Berlim, a construção do muro e o socialismo alemão
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Berlim, a construção do muro e o socialismo alemão
Berlim, a construção do muro e o socialismo alemão Analúcia Danilevicz Pereira* Vencidas as dificuldades dos anos posteriores à Segunda Guerra Mundial, o setor oriental está em plena fase de recuperação. Não há desemprego. A população se veste decentemente e come mais do que os alemães do Oeste. A maioria dos estudantes recebe bolsas de estudos. Berlim Ocidental, no entanto, impressiona fortemente o turista: avenidas modernas, comércio aparentemente próspero e vida noturna intensa com dilúvios de cores azuis, vermelhas, brancas e verdes. Mas ainda há trinta mil desempregados. Juventude transviada, prostituição, benefícios ilícitos são alguns dos problemas. Edouard Bailby (1962) Resumo O Muro de Berlim, erguido em 1961, constituiu o clímax da Guerra Fria. A divisão que se transformou em separação teve um valor simbólico que se revelou de uma intensidade impressionante. Em uma mesma cidade dois sistemas e duas formações sociais se desenvolveram, revelando a complexidade do mundo do século XX. Palavras-chave: Guerra Fria. República Democrática Alemã. Berlim. Muro de Berlim. A Alemanha no centro das questões do pós-guerra Em 16 de abril de 1945, os soviéticos, comandados pelo Marechal Zhukov, iniciaram, a partir do Rio Oder, sua grande ofensiva sobre Berlim. O Exército Vermelho avançou progressivamente sobre a capital enfrentando difíceis combates e seguindo a recomendação de Stalin para distinguir os nazistas dos outros alemães. Diante da feroz resistência das tropas nazistas na frente Leste, a região central e oriental do país sofreu danos, além das consequências dos bombardeios anglo-americanos. O objetivo dos Aliados era a destruição total da capital para, * Professora de História Moderna e Contemporânea na FAPA e de Relações Internacionais na ESPM-RS. Doutora em História pela UFRGS. Pesquisadora do Núcleo de Estratégia e Relações Internacionais – NERINT/UFRGS e do NuPP/ESPM-RS. A autora agradece os importantes comentários do Professor Paulo Visentini, bem como a colaboração dos estudantes Eduardo Lenhardt e Maíra Eckert. (E-mail: [email protected]). Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 46, p. 13-29, jul./dez. 2009 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 13 assim, levar o Reich ao colapso. Os bombardeios maciços a partir de 1943, ao mesmo tempo em que visavam objetivos estratégicos, também intencionavam quebrar a moral das populações civis. Os combates terrestres com os soviéticos e os bombardeios angloamericanos, que se concentraram sobre o território que viria a formar a zona de ocupação soviética, causaram uma destruição imensa. Os ataques aéreos danificaram intensamente os centros industriais de Berlim, Leipzig, Dresden, Dessau, Leuna e Pleuen, entre outros. Em Berlim, 50 a 60% das fábricas foram completamente destruídas. Os bombardeios lançados contra a parte leste da Alemanha não pouparam as zonas industriais, ao contrário daqueles efetuados sobre o setor que viria a constituir as zonas de ocupação norte-americana e britânica. Outro aspecto que cabe destacar é o de que a reconstrução econômica da parte oriental foi igualmente complicada devido às consequências demográficas – a população foi drasticamente reduzida, considerando, em particular, a classe operária desenvolvida e experiente. Obviamente, as consequências da guerra foram negativas para toda a Alemanha, mas os mais graves desequilíbrios econômicos concentraram-se na parte oriental da Alemanha, que também era vizinha dos territórios perdidos para a Polônia e para a URSS. Berlim sofreu um despovoamento dramático. Em 1939, a cidade, nos seus limites definidos em 1920, contava com 4.300.000 habitantes. Em 1945, restavam apenas 2.800.000, ou seja, uma perda de 1.500.000 habitantes – um terço da população. Essa redução populacional se explica pela mobilização dos homens (em 1945, Berlim era uma cidade de mulheres, crianças e idosos), perdas devido aos bombardeios, aceleração das evacuações das populações a partir de 1943, saídas voluntárias frente à chegada do Exército Vermelho. Nessas condições, faltava mãode-obra para a remoção das ruínas e para a reconstrução. Em significativa maioria em Berlim, as mulheres constituíram o essencial dessa mão-de-obra. No entanto, nesse universo de ruínas, a vida continuava. Paradoxalmente, a vida cultural e a de lazer reiniciaram primeiro, encorajadas pelos soviéticos que as viam como um meio de se integrarem e serem melhor aceitos pela população. O território ocupado pelas forças soviéticas não dispunha dos recursos naturais da parte ocidental, como a Bacia do Ruhr. Toda a Silésia, por outro lado, com suas ricas minas de carvão e seu sistema fluvial, incluindo o porto de Stettin, fora devolvido à Polônia em virtude dos Acordos de Potsdam. O reinício da vida em Berlim, como no resto da Alemanha, aconteceu sob a autoridade da administração quadripartida aliada. O Protocolo de Londres, de 12 de setembro de 1944, assinado pela URSS, Grã-Bretanha e Estados Unidos, confirmado durante a Conferência de 14 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 46, p. 13-29, jul./dez. 2009 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> Yalta (fevereiro de 1945) e modificado durante a Conferência de Potsdam (julho de 1945) para abrir um espaço para a França, previu a organização da Alemanha e de Berlim. A Alemanha foi dividida em quatro zonas de ocupação, repartidas entre as quatro potências, bem como Berlim, que seria ocupada conjuntamente pelas quatro potências. A Conferência de Potsdam, que reuniu Stalin, Truman e Churchill, este último logo substituído por Atlee, demonstrou as diferentes visões dos principais articuladores do pós-guerra, apesar de entrarem em acordo sobre determinados pontos. Inicialmente, a Alemanha não foi desmembrada e conservou sua unidade estatal, mesmo dividida em zonas de ocupação1, e o estatuto de capital de Berlim não foi contestado. Nesse sentido, o país deveria ser administrado de maneira uniforme pelas potências ocupantes. A Alemanha deveria, também, ser democratizada e desnazificada, desarmada e desmilitarizada, e seus Criminosos de Guerra julgados. A produção de guerra foi controlada, a indústria alemã desconcentrada (descartelização), e o país ficou obrigado a pagar reparações determinadas dentro de cada zona. Em contrapartida, os três aliados não chegaram a um acordo sobre as fronteiras e o estatuto da Alemanha. Fixou-se provisoriamente a fronteira oriental sobre a linha Oder-Neisse, sendo os territórios a leste desta linha entregues às administrações polonesa ou soviética. A URSS foi o primeiro governo a organizar sua zona de ocupação e a ter sede em Berlim. Em 10 de junho de 1945, a Administração Militar Soviética na Alemanha (Sowjetische Militäradministration in DeutschlandSMAD) autorizou, dentro de sua zona, o renascimento dos quatro partidos políticos que participaram da resistência ao nazismo – o Partido Comunista (Kommunistische Partei Deutschland-KPD, em 11 de junho de 1945), o Partido Social-Democrata (Sozialdemokratische Partei Deutschland-SPD, em 15 de junho), a União Democrata-Cristã (Christlich-Demokratische Union-CDU, em 26 de junho) e o Partido Liberal Democrático (Freie Demokratische Partei-FDP, em 5 de julho). Estas quatro formações se uniram na Frente Nacional Antifascista, estimulada pelo KPD que, no final de 1945, fundiu-se com o SPD. Dentro da zona soviética, a fusão tornou-se efetiva e deu origem ao Partido Socialista Unificado (Sozialistische Einheitspartei DeutschlandSED). Nas eleições que se seguiram, o SED dominou largamente – 52% dos votos nas eleições municipais de setembro, 47,5 % nas eleições das 1 Os soviéticos estavam presentes em Berlim desde abril de 1945. As tropas de ocupação norte-americana e britânica chegaram a Berlim de 3 a 5 de julho de 1945; os 6.000 soldados norte-americanos ocuparam o setor sul com seu quartel-general em Zelhendorf, os 3.000 britânicos, baseados em Charlottenburg, ocuparam o centro e os 3.000 franceses se apresentaram em 12 de agosto e ocuparam o distrito de Reinickendorf. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 46, p. 13-29, jul./dez. 2009 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 15 assembléias dos cinco Länder da zona em outubro. O SED passou a dominar os órgãos representativos, a Comissão Econômica Central, criada em junho de 1947 (67 membros sobre 100), e o Congresso do Povo para a Unidade, reunido em dezembro de 1947, que constituiu uma espécie de parlamento de consulta. A zona de ocupação soviética evoluiria rapidamente em direção às estruturas políticas e econômicas de uma democracia popular. A crescente diferenciação entre as três zonas ocidentais e a zona soviética logo iria aparecer, assim como as divisões da Guerra Fria. A guerra provocou o enfraquecimento da Europa, independente da posição que os países ocupavam, fossem eles vencedores ou perdedores e colocou face a face URSS e Estados Unidos. Foi este equilíbrio que determinou as preocupações de Stalin. De qualquer forma, os soviéticos temiam o renascimento do militarismo alemão e foram bastante cautelosos quanto ao papel que a Alemanha deveria desempenhar naquele momento. Por outro lado, Truman temia que a influência soviética se espalhasse na Europa Ocidental desestabilizada e empobrecida, pois nas primeiras eleições do pós-guerra, os partidos comunistas, reforçados por seus papéis na Resistência e pelo prestígio desfrutado pela então URSS, obtiveram importante sucesso eleitoral na França, na Bélgica e na Itália. Nesse contexto, a Alemanha fortalecida poderia ser uma muralha contra a “expansão do comunismo”. Além das divergências de interesse estratégico, dois modelos políticos, econômicos e ideológicos se opunham. A ruptura iniciada desde a Conferência de Potsdam eclodiu oficialmente em 1947 quando Truman definiu as bases da doutrina de contenção da URSS. O Plano Marshall (Programa de Reconstrução Europeu), anunciado em 5 de junho de 1947, na Universidade de Harvard, constituiu a aplicação econômica da Doutrina Truman. Assim, a recuperação econômica deveria impedir a expansão do comunismo.2 Os Soviéticos contra-atacaram em outubro de 1947 com a adoção da Doutrina Zdanov, número dois do Partido Comunista da URSS, declarada durante uma reunião dos partidos comunistas europeus na Polônia. A URSS aplicou severamente o princípio das reparações, que só pôde ser cumprido em sua zona e que duraria até 1953. Durante o período de reconstrução econômica e de desnazificação, tornou-se possível e necessário implantar mecanismos de planificação econômica, a 2 De 1948 a 1952, os créditos do Plano Marshall atingiram um total de 13 bilhões de dólares, dos quais 90% eram em espécie (máquinas, materiais de transporte, matérias-primas). As três zonas ocidentais da Alemanha receberam 9% desse total. A título de comparação a Grã-Bretanha recebeu 20,5% do total, a França aproximadamente 16% e a Itália aproximadamente 8%. 16 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 46, p. 13-29, jul./dez. 2009 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> princípio dirigida pelos soviéticos no sentido de reorganizar os setores de gestão econômica. Em uma primeira fase, a administração soviética tomou medidas, diante de planos trimestrais, sobre a produção e distribuição de energia, a organização dos transportes e a gestão das grandes empresas industriais. Tais medidas regulamentavam, por exemplo, tanto o abastecimento da indústria, quanto a distribuição de bens de consumo entre as famílias. Este primeiro período de reconstrução econômica da Alemanha do Leste foi marcado por uma estreita cooperação entre a URSS e as administrações civis alemãs, às quais foram atribuídas responsabilidades cada vez maiores. Quando, em 1947, formou-se a Comissão Econômica Alemã, constituiu-se, então, um primeiro passo direcionado a uma planificação econômica de longo prazo e a descentralização da gestão industrial na zona de ocupação soviética. Um ano depois, este organismo foi dotado de poderes administrativos e legislativos. A centralização da organização e da gestão da indústria nacional e de outros setores econômicos reduziu consideravelmente a autonomia das empresas, ainda que fossem verificados excessos conjunturais dessa centralização. De qualquer forma, foi uma via para reparar os prejuízos de guerra e eliminar os desequilíbrios socioeconômicos. Dado o sucesso dessa primeira fase, adotou-se um plano de dois anos para 1949 e 1950 e, em seguida, para cinco anos. Esses planos, com efeito, contribuíram para a passagem ao socialismo iniciada em 1952. O setor nacionalizado adquiriu influência determinante no conjunto da economia, devido à política de investimentos, de finanças e de impostos, além de uma prudente distribuição do produto nacional. Os objetivos econômicos variaram, evidentemente, de um plano para outro. No primeiro semestre de 1948 e nos anos de 1949 e 1950, era necessário reparar os prejuízos da guerra e voltar a pôr as empresas a funcionar. Em 1950, ultrapassava-se o nível de produção de 1936, enquanto no fim do primeiro plano quinquenal (1951-1955), esse nível tinha superado o do período anterior à guerra. Berlim no centro do confronto Leste-Oeste Em 1945 o problema alemão consistia em democratizar a nação germânica. Isso implicava na colaboração contínua dos membros da coligação antifascista sobre as bases dos Acordos de Potsdam. Com a criação, em 1949, da República Federal da Alemanha (RFA) e da República Democrática Alemã (RDA),3 o problema alemão assumiu nova 3 A República Democrática Alemã (Deutsche Demokratische Republik-DDR) foi fundada um mês após a República Federal da Alemanha. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 46, p. 13-29, jul./dez. 2009 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 17 feição. Passando para o primeiro plano da política internacional, a reunificação foi o principal motivo de discórdia entre os Estados Unidos, a França e a Grã-Bretanha, de um lado, e a URSS, de outro, que desejava a unidade do país. Na prática, nem os alemães do Oeste, nem os do Leste, acreditavam em uma solução em um futuro próximo. Razões de Estado, todavia, exigiam que se disfarçasse a realidade. Até 13 de agosto de 1961 era absolutamente livre o tráfego de pessoas e mercadorias entre os dois setores de Berlim. Nessa data, porém, as autoridades da Alemanha Oriental resolveram fechar a linha divisória de 45 km, que passava pelo Portão de Brandenburg, impondo restrições aos movimentos de seus cidadãos, mas não criando maiores obstáculos à circulação de estrangeiros e dos habitantes da parte ocidental. Os elementos “revanchistas” sempre exploraram as oportunidades de ir e vir, sem nenhum controle, para promover as atividades políticas. Acreditavam contar com a proteção irrestrita dos Estados Unidos e achavam que era possível desestabilizar a RDA. A construção do Muro mudou radicalmente esse panorama. Essa medida explodiu como uma bomba no mundo inteiro, mas teve a vantagem de lembrar, bruscamente, que já não era possível manter o status quo da cidade, quando já haviam passado mais de quinze anos desde o final da Segunda Guerra Mundial. Convém reconhecer que a Guerra Fria criou em muitos estadistas certa tendência ao “conforto intelectual”. Seria muito fácil deixar tudo transcorrer “naturalmente” e esperar para ver o desenrolar dos fatos. A URSS e seus aliados romperam com essa tendência, forçando os Estados Unidos a saírem de sua letargia. Berlim era o único ponto em que os soviéticos podiam reagir à política norte-americana de não aceitar a existência da RDA e de reconhecer, rearmar e integrar à RFA a OTAN (1955). Pela primeira vez, o presidente Kennedy compreendeu que era urgente e imprescindível fazer algo para resolver o problema de Berlim Ocidental. Sem analisar em profundidade a questão, uma coisa salta aos olhos do observador menos avisado – único ponto do território alemão ainda sob o regime de ocupação militar estrangeira, Berlim Ocidental estava encravada em pleno coração de uma nação soberana, que era a República Democrática Alemã. A sua própria existência era uma permanente ameaça ao equilíbrio político da Europa porque não lhe foi definido um estatuto de caráter internacional. 18 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 46, p. 13-29, jul./dez. 2009 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> Território da República Democrática Alemã (RDA). Fonte: KINDER, Hermann; HILGEMANN, Werner. Atlas Histórico Mundial II. De la Revolución Francesa a nuestros dias. Madrid: Istmo, 1992. Até o dia 13 de agosto de 1961, Berlim Ocidental era ferida aberta no flanco da Alemanha Oriental, pois com a hábil propaganda do governo federal de Bonn atraía alguns alemães orientais, especialmente os mais qualificados. O fechamento da linha divisória pôs término a essa fuga e, de certa maneira, amenizou as preocupações de Walter Ulbricht, das quais compartilhava a contragosto Nikita Kruschev. Com as suas mais de oitenta organizações de espionagem, trabalhando permanentemente para solapar os alicerces da RDA, Berlim Ocidental tornou-se pesadelo constante do campo socialista. Essas organizações proliferaram de maneira assustadora com a conivência das autoridades militares de ocupação. Outro problema, não menos importante, era o do contrabando entre os dois setores da cidade, consideravelmente reduzido após o 13 de agosto. Oficialmente, o câmbio era de um marco ocidental para um marco oriental. Nas casas de câmbio do setor ocidental, Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 46, p. 13-29, jul./dez. 2009 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 19 entretanto, o câmbio era de um para cinco. Assim, o contrabando, para muitos alemães ocidentais, tornou-se a principal fonte de recursos, além do câmbio vantajoso no mercado negro, pois os preços dos produtos eram menos elevados em Berlim Oriental. Para limitar essa extraordinária evasão de divisas, as autoridades da RDA foram obrigadas a impor severas medidas. Ninguém poderia fazer compras, por exemplo, sem apresentar atestado de residência ou um visto da polícia. Esses e outros exemplos dão uma ideia dos inúmeros problemas que se apresentavam em uma cidade como Berlim. As autoridades do lado oriental conseguiram corrigir em parte a brecha aberta em suas fronteiras. Outras medidas foram tomadas paulatinamente até o cerco total do enclave ocidental. Deve-se considerar, também, que o governo de Ulbricht tinha os meios legais de suspender todo o tráfego rodoviário, ferroviário e fluvial entre o lado ocidental de Berlim e a Alemanha Federal.4 A assinatura do Tratado de Paz entre a URSS e a República Democrática Alemã modificou essa situação. Kruschev advertiu solenemente Estados Unidos, França e Grã-Bretanha de que, se não manifestassem compreensão pelas propostas soviéticas de um Tratado de Paz com a Alemanha e a transformação de Berlim Ocidental em cidade livre e desmilitarizada, a URSS se veria forçada a assinar um Tratado de Paz em separado com a RDA. Depois da abertura da crise de Berlim, em 27 de novembro de 1958, quando a URSS propôs pela primeira vez o seu plano de Cidade Livre para o setor ocidental e ameaçou entregar todos os poderes à RDA em um prazo de seis meses, forçando os dirigentes ocidentais a romperem o imobilismo político, estes haviam se convencido de que Moscou não estava blefando. Berlim estava no centro da questão alemã e, consequentemente, no centro da Guerra Fria. A opinião pública, em geral, limitava-se a aceitar os argumentos propagandísticos, em conformidade com as suas próprias convicções políticas ou ideológicas, sem entrar na análise do problema. Moscou considerava que sua proposta de uma “cidade livre e desmilitarizada” era uma prova evidente de sua boa vontade em querer resolver, por meios pacíficos, o problema alemão, uma vez que Berlim Ocidental estava situada no território da RDA e, assim, deveria ser integrada a este. 4 Havia dezessete vias de comunicação que ligavam Berlim Ocidental à Alemanha Federal: três canais, oito estradas de ferro, três autoestradas e três corredores aéreos. No início dos anos 1960, 93% do tráfego terrestre e fluvial estavam sob controle da Alemanha Democrática. As forças soviéticas tinham a seu cargo o tráfego militar, ou seja, 7%. O tráfego aéreo era supervisionado pelas forças de ocupação anglo-franco-americanas. 20 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 46, p. 13-29, jul./dez. 2009 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> Setores de ocupação em Berlim depois de 1945. Fonte: ATGER, Alain; LACHAISE, Francis. Berlin, miroir de l’histoire allemande. De 1945 à nos jours. Paris: Ellipses, 1999. Em janeiro de 1961, Kruschev reforçou a proposta soviética sobre Berlim e propôs um encontro com Kennedy, que acabara de ser empossado. Esse encontro ocorreu em Viena nos dias 3 e 4 de junho de 1961, sendo Berlim o tema principal. Não se alcançou nenhum acordo. No final do encontro, Kruschev anunciou, unilateralmente, que decidira assinar, antes do fim daquele ano, um Tratado de Paz em separado com a RDA, com ou sem o aval dos Estados Unidos. O Tratado constituir-se-ia em um questionamento de todos os acordos assinados após a guerra, destacando que o acesso a Berlim Ocidental ficaria dependendo da boa vontade da RDA. Kennedy protestou e apelou aos direitos e interesses dos ocidentais em Berlim. Para o governo norte-americano, qualquer negociação poderia ser interpretada como uma prova de fraqueza e, pressentindo um período de tensão, Washington decidiu aumentar as forças militares americanas na cidade. A atitude norte-americana provocou a reação do Leste, apesar da ideia de reaproximação entre os dois setores de Berlim não ter sido abandonada. Os primeiros-secretários dos partidos comunistas dos países membros do Pacto de Varsóvia reuniram-se em Moscou do dia 3 a 5 de agosto. Esta reunião marcou provavelmente a data de decisão de construir o muro, que era propalado pelo Oeste, propagandisticamente, como uma prova da derrota política do comunismo. Logo, esse entendimento seria modificado. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 46, p. 13-29, jul./dez. 2009 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 21 Os anos 1960 iniciaram com a construção do Muro que constituiu o clímax da Guerra Fria para Berlim. A divisão transformou-se, enfim, em separação. Certamente, essa separação já era um fato consumado. Para os alemães orientais seria preciso e necessário “viver com o Muro” e administrar da melhor maneira possível essa separação, dali em diante mais radical. A debilidade dos eventuais focos de oposição, desde então, não se devia apenas à repressão e à vigilância, mas ao que Mary Fulbrook chamou de “ditadura participativa”.5 A construção do Muro de Berlim e a reorganização de Berlim Oriental É necessário analisar qual era a percepção, a motivação e a estratégia “do outro lado”. Na noite do dia 12 de agosto foram publicadas, quase que simultaneamente, duas declarações anunciando a construção do muro. A primeira foi um decreto do Conselho de Ministros da RDA, na qual se argumentava que, Para colocar um fim à atividade hostil das forças revanchistas e militares da Alemanha Ocidental e de BerlimOeste, será colocado nas fronteiras da RDA, inclusive com os setores ocidentais da Grande Berlim, um controle semelhante aquele utilizado nas fronteiras de todo o Estado soberano. Ele propõe-se a garantir nas fronteiras de BerlimOeste uma vigilância segura e um controle eficaz.6 A segunda foi uma declaração, transmitida por radiodifusão, dos Estados membros do Pacto de Varsóvia: Os governos dos Estados do Pacto de Varsóvia sugerem à Câmara do Povo e ao governo da RDA, e a todos os trabalhadores da RDA, instaurar na fronteira com Berlim-Oeste um tipo de operação para impedir eficazmente a entrada da subversão contra os países do campo socialista7. Em ambas as declarações aparecem claramente as motivações para a construção do Muro. Dois motivos essenciais são evocados – Berlim Ocidental constituía uma base avançada do Ocidente capitalista, a partir da qual se difundia não só a propaganda anticomunista como, também, e mais importante, comportava-se como a via para a provocação militar e 5 FULBROOK, Mary. Anatomy of a dictatorship: Inside the GDR - 1949-1989. Oxford: Oxford University Press, 1995. A população era chamada a participar ativamente em diversas atividades sociais e políticas, e era, assim, mantida próxima ao regime (ao menos parte dela). 6 ATGER, Alain; LACHAISE, Francis. Berlin, miroir de l’histoire allemande: De 1945 à nos jours. Paris: Ellipses, 1999. p. 51-52 7 22 ATGER, Alain; LACHAISE, Francis. Op. cit. p. 51-52 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 46, p. 13-29, jul./dez. 2009 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> para a difamação, sabotagem, espionagem, corrupção contra o sistema social e econômico que ali se estruturava. A construção do Muro começou, mais tarde, com a instalação de painéis de 1,2 metros de altura e tijolos de concreto que acabaram com as redes de arame colocadas anteriormente para definir a divisão. Aproximadamente 40.000 homens foram convocados para a construção do Muro de Berlim. Estes pertenciam aos Grupos de Combate da Classe Operária, uma milícia de trabalhadores. Os Grupos de Combate, instruídos e equipados com armas ligeiras e médias de infantaria, estavam preparados para diferentes tarefas. Normalmente, suas posições restringiam-se a suas bases locais, mas em situações de crise poderiam ser chamados a contribuir em tarefas de segurança mais amplas. Quando, em 15 de agosto, começou a construção do Muro, os Grupos de Combate vigiavam e trabalhavam na sua construção. Percebese que a formação dos Grupos de Combate em 1953,8 deu continuidade a uma autêntica tradição alemã que correspondia ao conceito marxista de “classe operária armada”. Essa tradição remete aos primeiros anos da República de Weimar, de 1918 a 1923, e a formação da Liga dos Combatentes Vermelhos, de 1924 a 1933. Evidentemente, no período subsequente, o nazismo reprimiu e aniquilou seus membros, mas a tradição e a experiência histórica não puderam ser extirpadas da vida social alemã. Em um primeiro momento, 13 passagens permaneceram abertas entre as duas metades da cidade. No dia 22 de agosto, todos os pontos de passagem para os Aliados foram fechados, com exceção de um, o Checkpoint Charlie. Era proibida a aproximação a menos de 100 metros do Muro. Postes equipados de projetores foram instalados para iluminar durante toda a noite. Em 23 de agosto, a RDA instalou escritórios de passagem nas estações ferroviárias (S-bahn) de acesso a Berlim Ocidental, garantindo, assim, direitos de soberania. Em 26 de agosto, a polícia berlinense do Oeste fechou seus escritórios por ordem da Kommandantura9 aliada. A RDA respondeu impedindo aos berlinenses do Oeste o acesso ao setor oriental. 8 Cerca de 10 a 15% dos operários e empregados das Empresas Propriedade do Povo, das administrações e dos demais centros de trabalho foram incorporados aos Grupos de Combate. O recrutamento era voluntário. Nos primeiros anos, as mulheres foram incorporadas como combatentes. Com a reorganização militar em 1955, essas mulheres passaram a desempenhar serviços mais leves, sendo, então, preservadas das tarefas mais árduas. 9 A Kommandatura aliada foi criada formalmente em 7 de julho de 1945, por uma convenção concluída em Berlim, entre os generais comandantes-chefes. Na ocasião, a natureza e a tarefas da Kommandatura foram estabelecidas da seguinte maneira: a) uma autoridade interaliada de governo para dirigir conjuntamente a administração de Berlim, cujas funções eram exercidas alternadamente pelos comandantes superiores por um período de quinze dias; b) a fim de supervisionar a cidade e assegurar a coordenação da administração dos diversos setores, foi estabelecido um quartel general do Comandante Superior Chefe em Berlim; c) a Kommandatura aliada organizava e administrava seus respectivos setores em conformidade com o Comandante Superior Chefe, levando em consideração as condições locais; d) a primeira conferência dos comandantes superiores aliados foi definida pela presidência do Comandante Superior Soviético. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 46, p. 13-29, jul./dez. 2009 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 23 A partir da deficiente rede de arames farpados e dos postes edificados às pressas em 13 de agosto, o Muro ficou cada vez mais complexo e se aperfeiçoou progressivamente. Contam-se quatro gerações do Muro, cada vez mais alto, mais sólido e acompanhado de dispositivos cada vez mais dissuasivos. Os materiais usados na construção tornaram-se mais resistentes (cimento com estrutura de ferro e cimento com pedra lascada), para impedir a queda do Muro em caso de veículos serem jogados contra o mesmo. O Muro estendeu-se ao longo da fronteira urbana dos 45 km que separavam as duas zonas de Berlim, e ao longo dos 120 km que separavam os subúrbios ocidentais da zona rural RDA, isolando completamente Berlim Ocidental e preservando o campo socialista das investidas do Ocidente. A quarta geração do Muro foi edificada em 1974. Atrás do muro de concreto e da cerca de 4 metros de altura estendia-se uma faixa de controle iluminada por projetores e limitada por vigas de metal aterradas ao solo ou uma fossa, destinadas a impedir que veículos forçassem a fronteira. Em seguida, havia um caminho de ronda para os guardas, torres de vigia, vias para os cães e abrigos e, por fim, uma sensível cerca que disparava sinais sonoros e luminosos em caso de contato. O Muro foi regularmente pintado de branco a fim de que a zona de controle fosse mais visível à noite e para que os guardas fronteiriços pudessem distinguir a silhueta de eventuais fugitivos do leste ou de intrusos do oeste.10 Até 1961, a evolução demográfica dos dois lados de Berlim era oposta uma da outra. Berlim Ocidental, em saldo negativo, lucrava com a imigração, em particular, graças ao fluxo de refugiados da RDA. Em Berlim Oriental, o saldo positivo não compensava as numerosas partidas. A construção do Muro inverteu essa tendência. Em Berlim Ocidental, a população começou a diminuir e os problemas de mão-de-obra começaram a aparecer. A situação demográfica se deteriorou ainda mais na metade dos anos 1970, quando a crise reduziu sensivelmente a imigração estrangeira, tornando o saldo migratório negativo no período de 1975 a 1978. Em Berlim Oriental, a população aumentou rapidamente. A partir de 1964, a RFA começou a pagar pelos prisioneiros políticos da RDA, para que esses pudessem emigrar para o oeste. 10 No Oeste os contrabandistas chegavam a cobrar até 20.000 DM (Deutsche Mark - marco alemão), fazendo com que os fugitivos se desfizessem de sua riqueza pessoal (vendendo jóias e outros objetos preciosos) ou através da promessa de pagamento quando chegassem ao Oeste. 24 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 46, p. 13-29, jul./dez. 2009 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> O MURO DE BERLIM. Fonte: FLEMMING, Thomas. El Muro de Berlin: La frontera a través de una ciudad. Berlín-Brandenburgo: Be.bra Verlag, 2001. A construção do Muro teve como uma de suas consequências o fato de acentuar os contrastes entre as duas partes da cidade, daí em diante hermeticamente separadas. Se, de um lado, Berlim Ocidental acabou servindo como a “vitrine do Ocidente”, por outro, Berlim Oriental transformou-se em uma vitrine oposta, a da RDA e do mundo comunista. A vida em Berlim Oriental e a consolidação da RDA Durante os anos 1960 e 1970 houve uma remodelagem urbanística e das instalações socioculturais no país. Berlim Ocidental teve que criar um novo centro para a cidade, já que o centro histórico (Mitte), com seus lugares tradicionais que faziam parte da vida berlinense, como a Alexanderplatz e a Avenida Unter den Linden, estava agora situado do lado leste. Grandes instalações culturais foram criadas ao sul do Portão de Brandenburg – a Filarmônica em 1963, a nova Galeria Nacional, a Biblioteca Pública. Ao norte, o Reichstag (sede do parlamento alemão) foi restaurado, instalando-se ali serviços federais e organizando-se exposições, tornandoo um pólo atrativo para os turistas. Os antigos bairros industriais como Kreuzberg, a muito tempo abandonados, foram restaurados. Em Berlim Oriental, o desenvolvimento sistemático do centro iniciou-se a partir de 1962. Um eixo de 6 km foi estabelecido entre o Portão de Brandenburg e o Portão de Frankfurt, passando pela Unter den Linden, Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 46, p. 13-29, jul./dez. 2009 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 25 Karl Liebknecht Strasse, Marx Engels Platz, Alexanderplatz e Karl Marx Allee. A avenida Unter den Linden havia se transformado no centro da vida social antes da guerra. Ali se encontravam os edifícios diplomáticos e culturais. Os prédios destruídos na Segunda Guerra Mundial foram substituídos por construções novas (Embaixada da URSS, da Polônia, da Hungria, por exemplo). Inúmeros edifícios históricos foram restaurados como a Ópera, a Biblioteca do Estado, a Catedral de Santa Edwige, a Universidade Humboldt e o Arsenal, que se transformou no Museu da História Nacional. A Marx Engels Platz, lugar onde se encontrava o castelo dos Hohenzollern e onde, em 1918, Karl Liebknecht proclamou a República dos Conselhos, tornou-se o centro político e cultural. Nas proximidades situavam-se os grandes museus. No lugar do castelo, demolido em 1950, construiu-se o Palácio da República, entre 1973 e 1976, vasto complexo abrigando a Câmara do Povo, bem como salas de conferência e de leitura. O Palácio da República foi o centro da vida política e um lugar de animação popular.11 Sobre a Karl Liebknecht Strasse ergueu-se a torre de televisão que dominava, de seus 365 metros de altura, a Alexanderplatz, centro da vida social. A Berlim socialista, de aspecto monumental, estendia-se até a Strausberger Platz e a Lenin Platz. Paralelamente à reconstrução do centro, o esforço em construir acomodações residenciais continuava nos bairros periféricos. O VIII Congresso do SED lançou um programa de construção de 40.000 acomodações no período de 1971-1975, quando novos bairros foram criados – Frankfurter Allee, Salvador Allende (Köpenick) e Weissener Weg (Lichtenberg). Berlim Oriental também impulsionou a construção de instalações culturais dignas de uma capital. A cidade contava com cerca de 30 museus, sendo alguns de reputação mundial, reagrupados na “Ilha dos Museus” perto da Karl Marx Platz. Os teatros eram mais numerosos que no lado oeste, sendo os de maior reputação a Deutsche Oper (Ópera alemã), a Komische Oper (Ópera cômica) e o Berliner Theater (Teatro Berlinense). Em 1974, foi construído o teatro de variedades de Friedrichstadtpalast. A cidade contava com 250 clubes e casas de cultura, bem como 200 clubes para os jovens. Nove jornais foram editados em Berlim Oriental, sendo o Neues Deutschland (Nova Alemanha), o veículo oficial do SED. Por fim, deve-se ressaltar que o ensino, especialmente o ensino superior, desenvolveu-se consideravelmente em toda a RDA.12 11 Após a unificação, as autoridades federais trataram de eliminar esse símbolo popular da RDA, e procederam à interdição e demolição gradativa para reconstruir o antigo castelo imperial. Nos tapumes, à noite, surgiam grafittis dizendo “Palácio sim, Castelo não”. 12 Contrariando o discurso de prosperidade do lado Ocidental, a Universidade Livre de Dahlem, na RFA, que atraiu a partir de 1950 inúmeros estudantes que se insurgiam contra o espírito comunista, foi palco de situação peculiar. Nos anos 1967-68 os estudantes já haviam modificado a imagem dessa universidade, transformada, pouco a pouco, em um núcleo de pensamento marxista onde eclodiu a revolta contra os pilares da “sociedade burguesa e 26 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 46, p. 13-29, jul./dez. 2009 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> Berlim Oriental também investiu no planejamento para os espaços verdes. Com 7.520 hectares de florestas, 3.760 hectares de planos d’água (a exemplo do Müggelsee, com 740 hectares) e 11.800 hectares de superfície agrícola, que se encontravam sobre o território comum, o que fornecia uma média de 113 m² de espaço verde por habitante. Diferentemente do oeste, a população podia utilizar as madeiras e os planos d’água disponíveis no meio ambiente. No Leste, a densidade de circulação de veículos era menor, pois a prioridade era dada aos transportes coletivos, sobretudo aos bondes (tramway), que deixavam a sua marca na paisagem urbana. A diferença de nível de vida entre as duas metades de Berlim era visível, apesar dos esforços dos alemães do Oeste em demonstrar que, por trás da “cortina de ferro” não havia vida digna.13 Curiosamente, a maioria dos símbolos do progresso socialista de Berlim e da RDA foram os primeiros alvos de destruição quando da queda do muro e da reunificação. Em junho de 1971, Erich Honecker sucedeu Ulbricht na liderança do SED e do governo.14 Ainda em 1972 as duas Alemanhas estabeleceram relações e, em 1973, ingressaram na ONU. O isolamento diplomático da RDA acabara, enquanto a RFA sofria os efeitos da Crise do Petróleo, em uma inversão irônica da situação. Como todos os cidadãos do Leste, os dirigentes da RDA mantinham-se informados sobre as revoltas que aconteciam, pois a crise econômica, o desemprego e o racismo levaram a RFA a uma conjuntura de profundo tensionamento social. A política de Honecker era, também, uma resposta aos problemas do Oeste. De 1971 a 1981, o governo da RDA elevou ainda mais o nível de vida material e cultural do país, sempre insistindo no distanciamento necessário a ser observado frente à RFA. As constituições de 1968 e 1974 enfatizaram a identidade alemã oriental. A renda mensal média dos trabalhadores da RDA aumentou regularmente de 1960 a 1979 – em 1960, 842 Mark; em 1965, 965; em 1970, 1.209; em 1975, 1.540; em 1979, 1.822. A partir de 1979, devido ao contexto mundial menos propício, a política de Honecker limitou-se a assegurar as compras, o que provocou uma percepção de estagnação. As pessoas pareciam estar satisfeitas capitalista”. Focou-se, antes de tudo, nos símbolos desta sociedade, bem como na presença norte-americana sobre o território alemão. Ao final dos anos 1960, a contestação adotou medidas radicais. Sob a liderança de Andreas Baader, militantes organizaram inúmeros atentados. Curiosamente, os jovens orientais, nesse contexto, experimentavam os resultados daquilo que os jovens ocidentais passavam a desejar. 13 É interessante notar que havia até uma indústria de moda socialista, com design para roupa de trabalho e de passeio sofisticadas e equivalentes às do Ocidente. Os cidadãos dos demais países do bloco soviético gostavam de ir à Berlim Oriental fazer compras. Ver STITZIEL, Judd. Fashioning Socialism: Clothing, politics and consumer culture in East Germany. Oxford/New York: Berg, 2005. 14 Ulbricht faleceu em 1973. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 46, p. 13-29, jul./dez. 2009 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 27 com suas vidas – os apartamentos possuíam melhor preço que no Oeste, cada um possuía um trabalho e ninguém conhecia o medo do desemprego. As consultas médicas eram gratuitas e a política familiar vantajosa. Com exceção de alguns produtos importados, como o café, as bananas e as laranjas, havia tudo a preços acessíveis e, não raras vezes, menos elevados do que na RFA. A falta de leite ou carne era um fenômeno ocasional. Se os carros de passeio, as motos ou as máquinas de lavar eram relativamente caros, em compensação os principais produtos alimentícios e industriais se encontravam no mercado. Nos anos 1970 as nações ricas da Europa Ocidental tinham um nível equivalente ao da RDA no que se refere ao de consumo desses artigos fundamentais. Os gastos com assistência social eram duas vezes maiores do que na RFA. Para se ter uma ideia, os investimentos em educação e saúde pública passaram de 7.5 milhões de marcos em 1951 para 19 milhões em 1960. Havia 16 mil Jardins de Infância e creches. Os progressos realizados no campo econômico, o florescimento das atividades culturais (as bibliotecas eram frequentadas por mais de 3 milhões de leitores) e os resultados alcançados no campo educacional e de saúde fizeram com que a sociedade alemã oriental experimentasse um padrão de vida satisfatório que, contudo, foi sempre criticado pelo Ocidente capitalista. *** A RDA foi um dos últimos países do bloco socialista a ceder face ao vento de liberalização vindo de Moscou. A queda do Muro de Berlim foi, enquanto símbolo da Guerra Fria e da divisão mundial, resultado do processo de desintegração econômica, social e política que fez parte do padrão ocidental a partir dos anos 1980. O mundo socialista deveria, a qualquer custo, ser reintegrado ao capitalismo para produzir soluções à sua crise. Nesse sentido, a reunificação da Alemanha remete ao interesse nacional alemão e ao interesse do capital alemão. Por outro lado, a ilusão da reunificação teve como consequência a destruição material de uma sociedade, mas não de sua formação social e de sua experiência histórica. As grandes transformações históricas não são possíveis sem a própria história e suas contradições. De que ponto de vista, então, devemos interpretar a história? Recebido em novembro de 2009. Aprovado em dezembro de 2009. 28 Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 46, p. 13-29, jul./dez. 2009 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> Berlin, the Construction of the Wall and the German Socialism Abstract The Berlin Wall, erected in 1961, was the climax of the Cold War. The division that became split had a symbolic value that turned out to be an impressive intensity. In the same city two systems and two social formations were developed, revealing the complexity of the world of the twentieth century. Keywords: Cold War. The German Democratic Republic. Berlin. Berlin Wall. Referências ATGER, Alain; LACHAISE, Francis. Berlin, miroir de l’histoire allemande: De 1945 à nos jours. Paris: Ellipses, 1999. BADER, W. Um Ejército para la Guerra Civil: Los grupos de combate del Partido Comunista em la Alemania Oriental. Mexico: Impresiones Modernas, 1963. BAILBY, Edouard. Berlim entre duas Alemanhas. Rio de Janeiro: Leitura, 1962. BERLIM Ocidental: ponta de lança do Imperialismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1963. FLEMMING, Thomas. El Muro de Berlin: La frontera a través de una ciudad. Berlín-Brandenburgo: Be.bra Verlag, 2001. FULBROOK, Mary. Anatomy of a dictatorship: Inside the GDR - 1949-1989. Oxford: Oxford University Press, 1995. KINDER, Hermann; HILGEMANN, Werner. Atlas Histórico Mundial II: De la Revolución Francesa a nuestros dias. Madrid: Istmo, 1992. MICHELENA, José Agustín Silva. Crise no sistema mundial: política e blocos de poder. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1977. STITZIEL, Judd. Fashioning Socialism: Clothing, politics and consumer culture in East Germany. Oxford; New York: Berg, 2005. Ciências & Letras, Porto Alegre, n. 46, p. 13-29, jul./dez. 2009 Disponível em: <http://seer1.fapa.com.br/index.php/arquivos> 29
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