desenvolvimento da autoridade e da solidariedade, as categorias alcançam o
mesmo ponto final de entrelaçamento na forma dos Estados-nação.
Outra semelhança é a proposta de uma explicação probabilística para o
processo de formação dos Estados Nacionais. Como os dois autores moldaram seus
argumentos como uma resposta crítica às generalizações abstratas e às teorias
deterministas da modernização, a ênfase na contingência dos eventos e da
importância das sequências históricas é reforçada diversas vezes em suas obras.
Tilly, por exemplo, utiliza a análise prospectiva com a intenção de evidenciar a
contingência de fatores históricos que levaram à emergência dos Estados nacionais.
Esta escolha é justificada por uma contraposição direta à “falácia do determinismo
retrospectivo” das teorias que partem do resultado histórico, os Estados nacionais
contemporâneos, e procuram no passado as causas de sua formação.
Bendix, por seu turno, em defesa da importância das sequências históricas,
critica as teorias evolucionistas nos seguintes termos:
Atualmente, há muito mais incerteza sobre os objetivos da mudança social
e mais consciência de seus custos. A crença na universalidade dos
estágios evolutivos foi substituída pela compreensão de que o momentum
dos eventos passados e a diversidade das estruturas sociais conduzem a
diferentes caminhos de desenvolvimento, mesmo quando as mudanças de
tecnologia são idênticas (Bendix, 1996:35).
O uso do método comparativo também é uma característica comum das
obras destes autores, ainda que Bendix utilize os contrastes para ressaltar a
singularidade das experiências históricas e Tilly, com uma intenção explicativa.
Com a apresentação dos estudos de Tilly e Bendix, clássicos da sociologia
histórico-comparada, parece lícito afirmar que esta perspectiva nos fornece uma
sólida alternativa tanto para as teorias que propõem trajetórias típicas e etapas
necessárias de modernização política, quanto para as abordagens funcionalistas
sobre a formação dos Estados nacionais. No entanto, para defender a importância
desta abordagem para a produção sociológica, ainda é necessário demonstrar a
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relevância da sociologia-histórica comparada para a compreensão de dinâmicas
sociais contemporâneas, exercício realizado na próxima seção.
A relevância dos estudos da sociologia histórico-comparada para entender
o mundo contemporâneo
Ao longo do trabalho, destaquei as características e os atributos positivos da
perspectiva histórica para os estudos de processos e estruturas sociais, e atentei
pouco para as críticas que usualmente são dirigidas à elaboração teórica da
sociologia histórico-comparada. Portanto, neste ponto, penso ser necessário expor
dois questionamentos recorrentes dirigidos aos estudos da abordagem histórica na
sociologia para, a partir deles, defender a importância heurística desta perspectiva
para as análises de estruturas e de processos característicos da ordem social
contemporânea.
Em primeiro lugar, destacaria a crítica realizada por Goldthorpe (2000) dos
riscos inerentes ao uso das evidências históricas para estabelecer generalizações
teóricas. Segundo este autor, os estudos da macro-sociologia histórica baseiam-se
em relatos obtidos de fontes secundárias – em geral, trabalhos de historiadores –
que não podem ser considerados dados objetivos. Como as interpretações sobre
um mesmo evento histórico podem variar muito, a seleção de qual fonte será usada
pelo autor tende a ser muito arbitrária e a variar conforme o ponto que se queira
estabelecer. Portanto, na visão de Goldthorpe, os estudos que pretendem propor
construções teóricas a partir de uma visão positivista das fontes históricas sempre
terão aplicabilidade limitada.
Acredito que as críticas de Goldthorpe procedem na medida em que
concordo que o uso de exemplos históricos para testar hipóteses teóricas não é um
método de validação para explicações sociológicas. No entanto, penso que esta
crítica não desqualifica o uso da perspectiva histórica, apenas atenta para a
necessidade de uma exposição honesta dos limites das fontes secundárias, dos
critérios de escolha entre as diferentes interpretações históricas e, principalmente,
do arcabouço teórico sobre qual o pesquisador se apoia para analisar as evidências.
Em segundo lugar, a relevância dos estudos históricos de estruturas e
processos sociais para pensar questões do presente é muito questionada. Em
especial, a importância heurística de trabalhos como os de Bendix e Tilly, que
atentam para a particularidade e a contingência da sequência histórica de formação
dos Estados nacionais, com foco em processos que aconteceram há séculos atrás, é
alvo de muitas objeções.
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Essas críticas estão relacionadas à percepção de que a abordagem histórica,
por ser sempre singular, estaria presa às particularidades e seria incompatível com
a elaboração teórica. Acredito, contudo, que as obras estudadas neste trabalho
comprovam que tal objeção não tem procedência. Ambos os autores procuram
transcender a singularidade do contexto histórico que analisam para propor o
refinamento de conceitos, teorias e métodos sociológicos existentes.
É este o objetivo de Bendix, por exemplo, quando propõe a reavaliação das
categorias de tradição e modernidade, formuladas a partir da experiência ocidental,
para ajudar a compreender o processo de mudança social em outras partes do
mundo. Assim, se hoje parece trivial a noção de que a modernização é um processo
contínuo, em que elementos tradicionais e modernos se combinam de forma
singular em cada sociedade, é porque estudos como os de Bendix nos ajudaram a
perceber a relevância das sequências e das particularidades históricas para o
entendimento dos processos sociais.
Além disso, é importante lembrar que é a partir da compreensão dos
processos históricos que podemos dar sentido à ordem social em que vivemos. Tilly
(1984) atenta para este ponto ao destacar como a criação do sistema mundial de
Estados nacionais e a formação do sistema capitalista global são os dois grandes
processos que caracterizam a nossa época. Para este autor, portanto, a validade de
qualquer elaboração teórica sobre amplas estruturas e transformações observáveis
no mundo contemporâneo deve levar em conta, direta ou indiretamente, a
dinâmica desses dois processos.
Outro aspecto relevante das formulações teóricas propostas pelos estudos
históricos diz respeito às possibilidades que abrem para inovações metodológicas.
Nesse sentido, uma das apropriações mais estimulantes da perspectiva da
sociologia histórico-comparada é aquela feita por De Swaan (1988). Com o intuito
de explicar o processo de coletivização do Estado de bem-estar social, o autor
funde considerações históricas com a teoria da ação coletiva. Esta estratégia
metodológica é interessante, pois combina uma explicação para as ações e as
motivações dos agentes com o contexto histórico em que os interesses e os
problemas da ação coletiva estão inseridos. Assim, De Swaan parte de diferentes
níveis de “figuração humana” – apropriando-se do conceito de Norbert Elias – para
explicitar os resultados agregados do jogo de interesses e ações das classes
superiores em cada estágio evolutivo.
Com o objetivo de explicar a formação dos Estados de bem-estar social, o
autor parte da premissa de que a pobreza representa um problema de ação coletiva
caracterizado pela interdependência entre as classes dominantes e os pobres. Em
diferentes períodos históricos, a percepção e o balanço dessa dependência mútua
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se alteram. Inicialmente, a impressão de que a situação precária das classes
pobres estaria afetando o bem-estar das elites incentivou ações individuais,
como a caridade. No entanto, o resultado agregado das ações isoladas de
membros das classes dominantes criou um problema de ação coletiva no nível
das cidades, o que incentivou, por sua vez, o estabelecimento de abrigos.
Conforme o grau e a consciência de interdependência e as incertezas sobre a
eficácia das ações paliativas aumentaram, as elites tiveram mais incentivos
para apoiar a ação do Estado como solução para a distribuição eficaz de
alguns serviços sociais.
Além deste exemplo da obra de De Swaan, cientistas sociais de
filiações acadêmicas distintas têm usado o recurso histórico de formas
inovadoras para explicar diferentes fenômenos contemporâneos, motivados
pela
perspectiva de
que
estes só
podem
ser entendidos a
partir da
compreensão do processo histórico que deu forma às dinâmicas sociais atuais
(Evans, Rueschmeyer & Skocpol, 1985; Streeck & Thelen, 2005; Pierson,
2004; Lange & Rueschmeyer, 2005; entre outros).
É importante ressaltar que, com a intensificação da globalização, a
sociologia histórico-comparada em geral e os estudos sobre a formação dos
Estados nacionais em particular readquiriram importância fundamental. A
crescente movimentação de pessoas, produtos, tecnologias e ideias põe em
xeque a soberania dos Estados nacionais que já não monopolizam as mesmas
funções
e
os
mesmos
poderes
de
antes.
As
noções
de
consenso
e
legitimidade política, outrora circunscritas às fronteiras nacionais, com o
aumento da interconectividade global já não são tão claras (Held, 1993).
Igualmente, hoje, a definição e a implementação de políticas públicas, antes
exclusividade dos órgãos do Estado, são tarefas compartilhadas com atores
da sociedade civil (Reis, 2005).
A partir destas observações, somos levados a questionar se estaríamos
observando um rearranjo entre autoridade e solidariedade diferente daquele
típico dos Estados nacionais. Para responder a esta pergunta é imprescindível
olhar para o passado histórico e lembrarmos como os Estados nacionais
foram consolidados (Reis, 2004). O arcabouço teórico proposto por Bendix e
Tilly, nesse sentido, nos ajuda a refletir sobre o processo histórico típico de
formação do Estado-nação, além de nos fornecer ferramentas analíticas
essenciais para interpretar as mudanças sociais que estamos observando no
presente.
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Considerações finais
Neste trabalho, procurei fazer uma síntese das abordagens de Reinhard
Bendix e Charles Tilly sobre a emergência dos Estados nacionais na Europa.
Demonstrei que, para Bendix, o processo de construção do Estado-nação envolve
concomitantemente a burocratização da autoridade pública e o reconhecimento
legal de direitos de cidadania aos membros da comunidade política. Já para Tilly, a
construção do Estado e da nação são dois processos separados. O autor prioriza a
formação do Estado e vincula o desenvolvimento da cidadania aos encargos que os
soberanos assumiram para custear os esforços de guerra.
Embora os autores proponham caminhos diferentes para a formação dos
Estados nacionais, busquei demonstrar que a principal semelhança em suas obras é
a conclusão de que a peculiaridade dessa forma de organização política reside na
combinação de uma dominação burocrática com o consentimento social baseado na
cidadania. Dentre as principais divergências entre os autores, destaquei a
importância dada por Bendix à dimensão cultural e ideológica para a formação dos
Estados nacionais, fatores que não são centrais para Tilly.
Ao longo do trabalho, igualmente, considerei ser profícuo apresentar as
principais características da sociologia histórico-comparada, campo em que os dois
autores estão inseridos, para contextualizar as suas explicações, assim como para
destacar a importância da perspectiva histórica para a prática sociológica. Penso
que esse exercício foi fundamental para evidenciar as possibilidades de interseção
entre teoria e história, que muitas vezes são vistas como incompatíveis, mas que
podem nos dar insights poderosos para interpretar o mundo social.
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Para citar este artigo:
LEÃO, Luciana Teixeira de Sousa. Autoridade, Solidariedade e Formação dos
Estados Nacionais: as abordagens de Reinhard Bendix e Charles Tilly. Revista
Enfoques: revista semestral eletrônica dos alunos do Programa de Pós-graduação
em Sociologia e Antropologia da UFRJ, Rio de Janeiro, v.9, n.1, p.56-76, agosto
2010. Em: http://www.enfoques.ifcs.ufrj.br.
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