Compreendendo o trabalho colaborativo entre os médicos através

Transcrição

Compreendendo o trabalho colaborativo entre os médicos através
Compreendendo o trabalho colaborativo entre os
médicos através do prontuário.
Claudia Novoa Barsottini 1, Jacques Wainer 1,2,
1
Departamento de Informática em Saúde (DIS) Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP)
2
Instituto de Computação, Universidade Estadual de Campinas UNICAMP
Resumo -. Este estudo é um primeiro passo no entendimento do trabalho colaborativo entre médicos e as
discrepâncias importantes entre as presunções do prontuário em papel e a forma como médicos realmente
usam e comunicam a informação do paciente. Nós nos baseamos em três tipos de dados: observação de
consultas, entrevistas com médicos e analise de documentos. As observações das consultas tiveram como foco
principal à descrição de situações de difícil colaboração entre médicos através do prontuário. Três fatores sobre
as informações contidas no prontuário que não facilitam a colaboração entre os médicos, foram discutidas: falta
de informação sobre as hipóteses diagnósticas, falta de informação sobre terapêutica usada e medicações e
inadequação da forma de coleta e apresentação dos dados.
Palavras-chave: praticas de trabalho colaborativo, integração, prontuário do paciente.
Abstract -.This is a first step toward understanding the collaborative work among physicians, and the
conceptuals distances between the presuppositions behind a patient record and the way communication about
the patient really works. We used the types of data: observations of consultations, interviews with the physicians
and document analysis.
Key-words: collaborative work practices, integration, patient record.
Introdução
Para que pessoas em um mesmo local ou
geograficamente distribuídas trabalhem de forma
cooperativa, é necessário que exista um ambiente
computacional de apoio à comunicação entre elas.
A área de pesquisa que investiga os processos de
apoio à cooperação e, conseqüentemente,
possibilita o trabalho, a produção conjunta e a troca
de informações, denomina-se Trabalho Cooperativo
Suportado por Computador ou CSCW (1).
Inicialmente é preciso compreender o
domínio, suas principais características e o modo
de interação entre os usuários. Para tanto, é
necessário que se tenha conhecimento geral sobre
as atividades desempenhadas e sobre o grupo,
seus objetivos e sua estrutura. (2)
Segundo Terveen (3), ao entender como
pessoas trabalham sozinhas e em grupos,
pesquisadores de CSCW e HCI ou HumanComputer Interaction podem juntos desenvolver
novas tecnologias que preencham a lacuna
existente entre os aspectos sócio-humanos e
computacionais. O intuito é permitir uma natural e
harmoniosa integração de sistemas computacionais
ao ambiente de trabalho.
Alguns estudos sobre trabalho colaborativo
médico revelam discrepâncias importantes entre as
presunções do papel do prontuário eletrônico em
conseguir a integração entre diferentes serviços(4).
Outros estudos analisam as limitações de sistemas
de prontuário eletrônico quando são usados por
Nesta
pesquisa
grupos
interdisciplinares(1,5)
estamos interessados em como médicos extraem
informação de prontuários (neste caso em papel)
para avaliar um paciente novo (para eles). Pode-se
entender como sendo uma colaboração através do
tempo: um primeiro médico atendeu um paciente
por algum tempo, registrou informações sobre ele
no prontuário, e um segundo médico, usando
apenas o prontuário, precisa se inteirar da condição
e situação do paciente. Como veremos neste artigo,
as informações normalmente disponíveis em
prontuários não são suficientes para que essa
colaboração através do tempo seja efetiva.
Um entendimento das limitações do
prontuário em papel pode ser relevante no projeto
de prontuários eletrônicos de forma a potencializar
esse tipo de colaboração.
Metodologia
Este estudo foi realizado no período de
janeiro a maio de 2004 no Ambulatório de
Neurologia Geral do Departamento de Neurologia
da Universidade Federal de São Paulo – Hospital
São Paulo (HSP). Algumas das características
deste ambulatório são: pacientes crônicos
atendidos por longos períodos de tempo e a uma
equipe médica que é trocada a cada 2 meses
devido ao cronograma de estágios da residência
médica na qual estão inseridos.
Nós nos baseamos em três tipos de dados:
observação de consultas, entrevistas com médicos
e analise de documentos. Tivemos acesso ao
prontuário dos pacientes atendidos, tanto o
especifico da neurologia quanto o geral do HSP.
Foram 14 relatos de histórias e mais de
21horas de observação. As observações das
consultas tiveram como foco principal à descrição
de situações de colaboração entre médicos através
do prontuário nos casos atendidos. Após a
observação das consultas algumas questões foram
feitas aos médicos que atenderam os pacientes a
fim de obter um entendimento melhor do caso.
A seguir estão descritos dois dos
atendimentos e discussão observados, entre
médicos do Ambulatório Geral de Neurologia.
Casos
Caso 1
“.....paciente MHL 37 anos acompanhada
atualmente na Neurologia e em outros setores do
HSP (Hospital São Paulo). O médico leu a história
em voz alta para a paciente e verificou se havia os
mesmos sintomas e se a queixa principal se
mantinha. A paciente relatou que a dor nas pernas
estava cada vez mais forte, no prontuário da
paciente estava descrito que o exame físico estava
normal. O médico não encontrou o diagnóstico
topográfico da doença no prontuário. A paciente
reclamou que só havia feito um único exame desde
o começo do tratamento. O medico perguntou a
paciente a respeito de dores extras, aftas, urina e
fezes. A paciente respondeu que estavam normais.
O médico não escreveu esses dados no prontuário.
A paciente relatou dificuldade de vir à consulta
psiquiátrica e, que faltara a algumas além de ter
parado de tomar as medicações prescritas. O
médico chamou o médico chefe do serviço para
discutir o caso. O médico relatou o. caso desde o
inicio e o médico chefe disse que não estava
entendendo nada. Então o médico recontou o caso
de
forma
mais
clara,
relacionando
cronologicamente a evolução da doença a
diagnósticos e exames...”
Caso 2
“....Médico leu as três consultas anteriores do
paciente MRS com 91 anos que é acompanhado
em outros setores do HSP (cardiologia, urologia e
geriatria) desde 1990. No prontuário do hospital,
esta diagnosticado, insuficiência coronariana (IC),
hipertensão (HAS) e Mal de Parkinson (MP) desde
1990. No prontuário especifico da neurologia (pasta
da neurologia) esta escrito que o paciente tem
diagnosticado MP há 2 anos. O médico sugeriu que
a hipótese diagnóstica de MP fosse de dois anos e
não de 10 anos. O médico chefe que estava na sala
e conhecia o caso mais profundamente sugeriu que
a história da doença tivesse 10 anos, os familiares
concordaram. O médico relatou o que estava
escrito na 1º consulta e o chefe refutou alguns
achados. O médico relatou as medicações e as
dosagens e que o paciente havia parado as
medicações. O médico chefe relembrou que o
paciente parou a medicação por conta da prova
terapêutica. O médico chefe relatou sobre o quadro
especifico do paciente e a relação com a idade...”
Analise
A seguir iremos discutir três fatores sobre
as informações contidas no prontuário que não
facilitam a colaboração entre os médicos:
1- Falta de informação
Diagnóstica.
sobre
a
Hipótese
2- Falta de informação sobre terapêutica usada e
medicações.
3- Inadequação da forma de coleta e apresentação
dos dados
1- No Caso 2 a hipótese diagnóstica não é
colocada no prontuário, (“...No prontuário especifico
da neurologia (pasta da neurologia) esta escrito que
o paciente tem diagnosticado MP há 2 anos..”). A
elaboração da hipótese diagnóstica não é levada
em consideração, somente o diagnóstico definitivo.
A hipótese é esquecida no decorrer do tempo. O
porque da hipótese ter sido esquecida e retirada do
prontuário também não esta escrito. Foi necessário
checar as informações do prontuário junto aos
familiares (“...que a história da doença tivesse 10
anos, os familiares concordaram..”).
2- No Caso 2 a prescrição medicamentos é
tratada de forma pontual, o que o paciente tomou, o
que o paciente toma. Já o que o porque de se ter
escolhido entre uma ou outra medicação, alteração
de posologia, e provas terapêuticas, foram
suprimidas dos prontuários, ficando a critério do
médico chefe lembrar o motivo da interrupção do
tratamento (“...O médico relatou as medicações e
as dosagens e que o paciente havia parado as
medicações. O médico chefe relembrou que o
paciente parou a medicação por conta da prova
terapêutica...”).
3- No Caso 1, O médico colocou
informações não relevantes sobre a paciente no
prontuário, além de apresentar dificuldade em
recontar a história de forma organizada e resumida.
Foi necessária a reorganização cronológica das
informações contidas no prontuário na hora de
contar o caso para outro médico.
Este caso é o mais fluido e de difícil
interpretação sobre a real forma de se obter
informações concisas e necessárias para seu
entendimento.
Discussão e Conclusões
A pratica médica varia enormemente
através de diferentes setores, departamentos,
hospitais e especialidades. (6,7,8)
Esta variação na prática traduz também em
uma variação correspondente ao uso e ao tipo de
fonte de informação.
Também
devem
ser
levadas
em
consideração as características da situação de
trabalho dos setores e especialidades médicas. O
Pronto Socorro de um Departamento Medico é um
ambiente marcado por improvisação constante para
lidar com os eventos não planejados dos pacientes
atendidos. Em conseqüência, muito do registro
clínico ocorre de forma paralela e incompleta, pois
muitas vezes mesmo não terminado de atender um
paciente sua atenção já seja deslocada para o
seguinte.
O Departamento de Neurologia: dominado
por pacientes crônicos que requerem discussões
extensivas, coletivas e interdisciplinares entre os
profissionais de saúde para a melhor que a tomada
de decisão. Muito das informações dos pacientes
ficam retidas junto ao médico chefe que vê todos os
casos continuamente. De certa forma a
profundidade das discussões e da solução do caso
ficam na dependência da memória e do grau de
conhecimento do médico chefe do serviço.
Há discrepâncias importantes entre os
dados coletados no prontuário de papel do paciente
e as informações necessárias para se conseguir a
integração entre médicos e o modo como os
médicos realmente usam e comunicam a
informação do paciente. O que esta escrito é
substancialmente diferente do que é falado.
Outro ponto a ser levado em consideração,
é o registro do paciente feito em papel. Este tipo de
registro possui características particulares e que
merecem ser discutidas.
A falta de integralidade do registro de papel
permite-nos agir com omissão ao atendimento do
paciente, fornecendo apenas um esboço racional
para justificar decisões administrativas. Esta
omissão é importante não somente para a
atribuição de culpa, mas através do seu modo
visual, vai guiando e induzindo as ações dos outros
na atividade de “dar uma olhada”. (9) De forma
pragmática o prontuário em papel reproduz
informações
redundantes
fragmentadas
e
ambíguas sobre o paciente. (10)
Parece óbvio, que o registro médico, seja
entremeado com trabalho médico em muitas
camadas, porém sua funcionalidade complexa é
refletida na dificuldade de classificar um registro
(eletrônico) do paciente. Se for meramente uma
base de dados, ou talvez um “knowledge-work
system”? Ou talvez parte de um sistema de
informação da gerência, ou a base para um sistema
de apoio a decisão ou até mesmo a base de um
sistema de workflow? (11).
Por outro lado estes fatos, conduzem-nos a
duvidar que o prontuário médico eletrônico possa
garantir os benefícios prometidos a menos que haja
uma compreensão melhor do trabalho que estão
pretendidos suportar e os processos usados em
seu desenvolvimento e distribuição tornem os
usuários significativamente mais participativos.
Agradecimentos
Agradecemos ao Dr. Orlando Barsottini chefe do
Ambulatório Geral de Neurologia, por nos ter
permitido observar e analisar o trabalho médico em
seu ambulatório.
Referências
1- Ellis CA; Gibbs, S.J. e Rein, G.L. Groupware:
Some Issues and Experiences. Communication
of the ACM, v.34, n.1, 1991, p.1-29.
2- Ellis CA, Wainer J. Groupware and Computer
Supported Cooperative Work. In Weiss, G. (Ed.)
Multiagent Systems, MIT Press, 425 – 457,
1999.
3- Terveen LG., Overview of human-computer
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Knowledge-Based
Systems,
Volume 8, Issues 2-3, April-June 1995.
4- Hartswood M, Procter R, Rouncefield M, Slack
R. Making a Case in Medical Work: Implications
for the Electronic Medical Record. Journal of
Computer Supported Cooperative Work, 12,
2003. p 241—266.
5
Strauss A, et al. Social Oranization of Medical
Work . University of Chicago Press. 1985,
Chicago.
6- Atkinson, P. Medical Talk and Medical Work.
Sage, London: 1995
7- Berg, M. Patient Care Information Systems and
Health Care Work: A Sociotechnical Approach.
International Journal of Medical Informatics, vol.
55, pp. 87–101, 1999.
8- Grimson, J., W. Grimson and W. Hasselbring.
The
SI
Challenge
in
Healthcare.
Communications of the ACM, vol. 43(6), pp. 49–
55, 2000. ACM Press.
9- Clarke K., Hartswood M., Procter R.,
Rouncefield M.. The Electronic Medical Record
and Everyday Medical Work. Health Informatics
Journal, 7(3/4), 2002. p. 168—170.
10- G. Ellingsen, E. Monteiro, A patchwork planet.
Integration and cooperation in hospitals, Comp.
Supp. Coop. Work, 12: 71-95, 2003.
11- Berg, M. Search for synergy: interrelating
medical work and patient care information
systems, Methods Inf. Med., July 2002.
Contato
Claudia G. Novoa Barsottini, Enf. MSc.
Enfermeira Pesquisadora
Departamento de Informática em Saúde
Universidade Federal de São Paulo
e-mail: [email protected]
Edifício Acadêmico José Leal Prado
Rua:Botucatu 862
04023-062, V. Clementino
São Paulo, SP, Brazil
Tel: (55)(11) 5549-2385, 5575-4533

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